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A TEORIA DO MATERIALISMO

HISTÓRICO

MANUAL POPULAR DE SOCIOLOGIA MARXISTA

N. BUKHARIN

1921
A Teoria do Materialismo Histórico N. Bukarin

Escrito: 1921.
Primeira edição: ...
Fonte da transcrição: Edições Caramuru, 1933
Transcrição e Html: Fernando A. S. Araújo

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SUMÁRIO
Prefácio da Edição ...................................................... 9
Introdução: Importância Prática das Ciências Sociais11
1.° A luta de classe e as ciências sociais ............... 11
2.º A burguesia e as ciências sociais .................... 12
3.° O caráter de classe das ciências sociais ........... 13
4.º Porque motivo a ciência proletária é superior a
ciência burguesa? .............................................. 14
5.° As diversas ciências sociais e a sociologia ........ 17
6.° A teoria do materialismo histórico considerada
como sociologia marxista .................................... 19
Capítulo I - A Causa e o Fim das Ciências Sociais
(Casualidade e Finalidade) ....................................... 22
7° A regularidade dos fenômenos em geral e dos
fenômenos sociais, em particular. ........................ 22
8.° O caráter das leis na ciência. Formas pelas quais
se nos apresenta a questão................................. 26
9.° Doutrina da finalidade (teleologia) em geral e
critica da doutrina. Finalidade imanente. ............... 28
10. A finalidade nas ciências sociais ..................... 37
11.° — Causalidade e finalidade. Explicação das
causas como método de explicação cientifica ......... 45
Capítulo II - Determinismo e Indeterminismo
(Necessidade e Livre Arbítrio) .................................. 48
12. O problema da liberdade e da não liberdade da
vontade individual ............................................. 48
13. A resultante das vontades individuais numa
sociedade não organizada ................................... 57
A Teoria do Materialismo Histórico N. Bukarin

14. A vontade organizada coletivamente (a resultante


das vontades individuais numa sociedade organizada,
comunista) ....................................................... 63
15. O pretendido acaso, em geral: ....................... 67
16. O "acaso" histórico: — Visto o que precede, é fácil
examinar o problema do pretendido "acaso histórico".
....................................................................... 70
17. A necessidade histórica ................................. 73
18. O problema da possibilidade das ciências sociais e
das previsões neste domínio ............................... 77
Capítulo III - O Materialismo Dialético ..................... 85
19. O materialismo e o idealismo na filosofia. O
problema da objetividade ................................... 85
20. A concepção materialista nas ciências sociais ... 96
21. O ponto de vista dinâmico e as relações dos
fenômenos entre si .......................................... 104
22. O ponto de vista histórico nas ciências sociais 111
23. As contradições na evolução histórica ........... 122
24. A teoria das transformações por saltos e a teoria
das transformações revolucionárias nas ciências
sociais ........................................................... 135
Capítulo IV - A Sociedade ....................................... 143
25. Concepções dos agregados. Agregados lógicos e
reais .............................................................. 143
26. A sociedade como agregado real ou como sistema
..................................................................... 146

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A Teoria do Materialismo Histórico N. Bukarin

27. — Caráter do laço social .............................. 152


28. A sociedade e o indivíduo. Supremacia da
sociedade sobre o indivíduo .............................. 162
29. As sociedades em formação ......................... 177
Capítulo V - O Equilíbrio Entre a Sociedade e a Natureza
............................................................................... 182
30. A natureza como meio para a sociedade ........ 182
31. Relações entre a sociedade e a natureza.
Processos de produção e de reprodução.............. 189
32. Forças produtivas. As forças produtivas como
índice da relação entre a natureza e a sociedade.. 200
33. O equilíbrio entre a natureza e a sociedade, suas
rupturas e seus restabelecimentos ..................... 214
34. As forças produtivas como ponto de partida para
a analise sociológica ........................................ 217
Capítulo VI - O Equilíbrio Entre os Elementos da
Sociedade ............................................................... 239
35. Laços que unem os diversos fenômenos sociais.
Como deve ser colocada a questão .................... 239
36. Coisas, pessoas, idéias ............................... 244
37. A técnica social e a estrutura econômica da
sociedade ....................................................... 247
38. A superestrutura e suas formas.................... 278
39. A psicologia e ideologia sociais ..................... 303
40. Os processos ideológicos como trabalho
diferenciado .................................................... 322

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A Teoria do Materialismo Histórico N. Bukarin

41. O alcance das superestruturas ..................... 338


42. Os princípios constitutivos da vida social ....... 353
43. Tipos de estruturas econômicas e tipos diversos
de sociedades ................................................. 359
44. Caráter contraditório da evolução: Equilíbrio
"exterior" e equilíbrio "interno" da sociedade ....... 373
Capítulo VII - Ruptura e Restabelecimento do Equilíbrio
Social ..................................................................... 377
45 — O processo das transformações sociais e as
forças produtivas ............................................. 377
46. As forças produtivas, a estrutura social e
econômica ...................................................... 382
47. A revolução e suas fases ............................. 396
48. As leis do período de transição e da decadência
..................................................................... 409
49. A evolução das forças produtivas e a
materialização dos fenômenos sociais [acumulação da
cultura) .......................................................... 417
50. O processo de reprodução da vida social no seu
conjunto......................................................... 422
Capítulo VIII - As Classes e a Luta de Classes ........ 427
51. Classe, condição, profissão .......................... 427
52. O interesse de classe .................................. 447
53. Psicologia de classe e ideologia de classe....... 452
54. «Classe em si» e «classe para si»................. 463

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A Teoria do Materialismo Histórico N. Bukarin

55. As formas da solidariedade relativa dos interesses


..................................................................... 466
56. Luta de classes e paz de classes ................... 474
57. Luta de classes e poder político .................... 485
58. Classe, partido, chefes ................................ 490
59. As classes como instrumento de transformação
social ............................................................. 497
60. A sociedade sem classes do futuro................ 499
Suplemento: Breves notas sobre o problema da Teoria do
Materialismo Histórico............................................ 504
1.º O «Mecânico» e o «Orgânico» ...................... 505
2.º Dialética e teoria do equilíbrio ...................... 506
3.º Teoria do equilíbrio e forças produtivas ......... 508
4.º Relações de produção ................................. 511
5.º Superestrutura e ideologia. Estrutura das
superestruturas ............................................... 514
6.º Dependência das superestruturas em relação à
base .............................................................. 516
7.º As superestruturas como esferas de trabalho
diferenciado .................................................... 517
8.º O modo de representação e os princípios
formando a vida social ..................................... 518
9.º A fisiologia humana e as leis da evolução social
..................................................................... 519
10.º Materialização dos fenômenos sociais .......... 520

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A Teoria do Materialismo Histórico N. Bukarin

11.º A lei do período de transição e a lei da


decadência ..................................................... 520

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A Teoria do Materialismo Histórico N. Bukarin

PREFÁCIO DA EDIÇÃO
Há atualmente um grande interesse em torno das
questões sociais. No estrangeiro isto tem dado lugar a uma
imensa literatura difícil entretanto de ser compulsada entre
nós, quer pelo seu custo elevado, quer pela sua língua
original a todos nem sempre accessível.

As Edições Caramuru pretendem apresentar ao publico


leitor uma série de livros sobre estas questões consideradas
através de várias correntes ideológicas. Por ser o socialismo
o assunto da atualidade, a primeira série destas edições
versará sobre as diversas tendências das escolas socialistas
modernas, apresentadas com a maior nitidez e fidelidade.
Com este objetivo, foi escolhida a tradução da "Teoria do
Materialismo Histórico", de Nicolas Bukharin, para a
publicação inicial. No intuito de facilitar a sua aquisição,
dividiu-se a obra em cinco tomos(1), que serão publicados
sucessivamente. Esta tradução está naturalmente fadada a
ser acolhida com grande interesse pelos estudiosos.
Salientamos apenas a clareza e a simplicidade com que
Nicolas Bukharin aborda as questões mais complexas, o que
permite, mesmo aos não iniciados em sociologia,
acompanhar com relativa facilidade todos os pontos de sua
singela e atraente exposição.

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A Teoria do Materialismo Histórico N. Bukarin

***

Se há um assunto relativamente novo em nossos


círculos intelectuais, hoje diariamente repisado pelas colunas
da imprensa, pelo rádio e outros meios esse assunto é
representado pelo vocábulo — socialismo. É portanto de toda
a oportunidade facilitar aos numerosos interessados a
formação de uma idéia mais concreta sobre o que seja o
socialismo e suas diferentes escolas. Essa é a razão
primordial da presente edição.

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A Teoria do Materialismo Histórico N. Bukarin

INTRODUÇÃO

IMPORTÂNCIA PRÁTICA DAS


CIÊNCIAS SOCIAIS
1.° A LUTA DE CLASSE E AS CIÊNCIAS SOCIAIS
Quando os sábios burgueses se referem a uma ciência
qualquer, assumem um ar misterioso como se se tratasse
duma coisa do céu e não da terra. No entanto qualquer
ciência tem a sua origem nas necessidades da sociedade ou
das classes que a compõem. Ninguém se põe a contar as
moscas que estão sobre uma janela ou os passarinhos na
rua. No entanto contam-se, por exemplo, as cabeças de
gado. Ninguém precisa dos primeiros enquanto é útil
conhecer os segundos. Mas não é suficiente conhecer a
natureza de onde tiramos tantas coisas úteis, as matérias
primas etc.; é necessário também, do ponto de vista prático,
ter noções claras do que seja a sociedade. A classe
trabalhadora sente a cada momento, na sua luta, a
necessidade desse conhecimento. Para levar avante
convenientemente o combate contra as outras classes, ela
deve prever a maneira pela qual essas classes vão agir. E,
para estar em condições de prever, é preciso conhecer as
razões que determinam a ação das diferentes classes, em
diferentes situações. Enquanto a classe operaria não
conquistar o poder, ela será oprimida pelo capital e obrigada
a contar, na sua luta pela emancipação, com as maneiras de
agir das outras classes. Esta é a razão porque precisa saber
do que depende e como é determinada a conduta dessas

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A Teoria do Materialismo Histórico N. Bukarin

classes. Somente as ciências sociais podem resolver este


problema. Depois de tomado o poder a classe proletária é
obrigada a lutar contra os estados capitalistas dos outros
países e contra a contrarrevolução, no seu próprio país; e
nessa ocasião ela é obrigada a resolver os problemas
extremamente difíceis relativos à organização de produção e
distribuição. Como estabelecer um plano econômico de
trabalho? Como se servir dos intelectuais? Como converter
ao comunismo, os camponeses e a pequena-burguesia?
Como formar administradores experimentados, saídos da
classe proletária? Como se aproximar das grandes camadas
que ainda não têm consciência da sua classe? Etc., etc...
Questões cuja solução exige um conhecimento profundo da
sociedade, das classes que a compõem, das particularidades
delas e da sua conduta, em determinadas condições. A
solução destes problemas exige igualmente o conhecimento
da vida econômica e das concepções sociais dos diversos
grupos da sociedade. Em resumo ela exige a utilização
pratica da ciência social. A tarefa prática da reconstrução
social só pode ser realizada com a aplicação de uma política
cientifica da classe proletária, isto é, de uma política baseada
sobre a teoria cientifica, posta á disposição dos proletários;
a teoria fundada por Marx.

2.º A BURGUESIA E AS CIÊNCIAS SOCIAIS

A burguesia de seu lado criou a sua própria ciência


social, partindo das suas próprias necessidades da vida
prática.

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A Teoria do Materialismo Histórico N. Bukarin

Como classe dominante ela se vê obrigada a resolver um


grande numero de problemas: Como conservar a ordem
capitalista? Como assegurar o pretendido "desenvolvimento
normal" da sociedade capitalista? Isto é, a usurpação regular
do lucro? Como organizar para este fim as instituições
econômicas? Qual a política a ser adotada com relação aos
outros países? Como garantir a sua dominação sobre a classe
proletária? Como resolver as divergências dentro do seu
meio? Como preparar os quadros de seus funcionários, de
seus policiais, de seus sábios, de seu clero? Como organizar
a instrução de maneira a impedir que a classe proletária se
torne uma classe de selvagens, que destruam as máquinas,
ficando, entretanto submissa aos seus exploradores? Etc.

Eis a razão porque a burguesia precisa duma ciência


social que a ajude a se guiar na complexidade da vida social
e que lhe forneça meios para resolver os problemas práticos
da existência.

É interessante verificar que os primeiros economistas


burgueses ou sábios especializados na economia, foram
práticos saídos do alto comercio ou homens ligados ao
serviço do Estado. Ricardo, o maior teórico da burguesia, era
um banqueiro muito hábil.

3.° O CARÁTER DE CLASSE DAS CIÊNCIAS SOCIAIS


Os sábios burgueses se intitulam os representantes da
"ciência pura", dizem que as paixões terrestres, o conflito
dos interesses, as dificuldades da existência, a procura do
lucro, e outras coisas vulgares e inferiores, não têm relação

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A Teoria do Materialismo Histórico N. Bukarin

com a sua ciência. Eles consideram as coisas como se o sábio


fosse um deus, sentado no cume de uma alta montanha e
observando sem paixão a vida social em toda a sua
complexidade. Eles pensam (ou antes, eles dizem) que a
imunda "prática" não exerce influencia alguma sobre a
"teoria" pura.

Está claro, pelo já exposto, que tudo isto é fantasia. Pelo


contrario, a ciência nasce da vida prática. Torna-se assim
perfeitamente compreensível que as ciências sociais tenham
caráter de classe. Cada classe tem uma existência prática
que lhe é peculiar; os seus próprios problemas, seus
interesses e suas concepções particulares. A burguesia se
esforça antes de tudo em conservar, consolidar e tornar
universal e eterna a dominação do capital. Quanto à classe
proletária, ela se preocupa antes de tudo em destruir o
regime capitalista e assegurar a dominação do proletariado,
para reorganizar o mundo. Não é difícil compreender que a
burguesia tenha uma concepção do mundo, completamente
diferente da concepção proletária; que a ciência social da
burguesia seja uma, e que a do proletariado seja
completamente diversa.

4.º PORQUE MOTIVO A CIÊNCIA PROLETÁRIA É SUPERIOR


A CIÊNCIA BURGUESA?

Esta é a questão que agora se nos apresenta. Se as


ciências sociais têm um caráter de classe, porque motivo é a
ciência proletária superior a burguesa? A classe proletária,
tanto quanto a burguesia, têm os seus interesses, suas
aspirações, e sua própria vida prática. Elas são tão

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A Teoria do Materialismo Histórico N. Bukarin

interesseiras uma quanto a outra. O fato de uma classe ser


boa, generosa, preocupada com o bem da humanidade, e a
outra cúpida, procurando somente o lucro, etc., mudará de
alguma maneira a questão?

Uma usa óculos vermelhos, a outra óculos brancos;


porque serão os óculos vermelhos superiores aos óculos
brancos? Porque motivo será mais fácil observar a realidade
através de óculos vermelhos? Por que se enxerga melhor
com eles?

Antes de responder a estas questões é necessário refletir


alguns instantes.

Vejamos qual é a situação da burguesia. Nós já


observamos que antes de tudo ela se interessa em manter a
ordem capitalista; no entanto sabemos que nada há de
eterno debaixo do sol. Houve uma era de regime escravista
e em seguida outra de regime feudal; houve também, e há
ainda, um regime capitalista; conheceram-se ainda outras
formas de sociedades humanas. Se assim é — e isso é
incontestável — pode-se tirar a seguinte conclusão: quem
quiser compreender corretamente a vida social, deve
compreender antes de mais nada que tudo muda e que uma
forma social sucede a outra. Vamos tomar, por exemplo, um
senhor feudal, vivendo antes da libertação dos servos. Era-
lhe absolutamente impossível imaginar um regime onde os
servos não pudessem ser vendidos ou trocados por cães de
caça.

Podia esse senhor feudal compreender as condições


reais do desenvolvimento social? Certamente que não. Por

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A Teoria do Materialismo Histórico N. Bukarin

que: Pela simples razão dele ter diante dos seus olhos, invés
de óculos, espessa faixa. Ele era, portanto, incapaz de
enxergar um palmo diante do seu nariz, e não podia, nestas
condições, compreender o que se passava na sua frente.

O mesmo exatamente sucede com a burguesia. Sendo


interessada em conservar o regime capitalista, ela crê em
sua solidez e na sua eternidade. Este é o motivo pelo qual
ela não pode observar certas particularidades e fenômenos
do desenvolvimento da sociedade capitalista, que indicam
sua fragilidade, sua decadência inevitável (ou mesmo sua
decadência possível), sua transformação em outra ordem
social. É no estudo do exemplo da guerra mundial e da
Revolução que se pode observar claramente a falta de visão
da burguesia. Qual foi entre os sábios burgueses aquele que
previu as consequências da conflagração mundial? Ninguém.
Quem dentre eles previu a vinda da Revolução? Eles não
fizeram mais que sustentar os seus governos burgueses e
prometer a vitória aos capitalistas dos seus países. No
entanto são fenômenos tais como o empobrecimento
resultante da guerra e as Revoluções proletárias,
desconhecidos até então, que decidem do futuro da
humanidade e modificam o aspecto do mundo. Foi aqui
precisamente que a ciência burguesa nada previu.

Os comunistas, pelo contrario, representantes da ciência


proletária, previram este fenômeno. Isto se explica pelo fato
do proletariado, não sendo interessado na conservação da
antiga ordem, poder ver mais longe do que a burguesia.

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A Teoria do Materialismo Histórico N. Bukarin

É fácil compreender agora porque motivo a ciência


proletária é superior á ciência burguesa. Ela é superior
porque estuda os fenômenos da vida social de uma maneira
mais larga e profunda, porque ela tem uma maior visão e
observa coisas que a ciência social burguesa é incapaz de
enxergar. Compreende-se assim que nós outros, marxistas,
temos o direito de considerar a ciência proletária como a
verdadeira ciência e exigir que ela seja reconhecida como tal.

5.° AS DIVERSAS CIÊNCIAS SOCIAIS E A SOCIOLOGIA


A sociedade humana é extremamente complexa, e os
fenômenos sociais são por sua vez, muito complexos e
variados. Temos que tratar dos fenômenos econômicos, do
regime econômico, da organização do Estado, da moral, da
religião, da ciência, da filosofia, das condições da família
etc.... Todos estes fenômenos se acham emaranhados e
formam a torrente da vida social. Está claro que é preciso
estudar esta vida social, tão complexa, de diferentes pontos
de vista, e dividir a ciência em uma série de ciências
particulares. Uma estuda a vida econômica da sociedade (a
ciência econômica) ou mesmo, as leis gerais do regime
capitalista, em particular (a economia política); outra estuda
o direito e o Estado e se subdivide por sua vez em vários
ramos: uma outra estuda por exemplo os costumes etc...

Em cada um desses domínios a ciência se divide por sua


vez em duas classes: umas estudam o que existiu numa
certa época e em determinado lugar; estas são as ciências
históricas. Tomemos por exemplo as ciências do direito:
pode-se estudar e descrever em detalhe as origens do direito

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A Teoria do Materialismo Histórico N. Bukarin

e do Estado assim como as suas transformações: isto será a


historia do direito. Pode-se também estudar e procurar
resolver problemas de ordem geral: o que é o direito, quais
são as condições do seu aparecimento e desaparecimento,
de que dependem as suas formas, etc...; isto será a teoria
do direito. Estas ciências são as ciências teóricas.

Existem entre as ciências sociais dois ramos muito


importantes que não estudam só um domínio da vida social,
mas sim a vida social em toda a sua complexidade; em
outros termos elas não se detêm em observar um só gênero
de fenômenos (seja econômico, jurídico, religioso, etc.), mas
eles estudam a vida social no seu conjunto, todas as
manifestações dos fenômenos sociais. Estas ciências
constituem de um lado a história e do outro a sociologia. Dito
isto, é fácil ver o que as diferencia. A historia segue e
descreve a corrente da vida social durante um intervalo de
tempo e num determinado lugar (por exemplo, a maneira
como se desenvolvem a economia, o direito, a moral, a
ciência, etc.... na Rússia de 1700 a 1800, ou então na China
do ano 2000 antes de Cristo até o ano 1000 depois de Cristo,
ou ainda na Alemanha depois da guerra Franco-Alemã, de
1871, ou enfim, em uma outra época num país qualquer, ou
numa série de países). Quanto à sociologia, procura resolver
problemas de ordem geral: o que é sociedade? Quais são as
razões do seu desenvolvimento e de sua decadência? Quais
são as relações entre os diversos gêneros de fenômeno
sociais (a economia, o direito, a ciência, etc...)? Como
explicar o seu desenvolvimento? Quais são as formas
históricas da sociedade? Como explicar suas variações? Etc.,

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A Teoria do Materialismo Histórico N. Bukarin

etc... A sociologia é a mais geral e a mais abstrata das


ciências sociais.

Ela é apresentada muitas vezes sob outras


denominações: "filosofia da história", "teoria do
desenvolvimento histórico" etc... Vê-se pelo que precedem,
quais são as relações entre a história e a sociologia.
Explicando as leis gerais da evolução humana, a sociologia
serve de método a historia. Se, por exemplo, a sociologia
estabelece uma lei geral segundo a qual as formas do Estado
dependem das formas da economia, um historiador,
estudando uma dada época, deve-se esforçar em encontrar
a relação e indicar a forma concreta (isto é, correspondente
ao momento dado) em que ela se exprime. O historiador
fornece os materiais para as conclusões e as generalizações
sociológicas, porque essas conclusões não são tomadas
arbitrariamente, e sim tiradas de fatores históricos reais.

A sociologia, por sua vez formula um ponto de vista


definido, um processo de investigação, ou melhor, um
método para a história.

6.° A TEORIA DO MATERIALISMO HISTÓRICO


CONSIDERADA COMO SOCIOLOGIA MARXISTA

A classe proletária tem sua sociologia própria, conhecida


pelo nome de materialismo histórico. Os princípios desta
teoria foram estabelecidos por Marx e Engels. Ela é também
chamada a concepção materialista da história, ou mais
simplesmente o "materialismo econômico". Essa teoria
genial constitui o mais preciso instrumento do pensamento e

19
A Teoria do Materialismo Histórico N. Bukarin

do conhecimento humano. É graças a ela que o proletariado


consegue se guiar no meio dos mais complicados problemas
da vida social e da luta de classe. É graças a ela que os
comunistas previram a guerra e a Revolução, a ditadura do
proletariado, e a linha de conduta dos partidos, dos grupos e
das diferentes classes, no decorrer da formidável
efervescência que a humanidade atravessa. A presente obra
é consagrada á exposição e desenvolvimento desta teoria.

Certos camaradas pensam que a teoria do materialismo


histórico não pode de maneira alguma ser considerada como
uma sociologia marxista e que ela não pode ser exposta de
uma maneira sistemática. Acham esses camaradas que ela
não é senão um método vivo de conhecimento histórico, que
suas verdades não podem ser provadas senão em se
tratando de fenômenos concretos e históricos. Junta-se a
este argumento que a própria noção de sociologia está muito
mal definida: que entende-se por "sociologia", ora a ciência
da cultura primitiva e da origem das formas essenciais da
comunidade humana (por exemplo, a família), ora
considerações extremamente vagas sobre diferentes
fenômenos sociais "em geral", ora a comparação arbitraria
da sociedade a um organismo (a escola orgânica ou biológica
na sociologia). Estes argumentos são falsos. Em primeiro
lugar, a confusão que reina no campo burguês não nos deve
levar a criar outra entre nós. Que lugar deve portanto ocupar
a teoria do materialismo histórico? Não será na economia
política nem tão pouco na historia; seu lugar está na ciência
geral da sociedade e das leis de sua evolução, isto é, na
sociologia. Por outro lado, o fato do materialismo histórico
constituir um método para a história, não diminui de maneira

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A Teoria do Materialismo Histórico N. Bukarin

alguma a sua importância como teoria sociológica. Muitas


vezes uma ciência mais abstrata fornece um ponto de vista
(isto é um método) a uma ciência menos abstrata. Este é o
nosso caso, como já vimos acima.

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A Teoria do Materialismo Histórico N. Bukarin

CAPÍTULO I

A CAUSA E O FIM DAS CIÊNCIAS


SOCIAIS (CASUALIDADE E
FINALIDADE)
7° A REGULARIDADE DOS FENÔMENOS EM GERAL E DOS
FENÔMENOS SOCIAIS, EM PARTICULAR.

Se observarmos os fenômenos naturais e sociais,


verificamos que esses fenômenos não se acham reunidos
desordenadamente e sem que os possamos compreender ou
prever. Ao contrario basta estudar as coisas um pouco mais
de perto, para verificarmos que há nelas certa regularidade
nos fenômenos. O dia segue a noite e a noite o dia de uma
maneira perfeitamente regular. As estações se alternam, e
ao mesmo tempo toda a série de fenômenos que as
acompanham se repetem todos os anos: as arvores
verdejam e perdem suas folhas, as diferentes espécies de
pássaros chegam e partem, os homens semeiam, colhem
etc... Tomemos ainda outro exemplo interessante. Depois
das chuvas tépidas, os cogumelos crescem
abundantemente; existe mesmo um ditado: "crescer como
os cogumelos depois da chuva". Todos nós sabemos que uma
semente de cevada caindo na terra germina e em seguida,
em certas condições, acaba por produzir uma espiga.

22
A Teoria do Materialismo Histórico N. Bukarin

Pelo contrario, nunca se viu esta espiga sair de um ovo


de rã ou de uma pedra de cal. Assim, tudo o que existe na
natureza a começar pelo majestoso movimento dos planetas,
para terminar pelas sementes e os cogumelos, está
submetido a certa ordem, ou como se costuma dizer, a certas
leis.

O mesmo acontece na vida social, isto é na vida da


sociedade humana. Por mais complicada e variada que seja
esta vida, descobrimos nela certas leis. Assim em todos os
lugares onde o capitalismo se desenvolve (na América, no
Japão, na África ou na Austrália), desenvolve-se também e
aumenta a classe proletária; aparece o movimento socialista,
a teoria marxista se espalha. Juntamente com a produção
cresce também a "cultura espiritual"; o numero de
intelectuais aumenta. Numa sociedade capitalista, em
intervalos regulares, produzem-se crises que se alternam
com a expansão da indústria, do mesmo modo que os dias
se alternam com as noites. As grandes invenções
transformam a técnica; ao mesmo tempo a vida social se
modifica rapidamente. Vamos tomar ainda alguns exemplos.
Se calcularmos o numero de nascimentos humanos durante
um ano, veremos que no ano seguinte o acréscimo de
população, expresso em porcentagem será
aproximadamente o mesmo. Se calcularmos a quantidade de
cerveja consumida na Baviera durante um ano, verificaremos
que essa quantidade é mais ou menos constante e aumenta
com o crescimento da população. Se não existisse nenhuma
regularidade nem leis, é evidente que nada poderia ser

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A Teoria do Materialismo Histórico N. Bukarin

previsto nem feito. Hoje o dia segue a noite„ mais tarde,


quem sabe se durante todo um ano não será mais visto o
dia. Neste inverno, tivemos neve no próximo veremos
florescer as laranjeiras. Na Inglaterra, a classe proletária se
desenvolveu juntamente com o capitalismo, mas no Japão,
veremos quem sabe, aumentar as propriedades fundiárias.
Hoje em dia, o pão é cozido num forno, mas amanhã, quem
sabe, se o diabo intervier, os pinheiros passarão a produzi-
lo.

Entretanto, na realidade ninguém pensa desta maneira.


Todos sabem perfeitamente que as arvores nunca produzirão
pães. Todos observam que existe certa regularidade, que há
leis que regem os fenômenos, tanto na natureza como na
sociedade. A primeira função da ciência é justamente
descobrir esta regularidade.

Esta regularidade (lei) na natureza e na vida social não


depende de maneira alguma do conhecimento humano. Em
outras palavras, as leis são objetivas, independentes do
conhecimento dos homens. A primeira função da ciência
consiste em descobrir esta regularidade; em encontra-la no
meio do caos dos fenômenos. Marx considerava o sinal
característico do conhecimento cientifico o fato dele dar
uma:

"totalização de um numero importante


de determinações e de relações" em
oposição a uma "representação caótica"

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A Teoria do Materialismo Histórico N. Bukarin

("Introdução á critica da economia


política", Stuttgart 1920, pag. 35).

Este caráter da ciência que "sistematiza", "ordena",


"organiza", cria um "sistema", etc. É reconhecido por todo o
mundo. É assim que Mach (no "Conhecimento e Erro") define
o processo do pensamento cientifico como uma adaptação
dos pensamentos aos fatos e de pensamentos a
pensamentos. O professor inglês P. Pearson escreve:

"não são os fatos que constituem por si


mesmos uma ciência, e sim o método
pelo qual eles são interpretados".

O método original da ciência consiste em "classificar" os


fatos, o que não constituí uma simples reunião de fatos e sim
uma "reunião sistemática": (citado pela edição russa da
"Gramática e Ciência" de P. Pearson, pag. 26 e 100). No
entanto, a grande maioria dos filósofos burgueses
contemporâneos considera que o papel da ciência não
consiste em descobrir esta regularidade (estas leis), que
existem objetivamente, e sim inventar estas leis com o
auxílio do raciocínio humano; é claro, porém, que a
alternância dos dias e das noites, das estações, a
transformação regular dos fenômenos naturais e sociais,
existe independentemente do que deseja ou deixa de desejar
o raciocínio de um sábio burguês. A regularidade destes
fenômenos, isto é, as leis ás quais eles estão submetidos,
são de ordem objetiva.

25
A Teoria do Materialismo Histórico N. Bukarin

8.° O CARÁTER DAS LEIS NA CIÊNCIA. FORMAS PELAS


QUAIS SE NOS APRESENTA A QUESTÃO.

Se esta regularidade, à qual nos referimos acima,


aparece nos fenômenos naturais e sociais, trata-se agora
saber em que consiste. Quando estamos em presença de um
mecanismo de relojoaria de movimento regular, quando
observamos a excelente maneira pela qual se acham
ajustadas as engrenagens, começamos a compreender as
razões de seu movimento. O relógio está construído de
acordo com um plano preestabelecido; esse instrumento é
construído para um determinado fim, e cada parafuso está
colocado visando certo fim. Mas passar-se-ão de forma
análoga os fatos no universo? Os planetas evoluem segundo
trajetórias determinadas; a natureza conserva sabiamente
as formas mais desenvolvidas da vida. Basta estudar a
construção do olho de um animal para se verificar
imediatamente quão habilmente ele está construído para o
fim que se destina. E tudo o que existe na natureza está,
com efeito, de acordo com a sua finalidade: a toupeira que
vive debaixo da terra é cega, mas por outro lado, tem um
excelente ouvido; os peixes que vivem à grandes
profundidades e submetidos a uma forte pressão, têm a
necessária resistência (fora da agua eles estouram), etc... E
na sociedade humana, de que maneira se passam as coisas?
Não tem a humanidade o seu grande fim — o comunismo?
Todo o desenvolvimento histórico não a conduz a este fim?
E se assim é, si tanto na natureza como na sociedade, tudo
tem seu fim, que nós nem sempre compreendemos, mas que

26
A Teoria do Materialismo Histórico N. Bukarin

consiste em um aperfeiçoamento indefinido, não poderão


todos os fenômenos ser estudados do ponto de vista deste
fim? Assim, as leis de que nos referimos se apresentarão
como leis de finalidade (ou leis teleológicas: "télos" em grego
— "fim"). Esta é uma das maneiras de se apresentar a
questão do caráter das leis.

Outra maneira de apresentar a questão prove do fato de


cada fenômeno ter a sua causa. A humanidade marcha para
o comunismo, porque na sociedade capitalista aparece o
proletariado, que não encontra espaço suficiente dentro,
dela; a toupeira vê mal e ouve bem, porque, durante
milhares de anos as condições naturais influíram nestes
animais, porque as transformações provocadas por elas
foram transmitidas por hereditariedade, e ao mesmo tempo,
sobreviveram e se multiplicaram os seres que mais
facilmente podiam sobreviver, isto é, os que melhor se
achavam adaptados ao ambiente. O dia e a noite se
alternam, porque a terra gira em torno do seu eixo e
apresenta; ao sol alternadamente um e outro hemisfério,
etc... Em todos estes casos não se apresenta a questão da
finalidade (não se pergunta "por quê?"), pergunta-se qual é
a causa do fenômeno (isto é "como?"). Esta é a maneira que
se apresenta a questão, seguindo o principio da causalidade
(da palavra "causa"). As leis que governam a marcha dos
fenômenos são assim submetidas ao principio da
causalidade.

27
A Teoria do Materialismo Histórico N. Bukarin

Há, portanto, um conflito entre a causalidade e a


finalidade. Precisamos antes de mais nada solucionar esse
conflito.

9.° DOUTRINA DA FINALIDADE (TELEOLOGIA) EM GERAL


E CRITICA DA DOUTRINA. FINALIDADE IMANENTE.

Não será difícil compreender a inconsistência da


teleologia se considerarmos a finalidade como principio
universal, isto é se considerarmos a concepção segundo a
qual tudo está submetido a fins determinados. Com efeito, o
que é o fim? A concepção do "fim" pressupõe a existência de
alguém que tenha em mira esse fim como tal, isto é, de uma
maneira consciente. Um fim não pode existir separadamente
daquele que o visa. Uma pedra não visa fim algum, nem tão
pouco o sol, ou um planeta ou todo o sistema solar, ou
mesmo a Via-Láctea. O fim é uma concepção que só pode
ser aplicada a seres vivos e conscientes, tendo os seus
desejos, fazendo desses desejos um fim e tendendo a
satisfazê-los (isto é, aproximando-se desse fim). Somente
um selvagem não poderia conceber que um marco divisório
se proponha a uma finalidade. O selvagem anima a natureza
e anima a pedra. É por este motivo que nele domina a
"teleologia", e uma pedra age para ele como se fosse um
homem consciente. Os partidários da doutrina da finalidade
parecem-se com este selvagem como duas gotas de água,
pois para eles, o mundo inteiro tem o seu "fim" proposto por
um desconhecido. Vemos assim, claramente que as
concepções do fim, e de finalidade são simplesmente

28
A Teoria do Materialismo Histórico N. Bukarin

inaplicáveis ao mundo em geral, e que as leis a que


obedecem os fenômenos não se acham submetidas a
nenhuma finalidade.

Não é difícil descobrir as fontes da discórdia entre os


partidários da teleologia e da causalidade. Desde a época em
que a sociedade humana se dividiu em diferentes grupos,
dos quais uns (a minoria) governam, ordenam, dominam, e
os outros executam, são governados e obedecem, os
homens começaram a encarar o mundo de conformidade
com esse estado de coisas. Da mesma maneira que há sobre
a terra reis, assim também deve existir no mundo inteiro um
rei celeste, um juiz celeste, com as suas tropas celestes e
seus generais (os estrategistas supremos). Começou-se a
considerar o universo como o produto de uma vontade
criadora que se ocupa em criar fins e traçar o seu "plano
divino". É por este motivo que a regularidade dos fenômenos
foi considerada como a expressão dessa vontade divina. O
filósofo grego Aristóteles disse: "A natureza, é o fim".

A palavra grega "nomos" (lei) significava ao mesmo


tempo a "lei natural" e a lei moral (isto é, uma regra moral,
um preceito), e também simplesmente a ordem, a medida,
a harmonia.

"Ao mesmo tempo em que se alargava o


poder imperial, a jurisprudência da
antiga Roma se transformou em uma
espécie de teologia laica, e seu

29
A Teoria do Materialismo Histórico N. Bukarin

desenvolvimento ulterior seguiu


paralelamente à teologia dogmática. A
lei começou a significar uma norma
(regra de conduta, N. B.), tendo sua
fonte num poder superior, — no de um
imperador celeste em teologia, ou bem
de um deus terrestre em jurisprudência,
— e prescrevendo aos seres submetidos
a uma determinada regra de conduta"
(E. Spektorsky: "Estudos sobre a
filosofia das ciências sociais". Varsóvia,
1907, pag. 158).

O sistema de leis da natureza foi considerado como um


sistema de legislação divina. O celebre sábio Kepler dizia que
o mundo físico tinha as suas "pandectas" (pandectas:
coleção de leis do imperador Justiniano). Encontramos
concepções semelhantes, ainda mais tarde. Assim os
fisiocratas (economistas franceses do tempo da Revolução),
que foram os primeiros a descrever a sociedade capitalista,
misturaram as leis às quais estão submetidos os fenômenos
naturais e sociais, com as do Estado e com os decretos das
potências celestes. Assim, por exemplo, François Quesnay
escreve:

“As leis que constituem as sociedades


são leis de ordem natural e as mais
vantajosas para o gênero humano.”

30
A Teoria do Materialismo Histórico N. Bukarin

"Estas leis foram estabelecidas para a


perpetuidade pelo autor da Natureza."

"A observância destas leis naturais e


fundamentais do corpo político, deve ser
mantida por intermédio de uma
autoridade tutelar, estabelecida para a
sociedade..." (François Quesnay: "O
despotismo da China", Capitulo 8º, § 1 e
2).

Não é difícil verificar como estas leis da "autoridade


tutelar" (isto é dos agentes policiais da burguesia) se apoiam
habilmente sobre o "Criador celeste", que elas devem por
sua vez sustentar.

Poder-se-ia citar um grande numero de exemplos. Todos


eles provam a mesma coisa, a saber, que a doutrina da
finalidade se apoia na religião. De acordo com a sua origem,
ela transporta as relações grosseiras e barbaras de
submissão e escravidão, de um lado, e de dominação, do
outro, para o mundo inteiro. Na sua própria base, ela é
constrangida à explicação cientifica, e se apoia sobre a fé. É
uma doutrina de "beatos", qualquer que seja o caldo em que
venha disfarçada. Mas como podemos então explicar os
fenômenos cuja "conformidade ao plano preestabelecido"
salta aos olhos (a estrutura dos diferentes organismos, "de
conformidade com um plano", o progresso social, o
aperfeiçoamento das espécies animais e do homem, etc...)?

31
A Teoria do Materialismo Histórico N. Bukarin

Se nós nos colocarmos num ponto de vista grosseiramente


finalista e se responsabilizarmos Deus e seu "plano",
verificaremos imediatamente a insanidade de semelhante
"explicação". É por esta razão que a doutrina da finalidade é
concebida por alguns de uma maneira mais séria e toma
então a forma da "doutrina da finalidade imanente" (isto é,
da finalidade ligada interiormente aos fenômenos naturais e
sociais).

Antes de passar ao estudo desta questão, talvez seja


melhor dizer algumas palavras sobre as "explicações"
religiosas. Um economista burguês muito inteligente,
Boehm-Bawerk, citou o seguinte exemplo:

"Vamos supor que para explicar a


estrutura do universo eu emita uma
teoria segundo a qual todo o universo
seria composto de uma quantidade
incalculável de gnomos (diabinhos), cujo
movimento incessante produziria todos
os fenômenos. Ora, estes pequenos
gnomos são invisíveis, não emitem
ruído, não têm cheiro e é impossível
agarra-los pela cauda. Tente-se
desmentir tal "teoria"! É impossível
provar diretamente que ela é falsa, pois
ela se acha escondida atrás da
invisibilidade dos fugitivos gnomos.
Apesar disto, todo o mundo vê

32
A Teoria do Materialismo Histórico N. Bukarin

perfeitamente que isto não passa duma


bobagem. Por quê? Pela simples razão
de não existir nem um fato que venha
confirmar tal concepção.”.

Tais são, mais ou menos, as pretendidas explicações de


ordem religiosa. Elas são baseadas sobre um sistema de
forças desconhecidas, ou então sobre a fragilidade da nossa
razão. Foi assim que um Santo Padre da Igreja propôs como
principia: "Eu creio porque é absurdo" (Credo quia
absurdum). Segundo os princípios do Cristianismo, Deus é
um, mas ao mesmo tempo, existe uma Trindade divina.
Evidentemente isto é contrário à tabuada de multiplicação.
Mas dizem-nos que "nossa fraca razão não pode
compreender este mistério". Certamente, com um raciocínio
desta espécie, é possível justificar qualquer extravagância.

Em que consiste a teoria da "finalidade imanente"?


Rejeita-se nela a ideia duma força misteriosa no sentido
grosseiro da palavra. Fala-se somente no fim que se revela
pouco a pouco com a marcha dos acontecimentos, do fim,
ligado interiormente ao próprio processo do
desenvolvimento. Tomemos um exemplo. Vamos admitir que
estamos em presença duma espécie de um animal. Com o
tempo e como consequência de toda uma série de causas,
ele se transforma adaptando-se cada vez mais às condições
naturais. Os órgãos de um animal se aperfeiçoam
gradativamente, isto quer dizer que eles progridem. Ou
então, tomemos, se quiserdes a sociedade humana.

33
A Teoria do Materialismo Histórico N. Bukarin

Qualquer que seja a maneira pela qual encaremos o seu


futuro (que o seu futuro seja socialista ou que adote outra
forma), não se pode negar que o tipo humano se aperfeiçoa,
que o homem se torna cada vez mais "civilizado", "mais
aperfeiçoado", e que nós, chamados solenemente os reis da
natureza, "seguimos o caminho da civilização e do
progresso". Do mesmo modo que a estrutura dos animais
vai-se adaptando a um fim determinado, a sociedade
humana se aperfeiçoa cada vez mais, isto é, torna-se mais
adaptada a um fim. Aqui, o fim (a perfeição) se descortina
no processo da evolução. Ele não é predeterminado por uma
divindade, mas surge qual a rosa que desabrocha do botão,
à medida que o botão se desenvolve e se transforma, devido
a causas determinadas, numa rosa.

Será concludente esta teoria? Não, não é, é uma


insanidade teleológica sutil e mascarada. Devemos protestar
antes de tudo contra a concepção de um fim que não é
proposto por ninguém. É o mesmo que se falar em
pensamentos sem pessoas que pensam, de vento sem
espaço vazio ou de humidade sem água. Quando os homens
falam do fim "ligado interiormente" ao fenômeno, eles
pressupõem tacitamente a existência de uma "força interior"
incorpórea, que se propõe a seus fins. Esta força misteriosa
pouco se parece exteriormente ao deus que é pintado
grosseiramente sob a forma de um velho de barbas brancas;
mas, na realidade, trata-se ainda aqui de um deus presente
e invisível, sutilmente imaginado pelo pensamento humano.
Tornamos a encontrar aqui a mesma teoria da finalidade que

34
A Teoria do Materialismo Histórico N. Bukarin

já foi analisada acima. A teleologia "doutrina da finalidade"


conduz assim diretamente à teologia (doutrina de deus).

Volvemos agora a finalidade imanente na sua forma


pura. Para isto, o melhor é analisar a ideia do progresso geral
(do aperfeiçoamento geral), ideia que sobretudo serve de
base aos partidários da teleologia imanente.

Como se vê, é mais difícil neste caso combater o ponto


de vista teológico, "o elemento divino" não aparece de uma
maneira clara nesta teoria. No entanto não é difícil
compreender em que se baseia esta teoria, se estudarmos o
processo de sua evolução em conjunto, isto é, se estudarmos
não somente as formas e as espécies (dos animais, das
plantas, dos homens, da natureza inorgânica), que
sobreviveram, mas ainda aquelas que têm perecido ou estão
perecendo. O famoso progresso aplicar-se-á forçosamente a
todas estas formas? Certamente que não. Os "mamutes" que
já existiram não existem mais; é dos nossos tempos o
desaparecimento dos "uros", e em geral, pode-se dizer que
uma infinita quantidade de formas vivas desapareceram. E
os homens? Dá-se o mesmo com eles. Onde estão os Incas
e os Aztecas, que viveram outrora na America? Já nem nos
lembramos deles. Entretanto, dentre as inúmeras sociedades
e de espécies, algumas sobrevivem e "se aperfeiçoam". Que
significa por conseguinte "o progresso"? Significa
simplesmente que entre, digamos, 10.000 combinações
desfavoráveis à evolução (combinações diferentes de
condições), há uma ou duas favoráveis.

35
A Teoria do Materialismo Histórico N. Bukarin

Se não enxergamos senão as condições favoráveis e os


resultados favoráveis é evidente que tudo parecerá no mais
alto grau "em conformidade com o seu fim" e perfeitamente
milagroso. Mas os partidários da finalidade imanente não
olham absolutamente o reverso da medalha: os inúmeros
casos de desaparecimento de sociedades e de espécies.
Entretanto, se reconduzirmos a questão ao fato de existirem
boas e más condições de desenvolvimento, que os bons
resultados correspondem às condições favoráveis e os maus
às desfavoráveis (o que é muito mais freqüente), todo o
quadro muda e perde o seu caracter divino e teleologico.

Um teleólogo russo, outrora marxista, e que se


transformou em seguida em padre ortodoxo e pregador
"progromista" do general Wrangel (Sérgio Bulgakof)
escreveu numa coleção intitulada "Os problemas do
Idealismo" (edição russa, Moscou pag. 8-9.):

"Juntamente com a concepção da


evolução, do desenvolvimento sem fim e
sem razão, nasce igualmente a
concepção do progresso e da concepção
teleólogica, onde a causalidade e a
revelação do fim ultimo, se identificam
completamente como nos sistemas
metafisicos".

Vemos assim claramente qual é a base psicológica das


concepções teleologicas. A alma de um burguês inquieto que

36
A Teoria do Materialismo Histórico N. Bukarin

sente a sua própria fragilidade é sedenta de consolação. A


marcha da evolução, tal qual ela existe na realidade, não lhe
aprás, não sendo dirigida por nenhuma razão ou finalidade
salutar. É muito mais agradável adormecer, depois de um
bom jantar, quando se sabe que existe alguém que toma
conta de nós!

É necessário observar que se encontramos algumas


vezes em Marx e Engels definições, que tem aparência
exterior das condições teleologicas, isto não constitui senão
uma metáfora e uma maneira de exprimir um pensamento
por imagens; quando Marx diz que o valor é um agregado de
músculos, nervos, etc...., somente os adversários mais
encarniçados da classe proletária, tais como Pierre Strouvé,
podem jogar com as palavras e procurar o valor nos próprios
músculos.

10. A FINALIDADE NAS CIÊNCIAS SOCIAIS

Se falarmos da concepção teleólogica quando aplicada à


natureza morta ou aos animais, exceptuando o homem, a
insanidade desta teoria aparece claramente. De que
finalidade pode-se falar quando não existe fim algum?
Quando porém nos referimos á sociedade e aos homens, o
caso muda de figura. Uma pedra não se propõe a fins; no
caso duma girafa podemos ter duvidas; o homem pelo
contrario, difere das outras partes da natureza, pelo fato dele
se propor fins. Marx se exprime a este respeito da maneira
seguinte:

37
A Teoria do Materialismo Histórico N. Bukarin

"A aranha executa trabalhos que nos


recordam os de um tecelão, e a abelha
pode causar inveja, com seus alvéolos
de cera, à um arquitecto de origem
humana. Mas o que distingu logo a
principio o último dos arquitectos da
melhor das abelhas? é que o arquitecto
concebe a sua construção antes de
começa a executala. No fim do processo
de trabalho, chegamos a um resultado
que já existia ideologicamente desde o
inicio na concepção do operário. Este
último, não somente provoca uma
mudança de formas na natureza, mas
realiza ao mesmo tempo, na natureza,
seu fim, do qual ele tem conciencia, fim
que determina o aspecto e os meios do
seu trabalho prático como uma lei, fim
ao qual deve submeter a sua vontade.
Esta submissão não constitue uma ação
em separado. Além da tensão dos
orgãos que trabalham na própria
corrente do trabalho, o homem
necessita de uma vontade dirigida para
um fim, de uma vontade que se
manifeste como a atenção". (Marx: O
Capital, vol. I, pag. 140, ed. alemã).

38
A Teoria do Materialismo Histórico N. Bukarin

Marx traça aqui uma nitida linha de demarcação entre o


homem e o resto do mundo. Tem ele razão? Certamente,
pois ninguém pode contestar que o homem se propõe a fins
determinados. Veremos agora quais as conclusões que disso
tiram os partidários do "método de finalidade" nas ciências
sociais.

Vamos estudar para este fim a opinião do nosso mais


eminente adversário, o sábio alemão Rudolph Stammler, que
escreveu outróra uma grande obra contra o marxismo,
intitulada: "A economia e o direito do ponto de vista do
materialismo histórico".

Qual é o objecto das ciências sociais? — pergunta


Stammler. E responde: as ciências sociais estudam os
fenômenos sociais. Estes têm particularidades que não
existem em nenhum outro fenômeno. Eis porque há
necessidade de ciências particulares (sociais). Em que
consiste o caracter particular, o sinal particular dos
fenômenos sociais? A esta questão, Stammler responde: a
característica dos fenômenos sociais reside no fato deles
serem regulados de uma maneira exterior pelas normas do
direito (leis, decretos, ordens, etc...). Se estas regras não
existissem não existiriam nem o direito nem a sociedade. Se
a sociedade existe, isto significa que a sua vida está
encerrada dentro de certas normas, às quais ela se adapta,
como o ferro fundido se adapta a um molde.

39
A Teoria do Materialismo Histórico N. Bukarin

Stammler formula o seu pensamento da seguinte


maneira:

"Este fato (determinante N. B.) é


determinado por sua vez por uma regra
de conduta e de vida comum
estabelecida pelos homens. Uma
regulamentação exterior das relações
entre os homens, torna possivel pela
primeira vez a concepção da vida social
considerada como objecto particular.
Esta regulamentação aparece como o
ultimo acontecimento ao qual se reduz
aparentemente todas as considerações
sobre a sociedade e suas
particularidades". (Pag. 83 da 2.ª edição
alemã.).

Mas se a regularidade constitue um dos traços essenciais


dos fenômenos sociais é bem claro, diz Stammler, que esta
regularidade é de ordem teleólogica. Com efeito, quem
"regula" a vida social e o que significa "regular"? São os
homens que o fazem estabelecendo certas normas (regras
de conduta) para atingir certos fins, propostos
concientemente por eles mesmos. Resulta daí, segundo
Stammler, uma diferença enorme entre a natureza e a
sociedade, entre a evolução social e natural (vida social,
segundo Stammler, é uma coisa de alguma maneira oposta
á natureza), e por conseguinte entre as ciências naturais e

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A Teoria do Materialismo Histórico N. Bukarin

as ciências sociais. As ciências sociais são ciências submetida


à finalidade; enquanto que as naturais estudam os
fenômenos do ponto de vista das causas e conseqüências.
Justifica-se este ponto de vista? Será justo admitir duas
espécies de ciências, das quais umas estão afastadas das
outras assim como a terra do céu. Certamente que não, e
vejamos porque.

Admitamos por um instante que a característica


fundamen tal da sociedade consiste no fato dos homens
regularem conscientemente, por meio do direito, as suas
relações mutuas, de que não possamos indagar porque
motivo os homens regulam as suas relações em um dado
momento e em determinado lugar, de uma certa maneira, e
em outros lugares e tempos diferentes, de maneira diferente.
Tomemos um exemplo: A República burguesa alemã de
1919-1920 "regula" as relações sociais fuzilando os
operários; a Republica proletária dos Soviets pelo contrario
as "regra" fuzilando os capitalistas contra-revolucionários. A
legislação dos Estados burgueses tem por fim consolidar,
alargar e reforçar a dominação do capital; os decretos de um
Estado proletário, têm por seu lado o fim de destruir a
dominação do capital e garantir a do trabalho. Se agora
quisermos compreender cientificamente, isto é, explicar
estes fenômenos, será suficiente dizer simplesmente que os
fins são diferentes? Todo o mundo compreenderá que
evidentemente isto não é suficinte, pois pode-se perguntar
porque motivo os "homens" se propõem em uma ocasião,
um certo fim e noutra, um fim diferente? Esta pergunta

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A Teoria do Materialismo Histórico N. Bukarin

acarreta a resposta seguinte: porque, num caso é o


proletariado que está no poder, e no outro é a burguesia; a
burguesia deseja uma coisa porque as condições de sua vida
provocam nela certos desejos, enquanto que as condições de
vida dos operários provocam outros desejos, etc... Em
resumo, logo que queremos compreender na sua realidade
os fenômenos sociais, somos obrigados imediatamente a nos
propor a pergunta "porque" isto é, de indagar quais são as
causas destes fenômenos, ainda que estes sejam a prova da
existência de um fim humano. Por conseguinte, mesmo que
se os homens regulassem tudo de uma maneira conciente e
se tudo se passasse na sociedade conforme aos seus
desejos, não é a teleologia que pode explicar os fenômenos,
mas o estudo da causa desses fenômenos, isto é, a pesquisa
da causalidade. Vemos assim, que nessa questão, não existe
nenhuma diferença entre as ciências sociais e as ciências
naturais.

Refletindo bem, verifica-se imediatamente que não pode


ser de outra maneira. Com efeito, não fazem o homem e a
sociedade humana, qualquer que ela seja, parte da
natureza? Não faz o gênero humano parte do mundo animal?
Aquele que o nega ignora o A.B.C. da ciência
contemporânea. E se o homem e a sociedade humana fazem
parte da natureza, seria altamente extranho que esta parte
se achasse em plena contradição com todo o resto da
natureza. Não é difícil perceber que ainda aqui, os partidários
da teleologia deixam transparecer a idéia da origem divina

42
A Teoria do Materialismo Histórico N. Bukarin

da natureza humana, isto é, a mesma idéia ingênua que já


examinámos anteriormente.

Vemos assim até que ponto a doutrina da finalidade é


inaplicável, mesmo admitindo-se que uma regulamentação
exterior (o direito) constitua o traço essencial da sociedade.
Mesmo neste caso, a teleologia "para nada serve".
Entretanto, na realidade, a regulamentação "exterior" não
constitui de nenhuma maneira o traço essencial da
sociedade. Quase todas as sociedades que existiram até hoje
(e a sociedade capitalista em particular) distinguiram-se pela
ausência de regulamentação, pelo seu regime anárquico no
conjunto dos fenômenos sociais, a regulamentação que
institue a ordem, como foi o desejo dos legisladores, não
desempenhou de maneira alguma um papel decisivo. E como
se passarão as coisas na sociedade futura (comunista)? Não
haverá então nenhuma regulamentação "exterior" (jurídica).
Com efeito, os homens do novo regime, concientes,
educados no espirito de solidariedade no trabalho, não
necessitarão de nenhum constrangimento exterior
(tornaremos a falar nisto de uma maneira detalhada
no capitulo seguinte). Assim, a teoria de Stammler não tem
nenhum valor, mesmo deste ponto de vista. E o único
método certo para estudar cientificamente os fenômenos
sociais é aquele que os examina do ponto de vista da
causalidade.

Através da teoria de Stammler, percebe-se claramente


a ideologia de um funcionário de Estado capitalista, ideologia

43
A Teoria do Materialismo Histórico N. Bukarin

que considera como eternas, coisas que são apenas


temporárias. Com efeito, o Estado e o direito são os produtos
de uma sociedade de classe, cujas diferentes partes estão
em luta constante, e as vezes extremamente encarniçada. É
evidente que os princípios jurídicos e a organização de
Estado da classe governante são as condições de existência
dessa sociedade. Mas, precisamente, o quadro deve mudar
inteiramente em uma sociedade destituída de classes. Não é
por conseguinte possível considerar as relações históricas
que constantemente evoluem (o Estado, o direito) como
características permanentes de toda sociedade, qualquer que
ela seja.

Por outro lado, Stammler se esquece de tomar em


consideração um outro fato. Acontece freqüentemente que
as leis e normas do poder do Estado, com o auxilio das quais
a classe dominante quer atingir um certo resultado
conduzem, em conseqüência de uma evolução elementar e
da anarquia social, a outros resultados diferentes daqueles
que eram almejados. O melhor exemplo disso nos foi trazido
pela guerra mundial. Com efeito, por meio de uma série de
medidas governamentais (mobilização do exercito e da
marinha, operações militares sob a direção do poder de
Estado, etc.) a burguesia dos diferentes países queria atingir
fins bem determinados.

E o que foi que aconteceu?

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A Teoria do Materialismo Histórico N. Bukarin

Qual foi o resultado? Uma Revolução do proletariado


contra a burguesia. Como é possível explicar isto, colocando-
se questão sob o ponto de vista piedoso e teleologico de
Stammler? É evidentemente impossível fazelo. Qual e o
motivo desse engano? É que Stammler superestima a
"regulamentação" e menospreza a marcha elementar da
evolução, de maneiras que, no fim de contas, toda a sua
concepção é destituída de base.

11.° — CAUSALIDADE E FINALIDADE. EXPLICAÇÃO DAS


CAUSAS COMO MÉTODO DE EXPLICAÇÃO CIENTIFICA

Resulta do que precede que somos obrigados a nos


propor a questão da causa cada vez que queremos explicar
um certo fenômeno, e em particular, o da vida social. Todas
as tentativas de uma pretendida explicação de ordem
teleólogica não se inspiram na realidade se não na fé
religiosa e por isso nada esclarecem. Assim, a resposta à
questão essencial de saber quais são as leis que regem os
fenômenos naturais e sociais, qual a sua regularidade, é a
seguinte: existe na natureza e na sociedade, objetivamente
(isto é, quer queiramos, quer não, quer seja do nosso
conhecimento quer não), uma lei causal dos fenômenos.

O que é uma lei causal? É uma relação necessária,


constante e bem patente entre os fenômenos; por exemplo,
o volume dos corpos aumenta com a temperatura, um liquido
suficientemente aquecido se transforma em vapor, a
circulação fiduciaria quando excessiva provoca a

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A Teoria do Materialismo Histórico N. Bukarin

desvalorização da moeda; enquanto existir o capitalismo,


haverá forçosamente guerras; se a pequena produção existe
ao mesmo tempo que a grande produção em um mesmo
país, esta ultima no fim de contas acabará vencendo a
primeira; se o proletariado ataca o capital, este ultimo se
defende por todas as maneiras que se acham ao seu alcance;
se a produtividade do trabalho cresce, os preços baixam; se
uma certa quantidade de veneno fôr introduzida no
organismo humano, o homem morre, etc. etc... Pode-se
dizer, em resumo, que toda lei causai se exprime pela
fórmula seguinte: se estamos em presença de um certo
fenômeno, forçosamente outros a ele se seguirão. Explicar
um fenômeno, encontrar a sua causa, significa descobrir um
outro fenômeno do qual depende o primeiro, explicar assim
a relação causal entre eles. Enquanto esta relação não fôr
estabelecida o fenômeno permanece inexplicado. Uma vez
descoberta esta relação, e depois de verificado que ela é com
efeito constante, estamos na presença de uma explicação
cientifica (causal). Essa explicação é a única cientifica, tanto
em relação aos fenômenos naturais quanto aos da vida
social. Ela regeita todo caracter divino, toda intervenção de
forças sobrenaturais, todos os restos inúteis dos tempos
passados e permite ao homem dominar tanto as forças da
natureza quanto as forças sociais.

Alguns se opõem á concepção da causalidade e da lei


causai pelo fato desta concepção, como vimos acima, ter sua
origem na errônea representação dum legislador divino. Na
verdade esta é sua origem, por assim passar-se

46
A Teoria do Materialismo Histórico N. Bukarin

freqüentemente na linguagem humana. Diz-se por exemplo,


o sol sobe, o sol se deita, apesar de ninguém acreditar que
o sol ande sobre duas ou quatro pernas. Entretanto, era
assim que se pensava outróra. O mesmo acontece com a
palavra "lei". Quando se diz a "lei domina" ou então "rege"
não se deve de modo algum compreender que, no primeiro
dos dois fenômenos (causa e efeito), se encontra um
pequeno deus invisivel que o governa. A relação causal é
apenas uma relação entre fenômenos, que é encontrada
constantemente, e nada mais. Esta maneira de encarar a
causalidade não prejudica de forma alguma a ciência.

47
A Teoria do Materialismo Histórico N. Bukarin

CAPÍTULO II

DETERMINISMO E
INDETERMINISMO (NECESSIDADE E
LIVRE ARBÍTRIO)
12. O PROBLEMA DA LIBERDADE E DA NÃO LIBERDADE
DA VONTADE INDIVIDUAL

Como já vimos, certas leis são observadas na vida social


como também na vida da natureza. Entretanto, algumas
duvidas sérias podem subsistir a este respeito. São, com
efeito, os homens que determinam os fenômenos sociais. A
sociedade é composta de homens que pensam, que refletem,
que sentem, que se propõem fins, que agem. Um faz uma
coisa, um outro ás vezes faz o mesmo, um terceiro age de
maneira diferente, etc... O resultado destes atos constitui um
fenômeno social. Sem homem, não haveria nem sociedade
nem fenômenos sociais. Vejamos o resultado disto. Se os
fenômenos sociais obedecem a certas leis, e são o resultado
das ações humanas, é evidente que os atos de qualquer
homem dependem também de alguma coisa. Assim, o
homem e sua vontade não são livres, mas ligados e
submetidos por sua vez a certas leis. Se assim não fosse, se
cada homem e sua vontade de nada dependessem, qual seria
então a origem da regularidade dos fenômenos sociais? Ela

48
A Teoria do Materialismo Histórico N. Bukarin

não poderia existir. Isto é evidente. Se todos os homens,


mancassem a sociedade seria uma sociedade de mancos:
não poderia existir sociedade diferente.

Mas por outro lado, como explicar a falta de liberdade da


vontade humana? Não decide o homem por si mesmo o que
ele quer fazer? Eu quero beber, eu bebo; eu quero ir a uma
reunião, eu decido a minha ida. Uma noite os camaradas
propõem uns de ir ao teatro, outros a outro lugar; eu resolvi
ir ao teatro, eu mesmo faço a minha escolha. Não é o homem
livre na escolha? Não é o homem senhor dos seus atos? Não
é o homem senhor dos seus desejos e de suas aspirações?
Será ele um boneco, um simples joguete de que forças
desconhecidas manobram os cordéis? Não sabe cada
homem, por sua própria experiência, que ele pode decidir,
escolher, agir livremente?

Esta questão é conhecida, em filosofia, como o problema


do livre arbítrio, da liberdade ou da falta de liberdade
humana. A teoria que afirma que a vontade humana é livre
(independente) se chama indeterminismo (teoria do livre
arbítrio). A teoria que afirma que a vontade humana não é
livre e que está submetida a certas condições, chama-se
determinismo (teoria da falta de liberdade da vontade). É
preciso, por conseguinte, que decidamos qual das duas é a
verdadeira.

Vejamos primeiro aonde nos leva o indeterminismo, se


o acompanharmos até as suas ultimas conseqüências. Se a

49
A Teoria do Materialismo Histórico N. Bukarin

vontade humana é livre e de nada depende, isto significa que


ela não é produto de uma causa. Mas se assim for, a que
ponto chegaremos? Chegaremos à velha teoria religiosa do
Antigo Testamento. Com efeito, vejamos porque: tudo no
mundo se passa segundo certas leis determinadas, tudo no
mundo, a começar pela multiplicação das pulgas e acabando
pelo movimento do sistema solar, tem suas causas;
somente, a vontade do homem a elas não está submetida.
Ela constitui uma exceção única e estranha. O homem não
faz mais parte da natureza, mas é uma espécie de divindade
acima do mundo. Por conseguinte, a teoria do livre arbítrio
conduz diretamente à religião que nada explica, onde não há
mais ciência, mas uma fé cega em feitiçarias, em mistérios,
no sobrenatural, no absurdo.

Evidentemente, há aqui alguma coisa que choca. Para


explicarmos este fato, consideremos o seguinte: muitas
vezes, quase sempre, confunde-se a sensação da
independência com a independência objetiva (real,
independente da nossa consciência). Tomemos um exemplo.
Vamos supor um orador numa reunião pública. Ele toma um
copo d’água e bebe avidamente. O que é que ele sente
quando segura o copo? Decide por si mesmo beber a água.
Ninguém o obriga a isto. Ninguém o força. Ele tem a
completa sensação da liberdade; ele resolveu por si mesmo
que ele tem necessidade de beber água e não de dançar. Ele
tem a sensação da sua liberdade. Mas quererá isto dizer que
ele agiu sem causa e que sua vontade é realmente
independente? De modo algum. E todo homem inteligente

50
A Teoria do Materialismo Histórico N. Bukarin

perceberá imediatamente do que se trata. Ele dirá: "O orador


esta com a garganta seca". Isto significa que como
consequencia do esforço feito pelo orador, certas
modificações se produziram na sua garganta, modificações
que provocaram o desejo de beber água. Esta é a causa;
uma modificação produzida no organismo (causa fisiológica)
provocou um certo desejo. Segue-se que é preciso não
confundir a sensação do livre arbítrio, a sensação de
independência com a ausência de causa, com a
independência dos desejos e ações humanas. Essas duas
coisas são completamente diferentes. E é sobre a sua
confusão que estribam habitualmente todos os raciocínios
dos deterministas, que querem a todo custo estabelecer a
"origem divina", particular, do "espírito humano". B.
Spinoza (morto em 1677), filósofo entre os mais eminentes,
disse que a maioria desses filósofos consideram de uma
maneira completamente falsa "o homem da natureza, como
sendo um Estado dentro do Estado". Pois eles pensam que o
homem invés de se submeter à ordem natural a contraria,
que ele, o homem, possui um poder ilimitado e não depende
senão de si mesmo. (Obras de Spinoza: "Ética", Paris, 1871,
Charpentier & Cie. pag. 107). Mas na realidade esta falsa
concepção é determinada pelo fato dos homens não
conhecerem as causas exteriores de seus próprios atos.
(pag. 113 da edição francesa). É assim que uma criança
imagina que deseja livremente o leite de que se alimenta; se
ela está zangada, pensa que é livremente que quer se
vingar; se ela tem medo, que decide livremente a sua fuga
(pag. 115 da edição francesa). Leibnitz (morto em 1717)

51
A Teoria do Materialismo Histórico N. Bukarin

dizia também que muitas vezes as causas dos atos são


desconhecidas pelos homens, e que isso provocava a ilusão
da liberdade absoluta. Leibnitz citava a esse respeito o
exemplo de uma agulha magnética que, se ela pudesse
pensar, regozijar-se-ia certamente de se virar
constantemente em direção ao pólo norte (G. G. Leibnitz,
"Opera Omnia", Tomus I, Genevra, Apud fratres de Tournes,
1768, pag. 155).

O mesmo pensamento foi expresso por D. Merejkofsky,


antes dele se ter tornado um louco apocalíptico e
antibolchevista:

Se a gota de chuva
Pensasse como você,
Ao cair na hora fatal
Do alto dos céus,
Ela diria:
"Não é uma força
inconsciente
Que me dirige
É pela minha própria vontade
Que eu caio em orvalho
Sobre um campo sedento."

Na realidade, os homens desmentem completamente na


prática a doutrina do livre arbítrio. Com efeito, se a vontade
humana não dependesse de nada, não seria possível agir,

52
A Teoria do Materialismo Histórico N. Bukarin

pois seria impossível contar com o que quer que seja, ou


prever.

Imaginemos por exemplo, um especulador que vai ao


mercado.

Ele sabe que lá fará o comercio e negociará, que cada


comerciante pedirá os seus preços, que os compradores se
esforçarão para comprar o mais barato possível, etc. Mas ele
não espera encontrar no mercado homens que andem sobre
quatro pés ou que uivem como lobos. Poderão objetar que
este exemplo não tem significação. Absolutamente. Analise-
mo-lo convenientemente. Porque não andam os homens de
quatro pés?

Porque isto não está na sua natureza. E no entanto os


palhaços andam sobre quatro pés. Isto é devido ao fato da
sua vontade ser determinada por outras condições e quando
o mesmo especulador vai ao circo, ele prevê que aí
encontrará homens andando sobre quatro pés "contra a
natureza". Por que motivo querem os compradores comprar
o mais barato possível? Justamente por serem compradores.
A sua situação como compradores os "obriga" a procurar as
mercadorias a preços baixos e dirigem nesse sentido os seus
desejos, a sua vontade, as suas ações. E se os homens
fossem vendedores? Eles agiriam em sentido contrario.
Procurariam vender o mais caro possível. Resulta portanto
daí, que a vontade de nenhum modo é independente, mas é

53
A Teoria do Materialismo Histórico N. Bukarin

determinada por toda uma série de causas, e que os homens


não poderiam agir se o contrario se desse.

Analisemos a questão sob um outro aspecto. Sabe-se


geralmente que um homem embriagado tem desejos
"absurdos" e que ele pratica atos também "absurdos". Sua
vontade funciona muito diferentemente do que a de um
homem no estado normal. Por que? A razão disto é o
envenenamento pelo álcool. É suficiente introduzir uma certa
quantidade dessa substancia no organismo humano, para
que a "divina vontade" nos leve ao absurdo. A coisa é clara.
Tomemos um outro exemplo: Dá-se de comer a qualquer
pessoa alimentos salgados. Infalivelmente, esta quererá "em
toda a liberdade" beber mais do que habitualmente. Aqui
também, a razão é evidente. Mas se a mesma pessoa se
alimenta "normalmente"? Esta beberá então uma quantidade
"normal" de água; esta "quererá" beber tanto quanto as
outras. Como vemos ainda neste caso, a vontade depende
de certas causas, como nos casos extraordinários.

O homem começa a amar quando chega à idade da


puberdade. O homem muito esgotado é tomado de um
"desespero sombrio". Em resumo, os sentimentos e a
vontade do homem dependem do estado do seu organismo
e da situação em que ele se achar. Sua vontade, assim como
tudo na natureza, é determinada por certas causas e o
homem não constitui nenhuma exceção no mundo: o homem
quer se cocar atrás da orelha (acha-se ali uma pequena
espinha) ou então ele pratica uma ação heróica: pouco

54
A Teoria do Materialismo Histórico N. Bukarin

importa, tudo tem sua causa. Certamente, às vezes é difícil


encontrar essas causas, mas já isto é uma outra questão.
Descobriram-se porventura todas as causas no domínio da
natureza viva? Absolutamente não. Entretanto, não é pelo
fato de tudo não ter sido ainda explicado que se pode concluir
que é impossível encontrar-se a explicação.

É preciso observar que não são somente os


acontecimentos normais que estão submetidos à lei da
causalidade, e sim os fenômenos é que dela dependem.

As doenças psíquicas dão-nos disso um exemplo


patente. A que lei, a que "ordem" obedecem em aparência
os desejos incoerentes, estranhos e monstruosos das
doenças psíquicas e dos loucos? No entanto eles têm suas
causas, que determinam tais atos de seus autores. Isto
significa que a lei da causalidade mantém-se em vigor
mesmo nos casos de loucura.

É nesses fatos que se baseia a classificação das doenças


psíquicas. Distinguem-se quatro espécies de causas: 1.º A
hereditariedade (a sífilis, a tuberculose, etc...); 2.º as
contusões (traumatismos); 3.º os envenenamentos'; 4.º o
esgotamento e os choques morais (Serbsky: As doenças
mentais). Veja-se, por exemplo, a descrição de um acesso
de febre delirante:

"os doentes têm a impressão de que se


está tramando alguma coisa contra eles,
de que todas as pessoas que o cercam

55
A Teoria do Materialismo Histórico N. Bukarin

tomam parte na conspiração, à qual se


juntam, não somente os visinhos, mas
mesmo os animais domésticos e os
objetos inanimados, etc.". (A.
Bernstein: "A febre delirante").

Este tipo de febre provêm muitas vezes do alcoolismo.


Veja-se ainda a descrição de uma crise de paralisia
progressiva (conseqüência da sífilis):

primeiro a desordem psíquica, futilidade


de espírito, cinismo, falta completa de
desconfiança; em segundo lugar, o
delírio (mania de grandeza, o doente se
crê miliardario, rei); a terceira fase:
abatimento geral (P. Rosenbach: "A
paralisia progressiva").

Conforme as partes do cérebro que são atingidas, a


direção da vontade se modifica. Toda a prática medica,
alusiva às doenças nervosas, é baseada nas relações entre a
vida psíquica e certas causas determinadas. Foi
intencionalmente que tomamos os mais variados exemplos.
O seu estudo nos mostra que a vontade, os sentimentos e os
atos do homem são sempre determinados por uma certa
causa, quaisquer que sejam as condições, ordinárias ou
extraordinárias, normais ou anormais; as ações humanas
são portanto sempre "determinadas, definidas". A doutrina
do livre arbítrio (indeterminismo) é, na realidade, a forma

56
A Teoria do Materialismo Histórico N. Bukarin

requintada de uma concepção semi-religiosa, forma que


nada explica, que é contraria a todos os fatos e que constitui
um obstáculo ao desenvolvimento da ciência. O
determinismo é a única concepção justa.

13. A RESULTANTE DAS VONTADES INDIVIDUAIS NUMA


SOCIEDADE NÃO ORGANIZADA

Sem duvida alguma a sociedade é formada de indivíduos


e todo fenômeno social é composto de um grande numero
de vontades, atos, sensações e sentimentos individuais.

Em outros termos, o fenômeno social é o resultado (ou,


como se diz às vezes, a "resultante") dos fenômenos
individuais. A questão do preço pode-nos fornecer um
exemplo claro. Vendedores e compradores encontram-se no
mercado. Uns possuem mercadorias, outros dinheiro. Uns e
outros têm seus fins definidos: cada um avalia de
determinada maneira sua mercadoria e seu dinheiro, faz
suas compras e negocia. Como conseqüência dessa confusão
estabelece-se o preço no mercado. Não se trata mais dos
desejos de um vendedor ou comprador particular; estamos
em presença de um fenômeno social, que é o resultado de
uma luta entre as "vontades" particulares. O mesmo
acontece com os outros fenômenos sociais. Tomemos, por
exemplo, a época das revoluções. Os homens agem de uma
maneira mais ou menos enérgica e se entrechocam. É como
conseqüência dessa luta entre os homens, que depois da
"vitória da Revolução" nasce um novo regime.

57
A Teoria do Materialismo Histórico N. Bukarin

"Determinadas relações sociais, —


escreve Marx, — são produtos humanos,
da mesma maneira que os são o pano, o
linho, etc......." (Carl Marx. Miséria da
filosofia.)

Mas aqui, podemos estar em presença de dois casos


diferentes que têm as suas particularidades. Vejamos quais
são: No primeiro, estamos em presença duma sociedade
desorganizada, isto é, por exemplo, uma sociedade baseada
sobre a troca de mercadorias ou capitalista; no outro,
estamos em presença de uma sociedade organizada:
Comunista. Vamos antes estudar o primeiro caso, vamos
tomar para isto um exemplo típico que já foi citado: a fixação
do preço. Qual é a relação entre o preço fixado no mercado
e o desejo, avaliação e as intenções de cada um dos
indivíduos que vai ao mercado? Está claro que este preço não
corresponde exatamente aos seus desejos. Para uma grande
parte das pessoas que vieram ao mercado ele é
simplesmente desastroso: seja para aqueles que, "a esse
preço", nada podem comprar, e se vão embora com os seus
níqueis e com a barriga vazia, seja para aqueles que se
arruínam, por ser o preço muito baixo para eles. Todo o
mundo sabe que uma massa de artesãos, de pequenos
comerciante e de pequenos proprietários arruinou-se porque
os grandes fabricantes inundaram o mercado de mercadorias
a preço vil; os pequenos comerciantes se arruinaram porque
não podiam sustentar a concorrência com os preços

58
A Teoria do Materialismo Histórico N. Bukarin

estabelecidos sob a influencia da grande quantidade de


mercadorias atiradas ao mercado pelos grandes capitalistas.

Já citamos acima um exemplo característico, o da guerra


imperialista, durante a qual muitos capitalistas quiseram-se
enriquecer; no entanto, seguiu-se uma ruína geral, e desta
ruína, nasceu a Revolução dirigida contra os capitalistas,
que, evidentemente, não a tinham desejado.

O que significa tudo isto? que, numa sociedade


desorganizada, onde a produção não é regulamentada, onde
existem classes em luta, onde nada é feito segundo um
plano, mas sob a pressão de forças cegas, o fenômeno social
não concorda com o desejo da maioria. Ou então, como
disseram muitas vezes Marx e Engels, os fenômenos sociais
são independentes da consciência, do sentimento e da
vontade dos homens. Esta "independência da vontade dos
homens" não significa que os acontecimentos da vida social
ocorrem sem a participação dos homens, mas que o produto
social desta vontade (destas vontades) numa sociedade
desorganizada, e em presença duma evolução inconsciente
não concorda com os fins propostos por um grande numero
de homens e seguem muitas vezes caminho oposto (o
homem quis se enriquecer e, no fim de contas, arruinou-se.)
Toda uma série de criticas dirigidas contra o marxismo é
baseada sobre a incompreensão desta "independência" da
vontade, da qual falam Marx e Engels. Vamos citar a
propósito algumas linhas de Engels ("Ludwig
Feuerbach"). Engels escreve:

59
A Teoria do Materialismo Histórico N. Bukarin

Na historia "nada acontece sem que haja


uma intenção consciente para um fim
desejado". Entretanto, "muito
raramente acontece aquilo que foi
proposto; na maior parte dos casos
numerosos desejos e fins se
entrecruzam e se combatem
mutuamente... É assim que os
inumeráveis choques das vontades
particulares e dos atos individuais criam
sobre o cenário da historia uma situação
análoga aos fenômenos que dominam
na natureza, inconsciente. Os fins dos
atos agiram como desejos, ou mesmo,
se em aparência eles correspondem aos
fins desejados, não deixam de ter no fim
de contas, conseqüências muito
diferentes das esperadas" (pag. 44 da
edição alemã).

"Os homens fazem a sua história,


qualquer que ela seja, cada um almeja o
seu fim individual proposto
conscientemente; é a resultante destas
vontades, agindo em diferentes
direções, e a sua ação diferente sobre o
mundo exterior, que constitui a
historia... Mas... as inúmeras vontades
particulares que agem na historia

60
A Teoria do Materialismo Histórico N. Bukarin

provocam na maior parte dos casos


resultados muito diferentes, e, ás vezes,
completamente opostos aos que se
almejam..." Pag. 44 e 45).

Resulta do que precede que, numa sociedade


desorganizada, como aliás em toda a sociedade, os
acontecimentos se realizam não "apesar", mas pela vontade
dos homens. Mas aqui o homem é dominado por uma força
inconsciente que é um produto das vontades particulares.

Examinemos o fato seguinte: Uma vez obtido uma certa


resultante social das vontades particulares, esta resultante
social determina a conduta do indivíduo. É necessário
sublinhar esta proposição, pois ela é muito importante.

Comecemos ainda pelo mesmo exemplo de que nos


servimos duas vezes, o da fixação dos preços. Vamos supor
que uma libra de cenoura no mercado custa um tanto. É
evidente que os novos compradores e vendedores encaram
de antemão os preços e fazem deles aproximadamente a
base dos seus cálculos. Em outros termos, o fenômeno social
(preço) determina fenômenos particulares ou individuais (a
avaliação). O mesmo acontece em outros casos. Um artista
principiante se apóia para realizar sua obra, sobre toda a
evolução da arte, assim como sobre os sentimentos e
tendências do seu meio. Qual é a fonte de ação de um
político? Ela é determinada pelo ambiente em que ele age;
ele quer, ou fortificar um determinado regime, ou combatê-

61
A Teoria do Materialismo Histórico N. Bukarin

lo. Isto depende do lado em que ele se coloca, do meio no


qual ele vive, da classe social ou então dos desejos sociais
que o inspiram. Assim sua vontade é determinada pelas
condições sociais.

Vimos mais acima que, uma sociedade desorganizada,


os acontecimentos se passam as vezes de maneira
completamente oposta aos desejos dos homens. Pode-se
dizer a este respeito, que "o produto social" (o fenômeno
social) domina os homens não somente definindo a sua
conduta, mas ainda contrariando os seus desejos.

Assim, com respeito a uma sociedade desorganizada,


podemos estabelecer as seguintes proposições:

1. — Os fenômenos sociais são o produto do


entrelaçamento das vontades, dos sentimentos,
dos atos individuais, etc...
2. — Os fenômenos sociais determinam a
cada momento a vontade individual de cada
um.
3. — Os fenômenos sociais não exprimem a
vontade dos indivíduos tomados em particular;
habitualmente, eles são contrários a esta
vontade, eles forçosamente a dominam, de
modo que cada indivíduo sente muitas vezes a
pressão do elemento social. (Exemplos: Um
comerciante arruinado, um capitalista

62
A Teoria do Materialismo Histórico N. Bukarin

derrubado pela Revolução e que antes desejava


a guerra etc.)

14. A VONTADE ORGANIZADA COLETIVAMENTE (A


RESULTANTE DAS VONTADES INDIVIDUAIS NUMA
SOCIEDADE ORGANIZADA, COMUNISTA)

— Vejamos agora como se passam os acontecimentos


numa sociedade comunista. Cessa de existir a anarquia na
produção. Não há mais nem classes, nem luta de classes,
nem oposição de interesses de classe, etc... Não há mais
tampouco contradição entre os interesses pessoais e os
interesses da sociedade. Achamo-nos em presença de uma
associação fraternal de produtores que trabalham para si
mesmos, segundo um plano preestabelecido.

O que acontece com a vontade individual? É evidente


que esta sociedade é composta também de homens, e o
fenômeno social é a resultante das vontades individuais. Mas
o modo pelo qual se forma esta resultante, o meio pelo qual
a ela se chega, é muito diferente daquele que vimos numa
sociedade desorganizada. Para melhor compreender esta
diferença, comecemos por dar ainda um pequeno exemplo:
vamos imaginar que estamos em presença de uma sociedade
ou de um grupo de pessoas que estão de acordo entre si.
Todas elas têm o mesmo fim, é em comum que elas resolvem
certas questões, encaram as dificuldades e enfim, tomam
uma decisão comum, segundo a qual elas agem. A sua ação
comum, assim como a sua decisão já são um "produto"

63
A Teoria do Materialismo Histórico N. Bukarin

coletivo. Mas este ultimo já não é uma força exterior,


grosseira, elementar, que contradiz a vontade de cada um.
Ao contrario, a possibilidade de satisfazer cada desejo
particular é aqui muito maior. Cinco homens resolvem
levantar juntamente uma pedra. Nenhum deles a pode
levantar sozinho; os cinco a levantam sem dificuldade. A
decisão comum não contradiz o desejo de cada um deles; ao
contrario, ela ajuda a realizar este desejo.

É da mesma maneira, bem que numa escala


imensamente maior, e de maneira mais complicada, que as
coisas se passarão em uma sociedade comunista. (Por esta
ultima, compreendemos, não mais a época de uma ditadura
do proletariado, nem aquela dos primeiros passos do
comunismo, mas uma sociedade desenvolvida,
verdadeiramente comunista, onde não há mais classes, onde
não há mais Estado nem normas legais exteriores). Em uma
tal sociedade, todas as relações entre os homens serão claras
para cada um e a vontade social será uma vontade
organizada. Não teremos mais aqui uma resultante
elementar, "independente" da vontade de cada um, mas uma
decisão social tomada com todo conhecimento de causa. É
por isto que nela não pode suceder o que sucede em uma
sociedade capitalista. "O produto social" já não domina mais
os homens, são os homens senhores de suas decisões, pois
são eles que decidem e decidem conscientemente. Não se
pode dar o fato de um fenômeno social ser prejudicial à
maioria da sociedade.

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A Teoria do Materialismo Histórico N. Bukarin

Entretanto não resulta do que precede que a vontade


social, tanto quanto a individual, em uma sociedade
comunista, de nada dependem, ou que, em um regime
comunista, domine o livre arbítrio, e que o homem se torne
subitamente um ser sobrenatural ao qual a lei de causalidade
não mais se aplica.

Não. No regime comunista, o homem continua sendo


uma parcela da natureza, parcela submetida à lei universal
da causalidade. Com efeito, todo indivíduo não dependerá do
ambiente? Certamente que sim. Ele não agirá como um
selvagem da África central, ou então como um banqueiro da
Casa Pierpont Morgan &Cia. ou ainda como um hussardo da
guerra imperialista. Ele agirá como membro de uma
sociedade comunista. Isto é evidente. Mas o que significa
isto? Que o ambiente geral determinará a sua vontade.
Assim todo o mundo compreenderá que uma sociedade
comunista será obrigada também a lutar com a natureza, e,
por conseguinte, as condições desta luta determinarão a
conduta dos homens, etc... Em uma palavra, a teoria do
determinismo guardará inteiramente a sua força, também na
sociedade comunista.

Podemos assim estabelecer as seguintes proposições no


que se refere à uma sociedade organizada:

1. — Os fenômenos sociais resultam do


entrelaçamento das vontades, dos sentimentos,
dos atos, etc..., individuais. Este processo não

65
A Teoria do Materialismo Histórico N. Bukarin

é o produto de uma força elementar cega, mas


de uma força organizada nos domínios de maior
importância.
2. — Os fenômenos sociais determinam a
cada momento a vontade dos homens tomados
em particular e não a contrariam.
3. — Os fenômenos exprimem a vontade
dos homens e em geral, não a contradizem, os
homens são donos de suas decisões e não
sentem nenhuma pressão do elemento social,
este último sendo substituído por uma
organização social racional.

Escreveu Engels que a humanidade, passando ao


comunismo, fazia "um salto do reinado da necessidade para
o da liberdade". Certos sábios burgueses concluíram daí que
segundo Engels, o determinismo cessava de agir em um
sociedade comunista. Um tal raciocínio é baseado sobre a
incompreensão grosseira e sobre uma deformação do
marxismo. Na realidade, Engels quis dizer com isto, muito
justamente, que a evolução em uma sociedade comunista
tomava um caráter consciente e organizado, não mais
inconsciente e cego. Os homens sabem o que preciso fazer e
como é preciso agir em determinadas circunstancias.

"A liberdade é uma necessidade da qual


se tem consciência".

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A Teoria do Materialismo Histórico N. Bukarin

15. O PRETENDIDO ACASO, EM GERAL:

— Para compreende ainda melhor a que ponto os


fenômenos são determinados, preciso analisar o que significa
o pretendido acaso. Com efeito muitas vezes deparamos com
o acaso, tanto na vida quotidiana como na vida social. Certos
sábios interessaram-se particularmente pelo "papel do
acaso" e pela sua significação na historia. Falamos muitas
vezes no acaso: Um homem foi esmagado "por acaso" na
rua; alguém foi morto "por acaso" por uma telha que caiu
dum telhado; comprei "por acaso", um livro muito raro; ou
então, encontrei "por acaso" numa cidade desconhecida, um
homem que não via há vinte anos, etc... Outros exemplos:
O jogo de cara e coroa, ou então os dados. É por acaso que
saiu coroa e que eu ganhei; é por acaso que saiu cara e eu
perdi. Como acontece isto, e qual é a relação entre o acaso
e a lei, ou então, o que vem a dar na mesma, entre o acaso
e a necessidade causal?

Examinemos esta questão de perto. Vamos tomar


primeiramente o exemplo do jogo de cara e coroa. Por que
motivo saiu por exemplo "cara"? Será verdade que isto não
foi resultado de nenhuma causa? Isto, certamente não é
exato. Saiu cara, porque é dado a uma certa forma da
moeda, porque lhe dei um certo movimento, com certa força,
dirigida de um certo lado, porque a moeda caiu sobre uma
certa superfície, etc... Se todas estas condições se
repetissem, sairia sem dúvida novamente cara. A mesma
coisa poder-se-ia repetir uma terceira vez. Mas não é

67
A Teoria do Materialismo Histórico N. Bukarin

possível, quando se atira a moeda, calcular todas estas


condições; todo o problema consiste nisto. A menor mudança
de posição da mão, do movimento de um dedo, da força com
que foi atirada a moeda, produz imediatamente o seu efeito.
As causas que provocam aqui o efeito (cara ou coroa) não
podem praticamente ser previstas. Elas existem mas não as
podemos adivinhar, e por conseguinte, não as conhecemos.
É à nossa ignorância que neste caso damos o nome de
"acaso".

Vamos tomar outro exemplo: Encontrei na rua, por


acaso, um amigo que não via há vinte anos. Haverá causas
para este encontro? Certamente que sim: É sob a influencia
de causas definidas que saí em um dado momento, que segui
um certo caminho com uma determinada velocidade; sob a
influencia de outras causas, meu amigo havia começado a
sua caminhada seguindo um certo itinerário, com
determinada velocidade. Está claro que a ação paralela
destas duas causas diferentes deveria infalivelmente
produzir o nosso encontro. Por que, chamo eu a este
encontro de "acaso"? Por uma razão muito simples: Porque
eu não conhecia as causas que haviam feito agir o meu
amigo, porque eu não sabia que ele morava na mesma
cidade e por conseguinte, eu não pude prever o nosso
encontro.

Se de duas ou mais correntes (séries) de causas que se


entrecruzam, e nós só conhecemos uma delas, o fenômeno
devido a este cruzamento nos parece "acaso", bem que na

68
A Teoria do Materialismo Histórico N. Bukarin

realidade ele esteja submetido à uma lei. Eu só conheço uma


das correntes (uma só série) de causas, daquelas que agem
sobre a minha caminhada; a outra série, que influi sobre a
ação de meu amigo me é desconhecida. É por essa razão que
eu não prevejo cruzamento das duas séries, é por essa razão
que o cruzamento (o encontro) me parece devido ao "acaso".
Assim, no sentido próprio da palavra, nenhum fenômeno é
produto do acaso, isto é, sem causa. Pode-nos tão somente
parecer, enquanto ignoramos a sua causa, que ele seja
produto do acaso.

Spinoza já o havia visto, quando afirmava

"que um fenômeno é considerado como


produto do acaso unicamente por falta
de conhecimentos suficientes", "a ordem
das causas estando escondida para
nós".

Encontramos em Mill (o "Sistema da lógica"), depois de


uma analise muito justa, o seguinte pensamento:

"É um erro dizer que um dado fenômeno


é devido a um acaso. Temos apenas o
direito de dizer: dois ou mais fenômenos
se reúnem por acaso; eles existem ou se
seguem: um depois do outro somente
por acaso. Isto quer dizer que as
relações mutuas são independentes de
qualquer ligação causal; não existe

69
A Teoria do Materialismo Histórico N. Bukarin

entre eles nenhuma relação de causa e


efeito; eles não são tão pouco as
conseqüências de uma mesma causa,
nem de causas ligadas entre elas por
uma lei qualquer de coexistência, nem
mesmo da disposição das causas
primarias".

Estas ultimas palavras não são exatas. O fato é, (o


exemplo do encontro) que eu não saí, de minha casa, porque
meu amigo saiu da sua, nem vice-versa. Mas se nós tivemos
uma "disposição de causas" dada, isto é, se nós sabemos que
eu saí em um certo momento, por um dado caminho e a
velocidade conhecida, e se nós conhecemos os mesmos
dados com referencia ao meu amigo, ficaremos de posse das
causas do nosso encontro. Tudo isto é tão pouco acidental e
independente da "disposição das causas" quanto um eclipse
do sol ou da lua, que é determinado pela posição particular
dos planetas.

16. O "ACASO" HISTÓRICO: — VISTO O QUE PRECEDE,


É FÁCIL EXAMINAR O PROBLEMA DO PRETENDIDO "ACASO
HISTÓRICO".

Se tudo se passa essencialmente em conformidade com


leis, e se em geral, nada existe de acidental, isto é,
independente de qualquer causa, é claro que o acaso
histórico não pode tão pouco existir. Todo acontecimento
histórico, por mais acidental que nos pareça, é na realidade,

70
A Teoria do Materialismo Histórico N. Bukarin

perfeitamente submetido a certas condições: Entende-se


geralmente por acaso histórico o fenômeno que tem lugar
em virtude do entrecruzamento de varias series de causas,
das quais somente conhecemos uma.

Entretanto, ás vezes entende-se por acaso histórico um


fato diferente. Quando, por exemplo, se diz que a guerra
imperialista teve necessariamente a sua origem no
desenvolvimento do capitalismo mundial, mas que, ao
contrario, o assassínio do arquiduque austríaco foi devido ao
acaso; trata-se aqui de duas coisas diferentes. Com efeito,
quando se fala da necessidade (necessidade causal,
inevitável) da guerra imperialista, encara-se a imensa
importância das causas que influíram sobre a evolução
social, causas que provocam a guerra. A guerra por si mesma
aparece como um fenômeno de uma importância capital, isto
é, um fenômeno que influi de uma maneira decisiva sobre a
seqüência posterior da historia da sociedade. Compreende-
se assim por "acaso histórico", o fenômeno que não
representa um papel importante no encadeamento dos
acontecimentos sociais. Se este fenômeno não se tivesse
dado, o aspeto geral da evolução ulterior teria mudado tão
pouco, que ninguém disto se aperceberia. No exemplo que
nos interessa, pode-se dizer que a guerra teria arrebentado
mesmo sem o assassínio do arquiduque, pois este assassínio
não foi o "fato essencial", porém o fato essencial consistiu na
concorrência encarniçada das potências imperialistas,
concorrência esta que, com a evolução da sociedade
capitalista, se tornava cada vez mais aguda.

71
A Teoria do Materialismo Histórico N. Bukarin

Pode-se dizer que um tal fenômeno "acidental" não


representa nenhum papel na vida social, que não influi de
nenhum modo sobre o destino da sociedade, que em outros
termos, ele é equivalente a zero? Se quisermos ser precisos,
é necessário responder negativamente. Pois qualquer
fenômeno, por mais insignificante que seja, influi na
realidade sobre toda a evolução ulterior. A questão é de
saber qual a importância da modificação por ele provocada.
Quando se trata de fenômenos acidentais, no sentido
indicado acima, esta influencia, falando praticamente, é
insignificante, infinitamente pequena. Mas por menor que
seja, nunca será igual a zero. Isto se torna visível no
momento em que encaramos a ação de tais "acasos" no seu
conjunto. Consideremos o exemplo seguinte: Suponhamos
que se trate de estabelecer um preço; o preço do mercado
resulta do conflito de numerosas e variadas avaliações, da
parte dos vendedores e compradores. Se encararmos um só
caso, uma só avaliação, a oposição entre um só vendedor e
um só comprador, um tal fenômeno, pode ser considerado
como "acidental". O comerciante Fernandes enganou a
senhora Junqueira. Do ponto de vista do preço do mercado,
isto é do fenômeno social, devido a oposição de varias
avaliações, trata-se de um acaso. O que aconteceu
isoladamente a Fernandes terá alguma importância? A nós,
só interessa o resultado final, o fenômeno social, o que tem
um caráter "típico"; é o que se diz freqüentemente e com
razão. Um caso isolado desempenha um papel insignificante.
Ele não tem importância, mas se experimentarmos agrupar,
em conjunto, um grande numero de "casos" semelhantes,

72
A Teoria do Materialismo Histórico N. Bukarin

veremos imediatamente que o "acaso" começa a


desaparecer. O papel e a significação de muitos casos, a sua
ação comum, influem imediatamente sobre a evolução
posterior. Pois os casos particulares nunca têm um valor
nulo.

Vemos assim, examinando as coisas de perto, que não


existe nenhum fenômeno acidental na evolução histórica da
sociedade: A insônia deKautsky, que sonhou sobre os
horrores da Revolução bolchevique, o assassínio do
arquiduque da Áustria, justamente antes da guerra, a política
colonial da Inglaterra, a guerra mundial em uma palavra,
todos os fenômenos a começar pelos mais insignificantes e
terminando pelos mais trágicos da época presente, não têm
como origem o acaso: eles são todos provocados por certas
causas, isto é, eles são todos igualmente submetidos à
necessidade causal.

17. A NECESSIDADE HISTÓRICA

— De acordo com o que precede, a noção do "acaso"


deve ser excluída das ciências sociais. Como tudo no mundo,
a sociedade se acha submetida na sua evolução, a uma lei.

É característico observar que a noção do acaso, conduz


diretamente à crença no sobrenatural, à fé em Deus. É sobre
ela que se baseia a pretendida "prova cosmológica" da
existência de Deus. Ela diz. Se o mundo (cosmos) não está
submetido a uma lei, é evidente que deve existir uma causa

73
A Teoria do Materialismo Histórico N. Bukarin

primaria de sua existência e de sua evolução. Esta


pretendida prova é conhecida como "a da contingência do
mundo" (de contingentia mundi). Ela é encontrada,
em Aristóteles, Cícero, Leibnitz, Christian Wolff, e outros. A
doutrina do acaso começou a se desenvolver com a
decadência e a decomposição da burguesia (por exemplo,
nos filósofos franceses Boutroux, Bergson, etc). A noção de
necessidade (necessidade causal) é contraria à do acaso.

"O que decorre fatalmente de causas determinadas é


necessária". Quando se diz que um certo fenômeno foi
historicamente necessário isto quer dizer que ele devia
suceder fatalmente, independentemente do fato de ser bom
ou mau. Quando se fala de necessidade causal, não se trata
da apreciação de um fenômeno, nem de saber se ele é
desejável ou indesejável; diz-se; simplesmente que ele é
inevitável. É preciso não confundir duas noções
completamente diferentes: A necessidade, no sentido do
preciso, e a necessidade causal. São duas coisas
completamente diversas. Quando se fala da necessidade
histórica, não se pensa no que é desejável no sentido, por
exemplo, do progresso social, mas no que decorre
inevitavelmente da marcha da evolução social. É nesse
sentido que eram necessárias tanto o desenvolvimento das
forças produtivas no século XIX, como a queda do império
romano, ou o desaparecimento da cultura cretense. O que é
devido a certas causas é necessário. Nem mais nem menos.

74
A Teoria do Materialismo Histórico N. Bukarin

Vamos passar agora a outro problema bastante difícil,


referente à mesma necessidade.

Vamos admitir que estamos diante de uma sociedade


humana, que se duplicou em vinte anos. Poderemos concluir
que a produção nesta sociedade aumentou. Se ela não
tivesse aumentado, a sociedade não se teria podido duplicar.
Se a sociedade cresceu, a produção deve também ter
aumentado. Este exemplo não precisa de comentários. Mas
o que significa isto? Nós vamos procurar aí a causa do
desenvolvimento social de um modo particular, causa que
constitui uma condição necessária de desenvolvimento. Se
essa condição não for preenchida não temos
desenvolvimento. Se estamos na presença de um
desenvolvimento, é que esta causa existe.

Este exemplo nos conduz ás seguintes considerações:


No principio deste trabalho, expulsamos sem piedade a
teleologia. E agora parece que a estamos introduzindo nós
mesmos. Com efeito, como se propõe a questão? Para que a
sociedade se desenvolva, para que esta sociedade possa se
duplicar, é preciso que a produção aumente. O
desenvolvimento da sociedade é o fim, "télos". O
desenvolvimento da produção é um meio para realizar este
fim. A lei da evolução é uma lei teleológica. Parece portanto
que pecamos contra a ciência e que caímos nos braços dos
padres.

75
A Teoria do Materialismo Histórico N. Bukarin

Mas aqui trata-se de coisa muito diferente, que nenhum


relação tem com a teleologia. Com efeito, partimos aqui da
proposição que a sociedade aumentou (no caso presente,
partimos mesmo do fato da sociedade ter aumentado). Mas
ela poderia também não ter aumentado. E se ela não se
tivesse desenvolvido, se por exemplo, ela tivesse diminuído
de metade, poderíamos tirar, seguindo o mesmo método, a
seguinte conclusão: A sociedade tendo diminuído de metade,
e isto, por efeito de uma sub-alimentação, é evidente que a
produção diminuiu. No entanto ninguém se lembrará de ver
um "fim" na destruição da sociedade. Ninguém poderá dizer
neste caso: o fim é de diminuir a sociedade pela sub-
alimentação; o meio que conduz a este fim é a redução da
produção. Não temos portanto no caso presente, nada a ver
com a finalidade (teleológica). Trata-se simplesmente de um
método particular de investigação de condições (causas), de
acordo com os resultados.

A condição necessária de evolução é conhecida pelo


nome de necessidade histórica. É neste sentido que a
Revolução francesa, sem a qual o capitalismo não se teria
podido desenvolver, constituía uma necessidade histórica, ou
então, da mesma forma a pretendida "libertação dos servos"
de 1861, sem a qual o capitalismo russo não teria podido
continuar a se desenvolver. É neste sentido que o socialismo
é uma necessidade histórica, a evolução social posterior
sendo impossível sem ele. Se a sociedade se desenvolve,
teremos infalivelmente o socialismo. É neste sentido
que Marxe Engels falam da "necessidade social".

76
A Teoria do Materialismo Histórico N. Bukarin

O método que consiste em procurar as condições


necessárias de conformidade com os fatos reais (ou
supostos), foi muitas vezes empregado porMarx e Engels,
bem que se tenha prestado pouca atenção a este fato. No
entanto o Capital é inteiramente construído desta maneira.
Tome-se uma sociedade onde circule a mercadoria, com
todos os seus elementos. Ela existe. Como pode ela "existir?
Resposta: Se ela existe, só pode ser com a condição de
existir uma lei para o valor. Uma grande quantidade de
mercadorias é trocada. Como é isto possível? Isto só é
possível graças à condição de existir um sistema monetário
("a necessidade social do dinheiro"). O capital "se acumula"
de acordo com leis que regulam a circulação das
mercadorias. Como é isto possível? Isto só é possível, porque
o valor da força de trabalho é menor, do que o do produto,
etc. etc.

18. O PROBLEMA DA POSSIBILIDADE DAS CIÊNCIAS


SOCIAIS E DAS PREVISÕES NESTE DOMÍNIO

Resulta de tudo que precede que para as ciências


sociais, tanto quanto para as ciências naturais, as previsões
são possíveis, previsões não charlatanescas, mas cientificas.
Sabemos, por exemplo, que os astrônomos podem, com a
maior exatidão, predizer os eclipses do sol ou da lua, o
aparecimento dos cometas e de um grande numero de
estrelas cadentes. Os meteorologistas podem prever o
tempo: o sol, o vento, a tempestade, a chuva. Nada há de
misterioso nestas previsões. Assim, o astrônomo conhece as

77
A Teoria do Materialismo Histórico N. Bukarin

leis que determinam o movimento dos planetas. Ele conhece


as órbitas do sol, da terra,da lua, etc. Ele sabe também com
que velocidade eles se movem e onde se acham em um dado
momento. O que há de admirável portanto que se possa,
nestas condições calcular o momento em que a lua,
colocando-se entre a terra e o sol, produza um eclipse? Será
possível a mesma coisa nas ciências sociais? Certamente que
sim. Com efeito, se conhecemos as leis de evolução social,
isto é, as vias que seguem inevitavelmente as sociedades, a
direção da evolução, não teremos dificuldade em definir o
futuro social. Varias vezes tais previsões já foram feitas na
ciência social, previsões estas que se realizaram
inteiramente. Graças ao conhecimento das leis de evolução
social, foram previstas as crises econômicas, a
desvalorização da moeda, a guerra universal, a Revolução
social como resultado da guerra; previmos a conduta de
diversos grupos, classes e partidos durante a Revolução;
previmos por exemplo, que os socialistas-
revolucionários russos, depois da Revolução proletária, se
transformariam num partido contra-revolucionário; muito
tempo antes da Revolução, mais ou menos em 1890, os
marxistas russos previram o desenvolvimento inevitável do
capitalismo na Rússia, e, ao mesmo tempo, o aumento do
movimento operário. Centenas de exemplos de previsões
desta natureza poderiam ser citadas. Não há nada de
extraordinário nisto se conhecemos as leis do processo
histórico. Não podemos por enquanto prever a data em que
um certo acontecimento se realizará. De fato, não
conhecemos ainda as leis de evolução social a ponto de as

78
A Teoria do Materialismo Histórico N. Bukarin

podermos exprimir em algarismos exatos. Ignoramos a


velocidade dos processos sociais, mas já podemos indicar a
sua direção.

M. Bulgakof, escreve no seu livro intitulado "Capitalismo


e Agricultura (1900-vol. 11.°):

"Marx achava possível medir e definir o


futuro baseando-se no passado e no
presente, e no entanto, cada época traz
para a evolução histórica, fatos novos e
forças novas; a potência criadora da
historia não se esgota. Eis porque toda
previsão do futuro baseada sobre dados
do presente conduz fatalmente (!!!) a
um erro... A cortina que encobre o futuro
é impenetrável".

O mesmo autor escreve na "Filosofia da Economia" (1.ª


parte: O mundo como economia, 1912-pag. 272):

"previsões muito mais modestas não


podem ser feitas pela ciência social
senão com grandes restrições; "As
tendências da evolução", estabelecidas
pela ciência e que favorecem o
socialismo têm muito poucas relações
com "as leis das ciências naturais", com
as quais Marx as confunde. Não são
senão "leis empíricas... A sua lógica é de

79
A Teoria do Materialismo Histórico N. Bukarin

natureza diferente daquela, por


exemplo, das leis mecânicas..."

Tomamos estas citações nas obras do


professor Bulgakof, como um espécime muito característico
do método pelo qual se "refuta" o marxismo. Examinemos
estas refutações mais de perto. M. Bulgakof considera que
as leis da evolução capitalista, por exemplo, não são senão
"leis empíricas". Como se sabe entende-se pelo nome de "leis
empíricas" uma sucessão regular de fenômenos no decurso
dos quais não se pode dizer que descobrimos as relações de
causa e efeito. Assim, por exemplo, observou-se que as
crianças do sexo feminino nascem em proporções um pouco
maiores que as crianças masculinas. Mas não conhecemos as
causas deste fenômeno. As "leis" como esta, têm com efeito,
uma outra "natureza lógica", mas as da evolução capitalista
não são absolutamente da mesma natureza. Elas exprimem
relações de causa e efeito. Assim por exemplo, a lei da
concentração dos capitais não é de nenhuma maneira uma
"lei empírica", mas realmente cientifica, ao mesmo título que
as estabelecidas pelas ciências naturais. Com efeito, quando
estamos em presença de empreendimentos industriais,
pequenos ou grandes, que rivalizam entre si, a vitória dos
grandes é necessária. Aqui, conhecemos a relação de causa
e efeito, e é a razão porque podemos prever a vitória infalível
da grande produção, tanto no Japão quanto na África central.

A nossa primeira citação de Bulgakof não é senão


literatura. A historia traz "fatos novos", a "potência criadora

80
A Teoria do Materialismo Histórico N. Bukarin

da historia é inesgotável", etc...! Mas a evolução da natureza


traz igualmente com ela "fatos novos". Estes fatos novos
aparecem nas ciências naturais ou matemáticas com a sua
"natureza lógica". Uma só coisa é verdadeira no que
diz Bulgakof: não conhecemos tudo. Mas não se pode
concluir daí a negação da ciência.

É característico, entre outras coisas, que na sua filosofia


da economia, M. Bulgakof fala muito e seriamente dos anjos,
do pecado original, de Santa Sofia, etc... Tudo isto tem
realmente uma "outra natureza lógica e se parece
enormemente com a ciência dos charlatães, contra a qual
protesta M. Bulgakof.

A doutrina do determinismo no domínio dos fenômenos


sociais e a possibilidade de prever na ciência encontraram
um grande numero de contraditores. Vamo-nos deter na
critica feita por Stammler. Este pergunta aos marxistas, para
os quais o socialismo é tão inevitável quanto um eclipse do
sol, por que motivo procuram eles realizar o socialismo.

"De duas uma — diz Stammler — ou


bem o socialismo virá como um eclipse
de lua, e então é inútil se esforçar, lutar,
organizar um partido da classe
proletárias etc...; do mesmo modo que
ninguém se lembrará de organizar um
partido para ajudar a realização de um
eclipse de lua; se organizais um partido,

81
A Teoria do Materialismo Histórico N. Bukarin

lutais etc., isto quer dizer que o


socialismo pode não se realizar, mas vos
quereis que ele venha, e é por este o
motivo porque lutais, e assim sendo ele
não pode ser considerado como
inevitável".

Não é difícil ver, depois do que ficou dito, no que consiste


o erro de Stammler. O eclipse de lua não depende nem direta
nem diretamente da vontade humana, ele não depende de
nenhum modo dos homens. Todos os homens, sem distinção
de classe, de sexo, de idade, ou de nacionalidade, poderiam
morrer que isto não impediria a realização de um eclipse de
lua. O caso se passa diferentemente nos fenômenos sociais.
Estes se realizam pela vontade dos homens. Um fenômeno
social sem os homens, sem a sociedade, é a mesma coisa do
que um quadrado redondo, ou gelo frito. O socialismo se
realizará inevitavelmente, porque os homens, as diversas
classes da sociedade humana agirão infalivelmente de
maneira a realizá-lo, e em condições que determinarão sua
vitória. O marxismo não nega a vontade; ele a explica.
Quando os marxistas organizam e conduzem à batalha o
partido comunista, isto não é mais do que uma expressão da
necessidade histórica, que é determinada pela vontade e
pelos atos dos homens.

O determinismo social, isto é, a doutrina pela qual todos


os fenômenos sociais são determinados, têm as suas causas,
das quais eles são o efeito necessário, que não deve ser

82
A Teoria do Materialismo Histórico N. Bukarin

confundido com o fatalismo. O fatalismo, é a crença num


"destino" cego e inevitável, destino que pesa sobre tudo e ao
qual tudo está submetido. A vontade humana nada é. O
homem não representa uma grandeza dotada de um certo
poder de ação; ele é simplesmente um instrumento passivo.
Esta doutrina, ao contrario do determinismo, nega a vontade
humana, como fator da evolução.

Acontece freqüentemente que este "destino" seja


personificado por seres semelhantes aos deuses. Tais são a
"Moira" dos antigos gregos, as "Parcas" dos romanos. Em
alguns doutores da igreja (por exemplo, em Santo
Agostinho), este papel é representado pela doutrina da
predestinação, que é encontrado numa forma mais
característica ainda em Calvino (R. Wipper: A Igreja e o
Estado em Genebra no XVI. º século). A expressão mais
patente do fatalismo é encontrada no Islã. Entretanto, não
se pode negar que os social-democratas tenham certa
inclinação para o fatalismo; é somente entre os social-
democratas, aliados à burguesia, que o marxismo degenerou
em uma teoria fatalista. O melhor exemplo desta
degenerescência fatalista do marxismo é representado por
G. Cunow, cuja "filosofia" toda pode ser expressa na
seguinte proposição: "A historia sempre tem razão", e eis a
razão porque não se pode lutar nem contra a guerra mundial
nem contra o imperialismo. Toda insurreição comunista dos
operários é considerada por ele, não como a manifestação
de uma necessidade histórica, mas como uma tentativa

83
A Teoria do Materialismo Histórico N. Bukarin

exterior e incompreensível para violentar as leis da evolução


histórica.

84
A Teoria do Materialismo Histórico N. Bukarin

CAPÍTULO III

O MATERIALISMO DIALÉTICO
19. O MATERIALISMO E O IDEALISMO NA FILOSOFIA. O
PROBLEMA DA OBJETIVIDADE

Examinando a questão da vontade humana, a questão


de saber se ela era livre ou determinada por certas causas,
como aliás tudo no mundo, concluímos que era necessário
colocar-se no ponto de vista determinista. Vimos que a
vontade humana nada tem de divino, que ela dependia de
causa exteriores e do estado do organismo humano. Eis-nos
chegados ao problema mais importante, que preocupou
durante milhares de anos o pensamento humano, ao
problema das relações entre a matéria e o espírito. Fala-se
correntemente da "alma" e do "corpo". Distinguimos em
geral dois gêneros de fenômenos. Alguns deles têm uma
certa extensão, ocupam um certo lugar no espaço, são
percebidos pelos nossos sentidos: podem ser vistos, ouvidos,
tocados, etc. São chamados fenômenos materiais. Os outros
não ocupam lugar no espaço, não podem ser tocados nem
vistos; tal é por exemplo, o pensamento, a vontade ou uma
sensação. Todos sabem que eles
existem. Descartes considerava este fato como uma prova
suficiente da existência do homem. Ele disse: "Eu penso logo
existo". E no entanto não se pode tocar nem sentir o
pensamento humano, ele não tem cor, e não pode ser
medido diretamente com um metro. Tais fenômenos

85
A Teoria do Materialismo Histórico N. Bukarin

chamam-se psíquicos ou espirituais. Quais são as relações


que existem entre estes dois gêneros de fenômenos? Será o
espírito ou a matéria "'o começo de todas as coisas"? Qual é
o fenômeno original? Qual é o fenômeno principal? Será a
matéria que dá origem ao espírito, ou então o espírito à
matéria? Tal é o problema fundamental da filosofia. Da
resposta a esta pergunta, dependem outras questões que
tocam o problema das ciências sociais.

Vamos tentar examinar esta questão, tanto quanto


possível, sob todos os aspectos. Devemos antes de tudo ter
em vista que o homem faz parte da natureza. Não sabemos
com certeza se existem outros seres organizados de uma
maneira superior, sobre outros planetas. Certamente que
existem, pois que o numero de planetas é infinito. Mas
vemos claramente que o ser pensante que se chama homem
nada tem de divino, de exterior ao mundo, e que ele não caiu
na terra vindo de um mundo desconhecido, misterioso. Ao
contrario, sabemos pelas ciências naturais que o homem é
um produto da natureza, uma parte desta natureza
submetida às leis gerais. É pelo exemplo deste mundo que
nós conhecemos, vemos que os fenômenos psíquicos, que o
pretendido "espírito", constituem uma parcela ínfima de
todos os fenômenos. De outro lado sabemos que o homem
descende de outros animais e que no fim de contas "os seres
viventes" não apareceram sobre a terra senão no fim de um
certo tempo. Quando a terra não era ainda um planeta
extinto, mas um globo incandescente, no gênero do nosso
atual sol, não havia vida sobre ela, nem seres pensantes. Foi

86
A Teoria do Materialismo Histórico N. Bukarin

da natureza "morta" que se desenvolveu a natureza viva e


foi da viva que saiu aquela que pensa. Existia a princípio uma
matéria que não podia pensar, e dela se formou a natureza
pensante: o homem. Se assim é — e as ciências naturais o
provam, — está claro que foi a matéria que gerou o espírito
e não o espírito a matéria. Pois não acontece nunca e em
nenhum lugar, que os filhos sejam mais velhos que os pais.
O "espírito" apareceu mais tarde. Foi ele, por conseguinte,
que foi o filho e não o pai, ao contrario do que desejam dele
fazer os admiradores demasiadamente fervorosos do
"espiritual". Sabemos também que o espírito aparece ao
mesmo tempo que a matéria quando organizada de certa
maneira.

Não é um balão vazio nem um buraco, nem o "espírito"


sem matéria que pensa, e sim o cérebro humano, uma parte
do organismo humano. E o organismo humano é a matéria
organizada de uma maneira extremamente complexa.

Em quarto lugar explica-se claramente pelo que


precede, por que motivo a matéria pode existir sem o
espírito, enquanto que o espírito não pode existir sem a
matéria. A matéria existiu antes que o homem pensante
tivesse aparecido; a terra existiu bem antes da aparição de
qualquer "espírito" sobre esta terra.

Em outros termos, a matéria existe objetivamente,


independentemente do "espírito". Ao contrario, os
fenômenos psíquicos, o pretendido espírito, não existe nunca

87
A Teoria do Materialismo Histórico N. Bukarin

e em parte alguma sem a matéria, independentemente dela.


Os pensamentos não existem sem cérebro, os desejos sem
o organismo que deseja. O "espírito" é sempre fortemente
ligado á "matéria" (foi somente na Bíblia que ele planava por
cima dos abismos). Em outras palavras, os fenômenos
psíquicos, os fenômenos da consciência não são outra coisa
senão uma qualidade da matéria organizada de outra
maneira, sua "função" (a função de uma grandeza qualquer
é uma outra grandeza que depende da primeira). Tomemos,
o homem, por exemplo. Ele é uma maquina delicadamente
organizada. Destruí esta organização, desorganizai-a,
decomponde-a, cortai-a em pedaços, e o "espírito"
desaparecerá imediatamente. Se os homens dispusessem de
meios para reconstituir todo este sistema, de tal maneira que
o organismo humano começasse novamente a trabalhar, em
outros termos, se os homens tivessem um meio de
recompor, de reorganizar as parcelas materiais como elas
eram antes, se eles pudessem em uma palavra, dar corda ao
homem como se dá corda a um relógio, a consciência se
restabeleceria imediatamente: Concerte o teu relógio e ele
recomeçará a funcionar; reconstitua o organismo humano e
ele recomeçará a pensar. Certamente os homens não
chegaram até este ponto. Mas nós já vimos, ao examinar o
problema do determinismo, que o estado de "espírito", o
estado de consciência depende do estado do organismo.
Envenenai o organismo com álcool, e a consciência se
tornará obscura, o "espírito" titubeará. Tornai a pôr o
organismo em seu estado normal (administrai-lhe um
antídoto) e o "espírito" recomeçará a trabalhar como de

88
A Teoria do Materialismo Histórico N. Bukarin

costume. Isto prova claramente que a consciência depende


da matéria ou, em outros termos, que o "pensamento"
depende do organismo. Já dissemos e ficou visto que os
fenômenos psíquicos constituem uma propriedade da
matéria organizada de uma certa maneira. Pode haver
nestes limites certas flutuações, diversas formas de
organização da matéria, por isto mesmo, formas diferentes
da vida psíquica. O homem, com o seu cérebro está
organizado de uma maneira; ele tem a mais completa vida
psíquica, ele tem uma verdadeira consciência. Um cão está
organizado de outra maneira, e esta é a razão porque a vida
psíquica de um cão difere da do homem; uma minhoca é
constituída ainda de maneira diferente, e por esta razão o
"espírito" de uma minhoca é muito pobre e não pode de
maneira alguma ser comparado ao espírito humano. Uma
pedra, por exemplo, pela sua organização constitui uma
matéria inanimada, ela não tem nenhuma vida psíquica. Uma
organização particular e complicada da matéria, é necessária
para que a vida psíquica possa aparecer, e a que chamamos
consciência. Sobre a terra, esta consciência aparece somente
quando existe a matéria organizada, tal como o organismo
humano, com o seu instrumento complexo: o cérebro.

Assim, o espírito, não pode existir sem a matéria, a


matéria pode existir muito bem sem o espírito, pois que
existiu antes dele, o (espírito) é uma qualidade particular da
matéria, organizada de uma maneira particular.

89
A Teoria do Materialismo Histórico N. Bukarin

É assim que se resolve o problema das relações entre o


materialismo e o idealismo, na filosofia.

O matenallsmo considera a matéria como causa primaria


e fundamental! O idealismo ao contrario, considera em
primeiro lugar o espírito. Para os materialistas, o espírito é
um produto da matéria; para os idealistas, ao contrario, é a
matéria que é o produto do espírito.

Não é difícil ver que o idealismo, isto é, a doutrina que


considera as idéias, "o espírito", como base de tudo que
existe, não é outra coisa senão uma forma amenizada das
concepções religiosas. O sentido destas concepções
religiosas consiste precisamente no fato de uma força divina
e misteriosa estar colocada, acima da natureza, de que a
força humana é considerada como uma faísca dessa força
divina, e de que o homem é um ser eleito por Deus. O ponto
de vista idealista conduz no seu desenvolvimento a uma série
de absurdos, que os filósofos das classes dominantes
defendem muitas vezes com muita seriedade. Neste caso
estão principalmente as concepções que negam o mundo
exterior, isto é a existência objetiva das coisas e dos outros
homens independentemente da consciência humana. A
forma extrema deduzida do idealismo é o solipismo (da
palavra latina "solus" — só). Os solipsistas raciocinam da
seguinte maneira: O que me é dado diretamente? Minha
consciência e nada mais, a casa que eu vejo é minha
sensação, o mesmo acontece com o homem a quem eu falo.
Em uma palavra, nada existe fora de mim mesmo; somente

90
A Teoria do Materialismo Histórico N. Bukarin

meu "eu" existe, minha consciência, minha essência


espiritual; nenhum mundo exterior independente de mim
existe: Tudo isto, é criação do meu espírito. Pois eu não
conheço senão a minha vida interior, da qual eu não posso
me desembaraçar.

Tudo o que eu vejo, ouço, provo, tudo que eu penso,


tudo isto, são minhas sensações, minhas imagens, meus
pensamentos. Esta filosofia absurda, da qual Schopenhauer
disse que não poderia encontrar adeptos sinceros senão num
hospício de alienados (o que não impediu ao mesmo
Schopenhauer de considerar o mundo como vontade e
representação, isto é, de ser um idealista da mais pura
essência) é desmentido a todo momento pela prática
humana. Os homens comem, empreendem uma luta de
classes, calçam os sapatos, colhem flores, escrevem livros,
casam-se; ninguém duvida um só instante que o mundo
exterior exista, isto é, ninguém duvida da existência da
comida que se come, dos sapatos que se calçam, das
mulheres com que nos casamos, etc. Entretanto, todos estes
absurdos decorrem das proposições essenciais do idealismo.
Com efeito, se o "espírito" é a base de tudo, o que faremos
do tempo em que o homem não existia ainda? De duas uma:
Ou bem é preciso admitir que existiu um espírito não
humano, divino, no gênero daquele ao qual se referem os
antigos contos judaicos e a Bíblia, ou então é preciso dizer
que a própria época antiga não é senão o fruto do trabalho
de minha imaginação. A primeira hipótese conduz ao que
chamamos de "idealismo objetivo". O idealismo objetivo

91
A Teoria do Materialismo Histórico N. Bukarin

admite a existência de um mundo exterior independente de


"minha" consciência. Mas ele vê a essência deste mundo no
princípio espiritual, em um Deus ou numa "razão superior"
que substitui às vezes o Deus; numa "vontade universal" e
em outras fantasias diabólicas deste gênero. A segunda
hipótese conduz diretamente ao solipsismo através do
idealismo subjetivo, que não admite senão a existência dos
seres espirituais, dos seres pensantes individuais. Não é
difícil ver que o solipsismo constitui a forma mais
consequente do idealismo. Com efeito, qual é a fonte, qual é
a base do idealismo? Porque crê ele que o princípio espiritual
é o primeiro e o essencial? Por que ele considera, no fim de
contas, que só existem as sensações, que me são fornecidas
diretamente. Mas se assim é, a minha própria existência fica
tão duvidosa como a de um objeto qualquer, como a de
qualquer outro homem, e entre eles a de meus próprios pais.
Aqui, o solipsismo se mata a si mesmo, mas ele mata ao
mesmo tempo todo o idealismo na filosofia, pois
desenvolvendo logicamente as concepções idealistas, ele
conduz ao absurdo mais completo, que contradiz a cada
passo a prática humana.

É preciso não confundir "o idealismo prático" e o


"materialismo" com o materialismo e idealismo teóricos. São
coisas que nada têm de comum com as doutrinas que
acabamos de analisar. Dá-se o nome de idealista, no sentido
prático da palavra, a um homem dedicado a uma idéia e
pronto a fazer todos os sacrifícios por ela. Está claro que um
tal idealista pode ser o adversário mais encarniçado do

92
A Teoria do Materialismo Histórico N. Bukarin

idealismo filosófico, do idealismo teórico. Um comunista que


sacrifica a sua vida é um idealista prático, e ao mesmo tempo
materialista até a medula dos ossos. Um burguês que suspira
pelo bom Deus tem habitualmente concepções muito
idealistas, o que não impede de ser bastante covarde, obtuso
e egoísta.

Considera-se habitualmente o filósofo grego Platão como


o pai do idealismo filosófico. Segundo ele, com efeito, não
existem objetivamente senão" idéias" (conceitos), não
homens, peras, carrinhos, mas idéia do homem, da pera, e
do carrinho. Todas estas idéias modelo e preexistentes,
planam "acima do céu", tal o espírito divino, "a idéia
superior", a "idéia do bem'. Um certo desvio para o idealismo
subjetivo foi feito a princípio pelos filósofos gregos
conhecidos pelo nome de sofistas (Protágoras, Gorgeas,
etc...) que emitiram a proposição segundo a qual "o homem
é a medida de todas as coisas". Na idade média, as idéias de
Platão eram consideradas como os modelos, de acordo com
os quais Deus cria todas as coisas visíveis. Por exemplo, a
pulga visível é criada por Deus, segundo uma "idéia" da
pulga, que está colocada num "mundo para além da razão".
Nos tempos modernos, foi o bispo Berkeley que desenvolveu
da maneira mais consequente o ponto de vista do idealismo
subjetivo na Inglaterra; segundo ele, somente o espírito
existe, todo o resto não é senão a sua representação. Na
Alemanha, Fichte pensava que o objeto (mundo exterior)
não existe sem o sujeito (o espírito que conhece), e a matéria
é a expressão da idéia. Segundo Schelling, as idéias são a

93
A Teoria do Materialismo Histórico N. Bukarin

essência das coisas, tendo por base a eternidade divina.


Segundo Hegel, tudo o que existe não é senão a
manifestação da "Razão objetiva", que se desenvolve por si
mesma. Segundo Shopenhauer o mundo é vontade e
representação. Segundo Kant, o mundo objetivo existe ("a
coisa em si"), mas dele não se pode ter conhecimento, pois
a sua natureza é imaterial. Na filosofia moderna, o idealismo,
dividiu-se em diversas tonalidades, e reforçou-se
consideravelmente com a tendência da burguesia para o
misticismo e o mistério. É o sinal de uma profunda
decadência da burguesia que, desesperada, procura uma
consolação espiritual.

A primeira corrente filosófica materialista é encontrada


nos filósofos gregos da escola jônica, que consideravam a
matéria como base de tudo o que existe, mas que pensaram
ao mesmo tempo que toda a matéria tinha até certo ponto a
propriedade da percepção. Por este motivo são estes
filósofos chamados "hilozoistas" (isto é, em grego, os que
animam a matéria).

Certamente, estes primeiros passos não deram grandes


resultados. Assim Thales procurou a base de tudo que existe
na água, Anaximenes no ar, Heráclito no fogo, Anaximandro
numa substancia indefinida e que envolve tudo (ele a
chamou "infinito" ou "ilimitado"); é preciso acrescentar aos
hilozoístas os estóicos, segundo os quais tudo o que existe é
material. O materialismo foi em seguida desenvolvido pelos
gregos Demócrito e Épicuro e o latino

94
A Teoria do Materialismo Histórico N. Bukarin

Lucrecio. Demócrito assentou genialmente as bases da


teoria dos átomos. Segundo ele, o mundo é composto de
parcelas materiais ínfimas que se movem e cujas
combinações criam o mundo visível. Na idade média, eram
em gerai ruminadas as concepções idealistas. O filósofo B.
Spinoza desenvolveu as idéias dos materialistas hilozoístas
de uma maneira brilhante e profunda. Na Inglaterra,
foi Hobbes (1578-1679) quem defendeu os princípios
materialistas. É a época da preparação da grande Revolução
francesa, que produziu toda uma série de filósofos
materialistas de primeira ordem, tais
como: Diderot, Helvetius, Holbach (cuja obra principal
"Sistema da natureza" apareceu em 1770).

La Metrie ("O homem maquina", 1748). Este grupo de


filósofos da burguesia, nessa época revolucionaria, formulou
de uma maneira magnífica a teoria materialista (ver N.
Beltov: "Contribuição ao desenvolvimento da concepção
monista da historia" e V. Lenin: "Materialismo e Empiro
Criticismo"). Diderot ridicularizou com fineza os idealistas do
gênero de Berkeley.

"Houve, diz ele, um momento de


loucura, quando um cravo consciente
imaginou que ele era o único cravo
existente no mundo e que toda a
harmonia do universo pertencia a ele".

95
A Teoria do Materialismo Histórico N. Bukarin

No século XIX, o materialismo foi desenvolvido na


Alemanha por Ludwig Feuerbach que exerceu influencia
sobre Marx e Engels; estes dois últimos formularam a mais
perfeita teoria do materialismo. Eles ligaram o materialismo
a um método dialético (do qual falaremos adiante) e
aplicaram a doutrina materialista às ciências sociais,
expulsando assim o idealismo do seu ultimo reduto. É natural
que a burguesia no seu gatismo, babe sobre o materialismo,
invocando o velho bom Deus. É lógico também que o
materialismo se torne a teoria revolucionaria da jovem classe
revolucionaria — o proletariado.

20. A CONCEPÇÃO MATERIALISTA NAS CIÊNCIAS SOCIAIS

É evidente que o debate entre o materialismo e o


idealismo não pode deixar de ter repercussão nas ciências
sociais. Com efeito, examinemos a sociedade humana.
Vemos nela fenômenos de gêneros diferentes. Há os de
"ordem superior": A religião, a filosofia, a moral.
Encontramos também a política do Estado com suas leis,
novas idéias nos diferentes domínios, troca de mercadorias
e a distribuição dos produtos, a luta das diferentes classes
entre si; a produção dos diferentes objetos: da cevada, do
feijão, dos calçados, das maquinas, segundo as condições de
tempo e de espaço. Como fazer para estudar esta sociedade?
Por que lado começar? O que deve ser considerado como
essencial? Como primordial? O que é secundário, derivado?
Evidentemente, aí estão, na sua essência, os mesmos
problemas que a filosofia formula e que dividem filósofos em

96
A Teoria do Materialismo Histórico N. Bukarin

dois grandes campos: materialistas e idealistas. Pode-se,


com efeito, imaginar, de um lado, que os homens aplicam ao
estudo da sociedade o método seguinte: A sociedade é
composta de homens, os homens pensam, agem, desejam,
se inspiram de idéias, de pensamentos, de "opiniões", de
onde se conclui: "As opiniões governam o mundo", as
mudanças de opinião, as mudanças de ponto de vista dos
homens, constituem a causa primaria de tudo o que se passa
numa sociedade; por conseguinte, a ciência social deve
estudar em primeiro lugar este lado do problema, a
"consciência social". Isto seria o ponto de vista idealista nas
ciências sociais. Mas vimos acima que o idealismo presume
que se admite a independência das idéias relativamente aos
fatos materiais, e que pelo contrario, estas idéias dependem
de coisas divinas e misteriosas. Eis a razão pela qual a
concepção materialista se liga diretamente à mística e às
fantasias diabólicas nas ciências sociais, e por conseguinte,
conduz à destruição da ciência social e à sua substituição
pela fé, pela crença numa Providência ou outra coisa
análoga. É assim que Bossuet, no seu "discurso sobre a
historia universal" em 1682, declarou que se encontra na
historia a direção divina do gênero humano". O filósofo
idealista alemão Lessing afirmava que a historia é "a
educação do gênero humano por Deus"; Fichte dizia que a
razão é que agia na historia; Schelling, que a historia é uma
"revelação constante do absoluto, revelação que se descobre
pouco a pouco, isto é, em ultima analise, a revelação de
Deus". Hegel, o maior filósofo do idealismo definia a historia
universal como "um desenvolvimento inteligente e

97
A Teoria do Materialismo Histórico N. Bukarin

necessário do espírito universal". Podíamos citar ainda um


grande numero de exemplos, mas os que acabamos de dar
são suficientes para mostrar a que ponto as concepções
filosóficas tem ligação estreita com as ciências sociais.

Assim, as ciências sociais e a sociologia idealista


observam na sociedade, antes de tudo as "idéias" desta
sociedade: Elas consideram a sociedade, ela mesma, como
fenômeno psíquico e material; a sociedade, segundo eles, é
uma mistura de desejos, de sentimentos, de pensamentos,
de vontades humanas, que se entrecruzam, formando
infinitas combinações; em outros termos, é a psicologia
social e a consciência social, o "espírito" da sociedade. Pode-
se entretanto examinar a sociedade de outra maneira.
Vimos, ao estudar o problema do determinismo, que a
vontade humana não era livre, que ela era determinada pelas
condições exteriores da existência humana. A sociedade não
estará submetida às mesmas leis? Onde encontrar a chave
para explicar a consciência social? Do que depende ela?

Ao formularmos estas perguntas, estamos em presença


da concepção materialista das ciências sociais. A sociedade
humana é um produto da natureza, tanto quanto o gênero
humano na sua totalidade. Ela depende desta natureza. Ela
não pode existir sem tirar desta natureza tudo que lhe é útil.
E ela extrai estas coisas úteis por meio da produção. Ela não
age sempre de uma maneira consciente. Somente uma
sociedade organizada trabalha segundo um plano
preestabelecido. Pelo contrario, uma sociedade

98
A Teoria do Materialismo Histórico N. Bukarin

desorganizada tudo faz de uma maneira inconsciente: Assim


por exemplo, em regime capitalista, um fabricante que quer
obter maiores lucros aumenta com este fim a produção (e
não para ajudar a sociedade humana); um camponês produz
para se nutrir e para vender uma parte de seus produtos,
afim de pagar os impostos; um artesão, para se manter tanto
quanto possível e para tentar progredir; um operário, para
não morrer de fome. E acontece, no fim de contas que a
sociedade continua a viver mal e mal. A produção material e
seus meios ("as forças materiais produtivas"), eis o que
constitui a base da existência de uma sociedade humana.
Sem esta produção, nenhuma "consciência social", nenhuma
"cultura espiritual" é possível, do mesmo modo que um
pensamento não pode existir sem o cérebro. Examinaremos
detalhadamente este problema mais tarde. Contentemo-nos,
no momento, de examinar o seguinte: Representemo-nos
duas sociedades humanas, uma de selvagens, a outra
capitalista em declínio. Na primeira, todo o tempo é gasto na
procura da alimentação por meio da caça, da pesca, da
colheita de raízes, da cultura de plantas, etc.; encontramos
nela muito poucas "ideias", "cultura espiritual", etc. Estamos
diante de animais, de semi-macacos. Na outra sociedade,
vemos uma rica "cultura espiritual", toda uma torre de Babel,
a moral, o direito, com suas leis interminável, as ciências, a
filosofia, a religião, a arte, a começar pela arquitetura e
acabando pelas gravuras de modas. Ao mesmo tempo, a
burguesia dominante tem a sua própria torre de Babel, os
proletários possuem outra, os camponeses uma terceira,
etc.. Em uma palavra, como se diz habitualmente, "a rica

99
A Teoria do Materialismo Histórico N. Bukarin

cultura espiritual", o "espírito" social, as "idéias" cresceram


aqui em proporções consideráveis. Como pôde este espírito
se desenvolver? Quais foram as condições que determinaram
o seu crescimento? O desenvolvimento da produção
material, o poder crescente do homem sobre a natureza, o
aumento da produtividade do trabalho-humano. É somente
depois disto que o homem não é mais obrigado a sacrificar
todo o seu tempo ao duro trabalho material: Os homens têm
momentos de repouso que se lhes permitem pensar, refletir,
fazer um trabalho intelectual, de criar uma "cultura"
espiritual.

Assim, do mesmo modo que a natureza é no fundo a


mãe do espírito, e não o espírito o pai da matéria, assim
também, numa sociedade, não é a "cultura espiritual" social
("a consciência social") que cria a matéria social, isto é, a
produção material, mas ao contrario, é o desenvolvimento
desta matéria social, que forma a base da, por assim dizer,
"cultura espiritual". Em outros termos, a vida espiritual da
sociedade depende, e não pode deixar de depender, do
estado da produção material, do grau de desenvolvimento
das forças produtivas da sociedade. A vida espiritual da
sociedade é, como dizem os sábios, função das forças
produtivas. Qual é a essência desta função? De que maneira
depende a vida espiritual da sociedade das forças
produtivas? Veremos isto mais tarde. Indiquemos somente
no momento que, segundo esta concepção, a sociedade se
apresenta evidentemente não como um "organismo
psíquico", não como um conjunto de opiniões diferentes,

100
A Teoria do Materialismo Histórico N. Bukarin

pertencendo ao domínio do "belo", do "puro", e do "sublime",


mas antes de tudo como uma organização de trabalho
(Marx dizia às vezes: "Organismo produtor"). Este é o ponto
de vista materialista em sociologia. Como sabemos, a
concepção materialista não nega a existência das
"idéias". Marx, referindo-se ao grau de consciência mais
elevado, da teoria cientifica, exprimiu-se da seguinte
maneira:

"cada teoria se transforma em força


material, quando as massas delas se
apoderam".

Mas os materialistas não se podem contentar em dizer


que "os homens pensaram assim". Eles perguntam entre si
por que motivo os homens pensaram de uma certa maneira
em certo momento e lugar, e diferentemente em outras
condições. Porque, em uma sociedade civilizada, pensam os
homens muito e produzem montanhas de livros, e porque
não fazem o mesmo os selvagens? A explicação disto está
nas condições materiais da vida social. É assim que o
materialismo nos permite explicar os fenômenos da "vida
espiritual" da sociedade. O idealismo, pelo contrario, é
incapaz de o fazer. Para ele, as "idéias" se desenvolvem por
si mesmas, independentemente desta "miserável terra". Esta
é a razão pela qual os idealistas são obrigados a recorrer a
Deus para poder dar um arremedo de explicação:

101
A Teoria do Materialismo Histórico N. Bukarin

"Este Bem", escreveu Hegel na sua


"Filosofia da Historia", esta razão, na sua
forma mais completa, é Deus. Deus
governa o mundo, e a historia universal
constitui a substancia do seu reino, a
realização de seu plano. (Philosophie der
Geschichte, Reklams Verlag, pag. 74).

Recorrer a este velho infeliz que sendo, segundo seus


adoradores, a própria perfeição, é obrigado a criar ao
mesmo-tempo que Adão, as pulgas e as prostitutas, os
assassinos e os pesteados, a fome e a miséria, a sífilis e a
cachaça para punir os pecadores criados por ele, e pecando
por sua vontade, e, para representar eternamente esta
comédia diante do mundo-admirado, recorrer a Deus, tal é o
destino inevitável da teoria idealista. Mas, do ponto de vista
cientifico, esta "teoria" nos leva ao absurdo.

E é assim que, nas ciências sociais por sua vez, o único


ponto de vista justo é o ponto de vista materialista.

A aplicação da concepção materialista às ciências sociais


foi feita de maneira consequente por Marx e Engels. No
mesmo ano (1859) em que apareceu o livro
de Marx "Contribuição à Economia Política", no
qual Marx esboçou sua doutrina sociológica (a teoria do
materialismo histórico) apareceu também a obra principal do
grande sábio inglês Charles Darwin (A origem das espécies)
na qual Darwin mostrou e provou que as modificações na

102
A Teoria do Materialismo Histórico N. Bukarin

fauna e na flora se produzem sob a influencia das condições


materiais da existência. Entretanto, não resulta daí que se
possa aplicar diretamente à sociedade as leis de Darwin. O
problema consiste em mostrar de que maneira as leis gerais
das ciências naturais se manifestam na sociedade humana e,
qual é a forma particular sob a qual elas podem ser aplicadas
á sociedade humana. Marx criticou acerbamente aqueles que
não o compreenderam. Ele escreveu a propósito de um sábio
alemão F. A. Lange:

"Sr. Lange fez, bem o vedes, uma


grande descoberta. Pode-se submeter a
historia, parece, a uma só grande lei
natural. Esta lei natural está encerrada
em uma só frase: the struggle for life (a
luta pela existência), (a expressão
de Darwin, aplicada assim, torna-se
uma frase sem sentido...). Por
conseguinte, invés de analisar
este "struggle for life" e ver como ele se
manifestou historicamente nas
diferentes formas sociais, resta somente
fazer uma coisa: substituir toda luta
concreta pela frase: "struggle for
life". (Cartas a Kugelmann, carta de 27
de junho de 1870).

É claro que Marx teve antecessores, e particularmente


na pessoa dos socialistas utópicos (Saint Simon). Mas a

103
A Teoria do Materialismo Histórico N. Bukarin

concepção materialista nunca foi estudada a fundo antes


de Marx, pela única maneira susceptível de criar a verdadeira
sociologia científica.

21. O PONTO DE VISTA DINÂMICO E AS RELAÇÕES DOS


FENÔMENOS ENTRE SI

Tudo o que se passa na natureza e na sociedade pode


ser examinado de duas maneiras diferentes. Uns crêem que
nada muda: "Assim é e assim será sempre". Nada se produz
de novo. Outros pensam, ao contrario, que nem na natureza
nem na sociedade, nada há nem pode haver de imutável. "O
que foi passou" e "isto não voltará jamais". Esta segunda
concepção, esta segunda maneira de examinar tudo o que
existe, se chama dinâmica ("dynames", em grego: força,
movimento), a primeira se chama estática. Qual das duas é
justa? O mundo será constante e imutável? Ou então ao
contrario, mudará ele constantemente e, não será mais hoje
o que ele foi ontem? Um só golpe de vista sobre a natureza
é suficiente para nos mostrar que nada há de imutável.
Outrora, os homens pensavam que a lua e as estrelas não se
mexiam e que elas eram fincadas no céu como pregos de
ouro; que a terra também era imóvel, etc... Agora, nós
sabemos que as estrelas e a lua e a nossa terra giram com
uma rapidez vertiginosa através de espaços imensos. Mais
ainda, sabemos agora que as mais ínfimas partículas de
matéria, os átomos, são compostos de partículas ainda
menores, que são chamados electrons que giram no interior
do átomo, como os corpos celestes do sistema solar em torno

104
A Teoria do Materialismo Histórico N. Bukarin

do sol. E são eles que compõem o mundo. O que pode haver


de constante no mundo, si todas estas parcelas que o
compõem se movem com maior velocidade que o vento?
Outrora, os homens pensavam também que existiam tantas
plantas e animais quantas Deus havia criado: o burro, a
doninha, o percevejo e o bacilo da lepra, a filoxera e o
elefante, a rosa e a urtiga — tudo isto existe tal qual Deus
criou nos primeiros dias do mundo. Não há tantas espécies
de animais e plantas quantas Deus quis criar. As plantas e
os animais que existem hoje sobre a terra, parecem-se muito
pouco com aqueles que existiram outrora. Não encontramos
senão esqueletos, impressões na pedra, ou no gelo, de restos
de animais enormes e de plantas que existiram há milhares
de anos: lagartos voadores gigantescos (pterodactilos),
fetos gigantescos, florestas inteiras petrificadas (o carvão
não é senão a madeira das florestas primitivas), verdadeiros
monstros, tais como os ictiosauros, os brontosauros, etc....
Eis o que já existia e não existe mais. Por outro lado, não
existiam nem pinheiros, bétulas, nem vacas, nem carneiros,
— em uma palavra, tudo se transformou sob o sol. E
infelizmente! Os homens, descendentes dos macacos
peludos, não existiam ainda: eles só apareceram na terra há
relativamente pouco tempo. Não nos admiramos mais vendo
as espécies animais e as plantas se transformarem.
Admiramo-nos tanto menos que já chegamos às vezes a
fazer melhor do que o próprio Deus: um bom criador de
porcos, escolhendo bem a alimentação e cruzando as
espécies criteriosamente pode criar pouco a pouco novas
raças: os porcos de Yorkshire que não podem andar de tão

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A Teoria do Materialismo Histórico N. Bukarin

gordos, são criação do homem, da mesma forma que as


rosas pretas e as diferentes espécies de animais domésticos
e de plantas. E o próprio homem não muda também quase a
olhos vistos? O operário russo do tempo da Revolução
parece-se no que quer que seja ao slavo selvagem caçador,
dos tempos antigos?

A raça, o aspecto dos homens mudam como tudo no


mundo. Que conclusões podemos tirar daí? Que
evidentemente, nada existe de imutável, nada é fixo no
mundo. Tudo muda, tudo se move. Ou, em outros termos,
as coisas fixas, os objetos não existem na realidade, existem
apenas processos. A mesa sobre a qual escrevo neste
momento não é absolutamente uma coisa imóvel: ela muda
a cada instante. É verdade que ela muda de uma maneira
imperceptível para o olho e o ouvido humano. Mas no fim de
longos, longos anos, ela apodrece e torna-se em pó. De um
só golpe? Não certamente, mas como resultado do que
anteriormente se passou. As partículas desta mesa serão
perdidas? Não, elas terão tomado uma outra forma, elas
serão levadas pelo vento, elas serão uma parte do solo,
nutrirão as plantas e se transformarão em tecidos vegetais,
etc.: mudança eterna, eterna viagem de formas sempre
novas. O mundo não é mais do que matéria em movimento.
Eis porque para se compreender um fenômeno, é preciso
examiná-lo em sua origem (como, de onde e porque tem ele
lugar), no seu desenvolvimento e no seu fim; em uma
palavra, em movimento e não no decurso de um repouso
imaginário. Esta concepção dinâmica se chama também

106
A Teoria do Materialismo Histórico N. Bukarin

dialética (a dialética tem ainda outros sinais característicos


dos quais falaremos adiante).

Já, a antiga filosofia grega, distinguia os dois pontos de


vista o dinâmico e o estático. A escola dos eleatas, com
Parmenides à frente, ensinava que tudo o que existe é
imóvel. O ser, segundo Parmenides é eterno, constante,
imutável, uno, indivisível, imóvel, inteiro, uniforme, e se
parece com uma esfera em repouso. Um dos eleatas, Zenon,
tentou provar com raciocínios muito sutís que qualquer
movimento é impossível. Heráclito, pelo contrario, ensinava
que nada é imutável, ele afirmava que tudo muda, que tudo
corre". Segundo Heráclito, é impossível entrar duas vezes
num mesmo rio, pois ele muda todo momento. Um filósofo
da mesma escola Cratiles, dizia que era impossível banhar-
se mesmo uma só vez num mesmo rio, porque este muda
constantemente. Demócrito considerava também o
movimento como a base de tudo, especialmente o
movimento retilíneo dos átomos. Entre os filósofos
modernos, Hegel, do qual Marx foi discípulo, insistia
particularmente sobre o movimento e o "tornar". Mas,
para Hegel, é um movimento do espírito que serve de base
ao mundo, enquanto que Marx, segundo suas próprias
palavras, pôs de pé a dialética de Hegel, substituindo o
movimento do espírito pelo da matéria. Nas ciência naturais
desde o princípio do século XIX prevaleceu a opinião
expressa pelo celebre naturalista Lineu. Há tantas espécies
quantas Deus criou (teoria da constância das espécies). O
representante mais em voga da opinião contrária

107
A Teoria do Materialismo Histórico N. Bukarin

foi Lamarck, e depois dele Charles Darwin, ao qual já nos


referimos acima, e que definitivamente rejeitou as antigas
concepções.

Do fato de estar o mundo constantemente em


movimento resulta a necessidade de se examinarem os
fenômenos nas suas relações mutuas e não como fenômenos
absolutamente separados (isolados).

Todas as partes do mundo são, na realidade, ligadas


entre si e influem umas sobre as outras. Basta uma
modificação mínima num lugar para que tudo mude. Qual é
a importância desta mudança? Isto é outra questão, mas
mudança sempre há. Tomemos um exemplo. Os homens,
admitamos, abaterem as florestas da margem do Volga.
Devido a isto, a umidade se conserva menos, o clima varia
dentro de certo limite, baixam as águas dos rios, a
navegação se torna mais difícil, torna-se necessário pôr em
movimento um maior numero de dragas, de fabricar um
maior numero desses aparelhos, de empregar mais homens
na sua fabricação, etc; por outro lado, os animais que
habitavam estas florestas desaparecem, outras espécies
animais aparecem, os antigos morrem ou partem para países
onde haja florestas etc.. Mas podemos encarar outras
questões: se o clima muda, é evidente que o estado de todo
o planeta muda também, e desta maneira a mudança do
clima do Volga exerce a sua influencia mais ou menos em
toda parte. Mas, na realidade, se o aspecto da terra muda,
por pouco que seja, é evidente que as relações entre a terra

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A Teoria do Materialismo Histórico N. Bukarin

e a lua ou o sol mudam também. Escrevo neste momento


sobre papel, movo a minha pena, minha ação produz uma
ação sobre a mesa, a mesa exerce uma pressão sobre a
terra, e assim se produz uma série de outras modificações.
Movendo a pena, eu agito o ar, e as suas ondas perdem-se
não sabemos onde. Pouco importa que todas estas
modificações sejam ínfimas, elas não deixam por isso de
existir. Tudo está ligado no mundo por liames inextricáveis,
nada está isolado, nada independe do exterior. Em outros
termos, nada há no mundo que seja absolutamente isolado.
Certamente, não podemos sempre observar as relações
gerais entre os fenômenos: referindo-nos por exemplo, à
criação de galinhas não podemos, está visto, formular
problemas astronômicos concernentes ao sol e à lua; isto
seria perfeitamente ridículo, pois essas considerações sobre
as relações gerais entre os fenômenos de nada nos serviriam
na ocorrência. Mas, examinando problemas teóricos, somos
muitas vezes obrigados a tomar em consideração estas
relações. É preciso muitas vezes contar com elas na vida
prática. Quando se diz que um fulano não enxerga um palmo
adiante do nariz, o que entendemos por isto? Entendemos
que ele estuda o seu pequeno canto como um fenômeno
isolado, à margem de tudo o que envolve este seu campo. O
camponês leva os seus produtos ao mercado e pensa fazer
bons negócios. Ora, acontece que os preços estão tão baixos
que ele não pode cobrir as suas despesas. Como acontece
isto? A razão disto é que o camponês está ligado por meio
do mercado a outros produtores. Ele percebe que foi
produzido e trazido ao mercado uma tal quantidade de trigo

109
A Teoria do Materialismo Histórico N. Bukarin

que os preços caíram. Porque motivo enganou-se o nosso


camponês? Porque ele não viu (e ele não pôde ver do seu
pequeno recanto) os liames que o ligam ao mercado
mundial. Invés de se enriquecer depois da guerra, a
burguesia se encontrou em frente a uma Revolução operaria.
Por que? Porque a guerra estava ligada a toda uma série de
fenômenos que a burguesia não havia observado.
Os mencheviques, os socialistas-revolucionários, os social-
patriotas de todos os países afirmaram que o
poder bolchevique não se manteria senão muito pouco
tempo na Rússia. Por que cometeram eles este erro? Porque
consideraram a Rússia como um caso isolado, sem relação
com a Europa ocidental, separadamente da Revolução
mundial em progresso, que ajuda os bolcheviques. Quando
se diz correntemente e com muita razão que é preciso pesar
todas as circunstancias com isto se diz que é preciso
examinar um fenômeno ou certo problema nas suas relações
com os outros fenômenos e com as outras circunstancias,
em geral.

Assim, o método dialético de investigação de tudo que


existe exige um estudo de todos os fenômenos, primeiro nas
suas relações mutuas indissolúveis e segundo, no seu
movimento.

110
A Teoria do Materialismo Histórico N. Bukarin

22. O PONTO DE VISTA HISTÓRICO NAS CIÊNCIAS


SOCIAIS

Do fato de tudo se mover no mundo e de tudo estar


ligado indissoluvelmente, decorrem certas consequências
determinadas para as ciências sociais.

Estamos diante de uma determinada sociedade humana.


Teria ela sempre sido organizada da mesma maneira?
Absolutamente não. Conhecemos formas extremamente
variadas de sociedades humanas. Assim, na Rússia, por
exemplo, desde o mês de novembro de 1917, é a classe
operaria que está no poder; ela é seguida pelos camponeses;
a burguesia está segura; e uma parte (cerca de dois milhões)
fugiu para o estrangeiro. As fábricas, as usinas, as vias
férreas estão nas mãos do Estado operário. Outrora, antes
de 1917 era a burguesia e a nobreza que estavam no poder
e que possuíam tudo, enquanto os camponeses e os
operários trabalhavam para eles. E tempos mais antigos
ainda, antes da libertação dos servos, em 1861, a burguesa
era principalmente comercial e existiam poucas usinas.
Quanto aos nobres, estes possuíam os camponeses como se
possui o gado; eles podiam maltratá-los, vendê-los, ou
trocá-los. Se nos transportarmos a épocas muito afastadas,
encontramos povos nômades e semi-selvagens. Todas estas
coisas são tão pouco semelhantes entre si, que um nobre do
tempo da servidão, amador do knout e de cães de caça,
ressuscitado por milagre e trazido a uma reunião de comitê

111
A Teoria do Materialismo Histórico N. Bukarin

de usina ou de soviet, seria capaz de sucumbir de uma


ruptura de aneurisma.

Conhecemos também outras formas de sociedades. Na


Grécia antiga, por exemplo, no tempo em que filosofavam
os Platões e os Heráclitos, tudo era baseado sobre o trabalho
dos escravos, que constituíam a propriedade de grandes
proprietários do solo. No antigo Estado americano dos Incas,
a economia nacional era regulada e organizada, ela se
achava nas mãos da classe dos nobres e dos sacerdotes, uma
espécie de classe intelectual, que governava o país e dirigia
a economia nacional, como classe dominante, colocada
acima de todas as outras. Poderia-mos dar grande número
de outros exemplos para mostrar que a estrutura social
muda constantemente. Isto absolutamente não quer dizer
que a evolução do gênero humano esteja continuamente
progredindo, isto é, tendendo para um aperfeiçoamento
constante. Nós já vimos que havia casos em que sociedades
humanas muito desenvolvidas pereceram. Assim pereceu,
entre outros, o país dos sábios gregos e dos proprietários de
escravos. Mas a Grécia e Roma ao menos exerceram uma
influencia enorme sobre a marcha posterior dos
acontecimentos: Eles serviram de adubo para a história. Mas
aconteceu também que civilizações inteiras desapareceram
sem deixar traços de si. Eduardo Mayer escreve da seguinte
maneira a respeito dos vestígios de uma das mais antigas
"civilizações", vestígios descobertos na França por meio de
escavações:

112
A Teoria do Materialismo Histórico N. Bukarin

"...estamos diante da civilização do


homem primitivo em pleno
desenvolvimento... civilização que foi
destruída em seguida por uma
catástrofe grandiosa e que não exerceu
influência alguma sobre as épocas
posteriores. Não existe nenhuma ligação
histórica entre esta civilização paleolítica
e os princípios da época neolítica"... (Ed.
Mayer: Geschichte des Altertuns, 1.º
volume, 2.ª edição página 245).

Mas se não há sempre desenvolvimento, sempre há


movimento e transformação, mesmo se o fim é a
decomposição e a morte.

Não nos apercebemos deste movimento apenas porque


a ordem social muda. Não, a vida social se modifica
incontestavelmente em todas as suas manifestações. A
técnica da qual se serve a sociedade, evolui: é suficiente
comparar os machados e as pontas de lanças em sílex com
um martelo pilão, um dínamo, um telefone sem fio; a moral
e os costumes mudam: Sabe-se, por exemplo, que certos
povos comem com prazer os seus prisioneiros, coisa que
mesmo um imperialista francês é incapaz de fazer
diretamente; ele se contenta em cortar as orelhas dos
cadáveres pelas mãos de suas tropas negras que salvam a
civilização; em alguns povos existia o costume de matar os
velhos e as crianças do sexo feminino e este costume era

113
A Teoria do Materialismo Histórico N. Bukarin

considerado como altamente moral e sagrado. O regime


político muda: Vimos com nossos próprios olhos o
absolutismo substituído por uma Republica democrática e em
seguida pela dos Soviets; as concepções cientificas, a
religião, as condições de existência, as relações entre os
homens se transformam. O que nos parece habitual, não foi
sempre assim: os jornais, o sabão, a roupa, não existiram
sempre, nem tão pouco o Estado, a crença em Deus, o capital
ou os fuzis. Mesmo nossas concepções do falso e do feio
mudam igualmente. As formas da família não são tão pouco
imutáveis: Sabemos muito bem que existe a poligamia, a
poliandria, a monogamia e as "ligações irregulares". Em uma
palavra, a vida social tanto quanto tudo na natureza está
sujeita à continuas transformações.

Certamente, a sociedade humana passa por diversos


graus, por diferentes formas de desenvolvimento ou de
decadência.

Resulta daí, primeiramente, que é preciso compreender


bem e examinar cada uma destas formas sociais em todas
as suas particularidades. Isto quer dizer que não se pode
aplicar a mesma medida em todas as épocas, em todos os
tempos, em todas as formas sociais. Não se pode misturar
sem distinção os servos, os escravos, os proletários. Não é
possível deixar de ver a diferença entre um proprietário de
escravos grego, um russo nobre que comanda servos e um
industrial capitalista. O regime de escravidão, tem os seus
traços próprios, seu desenvolvimento particular. A servidão

114
A Teoria do Materialismo Histórico N. Bukarin

representa uma outra espécie de regime, o capitalismo uma


terceira, etc. E o comunismo é o regime do futuro; é um
regime todo particular. O período de transição que conduz ao
comunismo, a época da ditadura do proletariado, constitui
um regime a parte. Cada um destes regimes tem seus traços
particulares, que devem ser estudados. Somente então,
compreenderemos o processo de transformação. Com efeito,
se cada forma social tem os seus traços particulares, ela
deve também estar submetida a leis de evolução
particulares, a leis particulares de movimento. Tomemos,
como exemplo, o regime capitalista. Marx escreveu no
"Capital" que se propusera como problema "descobrir a lei
do movimento da sociedade capitalista". Neste
intuito, Marx teve de explicar todas as particularidades do
capitalismo, todos os seus traços característicos. E foi
somente desta maneira que Marx conseguiu descobrir "a lei
do movimento" e predizer a desaparição inevitável da
pequena produção em proveito da grande, o crescimento do
proletariado, o conflito entre este e a burguesia, a Revolução
da classe operaria e, ao mesmo tempo, a passagem ao
regime da ditadura do proletariado. Não é desta maneira que
procede a maioria dos historiadores burgueses. Eles
assimilam, por exemplo, frequentemente, os comerciantes
da antiguidade aos capitalistas contemporâneos, e a plebe
parasita da Grécia e de Roma aos nossos proletários
contemporâneos. A burguesia precisa destes processos para
mostrar a vitalidade do capitalismo e para provar que a
revolta dos proletários nada pode produzir, do mesmo modo
que a insurreição dos escravos da antiga Roma nada

115
A Teoria do Materialismo Histórico N. Bukarin

produziu. E entretanto, os "proletários", romanos nada têm


de comum com os operários modernos, do mesmo modo que
os comerciantes de Roma têm muito pouca semelhança com
os capitalistas de nossa época. O regime todo era outro; não
é portanto de espantar que a marcha da evolução da sua
existência fosse também outra. Segundo Marx, "cada
período histórico tem suas leis... mas logo que a vida
ultrapassa o período de uma dada evolução, que ela sai de
um determinado estágio, e passa para um outro, ela começa
a ser governada por outras leis". (K. Marx "O Capital", vol.
l.°). Quanto á sociologia, esta ciência social mais geral, que
estuda não as formas particulares da sociedade, mas a
sociedade em geral, é importante estabelecer esta
proposição como uma espécie de palavra de ordem para as
ciências sociais particulares, em frente às quais a sociologia,
como já sabemos, desempenha o papel de um método de
pesquisa.

Em segundo lugar é preciso estudar cada forma


particular no processo de sua transformação interna. É
preciso não pensar que uma forma social imóvel substitui
outra forma social também imóvel. Nunca acontece em uma
sociedade que o capitalismo, por exemplo, exista durante um
certo tempo em uma forma cristalizada, e que ele seja
substituído em seguida por um regime socialista também
imóvel. Na realidade, cada uma destas formas, evolui
continuamente durante toda a sua existência. Examinemos
um pouco a época capitalista. O capitalismo teria sido
sempre o mesmo? Absolutamente que não. Sabemos que ele

116
A Teoria do Materialismo Histórico N. Bukarin

atravessou "estágios" diferente na sua evolução: O


capitalismo comercial, industrial, financeiro com sua política
imperialista, o capitalismo de Estado durante a guerra
mundial. Mas, mesmo nos limites de cada um destes
períodos, conservou-se o capitalismo imóvel? Não. Se ele
estivesse imóvel, uma de suas formas não teria podido se
transformar em outra. Na realidade cada estágio precedente
preparava o seguinte. Assim, por exemplo, durante o período
do capitalismo industrial, tivemos o processo da
centralização do capital. É sobre esta base que se
desenvolveu em seguida o capitalismo financeiro, com seus
bancos e seus "trustes."

Em terceiro lugar, é preciso estudar cada forma social


nas suas origens e na sua desaparição inevitável, isto é,
relativamente a outras formas sociais. Nenhuma forma social
cai do céu; ela constitui uma consequência necessária do
estado precedente. É difícil às vezes determinar exatamente
os limites onde uma acaba e a outra começa; um período
superpõe-se ao outro. Em geral, as etapas históricas não têm
tamanhos fixos e imóveis; são processos, formas de
flutuação vital que mudam continuamente. Para
compreender convenientemente uma destas formas, é
preciso encontrar esta raiz no passado, examinar as causas
de seu aparecimento, as condições de sua formação, as
formas motrizes de seu desenvolvimento. É também
necessário estudar as causas de seu fim inevitável, a direção
do movimento ou, como se diz, as "tendências da evolução"
que determinam a desaparição inevitável dessa forma e

117
A Teoria do Materialismo Histórico N. Bukarin

preparo á sua substituição por um regime social novo. Assim,


cada etapa constitui um elo que se liga por suas duas
extremidades a outros elos. Mas se os sábios burgueses o
compreendem às vezes, quando se trata do passado, é-lhes
completamente impossível admitir que no presente, o
capitalismo, está destinado a morrer. Eles aceitam a
pesquisa das raízes do capitalismo, mas têm medo de pensar
que também é preciso procurar as condições que conduzirão
o capitalismo à sua ruína.

"É no esquecimento deste fato que


consiste, por exemplo, toda a essência
dos economistas contemporâneos, que
afirmam a perenidade e a harmonia das
relações sociais existentes" (K. Marx:
"Eínleitung zu einer Kritik der politischen
Oekonomie", p. XVI).

O capitalismo saiu do regime feudal graças ao


desenvolvimento da circulação das mercadorias. O
capitalismo se dirige para o comunismo pela ditadura do
proletariado. É somente depois de ter examinado a relação
do capitalismo com o regime precedente, assim como sua
transformação necessária em comunismo, que nós
compreenderemos esta forma social. É da mesma maneira
que devemos estudar qualquer outra forma social. Esta é
outra condição do método dialético; este ultimo pode
também ser chamado de concepção histórica, cada forma
nele sendo examinada não como eterna, mas também como

118
A Teoria do Materialismo Histórico N. Bukarin

historicamente passageira, como aparecendo em um


determinado momento histórico, para desaparecer em outro.

Esta concepção histórica de Marx nada tem de comum


com a pretensa "escola histórica" do direito e da economia
política. Esta escola reacionária considera seu dever principal
provar a lentidão de todas as transformações e defender
todas as puerilidades antigas, em virtude da sua idade
histórica venerável. É a respeito desta escola que Hehri
Heine escreve com razão:

Não vá à Fulda, não vá lá, meu amigo;


Lá o ar é pesado e pernicioso;
Tome cuidado com a polícia e os policiais:
E com toda a escola histórica
(Contos de inverno)

Manter as "santas tradições" — tal é a imperiosa


necessidade que se impõe á burguesia. Resulta daí desde
logo que os fenômenos, cujas origens se encontram em um
determinado período histórico, são considerados como
eternos, impostos por Deus, e, portanto, imutáveis. Vamos
citar alguns exemplos:

1.º: O Estado. Sabemos muito bem hoje em dia que o


Estado é uma organização de classe, que ele não pode existir
sem classes; que o Estado acima de todas as classes, é uma
fantasia como um quadrado redondo, e que o Estado nasceu
em um certo período da evolução humana.

119
A Teoria do Materialismo Histórico N. Bukarin

Mas, consultemos os sábios burgueses, e mesmo os


melhores!

E. Mayer escreve:

"Observei muitas vezes, há uns trinta


anos, entre os cães que enchem as ruas
de Constantinopla, até onde pôde
chegar a formação de agrupamentos
orgânicos de animais; eles se organizam
em grupos rigorosamente separados nos
diferentes bairros, onde não é permitida
a entrada de cães estranhos, e todas as
noites os cães do quarteirão organizam
reuniões em uma praça deserta,
reuniões estas que duravam meia hora
aproximadamente e eram
acompanhadas de latidos fortes. Pode-
se, por conseguinte, falar neste caso em
Estados de cães limitados no espaço".
(E. Mayer: "Geschichte des Altertums.
Elemente der Anthropologie", pag. 7).

Nada admira, que depois disto Meyer considere o Estado


como uma propriedade imutável da sociedade humana! Se
até os cães têm os seus Estados (e, por conseguinte, leis,
direitos, etc.) como poderiam os homens dispensá-los?

120
A Teoria do Materialismo Histórico N. Bukarin

2.°: É de uma maneira análoga que os economistas


burgueses consideram o capital. Sabemos perfeitamente que
o capitalismo, como o próprio capital, não existiu sempre.

Os capitalistas e os operários são formações históricas


que nada têm de eternas. Entretanto, os sábios burgueses
sempre definiram o capital como se o capital e o regime
capitalista sempre tivessem existido. Assim, Torrens
escreve:

"Na primeira pedra que o selvagem atira


contra a caça, na primeira vara que ele
usa para colher frutos... vemos a
apropriação de objetos com o fim de
adquirir outros, e descobrimos assim a
origem do capital". (K. Marx, "o Capital",
t. 1, anotação).

"É assim que um macaco que derruba


nozes é um capitalista" (é verdade que
sem operário)!

Os economistas burgueses mais modernos não


raciocinam melhor. Para provar a perenidade do poder, são
os coitados forçados a equiparar cachorros a Lloyds Georges;
macacos a Rothschilds.

3.º: Os burgueses que estudam a questão do


imperialismo definem frequentemente este ultimo como uma
tendência de qualquer forma vital para a sua expansão.

121
A Teoria do Materialismo Histórico N. Bukarin

Sabemos perfeitamente que o imperialismo, é a política do


capital financeiro, que o próprio capital financeiro nasceu
somente no fim do século XIX como forma econômica
dominante. Mas os sábios burgueses disso não se
preocupam. Para mostrar que "sempre foi assim e que
sempre será assim", eles elevam a galinha que cisca ao nível
dos imperialistas, porque ela "anexa" o grão! O cão
estadista, o macaco capitalista e a galinha imperialista
caracterizam suficientemente o nível da ciência burguesa
moderna.

23. AS CONTRADIÇÕES NA EVOLUÇÃO HISTÓRICA

Assim, é a lei da variação, a lei do movimento incessante


que constitui a base de tudo. Dois filósofos, um antigo
(Heráclito), outro mais moderno (Hegel), como vimos
defenderam a concepção segundo a qual tudo o que existe
muda e se move. Mas eles não se limitaram a isto.
Formularam também a pergunta de como se processa este
movimento. E foi assim que descobriram o fato das variações
serem provocadas pelas contradições internas crescentes,
por uma luta interior.

"A luta é a mãe de tudo o que se passa",


dizia Heráclito.

"A contradição, é aquilo que impele para


frente", escreveu Hegel.

122
A Teoria do Materialismo Histórico N. Bukarin

Esta proposição é incontestavelmente exata. Com efeito,


imaginemos um instante que não haja no mundo nenhum
conflito de forças, nenhuma luta, que as forças diferentes
não sejam dirigidas umas contra as outras. O que significaria
isto? Significaria que o mundo inteiro se acha em estado de
equilibro, isto é, em estado de estabilidade inteira e absoluta,
em estado de completo repouso, excluindo qualquer
movimento. Onde vemos nós o repouso? Ele existe nos
lugares onde todas as parcelas, todas as forças se encontram
de tal forma relacionadas que entre elas não haja lugar para
conflito, noutras palavras, onde não existe nenhuma
contradição, nenhuma oposição de forças em luta, onde o
equilíbrio jamais se rompe, onde domina, pelo contrario,
uma perfeita estabilidade. Mas nós já sabemos que de
fato "tudo se move", "tudo corre". O repouso, a estabilidade
absoluta não existem. Vamos explicar isto de uma forma
mais precisa.

Como sabemos, a biologia (ciências dos organismos)


fala em adaptação. Compreende-se pelo nome de adaptação
um estado de coisas em que aquilo que se adapta à outra
pode coexistir por muito tempo com ela. Se, por exemplo, se
diz que uma espécie de animais "adaptou-se" à um certo
meio, isto quer dizer que ela pode viver neste meio; ela se
habituou a este ultimo, e suas qualidades são tais que lhe
permitem viver nele. Uma toupeira está "adaptada" às
condições que ela encontra debaixo da terra, um peixe está
adaptado à água; mas jogai uma toupeira na água ou
enterrai um peixe, ambos morrerão.

123
A Teoria do Materialismo Histórico N. Bukarin

Observamos também um fenômeno análogo na, por


assim dizer, natureza "morta"; assim, a terra não cai sobre
o sol, e sim gira em torno dele, sem nele "esbarrar". O
sistema solar por inteiro se encontra em relação com o resto
do universo de tal maneira que ele pode existir de uma forma
durável, etc. Aqui, fala-se habitualmente, não mais de
adaptação, mas de equilíbrio entre os corpos, entre os
sistemas de corpos, etc.

Enfim, observamos também um fenômeno análogo na


sociedade. A sociedade vive bem ou mal no meio da
natureza; a ela se "adaptou" mais ou menos bem, com ela
se acha em equilíbrio mais ou menos instável. Enquanto vive,
as suas diferentes partes estão adaptadas umas às outras de
tal maneira que a sua coexistência é possível; com efeito, os
capitalistas e os operários coexistem já há muito tempo!

Por estes exemplos, se vê que na realidade, trata-se em


ambos os casos de uma mesma coisa: do equilíbrio. Se assim
é, porque falar em contradições e em lutas? Ao contrario, a
luta é uma ruptura de equilíbrio! Pois bem, o equilíbrio que
observamos na natureza e na sociedade não é absoluto e
nem imóvel: é um equilíbrio instável. Toda a questão
repousa nisto; o que significa este termo? significa que o
equilíbrio uma vez estabelecido logo se destrói, para se
restabelecer em outra base, e ser novamente destruído. E
assim por diante.

A noção exata de equilíbrio é mais ou menos a seguinte:

124
A Teoria do Materialismo Histórico N. Bukarin

"Diz-se que um determinado sistema


está em equilíbrio quando não pode por
si mesmo sair desse estado, isto é, sem
o auxilio de uma energia exterior".

Se, por exemplo, forças que se equilibram mutuamente


exercem uma pressão sobre um corpo qualquer, este ultimo
se acha em estado de equilíbrio; é suficiente diminuir ou
aumentar uma destas forças para que o equilíbrio seja
destruído.

Se um corpo volta rapidamente ao seu equilíbrio


momentaneamente rompido, diz-se que o equilíbrio é
estável; no caso contrario, isto é, quando o corpo não volta
ao estado de equilíbrio anterior diz-se que o equilíbrio é
instável. Nas ciências naturais, distingue-se o equilíbrio
mecânico, químico, biológico (Ver "Handworterbuch der
Naturwissenschaften", tomo 2, pag. 470-518). Pode-se
ainda exprimir isto de outra maneira. Existem no mundo
forças diferentes dirigidas umas contra as outras. Elas não
se equilibram mutuamente senão em casos excepcionais. É
então que vemos aparecer um estado de "repouso", isto é,
que a "luta" real entre estas forças não é aparente. Mas basta
que uma destas forças mude para que as "contradições
internas" apareçam, para que o equilíbrio se rompa, e um
outro equilíbrio se estabelece então, cujo princípio será
outro, com combinações de forças diferentes, etc. O que
podemos concluir daí? Concluímos que a "luta", as

125
A Teoria do Materialismo Histórico N. Bukarin

"contradições", isto é, os antagonismos entre as forças


dirigidas diferentemente determinam o movimento.

Por outro lado, vemos também aqui a forma destes


processos: em primeiro lugar, o estado de equilíbrio, em
segundo lugar a ruptura deste equilíbrio, em terceiro lugar o
restabelecimento do equilíbrio em uma base nova. Em
seguida, a história recomeça: o novo equilíbrio torna-se o
ponto de partida de uma nova ruptura de equilíbrio, e assim
por diante, até o infinito. Temos diante dos olhos, em
conjunto, o processo dum acontecimento determinado pelo
desenvolvimento das contradições internas.

Hegel, apercebeu-se deste caráter do movimento e


exprimiu-o da seguinte maneira: ele denominou o equilíbrio
primitivo "tese"; a ruptura de equilíbrio, "antítese", isto é,
oposição; o restabelecimento de equilíbrio sobre uma nova
base, "síntese" (estado de unificação na qual todas as
contradições entram em acordo). É a este caráter do
movimento de tudo o que existe, expresso em uma formula
composta de três partes (a tríade), que Hegel deu o nome
de dialética.

O termo "dialética" significava para os antigos gregos a


arte de falar, de discutir. Como é que se discute quando dois
homens se contradizem? Um diz uma coisa, outro uma coisa
contraria (esse "nega" aquilo que diz o primeiro); enfim, "a
verdade nasce da discussão" e contém aquilo que era
verdadeiro nas duas afirmações (a síntese). É também da

126
A Teoria do Materialismo Histórico N. Bukarin

mesma maneira, que se desenvolve o processo do


pensamento. Hegel, sendo idealista, representava tudo
como o desenvolvimento independente do espírito. Está claro
que ele nunca pensou em rupturas de equilíbrio. As
qualidades do pensamento, este sendo uma coisa espiritual
e primaria, eram para ele, por esta razão, as qualidades da
existência. A este propósito, Marx escreveu

"o método dialético não somente difere,


quanto ao fundo, do método de Hegel,
mas ainda ele lhe é completamente
oposto. ParaHegel, o processo do
pensamento, que ele transforma, sob o
nome de idéia, em um sujeito
independente, é a sua manifestação
exterior. Para mim, ao contrario, a idéia
não é mais do que o mundo material
traduzido e transformado pelo cérebro
humano." "A dialética de Hegel está
colocada de pernas para cima. É preciso
colocá-la de cabeça para cima, para
descobrir o núcleo racional sob o seu
envelope místico". (Marx: "O Capital",
tomo 1, prefacio).

Para Marx, a dialética, isto é, o desenvolvimento pelas


contradições, é, antes de tudo, a lei de "existência", a lei do
movimento da matéria, a lei do movimento da natureza e da
sociedade. O processo do pensamento não é senão a sua

127
A Teoria do Materialismo Histórico N. Bukarin

expressão. O método dialético, a maneira dialética de pensar


é indispensável, porque ela permite apanhar a dialética da
natureza.

Nós consideramos perfeitamente possível traduzir a


linguagem "mística", como a chamou Marx, da dialética
de Hegel, para a linguagem da mecânica moderna. Há
relativamente pouco tempo quase todos os marxistas
protestaram contra as definições de ordem mecânica. Eles
agiram assim porque a antiga concepção dos átomos
considerava estes últimos como parcelas isoladas, sem
nenhuma ligação umas com as outras. Na hora atual, graças
à teoria dos elétrons e dos átomos considerados como
sistemas inteiros, análogos ao sistema solar, não há mais
razão para temer as definições mecânicas. A corrente mais
adiantada do pensamento cientifico formula em toda parte o
problema exatamente desta maneira. Marx faz claramente
alusão a uma maneira análoga de formular a pergunta (a
teoria do equilíbrio entre os diversos ramos da produção, a
teoria do valor do trabalho que se prende a ela, etc.).
Podemos considerar qualquer objeto seja ele uma pedra, um
ser vivo, a sociedade humana ou outro, como um composto
de elementos ligados entre si. Em outros termos, podemos
examinar este conjunto como um sistema. Cada objeto deste
gênero (sistema) não existe no vazio; ele está envolto por
outros elementos da natureza que constituem o seu
ambiente (meio). Para uma arvore que cresce em uma
floresta, seu meio é constituído por outras arvores, pelos
riachos, pela terra, pela erva, os arbustos, etc., com todas

128
A Teoria do Materialismo Histórico N. Bukarin

as suas qualidades. Para um homem, o ambiente, é a


sociedade humana, dentro da qual ele vive (daí vem o termo
"meio"). Para a sociedade humana, o meio é constituído pela
natureza exterior, etc. Existe uma relação constante entre o
meio e o sistema. O "meio" exerce uma influencia sobre o
"sistema"; este ultimo influi por sua vez sobre o "meio".
Devemos em primeiro lugar responder a uma questão de
princípio: Quais são as relações entre o meio e o sistema?
Como podem ser determinadas? Quais são as suas formas?
Que significação têm elas para o sistema?

Entre estas relações, distinguimos imediatamente três


tipo principais:

1.° O equilíbrio estável. — O equilíbrio estável se produz


quando as relações mutuas entre o meio e o sistema se
exprimem por um estado de coisas constante, ou então por
desordens passageiras, depois das quais o sistema volta ao
estado primitivo. Suponhamos, por exemplo, uma espécie de
animais vivendo na estepe. O meio em si não muda, a
quantidade de alimentação necessária para essa espécie
permanece constante. A quantidade de feras tão pouco
muda: Todas as moléstias de origem microbiana (tudo isto
compõe o "meio") reinam nas mesmas proporções. O que
acontecerá então? Em geral, o numero dos animais, ficará
invariável: uns morrerão ou perecerão por culpa das feras,
outros nascerão, mas a espécie em questão, em tais
condições do meio, será considerada tal qual ela sempre foi.
Temos aqui um exemplo de estagnação. Por que? Porque a

129
A Teoria do Materialismo Histórico N. Bukarin

relação entre o sistema (a espécie de animais considerada)


e o seu meio permanece invariável. Temos aqui um caso de
equilíbrio estável. Este ultimo não está sempre em um
estado de completa imobilidade. O movimento pode existir,
mas cada ruptura de equilíbrio é seguida pelo seu
restabelecimento sobre a base antiga. Neste caso, a oposição
entre o meio e o sistema se repete constantemente na
mesma relação quantitativa. O mesmo exemplo nos é
oferecido por uma sociedade em estagnação (tornaremos a
falar disto em detalhe mais adiante). Se a relação entre a
sociedade e a natureza permanece a mesma, isto é, se esta
sociedade, pela sua produção, tira da natureza tanta energia
quanto ela mesma perde, a oposição entre a sociedade e a
natureza se reproduzirá sempre na sua forma antiga. A
sociedade não sai do lugar, e estamos em presença de um
equilíbrio estável.

2.° O equilíbrio instável com sinal positivo (o


desenvolvimento do sistema). — De fato, o equilíbrio estável
não existe. Não é senão uma ficção "ideal". Na realidade, a
relação entre o meio e o sistema nunca se reproduz nas
mesmas proporções. Em outros termos, a ruptura de
equilíbrio não traz, na realidade, a reconstituição deste sobre
a mesma base, mas, pelo contrario, um novo equilíbrio que
se estabelece em uma nova base. Vamos supor por exemplo,
voltando aos animais dos quais já tratamos acima, que a
quantidade de feras diminuiu por uma razão qualquer e que,
pelo contrario, a quantidade de alimentos aumentou. Não é
duvidoso, que neste caso, o numero de animais aumentará.

130
A Teoria do Materialismo Histórico N. Bukarin

Nosso "sistema" se desenvolverá, um novo equilíbrio se


estabelecerá sobre uma base mais elevada. Estamos aqui em
presença de um desenvolvimento. Em outras palavras, a
oposição entre o meio e o sistema mudou quantitativamente.

Se invés de animais, tomamos uma sociedade humana


e supomos que a relação entre ela e a natureza muda de tal
forma que a sociedade tira da natureza mais energia do que
perde (o solo se tornou fértil ou então inventaram-se novos
instrumentos, etc.), então essa sociedade crescerá, e não
mais marcará passo. O novo equilíbrio será cada vez
diferente. A oposição entre a sociedade e a natureza se
reproduzirá cada vez sobre uma mesma base "mais
elevada", graças a qual o sistema aumentará, e se
desenvolverá. Estamos aqui em presença de um equilíbrio
por assim dizer, de sentido positivo.

3.º Equilíbrio instável, com sinal negativo (a destruição


do sistema). — Um caso absolutamente contrario pode-se
apresentar, quando o equilíbrio se estabelece sobre uma
base "inferior". Vamos supor por exemplo, que a quantidade
de alimentos tenha diminuído para os nossos animais, ou
então, que o numero de feras que deles se alimentavam
tenha aumentado. Neste caso, nossa espécie tenderá a
"desaparecer". O equilíbrio entre o meio e o sistema se
restabelecerá cada vez à custa de uma parte deste sistema;
as oposições se reproduzirão sobre uma outra base no
sentido negativo. Examinemos o exemplo da sociedade.
Vamos supor que a relação entre a natureza e a sociedade

131
A Teoria do Materialismo Histórico N. Bukarin

muda de tal forma que esta última seja obrigada a perder


cada vez mais energia e receber cada vez menos (o solo se
esgota, os meios técnicos pioram, etc.). Então, o novo
equilíbrio se restabelecerá cada vez sobre uma base inferior,
em detrimento da sociedade, e uma parte desta perecerá.
Teremos aqui um movimento no sentido negativo, a
sociedade caminhará para a decomposição e a morte.

Pode-se reduzir todos os casos a um destes três. Na


base do movimento, como já vimos, acha-se na realidade, a
oposição entre o meio e o sistema, oposição que renasce
continuamente.

Mas o problema apresenta ainda um outro aspecto. Não


falamos até este momento senão nas contradições entre o
meio e o sistema, nas contradições externas. Mas existem
também contradições internas, no interior do próprio
sistema. Cada sistema é composto de diferentes elementos
ligados entre si; a sociedade humana é composta de
homens; a floresta, de arvores e arbustos; um rebanho, de
animais; um monte, de pedras, etc... É entre estes
elementos componentes que se encontra um grande numero
de oposições, de encontros, de conflitos. Um equilíbrio
absoluto não prevalece. Se, estritamente falando o equilíbrio
absoluto entre o meio e o sistema nunca se realiza, não
existe tão pouco um tal equilíbrio entre os elementos do
mesmo sistema.

132
A Teoria do Materialismo Histórico N. Bukarin

É pelo exemplo do sistema mais complexo, o da


sociedade humana, que melhor verificamos isto. Não
encontramos nele um numero infinito de contradições? A luta
das classes é a expressão mais clara destas "contradições
sociais" e sabemos que "a luta de classes é a alavanca da
historia". As oposições entre as classes, entre os
agrupamentos, entre as idéias, as oposições entre os modos
de produção e de repartição, a desordem na produção — a
anarquia capitalista da produção — tudo isto forma uma
corrente sem fim de contradições e constitui outras tantas
contradições no interior do sistema, devidas à própria
estrutura desta última (contradições da estrutura).
Entretanto, estas contradições por si mesmas não destroem
a sociedade. Elas podem destruí-la (quando por exemplo as
duas classes em luta perecem em uma guerra civil), mas elas
podem muitas vezes não destruí-la.

Neste ultimo caso, é preciso que exista um equilíbrio


instável entre os elementos da sociedade. A analise deste
equilíbrio será objeto de nosso estudo ulterior. No momento
só uma coisa nos importa: não se pode considerar a
sociedade, como o fazem frequentemente os sábios
burgueses, como se não existissem no seu seio contradições.
Ao contrario, o estudo cientifico da sociedade pressupõe o
exame desta do ponto de vista das contradições que ela
encerra. "A evolução" histórica é uma evolução contraditória.

É preciso que detenhamos nossa atenção também sobre


um fato ao qual voltaremos muitas vezes nesta obra. Como

133
A Teoria do Materialismo Histórico N. Bukarin

já dissemos, há duas espécies de contradições: entre o meio


e o sistema e entre os elementos do próprio sistema. Existirá
uma ligação qualquer entre estes dois fenômenos?

Basta refletir um instante para responder


afirmativamente.

É evidente que a estrutura interior do sistema (o


equilíbrio interno) deve mudar segundo as relações
existentes entre o sistema e o meio. A relação entre o
sistema e o meio é um fator que determina com efeito o
estado do sistema; as formas essenciais de seu movimento
(decadência, desenvolvimento, estagnação), são
determinadas por esta relação.

Examinemos a questão da seguinte maneira: Vimos


acima que o caráter do equilíbrio entre a sociedade e a
natureza determina a linha essencial do movimento social.
Nestas condições a estrutura interna poderá desenvolver-se
por muito tempo em uma direção contraria? Certamente que
não. Admitamos que estamos tratando de uma sociedade em
desenvolvimento. Será possível que, nestas condições, a
estrutura interna da sociedade piore continuamente?
Certamente que não. Se entretanto, graças à sua estrutura,
a situação interna se agrava, enquanto a sociedade em si se
desenvolve, isto é, se a sua desordem interna aumenta, isto
prova que estamos em presença de uma nova contradição
entre o equilíbrio interno e externo. O que acontecerá então?
Se a sociedade continua a se desenvolver ela será obrigada

134
A Teoria do Materialismo Histórico N. Bukarin

a se reconstruir; isto quer dizer que a sua estrutura interna


deverá se adaptar ao caráter do equilíbrio externo. Por
conseguinte: o equilíbrio interno (da estrutura) é um fator
que depende do equilíbrio externo. Ele é "função" deste
equilíbrio externo.

24. A TEORIA DAS TRANSFORMAÇÕES POR SALTOS E A


TEORIA DAS TRANSFORMAÇÕES REVOLUCIONÁRIAS NAS
CIÊNCIAS SOCIAIS

Falta-nos agora examinar o ultimo lado do método


dialético, a saber: a teoria das transformações por saltos.
Como sabemos, existe uma opinião muito generalizada,
segundo a qual a natureza não dá saltos (natura non facit
saltus). Esta sábia locução é usada habitualmente para
provar de uma maneira "sólida" a impossibilidade da
Revolução, bem que as Revoluções continuem a existir,
apesar de todos os sábios professores. Mas, na realidade,
será a natureza tão moderada e ordenada quanto afirmam?

Hegel escreve a este respeito na sua "ciência da lógica"


("Wissenschaft der Logic", Hegels Werke, 2.ª edição, v. 3,
pag. 434):

"Diz-se que a natureza ignora os saltos


e isto é claro quando se trata de uma
simples aparição ou desaparição no
sentido de um desenvolvimento
gradual; ora, a transformação não é

135
A Teoria do Materialismo Histórico N. Bukarin

somente quantitativa, mas também


qualitativa, e consiste na aparição de
uma coisa nova, diferente, na ruptura da
forma do ser."

O que significa isto?

Hegel fala da passagem da quantidade à qualidade.


Vamos explicar isto com um exemplo muito simples. Vamos
supor que aquecemos água. Enquanto a temperatura estiver
abaixo de 100°, ela não entrará em ebulição e não se
transforma em vapor. Suas parcelas se agitam cada vez mais
rapidamente mas não surgem na superfície em estado de
vapor. Não observamos senão uma transformação de
quantidade, as partículas se agitam cada vez mais
rapidamente, a temperatura sobe, mas a água continua
água, com todas as suas qualidades. A quantidade muda
continuamente, mas a qualidade permanece a mesma. Mas
quando a água chegar à temperatura de 100°, isto é, no
ponto de ebulição, ela começa a ferver bruscamente, como
se as parcelas, que giravam com uma velocidade vertiginosa,
tivessem perdido a cabeça e saltado à tona em forma de
bolhas de vapor. A água deixa de ser água: ela torna-se
vapor, gás. É uma nova matéria, tendo novas qualidades.
Aqui notamos duas particularidades principais no processo
de transformação.

Em primeiro lugar, num certo grau de movimento, as


transformações quantitativas provocam modificações

136
A Teoria do Materialismo Histórico N. Bukarin

qualitativas (ou, como se diz mais brevemente: "a


quantidade se transforma em qualidade"); em segundo
lugar, esta passagem da quantidade à qualidade faz-se por
um salto, a continuidade e a "gradação" sendo bruscamente
transtornadas. A água não se transforma constantemente e
em sábia progressão, primeiro em um "pequeno" vapor, que
em seguida se torna um "grande vapor. Ela não ferveu até
um certo momento, mas começou a fazê-lo no momento em
que chegou a um certo "ponto". É a isto que se denomina
um salto.

A transformação da quantidade em qualidade é uma das


leis essenciais do movimento da matéria, que pode ser
seguida na natureza e na sociedade, literalmente passo a
passo. Suspendei um peso a um fio e juntai pouco a pouco
pesos suplementares. Até um certo limite, o fio resiste, mas
logo que ultrapassarmos um certo limite, ele se quebra
instantaneamente (por salto). Condensai o vapor numa
caldeira. Até um certo momento, tudo irá bem; somente o
ponteiro do manômetro (instrumento que indica a pressão
do vapor) marcará uma mudança quantitativa da pressão
exercida pelo vapor sobre as paredes da caldeira. Mas logo
que a agulha tiver passado de um certo limite, a caldeira
arrebentará. A pressão do vapor foi um pouco maior do que
a resistência das paredes. Até este momento, as
transformações quantitativas não tiveram como
consequência um "salto", uma transformação qualitativa,
mas chegando a um certo ponto, a caldeira estourou. Muitos
homens são incapazes de levantar uma pedra; um homem

137
A Teoria do Materialismo Histórico N. Bukarin

se junta a eles, e eles ainda não conseguem levantá-la;


chega uma mulher fraca e todos era conjunto levantam a
pedra. Foi necessário um muito pequeno suplemento de
força, e com ele, foi possível levantar a pedra. Tomemos
ainda um exemplo no domínio da sensação humana. Existe
um conto de Léon Tolstoi intitulado "três pães e um bolinho",
que trata do seguinte: um homem tinha fome e não
conseguia matá-la; ele come um pão e a fome continua; ele
come um outro e a fome persiste; o mesmo acontece depois
do terceiro; mas depois de comer o bolinho, ele percebe
repentinamente que não tem mais fome. Ele começa então
a se injuriar por não ter comido em primeiro lugar o bolinho;
não teria sido preciso, diz ele, comer os três pães.
Entretanto, está claro que o homem se engana. Aqui
também, a transformação qualitativa, a passagem da
sensação de fome à sensação de saciedade, produz-se mais
ou menos por "salto" (depois do bolinho). Mas esta
transformação qualitativa foi preparada por uma
transformação quantitativa: se ele não tivesse comido os
pães, o bolinho não o teria saciado.

Vemos assim que é absurdo negar os "saltos" e de falar


somente em progressão prudente. Na realidade,
frequentemente encontramos saltos na natureza e o ditado
segundo o qual "a natureza não dá saltos" não é senão a
expressão de um medo dos "saltos" na sociedade, isto é, a
expressão do medo das revoluções.

138
A Teoria do Materialismo Histórico N. Bukarin

É característico verificar que as antigas teorias


burguesas relativas ao problema da origem do mundo eram
teorias catastróficas, certamente muito ingênuas e inexatas.
Assim é, por exemplo, a teoria de Cuvier. Ela foi substituída
em seguida pela teoria da evolução que trouxe muita coisa
nova, mas que, por princípio, negava os saltos. Em geologia,
por exemplo, assim são as teorias Lyell ("Principies of
Geology); mas, desde o fim do século passado, viram-se
aparecer novamente teorias que reconhecem o importante
papel desempenhado pelos saltos. Assim a teoria do botânico
De Vries ("La theorie des Mutations": "mutation" — mudança
súbita", que afirma, que de tempos em tempos, como
consequência de modificações anteriores, produzem-se
transformações súbitas, que em seguida, se consolidam e
tornam-se o ponto de partida de uma nova evolução. Não se
vai longe hoje em dia com as antigas concepções que
negavam os "saltos". Estas concepções (Leibnitz diz, por
exemplo: "Tudo na natureza caminha gradativamente e nada
por saltos") se originam evidentemente no conservadorismo
social.

Se os sábios burgueses negam o caráter contraditório da


evolução, eles o fazem de medo da luta de classe e com o
fim de encobrir as contradições sociais. Da mesma maneira,
o medo dos saltos se baseia no medo da revolução. Toda
esta sabedoria se reduz ao seguinte raciocínio: a natureza
ignora os saltos que não existem e não podem existir.
Portanto, proletários, não pensai em fazer a Revolução!

139
A Teoria do Materialismo Histórico N. Bukarin

Mas nota-se aqui com clareza a que ponto a ciência


burguesa contradiz os postulados científicos os mais
essenciais. Com efeito, todos sabem que houve um grande
numero de revoluções É impossível negar a Revolução
inglesa ou a grande Revolução Francesa ou ainda a de 1848,
ou enfim a Revolução Russa de 1917-1921. E, se estes saltos
se produzem na vida social, não compete à ciência "negá-
los", isto é, esconder-se diante da realidade como o avestruz,
mas sim compreendê-los e explicá-los.

As revoluções na sociedade são o equivalente dos saltos


na natureza. Elas não são devido a surpresas. Elas são
preparadas pela evolução anterior, como a ebulição da água
é preparada pelo aquecimento ou a explosão da caldeira pela
crescente pressão do vapor sobre as suas paredes. A
revolução na sociedade, é a sua reconstrução, "a modificação
do sistema no ponto de vista de sua estrutura"; ela decorre
infalivelmente como consequência de uma contradição entre
a estrutura da sociedade e as necessidades de seu
desenvolvimento.

Diremos adiante como isto se produz. No momento, é


preciso saber uma coisa:

"tanto na sociedade quanto na natureza,


certas coisas se fazem por saltos; na
sociedade, tanto quanto na natureza,
estes saltos são preparados pela marcha
anterior dos acontecimentos ou em

140
A Teoria do Materialismo Histórico N. Bukarin

outros termos, na sociedade e na


natureza a evolução (desenvolvimento
gradual) conduz para a Revolução
(salto): os saltos pressupõem uma
modificação continua, e a modificação
contínua conduz aos saltos. São dois
momentos necessários do mesmo
processo" (Plekhanov: "Criticas de
nossas criticas", 1903.)

O problema das contradições na evolução e dos saltos


constituem um dos pontos essenciais da teoria. Toda uma
série de escolas e de tendências burguesas podem ser hostis
à teleologia, favorável ao determinismo, etc. Mas elas
tropeçam cada vez que tocam neste problema.

A teoria de Marx não é uma teoria evolucionista, mas


revolucionaria. É por esta razão que ela é inaceitável para os
teóricos da burguesia. E é por esta razão que eles estão
prontos a "admitir" tudo nesta teoria, com exceção... da
dialética revolucionaria. A sua critica do marxismo segue
habitualmente a mesma linha. Assim, por exemplo, o
professor alemão Werner Sombart se inclina
respeitosamente diante de Marx enquanto se trata de
evolução, mas ele começa imediatamente a atacá-lo quando
verifica os elementos revolucionários do marxismo. Teorias
completas são forjadas com este fim. Marx, dizem, é um
sábio enquanto é evolucionista, mas, logo que ele se torna,
mesmo em teoria, revolucionário, deixa de ser sábio, deixa-

141
A Teoria do Materialismo Histórico N. Bukarin

se levar por paixões revolucionárias e abandona a ciência. O


Sr. Pierre Strouvé, ex-marxista, autor do primeiro manifesto
da social-democracia russa, tornou-se, em seguida, líder
monarquista e principal teórico da contra-revolução;
também começou a sua critica de Marx pela teoria dos
saltos. Plekhanov, que era então revolucionário, escreveu a
este respeito:

"O sr. Strouvé encarregou-se de nos


mostrar que a natureza não dá saltos, e
que o intelecto (a razão) não os admite.
Como se explica isto? Talvez não tenha
ele em vista senão o seu próprio
intelecto que, com efeito, não suporta
saltos pela simples razão de que o Sr.
Strouvé, como se diz, não pode suportar
uma certa ditadura ("Critica de nossas
criticas"). A pretensa "escola orgânica",
os "positivistas", os partidários de
Spencer, os evolucionistas, etc., são
todos adversários dos saltos, pois eles
não gostam de "uma certa ditadura".

142
A Teoria do Materialismo Histórico N. Bukarin

CAPÍTULO IV

A SOCIEDADE
25. CONCEPÇÕES DOS AGREGADOS. AGREGADOS
LÓGICOS E REAIS

Não são somente os corpos simples que se apresentam


a nós como entidades (por exemplo, uma folha de papel,
uma vaca ou o sr. tal). Falamos frequentemente de unidades
complexas, de grandezas complexas. Estudando o
movimento de uma população, dizemos: o numero de
nascimentos do sexo masculina aumentou de tanto, em um
certo espaço de tempo. Este "numero de crianças do sexo
masculino" se apresenta como uma quantidade completa,
composta de unidades particulares e considerada como um
todo (ou agregado estatístico). Falamos também em floresta,
classe, sociedade humana, e sentimos imediatamente que
temos diante de nós uma quantidade composta, considerada
como um todo, mas sabemos ao mesmo tempo que este todo
é composto de elementos independentes até um certo ponto:
a floresta é composta de arvores, de arbustos, etc. uma
classe — de homens particulares, pertencentes à esta classe.
Estas quantidades complexas são denominadas agregados.

Já vimos, entretanto, pelos exemplos citados, que estes


agregados podem ser diferentes: quando falamos das
crianças do sexo masculino nascidas em 1921, ou da floresta
de Fontainebleau, sente-se distintamente a diferença. Em

143
A Teoria do Materialismo Histórico N. Bukarin

que consiste essa diferença? Não é difícil notá-la. Com efeito,


quando falamos das crianças, estas ultimas não estão
ligadas, realmente, na vida, e por si mesmo; uma se
encontra em determinado lugar, outra em outro lugar, uma
não influi de maneira alguma sobre a outra, cada uma vive
aparte. Somos nós que as unimos, somos nós que as
recenseamos, somos nós que fazemos delas um agregado.
Este é imaginado, feito sobre o papel, mas não é de maneira
alguma vivo e nem real. Tais agregados artificiais são
denominados fictícios ou lógicos. Isto se apresenta
diferentemente quando falamos de sociedade, floresta ou de
classe. Aqui, a união dos elementos que as compõem não é
somente fictícia (lógica). Com efeito, temos diante de nós
uma floresta com suas arvores, seus arbustos, suas ervas,
etc. Não vemos aqui uma união na vida? Certamente que
sim. A floresta não é uma simples reunião de elementos
diversos, pois todas estas parcelas influem continuamente
umas sobre as outras, ou como se diz, acham-se em relação
de reciprocidade permanente. Abatei uma parte destas
arvores e é possível que uma parte das que ficam morra, por
falta de umidade; por outro lado, em outro lugar, outras
arvores crescerão melhor, pois recebem mais sol. Assim,
estamos em presença da "ação recíproca" das partes que
compõem "a floresta", e esta ação é perfeitamente real e não
imaginada por nós com um certo fim. Mas ainda: esta ação
recíproca é durável e continua enquanto existe o agregado.
Estes agregados são denominados agregados reais.

144
A Teoria do Materialismo Histórico N. Bukarin

É preciso não esquecer entretanto que todas estas


diferenças são muito relativas. Com efeito, estritamente
falando, as unidades "simples" não existem. Um senhor
fulano de tal, é realmente, uma colônia de células, isto é, um
corpo extremamente complexo. Um átomo, como sabemos,
também se decompõe. E nenhum limite de divisibilidade
existindo em princípio, nenhuma "simplicidade" existe tão
pouco, no fim de contas. As diferenças que nós verificamos
não deixam de ter, apesar disso, um certo valor dentro de
certo limite: um indivíduo é um corpo simples e não
agregado, quando considerado em relação à sociedade; ele
é um corpo composto, um agregado real, relativamente a
uma célula, etc. Quando queremos falar destas coisas sem
as comparar, servimo-nos do nome de sistema. De acordo
com a sua essência, os termos "sistema" e "agregado real"
significam para nós a mesma coisa. A relatividade deste
"distinguo" aparece ainda de outro modo: estritamente
falando, o mundo inteiro é um agregado real e infinito, cujas
partículas agem continuamente umas sobre as outras. É
assim que quaisquer objetos e elementos do mundo exercem
uns sobre os outros uma ação contínua. Entretanto, esta
ação recíproca pode ser mais ou menos direta ou indireta.
Sobre isto é que se baseiam as diferenças a que nos
referimos acima; elas têm, repitamo-lo, o seu valor, se as
compreendermos dialeticamente, isto é, relativamente,
dentro de certos limites e "segundo as circunstancias".

145
A Teoria do Materialismo Histórico N. Bukarin

26. A SOCIEDADE COMO AGREGADO REAL OU COMO


SISTEMA

Examinemos agora a sociedade sob este ponto de vista.


É evidente que a sociedade é um agregado real, no qual o
processo de uma ação recíproca se produz incessantemente
entre as partes que o compõem. O senhor X foi ao mercado,
lá negociou, participou na formação de um preço de
mercado, que teve a sua repercussão sobre o mercado
mundial e que influiu, se bem que infinitamente pouco, sobre
os preços mundiais; estes últimos influíram, por sua vez,
sobre o mercado do país em que habita o senhor X e sobre
o próprio mercado onde ele faz os seus negócios; de outro
lado, ele comprou, admitamos, um arenque; esta compra
influiu sobre o seu orçamento; ele precisa assim gastar o
dinheiro que lhe resta de uma certa maneira, etc. etc. Pode
se enumerar aqui ainda milhares de outras influencias.

O senhor X casou-se. Para isto, ele comprou primeiro


presentes e influiu assim economicamente sobre outras
pessoas; como cristão fiel, pois não é
um bolchevique qualquer, ele recorreu a um padre,
reforçando assim a organização da igreja, o que produziu
uma certa influência sobre o papel social da igreja e sobre o
estado de espírito de uma determinada sociedade; ele pagou
o padre e aumentou assim a procura das mercadorias que os
padres compram habitualmente, etc. A mulher do senhor X
teve filhos, o que por sua vez, teve milhares e milhares de
consequências. Imaginai somente o numero de homens

146
A Teoria do Materialismo Histórico N. Bukarin

sobre os quais influiu por pouco que seja o casamento do


senhor X! O senhor X aderiu ao partido liberal para cumprir
com o seu "dever de cidadão". Ele começou a frequentar as
reuniões e a sentir juntamente com seus novos colegas, o
mesmo ódio contra essa maldita populaça que se agita e
sustenta estes filhos do inferno: os bolcheviques. E a
influência que ele exerceu nestas reuniões tocou direta ou
indiretamente um grande numero de homens. Certamente,
é difícil determinar esta influência; ela é pequena,
infinitamente pequena mas existe apesar disto. E qualquer
que seja o raio de ação do senhor X, veremos sempre que
ele influiu sobre outros e outros influíram sobre ele. Pois, em
uma sociedade, tudo está ligado por milhões de fios.

Começamos de propósito por um indivíduo, para mostrar


como ele influi sobre os outros. Vejamos agora que influência
exerceram sobre ele os fenômenos sociais. Admitamos, por
exemplo, que a industria seja próspera; a empresa da qual
o senhor X é contador, tem lucros suplementares; o senhor
X recebe um aumento de ordenado. Arrebenta a guerra; o
senhor X é mobilizado, e defende a pátria dos seus patrões
(crendo que defende a civilização) e é morto na guerra... Tal
é a força das relações sociais.

Se examinarmos a imensa quantidade de fatos agindo


uns sobre os outros na sociedade humana, apenas no nosso
tempo, teremos diante dos olhos um quadro grandioso.
Somente, as relações elementares entre os homens, relações
que não são regulamentadas, por nada nem por ninguém, se

147
A Teoria do Materialismo Histórico N. Bukarin

apresentam sob aspectos inumeráveis. Mas o numero de


formas organizadas, a começar pelo poder do Estado e
acabando por um clube de jogadores de xadrez, ou um clube
de calvos já é suficientemente grande. Se levarmos em conta
o inumerável entrecruzar de todas estas formas,
verificaremos que a vida social representa uma verdadeira
torre de Babel de influencias e de reações recíprocas.

Sabemos que o fato de se produzirem num domínio


qualquer relações de caráter durável, constitui um agregado
real, um "sistema". Aqui, é preciso assinalar um ponto: para
que exista um agregado real ou um sistema, não é
necessário que haja um índice de organização consciente das
partes deste sistema. Esta concepção de sistema se aplica
tanto aos seres vivos, quanto aos seres mortos; tanto aos
"mecanismos" quanto aos "organismos". Há entretanto
velhacos que negam a própria sociedade, pela simples razão
de haver nesta sociedade outros sistemas particulares,
sistemas internos na sociedade (classes, grupos, partidos,
clubes, sociedades e associações diversas). Estamos
entretanto em presença do fato destes sistemas e
agrupamentos interiores influírem reciprocamente uns sobre
os outros (a luta de classes e de partidos, a sua colaboração,
etc.); de outro lado, os homens que compõem estes
agrupamentos diversos, podem em outros casos, reagir de
outra maneira sobre os outros homens (um capitalista e um
operário que comprarem para o seu uso próprio mercadoria
de um mesmo capitalista); em seguida, os próprios grupos,
nas suas relações mútuas, não são organizados. Obtemos

148
A Teoria do Materialismo Histórico N. Bukarin

assim um produto social inconsciente e "a resultante social"


(ver mais acima: capitulo 2.° o determinismo) é obtida de
maneira desorganizada e inconsciente (e assim será até a
formação de uma sociedade comunista). E, entretanto,
apesar disto, forma-se o "produto" social, a resultante. Ela
constitui um fato, um fato real. Os preços mundiais são um
fato, como também a literatura mundial ou as vias de
comunicação ou a guerra mundial; estes fatos são suficientes
para mostrar a existência, no momento atual, de uma
sociedade humana que ultrapassa as fronteiras dos Estados
particulares.

Em geral, enquanto temos um circulo de relações


mutuas constantes, temos também um sistema particular,
um agregado real particular.

"O mais vasto sistema de relações


recíprocas que engloba todas as relações
mutuas duráveis entre os homens,
constitui a sociedade".

Definimos a sociedade como um agregado real ou como


um sistema de relações recíprocas, repelindo
categoricamente todas as tentativas da "escola orgânica"
que tendem a assimilar a sociedade a um organismo.

O fim utilitário da teoria "orgânica" se revela na fábula


da Menenios Agrippa, patrício romano, aconselhando os
plebeus em revolta. Os seus argumentos eram de ordem
puramente "orgânica": As mãos não devem agir contra a

149
A Teoria do Materialismo Histórico N. Bukarin

cabeça, pois todo o corpo pereceria. A significação social da


teoria orgânica é justamente esta: a classe dominante, é a
cabeça, os escravos e os operários são os braços e as pernas,
e como ninguém viu jamais na natureza que as pernas e os
braços tenham substituído a cabeça, conservai-vos
tranquilos, oprimidos!

Graças a este caráter de humildade da teoria orgânica,


ela sempre teve e tem ainda um grande sucesso no meio da
burguesia. O "fundador" da sociologia. Augusto Comte,
considerava a sociedade como "um organismo coletivo" o
mais sério dos sociólogos burgueses, Herbert Spencer,
acreditava que a sociedade era alguma coisa de super
orgânica e si bem que não tenha consciência, tem contudo
os seus órgãos, tecidos, etc... Segundo Worms, a sociedade
tem até a consciência, tal como um indivíduo, e Lilienfeld
afirma categoricamente que a sociedade é um organismo,
tanto quanto um crocodilo ou o próprio autor dessa teoria.
Certamente, a sociedade tem alguma coisa de comum com
o organismo, mas ela tem também alguma coisa em comum
com o mecanismo. Isto são caracteres de qualquer
agregado, de qualquer sistema. Não estando dispostos a
perder o nosso tempo com jogos infantis, nem a procurar
aquilo que corresponde, numa sociedade, ao fígado, ao
apêndice ou que fenômeno social corresponde a uma certa
moléstia, somos obrigados a rejeitar, a priori, qualquer
tentativa semelhante. Isto tanto mais que os partidários da
teoria orgânica estão prestes a cair num verdadeiro
misticismo e a representar a sociedade sob a forma de um

150
A Teoria do Materialismo Histórico N. Bukarin

imenso animal, de alguma coisa no gênero da famosa


baleia(1), da fábula russa do "pequeno cavalo corcunda".

Assim, a sociedade existe como agregado real, como


sistema de elementos agindo reciprocamente uns sobre os
outros, como sistema de homens. Vimos acima a quantidade
incalculável destas relações recíprocas que existe na
realidade. Entretanto, resulta do fato da sociedade existir,
que todas estas influências que se entrecruzam, todas estas
forças e pequenas forças inumeráveis dirigidas sobre planos
extremamente variados, não representam uma dança de
loucos, mas seguem, por assim dizer, certos e determinados
canais, estão submetidas a uma lei de desenvolvimento
interno. Com efeito, se houvesse um caos completo, nenhum
equilíbrio, mesmo instável, poderia subsistir no interior da
sociedade, isto quer dizer que a própria sociedade deixaria
de existir. Estudamos precedentemente a questão das leis
que regem as ações humanas, do ponto de vista do indivíduo
(ver o capitulo 3). Vamos examinar agora o mesmo
problema, por assim dizer pelo outro lado, examinando do
ponto de vista da sociedade e das suas condições de
equilíbrio. Mas, aqui também, chegaremos ao mesmo
resultado, isto é, a reconhecer que o processo social está
submetido a leis. A maneira mais fácil de descobrir as leis do
processo social, é examinar as condições de equilibro social.
Mas, antes disto, para abordar este assunto, é preciso que
examinemos mais detalhadamente o que é a sociedade. Pois
não basta dizer que ela constitui um sistema de homens,
agindo uns sobre os outros. Não é suficiente dizer que estas

151
A Teoria do Materialismo Histórico N. Bukarin

relações de reciprocidade entre os homens são duráveis. É


preciso explicar o seu caráter, o que os distingue dos outros
sistemas, o que constitui a sua base vital e a condição mais
necessária de equilíbrio.

27. — CARÁTER DO LAÇO SOCIAL

As relações recíprocas entre os homens, relações que


formam os fenômenos sociais, são, como vimos acima,
extremamente variadas. Mas é preciso que formulemos
agora a pergunta seguinte: Qual é a condição e a duração
destas relações? Ou, em outros termos, entre todas estas
relações de reciprocidade, qual é a condição essencial de
equilíbrio de todo o sistema? Qual é o tipo principal da ligação
social, tipo sem o qual todos os outros não poderiam existir?

Eis a nossa resposta: — Este laço essencial, é o do


trabalho, que se exprime antes de tudo no trabalho social,
isto é, no trabalho consciente ou inconsciente de um homem
em proveito de um outro. Por que isto? Para explicá-lo, basta
supor o contrário. Admitamos por um instante que o laço do
trabalho entre os homens seja destruído, que os produtos
(ou as mercadorias) não circulem mais de um local a outro,
que os homens cessem de trabalhar uns para os outros, que
o trabalho perca o seu caráter social. Qual seria o resultado
disto? O resultado seria o desaparecimento da sociedade.
Citemos ainda um exemplo: Um grupo de missionários vai
para os países tropicais pregar Deus e o Diabo. Desta
maneira eles estabelecem um laço, por assim dizer, superior

152
A Teoria do Materialismo Histórico N. Bukarin

e espiritual. Formulemos agora o seguinte problema: As


ligações entre os países de onde vieram os missionários e os
"selvagens" poderão ser sólidas se os navios não circularem
frequentemente, se não houver trocas regulares (e não
fortuitas) entre eles, isto é, se laços de trabalho duráveis não
se estabelecerem entre o país "civilizado" e a pátria dos
"selvagens"? Certamente que não. Assim, todos os laços em
geral, e no seu conjunto, não podem ser sólidos senão
quando existe um laço de trabalho. Este ultimo é a condição
essencial do equilíbrio do interior do sistema denominado
sociedade humana.

Pode-se ainda examinar este problema sob um outro


aspecto. Sabemos já que qualquer sistema, inclusive a
sociedade humana, não existe no vácuo, e não está tão
pouco suspenso no ar: ele está envolvido de um certo
"meio", e é da relação entre o sistema e este meio que
depende todo o resto. Se a sociedade humana não estiver
adaptada ao seu meio, ela não durará muito: a sua cultura
perecerá infalivelmente e tudo irá por água abaixo. Ninguém
pode negar este fato. Ele é irrefutável. Qualquer coisa que
se diga, quaisquer que sejam os argumentos dos sábios
idealistas, ninguém poderá apresentar sequer uma sombra
de prova contra a nossa afirmativa: a vida inteira da
sociedade, a questão de sua vida ou de sua morte, está
determinada pela relação entre a sociedade e o meio, isto é,
a natureza. Já a isso nos referimos mais acima e é inútil
voltar atrás. Mas qual é o laço social entre os homens que
melhor representa, e da maneira mais direta, estas relações

153
A Teoria do Materialismo Histórico N. Bukarin

com a natureza? Está claro que é o laço do trabalho. O


trabalho constitui o meio de contato entre a sociedade e a
natureza. É pelo trabalho que a sociedade tira da natureza a
energia, graças à qual ela vive e se desenvolve (se se
desenvolve). O trabalho representa a adaptação ativa dos
homens à natureza. Em outros termos, o processo da
produção é o processo essencial e vital da sociedade. E, por
conseguinte, as relações do trabalho constituem o laço social
fundamental. Ou, como dizia Marx:

"é preciso procurar a anatomia da


sociedade na sua economia",

isto é, a estrutura da sociedade é a do seu trabalho (a


sua "estrutura econômica"). Assim, nossa definição da
sociedade será a seguinte: A sociedade é o mais vasto
sistema de homens agindo uns sobre os outros, sistema que
engloba todas as suas relações duráveis e que se baseia
sobre as relações que derivam do trabalho.

Chegamos assim a uma concepção nitidamente


materialista da sociedade. A base de sua estrutura é
constituída pelo laço do trabalho, do mesmo modo que o
processo material da produção constitui a base da vida.

Mas poderão apresentar, frequentemente, a seguinte


objeção: "Muito bem, admitamos que assim seja; mas, como
se estabelecem os laços do trabalho? Porventura os homens
não conversam, não pensam enquanto estão trabalhando? E
não será então o laço de trabalho de ordem psíquica,

154
A Teoria do Materialismo Histórico N. Bukarin

espiritual? Onde vemos aqui o materialismo? Não será tempo


de desistir dessas baboseiras materialistas? O que significam
o vosso trabalho e as vossas relações de trabalho, senão
alguma coisa de psíquico?"

Estudemos este problema mais de perto. Ele o merece,


porque doutra forma aparecerão inúmeros mal-entendidos.
Para maior clareza, tomemos primeiro um exemplo muito
simples. Imaginemos que temos diante de nós uma usina em
funcionamento. Nesta usina há trabalhadores simples, em
seguida diferentes operários qualificados; uns trabalham em
uma maquina, outros em outra; eles são também de
profissões diferentes; há também nessa usina
contramestres, engenheiros, etc... Vejamos
como Marx apresenta a questão ("O Capital" tomo 1):

"Observam-se diferenças essenciais


entre os operários efetivamente
ocupados com as maquinas em
funcionamento (contam-se entre eles
alguns ocupados em observar e outros
em alimentar a maquina motriz) e os
operários simples ou serventes dos
primeiros (quase sempre crianças).
Entre os operários simples, estão
incluídos também os "feeders" (os que
somente colocam na maquina a matéria
prima que serve para a fabricação). Ao
lado destas classes principais,

155
A Teoria do Materialismo Histórico N. Bukarin

encontramos ainda um pessoal pouco


numeroso, que é encarregado de
observar as maquinas, repará-las, como
por exemplo os engenheiros, os
mecânicos, os carpinteiros, etc.."

Tais são as relações de trabalho entre os homens em


uma usina. Como se exprimem elas antes de tudo? Cada um
está ocupado com o "seu trabalho", mas este trabalho não é
senão uma parte da ação geral, isto quer dizer que cada
operário se encontra em um lugar determinado, faz
movimentos determinados, entra em contacto material com
as coisas e com outros operários, despende uma certa
quantidade de energia material.

Tudo isto são relações de ordem material, física.


Certamente, todas estas relações materiais e físicas têm
também o seu lado "espiritual": os homens pensam, trocam
idéias, conversam, etc. Mas isto está determinado pela
maneira com que estão dispostos nos edifícios da usina,
pelas maquinas em que eles trabalham, etc.. Em outros
termos, eles estão dispostos na usina como corpos físicos
determinados, e acham-se assim em relações físicas e
materiais definidas no espaço e no tempo. Isto é a
organização material do trabalho dos operários da usina,
organização a queMarx dá o nome de "operário coletivo";
temos diante de nós um sistema material de trabalho
humano. Quando este sistema de trabalho está em
movimento, temos um processo de trabalho material; os

156
A Teoria do Materialismo Histórico N. Bukarin

homens despendem a sua energia e fabricam um produto


material. Trata-se de um processo material que tem o seu
lado "espiritual".

O que acontece no nosso exemplo, isto é, na usina, tem


lugar também em dimensões muito maiores, e de maneira
muito mais complexa, na sociedade inteira. Pois a sociedade
em seu conjunto representa um aparelho de trabalho
humano particular, onde a imensa maioria dos homens ou
um grupo de homens ocupa um lugar particular no processo
do trabalho. Tomemos a sociedade atual que engloba a
pretensa "humanidade civilizada inteira", ou ainda um circulo
mais largo. Verificamos que o frumento é produzido
principalmente por certos países, o cacau por outros, os
artigos metalúrgicos ainda por outros, etc. E, mesmo nesses
países, certas usinas fabricam uma coisa, e outras uma
outra. Os operários, os camponeses, os colonos, tanto
quanto os engenheiros, os contramestres, os organizadores
de toda a espécie, etc., colocados em diferentes pontos do
mundo, espalhados sobre toda a superfície da terra,
trabalham todos na realidade, talvez sem o saberem, uns
para os outros. E quando as mercadorias circulam de um país
a outro, da usina ao mercado, do mercado, por intermédio
do comerciante, ao consumidor, o que isso significa?
Significa que tudo isto constitui um laço material entre todos
os homens. Significa também que todos os trabalhadores
formam um esqueleto material, um aparelho de trabalho, da
vida social que é uma só. Quando se descreve, por exemplo,
a vida das abelhas, ninguém estranha que se comece por

157
A Teoria do Materialismo Histórico N. Bukarin

dizer quais são as diferentes espécies de abelhas, que


trabalhos elas executam, quais são as suas relações mútuas
no tempo e no espaço, em uma palavra, que se descreva o
aparelho material do trabalho do "reino das abelhas", e
ninguém terá idéia de definir as abelhas nas suas colméias
como um agregado psíquico, como uma "associação
espiritual", ainda que se fale do instinto, da vida psíquica das
abelhas, dos seus costumes, etc. Mas, por favor, não injurieis
da mesma maneira ao homem divino!

É natural que as relações psíquicas recíprocas as mais


variadas, na sociedade humana, são incomparavelmente
mais ricas que as de um bando de macacos de espécie
superior. O "espírito" da sociedade humana, isto é, o
conjunto de todas as suas relações psíquicas, e superior ao
"espírito" de um bando de macacos tanto quanto o "espírito"
do homem é superior ao do macaco. Mas todos os
ornamentos espirituais infinitamente variados, complicados,
extremamente ricos, de cores brilhantes, destas relações
psíquicas que compõem o "espírito" da sociedade
contemporânea, têm também o seu "corpo", sem o qual elas
não poderiam existir, do mesmo modo que o "espírito" de
um homem sem corpo material não pode existir. E este
"corpo" é constituído pelo vigamento de trabalho, pelo
sistema das relações materiais entre os homens no processo
do trabalho, ou, como dizMarx, o sistema das relações de
produção.

158
A Teoria do Materialismo Histórico N. Bukarin

As meninas burguesas e ingênuas gritarão certamente


contra a blasfêmia, se explicarmos o perfume "divino" de um
narciso pela excitação de uma coisa tão prosaica quanto a
mucosa do nariz. E entretanto um grande numero de sábios
burgueses não ultrapassa o nível dessas meninas. As vezes,
ainda ousam escarnecer a teoria "orgânica". Assim, por
exemplo, o professor italiano A. Loria, que pilhou e digeriu
mal a Marx, escreveu na sua "sociologia":

"O sábio alemão Schaffle atinge o


ridículo enumerando os órgãos, tecidos,
os centros motores e os nervos sociais.
Mas os outros sociólogos desta escola
não são mais moderados. Eles
descrevem a anca social, o nervo
simpático e os pulmões sociais; o
sistema dos vasos da sociedade é
representado, segundo eles, pelas
caixas econômicas; um professor da
Sorbonne denominou o clero um tecido
adiposo. Um outro professor comparou
as fibras nervosas com os fios
telegráficos... Um terceiro chegou
mesmo a distinguir os Estados
masculinos e os Estados femininos; os
Estados masculinos são aqueles que
submetem os outros pela conquista,
enquanto que os Estados
conquistados... são do sexo feminino".

159
A Teoria do Materialismo Histórico N. Bukarin

Tudo isto está perfeito. Mas, vejamos um pouco em que


ponto os sábios burgueses, mesmo os melhores, tornam-se
tímidos, quando chegam a tocar no materialismo em
sociologia! O professor E. Durkheim, por exemplo, no seu
livro sobre a "Divisão do Trabalho", depois de ter introduzido
a concepção de "densidade moral" (ele entende por este
termo a frequência e a intensidade das relações psíquicas
recíprocas entre os homens) escreve:

"A densidade moral não pode portanto


aumentar sem que a densidade material
aumente ao mesmo tempo..."

O que significa isto? Significa que a "troca espiritual"


entre os homens baseia-se numa "troca material", isto é, que
a densidade e a frequência das relações materiais e psíquicas
condicionam a frequência e a densidade correspondentes de
suas relações espirituais. Isto é perfeitamente exato. Mas o
sr. Durkheim, depois de exprimir este pensamento
materialista, amedronta-se imediatamente e acrescenta:
aliás, diz ele, é inútil (!!!) procurar qual das duas (densidade
moral ou densidade material) determinou a outra; basta
saber que elas são inseparáveis. (E. Durkheim: "Da divisão
do Trabalho social", Paris 1893, pag. 283). E por que motivo
é "inútil"? Porque é "vergonhoso" ser materialista em uma
sociedade burguesa!

A imensa maioria dos sociólogos burgueses


contemporâneos estudam a sociedade como um sistema

160
A Teoria do Materialismo Histórico N. Bukarin

psíquico, "organismo psíquico", ou outra coisa parecida. Isto


corresponde perfeitamente à concepção idealista. O defeito
principal dessas teorias consiste no fato delas destacarem o
"espírito" da "matéria", e tornarem assim este "espírito"
inexplicável, isto é, divinizado. Com efeito, vamos supor que
a relação psíquica seja de uma certa espécie em uma
sociedade e diferente em outra. Assim, por exemplo, na
Rússia, na época de Nicolau Iº, reinava o "espírito" policial,
o espírito de submissão e, pelo contrario, na Rússia dos
Soviets reina um "espírito" completamente diferente; isto
significa que as relações psíquicas mudaram completamente.
Por que? As teorias psicológicas da sociedade não poderão
dar uma resposta clara a esta questão. Pode-se julgar a que
ponto são estas teorias insuficientes, pelo fato de mesmo o
conhecido filósofo idealista W. Wundt, reconhecê-lo:

"... o fato da evolução da vida psíquica


depender do ambiente físico, torna
fictícias e inaceitáveis as leis
psicológicas que se diz preceder a todas
as relações de ordem física e que
transformam a organização unicamente
em um meio para atingir os seus
próprios fins." (Os problemas da
psicologia das nações).

A única concepção cientifica será aqui também a


concepção materialista (Marx falava em "organismo
produtivo". Ver "O Capital", tomo 3º, 1ª parte).

161
A Teoria do Materialismo Histórico N. Bukarin

28. A SOCIEDADE E O INDIVÍDUO. SUPREMACIA DA


SOCIEDADE SOBRE O INDIVÍDUO

Não há duvida que a sociedade é composta de


indivíduos. Se não houvesse indivíduos, não haveria também
sociedade; o fato é compreensível por si mesmo. Entretanto,
é preciso lembrar-se que uma sociedade não é somente um
simples ajuntamento de homens, ou a soma de indivíduos:
Não é suficiente adicionar todos os Paulos e todas as Marias
para se obter uma sociedade.

Já vimos que a sociedade é um agregado real (sistema);


já vimos que havia toda uma rede de relações mutuas entre
os indivíduos, relações as mais variadas e de valor desigual.
O que isto significa? Que a sociedade, considerada no seu
conjunto, é mais do que a soma das partes que a compõem.
Ela não se reduz somente a esta soma. O mesmo se dá nos
mais variados sistemas, quer se trate de um organismo vivo
ou de um mecanismo inanimado. Tomemos, por exemplo,
uma máquina qualquer, um simples relógio.
Decomponhamos estes objetos e reunamos todas as partes
em um só monte. Este monte representará a soma de suas
partes. Mas não será a maquina, não será o relógio. Por que?
Porque lhe falta o laço definido, a relação recíproca definida
entre as diferente partes, relação que faz destas partes
diversas um determinado mecanismo. Que é que faz com
que uma peça qualquer seja uma parte do todo? A sua
disposição particular. É exatamente da mesma maneira que
as coisas se passam na sociedade. Mas se os homens não

162
A Teoria do Materialismo Histórico N. Bukarin

ocupassem no processo do trabalho e em dado momento um


lugar definido, se eles não estivessem unidos antes de tudo
por um laço de trabalho, nenhuma sociedade existiria.

É preciso levar em conta ainda um fenômeno que


observamos na sociedade: a sociedade representa, não
somente um conjunto de indivíduos particulares tendo
relações comuns, e influindo diretamente uns sobre os
outros, mas também de grupos de homens tendo relações
recíprocas, de outros "agregados reais", intermediários, por
assim dizer, entre a sociedade e o indivíduo. Tomemos como
exemplo a sociedade atual. Ela é imensa. Ela abrange quase
toda a humanidade, estando os homens dos diferentes
países ligados cada vez mais pelos laços do trabalho; a
economia mundial existe e se desenvolve. Mas esta
sociedade, composta aproximadamente de um bilhão e meio
de homens que mantêm relações recíprocas, unidos por um
laço fundamental (o do trabalho) e por outros laços
inumeráveis, contém em seu interior sistemas particulares
de homens agrupados de diferentes maneiras; classes,
Estados, organizações religiosas, partidos, etc.. Falaremos
disso detalhadamente mais adiante. No momento, importa-
nos verificar o que segue: Existe toda uma série de
agrupamentos humanos no interior da sociedade; por sua
vez, estes agrupamentos são compostos evidentemente de
indivíduos; as relações recíprocas entre estes homens são
habitualmente mais frequentes e mais rápidas num só meio
social do que as relações entre os homens em geral (o
filósofo e sociólogo alemão G. Simmel afirma, muito

163
A Teoria do Materialismo Histórico N. Bukarin

acertadamente, que em geral, quanto mais o círculo dos


homens que mantêm relações recíprocas é restrito, tanto
mais os laços que os unem são estreitos); mas estes
agrupamentos estão também em contacto entre eles. Assim,
na sociedade, os indivíduos influem frequentemente uns
sobre os outros, não diretamente, mas por intermédio de
agrupamentos, de sistemas particulares, no interior do
sistema geral que é denominado sociedade humana. Com
efeito, imaginemos um determinado operário em uma
sociedade capitalista. Com quem se encontra ele mais
amiúde? Com quem ele discute as diferentes questões, etc?
É claro que mais frequentemente com outros operários e
muito mais raramente com os artesãos, os camponeses ou
com os burgueses. Vemos aqui um laço de classe. Quanto às
outras classes, o operário está muitas vezes em contacto
com elas, não como pessoa particular, como "indivíduo mas
como membro de sua classe e às vezes como membro de
uma organização criada conscientemente, de um partido, de
um sindicato profissional, etc. O mesmo se passa também
em outros agrupamentos fora dos agrupamentos de classe:
os sábios frequentam sobretudo outros sábios, os jornalistas
outros jornalistas, os padres outros padres, etc.

No domínio material, sabemos que a sociedade não é um


ajuntamento de homens, que ela é mais do que uma simples
soma, que a união entre os homens e a sua determinada
"posição" (Marx dizia "distribuição") no processo do trabalho
produzem alguma coisa mais diferente do que a "soma" e o
"monte". Mas a mesma coisa se produz igualmente no

164
A Teoria do Materialismo Histórico N. Bukarin

domínio da vida psíquica ("espiritual"), que desempenha um


papel muito importante. Já citamos muitas vezes o exemplo
do preço como resultado das avaliações de uma série de
pessoas particulares. O preço é um fenômeno social, uma
"resultante" social, um produto das relações recíprocas entre
os homens; será o preço igual à avaliação média? Não. o
preço parecer-se-á com uma avaliação particular? Também
não. Pois uma avaliação particular é um negocio pessoal,
concernente a um só homem, ela "vive na sua alma" e
unicamente na sua alma, enquanto que o preço é uma coisa
que oprime a cada um; é alguma coisa de independente, com
a qual é preciso contar, uma coisa objetiva, apesar de não
ser material (ver capitulo 2.°); o preço, em outros termos, é
uma coisa nova, e que tem a sua própria vida social, uma
coisa independente dos homens particulares, se bem que ele
seja "feito" pelos homens. O mesmo acontece com todos os
outros fenômenos da vida psíquica ("espiritual"). A língua, o
regime político, a ciência, a arte, a religião, a filosofia, e toda
uma série de fenômenos de menor importância, tais como a
moda, os costumes, as "regras de civilidade", etc. etc, tudo
isto são produtos da vida social, resultado das relações
recíprocas entre os homens, de suas relações constantes.

Do mesmo modo que a sociedade não é uma simples


soma de homens, assim também a vida espiritual da
sociedade não é uma simples soma de idéias e de
sentimentos de homens particulares, mas ela é o produto de
suas relações recíprocas, ela é, até um certo ponto, uma
coisa particular, nova, que não pode ser reduzida a uma

165
A Teoria do Materialismo Histórico N. Bukarin

simples soma aritmética; uma coisa nova, que resulta


precisamente das relações recíprocas entre os homens.

São precisamente estes fatos que demonstram a


necessidade das ciências sociais. Wundt observa muito
acertadamente que a

"vida comum de numerosos indivíduos


tendo uma organização idêntica, como
também as relações mutuas decorrentes
desta vida sendo uma condição nova,
devem originar também fenômenos
novos, com leis particulares". (Os
problemas da psicologia das nações.)

Um indivíduo não pode existir fora da sociedade, sem a


sociedade, mau grado a sociedade. Não é possível
representar-se a sociedade como se existissem homens
isolados, existindo por assim dizer, em "estado natural", e
reunindo-se em seguida para formar a sociedade. Esta
concepção era outrora muito espalhada, mas ela é
completamente falsa. Se nós examinamos passo a passo a
evolução da sociedade humana, vemos que ela se formou a
partir da tribo e não a partir de seres de aparência humana
vivendo em lugares diferentes, e que compreenderam
subitamente um belo dia que era muito mais cômodo (como
eram inteligentes, estes selvagens!) viver juntos e
começaram a se reunir em sociedade, depois de se terem
convencido uns aos outros em reuniões publicas.

166
A Teoria do Materialismo Histórico N. Bukarin

"O ponto de partida" (da ciência, N. B.),


escreveu Marx, se acha nos "indivíduos
produzindo em sociedade", e por
conseguinte, na "produção social dos
indivíduos". Um caçador e um pescador
isolados... pertencem ao domínio da
fantasia do século XVIII... A produção de
indivíduos isolados fora da sociedade...
é tão absurda quanto o desenvolvimento
da linguagem sem homens que vivam
juntos e falem entre si".
(K. Marx: Introdução a uma critica da
economia política).

A teoria do homem isolado que se une aos outros foi


expressa de um modo preciso por J. J. Rousseau, na obra "O
Contrato Social" , aparecida em 1762: o homem nasce livre
em estado natural. Para proteger a sua liberdade, ele entra
em relações com outros homens, e é baseado num "contrato
social" se cria uma sociedade, um Estado (Rousseau não
distingue o Estado da sociedade). "O tratado social tem por
fim a conservação dos contratantes" (livro 2.°, cap. 5). Com
efeito, Rousseau estuda, não a origem real da sociedade ou
do Estado, mas o ponto de vista da "razão", isto é, como
deve ser concebida e construída uma sociedade organizada.
Aquele que infringe o "contrato" é passível de punição. Se os
reis abusam de sua força, é preciso expulsá-los, — esta é a
conclusão. Eis por que, apesar da inexatidão absoluta das
concepções de Rousseau, a sua doutrina desempenhou no

167
A Teoria do Materialismo Histórico N. Bukarin

mais alto grau um papel revolucionário durante a grande


Revolução francesa.

As qualidades sociais do homem não puderam se


desenvolver senão no seio da sociedade. É ridículo supor que
o homem (e ainda mais um homem selvagem) tenha
compreendido a utilidade da sociedade sem tê-la jamais
visto. Seria com efeito o mesmo que o desenvolvimento da
linguagem entre homens que não falam e que se encontram
espalhados por toda parte. O homem sempre foi, segundo a
expressão de Aristóteles,"um animal social", isto é, um
animal que sempre viveu em sociedade e nunca fora dela.
Não é possível imaginar-se que a sociedade humana se tenha
"formado pouco a pouco" (somente um comerciante, que
organiza uma sociedade por ações, pode pensar que a
sociedade humana se criou mais ou menos pela mesma
maneira, e imaginar que as coisas se passaram por esta
forma). Na realidade, a sociedade sempre existiu, assim
como o próprio homem, e nunca houve homens fora da
sociedade. O homem é um animal sociável "pela sua
natureza"; a sua "natureza" é social e muda com a
sociedade; é por sua "natureza", e não devido a um contrato
ou a um tratado, que os homens vivem em sociedade.

Se o homem sempre viveu em sociedade, isto é, se ele


sempre foi homem social, isto significa que o indivíduo
sempre teve como meio a sociedade. E se a sociedade
sempre foi o meio em que viveu o indivíduo, não é difícil
compreender que este meio determinava o indivíduo; o

168
A Teoria do Materialismo Histórico N. Bukarin

indivíduo se desenvolve segundo a natureza do meio, da


sociedade: "Dize-me com quem andas e eu te direi quem
és!"

Aqui, aparece uma questão que sempre deu e dá ainda


lugar a discussões, a saber: — qual o papel dos indivíduos
na história?

Entretanto, este,problema está longe de ser tão difícil


quanto parece. O indivíduo desempenhará ou não um papel
qualquer na marcha dos acontecimentos? Será ele igual a
zero? Ou então, terá ele poder para qualquer coisa? É
evidente que a sociedade, sendo composta de indivíduos, os
atos de uma pessoa qualquer influem sobre o acontecimento
social. Assim, o indivíduo desempenha "um papel", assim os
atos, os sentimentos, os desejos de qualquer homem fazem
parte integrante do fenômeno social. "Os homens fazem a
historia"; e desde que "os homens" são compostos de
indivíduos, está claro que o homem isolado não é igual a
zero, mas representa uma certa força. É o entrecruzamento,
ou antes, são as relações mutuas entre estas forças que
determinam, como sabemos, o fenômeno social.

Por outro lado, se um homem isolado influi sobre a


sociedade, não se poderá saber que é que determina ação
deste homem isolado? Sim, pode-se saber. Sabemos
perfeitamente que a vontade do homem não é livre, que ela
é determinada por condições exteriores. E estas condições
exteriores sendo para um homem isolado as condições

169
A Teoria do Materialismo Histórico N. Bukarin

sociais (condições da vida de família, de grupo, de profissão,


de classe, de toda sociedade em determinado momento), a
sua vontade, por conseguinte, é determinada por condições
exteriores; é nestas condições que ela encontra os motivos
de sua atividade.; Assim, por exemplo, um soldado russo do
tempo de Kerensky via que o seu mister caminhava para a
ruína, que a vida se tornava cada vez mais difícil, que não se
enxergava o fim da guerra, que os capitalistas se
enriqueciam, que a terra não era dada aos camponeses.
Todos estes fatos dão motivo para a sua ação, como seja:
acabar a guerra, apoderar-se da terra e, para isto, derrubar
o governo. Por conseguinte, o ambiente social determinou os
motivos da ação.

O próprio ambiente limita a realização de um fim


qualquer almejado pelo indivíduo. Em 1917, Milioukov quis
reforçar a influência da burguesia e apoiar-se sobre os
Aliados; mas nada conseguiu: o ambiente era tal
que Milioukov nada fez, nada pôde fazer.

Se examinarmos em seguida o indivíduo na sua


evolução, apercebemo-nos que realmente ele está recheado
de influencias do seu meio. O homem é "educado" na família,
na rua, na escola. Ele fala a linguagem que e o produto da
evolução social, ele pensa por meio de concepções
elaboradas por toda uma série de gerações anteriores, ele vê
em torno de si outros homens e o seu modo de ser; ele vê
diante de si uma certa ordem que influi sobre ele a todo
momento. Como uma esponja ele se embebe sempre de

170
A Teoria do Materialismo Histórico N. Bukarin

impressões novas. Tudo isto contribui para "amoldá-lo" como


indivíduo. Assim, na realidade, há em cada indivíduo um
conteúdo social. O próprio indivíduo isolado é o resultado de
uma condensação de influencias sociais muito concentradas.

Enfim, é preciso acentuar ainda um fato. Acontece


frequentemente que o papel desempenhado pelo indivíduo é
bastante grande, devido ao lugar particular e ao trabalho
particular que ele fornece. Tomemos por exemplo um
exército e seu estado-maior. O estado-maior é composto
apenas de alguns indivíduos, enquanto um exército se
compõe de centenas de milhares e às vezes de milhões de
homens. E, entretanto, todo o mundo sabe que a importância
de alguns indivíduos do estado-maior é muito maior do que
a do mesmo numero de pessoas no exército (de soldados ou
oficiais). Se o inimigo consegue aprisionar o estado-maior,
isto pode significar às vezes a derrota de todo o exército.
Portanto, a importância destes indivíduos é bastante grande.
Examinemos isto mais de perto. O que valeria um estado-
maior sem linhas telefônicas, sem relações, sem
informações, sem cartas, sem possibilidade de dar ordens,
sem disciplina, etc? Nada absolutamente. Os homens que
pertencem ao estado-maior seriam mais ou menos iguais aos
outros membros do exército. No que consiste a sua força e a
sua importância? Elas são criadas pelo laço social particular,
pela organização, na qual estes homens trabalham.
Certamente, eles devem possuir uma certa capacidade para
desempenhar as suas funções (ter uma instrução suficiente
ou então capacidades inatas, desenvolvidas pela experiência,

171
A Teoria do Materialismo Histórico N. Bukarin

como se dava no caso de um grande numero de generais


de Napoleão ou de comandantes do Exercito Vermelho dos
Soviets). Mas, fora deste laço particular, eles perdem a sua
força. Isto significa que a possibilidade que tem o estado-
maior de exercer uma influência sobre o exército é dada pelo
próprio exército, pela sua estrutura, pela sua organização,
pelo conjunto de relações existentes.

As coisas passam-se de maneira análoga na sociedade.


Tomemos, por exemplo, os chefes políticos., O seu papel,
certamente, é incomparavelmente maior do que o de um
homem médio de uma classe ou de um partido qualquer.
Certamente, é preciso ter qualidades especiais, como
inteligência, experiência, etc., para ser chefe político; mas,
está claro que, sem as organizações apropriadas (partidos,
associações, a sua tática particular para se aproximar das
massas, etc.) "os chefes" não poderiam desempenhar um tal
"papel". A força dos laços sociais dá, por sua vez, uma força
a certos indivíduos eminentes. Não é diferente o que
acontece quando se trata dos inventores, sábios, etc... Eles
não podem se "desenvolver" senão em certas condições.
Suponhamos que o inventor, bem dotado por sua natureza,
não tenha podido elevar-se; ele nada aprendeu, nada leu, e
foi obrigado a fazer um trabalho completamente diferente,
como o comercio de fazendas. O seu "talento" foi afogado:
ninguém se aperceberá de sua existência. Como não é
possível imaginar-se um chefe fora de um exército, também
é impossível imaginar um inventor sem maquinas, sem
aparelhos, sem certos homens. Ao contrario, se o nosso

172
A Teoria do Materialismo Histórico N. Bukarin

comerciante de fazendas tivesse conseguido elevar-se, ele


poderia talvez tornar-se um novo Edison. Poderíamos citar
um grande numero de exemplos análogos. É natural que, em
todos estes casos, a influência da sociedade se exerce de
modo a só permitir que alguém se "eleve" em coisas de que
a sociedade (uma classe, um grupo, ou a sociedade em
geral) necessita.

Assim, são os laços sociais que dão a força aos


indivíduos — esta é a conclusão dos exemplos precedentes.

Esta concepção desenvolveu-se com muita dificuldade.


As suas causas foram explicadas de maneira clara pelo
camarada M. N. Pokrovsky(História da civilização russa, 1.ª
parte).

"Um historiador, pela sua


própria posição pessoal, é um
trabalhador intelectual, em
primeiro lugar, e em segundo,
si nós considerarmos os traços
mais particulares, ele é ao
mesmo tempo um homem que
escreve, um homem de letras.
Não é de admirar que ele
considere o trabalho
intelectual como a coisa
principal da história, e as
obras literárias desde os

173
A Teoria do Materialismo Histórico N. Bukarin

poemas e os romances até os


Tratados de filosofia e
ciências, como os fatos
essenciais da cultura. Mas isto
ainda não basta; os
trabalhadores intelectuais, e
isto é bastante natural,
deixaram-se levar pelo
mesmo orgulho que ditou aos
faraós as inscrições elogiosas.
Começaram por crer que eram
eles que faziam a historia".

É preciso acrescentar ainda que este ponto de vista


profissional coincidia com o das classes, dos agrupamentos
dominantes, da minoria que comandava a imensa maioria.
Não é difícil verificar que o fato de pôr em relevo os chefes,
e antes de tudo os reis, os príncipes, etc, e em seguida os
gênios, é da mesma ordem de idéias que a concepção
religiosa; pois a força social que a sociedade dá ao indivíduo
é ocultada, e, ao invés dela, vê-se o próprio indivíduo, força
inexplicável, isto é, "divina" por sua essência. O filósofo russo
W. F. Soloviev assim o exprimiu de maneira admirável (A
justificação do bem, capitulo IV, citado por Khvostiv: A teoria
do processo histórico):

"Os homens providenciais, que nos


revelaram uma religião superior e que
esclareceram a humanidade, não eram a

174
A Teoria do Materialismo Histórico N. Bukarin

princípio os criadores destes bens. Tudo


o que eles deram, foi herdado por eles
mesmos dos gênios históricos
universais, dos heróis aos quais
devemos também o nosso
reconhecimento. Devemos reconstituir,
o mais completamente possível, toda a
linhagem dos nossos antepassados
espirituais, dos homens pelos quais a
providência dirigia a humanidade no
caminho da perfeição... É nesses "vasos
eleitos" que reside aquilo que Ele (o pai
celestial) neles colocou, é nestas
imagens visíveis da Divindade invisível
que A reconhecemos e A glorificamos."

Não é necessário responder detalhadamente a esta


mixórdia, ela por si diz tudo.

Resulta do que foi dito anteriormente que um indivíduo


age sempre como indivíduo social, como membro, parte de
um agrupamento de uma classe da sociedade. O "indivíduo"
tem sempre um conteúdo social; assim, para compreender a
evolução da sociedade é preciso partir do estudo das
condições sociais e passar em seguida, si for necessário, ao
indivíduo, e não proceder de maneira inversa. É pelo estudo
das relações sociais, pelo exame das condições de qualquer
vida social, da vida de uma classe, de um agrupamento
profissional, da família, da escola, etc., que nós podemos

175
A Teoria do Materialismo Histórico N. Bukarin

explicar mais ou menos bem a evolução do indivíduo; mas


não poderíamos explicar a evolução da sociedade pelo estudo
do desenvolvimento do indivíduo, porque cada indivíduo
agindo de uma maneira qualquer deve levar em conta, antes
de tudo, aquilo que já foi feito na sociedade. Assim, por
exemplo, um comprador que vai ao mercado para procurar
calçados ou pão. Como os avalia ele? É evidente que ele
adapta de ante-mão a sua avaliação pessoal ao preço que já
existe ou que já foi estabelecido no mercado. Um inventor
constrói uma nova maquina; ele parte daquilo que já existe,
da técnica e da ciência dadas, das exigências que apresenta
o seu trabalho prático, etc. Em uma palavra, se nós
esforçarmos, como o fazem certos sábios burgueses, em
explicar os fenômenos sociais segundo os fenômenos
pessoais (psicológicos ou individuais) nós chegaremos, não
a uma explicação, mas a um círculo vicioso: Um fenômeno
social (o preço, por exemplo), será explicado por um fato
pessoal (por exemplo, pela avaliação da mercadoria por um
fulano qualquer), e esta avaliação deverá ser explicada pelo
preço com que o mesmo fulano teve que contar. Qual seria
o resultado de uma explicação destas? "A terra repousa
sobre uma baleia, a baleia está sobre a água e água sobre a
terra" — como diz uma fábula russa. Chegaremos
forçosamente ao mesmo resultado, cada vez que quisermos
estabelecer o caráter da sociedade pelo estudo dos
indivíduos e pela sua conduta. Por consequência, é
necessário partir da sociedade, pois, como já vimos, é no
meio social que o indivíduo encontra os móveis para a sua
ação; é no meio social e nas condições de seu

176
A Teoria do Materialismo Histórico N. Bukarin

desenvolvimento que ele encontra os limites da sua


atividade: são as condições sociais que determinam o seu
papel, etc. A sociedade domina o indivíduo, ou, como dizem
os sábios, existe uma supremacia da sociedade sobre o
indivíduo.

29. AS SOCIEDADES EM FORMAÇÃO

Do fato do homem, enquanto homem, sempre ter vivido


em sociedade, não resulta absolutamente que novas
sociedades não possam formar-se ou as antigas
desenvolver-se.

Suponhamos que em determinada época existem, em


diversos pontos do globo, aglomerados humanos.
Suponhamos em seguida que estes aglomerados não tenham
entre si nenhuma relação: eles são separados por
montanhas, por rios, por mares, e não atingiram ainda um
grau de civilização suficiente para permitir que eles
transponham estes obstáculos. Se acontecer que eles
entrem em contacto uns com os outros, isto não se produz
senão raramente e de uma maneira irregular: Não pode
haver relações estáveis entre eles.

Estamos nós, neste caso, em presença de uma só


sociedade considerável que abrange estes aglomerados
humanos particulares? Absolutamente não. Estamos em
presença não de uma só sociedade, mas de tantas
sociedades quantas são as aglomerações. Por que? Porque é

177
A Teoria do Materialismo Histórico N. Bukarin

o laço do trabalho, "a relação de produção", que forma a


ossatura ou esqueleto do corpo social, que constitui a base,
o traço característico principal da sociedade. No exemplo
citado mais acima, este laço entre as aglomerações não
existe; por conseguinte, estamos em presença não de uma
só sociedade, mas de sociedades diferentes, tendo cada uma
a sua própria história.

Quando nos referimos a "homens", podemos reuni-los,


não em uma só sociedade, mas reuni-los como homens, para
distingui-los dos outros animais, ou em outros termos, pode-
se considerá-los como uma coisa particular (homens) do
ponto de vista biológico, isto é, da mesma espécie biológica
(não pulgas, girafas ou elefantes, mas de uma só espécie:
homens). Mas, do ponto de vista da ciência social, da
sociologia, não existe aqui nenhuma unidade, nenhuma
sociedade; não tratamos aqui de uma espécie, mas de varias
sociedades. Para que haja unidade biológica, é preciso que
os animais em questão tenham a mesma estrutura, os
mesmos órgãos, etc; a unidade sociológica exige que os
animais-homens trabalhem em conjunto, e não uns
paralelamente aos outros, nem tão pouco ao mesmo tempo,
mas em comum.

Certamente, numerosos são aqueles que contestam que


as sociedades sejam agregados fechados. Assim, o professor
Wipper escreve (Os Novos Horizontes da Ciência Histórica. O
Mundo Contemporâneo):

178
A Teoria do Materialismo Histórico N. Bukarin

"É possível que, desde o princípio da


civilização, as sociedades
completamente fechadas, a economia
natural pura, nunca tenham existido. As
relações comerciais, a colonização, as
migrações, e a propaganda, existiram
desde tempos imemoriais. Sem duvida,
um trabalho independente era
executado também localmente: muitas
coisas foram realizadas
simultaneamente, nos limites
geográficos e em condições diferentes
por esforços independentes. Mas é
possível também que, mais
frequentemente ainda, o estágio
seguinte da evolução tenha sido atingido
de um só salto, graças a uma lição
prematura, insuficientemente
compreendida, mas devido sobretudo a
uma fonte estranha e em seguida
esquecida".

Entretanto, se uma sociedade absolutamente fechada


nunca existiu, não deixa de ser verdade que as trocas entre
as diferentes sociedades humanas eram extremamente
reduzidas. Assim, por exemplo, que relações duráveis
poderiam ter existido entre os povos europeus e a America
antes da viagem de Cristóvão Colombo? Mas, entre os
próprios povos europeus, a ligação era muito fraca na idade

179
A Teoria do Materialismo Histórico N. Bukarin

média, por exemplo. Por conseguinte, não se pode falar


destes casos, de uma sociedade humana: A humanidade era
nessa época, apenas, uma unidade biológica.

Suponhamos agora que entre nossas sociedades


apareçam em primeiro lugar relações de ordem militar e em
seguida de ordem comercial. Estas relações comerciais
tornam-se cada vez mais duráveis, e há um momento em
que uma sociedade não pode mais viver sem a outra; umas
produzem principalmente uma coisa, as outras uma outra;
estes produtos são trocados e assim uma trabalha para a
outra, deixando este trabalho de ter um caráter fortuito para
se tornar regular, indispensável à existência das duas
"sociedades". Que acontece então? Teremos uma só
sociedade de dimensões maiores. Ela foi formada pela
reunião das duas sociedades distintas.

Mas um processo contrario também é possível. Em


certas condições, uma sociedade pode dividir-se em varias
outras; isto acontece nos períodos de decadência.

O que podemos concluir destes fatos? Que a sociedade


não é uma entidade fixa. Podemos observar o processo de
formação de uma sociedade. Nós o vimos, por exemplo, na
segunda metade do século XIX e no princípio do século XX.
Relações cada vez mais estreitas se estabelecem entre os
diferentes países por vias diversas (graças às guerras
coloniais, ao aumento das trocas, às importações e
exportações de capitais, graças às ligações de população de

180
A Teoria do Materialismo Histórico N. Bukarin

um país ao outro, etc.). Relações econômicas duráveis (e não


fortuitas) se estabelecem entre os países e, em ultima
analise, laços de trabalho. A economia mundial nascia, o
capitalismo mundial se desenvolvia, e as suas diferentes
partes influíam umas sobre as outras. Ao mesmo tempo que
se deslocavam sobre um plano internacional os homens e as
coisas, as mercadorias, os capitais, os operários, os
comerciantes, os engenheiros, etc., uma poderosa torrente
de idéias cientificas, artísticas, filosóficas, políticas, religiosas
e outras transitava de um país para outro. As trocas mundiais
materiais arrastavam atrás de si as trocas espirituais. Foi
assim que começou a se formar uma só sociedade humana,
tendo urna só história.

181
A Teoria do Materialismo Histórico N. Bukarin

CAPÍTULO V

O EQUILÍBRIO ENTRE A SOCIEDADE


E A NATUREZA
30. A NATUREZA COMO MEIO PARA A SOCIEDADE

Se estudarmos a sociedade como sistema, o meio no


qual ela evolui será representado pela "natureza exterior",
isto é, primeiramente pelo nosso planeta com todos os seus
caracteres naturais. Não é possível imaginar uma sociedade
humana fora desse meio que lhe fornece a alimentação. Esta
é a sua significação vital. Entretanto, seria ingenuidade
considerar a natureza do ponto de vista da finalidade; seria
ingenuidade dizer que o homem é o rei da natureza e que
tudo na natureza é feito para satisfazer as necessidades
humanas. Realmente, a Natureza combate às vezes o
homem de maneira tão violenta que pouca coisa resta para
o "rei da natureza".

É somente depois de uma luta longa e obstinada contra


a natureza que o homem começa a domá-la.

Entretanto, o homem, como espécie animal, e a


sociedade humana, são produtos da natureza, uma parte
deste todo infinito. O homem jamais poderá sair da natureza,
e mesmo quando ele a submete, ele não faz mais do que
explorar as leis da natureza para os seus próprios fins. É
portanto compreensível que a natureza deva exercer uma

182
A Teoria do Materialismo Histórico N. Bukarin

grande influência sobre o desenvolvimento da sociedade


humana. Antes de começar a estudar as relações que se
estabelecem entre o homem e a natureza, assim como as
formas nas quais se exprime a influência da natureza sobre
a sociedade humana, é preciso primeiro que examinemos os
lados pelos quais a natureza toca o homem mais de perto. É
bastante olhar em torno de nós para verificar a dependência
da sociedade relativamente à natureza:

"A terra (é preciso incluir neste termo


também a água do ponto de vista
econômico) que fornece ao homem a
sua alimentação, os seus meios brutos
de subsistência, existe sem nenhum
concurso de sua parte, como objeto
universal do trabalho humano. Todos os
objetos que por meio do trabalho o
homem tira de suas relações diretas com
a terra, são objetos de trabalho dados
pela natureza: Assim, por exemplo, o
peixe que é pescado, a arvore que é
abatida na mata virgem, o mineral que
é extraído da terra. Guarda-comida
primitivo do homem, a terra é também
o primeiro arsenal de seus meios de
trabalho. Ela lhe fornece, por exemplo,
a pedra que ele emprega na sua funda,
ou para desgastar, cortar, etc..."
(Karl Marx, Capital, tomo I).

183
A Teoria do Materialismo Histórico N. Bukarin

A natureza aparece diretamente como um objeto de


trabalho em certos ramos da indústria (industria mineira,
caça, agricultura em parte, etc...). Em outros termos, é ela
que fornece a matéria prima necessária para a fabricação e
para uma série de meios de existência. Além disto, como já
dissemos, o homem se serve das leis da natureza para lutar
contra ela.

"Ele utiliza as propriedades mecânicas,


físicas e químicas dos corpos para
obrigá-los a agir segundo os seus fins
como forças que devem influir sobre
outros corpos".

O homem explora a força do vapor, da eletricidade, etc...


a gravidade etc... etc... Se assim é, é compreensível que o
estado da natureza em determinado lugar e em dado
momento não pode deixar de influir sobre a sociedade
humana. O clima (grau de umidade, regime dos ventos,
temperatura, etc...), o relevo do solo (as montanhas e os
vales, a distribuição das águas, a natureza dos rios, a
existência dos metais, dos minerais, etc..), o litoral (se o país
é marítimo), o regime das águas, a existência de certas
espécies de animais e de plantas, etc..., eis os principais
fatores que influem sobre a sociedade humana. É impossível
pescar baleias sobre a terra; é difícil desenvolver
convenientemente a agricultura nas montanhas; não se pode
explorar as florestas em um deserto; não é possível nos
países frios viver durante o inverno debaixo de uma tenda;

184
A Teoria do Materialismo Histórico N. Bukarin

é inútil aquecer as casas nos países quentes; nos lugares


onde o solo não fornece metais, não haverá ferraduras nas
patas dos cavalos.

Examinando mais detalhadamente a influência da


natureza, chegamos às seguintes observações:

Repartição das terras firmes e dos mares: — O homem,


em geral, é um animal terrestre. O mar age de duas
maneiras: Em primeiro lugar ele divide. Esta é a razão por
que o mar muitas vezes serviu de fronteira natural; por outro
lado, em certo grau de evolução, o mar torna-se, ao
contrário, a melhor via de comunicação. O litoral influi
principalmente pela sua maior ou menor adaptabilidade à
formação de portos. A maioria dos portos modernos foram
mesmo criados em conformidade com as comodidades
naturais do litoral, com poucas exceções (por exemplo,
Cherburgo). A superfície da terra, agindo pela sua fauna e
pela sua flora, exerce igualmente uma influência direta, se
bem que diferente, segundo o grau de desenvolvimento da
civilização, principalmente sobre as vias de comunicação
(atalhos, caminhos, vias férreas, túneis, etc.).

As pedras e os minerais: — As construções são elevadas


de acordo com a natureza das pedras de que se dispõe: nas
montanhas, encontra-se sobretudo a pedra dura (granito,
porfiro, basalto, xisto, etc...); nos vales encontra-se
sobretudo uma pedra mole. Quanto aos minerais e aos
metais, a sua importância aumentou sobretudo nestes

185
A Teoria do Materialismo Histórico N. Bukarin

últimos tempos (o ferro, o carvão). Certos minerais foram a


causa principal das migrações e da colonização (o chumbo
atraiu os fenícios para o Norte, o ouro para a África do sul e
a Índia oriental; o ouro e a prata atraíram os espanhóis para
a America, etc...). É segundo a localização das minas de
carvão e de ferro que se repartem os diferentes centros de
industria pesada. O caráter do solo determina, antes de tudo,
a flora e o clima.

As águas continentais: — Em primeiro lugar a água tem


importância como água potável (ver o seu "preço" no
deserto); em seguida, ela desempenha um grande papel na
agricultura (conforme a sua quantidade, é preciso drenar ou
irrigar o solo); sabe-se a grande importância que tem para a
agricultura as inundações provocadas pelos grandes rios
(Nilo, Ganges etc), e a influência que este fato exerceu sobre
a civilização egípcia e hindu. Por outro lado, a água tem uma
grande importância como força motriz (os moinhos de água
são uma das mais antigas invenções; foi em torno deles que
se desenvolveram as cidades; nos tempos modernos a água
é usada para a eletrificação como "hulha branca", sobretudo
na América, Alemanha, Suíça, Noruega, Suécia e Itália
Enfim, é preciso ainda sublinhar o grande papel que
representa o sistema de águas como sistema de
comunicação (certos sábios dão a isto importância
particular).

O clima age sobre os homens principalmente pela


influência que exerce, sobre a produção. No domínio da

186
A Teoria do Materialismo Histórico N. Bukarin

agricultura, é do clima que depende a escolha das culturas;


o clima determina também a duração da estação agrícola
(assim, por exemplo, na Rússia, a estação de trabalhos
agrícolas é muito curta, enquanto que em certos países, mais
próximos dos trópicos, ela dura quase o ano inteiro); por isto
mesmo, o clima influi também sobre a indústria, liberando a
mão de obra, etc. Ele desempenha igualmente um papel
muito importante nos transportes (caminhos para os trenós,
no inverno, portos fechados ou não para o gelo, rios, etc.).

O clima frio exigem trabalho mais intenso para a


alimentação, o vestuário, as habitações, o aquecimento
artificial, etc. Passa-se mais tempo dentro de casa no Norte
e ao ar livre nos trópicos.

A flora age de diversas maneiras: nos estágios inferiores


da civilização, é do caráter das florestas que dependem os
caminhos (matas impenetráveis); é a madeira que
determina caráter das construções, do aquecimento, etc; a
caça depende da qualidade das plantas da mata ou da
estepe; dela dependem também a agricultura e a criação.

A fauna representava para os povos primitivos uma força


inimiga poderosa; em geral, ela constituía para eles uma
fonte alimentação e, portanto, um objeto de caça e de pesca;
mais tarde, ela determinou a domesticação de animais e
exerceu assim uma certa influência sobre a produção e os
transportes (animais de tiro).

187
A Teoria do Materialismo Histórico N. Bukarin

O mar, como meio de transporte, desempenhou e


desempenha ainda um papel importante. O transporte dos
viajantes e das mercadorias é mais barato através do mar;
além disto, apresenta um largo campo de exploração para
um grande número de indústrias (a pesca, a caça às focas,
às baleias, etc.) (Ver A. Hettener: Die geographischen
Bedingungen der menschlicken Wirtschaft, (As condições
geográficas da economia humana), emGrundriss der
Socialokonomik, Esquema da economia social, de Gottel-
Herkner. Tubingen, 1914).

A influência das condições climatéricas é


caracterizada pelo fato seguinte:
baseando-nos sobre o estudo da carta
das temperaturas anuais, médias (das
linhas isotérmicas)(1) "Pode-se observar
que as aglomerações humanas mais
importantes estão agrupadas entre duas
isotérmicas extremas a de + 16.° e a de
+ 4.°. A isotérmica de + 10° define com
exatidão suficiente o eixo central desta
zona climatérica e da civilização; é ali
que se acham agrupadas as cidades
mais ricas e mais povoadas do mundo:
Chicago, New York, Filadélfia, Londres,
Viena, Odessa, Pequim. Sobre a
isotérmica + 16.° se encontram São
Luiz, (dos Estados Unidos), Lisboa,
Roma, Constantinopla, Osaka, Kyoto,

188
A Teoria do Materialismo Histórico N. Bukarin

Tókio). Sobre a isotérmica + 4.°;


(Quebec, Cristiania, Stokolmo,
Leningrad, Moscou). Ao sul da
isotérmica + 16.°, a titulo de exceção,
acham-se disseminadas algumas
cidades cuja população passa de
100.000 homens (México, Nova Orleans,
Cairo, Alexandria, Teerã, Calcutá,
Bombaim, Madras, Cantão). O limite
setentrional ou a isotérmica + 4.°, tem
um caráter mais absoluto: Ao norte
desta linha não há mais cidades
importantes, excetuando Winnipeg
(Canadá) e alguns centros
administrativos da Sibéria (L. I.
Metchnikov: A civilização e os grandes
rios históricos, teoria geográfica do
desenvolvimento das sociedades
modernas).(2)

31. RELAÇÕES ENTRE A SOCIEDADE E A NATUREZA.


PROCESSOS DE PRODUÇÃO E DE REPRODUÇÃO

Sabemos já que as causas de mudança de um


determinado sistema devem ser procuradas nas relações
entre este sistema e o seu meio. Sabemos também que
mesmo os traços principais da evolução (o progresso, a
estagnação ou a destruição dum sistema) dependem
particularmente das relações entre um dado sistema e o seu
meio. É portanto nas variações destas relações que se deve

189
A Teoria do Materialismo Histórico N. Bukarin

procurar a causa que provoca a variação do próprio sistema


Mas onde devemos procurar as relações entre a sociedade e
a natureza, se estas variam continuamente?

Já vimos que estas relações variáveis provêm do


domínio do trabalho social. Com efeito, de que modo se
exprime o processo de adaptação da sociedade humana à
natureza? Ou em outros termos, em que consiste o estado
do equilíbrio instável entre a sociedade e a natureza?

A sociedade humana, enquanto vive, é obrigada a


procurar sua energia material no mundo exterior; ela não
pode existir de outra maneira. Ela se adapta tanto melhor à
natureza quanto mais energia dela retira: é somente quando
a quantidade desta energia aumenta que estamos em
presença do desenvolvimento de uma sociedade.
Admitamos, por exemplo, que num belo dia todas as
empresas deixem de funcionar, as fabricas, usinas, minas,
vias férreas, o trabalho dos campos e nas florestas, sobre a
terra e sobre os mares. A sociedade não poderia durar nem
oito dias, porque, mesmo para viver das reservas, é
necessário transportar, descarregar, distribuir.

"Toda criança sabe que qualquer nação


pereceria de fome, se ela parasse o seu
trabalho, já não digo por um ano, mas
por algumas semanas apenas.
(K. Marx: Carta a Kugelmann).

190
A Teoria do Materialismo Histórico N. Bukarin

Os homens trabalham a terra, recolhem o milho, a


cevada, o trigo, criam os animais, cultivam o algodão, linho,
cânhamo, cortam o mato, tiram a pedra das pedreiras e
satisfazem assim as suas necessidades de alimentação,
vestuário e habitação. Eles extraem o carvão e o minério de
ferro das profundezas da terra, constroem máquinas de aço,
com auxilio das quais penetram na natureza em diferentes
direções, transformando a terra inteira numa oficina
gigantesca, onde os homens malham com martelos,
inclinam-se sobre as bancas, cavam a terra, seguem a
marcha regular de máquinas monstruosas, cavam túneis nas
montanhas, cortam os oceanos com seus navios,
transportam a correspondência através dos ares, envolvem
a terra com uma rede de trilhos, colocam cabos no fundo dos
oceanos, e em toda parte, a começar pelas cidades
tentaculares, tumultuosas, para acabar nos cantos perdidos
de nossa terra, correm atarefados como formigas,
trabalhando para o seu "pão quotidiano", adaptam-se à
natureza, e adaptam esta ultima a si mesmos. Uma parte da
natureza — o meio, — o que aqui chamamos a natureza
exterior, — opõe-se a uma outra parte, a sociedade humana.
A forma de contacto entre estas duas partes de um mesmo
todo é constituída pelo processo do trabalho humano. O
trabalho é antes de tudo um processo que tem lugar entre o
homem e a natureza, processo no qual o homem determina
por sua própria atividade, regra e controle, a troca das
matérias entre se mesmo e a natureza. Ele se opõe como
força natural à essência da natureza. (O Capital tomo I). O
contacto direto entre a sociedade e a natureza, isto é, a

191
A Teoria do Materialismo Histórico N. Bukarin

transferência de energia da natureza à sociedade, é um


processo material.

"Para assimilar nova substancia em


forma adaptada à sua própria vida, o
homem põe em movimento as forças
naturais que pertencem ao seu corpo: as
mãos e os pés, a cabeça e os dedos."
(ibid.).

Este processo material de "troca das matérias" entre a


sociedade e a natureza constitui precisamente a relação
essencial entre o meio e o sistema, entre as "condições
exteriores" e a sociedade humana.

Para que a sociedade possa continuar a existir, é


necessário que o processo da produção se renove
constantemente. Suponhamos que, em certo momento,
tenha sido produzida uma determinada quantidade de trigo,
calçados, caminhos, etc., e que durante o mesmo período
tudo isto foi consumido. Está claro que a produção teve que
recomeçar um novo ciclo de movimentos. Ela deve renovar-
se constantemente, um elo deve seguir-se a outro. O
processo da produção, considerado no ponto de vista da
repetição destes elos (ou como se diz, dos ciclos de
produção), chama-se processo de reprodução. Para que este
tenha lugar, é necessário que todas essas condições
materiais se realizem. Por exemplo, para produzir tecidos, é
preciso ter teares; para fazer os teares, é preciso aço, para

192
A Teoria do Materialismo Histórico N. Bukarin

o aço é preciso carvão e minério; para transportar estes


últimos, são necessárias as vias férreas e, por conseguinte,
trilhos, locomotivas, etc., assim como estradas, navios, etc.;
são necessárias também as usinas, entrepostos, etc.. Em
uma palavra, é necessário toda uma série de produtos
materiais de naturezas diferentes. Não é difícil verificar que
estes produtos materiais desaparecem no processo da
produção, uns mais rapidamente, outros menos: a
alimentação dos tecelões é consumida, os teares gastam-se,
os edifícios envelhecem e exigem reparações, as locomotivas
se estragam, os dormentes e trilhos se deterioram. Assim, a
substituição contínua, graças à produção dos mais variados
objetos, deteriorados ou desaparecidos, é a condição
necessária para a reprodução. A cada momento, a sociedade
humana, para continuar o processo da reprodução, necessita
de uma certa quantidade de alimentos, de edifícios, de
produtos da industria, de transportes, etc... Todos estes
objetos precisam ser produzidos para que a sociedade
mantenha o seu nível de vida, a começar pelo trigo e pela
cevada, o carvão e o aço, para acabar pelos microscópios ou
o giz empregado nas escolas, pelas encadernações de livros
ou pelo papel de jornal, pois todas estas coisas fazem parte
da vida material da sociedade, são partes materiais
integrantes do processo geral de reprodução.

Assim, "a troca de materiais" entre a sociedade e a


natureza deve ser considerada como um processo material.
É com efeito um processo material, porque diz respeito a
objetos materiais (objetos de trabalho, meios de trabalho e

193
A Teoria do Materialismo Histórico N. Bukarin

produtos que deles resultam — tudo isto são objetos


materiais); por outro lado, o próprio processo de trabalho
constitui uma perda de energia fisiológica (dos nervos,
músculos, etc...) que aparece materialmente na ação física
dos homens que trabalham.

"Se estudarmos todo este processo do


ponto de vista de seu resultado, isto é,
do produto, então os meios e objetos do
trabalho constituirão os meios de
produção e o próprio trabalho será um
trabalho produtivo" (Capital — tomo 1).

O caráter material do trabalho produtivo é também


reconhecido, pudicamente pelos sábios burgueses, quando
se dedicam "a uma especialidade". Assim, o professor
Herkner (H. Herkner: Arbeit und Arbeitsteilung — Trabalho e
Divisão do Trabalho) escreve:

"Se quisermos explicar a essência do


trabalho, é preciso tomar em
consideração duas espécies de
fenômenos: Em primeiro lugar, o
trabalho físico se manifesta por
determinados movimentos exteriores.
Assim, a mão esquerda de um ferreiro
segura com tenazes um pedaço de ferro
aquecido ao rubro e o coloca sobre a
bigorna, enquanto que a mão direita dá

194
A Teoria do Materialismo Histórico N. Bukarin

uma forma ao objeto do seu trabalho, a


golpes de martelo. Pode-se determinar
neste caso o número, o aspecto e a
grandeza dos resultados do trabalho...
Pode-se descrever todo o processo do
trabalho", etc...

Herkner chama a isto trabalho "no sentido objetivo". Por


outro lado, pode-se estudar o mesmo processo do ponto de
vista dos pensamentos e dos sentimentos que animam o
trabalhador. Isto será o estudo "do trabalho no sentido
subjetivo". Como procuramos as relações entre a sociedade
e a natureza, e como estas relações se exprimem justamente
pelo trabalho objetivo (material), podemos por enquanto
deixar de lado a parte "subjetiva" do processo. Assim,
precisamos estudar a produção material de todos os
elementos materiais (componentes, objetos) necessários
para o processo da reprodução.

Entretanto, o fato dos instrumentos de medida, por


exemplo, serem objetos materiais e a sua fabricação ser do
domínio da produção material, necessária para o processo da
reprodução, não resulta daí absolutamente, como o
afirma Kautsky (Neue Zeit — 15.° ano, volume 1.°, pag.
233) eCunow (Produktions-weise und
Produktionsverhaltnisse nach Marxscher Auffassung O modo
de produção e as relações de produção segundo Marx,Neue
Zeit, 39.° ano, vol. pag. 408), que as matemáticas e os
estudos matemáticos dependem também da produção,

195
A Teoria do Materialismo Histórico N. Bukarin

porque são necessárias para a produção. E entretanto, se


todos os homens emudecessem subitamente, e se não
houvesse outras maneiras de comunicar a palavra
desaparecida, a produção cessaria também. Assim, a
linguagem é tão necessária para a reprodução como muitas
outras coisas em qualquer sociedade humana. Mas seria
ridículo considerar a linguagem como um elemento de
produção. Não temos que nos preocupar aqui tão pouco de
uma outra questão, que parece "árdua", saber o que é que
apareceu em primeiro lugar: a galinha ou o ovo (a sociedade
ou a produção)? Esta pergunta não tem cabimento. É
impossível imaginar a sociedade sem produção, como
também não se pode falar em produção quando não existe a
sociedade. O que importa é isto: será verdade, sim ou não,
que a transformação de sistemas seja determinada pela
transformação das relações entre elas e o seu meio? Se
assim é a questão será a seguinte: onde devemos procurar
esta transformação quando se trata da sociedade? Resposta:
no trabalho material. Formulada assim a questão, a maior
parte das refutações "profundas" ao materialismo histórico
perde a sua significação, e torna-se claro que é aqui que é
preciso procurar "a causa das causas" da evolução social.
Voltaremos a este ponto mais adiante.

"As trocas materiais" entre o homem e a natureza


consistem, como já vimos, em tirar energia material da
natureza exterior, e infundi-la na sociedade; a perda de
energia humana (a produção) provém do fato de retirar-se
energia da natureza, energia que deve ser fornecida à

196
A Teoria do Materialismo Histórico N. Bukarin

sociedade (distribuição dos produtos entre os membros da


sociedade) e assimilada por ela (consumo); esta assimilação
é a base de uma perda ulterior; é desta maneira que gira a
roda da reprodução. O processo da reprodução, tomado no
seu conjunto, contêm igualmente diversos elementos que
constituem um todo, uma unidade, cuja base continua a ser
entretanto o processo da produção. Com efeito, é fácil de
compreender que a sociedade humana toca de mais perto e
de maneira mais direta à natureza exterior, no processo da
produção: há um atrito com a natureza justamente por este
lado: esta é a razão porque, no processo da reprodução, o
lado produtivo determina tanto a distribuição quanto o
consumo.

O processo da produção social é a adaptação da


sociedade humana à natureza exterior. Mas trata-se de um
processo ativo. Quando uma espécie animal qualquer se
adapta a natureza, ela se submete, na realidade, à influência
do meio. Quando se trata da sociedade humana, ela se
adapta ao meio, adaptando-o a si mesma. Ela está
submetida à ação da natureza enquanto objeto, mas, ao
mesmo tempo, ela própria transforma a natureza em objetos
para o seu uso. Assim, por exemplo, quando a coloração de
certas espécies de insetos ou pássaros começa a se
assemelhar à cor do ambiente no qual vivem estas espécies,
isto não é resultado de esforços feitos por estes organismos,
nem da ação destas espécies sobre a natureza exterior. Este
resultado foi obtido aqui ao preço da perda de uma
quantidade imensa de indivíduos durante milênios e graças

197
A Teoria do Materialismo Histórico N. Bukarin

à sobrevivência de certos indivíduos mais aptos e que se


cruzaram constantemente. Os fatos se passam
diferentemente na sociedade humana. Ela luta contra a
natureza, ela abre sulcos na terra, abre caminhos através
das matas impenetráveis, ela domina as forças da natureza,
fazendo-as servir para seus próprios fins; ela muda o próprio
aspecto da terra. Não é uma adaptação passiva, mas ativa.
É nisto sobretudo que a sociedade humana se distingue das
outras sociedades animais.

Os fisiocratas (economistas franceses do século XVIII)


já o compreenderam perfeitamente. Assim, Nicolas
Baudeau (Primeira Introdução à Filosofia
Econômica ou Analise dos Estados Policiados, 1767. Coleção
dos economistas e dos reformadores sociais da França,
publicada por Dubois, Paris, p. 2) diz:

"Todos os animais trabalham


diariamente na procura do gozo dos
produtos espontâneos da natureza, isto
é, dos alimentos que a terra por si
mesma lhes fornece. Certas espécies
mais industriosas juntam e conservam
estes esmos produtos para deles
gozarem no futuro... Somente o
homem, destinado a estudar os
segredos da natureza e de sua
fecundidade... se propôs suprir a isto
procurando, pelo seu trabalho, produtos

198
A Teoria do Materialismo Histórico N. Bukarin

mais úteis, em número maior do que


aquele que a superfície da terra inculta
e selvagem lhe poderia fornecer. Esta
arte, mãe de tantas outras artes, pela
qual nos dispomos, solicitamos, e por
assim dizer, forçamos a terra a produzir
o que nos convém, isto é, o que é útil ou
agradável, é talvez um dos caracteres
mais nobres e mais distintos do homem
sobre a terra".

"...O homem, escreve o geógrafo L.


Metchnikov (o.c), tem em comum com
todos os organismos a qualidade
preciosa graças à qual ele se adapta ao
meio, mas domina todos os outros pela
sua aptidão particular e ainda mais
preciosa de adaptar o meio às suas
necessidades".

Estritamente falando, os germens de uma adaptação


ativa (pelo trabalho) existem em certas espécies de animais,
por assim dizer, sociáveis (nos castores, que constroem
diques, nas formigas que fazem formigueiros gigantescos,
utilizam os pulgões e certas plantas, nas abelhas, etc...). Por
outro lado, as formas primitivas do trabalho humano eram
também semelhantes às do trabalho instintivo dos animais.

199
A Teoria do Materialismo Histórico N. Bukarin

32. FORÇAS PRODUTIVAS. AS FORÇAS PRODUTIVAS


COMO ÍNDICE DA RELAÇÃO ENTRE A NATUREZA E A
SOCIEDADE

Assim, o processo de troca de matérias entre a


sociedade e a natureza, é um processo de reprodução social.
A sociedade perde neste processo a sua energia humana de
trabalho e recebe em troca uma quantidade determinada de
energia natural que ela assimila (os "objetos naturais"),
como se exprimia Marx. É evidente que o balanço desta
operação tem uma importância decisiva para a evolução da
sociedade. O que ela recebe é mais do que ela perde? E se é
assim, de quanto é maior. Está claro que a grandeza do
excesso que ela recebe tem consequências muito
importantes.

Vamos supor que uma sociedade qualquer seja obrigada


a gastar todo o seu tempo de trabalho para satisfazer as suas
necessidades essenciais. Isto significa que à medida que os
produtos obtidos são consumidos, uma quantidade igual é
fabricada novamente, mas não em número maior. Neste
caso, a sociedade não tem o tempo necessário para criar
uma quantidade suplementar de produtos, para aumentar as
suas necessidades, para criar alguns produtos novos: ela
consegue apenas manter o equilíbrio: ela vive para o seu pão
de cada dia; ela come aquilo que produz; come-se
justamente o necessário para poder trabalhar; todo o tempo
é empregado na fabricação de uma quantidade de produtos
sempre constante. A sociedade marca passo num nível

200
A Teoria do Materialismo Histórico N. Bukarin

miserável de vida. Não é possível aumentar as necessidades,


vive-se segundo os seus meios, e estes são muito restritos.

Admitamos agora que, devido a certas causas, a mesma


quantidade de produtos necessários seja obtida sem que o
tempo de trabalho seja empregado inteiramente; que seja
suficiente a metade deste tempo (assim, por exemplo, a tribo
primitiva se transportou para um lugar onde a caça é duas
vezes mais abundante, e a terra duas vezes mais fértil; ou
que o método de trabalhar a terra se modificou, ou que foram
inventados novos instrumentos de trabalho, etc. etc.).

Desta maneira, a sociedade tem livre a metade do seu


antigo tempo de trabalho. Ela pode empregar este tempo
ganho em novos ramos de produção: na fabricação de novos
instrumentos, na procura de novas matérias primas, etc. e
em seguida, em certos gêneros de trabalhos intelectuais.
Assim, novas necessidades podem nascer e desenvolver-se
e, pela primeira vez, o aparecimento e desenvolvimento da
"cultura" torna-se possível. Se este tempo ganho for
empregado para aperfeiçoar, ao menos em parte, as antigas
formas de trabalho, empregar-se-á no futuro, para satisfazer
as antigas necessidades, não mais a metade do tempo de
trabalho, mas um pouco menos (novos aperfeiçoamentos
aparecem no processo de trabalho); no ciclo seguinte da
reprodução, o tempo de trabalho diminuirá ainda mais, etc.;
e o tempo livre assim adquirido será empregado cada vez
mais de um lado para a fabricação de instrumentos,
utensílios, de máquinas sempre novas, e de outro lado, para

201
A Teoria do Materialismo Histórico N. Bukarin

a criação de novos ramos de produção, destinados a


satisfazer a novas necessidades, e enfim, para o
desenvolvimento da cultura a começar pelas categorias
desta cultura que são mais ou menos ligadas ao processo da
produção.

Vamos supor agora que as necessidades que ocupavam


anteriormente a totalidade do tempo de trabalho exigem
agora não mais a metade, mas o dobro do tempo de antes
(quando, por exemplo, a terra está cansada); é evidente que
neste caso, se não for possível modificar os métodos de
trabalho, ou emigrar, a sociedade sofrerá forçosamente um
recuo; uma parte da sociedade perecerá infalivelmente.
Admitamos ainda que uma sociedade muito desenvolvida,
tendo uma "cultura" avançada, necessidades muito variadas,
um grande número de indústrias "artes e ciências"
florescentes encontre obstáculos para satisfazer as suas
necessidades; que, por exemplo, como consequência de
certas causas, ela não seja mais capaz de dirigir o seu
aparelho técnico (ele é, por exemplo, o teatro de uma luta
de classe incessante, luta na qual nenhuma classe consegue
vencer a outra, e o processo de produção, com toda a sua
técnica superior, cessa de funcionar); volta-se então aos
velhos métodos de trabalho; seria preciso, para satisfazer as
antigas necessidades, perder uma quantidade enorme de
tempo, o que é impossível. A produção diminui, volta às suas
formas antigas; as necessidades se restringem, o nível de
vida baixa; a flor "das ciências e das artes" fenece; a vida
espiritual se empobrece e a sociedade, se o recuo em

202
A Teoria do Materialismo Histórico N. Bukarin

questão não é provocado por causas passageiras, caminha


para traz, volta "á barbárie".

O que há de notável em todos os casos citados acima? É


que o desenvolvimento da sociedade é determinado pelo
rendimento ou produtividade do trabalho social. Entende-se
por produtividade do trabalho, a relação entre a quantidade
de produtos obtidos e a quantidade de trabalho empregada;
ou em outros termos, a produtividade do trabalho é a
quantidade de produtos obtidos em uma unidade de tempo
de trabalho; por exemplo, a quantidade de produtos obtida
em um dia ou em uma hora, ou em um ano. Se a quantidade
de produtos obtidos em um dia de trabalho aumenta do
dobro, diz-se que a produtividade do trabalho dobrou; se ela
diminui de metade, diz-se que a produtividade de trabalho
diminuiu de 50%.

É fácil de compreender que a produtividade de trabalho


social exprime muito exatamente todo o "balanço" das
relações entre a sociedade e a natureza. A produtividade do
trabalho social constitui precisamente o índice desta relação
entre o meio e o sistema, relação que determina a situação
do sistema dentro do meio, e cujas transformações indicam
as transformações inevitáveis de toda a vida interna da
sociedade.

Examinando o problema da produtividade social, é


preciso contar também como perda a parte do trabalho
humano que foi empregada na confecção de instrumentos de

203
A Teoria do Materialismo Histórico N. Bukarin

trabalho necessários. Se, por exemplo, um certo produto era


feito a mão quase sem auxilio de instrumentos, e se em
seguida começou-se a fabricá-lo com a ajuda de máquinas
muito complicadas, e se, graças à aplicação destas
máquinas, a quantidade de produtos obtida aumentou do
dobro, isto não quer dizer que a produtividade do trabalho
tenha dobrado para toda a sociedade: não foi contada aqui
a despesa de trabalho humano empregado na fabricação das
máquinas (ou antes, a parte deste trabalho que se aplica ao
produto devido ao gasto destas máquinas.). Assim, o
aumento da produção do trabalho será inferior ao dobro.

Detendo-se em detalhes, pode-se refutar a própria


concepção da produtividade do trabalho social na sua
aplicação a toda sociedade, como o faz, por exemplo, P. P.
Maslov no seu "Capitalismo". Pode-se dizer que a concepção
da produtividade do trabalho não pode ser aplicada senão a
ramos particulares da produção: foi produzida este ano em
um certo número de horas de trabalho uma certa quantidade
de calçados; no ano seguinte, durante o mesmo tempo,
fabricou-se duas vezes mais. Mas, como comparar e
adicionar a produtividade do trabalho no domínio da criação
de porcos e no da cultura de laranjas? Isto não é o mesmo
que comparar a musica, a taxa de desconto e a beterraba
açucareira, coisa que Marx ridicularizava tão acerbamente?
Pode-se entretanto responder com dois argumentos: Em
primeiro lugar, todos os produtos úteis e socialmente
assimiláveis são comensuráveis enquanto energias úteis;
não exprimimos a cevada, o frumento, a beterraba e a batata

204
A Teoria do Materialismo Histórico N. Bukarin

em calorias? Se não conseguimos ainda exprimir assim


praticamente outros objetos, isto nada prova; basta saber
que é possível. Por outro lado, podemos comparar os
diversos objetos complexos, por meios indiretos e
complicados. Não é possível explicá-lo aqui em detalhe.
Citemos somente alguns casos mais simples. Se, por
exemplo, fabricou-se em certo número de horas de trabalho,
no decurso de um ano, mil pares de calçados, dois mil maços
de cigarros e vinte máquinas, e em outro ano, durante o
mesmo tempo de trabalho, mil pares de meias, mil
novecentos e noventa e nove maços de cigarros, vinte e uma
máquinas e cem castiçais, podemos dizer, sem errar, que a
produtividade do trabalho aumentou, em geral. Pode-se opor
ainda um outro argumento, que consiste em dizer que não
se produzem somente objetos de uso corrente, mas também
instrumentos de produção. Com efeito, do ponto de vista
prático, isto constitui uma grande dificuldade: entretanto,
por métodos bastantes complicados, podemos igualmente
levar em conta este fato.

Assim, as relações entre a natureza e a sociedade se


exprimem pela relação entre a quantidade de energia útil
criada de um lado, e a despesa de trabalho social de outro,
isto é, pela produtividade do trabalho social. Mas, a despesa
de trabalho social é, como já vimos, composta de duas
partes: o trabalho incluído nos meios de produção e o
trabalho "viva", isto é, a despesa de uma força viva de
trabalho. Se nós examinarmos o grau de produtividade do
trabalho do ponto de vista das partes materiais que o

205
A Teoria do Materialismo Histórico N. Bukarin

compõem, encontraremos três grandezas: 1ª a massa dos


produtos fabricados; 2ª a massa dos meios de produção; 3ª
a massa das forças de trabalho, isto é, dos operários vivos.
Todas estas grandezas dependem umas das outras. Com
efeito, é evidente que se nós conhecemos a qualidade dos
meios de trabalho e dos operários, sabemos também quanto
eles poderão produzir em determinado tempo; duas
grandezas determinam a terceira: o produto. Estas duas
grandezas tomadas em conjunto formam o que nós
chamamos as forças produtivas materiais da sociedade. Se
soubermos quais os meios de produção de que a sociedade
dispõe, qual é a sua quantidade, quantos operários tem essa
sociedade, saberemos desde logo qual é a produtividade do
trabalho social, qual é o grau de dominação desta sociedade
sobre a natureza, em que medida esta sociedade domina a
natureza, etc... Em outros termos, temos nos meios de
produção e nas forças de trabalho um índice preciso do grau
de desenvolvimento social.

Mas podemos estudar a questão de uma maneira um


pouco mais profunda. Podemos dizer que os meios de
produção determinam por si mesmos as forças de trabalho.
Se, por exemplo, uma maquina de composição entrou no
sistema de trabalho social, operários especialistas aparecem
também. Os elementos que agem no processo do trabalho
não constituem, tão pouco, um aglomerado desordenado,
mas um sistema onde cada objeto e cada indivíduo se
acham, por assim dizer, em seu lugar: uma coisa está
adaptada a outra. Por conseguinte, se temos os meios de

206
A Teoria do Materialismo Histórico N. Bukarin

produção, deduz-se daí que temos também operários


apropriados. Em seguida, entre os próprios meios de
produção, podem-se distinguir dois grupos importantes: as
matérias primas e os instrumentos de trabalho. É fácil
observar que são justamente os instrumentos de trabalho
que constituem a parte ativa; é com eles que o homem
trabalha a matéria prima. Mas, se nos disserem que em
determinada sociedade existe um certo instrumento, pode-
se daí concluir que existe também a matéria prima
correspondente (examinamos um caso de uma marcha
normal da reprodução). Deste modo, podemos dizer com
absoluta certeza: o índice material preciso das relações entre
a sociedade e a natureza é dado pelo sistema dos meios
sociais de trabalho, isto é, pela técnica de uma determinada
sociedade. Nesta técnica exprimem-se as forças produtivas
materiais da sociedade e a produtividade do trabalho social.
Assim como a estrutura dos fragmentos de ossos tem grande
importância para o estudo da organização das espécies
animais desaparecidas, também os fragmentos dos meios de
trabalho têm uma grande importância para o estudo das
formações sociais e econômicas desaparecidas (isto é, das
sociedades de tipos diferentes. N. B.).

"As épocas econômicas não se


distinguem pelo que é produzido, mas
pelo modo de produção e pelos meios de
trabalho empregado".
(K. Marx: Capital, tomo I).

207
A Teoria do Materialismo Histórico N. Bukarin

Pode-se ainda procurar resolver estes problemas de


outra maneira. Sabemos que os animais "se adaptam" à
natureza. Em que consiste, antes de tudo, esta adaptação?
Na modificação dos diferentes órgãos destes animais: as
pernas, os maxilares, as barbatanas, etc..

É uma adaptação passiva, biológica, enquanto que a


sociedade humana se adapta ativamente, não
biologicamente, mas tecnicamente.

"Os instrumentos de trabalho


constituem o objeto ou o conjunto de
objetos que um operário coloca entre se
e o objeto de seu trabalho e que lhe
servem para exercer a sua ação sobre
este objeto... Assim, o objeto dado pela
própria natureza torna-se um órgão de
sua ação, órgão que ajunta aos
membros do seu corpo, aumentando
assim, mau grado a Bíblia, as dimensões
naturais deste ultimo". (Capital, t. 1).

É assim que a sociedade humana cria pela sua técnica


um sistema artificial de órgãos que exprimem a adaptação
direta e ativa da sociedade, à natureza. (Notemos, entre
parênteses, que a adaptação física direta do homem à
natureza torna-se assim supérflua: comparado a um gorila,
o homem é um ser fraco; na sua luta contra a natureza, ele
coloca diante de si não os maxilares, mas um sistema de

208
A Teoria do Materialismo Histórico N. Bukarin

máquinas). Examinando o problema deste ponto de vista,


chegamos à mesma conclusão: o sistema técnico da
sociedade é o índice material preciso da relação entrega
sociedade e a natureza.

Em outro ponto do Capital, diz Marx:

"Darwin despertou o interesse pela


história da tecnologia natural, isto é,
pela história do desenvolvimento dos
órgãos, das plantas e dos animais,
órgãos que desempenham o papel de
meios de produção para manter a sua
existência. A história do
desenvolvimento dos órgãos de
produção do homem social, destas bases
materiais de toda organização social,
não merecerá também atenção A
tecnologia revela a relação ativa entre o
homem e a natureza este processo
direto de produção pelo qual ele mantém
a sua existência; ao mesmo tempo, ela
revela também o modo pelo qual se
formam as relações sociais e as
concepções intelectual que daí
resultam...

"O emprego e a criação de meios de


trabalho, se bem que eles sejam comuns

209
A Teoria do Materialismo Histórico N. Bukarin

em sua forma embrionária a certas


espécies animais, constituem
especificamente os traços característico
do processo do trabalho humano, e esta
é a razão por que Franklin definiu o
homem como "a toolmaking animal",
isto é, como "um animal que fabrica
instrumentos". (Capital t. I).

É curioso verificar que os instrumentos primitivos foram,


com efeito, criados "à imagem" dos membros do corpo
humano.

"Utilizando os objetos que se acham


diretamente debaixo da mão, dá-se aos
instrumentos primitivos a forma de
membros humanos alongados,
reforçados e mais precisos." (Ernst
Kapp: Grundlinieneiner Philosophie der
Technik — Esboço de uma Filosofia da
Técnica — Braunschweig 1877, p. 42).
"Assim como o instrumento contundente
tem o seu, modelo no punho, também
os instrumentos cortantes derivam das
unhas e dos dentes. O martelo, com o
seu lado cortante se transforma em
machado; o indicador levantado tendo
uma unha aguda se transforma na sua
imagem técnica em verruma; uma fileira

210
A Teoria do Materialismo Histórico N. Bukarin

de dentes em lima e serra, enquanto que


a mão que aperta e os dois maxilares se
transformam em pinças e tenazes. O
martelo, o machado, a faca, a tesoura,
o virabrequim, a serra, a pinça, são
instrumentos primitivos". (Ibid. p. 43-
44). Um dedo recurvado torna-se um
gancho, a concha da mão um recipiente;
encontramos certos traços da mão, do
punho, dos dedos, etc, na espada, na
lança, no leme, na pá, no ancinho,
etc..." (Ibid pag. 45).

É fácil ver como se processa a passagem dos


instrumentos simples aos mais complexos na vida primitiva:

"Um pau evolui de varias maneira: para


cair pesadamente sobre a cabeça do
inimigo ele se transforma em tacape;
para cavar a terra e trabalhá-la, em pá;
para atravessar a caça, em dardo, etc..."
(G. Lilienfeld: Wirtschaft und Technik —
A Economia e a Técnica em Grundriss
der Socialoekônomik — Esboço de
Economia Social, 2ª parte, pag. 228).

As relações existentes entre a técnica e a pretensa


"riqueza da cultura" saltam aos olhos. Basta comparar, por
exemplo, a China moderna e o Japão. Na China, como

211
A Teoria do Materialismo Histórico N. Bukarin

consequência de toda uma série de condições particulares, a


produtividade trabalho e da técnica social evolui muito
lentamente, e a China apresenta no momento o tipo de uma
cultura relativamente estacionaria. São os impulsos de uma
nova técnica capitalista que exercem aqui uma influência
revolucionaria. Pelo contrario, o Japão deu nestas ultimas
dezenas de anos um passo gigantesco para a frente no
domínio do desenvolvimento técnico; é assim, que a cultura
japonesa fez também progressos extremamente rápidos:
basta lembrar a ciência japonesa.

Na primeira metade da idade média que, do ponto de


vista da cultura geral, era muito inferior à sociedade antiga,
a técnica deu um grande passo para traz relativamente à
antiguidade e muitos processos e invenções mecânicas da
antiguidade foram completamente esquecidos...

"á exceção da (técnica da guerra e da


metalurgia do ferro ligada a esta
ultima". (V. K. Agafonov: A Técnica
moderna. O balanço da Ciência, tomo
3.°, pag. 16).

Está claro que não se pôde criar uma "riqueza


intelectual" sobre uma tal base técnica: a sociedade
dispunha de muita pouca seiva para viver "uma vida
intensa". O progresso feito pela Europa corresponde ao
desenvolvimento da técnica capitalista (entre 1750 e 1850 a
técnica sofreu uma verdadeira revolução; inventou-se a

212
A Teoria do Materialismo Histórico N. Bukarin

maquina a vapor, os transportes a vapor, utilizou-se o


carvão, trabalhou-se o ferro por meio de processos
mecânicos, etc...). Em seguida aplicou-se a eletricidade, a
técnica das turbinas, os motores Diesel, os automóveis, a
navegação aérea. Os meios técnicos da sociedade e as suas
forças produtivas atingem um nível sem precedentes. Não é
de admirar que a sociedade humana tenha podido nestas
condições desenvolver "uma vida espiritual" muito complexa
e muito variada. Com efeito, se considerarmos o
florescimento das antigas culturas com a sua vida espiritual
relativamente complexa, veremos imediatamente como era
atrasada a sua técnica em comparação com a técnica
capitalista da Europa moderna e da America. A principal
aplicação dos instrumentos mais ou menos complicados se
limitava aos trabalhos de construção, às aduções de água e
às minas. A própria obtenção da produção máxima era
baseada, não sobre a perfeição dos instrumentos, mas pela
aplicação de uma massa colossal de forças vivas de trabalho.

"Herodoto conta como 100.000 homens


arrastaram pedras durante três meses
para a construção pirâmide de Keops
(2.800 A. C.) e como foram necessários
10 anos de trabalhos de aterramento
preparatórios para construir uma
estrada desde as pedreiras até ao Nilo".
Agafonov, o. c. pag. 5).

213
A Teoria do Materialismo Histórico N. Bukarin

Vê-se pela definição de maquina que dá Vitruvio, o


engenheiro de Roma antiga, a que ponto a técnica era então
relativamente pobre:

"a maquina, diz ele, é uma construção


em madeira que presta grande serviço
para levantar as cargas". (Id. pag. 3).
Estas "máquinas em madeira serviam
sobretudo para levantar cargas,
exigindo aliás o emprego de uma
quantidade considerável de forças
humanas ou animais".

33. O EQUILÍBRIO ENTRE A NATUREZA E A SOCIEDADE,


SUAS RUPTURAS E SEUS RESTABELECIMENTOS

Se nós examinarmos agora todo o processo em seu


conjunto, veremos que o processo de reprodução é um
processo de ruptura e de restabelecimento constante entre
a sociedade e a natureza.

Marx distingue a reprodução simples e a reprodução


crescente.

Em que consiste a reprodução simples? Como sabemos,


no processo de produção, os meios de produção são
consumidos (trabalha-se a matéria prima, empregam-se
diferentes materiais, tais como óleos lubrificantes, trapos,
etc...; as próprias máquinas, as edificações onde se trabalha,
os instrumentos de trabalho e as suas peças se desgastam);

214
A Teoria do Materialismo Histórico N. Bukarin

por outro lado despende-se também a força de trabalho


(quando os homens trabalham, eles se desgastam também,
a sua força de trabalho é consumida e certas despesas são
necessárias para reconstituir esta força). Para que o
processo da produção possa continuar, é preciso que no
decurso desse processo, e por si mesmo, seja reproduzido
aquilo que foi gasto por ele. Assim, por exemplo, emprega-
se na indústria têxtil, como matéria prima, o algodão; os
teares se gastam. Para que a produção possa continuar, é
preciso que, ao mesmo tempo, se colha algodão e se
construam teares. — De um lado, o algodão desaparece para
se transformar em tecido; de outro lado o tecido desaparece
(ele é utilizado pelos operários, etc.) o algodão reaparece.
De um lado, os teares desaparecem e reaparecem de outro.
Em outros termos, os elementos necessários para a
produção, uma vez gastos, devem ser reconstituídos. É
preciso que constantemente se possa substituir tudo aquilo
que é necessário para produção. Se esta substituição é
realizada na mesma proporção em que foi gasta, temos uma
reprodução simples. Isto corresponde a uma situação em
que a produtividade do trabalho social é invariável; as forças
produtivas não mudam, a sociedade não caminha nem para
adiante, nem para trás. Não é difícil verificar que estamos
aqui em presença de um equilíbrio estável entre a sociedade
e a natureza. Aqui, a ruptura de equilíbrio (os produtos
desaparecem), e o seu restabelecimento (os produtos
reaparecem) se renova constantemente, mas este
restabelecimento é sempre feito na mesma base: produz-se
justamente tanto quanto foi gasto; gasta-se novamente

215
A Teoria do Materialismo Histórico N. Bukarin

outro tanto e torna-se a produzir a mesma quantidade, etc...


A reprodução se faz sempre com o mesmo ritmo.

As coisas se passam diferentemente quando as forças


produtivas aumentam. Então, como vimos acima uma parte
do trabalho social se libera e é empregada em alargar a
produção social (criam-se novos ramos desenvolvem-se os
antigos). Isto significa que não somente os elementos de
produção que existiam anteriormente são substituídos, mas
que outros elementos novos são introduzidos no ciclo da
produção. A produção não segue aqui o mesmo caminho, o
mesmo ciclo, mas ela se alarga. Neste caso temos a
reprodução crescente. É fácil verificar que o equilíbrio aqui
se restabelece de maneira diferente: gasta-se uma certa
quantidade, mas produz-se mais; o gasto aumenta, a
produção aumenta mais ainda. O equilíbrio se restabelece
cada vez sobre uma nova base, mais larga. Trata-se de um
equilíbrio movei com um resultado positivo.

Enfim, apresenta-se um terceiro caso; o da diminuição


das forças produtivas. Aqui, o processo de reprodução
caminha para traz: a reprodução torna-se cada vez menor.
Consumiu-se uma certa quantidade, produziu-se menos;
consome-se menos, produz-se ainda menos.

Aqui, a reprodução não segue o mesmo movimento


circular. Ela não se alarga, mas ao contrario, o circulo se
torna cada vez mais estreito; a base vital da sociedade se
retrai cada vez mais; o equilíbrio entre a sociedade e a

216
A Teoria do Materialismo Histórico N. Bukarin

natureza se restabelece sobre uma nova base, mas esta


diminui constantemente.

Ao mesmo tempo, a própria sociedade não se adapta a


esta nova base restringida, senão ao preço de uma
destruição parcial de si mesma. Temos aqui um equilíbrio
móvel negativo. A reprodução neste caso pode ser
denominada reprodução negativa crescente, ou então, sub-
produção crescente.

Examinamos esta questão por todas as suas faces, e em


toda parte verificamos o mesmo fato. Tudo se reduz, por
conseguinte, ao caráter do equilíbrio entre a sociedade e a
natureza. As forças produtivas servindo de índice preciso do
equilíbrio, podemos julgar, segundo elas, do caráter do
equilíbrio. É evidente que o mesmo pode ser dito sobre a
técnica da sociedade.

34. AS FORÇAS PRODUTIVAS COMO PONTO DE PARTIDA


PARA A ANALISE SOCIOLÓGICA

De tudo o que precede resulta necessariamente a


seguinte regra cientifica:

"Para estudar a sociedade, as condições


de seu desenvolvimento, suas formas,
seu conteúdo, etc, é preciso começar por
uma analise das forças produtivas, isto
é, da base técnica da sociedade".

217
A Teoria do Materialismo Histórico N. Bukarin

Examinemos com efeito alguns argumentos que foram


apresentados ou que podem ser apresentados contra este
ponto de vista.

Vamos tomar em primeiro lugar as refutações dos sábios


que admitem de uma maneira geral a concepção
materialista. Assim, G. Cunow diz(Neue Zeit, 39° ano, vol.
2.°, pag. 350) que a técnica

"está ligada muito intimamente às


condições naturais. A presença de certas
matérias primas, por exemplo, decide se
em princípio certas fôrmas da técnica
podem ser criadas e em que condições
elas se desenvolverão. Nos lugares, por
exemplo, onde certas espécies de
arvores, de minérios, de fibras ou de
conchas não existem, os indígenas não
podem aprender por se mesmos a
trabalhar estes materiais e fazer com
eles instrumentos e armas".

Nós mesmos citamos, no princípio deste capitulo, alguns


fatos que mostram a influência das condições atuais. Por que
não começar por eles? Por que motivo o ponto de partida
metodológico não será precisamente a natureza. Ela influi
incontestavelmente sobre a técnica mais o menos do modo
a que se refere Cunow. Por outro lado. todo mundo
compreende que a natureza existiu antes da sociedade. Não

218
A Teoria do Materialismo Histórico N. Bukarin

estaremos nós pecando contra "verdadeiro" materialismo,


quando tomamos como base para a analise o aparelho
técnico e material da sociedade humana?

Basta, porém, examinar este problema mais de perto


para ver a que ponto são pouco convincentes as provas
apresentadas por Cunow. Sem minas de carvão,
evidentemente, não será possível extrair a hulha do solo.
Mas, infelizmente não se extrairá muito mais, se utilizarmos
o dedo para cavar a terra. E sobretudo será difícil procurar,
pois os homens desconhecem até a sua utilidade. As
matérias primas não se encontram, como o pretende Cunow,
na natureza. As matérias primas, segundo Marx, são um
produto do trabalho e não se encontram no seio da natureza,
como também não se encontra um quadro de Rafael ou o
colete do sr. Cunow. Cunow confunde as matérias primas
com o objeto de trabalho "possível"(3).Cunow esquece
completamente que uma técnica apropriada é necessária
para que as arvores, o minério, as fibras, etc, possam
desempenhar o papel de matérias primas. O carvão não se
torna matéria prima senão quando a técnica se desenvolve
ao ponto de penetrar nas profundezas do subsolo e o extrair
do reino das trevas para o trazer à luz do dia.

A influência da natureza no próprio fornecimento de


materiais, etc., é o produto do desenvolvimento da técnica.
Com efeito, enquanto a técnica não aproximou s seus
tentáculos do minério de ferro, este ultimo podia dormir o

219
A Teoria do Materialismo Histórico N. Bukarin

seu sono de morte que sua influência sobre o homem era


igual a zero.

A sociedade humana trabalha na natureza e sobre a


natureza considerada como seu objeto. Sobre isto não há
duvida alguma. Mas os elementos que existem na natureza
são nela encontrados de maneira mais ou menos constante;
por este motivo eles não podem explicar as transformações.
O que varia é a técnica social que, certamente, se adapta a
aquilo que existe na natureza (ao nada não podemos adaptar
nada, e não basta dispor de um buraco para poder fundir um
canhão). Se a técnica constitui a quantidade variável e se é
a transformação da técnica que provoca as variações de
relações entre a sociedade e a natureza, está claro que é nela
que se deve encontrar o ponto de partida da analise das
transformações sociais(4).

L. Metchnikov exprime-se desta maneira absurda:

"Estou longe de me associar à teoria do


fatalismo geográfico, à qual se reprocha
frequentemente o fato de ela pregar o
princípio da influência do meio (isto é,
da natureza, N. B.) que determina tudo
na natureza. Na minha opinião, devem-
se procurar as transformações não no
próprio meio, mas nas relações que se
estabelecem entre o meio e as aptidões
naturais dos seus habitantes para a

220
A Teoria do Materialismo Histórico N. Bukarin

cooperação e para o trabalho social


solidário. Assim, o valor histórico de um
determinado meio geográfico, admitindo
mesmo que do ponto a vista físico,
permanece imutável em qualquer
circunstancia, pode e deve variar
segundo o grau de aptidão de seus
habitantes para o trabalho solidário
voluntário". (p. 27-28).

Isto não impede, aliás, o mesmo Metchnikov de cair em


outro excesso e de superestimar "o fator geográfico". (Ver o
relatório de Plekanov em "Critica de nossas criticas"). O
caráter passivo da influência da natureza é reconhecido
atualmente por quase todos os geógrafos, bem que a
multidão dos sábios burgueses não entenda absolutamente
nada do que seja materialismo histórico. Assim, Mac Farlane
(John Mac Farlane; "Economic Geography" — Geografia
Econômica —, Londres, Isaac Pittman & Son), escreve a
propósito das "condições naturais da atividade econômica"
(cap. 1.°):

"Estas condições físicas... não


determinam em um sentido absoluto o
caráter da vida econômica, mas
exercem sobre ela uma influência que,
sem duvida, é mais notável nos períodos
primitivos da história humana, mas que
não é menos real nas civilizações

221
A Teoria do Materialismo Histórico N. Bukarin

adiantadas, quando o homem já


aprendeu a se adaptar ao seu meio
(ambiente) e a receber dele uma
quantidade crescente de bens".

Sabe-se o papel que desempenha o carvão e a que ponto


a industria dele depende. Entretanto, com as transformações
introduzidas na técnica da extração e da transformação da
turfa, a importância da hulha pode diminuir
consideravelmente, e este fato acarreta um reagrupamento
completo dos centros industriais. Com a eletrificação, é o
alumínio, que anteriormente desempenhava um papel
insignificante, que adquire uma importância particular. A
água, como fonte de força motriz, teve outrora uma
importância muito grande (roda d’água), em seguida ela a
perdeu, e atualmente volta a recuperá-la (as turbinas, a
"hulha branca"). As relações de espaço na natureza
permanecem as mesmas, mas as vias de comunicação as
encurtam para o homem; com o desenvolvimento da
navegação aérea, o quadro mudará ainda mais.

Esta influência dos meios de transporte (grandezas


muito variáveis em função da técnica) tem uma importância
decisiva, mesmo para a repartição geográfica da industria.
Encontram-se considerações muito interessantes, a este
respeito, na teoria de A. Werber sobre "a repartição dos
centros industriais". (Ver A. Weber: Industrielle
Standortslehre e também Ueber die Standorte der
Industrien, 1ª parte: Reine Theorie desStandortes, 1909).

222
A Teoria do Materialismo Histórico N. Bukarin

Encontramos a expressão poética da dominação


crescente do homem sobre a natureza, de sua força ativa,
no Prometeu de Goethe:

Zeus, cobre o teu céu


Com as nuvens
E, semelhante a uma criança
Que corta as cabeças dos cardos,
Diverte-te com os carvalhos e os cumes das
montanhas;
E, entretanto, tu és obrigado
A me deixar a minha terra
E a minha choupana, que não construíste,
E a minha lareira,
Da qual tu invejas
O calor.

Assim, está claro que as diferenças nas condições


naturais podem explicar as diferenças que existem na
evolução dos diferentes povos, mas elas não podem explicar
a evolução da mesma sociedade. As diferenças naturais
tornam-se em seguida, depois da união destes povos em
uma só sociedade, a base da divisão social do trabalho.

"Não é a fecundidade absoluta do solo,


mas a sua diferenciação, a diversidade
de seus produtos naturais, que formam
a base da divisão social do trabalho e
que obrigam o homem, como

223
A Teoria do Materialismo Histórico N. Bukarin

consequência da variedade das


condições naturais que o envolvem, a
variar também as suas próprias
necessidades, suas aptidões e os meios
de produção. (Marx: Capital, tomo 1).

Um outro grupo de argumentos invocados contra a


concepção da evolução social exposta acima, é constituído
pelos argumentos que indicam a importância essencial e
decisiva do acréscimo da população. A tendência à
multiplicação é infalivelmente inerente à natureza humana.
Ela existiu em nós antes da historia humana. É o único
processo natural, animal, biológico que tem existido antes da
formação da economia social. Não estará este processo na
base de toda evolução? A densidade crescente da população
não determinará a marcha da evolução social?

Mas não é difícil verificar que a lei funciona aqui em


sentido contrario: é do grau de desenvolvimento das forças
produtivas, ou o que vem a dar ao mesmo, é do grau do
desenvolvimento da técnica que depende a própria
possibilidade do acréscimo da população. O aumento do
número de homens (aumento mais ou menos estável) não é
outra coisa senão um alargamento, um acréscimo do sistema
social. E este acréscimo não é possível senão quando as
relações entre a sociedade e a natureza variam de maneira
favorável. Um maior número de homens não pode existir
sem que a base vital da sociedade se alargue. Ao contrario,
o retraimento desta base vital deve trazer fatalmente como

224
A Teoria do Materialismo Histórico N. Bukarin

consequência uma diminuição do número de homens. Como


se produzirá este fato, isso é uma outra questão: será pela
baixa da natalidade, ou pela regulamentação da mesma, pela
morte, pelo aumento da mortalidade como consequência de
moléstias, pelo desgaste prematuro dos organismos e uma
diminuição da longevidade? Pouco importa: esta relação
essencial entre a base vital da sociedade e a sua grandeza
encontrará a sua expressão de uma ou de outra maneira.

Além disto, é um erro representar o aumento da


população como um processo de multiplicação biológica e
"natural". Este processo depende das condições sociais as
mais variadas: da divisão em classes, da separação destas
classes e, por conseguinte, da forma da economia social.

A forma da sociedade, a sua estrutura, dependem por


sua vez, como o provaremos adiante, do nível de
desenvolvimento da técnica e o movimento da população,
isto é, a variação de sua densidade, não é tão simples.
Somente os ingênuos podem pensar que o problema da
multiplicação é tão simples e primitivo para os homens como
para os animais. Assim, por exemplo, para que a população
possa aumentar, é preciso sempre, na sociedade humana,
que as forças produtivas tenham aumentado. Sem isto, como
já vimos, o excedente da população nada teria para comer.
Mas, por outro lado, não é sempre para todas as classes que
o aumento dos bens materiais provoca uma multiplicação
reforçada: enquanto uma família proletária pode diminuir
artificialmente o número de seus filhos, por causa das

225
A Teoria do Materialismo Histórico N. Bukarin

dificuldades da vida, a mulher chique foge da maternidade


para não perder a sua elegância e um camponês francês não
quer ter mais de dois filhos para não dividir muito a herança.
E é assim que o movimento das populações dependem de
toda uma série de condições especiais, da forma da
sociedade e da situação que as classes e grupos particulares
nela ocupam.

Por conseguinte, no que se refere à população, podemos


dizer: é indiscutível que o aumento da população pressupõe
o desenvolvimento das forças produtivas da sociedade; em
segundo lugar, cada época, cada forma de sociedade, a
situação diferente das classes, determinam leis particulares
para os movimentos da população.

"A lei abstrata (universal, independente


de um determinada forma, N. B.) que
rege a população, não existe senão para
as plantas e os animais, senão enquanto
o homem não se intromete
historicamente neste domínio..." "cada
meio de produção histórica e particular
tem suas leis que determinam o
movimento de população particular e
tendo uma significação histórica". (Karl
Marx:Capital t. 1).

Os meios históricos de produção, isto é, as formas da


sociedade, são determinados pelo desenvolvimento das

226
A Teoria do Materialismo Histórico N. Bukarin

forças produtivas, isto é, pelo desenvolvimento da técnica.


Assim, não são as leis do movimento da população que
constituem o fator decisivo, mas é o desenvolvimento das
forças produtivas e as leis que regem este desenvolvimento
(ou diminuição), que determinam o movimento da
população.

A burguesia tentou, mais de uma vez, colocar no lugar


das leis sociais outras "leis" provando que a miséria das
massas, estabelecida por Deus, é inevitável e que esta
situação é independente do regime social. É sobre isto que
se baseia a superestimação da "geografia" na doutrina do
meio, quando se forçam os fenômenos da natureza para
explicar os acontecimentos históricos (assim Ernst Miller
"provava" que a marcha da história dependia do magnetismo
terrestre; Jevons explicava as crises industriais pelas
manchas do sol, etc). Entre estas tentativas podemos colocar
também a do pastor e economista inglês Robert Malthus, que
via a fonte da miséria da classe operária na tendência
pecaminosa dos homens em se multiplicarem. A sua "lei
abstrata da população" consiste no seguinte: a população
aumenta mais depressa do que os meios de subsistência (os
meios de subsistência em progressão aritmética, isto é,
como 1, 2, 3, 4, 5, etc.; a população em progressão
geométrica, isto é, como 2, 4, 8, 16, etc.). As concepções
dos sábios burgueses modernos começam a modificar-se
radicalmente e a doutrina de Malthus torna-se obsoleta: a
causa disto é que em certos países (na França e em outros)
a natalidade diminui a tal ponto que começa a faltar soldados

227
A Teoria do Materialismo Histórico N. Bukarin

para a burguesia, a carne para o canhão, e a burguesia faz


todos os esforços para incitar a classe operária e camponesa
a procriar o mais possível.

Já os fisiocratas percebiam que o acréscimo da


população dependia do desenvolvimento das forças
produtivas. Assim, Le Mercier de la Riviére, em "l'Ordre
naturele et essenciel des societés politiques", diz em
substancia:

"Se os homens se alimentassem


somente dos produtos que a terra lhes
fornece sem nenhum trabalho
preparatório, seria preciso dispor de
uma enorme quantidade de terra para
aprovisionar um pequeno número de
homens; entretanto, sabemos por nossa
própria experiência que, graças à ordem
física de nossa constituição, temos
tendência a nos multiplicar
consideravelmente. Esta qualidade
natural seria contraditória e marcaria
uma desordem na natureza, se a ordem
natural da reprodução dos meios de
existência não lhe tivesse permitido a
multiplicação na mesma escala e nós
mesmos nos multiplicássemos".

E diz ainda:

228
A Teoria do Materialismo Histórico N. Bukarin

"não temo que venham com


argumentos, citando certas populações
da América, para me provar que a
ordem natural dos nascimentos não
torna necessária a cultura. Eu sei que
existem povos que não cultivam ou
quase não cultivam a terra, e apesar do
solo e do clima lhes serem igualmente
favoráveis eles matam as crianças,
estrangulam os velhos, empregam
certos medicamentos para impedir o
processo natural de nascimentos." (E.
Grosse: "Formen der Familie und
Formen der menschlichen Wirtschaft". —
As formas da família e da economia
humana —, 1896).

E diz ainda, entre outras coisas:

"Os Boschimanos e os Australianos têm


o habito de usarem a "cinta da fome" por
razões muito reais. Os habitantes da
Terra do Fogo sofrem constantemente a
fome. Nas histórias contadas pelos
Esquimós, a fome desempenha também
um papel muito importante. É evidente
que uma população limitada por uma
cultura tão insuficiente, não chegará
nunca a formar uma população

229
A Teoria do Materialismo Histórico N. Bukarin

numerosa... É por esta razão que os


caçadores primitivos desvelam-se afim
de que o seu número seja proporcional
aos seus meios de subsistência. Assim,
na Austrália, o infanticídio é muito
comum. A grande mortalidade infantil
faz o resto".

Sabemos que existem, em algumas populações da


Polinésia, leis segundo as quais cada família só tem licença
para ter um número restrito de filhos e onde se paga uma
multa se este número ultrapassar (P. Mombert: "Wirtschaft
und Bevoelkerung" — A economia e a População, — em
"Grundriss der Socialoekonomie" — Esquema de economia
social, — 2.ª parte). Mombert cita os fatos seguintes: depois
de ter descrito o desenvolvimento econômico na época
carlovingiana (passagem ao sistema rotativo trienal), diz:

"como consequência do grande


desenvolvimento da produção de
produtos alimentares, verificamos nessa
época um aumento extraordinário na
população da Alemanha".

No século XIX, a Europa fez um progresso imenso no


domínio da produção agrícola.

"E ao mesmo tempo a população na


Europa começou a crescer em tais

230
A Teoria do Materialismo Histórico N. Bukarin

proporções, que nunca no passado se


observou tamanho aumento". (Ib.).

Em seguida, começa um período em que a produção dos


meios de existência diminui. Que resulta daí? A emigração
para a America. Na Rússia, observam-se as mesmas leis.
(Ver a este respeito os trabalhos do camarada M.
N. Pokrovsky).

Enfim, é preciso indicar ainda uma série de argumentos


dirigidos contra a teoria do materialismo histórico e
especialmente as teorias conhecidas sob o nome "teoria das
raças". Vejamos em que consistem: A sociedade é composta
de homens, mas os homens entraram na história, nem todos
iguais, mas diferentes, tendo crânios, cérebros, pele,
cabelos, estrutura física diferentes e por conseguinte tendo
aptidões diferentes. É compreensível, portanto, que sejam
muitos os que entram na arena da história e poucos os
eleitos. Certos povos se revelam "históricos", porque eles
assim o são.

Seu nome aparece na boca de todo o mundo; todos os


professores das faculdades deles se ocupam; outros, "raças
inferiores" por sua própria natureza, são incapazes e nunca
puderam fazer nada de extraordinário; os representam como
que um zero histórico. Estes povos não merecem o nome de
"povos históricos"; eles são quando muito o adubo da
história, como, por exemplo os povos coloniais de certos
países "selvagens" que preparam o solo para a civilização

231
A Teoria do Materialismo Histórico N. Bukarin

burguesa européia. É nesta diferença de raças que jaz a


causa do desenvolvimento diferente da sociedade. A raça é
ponto de partida para o estudo da história. Tal é, em seus
traços gerais, a teoria das raças.

A respeito desta teoria, G. Plekanov escreveu com razão


o seguinte:

"Quando se propõe a questão de saber


qual é a causa de um acontecimento
histórico dado, acontece
frequentemente que homens sérios, que
não são absolutamente tolos, se
contentam com resposta que nada
resolvem e que não apresentam senão
um repetição da pergunta em outros
termos. Admitam que se interrogue um
"sábio" sobre uma das perguntas acima.
Perguntai por que motivo certos povos
se desenvolvem com tão espantosa
lentidão, enquanto que outros seguem
rapidamente o caminho da civilização O
"sábio" responde, sem hesitar, que isto
se explicar pelas qualidades da raça. É
compreensível a significação de uma tal
resposta? Certos povos se desenvolvem
lentamente, porque a qualidade de sua
raça é tal que eles não podem se
desenvolver senão lentamente outros,

232
A Teoria do Materialismo Histórico N. Bukarin

pelo contrario, tornam-se rapidamente


civilizados, porque a qualidade de sua
raça consiste no fato deles se poderem
desenvolver rapidamente. (Critica
nossas criticas).

A teoria das raças é em primeiro lugar contrária aos


fatos. Considera-se a raça negra como uma raça "inferior",
incapaz de se desenvolver por sua própria natureza.
Entretanto, está provado que os antigos representantes
desta raça negra, os Kuchitas, haviam criado uma civilização
muito elevada nas Índias (antes hindus) e no Egito. A raça
amarela, que não goza tão pouco de grande favor, criou
entre os chineses uma cultura que era infinitamente mais
elevada que a dos seus contemporâneos brancos; os brancos
não eram então senão meninos em relação a eles. Hoje em
dia sabemos perfeitamente que a base dos conhecimentos
dos antigos gregos lhes foi transmitida pelos Assirios-
Babilonicos e Egípcios. Bastam estes fatos para mostrar que
as explicações tiradas dos argumentos das raças de nada
servem. Entretanto, podem dizer-nos: quem sabe se tendes
razão, mas pode-se afirmar que um negro médio é igual, por
suas qualidades, a um europeu médio? Não se pode
responder a esta pergunta por uma saída virtuosa como o
fazem certos professores liberais: todos.os homens são
iguais; segundo Kant, a personalidade humana constitui um
fim por si mesma; Jesus Cristo ensinava que não havia nem
helênicos, nem judeus, etc. (ver por exemplo, em Khvostov:
"É provável que a verdade esteja do lado dos defensores da

233
A Teoria do Materialismo Histórico N. Bukarin

igualdade dos homens... "A teoria do processo histórico").


Pois, tender para a igualdade entre os homens, não significa
reconhecer a igualdade de suas qualidades, e aliás,
tendemos sempre para aquilo que ainda não existe, pois, e
outro modo, arrombaríamos portas abertas. Não procuramos
no momento saber para o que devemos tender. O que nos
interessa é saber se existe uma diferença entre o nível de
cultura dos brancos e dos negros em geral. Certamente, esta
diferença existe. Atualmente os "brancos" são superiores aos
outros. Mas isto o que prova? Prova que, atualmente, as
raças mudaram de posição. E esta conclusão contradiz a
teoria das raças. Com efeito, ela reduz tudo às qualidades de
raças, à sua "natureza eterna". Se assim fosse, esta
"natureza" se teria feito sentir em todos os períodos da
história. O que podemos concluir daí? Que a própria
"natureza" muda constantemente com relação às condições
de existência de uma determinada "raça". Estas condições
são determinadas pelas relações entre a sociedade e a
natureza, isto é, pelo estado das forças produtivas. Assim, a
teoria das raças não explica de nenhum modo as condições
de evolução social. Aparece também claramente aqui que é
preciso começar a sua analise pelo estudo do movimento das
forças produtivas.

A respeito da concepção de raça e da distinção entre as,


raças, uma grande variedade de opiniões divide os sábios
Topinard (citado por Metchnikov, pag. 40) observa com
razão que o termo "raça" é utilizado para fins muito
secundários: assim, por exemplo, as raças indo-germânica,

234
A Teoria do Materialismo Histórico N. Bukarin

alemã, eslava, latina e inglesa, bem que estes termos não


sirvam senão para definir aglomerações de elementos
antropológicos os mais variados. Na Ásia os povos foram
misturados tantas vezes e de maneira tão radical, que a raça
mais característica para este continente se encontra talvez
em algum lugar do outro lado do Pacifico ou perto do circulo
Polar. Na África, o mesmo processo se repetiu varias vezes.
Na America, onde se passou um fato semelhante já no
período histórico, não se encontra mais raças primitivas; mas
somente o resultado de cruzamentos e misturas infinitas (Ed.
Meyer). Meyer observa muito judiciosamente:

"No que concerne a raça, é certamente


possível que o gênero humano tenha
aparecido desde o princípio em
diferentes variedades ou então se tenha
dividido desde o princípio em espécies
diferentes; parece-me que sob este
aspecto seja difícil exprimir uma opinião
fundamentada. Por outro lado, é
absolutamente certo que todas as raças
humanas se misturaram
continuamente... que nunca se pôde, e
que é em geral absolutamente
impossível, delimitá-las estritamente —
o exemplo das populações do vale do
Nilo é típico neste ponto — e que o
pretendido tipo de raça pura não existe
senão nos lugares onde os povos foram

235
A Teoria do Materialismo Histórico N. Bukarin

isolados artificialmente uns dos outros,


graças às condições exteriores, como se
verifica, por exemplo, na Nova-Guiné e
na Austrália. Entretanto, nada justifica a
suposição de que nos achamos aqui em
presença de um estado natural e
primitivo do gênero humano; é muito
mais provável que esta homogeneidade
seja, pelo contrario, o resultado de um
isolamento" (Ib.).

O professor R. Michels ("Wirtschaft und Rasse", — A


economia e a raça — em "Grundriss der Socialoekonomie",
cita toda uma série de exemplos muito interessantes que
mostram a variabilidade das pretendidas qualidades de raça
no domínio do trabalho. Por exemplo

"a resistência dos trabalhadores chineses é


extraordinária e os torna aptos a carregar pesadas cargas. É
por isto que utilizam tanto os "coolies chineses". Entretanto,
está claro que as "cargas" que são colocadas nas costas
dos coolies são determinadas ainda pelo seu estado de
escravidão semi-colonial. Consideram-se os negros como
maus trabalhadores, e entretanto existe um ditado francês:
"trabalhei como um negro". Os negros tornavam-se
raramente patrões, mas eles foram boicotados pelos
brancos, etc... Ainda há alguns exemplos interessantes
tirados do domínio das "diferenças nacionais": "Quando se
começou a construir na Alemanha as primeiras vias férreas,

236
A Teoria do Materialismo Histórico N. Bukarin

um autor alemão advertia que de direito os caminhos de


ferro não apresentavam nenhum interesse para o caráter
nacional alemão, porquanto este ultimo baseava-se,
felizmente, sobre o princípio do "festina lente" (apressa-te
devagar). Para se servir das estradas de ferro, é preciso um
outro povo, uma outra vida, um outro gênero de
pensamento.Kant reprochava aos italianos as suas
tendências estreitamente praticas e o estado florescente de
seus bancos. Agora é preciso procurar alhures a fonte deste
fenômeno, etc... Michels chega a esta conclusão
perfeitamente justa:

"O grau de capacidade econômica de um


povo corresponde ao grau de civilização
técnica, intelectual e moral que ele
atingiu no momento em que o
julgamos".

O maior número de absurdos foi dito pelos partidários


da teoria das raças durante a guerra, que eles quiseram
também explicar pela luta das raças, bem que a inépcia
destas explicações fosse evidente para qualquer homem de
espírito são. (Os sérvios aliados aos japoneses guerreavam
contra os búlgaros: os ingleses com os russos contra os
alemães, etc...). O representante mais autorizado da teoria
das raças, na sociologia, é Gumplowicz.

237
A Teoria do Materialismo Histórico N. Bukarin

238
A Teoria do Materialismo Histórico N. Bukarin

CAPÍTULO VI

O EQUILÍBRIO ENTRE OS
ELEMENTOS DA SOCIEDADE
35. LAÇOS QUE UNEM OS DIVERSOS FENÔMENOS
SOCIAIS. COMO DEVE SER COLOCADA A QUESTÃO

Estudamos acima o problema do equilíbrio entre a


sociedade e a natureza. Vimos que esse equilíbrio é rompido
e restabelecido constantemente, que havia uma contradição
constantemente sobrepujada e que aparecia novamente
para ser combatida e que nisto reside a causa essencial do
desenvolvimento ou da decadência social. É necessário agora
olhar de perto, por assim dizer, "a vida interior" da
sociedade.

Quando formulamos perguntas sobre o grau de


desenvolvimento social, recebemos muitas vezes respostas
como estas: "O grau de desenvolvimento cultural é
determinado pela quantidade de sabão que a sociedade
emprega"; outros medem a sua altura pelo desenvolvimento
da instrução, outros ainda pela quantidade de jornais
publicados, alguns pelo desenvolvimento da técnica ou então
da ciência, etc. Um professor alemão, Schulze-Gavernitz, no
seu livro "A grande indústria têxtil na Rússia", estabeleceu
como princípio que o grau de cultura é caracterizado pelo
estado das latrinas. Assim, desde estas até às obras mais

239
A Teoria do Materialismo Histórico N. Bukarin

sublimes do espírito humano, tudo é tomado como padrão


para medir o grau de desenvolvimento social.

Quem está com a razão? Qual das medidas é a


verdadeira? E por que são dadas tantas respostas
disparatadas â mesma questão?

Se examinarmos um pouco mais de perto as respostas


acima, verificaremos com facilidade que cada uma delas é
mais ou menos justa. O uso do sabão não aumenta com
efeito com o desenvolvimento da "cultura e da civilização"?
O número de jornais não cresce? A técnica ou a ciência não
fazem progressos? Certamente que sim. Que conclusão
podemos tirar daí? A de que os fenômenos sociais, em cada
momento dado, estão ligados uns aos outros. De que
maneira, isto é outra questão, e nós vamos estudá-la. Mas
os laços que existem entre eles são indubitáveis, Eis a razão
pela qual cada uma das respostas que mencionamos era
justa.

Do mesmo modo que a idade do homem pode ser


definida aproximadamente, seja segundo a composição ou a
resistência de seus ossos, seja segundo a sua fisionomia
(matiz, rugas, sistema nervoso, etc.), seja segundo o caráter
de seus pensamentos, seja conforme a sua linguagem, assim
também podemos julgar o grau de desenvolvimento social
segundo diferentes sinais, uns estando ligados aos outros.
Se nos mostrassem belas obras de arte, se nos explicassem
sistemas científicos complicados, poderíamos dizer que uns

240
A Teoria do Materialismo Histórico N. Bukarin

e outros não podem aparecer senão numa sociedade


desenvolvida. O mesmo diríamos, si tivéssemos descoberto
uma técnica rica e complexa. Nos dois casos, teríamos razão.

Este laço, esta interdependência dos fenômenos sociais


os mais diversos, salta aos olhos. Basta formular uma série
de perguntas para disto nos convencermos. Seria possível,
por exemplo, que aparecesse, há 100 anos, uma poesia
futurista? Certamente que não. Ou que os esquimós perdidos
nas geleiras inventem o telégrafo sem fios? Ou ainda, que a
ciência contemporânea preveja o futuro pelas estrelas? Ou,
enfim, que o marxismo tenha aparecido na idade média?
Evidentemente, tudo isto é impossível. O futurismo não pôde
existir há 100 anos, porque a vida nessa época era mais
calma, mais igual; e o futurismo nasceu sobre o calçamento
das grandes cidades com o barulho e o movimento» no
momento das paradas militares e da decadência da cultura
burguesa. É a poesia do "jazz-band" universal, poesia que
não teria podido aparecer há 100 anos, como um cardo não
poderia crescer sobre um teto recentemente pintado. Os
esquimós, no meio do gelo, não poderiam inventar o
telégrafo sem fio, pois não são capazes de manejar nem o
telégrafo comum. A ciência contemporânea não perderá o
seu tempo com infantilidades tais como as profecias feitas
pela consulta das estrelas, pois que a ciência atingiu o nível
bastante elevado para afastar estas bobagens. O marxismo
não poderia ter aparecido na idade média, porque o
proletariado não existia ainda e porque a teoria marxista não
dispunha assim de uma base natural. Por outro lado, por

241
A Teoria do Materialismo Histórico N. Bukarin

exemplo, a alta técnica, o proletariado, a enorme quantidade


de jornais, o reclame colossal dos "trustes", o futurismo, os
aeroplanos, a teoria dos elétrons, os dividendos
de Rockfeller, as greves de mineiros, os partidos comunistas,
a Sociedade das Nações, a Terceira Internacional, a
eletrificação, os exércitos compostos de milhões de
homens, Lloyd George, Lenine, etc.... tudo isto são
fenômenos do mesmo tempo, da mesma época, como o
poder do papa, uma técnica relativamente pobre, a servidão,
a ciência dos padres (escolástica), a procura da pedra
filosofal (graças à qual pode-se transformar qualquer
matéria em ouro), a Inquisição, as más estradas, os reis
iletrados, a comuna de vila, as feiticeiras e as corporações
de ofícios, uma má língua latina (falada e escrita pelos
sábios), os cavaleiros andantes, etc., representam os
fenômenos de uma mesma época (a idade média). Não se
pode transplantar Lenine, Lloyd George e Krupp para a
idade-média. Também não se pode ver hoje em dia, na praça
Vermelha, em Moscou, um torneio de cavaleiros, em luta de
morte, pelo sorriso de uma dama. "Outros tempos, outras
canções", "outros tempos, outros costumes".

Assim, não se pode duvidar que existem laços entre os


fenômenos sociais, uns estando "adaptados" aos outros. Em
outros termos, existe um certo equilíbrio no interior da
sociedade entre os seus elementos, entre as partes que a
compõem, entre as diferentes espécies de fenômenos
sociais.

242
A Teoria do Materialismo Histórico N. Bukarin

Augusto Comte já havia observado que os diferentes


aspectos da vida social concordam uns com os outros em
cada momento dado (é o que denominamos "concensus"). O
mesmo fato é acentuado com maior vigor por Muller-
Lyer (Die Phasen der Kultur, p. 334 — As fases da cultura):

"Na realidade não importa que função


sociológica, não importa que fenômeno
cultural pode ser tomado como escala
para medir a altura atingida pela cultura,
por exemplo: a arte, a ciência, a moral,
a economia, a organização do Estado, a
liberdade individual, a filosofia, a
situação social da mulher, etc.. incluindo
o uso do sabão. Seria perfeitamente
diferente saber qual a escala escolhida,
se todos os fenômenos da civilização se
desenvolvessem com um paralelismo
rigoroso e perfeitamente proporcionados
uns com os outros."

Um dos escritores mais modernos da burguesia alemã,


acachapada pelos acontecimentos, O. Spengler (Der
Untergang des Abendlandes — O declínio do ocidente —
tomo 1. p. 8) escreve:

"Quem não ignora que existe um liame


estreito entre a forma antiquada de
"polis" (polis: estado, cidade da antiga

243
A Teoria do Materialismo Histórico N. Bukarin

Grécia, N. B.) e a geometria euclidiana,


entre a perspectiva na pintura a óleo da
Europa ocidental e a conquista do
espaço pelas vias férreas, entre os
telefones e os canhões de longo alcance,
entre os contrapontos da musica
instrumental e o sistema econômico de
credito?"

Os exemplos de Spengler podem ser discutidos, mas não


é possível negar a idéia segundo a qual os mais variados
fenômenos sociais estão ligados entre si.

36. COISAS, PESSOAS, IDÉIAS

Definimos mais acima a sociedade como um agregado


humano. Entretanto, num sentido mais largo, as coisas
também fazem parte da sociedade. Tomemos, por exemplo,
a sociedade atual. Todas essas massas de pedra das cidades,
as construções gigantescas, as estradas de ferro, os portos,
as máquinas, as casas, etc., tudo isto constitui os "órgãos"
materiais e técnicos da sociedade.

Uma maquina fora da sociedade humana perde toda a


sua significação como maquina: ela se torna simplesmente
um objeto exterior, uma combinação de partes de aço, de
madeira, etc., e nada mais. Admitamos que um
transatlântico gigantesco tenha ido a pique; quando esse
monstro, com os seus poderosos motores que fazem vibrar

244
A Teoria do Materialismo Histórico N. Bukarin

o seu corpo de aço, com seus milhares de instrumentos, de


utensílios, a começar pelos panos de cozinha e a terminar
pela estação radiotelegráfica, jaz como um peso morto no
fundo dos mares, toda a sua construção complicada perde
sua importância social. As conchas incrustam-se nos seus
flancos, as algas marinhas cobrirão as partes de madeira, os
caranguejos habitarão as cabinas, etc.; o vapor deixa de ser
um vapor, pois ele perdeu a sua existência social, ele saiu da
sociedade, ele deixou de ser uma de suas partes integrantes,
ele interrompeu o seu serviço social e de um objeto social se
tornou simplesmente uma coisa, como qualquer objeto da
natureza exterior que não importa diretamente à sociedade
humana. A técnica não se compõe somente de partes da
natureza exterior, é o prolongamento dos órgãos da
sociedade, é a técnica social. Assim, podemos falar de
sociedade em um sentido mais largo que o emprestado até
agora a esta palavra. E então os objetos nela entrarão na
sua "existência social", isto é, antes de tudo no sistema
técnico da sociedade. É isto que constitui a parte material da
sociedade, seu aparelho material de trabalho. Estritamente
falando, as coisas não se limitam somente aos meios de
produção; elas podem não ter senão uma relação muito
afastada com a produção (se não tomarmos em consideração
que elas próprias são às vezes o resultado da produção
material); tais são, por exemplo, os livros, as cartas, os
gráficos, os museus, as galerias de quadros, as bibliotecas,
os observatórios astronômicos e meteorológicos, (trata-se
sempre da sua parte material), os laboratórios, os
instrumentos de medida, os telescópios e microscópios, as

245
A Teoria do Materialismo Histórico N. Bukarin

retortas, etc., etc. Todos estes objetos não tocam


diretamente o processo da produção material e, por
conseguinte, não fazem parte da técnica especial, do
conjunto das forças produtivas materiais. Apesar disso, é
fácil compreender o seu papel; eles não são tão pouco
simples pedaços da natureza exterior, eles têm também a
sua "existência social", eles entram também, por
conseguinte, na concepção de sociedade, compreendida no
seu sentido mais lato, ao qual nos referimos acima.

Vimos, no capítulo IV, que a sociedade representa um


sistema de homens reunidos. Vemos agora que as coisas
também fazem parte desse sistema. Entretanto, no sentido
mais estreito da palavra, compreende-se, sob o nome de
sociedade, os homens e não uma simples reunião de
homens, mas um sistema unido. Estudamos estes homens a
princípio como corpos materiais que trabalham. Explicamos
assim que a sociedade é antes de tudo uma organização de
trabalho, um sistema de trabalho, um aparelho de trabalho
humano. Mas sabemos muito bem que os homens não são
simplesmente corpos físicos; eles pensam, sentem, desejam,
propõem-se fins, e trocam continuamente suas idéias e seus
desejos. Às relações entre os homens não são somente
relações materiais de trabalho; são também relações
psíquicas, "espirituais"; e a sociedade não produz somente
objetos materiais; ela produz também "valores espirituais":
a ciência, a arte, etc., em outros termos, ela não produz
somente coisas, mas também idéias. E estas ultimas, uma
vez produzidas, compõem em conjunto sistemas inteiros de

246
A Teoria do Materialismo Histórico N. Bukarin

idéias. Temos assim na sociedade elementos de três ordens


diferentes: coisas, homens e idéias. Certamente, seria
absurdo pensar que estes elementos são completamente
independentes; todo mundo compreende que sem homens
não haveria idéias, que as idéias vivem somente nos homens
e não nadam no espaço como o óleo sobre a água. Mas não
se segue daí que não possamos distingui-las. É também
evidente que deve existir, entre todos estes elementos, um
certo equilíbrio. Pode-se dizer mais ou menos que a
sociedade não poderia existir se a ordem das coisas, a ordem
dos homens e a ordem das idéias não correspondessem
umas às outras. Mas é preciso, certamente, prová-lo de
maneira muito mais detalhada. Compreenderemos também,
então, o laço que existe entre os fenômenos, laço que salta
aos olhos e ao qual nos referimos no parágrafo precedente.

37. A TÉCNICA SOCIAL E A ESTRUTURA ECONÔMICA DA


SOCIEDADE

Já provamos anteriormente que para estudar os


fenômenos sociais é preciso partir do exame das forças
produtivas materiais e sociais, da técnica social, do sistema
dos instrumentos de trabalho. E preciso agora que
acrescentemos algumas explicações ao que já foi dito acima.
Quando falamos de técnica social, é preciso compreender
com isto não um instrumento qualquer, nem um amontoado
de diversos instrumentos, mas um sistema destes
instrumentos, o seu conjunto, no seio da sociedade. É
preciso que nos representemos que, em uma dada

247
A Teoria do Materialismo Histórico N. Bukarin

sociedade, se acham dispersos em lugares diferentes, mas


numa certa ordem, ofícios e motores, instrumentos e
aparelhos, utensílios simples e complicados. Em alguns
lugares, estão concentrados em grandes massas (por
exemplo nos centros de grande indústria), em outros
lugares, outros instrumentos estão dispersos. Mas, a cada
momento dado, os homens estando unidos pelo laço de
trabalho, tendo formado uma sociedade, todos os
instrumentos de trabalho, grandes e pequenos, simples e
complicados, manuais e mecânicos, em uma palavra, todos
os que existem em uma sociedade dada e em dado
momento, são na realidade ligados entre si. (há certamente
sempre um tipo de instrumento que domina, máquinas e
aparelhos complicados, na hora atual; anteriormente eram
utensílios movidos à mão; com o tempo a importância dos
aparelhos e das máquinas que funcionam automaticamente
aumenta ainda mais). Em outras palavras, podemos
considerar a técnica social como um todo, sendo que cada
parte, em determinado momento, é socialmente necessária.
No que consiste esse fato? Por que podemos nós considerar
a técnica social como um todo? Como se exprime esta
unidade de todas as partes do sistema técnico da sociedade?

Afim de compreendermos este fato o mais claramente


possível, vamos supor que um belo dia, na Alemanha
contemporânea, por exemplo, tivessem milagrosamente
desaparecido todas as máquinas que servem para a extração
do carvão. O que aconteceria? Todo mundo o compreenderá:
quase toda indústria cessaria de funcionar de um dia para

248
A Teoria do Materialismo Histórico N. Bukarin

outro. Não haveria combustível para as fabricas e as usinas;


todas as máquinas e todos os instrumentos nestas usinas
parariam, isto é, seriam eliminados do processo da produção.
A técnica de uma indústria teria influído assim sobre a
técnica de quase todas as outras indústrias. E isto significa
que todas as "técnicas" dos ramos de produção particulares
formam objetivamente, na realidade, não somente no nosso
pensamento, mas um todo, uma técnica social única. A
técnica social, como já dissemos, não apresenta um
amontoado de instrumentos de trabalhos particulares, mas
o seu sistema unido. Isto significa que todas as partes desse
sistema dependem de cada uma delas. Isso significa também
que, em cada momento dado, as diferentes partes dessa
técnica são unidas em uma certa proporção, em uma relação
definida. Se em uma fabrica é preciso haver um certo
número de fusos para um certo número de teares, um certo
número de operários, etc., em toda sociedade, quando a
reprodução social caminha normalmente, a uma certa
quantidade de fôrmas corresponde um número determinado
de máquinas e de utensílios mecânicos, uma quantidade
definida de meios de produção, tanto na indústria
metalúrgica como na indústria têxtil, química ou qualquer
outra. Certamente, as relações não são aqui tão preciosas
como em uma fabrica tomada separadamente; entretanto,
entre o "sistema técnico" dos diferentes ramos de produção
existe uma certa relação necessária que se estabelece em
uma sociedade desorganizada de maneira elementar e
conscientemente na sociedade organizada, mas que existe
sempre. Não é possível, por exemplo, que existam em uma

249
A Teoria do Materialismo Histórico N. Bukarin

fabrica dez vezes mais fusos do que os necessários. Mas é


também impossível que a produção de carvão seja dez vezes
maior do que é preciso, e que haja dez vezes mais máquinas
e instalações servindo para extrair o carvão do que o
necessário para alimentar os outros ramos de indústria. Do
mesmo modo que existe um laço determinado, uma relação
definida entre os diferentes ramos de produção, também há
um laço determinado e uma relação definida entre as
diferentes partes da técnica social. É este fato que
transforma a simples soma de máquinas, de utensílios e de
instrumentos em um sistema de técnica social.

Uma vez compreendido isto, compreender-se-á


igualmente que cada sistema dado de técnica social
determina também o sistema de relação de trabalho entre os
homens.

Com efeito, será possível que o sistema técnico da


sociedade, a estrutura do seu aparelhamento, sejam de uma
espécie e as relações entre os homens de outra? Será
possível, por exemplo, que o sistema técnico social seja a
técnica mecânica e que as relações de trabalho de produção
sejam as dos artesãos que trabalham a mão? É evidente que
isto é impossível. Se a sociedade existe, é preciso que haja
um equilíbrio definido entre a sua técnica e a sua economia,
isto é, entre o conjunto de seus instrumentos de trabalho e
a sua organização de trabalho, entre o seu aparelho material
de produção e o seu aparelho produtivo humano.

250
A Teoria do Materialismo Histórico N. Bukarin

Tomemos um exemplo. Comparemos a "sociedade


antiga" com a sociedade capitalista moderna. Comecemos
pela técnica. A. Neuburger ("Die Technik des Altertums". —
A técnica da antiguidade — Voiglanders Verlag. Leipzig,
1919), que é antes inclinado a exagerar do que a diminuir a
importância da técnica antiga, escreve:

"Aristóteles, nos seus "Problemas da


Mecânica", nos dá toda uma lista de
instrumentos auxiliares (técnicos)
empregados pelos antigos. Entre estes
instrumentos, ele cita a alavanca com
contrapeso, as balanças de braços
iguais, o balouço, as tenazes, a cunha, o
machado, o cabrestante, a roda, a polia,
a funda, o leme, assim como as rodas de
cobre e de ferro com diferentes planos
de rotação e que não eram
provavelmente senão rodas dentadas"
(p. 206).

São os meios técnicos mais elementares que são


denominados "máquinas simples" (alavanca, plano inclinado,
cunha, etc...). Está claro que esses instrumentos não nos
levarão longe. O mesmo acontece com a trabalho dos
metais. Está claro que é somente a ossatura metálica das
forças produtivas que cria a princípio uma base solida para o
seu desenvolvimento; entretanto, é o ouro que é trabalhado
em primeiro lugar; a maior parte do metal é utilizado em

251
A Teoria do Materialismo Histórico N. Bukarin

geral para fabricar objetos que não servem para a produção.


Somente a arte do ferreiro apresenta uma exceção,
produzindo instrumentos bastante primitivos, graças ao
emprego do martelo, da bigorna, das pinças, das tenazes, da
lima e de outros instrumentos simples (fabricavam-se
sobretudo machados, martelos, picaretas, ferraduras,
pregos, correntes, forquilhas, pás, colheres, etc.). A fundição
servia sobretudo para fazer estatuas e outros objetos
improdutivos. Não é sem razão que Vitruvio definia, como
vimos, a maquina: "Um aparelho de madeira".

"Durante séculos inteiros, a técnica permaneceu


cristalizada no mesmo nível", diz Salvioli (Der Kapitalismus
im Altertum — O capitalismo na antiguidade), entendendo-
se naturalmente por estas palavras, não uma estagnação
absoluta, mas um desenvolvimento relativamente lento da
técnica antiga.

A técnica deste gênero determinava por si mesma o tipo


do operário, as suas qualidades de trabalho, assim como as
relações de trabalho e as relações de produção.

O tipo do operário, em presença de uma nova técnica,


não podia ser senão o do artesão. Os ferreiros, carpinteiros,
canteiros, tecelões, joalheiros, mineiros, albardeiros,
torneiros, seleiros, oleiros, tintureiros, vidreiros, curtidores,
serralheiros, etc., constituíam o tipo de operário produtor
(Gustave Glotz: "Le travail dans la Gréce ancienne", Felix
Alcan, 1920, p. 265-276; Paul Louis: "Le travail dans le

252
A Teoria do Materialismo Histórico N. Bukarin

monde romain" 912, p. 234-244). Assim a técnica social


determinava a qualidade da maquina viva de trabalho, isto
é, o tipo de operário e suas "qualidades" de trabalho. Mas a
mesma técnica determinava também as relações entre os
trabalhadores. Com efeito, pelo fato mesmo de vermos aqui
espécies determinadas de trabalhadores, aparece
claramente que estamos em presença de uma divisão da
produção em uma série de ramos e em cada um deles
executa-se somente uma espécie de trabalho. É a divisão do
trabalho.

Que é que determinava esta divisão de trabalho?


Evidentemente, os instrumentos apropriados de trabalho que
existiam. Mas a forma desta divisão de trabalho era
igualmente determinada.

"A divisão do trabalho, diz em resumo


Glotz, não permitia que se chegasse aos
mesmos resultados que nas sociedades
modernas, pois não era uma função do
maquinismo. Ela não indicava o regime
das grandes usinas, mas uma indústria
pequena e média...". "A grande
produção era desconhecida no mundo
antigo; ele nunca saiu dos limites do
oficio" (Salvioli).

Vejamos ainda uma forma de relações de trabalho e de


produção, que se apóia também sobre a técnica. Mesmo

253
A Teoria do Materialismo Histórico N. Bukarin

quando se trata de um trabalho gigantesco, ele é muitas


vezes executado pela organização de oficio. Também, por
ocasião da construção de um aqueduto em Roma, o Governo
fez um contrato com 3.000 (!) mestres pedreiros; eles
mesmos trabalharam com os seus escravos (ib., p. 139). Por
outro lado, quando a produção era relativamente grande, ela
não pôde existir em presença de semelhante técnica senão
graças ao emprego de uma força extra econômica: era o caso
do trabalho dos escravos, dos quais exércitos inteiros eram
trazidos depois de cada guerra vitoriosa, vendidos no
mercado, e enchiam os domínios e as oficinas "ergastula".
Com outra técnica, o trabalho dos escravos seria impossível;
os escravos estragam as máquinas complicadas e o seu
trabalho não apresenta nenhuma vantagem. Assim, mesmo
um fenômeno tal como o do trabalho dos escravos
importados se explica, em condições históricas dadas, pela
presença de certos instrumentos de trabalho social.
Examinemos ainda um outro problema. Como se sabe,
apesar do desenvolvimento bastante considerável das
relações comerciais capitalistas, a economia do mundo
antigo era em geral uma economia natural. Os homens não
se achavam em relações econômicas estreitas: as trocas
eram muito menos desenvolvidas do que hoje em dia; um
grande número de produtos era fabricado nos grandes
domínios (latifundia), nas suas oficinas publicas e para o seu
próprio uso. Tudo isto representa igualmente um regime de
trabalho determinado, um gênero particular de relações de
produção. E isto ainda se explica pelo fraco desenvolvimento
das forças produtivas, pela fraqueza da técnica. A produção,

254
A Teoria do Materialismo Histórico N. Bukarin

com uma técnica semelhante, não podia atirar sobre o


mercado um grande excesso de produtos. Em uma palavra,
vemos que as relações entre os homens, no processo do
trabalho, são determinadas pelo nível do desenvolvimento
técnico: a economia antiga está por assim dizer adaptada à
técnica antiga.

Comparemos agora com ela a sociedade capitalista, e


em primeiro lugar a sua técnica. Para dela termos um
apanhado geral, basta lançar um golpe de vista sobre a lista
de certos ramos de produção. Não encaramos senão dois
grupos: a construção de máquinas, de instrumentos e de
aparelhos de um lado, e a indústria eletrotécnica de outro.
Vejamos o quadro que obtemos:

I. Construção de máquinas, de instrumentos e de


aparelhos.
a) máquinas geradoras de força.
1. Locomotivas.
2. Locomoveis.
3. Outras máquinas geradoras.
b) máquinas de emprego geral.
1. Máquinas-utensílios para o trabalho dos metais, da
madeira, da pedra e de outros materiais. 2- Bombas.
3- Aparelhos de elevação e de transporte
4.Outras máquinas.
c) máquinas especializadas.
1. Teares.
2. máquinas agrícolas.
3. máquinas especiais para a extração de matérias
primas.

255
A Teoria do Materialismo Histórico N. Bukarin

4. máquinas especiais para a fabricação de armas e


munições.
5. máquinas especiais para as indústrias de arte e de
luxo.
6. Construções de máquinas variadas.
d) Oficinas para reparações de máquinas.
e) Caldeiras e aparelhos diversos.
1. Caldeiras a vapor.
2. Caldeiras, aparelhos e material para certos ramos
especiais de indústria (excluindo as máquinas simples).
f) Utensílios para máquinas, peças sobressalentes.
1. Utensílios para máquinas.
2. Peças sobressalentes.
g) Construção de moinhos.
h) Construção de navios e máquinas para navios.
i) Construção de aeronaves e aeroplanos.
j) Aparelhos de proteção contra gazes,
k) Fabricação de meios de transporte.
1. Bicicletas e suas peças sobressalentes.
2. Motores.
3. Construção de vagões de estrada de ferro.
4. Construção de carros.
5. Fabricação de outros meios de transporte, exceto os
transportes aéreos e marítimos.
l) Fabricação de relógios e peças sobres alentes.
m) Fabricação de instrumentos de musica.
n) Instrumentos de ótica e aparelhos de precisão,
assim como as preparações microscópicas e
zoológicas.
1. Construção de instrumentos de ótica, aparelhos de
precisão e aparelhos fotográficos.
2. Construção de instrumentos e aparelhos de cirurgia.
3. Fabricação de aparelhos zoológicos e microscópicos.
o) Fabricação de lâmpadas e quebra-luzes
(excetuando as lâmpadas elétricas).

256
A Teoria do Materialismo Histórico N. Bukarin

II. indústria eletrotécnica. Fabricação de:


a) Dínamos e motores elétricos.
b) Acumuladores e elementos.
c) Cabos e fios isolados.
d) Aparelhos de medidas elétricas.
e) Aparelhos elétricos e de material acessório.
f) Lâmpadas elétricas e projetores.
g) Aparelhos médicos.
h) Aparelhos de corrente fraca.
i) Isoladores elétricos.
j) Aparelhos elétricos para grandes
estabelecimentos.
k) Oficina de reparação de instrumentos elétricos
diversos.

(Rudolph Meerwarth "Einleitung in die Wir-


tschaftstatistik". — Introdução à estatística econômica. —
Jena, Gustav Fischer, 1920. p. 43-44).

Basta comparar esta lista com as "máquinas" às quais


se refere Aristóteles e Vitruvio, para compreender a
diferença enorme que existe entre a técnica da sociedade
antiga e da sociedade capitalista. Do mesmo modo que a
técnica antiga determinava a economia do mundo antigo,
assim também a técnica capitalista determina a economia
moderna, a economia do regime capitalista. Se fosse possível
fazer o recenseamento da população da Roma antiga, e a de
Berlim ou de Londres hoje em dia, e dividir esta população
de acordo com as profissões e ofícios, veríamos nitidamente
o abismo profundo que nos separa da "antiguidade". Temos
hoje em dia operários que dependem da técnica mecânica e
que não existiam então. Invés de artesãos (de "fabri ferrarii"

257
A Teoria do Materialismo Histórico N. Bukarin

quaisquer), encontramos entre nós eletrotécnicos,


montadores, mecânicos, caldeireiros, torneiros, óticos,
tipógrafos, litógrafos "chaufeurs", ferroviários, condutores
de martelos-pilões, de ceifadeiras e combinados agrícolas,
de tratores a vapor, engenheiros eletrotécnicos, químicos,
linotipistas, etc., etc. Tais operários não existiam nem
mesmo de nome, pois não existiam nem os ramos de
indústria nem os instrumentos de trabalho correspondentes.
Mas, mesmo se passarmos aos operários que têm o mesmo
nome e trabalham em uma especialidade já existente
anteriormente, não se tratará mais dos mesmos operários.
Com efeito, o que há de comum entre um tecelão moderno
que trabalha em uma grande usina têxtil e um artesão ou
escravo da Grécia ou da antiga Roma? Tratava-se de um
homem completamente diferente, que se sentiria em uma
usina têxtil moderna como Júlio César se sentiria em um
vagão da estrada de ferro subterrânea de Nova-York.
Dispomos de outras forças operárias para um outro gênero
de trabalho. Nossas forças de trabalho constituem produtos
de outra técnica, à qual elas estão adaptadas.

Observamos mais acima que existe atualmente uma


quantidade considerável de ramos de indústria que outrora
eram desconhecidos. Isto significa antes de tudo que existe
na sociedade capitalista uma divisão diferente do trabalho
social. Ora, a divisão de trabalho social representa uma das
condições essenciais da produção. Qual é a base da divisão
de trabalho moderno? Vê-se imediatamente que ela se
baseia nos instrumentos modernos de trabalho, no caráter,

258
A Teoria do Materialismo Histórico N. Bukarin

aspecto, e reunião das máquinas e dos instrumentos, isto é,


sobre a técnica da sociedade capitalista. Vejamos um pouco
qual é o aspecto que toma uma empresa moderna. Não é
uma pequena unidade de produção, não é um oficio de
artesão, nem tampouco uma oficina domestica de um grande
proprietário de terras. Trata-se de uma organização pujante,
na qual entram milhares de homens colocados numa certa
ordem, em pontos determinados e executando um trabalho
estritamente determinado. Tomemos por exemplo uma
empresa capitalista modelo como a fabrica de automóveis
Ford em Detroit (Estados Unidos); o seu aspecto especifico
nos saltará imediatamente aos olhos: uma exata divisão de
trabalho, seu caráter mecânico, o automatismo das
máquinas, e o controle exercido pelos operários, uma série
lógica de operações, etc. Sobre plataformas em movimento
são colocadas peças do produto. Os operários de diferentes
gêneros e diferentemente qualificados, de pé perto de suas
máquinas e de suas ferramentas, "operam" sobre os
produtos semi-trabalhados que se encontram sobre a
plataforma. Toda a marcha do trabalho é calculada com a
aproximação de um segundo. Cada movimento do operário
é previsto, assim como o movimento de seu pé ou de sua
mão, ou cada inclinação de seu corpo. O "pessoal" segue a
marcha geral do trabalho, tudo se baseia no relógio, no
cronometro. Esta divisão de trabalho e sua "organização
cientifica" são feitas segundo o sistema Taylor e uma usina
destas, se examinarmos a sua estrutura humana, isto é, as
relações entre os homens, constitui também ela própria uma
relação de produção. O que determina a colocação dos

259
A Teoria do Materialismo Histórico N. Bukarin

homens? O que determina as suas relações mutuas? A


técnica, o sistema de máquinas e suas combinações, a
organização do aparelhamento material da usina.

"Deve-se considerar o desenvolvimento


da técnica moderna como o fator mais
decisivo da organização do trabalho...
Não há somente uma maquina na usina.
As máquinas são divididas em grupos.
Elas se ligam umas às outras, seja pelo
seu tipo, seja pelas operações a
executar. A passagem do trabalho de
um estágio para outro, os transportes no
interior da usina... se apresentam aos
olhos dos diretores técnicos como uma
grandeza que é preciso calcular e
delimitar. O plano de trabalho, a
distribuição dos lugares ocupados pelos
operários, o transporte, são assim
regulamentados, automatizados,
normalizados... transformando-se pouco
a pouco em uma maquina de precisão
que garante o controle do trabalho da
empresa... No sistema geral desse
movimento de coisas, o movimento dos
homens e a ação que exercem sobre
outros homens aparecem
frequentemente como fatores
determinantes... O sistema de

260
A Teoria do Materialismo Histórico N. Bukarin

organização cientifica nasceu" (A.


Gastef: Nos taches. Organisation de
travail. Revue de Tlnstitute de Travail",
n.° 1, 1921 — Nossas tarefas.
Organização do trabalho. Revista do
Instituto do Trabalho. —).

Para tomarmos conhecimento dos diferentes gêneros de


usinas metalúrgicas, vamos enumerar algumas indústrias
russas, indústrias mecânicas e elétricas, forjas, fundições,
fabricas de caldeiras, laminadores, fornos Martin, fornos
Seemens, usinas de produtos químicos, usinas de
construção, fabricas de cadinhos, fabricas de carretas, etc.
Nas usinas Putilof, em 1914-1916, eram encontradas as
seguintes categorias de operários: serralheiros, ajustadores,
torneiros de madeira, torneiros de metais, fundidores,
furadores, forjadores, chaufeurs, laminadores, mecânicos,
marceneiros, carpinteiros, tapeceiros, pintores, homens,
mulheres, etc. ("La Revue Métallurgiste" 1917). Vários
nomes mostram que certas especialidades estão ligadas a
determinados instrumentos, máquinas, ferramentas. As
combinações determinadas destes instrumentos de trabalho,
à sua repartição na empresa, corresponde também a
colocação dos homens. Esta ultima é determinada pela
primeira.

Assim, na grande indústria, as relações de produção são


determinadas pela técnica. E do mesmo modo que a técnica
da Grécia e de Roma antigas decorria das relações de

261
A Teoria do Materialismo Histórico N. Bukarin

produção correspondentes à pequena e média produção,


assim também as relações da grande produção decorrem da
técnica moderna. Entre a técnica social e a economia social,
existe também um equilíbrio relativo.

Enfim, vimos que o atraso da técnica da sociedade


antiga trazia consigo a fraca intensidade das trocas: ela dava
à economia um caráter natural: os laços entre as diferentes
economias eram muito frouxos. Isto determina também
relações de produção bem determinadas. Pelo contrario, a
técnica capitalista moderna permite atirar sobre o mercado
enormes massas de produtos. Por outro lado, a divisão do
trabalho tem como consequência o fato de toda a produção
se fazer para o mercado: o fabricante não usa ele próprio os
milhões de suspensórios que a sua usina fabrica! Assim, as
relações de produção, no que diz respeito à circulação de
mercadorias, são também uma consequência da técnica
correspondente.

Examinamos a questão sob vários pontos de vista: 1.°)


do ponto de vista das forças de trabalho; 2.° do ponto de
vista da produção, isto é, vimos em que medida e em que
proporção os homens estão organizados nas diferentes
empresas; 3.°) procuramos as relações existentes entre
essas empresas. E em toda parte, baseando-nos no exemplo
de duas economias diferentes (antiga e moderna), chegamos
à conclusão de que sempre as combinações de instrumentos
de trabalho e a técnica social determinam as combinações e
as relações dos homens, isto é, a economia social.

262
A Teoria do Materialismo Histórico N. Bukarin

Entretanto, isto não representa ainda senão um aspecto,


uma parte das reações existentes na produção. É preciso
agora que estudemos um outro problema muito vasto e
absolutamente essencial: o das classes sociais. Falaremos
disto adiante em detalhe, mas examiná-la-emos aqui do
ponto de vista das condições da produção.

Quando examinamos as relações entre os homens no


processo da produção, encontramos quase sempre (com
exceção do por assim dizer comunismo primitivo) que os
homens se agrupam de maneira a que um agrupamento não
esteja ao lado, mas sim acima de outro. Vejamos as relações
que existem no regime da "servidão": no alto estão os
proprietários, abaixo os intendentes, gerentes, os
empregados, mais baixo ainda os camponeses. Tomemos as
relações que existem na produção capitalista. Aqui também,
vemos que no processo do trabalho os homens não se
dividem somente em fundidores, montadores, ferroviários,
etc., que, apesar da variedade de suas ocupações, trabalham
entretanto da mesma maneira e estão colocados no mesmo
nível da produção, mas que, aqui também, um grupo de
homens se acha no processo do trabalho acima de outro: os
empregados acima dos operários (o pessoal técnico médio:
contra-mestres, engenheiros, agrônomos, técnicos); acima
dos empregados médios,estão os empregados superiores
(administradores, diretores); mais acima ainda os
pretendidos proprietários das empresas, os capitalistas, os
grandes chefes e os grandes mestres do processo da
produção. Tomemos enfim um grande domínio de um rico

263
A Teoria do Materialismo Histórico N. Bukarin

proprietário romano: existe aqui toda uma hierarquia; bem


em baixo os escravos, os "instrumentos falantes",
"instrumenta vocalia", como os denominam os romanos,
para distingui-los dos "instrumentos semi-falantes", isto é,
do gado e dos instrumentos mudos" isto é, das coisas; depois
dos escravos vêem os fiscais, etc., em seguida os
intendentes, por fim o proprietário do domínio e sua honrada
família (a mulher habitualmente à frente de certos trabalhos
domésticos). É preciso ser cego para não ver que estamos
aqui em presença de tipos diferentes de relações entre os
homens que trabalham. Todas as pessoas indicadas acima
participam de uma ou de outra maneira no processo do
trabalho e se encontram assim em determinadas relações
umas com as outras. É preciso dividi-las em diferentes
grupos: seja de acordo com a sua especialidade e profissão,
seja conforme a sua classe. Quando nós dividimos segundo
a profissão ou especialidade, temos os forjadores,
serralheiros, torneiros, etc., em seguida, engenheiros
químicos, engenheiros mecânicos, engenheiros especialistas
em caldeiras, na tecelagem ou nos locomóveis, etc.
Entretanto, está claro que um serralheiro, um torneiro, um
mecânico constituem uma certa categoria, enquanto que um
engenheiro, um agrônomo, etc., constituem outra, e o
capitalista que dispõe de tudo é coisa muito diferente. Não
se pode pôr todos esses homens no mesmo nível. É fácil
verificar que, apesar das diferenças que separam o trabalho
de um serralheiro, de um torneiro ou de um tipografo, as
relações entre eles no processo geral do trabalho são do
mesmo gênero e que as existentes entre um serralheiro e

264
A Teoria do Materialismo Histórico N. Bukarin

um capitalista são de um gênero absolutamente diferente.


há uma coisa ainda mais evidente: um serralheiro, um
torneiro, um tipografo, todos em conjunto e cada um
separadamente, têm as mesmas relações com todos os
engenheiros e as mesmas, bem que ainda mais afastadas,
com os gerentes superiores, mestres da produção, "capitães
de indústria" capitalistas.

É aqui que vemos as maiores diferenças entre os papéis,


a importância, os tipos, o caráter das relações entre os
homens: o capitalista coloca os operários na usina da mesma
forma pela qual ele coloca as ferramentas; os operários de
modo algum "colocam" o capitalista (enquanto se trata do
regime capitalista, bem entendido): são eles que são
"colocados" pelos capitalistas. Vemos aqui as relações de
dominação à submissão "Herrschafts und
Knechtsehaftsverhalfhiss", como diz Marx, "o comandante
do capital", (Kommando des Kapitals). É este papel
completamente diferente que os homens desempenham no
processo da produção que constitui a base da divisão dos
homens em diversas classes sociais. Convém chamar a
atenção sobre um fato muito importante. Sabemos já por
tudo o que precede que o processo de repartição faz também
parte do processo de reprodução social. O processo de
repartição constitui, por assim dizer, o reverso do processo
de reprodução social. O que é o processo de repartição,
considerado mais de perto? E de que modo está ele ligado
ao processo de produção?

265
A Teoria do Materialismo Histórico N. Bukarin

Marx escreve a este respeito ("Introduction à une


critique de l'economie politique" — Introdução a uma critica
da economia política):

"A repartição, no sentido vulgar,


apresenta-se como repartição dos
produtos; mais ainda, como alguma
coisa afastada da produção e
independente em relação a ela. Mas
antes de se tornar a repartição dos
produtos, ela é antes de tudo uma
repartição de instrumentos de produção
e é em segundo lugar, — o que constitui
a definição seguinte da mesma relação,
a repartição dos membros da sociedade
entre os diferentes ramos da produção
(submissão coletiva dos indivíduos às
relações que existem na produção). A
repartição dos produtos é
evidentemente o resultado da repartição
que faz ela própria parte do processo de
produção e que determina a composição
da produção. Estudar a produção sem
tomar em consideração a repartição que
dela faz parte, não é senão um trabalho
abstrato; pelo contrario, ao mesmo
tempo em que se dá esta repartição, que
constitui um elemento da produção, dá-
se também a repartição dos produtos".

266
A Teoria do Materialismo Histórico N. Bukarin

É preciso analisar esta proposição de Marx.

Vemos antes de tudo que o processo de produção


determina por si mesmo o processo de repartição dos
produtos. Se, por exemplo, a produção se faz em
explorações particulares e independentes (por empresas
capitalistas particulares ou por artesãos isolados), então, em
cada exploração, não se produz mais tudo de que necessita
esta, mas um artigo especial (em uma relógios, em outras
pão, etc.); está claro que a repartição dos produtos se fará
por meio da troca. Os homens que fabricam fechaduras não
podem com elas vestir-se ou come-las. Os homens que
fazem o pão, não podem com ele fechar os armazéns de
farinha; eles necessitam de fechaduras e de chaves.
Forçosamente, eles trocarão os seus produtos, farão
comércio. Assim, a distribuição dos produtos fabricados pelos
homens que vivem em sociedade se dará por via da troca.
Da maneira por que se produz, decorre o modo pelo qual se
repartem os produtos. A repartição dos produtos não é uma
coisa independente do próprio produto, ao contrario, ela é
determinada por ele e constitui com ele uma parte da
reprodução material da sociedade.

Entretanto, a própria produção implica duas outras


espécies de repartição: em 1.° lugar, a repartição dos
homens, o lugar que ocupam no processo da produção,
conforme os papéis variados que desempenham no processo
da produção (é disto sobretudo que falamos no parágrafo
precedente); em segundo lugar, a repartição de

267
A Teoria do Materialismo Histórico N. Bukarin

instrumentos de produção entre esses homens. Essas duas


espécies de divisões fazem parte da produção. Com efeito,
tomemos os nossos exemplos que precedem, os exemplos
referentes à sociedade capitalista. Ali vemos uma "repartição
dos homens". Esses homens "repartidos", isto é, colocados
na produção de maneira determinada, dividem-se, como já
vimos, em classes, e a base desta divisão é determinada pelo
papel que eles desempenham no processo da produção.
Vejamos isto mais de perto. A esta "repartição dos homens",
aos diferentes papéis que esses homens desempenham na
produção, está ligada igualmente a repartição dos meios de
trabalho. O capitalista, o grande proprietário de terras, tem
à sua disposição os meios de trabalho (a fabrica e as
máquinas, o domínio e as oficinas de trabalho, a terra, as
edificações), enquanto que um operário não possui nenhum
meio de produção, exceto a sua força de trabalho; o escravo,
não pode nem sequer dispor de seu próprio corpo, e o servo
não se distingue muito do escravo. Vemos assim que os
diferentes papéis das classes na produção se baseiam na
repartição entre eles dos meios de produção. No jornal
londrino'"Le Peuple" (ns. 6|20, 20 de Agosto de 1859),
referindo-se ao livro de Marx: "Contribution a la critique de
l'economie politique", Engels escrevia:

"A economia política não fala das coisas,


mas de relações entre os homens, e em
ultima analise, de relações entre as
classes e essas relações são sempre

268
A Teoria do Materialismo Histórico N. Bukarin

ligadas às coisas e se apresentam como


coisas".

O que isto significa? Vamos explicá-lo com alguns


exemplos: tomemos as relações habituais entre as classes
duma sociedade capitalista, relações entre os capitalistas e
os operários. A que "coisa" estão elas ligadas? Aquela que se
encontra entre as mãos dos capitalistas, aos meios de
produção dos quais dispõem os capitalistas e que os
operários não possuem. Estes meios de produção servem aos
capitalistas de instrumento para tirar lucro, instrumento de
exploração da classe operaria. Não são simplesmente coisas,
mas coisas tomadas na sua significação social particular. Em
que sentido? No sentido de que eles são não somente um
meio de produção, mas também um meio de exploração dos
operários assalariados. Em outros termos essa "coisa"
exprime as relações entre as classes ou, como diz Engels, as
relações entre as classes estão ligadas às coisas. No nosso
exemplo, essa "coisa" é o capital.

Assim, a forma particular das relações de produção,


forma que consiste em relações entre as classes, é
determinada pelos diferentes papéis que esses grupos de
homens desempenham no processo de produção e pela
repartição entre eles dos produtos. A repartição dos produtos
está ali inteiramente contida.

Por que motivo percebe o capitalista lucro? Porque ele


possui os meios de produção, porque ele é capitalista.

269
A Teoria do Materialismo Histórico N. Bukarin

As relações de produção entre as classes, isto é, as


relações ligadas aos diferentes modos de repartição dos
meios de produção, têm uma importância capital para a
sociedade. São elas que determinam antes de tudo o aspecto
dessa sociedade, sua estrutura ou, como dizia Marx, sua
estrutura econômica.

As relações de produção, como se vê agora, são


extremamente variadas e complexas. Se nos lembrarmos
ainda que consideramos a repartição dos produtos como uma
parte da reprodução, compreenderemos facilmente que as
relações entre os homens no processo da repartição fazem
parte das relações de produção. As relações entre os homens
na nossa sociedade complexa são numerosas. As relações
entre os comerciantes, banqueiros, empregados, corretores,
varejistas, operários, consumidores, vendedores, caixeiros-
viajantes, vendedores ambulantes, fabricantes, armadores,
marítimos, engenheiros, contra-mestres, etc., são todas elas
relações de produção. Na vida real, elas se emaranham nas
combinações mais variadas e estranhas; elas formam
desenhos complicados. Entre esses desenhos há um
essencial e de particular importância, a saber, a relação
existente entre os grandes agrupamentos de homens,
agrupamentos estes que são denominados classes sociais.
Dos gêneros das classes existentes, das relações entre essas
classes, do papel que elas desempenham na produção, da
maneira por que são distribuídos os instrumentos de
trabalho, — de tudo isso depende também o caráter da
sociedade que temos diante de nós: os capitalistas no alto,

270
A Teoria do Materialismo Histórico N. Bukarin

o operário assalariado em baixo, — eis aí a sociedade


capitalista; o grande proprietário de terras no alto, dispondo
de todas as coisas e de todos os homens integralmente, —
eis o regime das escravidão; no alto os operários dirigindo
tudo, é o regime da ditadura do proletariado, etc. Quando as
classes não existem, isto não significa que a sociedade
desapareceu. Isto significa simplesmente que a sociedade de
classe não existe mais. Tal é, por exemplo, a sociedade
comunista primitiva; tal será também a sociedade comunista
do futuro.

Temos agora um outro problema a resolver. Vimos


anteriormente que as relações de produção variam com a
técnica social. Esta proposição será aplicável às relações de
produção que são ao mesmo tempo as relações entre as
classes? Basta lançar um golpe de vista sobre a marcha
efetiva da evolução de não importa que sociedade, para que
nos convençamos imediatamente de que essa proposição é
justa. Assim, as enormes mudanças entre as classes se
produziram sob as vistas da geração atual. Apenas há
algumas dezenas de anos a classe dos artesãos
independentes era ainda muito numerosa. Ela principiou a
fundir-se muito rapidamente. Por que? A técnica mecânica
desenvolveu-se e, com ela, a grande indústria, o sistema das
fabricas. E, ao mesmo tempo, o proletariado por sua vez
aumentou; é assim que a grande burguesia industrial se
desenvolveu e os ofícios desapareceram pouco a pouco. O
agrupamento das classes tornou-se outro. E não pode ser de
outro modo. Com efeito, quando a técnica varia, a repartição

271
A Teoria do Materialismo Histórico N. Bukarin

do trabalho na sociedade varia por sua vez, certas funções


na produção desaparecem ou se tornam menos importantes,
outras aparecem e assim por diante. Ao mesmo tempo, o
agrupamento das classes também muda. Quando forças
produtivas da sociedade estão pouco desenvolvidas, a
indústria é muito fraca, e a economia social tem um caráter
agrário, rural.

Nada de admirar que, em semelhante sociedade, sejam


os campos que dominem, e que à frente da sociedade se
encontre a classe dos grandes proprietários de terras. Ao
contrario, quando as forças de produção constituem na
sociedade uma grandeza já bastante desenvolvida, vemos
então uma indústria pujante, cidades, vilas industriais, etc..
Mas por isto mesmo são as classes urbanas que adquirem
uma influência preponderante. Os nobres passam ao
segundo plano, cedendo o lugar à burguesia industrial ou a
outras frações da burguesia. O proletariado torna-se uma
potência. É natural que o reagrupamento continuo das
classes pode mudar completamente a forma da sociedade.
Isto acontece quando a classe que estava em baixo sobe
para o poder. De que maneira isto se produz? Falaremos a
este respeito no capítulo seguinte. No momento basta dizer
que as relações entre as classes que constituem a parte mais
importante das relações de produção, variam também elas
relativamente à variação das forças produtivas.

"Segundo o caráter dos meios de


produção, variam igualmente as

272
A Teoria do Materialismo Histórico N. Bukarin

relações sociais entre os produtores, as


condições de sua colaboração, assim
como a sua participação na marcha da
produção. A invenção de um
instrumento de guerra novo, a arma de
fogo, por exemplo, muda forçosamente
toda a organização interna do exército,
assim como as relações mutuas que
ligam as pessoas que fazem parte do
exército e graça às quais ele representa
um conjunto organizado; enfim as
relações mutuas entre os exércitos por
sua vez também variaram. As relações
sociais entre os produtores as relações
sociais da produção variam por
conseguinte com a transformação e
desenvolvimento dos meios materiais de
produção, isto é, com o
desenvolvimento das forças produtivas"
(K. Marx, "Capital et Salariat").

Em outros termos:

"A organização de cada sociedade é


determinada pelo estado de suas forças
produtivas. Com a variação desse
estado se transforma forçosamente
também, cedo ou tarde, a organização
social. Por conseguinte, ela se acha em

273
A Teoria do Materialismo Histórico N. Bukarin

estado de equilíbrio instável sempre que


sobem (ou baixam, N. B.) as forças
produtivas sociais". (G. Plekanov: "La
conception materialiste de l'histoire.
Critique de nos critiques").

O conjunto das relações de produção constitui a


estrutura econômica da sociedade, ou por outra, os seus
meios de produção. Este é o aparelho do trabalho humano
da sociedade, a sua "base real".

Se examinarmos as relações de produção, nós as


levaremos para o terreno da repartição dos homens no
espaço. Como se exprime essa relação? Pelo fato de cada
homem, como já vimos, ter o seu lugar determinado como
um parafuso num mecanismo de relojoaria. É precisamente
esta situação determinada no espaço, "sobre o campo de
trabalho", que faz dessa "repartição", dessa "colocação",
uma relação de trabalho social. Cada coisa, evidentemente,
se encontra no espaço e se move. Mas os homens estão
ligados aqui precisamente, por assim dizer, pelas posições
determinadas de trabalho que eles ocupam. É uma relação
de ordem material, semelhante ô das parcelas de um
mecanismo de relojoaria. É preciso não esquecer que as
criticas ao materialismo histórico confundem
constantemente essas noções, aproveitando-se do fato da
palavra "material" ter varias significações. Assim, por
exemplo, eles "levam" o processo histórico às "necessidades"
ou aos "interesses" materiais e triunfam facilmente do

274
A Teoria do Materialismo Histórico N. Bukarin

materialismo histórico, provando com justeza que o


"interesse" não é de modo algum uma coisa material, no
sentido filosófico da palavra, mas aparentemente qualquer
coisa de psíquico. E, com efeito, o interesse não é de modo
algum a matéria. Mas o que é uma desgraça, é que certos
"partidários" do materialismo histórico (que
consideram Marx como um filósofo burguês qualquer e que
não estão de acordo com o materialismo filosófico)
confundem também facilmente as coisas. Assim, por
exemplo, Max Adler, que concilia Marx com Kant, vê na
sociedade um conjunto de ações mutuas psíquicas: tudo
para ele é psíquico (nota-se a mesma coisa em A. A.
Bogdanov: "Contribuition à la psychologie de la societé" —
Contribuição à psicologia da sociedade). Vejamos um
espécime de raciocínio deste gênero;

"Mas a relação não é de modo algum


uma coisa material no sentido filosófico
do materialismo que coloca na mesma
categoria a matéria e a substancia
animada. Em geral é difícil colocar "a
estrutura econômica", "base material"
do materialismo histórico, numa relação
qualquer com a "matéria" do
materialismo filosófico, qualquer que
seja o sentido que lhe dermos... E isto
concerne não somente ao que exerce a
ação, mas também ao que é criado por
esta ação. Os meios de produção... são

275
A Teoria do Materialismo Histórico N. Bukarin

antes produtos do espírito humano..."


(Max Zetterbaum: "Contribuição à
concepção materialista da história", na
coleção intitulada: "O Materialismo
Histórico". Edição do Soviet de Moscou,
1919.)

M. Zetterbaum desnorteia-se pelo fato das máquinas


não serem feitas por homens desprovidos de alma. Mas como
os próprios homens não são tampouco feitos por mortos,
segue-se que tudo na sociedade é o produto do espírito
desprovido de corpo, de um espírito benfazejo. Por
conseguinte, a maquina é alguma coisa de psíquica; por
conseguinte a sociedade não dispõe de nenhuma "matéria".
E entretanto percebe-se que a coisa não é exatamente
assim. Com efeito, mesmo o espírito mais puro não poderia
ter criado nem os homens, nem as máquinas sem a carne
pecadora. E mais ainda, sem essa carne pecadora, ele não
teria ardido de desejo de fazer coisas semelhantes. Mas o
que fazer da "relação"? Explicá-lo-emos ainda uma vez ao
Sr. Zetterbaum. Esperamos que o Sr. Zetterbaum não
protestará se falarmos do sistema solar como sendo um
sistema material. Mas o que é esse sistema e porque é ele
um sistema? Por uma razão muito simples, a saber que suas
partes integrantes (o sol, a terra e todos os outros planetas)
se acham em relações definidas uns com os outros, pois
ocupam a cada momento dado um lugar determinado no
espaço. E do mesmo modo pelo qual o conjunto dos planetas
que estão em relações definidas entre si forma o sistema

276
A Teoria do Materialismo Histórico N. Bukarin

solar, assim também o conjunto dos homens ligados pelas


relações de produção forma a estrutura econômica da
sociedade, sua base material, seu aparelho humano.
Encontramos também emKautsky, que confunde sem razão
a técnica e a economia, passagens muito duvidosas (por
exemplo na pagina 104 da obra mencionada acima). A estas
afirmações podemos opor a seguinte passagem do escritor
arquiburguês W. Sombart. Vejamos o que diz este sábio
muito pouco materialista:

"se nos servirmos de imagem, podemos


falar da vida econômica como de um
organismo e emitir uma proposição
segundo a qual este ultimo é composto
de um corpo e de uma alma. O corpo
determina a forma exterior, na qual se
desenvolve a vida econômica: as formas
econômicas e produtivas, as
organizações múltiplas, no meio das
quais e por causa delas se dirigem a
"vida econômica", etc... Está claro que é
preciso em primeiro lugar colocar na
rubrica da forma e da organização
econômica toda a estrutura econômica
da sociedade. É ela que constitui, se nos
exprimirmos por imagens, o corpo dessa
sociedade. (Werner Sombart: "Der
Bourgeois". Edição Duncker und
Humblot, Munich e Leipzig, 1913, p. 2).

277
A Teoria do Materialismo Histórico N. Bukarin

38. A SUPERESTRUTURA E SUAS FORMAS

É necessário que procedamos agora ao exame das


outras faces da vida social. Temos diante de nós as seguintes
séries de fenômenos sociais: a estrutura política e econômica
da sociedade (organização de seu poder político, de suas
classes, dos partidos, etc.), os costumes, leis e a moral (as
normas sociais, isto é, a regra de conduta dos homens); a
ciência e a filosofia; a religião, a arte, e enfim a linguagem
— meio de comunicação entre os homens. Denominam-se
em geral todos esses fenômenos, com exceção da estrutura
política e social da sociedade, "cultura espiritual".

A palavra "cultura", de origem latina, supõe a ação de


"cultivar". A cultura indica por conseguinte tudo o que é
"obra da atividade humana", no sentido lato da palavra, isto
é, tudo o que é produzido de uma maneira ou de outra pelo
homem social. "A cultura espiritual" é também um produto
da vida social: ela é feita pelo processo vital geral da
sociedade. Assim, para compreende-la, é preciso apresentá-
la justamente como uma parte integrante desse processo
vital geral. E entretanto, certos sábios burgueses desejam,
custe o que custar, destacar essa "cultura espiritual" do
processo vital da sociedade, isto é, divinizá-la na realidade,
fazer dela uma entidade particular, independente do corpo e
do espírito sem pecado. Assim, por exemplo, Alfred Weber
("La notion sociologique de la culture. Discussion au II éme.
Congrés Sociologique Allemand". Tubingem. Edição Mohr,
1913), que denomina o crescimento da vida social, sua

278
A Teoria do Materialismo Histórico N. Bukarin

complexidade e suas riquezas, processo da civilização


exterior, escreve:

"Mas nós sentimos (!) agora que a


cultura está acima de tudo isto, que nós
compreendemos sob o nome de
evolução da cultura alguma coisa muito
diferente... Não é senão quando... a vida
se torna alguma coisa que se coloca
acima das necessidades e da utilidade,
que nós estamos em presença de uma
cultura" (XXX p. 10-11).

Em outros termos, a cultura é uma parte da vida, mas


ela não é determinada pelas "necessidades e utilidades da
vida", isto é, ela provém da sociedade sem ser determinada
por ela. É evidente que uma tal concepção conduz ao divorcio
com a ciência e à sua substituição pela fé. Isto explica porque
Weber emprega o termo "nós sentimos".

Para passar a essa cultura "espiritual", é mais cômodo


examinar em primeiro lugar os traços mais gerais da
estrutura político-social da sociedade, esta ultima sendo
determinada diretamente, como veremos adiante, pela sua
estrutura econômica.

A expressão mais patente da estrutura político-social da


sociedade é o poder de Estado. O que é o poder de Estado?
Para responder a esta pergunta, é preciso primeiro
perguntar: como é possível a existência de uma sociedade

279
A Teoria do Materialismo Histórico N. Bukarin

de classes? Pois se a sociedade é composta de classes


diferentes, essas classes têm também interesses diferentes.
Uns possuem tudo, os outros quase nada. Uns ordenam,
comandam, apropriam-se dos frutos do trabalho alheio;
outros obedecem, executam ordens, entregam os frutos de
seu próprio trabalho. A posição das classes na produção e na
repartição, isto é, as suas condições de existência, o seu
papel na sociedade, a sua "existência social", determinam
também uma certa consciência. Sabemos que tudo no
mundo é determinado por alguma coisa, que nada existe sem
causa. Não é de admirar que as dificuldades da situação das
classes determinam também uma diferença nos seus
interesses, nos seus desejos, assim como também a luta
entre elas, luta às vezes de morte. Nestas condições, como
pode ser atingido o equilíbrio na estrutura de uma sociedade
de classes? Como acontece que não haja uma ruptura a cada
instante? Como é possível a existência de uma sociedade na
qual, como dizia um homem publico inglês, existem, no meio
de uma nação, na realidade duas nações (isto é, duas
classes).

Sabemos, entretanto, que a sociedade de classes existe


e por conseguinte deve haver uma condição de equilíbrio
suplementar. É preciso que exista alguma coisa
desempenhando o papel de um laço que mantém as classes,
não deixando a sociedade quebrar-se, cair aos pedaços. Este
laço, é o Estado. É uma organização que entrava com seus
inúmeros fios toda a sociedade e a mantém na sua rede. Mas
qual é essa organização? Donde provém? Pois certamente

280
A Teoria do Materialismo Histórico N. Bukarin

ela não caiu do céu. Ela não pode ser uma organização sem
classe, os homens não pertencendo a uma classe para
construir uma organização fora das classes ou bem "acima
das classes" apesar do que dizem os sábios burgueses, A
organização do Estado é "essencialmente a organização de
uma classe dominante".

Formulemos agora a seguinte pergunta: qual é a classe


que "domina"? De que classe é o poder do Estado o
instrumento, este poder que obriga as outras classes à
obediência pelo constrangimento, pelas cadeias ideológicas
e espirituais seu aparelho imenso dividido em múltiplos
ramos? Não será difícil responder a essa pergunta, se nos
lembrarmos de tudo o que foi dito anteriormente.
Representemo-nos, com efeito, a sociedade capitalista. É a
classe dos capitalistas que domina aqui a produção. Será
possível que o proletariado, por exemplo, domine no Estado
de uma maneira durável? Não, certamente. Pois então uma
das condições essenciais de equilíbrio viria a faltar e se
produziria uma ou outra das seguintes alternativas: ou bem
o proletariado tomaria igualmente em mãos o poder sobre a
produção, ou bem a burguesia retomaria o poder de Estado.
Assim, enquanto uma sociedade tendo uma determinada
estrutura econômica existe, sua organização de Estado deve
ser adaptada à sua organização econômica, em outros
termos a estrutura econômica de uma sociedade determina
também a estrutura estatal e política.

281
A Teoria do Materialismo Histórico N. Bukarin

Examinemos ainda uma questão. O Estado é uma


organização imensa que abrange todo o país e que domina
vários milhões de homens. Essa organização necessita de
todo um exército de empregados, funcionários, soldados,
oficiais, legisladores, homens de leis, ministros, generais,
etc. etc., Ela contém ainda camadas inteiras de homens
dispostos uns acima de outros. Na sua estrutura se refletem
como em um espelho todas as relações de produção. Numa
sociedade capitalista, por exemplo, é a burguesia que chefia
a produção; o mesmo acontece com o Estado. Um
proprietário de usina é seguido imediatamente de um diretor
de fabrica que ele próprio é às vezes capitalista; as coisas se
passam do mesmo modo, no Estado capitalista, com os
ministros, com os grandes chefes burgueses. É nesses meios
que se recrutam os generais do exército. A colocação média
na produção é ocupada pelo técnico e pelo engenheiro, pelo
intelectual; os mesmos intelectuais exercem as funções de
empregados médios no aparelho de Estado e é entre eles que
são geralmente recrutados os oficiais. A classe operaria
correspondem os pequenos funcionários, soldados, etc.
Certamente, existem aqui algumas diferenças, mas em geral
a estrutura do poder político corresponde à estrutura da
sociedade. Com efeito, imaginemos por um instante que os
pequenos funcionários, por um milagre qualquer, se tornem
superiores aos superiores. Isto equivaleria a dizer que a
antiga classe dominante tivesse deixado escapar de suas
mãos o poder político. E isto não é possível senão quando a
sociedade por inteiro perde o seu equilíbrio, isto é, quando
nos achamos em presença de uma revolução. Mas essa

282
A Teoria do Materialismo Histórico N. Bukarin

revolução, por sua vez, não pode deflagrar sem que


modificações correspondentes se tenham efetuado na
produção; assim, como vemos, a estrutura do próprio poder
político reflete a estrutura econômica da sociedade, isto é,
que as mesmas classes ocupam os mesmos lugares.

Citemos alguns exemplos tirados de domínios e de


épocas diferentes. No antigo Egito, por exemplo, a direção
da produção se confundia quase com a administração do
Estado. Os grandes proprietários fundiários se achavam
tanto à frente da produção como do Estado. A maior parte
da produção era a do Estado, baseada sobre a grande
propriedade agrária. O papel dos agrupamentos sociais da
produção se confundia com a sua situação como funcionários
superiores, médios e inferiores desse Estado e como
escravos (O. Neurath: "Antike Wirtschaffosgeschichte",
edição Teubner, 1909, p. 8).

"As famílias notáveis são certamente


famílias rurais, mas ao mesmo tempo
elas representam a aristocracia dos
funcionários" (Max Weber:
"Agrargeschichte" — História Agrária —
no Handworterbuch der
Staatwissenschaften — Dicionário das
ciências sociais).

As vezes a ligação entre o poder de Estado e o comando


da produção era patente. No XV.° século, na Republica

283
A Teoria do Materialismo Histórico N. Bukarin

capitalista comercial de Florença, dominava o banco dos


Medicis:

"O banco dos Medicis e o tesouro


florentino confundiram-se
completamente, e a falência da casa
comercial dos Medicis confundiu-se com
a queda da Republica de Florença".
(M. Pokrovsky: "Le materiel
economique, Moscou, 1906).

Na segunda metade do século XVIII, os grandes


proprietários fundiários que exploravam os seus servos
dominavam a produção russa, e também detinham o poder
de Estado, organizado em classe "nobre" privilegiada. E
quando os "Mojiks" levantaram o estandarte da revolta,
conhecida na história pelo nome de "revolta de Pougatchef",
a "nobre" imperatriz Catarina IIª exprimiu o verdadeiro
sentido do poder político, participando como "proprietária
fundiária de Kazan" à formação de um regimento de
cavalaria destinado a restabelecer a ordem no meio da
"populaça", o que provocou no meio dos nobres de Kazan
uma explosão de sentimentos de fidelidade. As relações que
Catarina entretinha com os filósofos franceses, amantes da
liberdade, não a impediram de introduzir, por exemplo, o
direito de servidão na Ukrania. A. Tolstoi exprimiu muito bem
a ligação destes fatos:

284
A Teoria do Materialismo Histórico N. Bukarin

Ao grande povo
Do qual sois a mãe,
Deveis dar a liberdade,
É a liberdade que lhe deveis dar.
Ela lhes respondeu:
"Senhores, vós me confundis".
E ela se apressou
A reatar os ucranianos à gleba.

Na America contemporânea (Estados Unidos), é o capital


financeiro, um grupo de banqueiros e de organizadores de
"trustes", que dirige tudo. O poder político lhes pertence a
tal ponto que as decisões do Parlamento são tomadas em
primeiro lugar nos bastidores do capital unificado.

Entretanto, a estrutura política e social da sociedade não


se exprime inteiramente pelo poder político. Tanto a classe
dominante como as classes oprimidas dispõem de
numerosas organizações e de uniões as mais variadas. Cada
classe tem habitualmente a sua guarda avançada, os seus
membros mais "conscientes" que formam partidos políticos,
lutando pelo poder. A classe dominante tem geralmente o
seu próprio partido; as classes oprimidas têm os seus; as
classes "médias" também. Existindo ainda outras
subdivisões no interior de cada classe, não é de admirar que
uma classe possua às vezes vários partidos, se bem que seus
interesses mais constantes, mais sólidos, mais essenciais
sejam expressos por um só dentre eles. Além dos partidos
organizados, há ainda outras organizações: assim, por

285
A Teoria do Materialismo Histórico N. Bukarin

exemplo, os capitalistas americanos têm hoje em dia as suas


associações de luta contra os operários, organizações
especiais para as fraudes eleitorais (o que se
denomina Tammany-Hall), organizações de recrutamento,
furadores de greve, organizações de provocadores (agencia
de policia e detetives particulares de Pinkerton) e grupos
escondidos aos olhos do mundo, graças a uma solida
conspiração das firmas capitalistas as mais influentes, assim
como dos políticos mais em voga, grupos cujas decisões são
em seguida confirmadas pelos órgãos oficiais do Estado. Na
antiga Rússia, o papel de organização auxiliar do Estado dos
nobres era assumido pelos "Cem-negros", que tinham
mesmo ligações com a casa reinante dos Romanoff; em
1921, o mesmo papel era desempenhado na Itália pelos
fascistas, na Alemanha pelo Orguesch. As classes oprimidas
têm também, fora de seus partidos, uniões "econômicas"
diversas (os sindicatos profissionais, por exemplo),
organizações de combate, clubes; nessas organizações
poderemos classificar os "bandos" de Stenka Razin ou de
Pugatchef. Numa palavra, todas as organizações que
empreendem uma luta de classe, a começar pela "juventude
dourada", as "corporações" alemãs de estudantes e
acabando pelo Estado de um lado; a começar pelos partidos
e acabando pelos clubes do outro, todas fazem parte da
estrutura política e social da sociedade. Não é necessário
fazer um grande esforço intelectual para compreender o que
determina a sua existência. É o reflexo e a expresso das
classes. Por conseguinte, aqui também a "economia"
determina a "política".

286
A Teoria do Materialismo Histórico N. Bukarin

Mas, examinando essa "superestrutura política" da


sociedade, podemos e devemos tomar em consideração o
seguinte fato: resulta, com efeito, dos exemplos já citados
que a superestrutura política não se limita a um só aparelho
humano. Do mesmo modo que toda a sociedade, ela é
composta, por sua vez, de combinações de coisas, homens e
idéias. Tomemos o aparelho de Estado, por exemplo. Nele
encontramos a sua parte material, sua hierarquia, suas
idéias sistematizadas (normas, leis, decisões, etc.).
Tomemos o exército; é também uma parte do Estado, mas
ele tem também, por sua vez, a sua "técnica" (canhões,
fuzis, metralhadoras, intendência), sua organização dos
homens "repartidos" segundo um certo modelo, e suas
"idéias" que são inculcadas a todos os membros do exército
(idéia de obediência, disciplina, etc.) por uma instrução
militar complicada e por uma educação especial dos homens.
Se examinarmos o exército deste ponto de vista, chegamos
sem dificuldade aos seguintes resultados: a técnica do
exército é determinada pela técnica geral do trabalho
produtivo em uma sociedade dada; não é possível fazer um
canhão se não se sabe fundir o aço, isto é, sem dispor dos
instrumentos correspondentes à produção. A repartição dos
homens, a ordem do exército, dependem da técnica militar
e ao mesmo tempo da divisão da sociedade em classes; do
gênero dos armamentos depende a divisão do exército em
artilharia, infantaria, cavalaria, engenharia, etc.; daí os
diferentes gêneros de soldados, chefes, homens tendo
funções particulares (os telefonistas, por exemplo). De outro
lado, a divisão da sociedade em classes determina as

287
A Teoria do Materialismo Histórico N. Bukarin

camadas sociais que fornecem, por exemplo, os corpos de


oficiais, de chefes que dirigem a ação do exército, etc. Enfim,
as idéias especiais que animam o exército são determinadas,
de um lado pelo regime do exército (os regulamentos, o
sentimento de disciplina, etc.) e de outro, pela estrutura das
classes da sociedade (no exército tzarista dizia-se: obedece
ao tzar, defende "a fé, o tzar e a pátria" e, no exército
vermelho se diz: "seja disciplinado para defender os
trabalhadores contra os imperialistas"). Bastam estes
exemplos para se poder dizer: a superestrutura política e
social é uma coisa complexa, composta de elementos
diversos ligados entre si. Em geral, ela é determinada pela
estrutura de classe da sociedade, estrutura que por sua vez
depende das forças produtivas, isto é, da técnica social.
Certos elementos dependem diretamente da técnica,
"técnica militar"; outros tantos do caráter de classe da
sociedade (de sua economia), como também da "técnica" da
própria superestrutura ("a estrutura do exército"). Assim,
todos esses elementos dependem direta ou indiretamente do
desenvolvimento das forças produtivas sociais.

Um lugar particular é ocupado, entre as organizações


humanas, pela organização familiar, isto é, pelo conjunto dos
maridos mulheres e filhos. Essa organização dos sexos, que
variava constantemente, tinha como base relações
econômicas definidas:

"a família é igualmente uma formação,


não somente social, mas ainda (e antes

288
A Teoria do Materialismo Histórico N. Bukarin

de tudo) econômica baseada sobre a


divisão do trabalho entre o homem e a
mulher, sobre a diferenciação sexual..."
o casamento primitivo não é outra coisa
senão a expressão dessa união
econômica (Muller-Lyer, ob. cit. p. 110).
(Marx: Capital, 1. "No interior de uma
família... efetua-se uma divisão natural
de trabalho, baseada na diferença dos
sexos e da idade...").

A família não aparece como uma coisa solida... senão


como consequência de modificações do regime da tribo, que
oferecia o caráter do comunismo primitivo. (As formas
primitivas das relações sexuais eram as de "relações sexuais
desordenadas", isto é, de ajuntamento livre e instável do
homem e da mulher). Vejamos como o Sr.
N. Pokrovsky caracteriza a família primitiva dos eslavos ("a
grande família", a "zadruga" servia, "vélika kutsia", "a
grande casa" em sérvio); os membros de uma família destas,
— operários da mesma exploração, soldados dos mesmos
destacamentos, enfim adoradores dos mesmos deuses,
participantes do mesmo culto ("Historia da Rússia", tomo 1,
1920). As bases econômicas de uma tal família são ainda
melhor caracterizadas pelo fato seguinte:

"Nós cometeríamos um grande erro, diz


o Sr. N. Pokrovsky, se atribuíssemos à
esses laços do sangue uma importância

289
A Teoria do Materialismo Histórico N. Bukarin

preponderante: eles existem


geralmente, mas não são absolutamente
necessários. Uma semelhante economia
coletiva estava organizada
frequentemente no Norte por homens
completamente estranhos uns aos
outros: unidos por um acordo particular,
eles fundavam um "lar" não para
sempre, mas por um certo período de
tempo, por 10 anos, por exemplo...
Assim o laço econômico antecede aqui o
laço de sangue, de "parentesco", no
sentido que damos a essa palavra (ib.)".

As modificações de formas das relações familiares


relativamente às condições econômicas podem ser
observadas também nos tempos modernos; basta comparar
uma família camponesa com uma família operaria ou com a
de um burguês contemporâneo.

A família camponesa é uma união sólida, tendo uma


base de produção direta.

"Como posso eu me arranjar sem


mulher? A mulher é indispensável, diz o
camponês. É preciso mugir as vacas,
tratar dos porcos, preparar as refeições,
lavar, tratar das crianças, etc..".

290
A Teoria do Materialismo Histórico N. Bukarin

A importância econômica da família é tão grande que o


casamento é o resultado de um cálculo econômico: "Precisa-
se de uma dona de casa". Os membros da mesma família são
considerados do ponto de vista econômico, como
"trabalhadores" e como "consumidores". Tendo uma tal
base, a família relativamente estável, a família camponesa
se distingue por uma solidez patriarcal, enquanto ela não foi
tocada pela influência "desmoralizadora" da cidade. As coisas
se passam de outro modo com o operário. De fato ele não
dispõe de casa própria. Sua "economia domestica" é toda ela
de consumo; ele não faz nada mais senão gastar o seu
salário. De outro lado, a cidade com seus restaurantes, suas
lavanderias, etc., torna em geral a economia domestica
menos necessária. Enfim, a grande indústria contribui para a
"decomposição da família", obrigando a mulher-proletária a
trabalhar na usina. Todas estas circunstancias formam
outras relações familiares, mais nobres, menos estáveis. Na
grande burguesia, a propriedade privada conserva a família,
mas o parasitismo crescente da burguesia, a formação no
seu seio de camadas inteiras de percebedores de rendas,
transforma a mulher em objeto, numa bonita boneca, mas
sem cérebro, instrumento de prazer, "bibelot" de toucador.
As diversas formas de casamento (monogamia, poligamia,
poliandra, etc.) correspondem também a condições de
evolução econômica. É preciso não esquecer que as relações
sexuais, tomadas em geral, não se limitavam quase nunca
às relações dentro dos quadros da família. Fenômenos tais
como a prostituição já aparecem na mais remota
antiguidade. As formas e as dimensões da prostituição são

291
A Teoria do Materialismo Histórico N. Bukarin

ligadas, por sua vez, com a estrutura econômica da


sociedade; basta lembrar o papel desempenhado pela
prostituição no regime capitalista. Há lugar para crer que, na
sociedade comunista, a prostituição e a família
desaparecerão, ao mesmo tempo em que desaparecerá
definitivamente a propriedade privada e a opressão da
mulher.

Passemos agora ao exame de outras "superestruturas".


Os homens estando tanto na sociedade, tomada no seu
conjunto, quanto em certas frações dessa sociedade, em luta
direta uns contra os outros, resulta daí a necessidade social
das normas sociais (regras de conduta). Entre estas contam-
se os costumes, a moralidade, o direito e toda uma série de
outras regras: "regras de polidez", "etiquetas*,
"cerimônias", etc...; de outro lado, os estatutos das
diferentes sociedades, organizações, corporações, etc...).
Qual é a causa de seu desenvolvimento? Ele é determinado
simplesmente pelo desenvolvimento dos antagonismos
numa sociedade que cresce e se complica ao extremo... O
antagonismo mais profundo como nós já vimos, é o
antagonismo entre as classes. Também ele "exige" um
regulador poderoso, susceptível de o dominar. Como
regulador aparece, como sabemos, o poder de Estado com
seus anexos, decretos denominados normas legais. Mas
existe ainda um grande número de antagonismos entre as
classes e no interior das classes, profissões, grupos,
associações e as diferentes categorias de homens em geral.
Todo homem, fora da situação de classe, entra em contacto

292
A Teoria do Materialismo Histórico N. Bukarin

com todos os homens imagináveis, é submetido a um grande


número de influencias, que se entrecruzam mutuamente;
eles se encontram em diferentes situações que mudam
rapidamente, que se seguem, desaparecem e tornam a
aparecer. Estamos aqui em presença de continuas
contradições. E, entretanto, a sociedade continua a existir e
existem sempre no seu seio grupos diversos que têm, apesar
de tudo, um caráter relativamente estável. Os capitalistas,
proprietários de empresas, comerciantes, aparecem no
mercado como concorrentes e entretanto, no interior do
próprio Estado, eles se combatem a golpes de faca e a sua
classe não se desloca, porque seus membros rivalizam entre
si. Os compradores e vendedores têm interesses
completamente opostos. E entretanto, não chegam sempre
a vias de fato. Entre os operários, há desempregados que os
capitalistas compram de bom grado, durante as greves. Mas
eles não conseguem comprar todo mundo e a união de classe
dos operários vence. Como isto é possível? Essa
circunstancia é facilitada pela existência de normas
suplementares variadas além da lei. Essas normas
suplementares (regras de conduta) implantam-se no cérebro
humano, agem, por assim dizer, de dentro, parecem
sagradas aos homens por sua própria natureza e são
seguidas mais devido ao impulso da consciência do que por
medo. Tais são, por exemplo, as regras da moral que, numa
sociedade onde circulam mercadorias, aparecem como
eternas, inflexíveis e sagradas, refulgindo de um fogo interior
e obrigatórias para qualquer homem honesto. Tais são os

293
A Teoria do Materialismo Histórico N. Bukarin

costumes "preceitos dos antepassados". Tais são "as regras


de polidez", "de bom viver", etc.

Entretanto, qualquer que seja a aparente "origem supra


terrestre dessas regras sagradas, não é difícil descobrir as
suas raízes na terra, apesar do medo que elas inspiram aos
seus adoradores. Estudando-as, encontramos, antes de
tudo, dois fatos essenciais: em primeiro lugar, o caráter
variável destas regras, e em segundo lugar, o laço que as
une com uma classe, um grupo, uma profissão determinada,
etc. Depois de descobrir estes fatos e aprofundando-nos um
pouco mais, veremos "que no fim de contas" eles dependem
da evolução das forças produtivas. Em geral, pode-se dizer
que essas regras traçam a linha de conduta pela qual se
conserva uma dada sociedade, ou uma classe ou um
agrupamento ou um grupo no qual os interesses provisórios
de um homem isolado são subordinados aos interesses do
grupo.

Assim, essas normas são as condições de equilíbrio,


emoções que neutralizam até um certo ponto as contradições
internas dos sistemas humanos. É portanto fácil de
compreender a razão por que elas devem necessariamente
concordar mais ou menos com o regime econômico da
sociedade. Formulemos somente a seguinte pergunta:
quando a sociedade existe, será possível que o sistema dos
costumes e da moral que nela dominam possa ser contrario
durante muito tempo à sua estrutura essencial, isto é,
econômica? A resposta é clara. Uma tal situação não se pode

294
A Teoria do Materialismo Histórico N. Bukarin

prolongar por muito tempo. Se os costumes e a moral que


dominam em uma dada sociedade fossem fortemente
contrários ao seu regime econômico, uma das condições
essenciais de equilíbrio social viria a faltar. Na realidade, o
direito, os costumes e a moral que dominam numa dada
sociedade concordam sempre com as relações econômicas,
têm as mesmas bases, modificam-se e desaparecem com
elas. Imaginemos o seguinte exemplo: sabemos que numa
sociedade capitalista são os capitalistas que dominam as
coisas (os meios de produção). Nas leis de um Estado
capitalista isto se exprime pela lei da propriedade privada,
que é defendida por todo o aparelho do poder de Estado. As
relações de produção de uma sociedade capitalista são
denominadas em linguagem vulgar de relações de
propriedade, e são estas que são protegidas pelas leis. Seria
possível, numa sociedade capitalista, que as normas
jurídicas (as leis) não defendessem as relações de
propriedade, mas ao contrario as destruíssem? Uma tal
hipótese é evidentemente absurda, e o mesmo pode ser dito
da moral. "A consciência moral" da sociedade capitalista
reflete e exprime seu estado material. Tomemos ainda o
mesmo exemplo da propriedade privada. A moral diz que não
é correto roubar, que é preciso ser honesto e não tocar, sob
nenhum pretexto, nos bens de outrem, isto é compreensível.
Se, por exemplo, este preceito não estivesse gravado no
cérebro dos homens, a sociedade capitalista se teria
decomposto muito rapidamente.

295
A Teoria do Materialismo Histórico N. Bukarin

Poderiam opor-nos o seguinte argumento: dizeis que


tudo isto é muito simples, e entretanto, os comunistas, por
exemplo, não admitem que a propriedade privada seja
sagrada, mas não ousam dizer que o roubo é moral. Assim,
há coisas que são sagradas para todos e que não podem ser
explicadas por causas terrestres. Mas este argumento não
está certo, apesar de sua força aparente. Vejamos porque:
em primeiro lugar, os comunistas não defendem de modo
algum a intangibilidade absoluta da propriedade privada. A
nacionalização das empresas constitui a expropriação da
burguesia; ela é despojada sem indenização. A classe
operaria apodera-se "daquilo que não lhe pertence", atenta
portanto contra o direito da propriedade privada, "invade
despoticamente o domínio das relações de propriedade"
(Marx). Em segundo lugar, os comunistas são contra o
roubo, por que? Porque se o operário isolado se apoderasse
das coisas pertencentes aos capitalistas, no seu interesse
pessoal, ele não poderia tomar parte numa luta geral e se
transformaria, ele próprio, num burguês. Ladrões de cavalos
e arrombadores não serão nunca elementos ativos da luta de
classe, mesmo se eles forem da mais pura origem proletária.
Se um grande número de proletários se tornassem ladrões,
a própria classe se desagregaria e enfraqueceria. Eis a razão
por que os comunistas adotaram esta regra: não roube, para
não decair. Isto não constitui uma norma de defesa da
propriedade privada, mas um meio de conservar a
integridade da classe operaria, de protegê-la contra a
"desmoralização", contra a decomposição, o meio de
preveni-la contra os meios irregulares de dirigir os

296
A Teoria do Materialismo Histórico N. Bukarin

proletários no seu próprio caminho. Isto é a regra de conduta


da classe do proletariado. Depois de tudo que foi dito, é inútil
explicar mais amplamente que as regras de conduta
examinadas acima são determinadas pelas condições
econômicas da sociedade.

Certamente, as normas proletárias são contrarias às


condizes econômicas da sociedade capitalista. Mas nós
falamos das normas dominantes. Quando as normas de
conduta proletárias se tornam por sua vez dominantes, é o
fim do capitalismo. Falaremos disto no capítulo seguinte).

Para explicar o que foi dito acima, citemos alguns


exemplos. No domínio sexual, em um certo estágio de
desenvolvimento, quando o clã se apoiava também sobre o
lado do sangue e que os homens de um outro clã (isto é, na
realidade de outra sociedade) eram inimigos, não se
considerava mal o casamento entre parentes próximos e era
considerado particularmente sagrada a união com a própria
mãe ou a filha (como, por exemplo, na antiga família
iraniana).

Quando as forças produtivas estavam ainda fracamente


desenvolvidas e que a economia social era insuficiente para
entreter bocas inúteis, os costumes e a moral julgavam
necessário matar os velhos (segundo Heródoto, Estrabão e
outros historiadores antigos). É por causas análogas que se
explica o costume ao qual se refere Estrabão, segundo o qual
os Velhos se envenenavam voluntariamente. Pelo contrario,

297
A Teoria do Materialismo Histórico N. Bukarin

quando esses velhos desempenhavam um certo papel na


produção, ou na direção desta, o costume prescrevia o
respeito à velhice (ver E. Meyer: "Elemente der Aníropologie"
— Elementos de Antropologia, p. 31-32 e seguintes). A
solidez do clã, a sua solidariedade na luta com inimigos
cruéis, exprimiam-se na vingança na qual participavam
também as mulheres. Basta lembrar as figuras de Brunhilda
ou de Gudrun do "Canto das Niebelungen"; vejamos como é
caracterizada Gudrun, menos cruel do que Brunhilda:

Ela vingou seus irmãos,


Ela soltou os cães,
Ela derramou o sangue
Com a ponta de seu sabre.
(O canto de Sigurd)

E. Meyer escreve com razão:

"O próprio conteúdo da moral, dos usos


e do direito, dependem do regime social
que existe num momento dado e das
concepções da sociedade... Também
podem eles ter, em sociedades
diferentes, e em épocas diferentes, um
caráter diametralmente oposto".

Na China antiga, o poder de Estado feudal dispunha de


um grande número de funcionários de diversas categorias,
tinha uma importância enorme. A dominação dessa camada
burocrática e fundiária baseava-se ideologicamente sobre a

298
A Teoria do Materialismo Histórico N. Bukarin

doutrina de Confúcio, composta de todo um sistema de


regras de conduta. Um dos artigos mais importantes dessa
ciência moral era a doutrina do respeito para com os
superiores (Hiao):

"É preciso suportar a calunia, e até


sofrer a morte, se isto for útil para a
honra do soberano; pode-se (e é
preciso) em geral corrigir por seu serviço
fiel os erros do soberano e é nisto que
consiste o respeito (Hiao). (Max Weber:
"Gesammelte Aufsatze zur
Religionssoziologie, — Estudos sobre a
religião e a sociologia, Tubingen, edição
Mohr, 1920, 1.° vol., pag. 419).

O atentado contra o "Hiao" constitui o único pecado. É


bárbaro aquele que não o compreender, aquele que não
compreende o "decoro" (concepção essencial da doutrina
de Confúcio).

"A piedade (Hiao) para com o senhor


feudal é posta no mesmo pé que o
respeito (Hiao) para com os pais,
mestres, chefes da hierarquia
burocrática e seus dignitários" (Ib.
446.).

A disciplina, tanto quanto o respeito, é uma das maiores


virtudes.

299
A Teoria do Materialismo Histórico N. Bukarin

"A desobediência é pior do que um


pensamento covarde" (Ib. 447).

A idéia que domina tudo é a de ordem.

"É melhor viver como um cão, mas em


paz, do que ser um homem em estado
de anarquia, diz Tchen-Ki-Tong" (Ib.
457).

Como toda moral burocrática, a moral


de Confúcio proibia evidentemente a participação dos
funcionários no trabalho destinado a adquirir as riquezas...
como a uma obra duvidosa do ponto de vista moral e indigna
dessa "casta" (Ib. 447). Pode-se escolher seus amigos
somente entre iguais, do ponto de vista social; os ricos são
melhores do que os pobres, porque eles podem cumprir
todas as cerimônias; o povo, o "estúpido povo" (Youn Min) é
oposto ao "gentleman" (literalmente: Ao homem-príncipe).
É característico que todo esse enorme sistema de regras de
conduta que sustinha o regime feudal nobre, denominava-se
"Hung-Fan", isto é, o "grande plano" (ib. 457). O laço que
une essa doutrina à ordem social é evidente. E todas as
numerosas "cerimônias chinesas" se uniam na realidade à
corrente ideológica dominante e serviu de rede com malhas
de seda destinada a embaraçar toda a sociedade e a
sustentar o regime correspondente.

Examinemos ainda os costumes dos cavaleiros franceses


do Norte no XII e XIII século. Os cavaleiros celebravam "as

300
A Teoria do Materialismo Histórico N. Bukarin

belas damas" e lutavam "por elas" nos torneios. Mas a sua


"concepção ideal do amor e da felicidade" tinha a forma de
"honra de casta" (Ver: Weltgeschichte — História do mundo,
de H. Helmold, volume 5, pag. 496, Leipzig und Wien, 1919).
O papel principal da cavalaria na sociedade era a guerra e as
ações militares. Não é de admirar então que "as normas"
contribuíssem para criar um tipo militar de homens formando
uma classe particular:

"O cavaleiro que se revelava covarde era


expulso, em publico desonrado pelo
arauto, maldito pela igreja; o carrasco
quebrava seus brasões e suas armas,
seu escudo era amarrado à cauda de um
cavalo... etc.". "Os torneios serviam de
exercício na arte militar..." (Ib.).

Ao mesmo tempo que aparece a ordem capitalista, os


costumes, a moral, etc., mudam. A prodigalidade cede o
lugar à paixão da economia e às virtudes correspondentes.

"Não é a conduta de um senhor feudal


que honra um homem honesto, mas sim
o de ter os negócios em ordem". (W.
Sombart: Oburguês).

É preciso viver de uma maneira "correta"... é preciso


abster-se de qualquer excesso, não se mostrar senão em boa
sociedade Não se deve ser bêbado, jogador, mulherengo, é
preciso ir à missa e ao sermão do domingo, em uma palavra,

301
A Teoria do Materialismo Histórico N. Bukarin

é preciso ser um bom... cidadão" com relação ao mundo


exterior, e no interesse de seus negócios; pois essa vida
moral aumenta o credito" (Ib.). Certamente, essa moral de
tartufo protestante cedeu o lugar a uma outra, quando a
situação da burguesia mudou e quando os negócios da firma
cessaram de depender da conduta de seu proprietário.

Mostrar a variação do direito, relativamente ao regime


econômico, é coisa ainda mais fácil, o caráter de classe das
leis sendo visível sempre e em toda parte. Mas mesmo
normas fortuitas como as da moda dependem, como se pode
provar, das condições sociais. Um burguês considera
"inconveniente" não estar corretamente vestido: é por ai que
se afirma a marca de classe, é pelo habito que se
reconhecem "as pessoas corretas". Mesmo nos meios
revolucionários, encontra-se alguma coisa de semelhante.
Assim, por exemplo, durante a Revolução de 1905, havia
uma moda de partido: os social-democratas vestiam camisas
pretas (sinal do proletariado), os socialistas-
revolucionários preferiam camisas vermelhas (camponeses
revolucionários); encontrar-se-ia dificilmente, numa grande
cidade, uma dúzia de intelectuais, tendo participado na
Revolução, sem ter vestido um ou outro uniforme de partido,
tacitamente adotado.

Fora da moral de classe existem ainda outras formas de


moral, como por exemplo a moral profissional dos médicos,
advogados, etc... Do mesmo modo existe igualmente a moral
dos ladrões, que é rigorosamente observada por eles, de não

302
A Teoria do Materialismo Histórico N. Bukarin

se denunciar os seus. Assim, todas as normas que


examinamos acima constituem os laços que mantêm a
unidade da sociedade, de uma classe, de um grupo
profissional determinado.

39. A PSICOLOGIA E IDEOLOGIA SOCIAIS

Quando examinamos a origem da ciência e da arte, do


direito e da moral, etc., já encontramos diante de nós um
certo número de sistemas bem concatenados de imagens,
pensamentos, regras de conduta, etc.. A ciência consiste em
pensamentos concatenados entre si, ajustados uns aos
outros, sistematizados, que envolvem com sua textura um
objeto qualquer. A arte é um sistema de sensações,
sentimentos, imagens. A moral é um conjunto de regras de
conduta, tendo uma força persuasiva e penetrante, que são
mais ou menos rigorosamente ajuizadas umas às outras. O
mesmo pode ser dito de muitas outras ideologias. Mas, na
vida social, descobrimos um imenso domínio de valores não
refletidos, não sistematizados, onde não encontramos uma
ligação obrigatória entre os valores. Tomai aquilo que
denominamos «as idéias correntes» sobre um objeto
qualquer, em confronto com o pensamento «cientifico» sobre
o mesmo tema. O que verificamos em primeiro lugar, são
noções fragmentarias, idéias sem ordem e dispersas;
teremos aí uma multidão de contradições, de idéias
insuficientemente meditadas, de bizarrias. Tudo isto precisa
ser trabalhado, examinado com a lente, criticado, verificado,
desembaraçado das contradições; mas então, já intervém a

303
A Teoria do Materialismo Histórico N. Bukarin

ciência. Ora, é habitualmente sobre «as idéias correntes»


que se vive. Entre a imensidade das reações recíprocas que
se produzem entre os homens e que constituem a vida social,
existe, no domínio das relações psíquicas, uma multidão
desses elementos não sistematizados: idéias fragmentárias,
nas quais, entretanto, já se exprime um certo conhecimento
dos sentimentos e dos desejos, nas relações dos homens
entre si; gostos, modos pensar, representações não
refletidas, «semi-conscientes» confusas sobre «o bem» e o
«mal», sobre «o justo» e «o injusto», sobre «o belo» e o
«feio»; hábitos e opiniões correntes, quotidianas; tendências
e idéias referentes à marcha da vida social; sentimentos de
alegria ou de tristeza, de aborrecimento e de cólera, sede de
luta ou desespero sem remissão, julgamentos variados,
esperanças confusas, ideais; pensamentos críticos e
mordazes sobre a ordem estabelecida ou disposição
constante e muito agradável para achar que «tudo vai da
melhor maneira no melhor dos mundos»; sentimentos de
insucesso e de desilusão, inquietude dos maus dias, desejos
de levar uma existência louca, ilusões infinitas sobre o futuro
ou temor do futuro, etc.. Todos esses fenômenos,
considerados na medida da vida social, constituem o que se
denomina a psicologia social. O que distingue
a psicologia dita social ou coletiva da ideologia é portanto,
como vemos, o grau de sistematização.

A psicologia social apareceu mais de uma vez na ciência


burguesa sob o véu extremamente misterioso daquilo que se
denomina «espírito nacional» ou «espírito do nosso tempo»;

304
A Teoria do Materialismo Histórico N. Bukarin

e com efeito, entendia-se por isso uma espécie de alma


social única e universal no sentido mais literal. Entretanto,
não existe neste sentido um «espírito nacional», como
também não existe uma sociedade constituída como um
organismo único tendo um só centro de consciência. Já
dissemos que seria ridículo representar-se a sociedade à
moda da Baleia da qual se fala na nossa lenda do Pequeno
cavalo corcunda; seria absurdo esperar ver no meio do
mundo exterior

... pavonear-se
Com a boca aberta, monstruosa Baleia
Cujos flancos gretados,
De paliçadas eriçadas,
Abrem-se como uma planície
Coberta de barbas,
Onde as meninas e os rapazes
Vão colher cogumelos...

Mas este monstro não existe, e não existe tampouco um


«espírito nacional» ou «alma nacional» no sentido mistérioso
e místico que se dá a estas palavras. E entretanto, falamos
numa psicologia social que distinguimos da psicologia
individual. Como entender isto? Como resolver essa
contradição? Mas é muito simples! As realizações
recíprocas que se produzem entre os homens determinam
uma psicologia especial em cadaindivíduo. O elemento
«social» existe não entre os homens, mas nas cabeças
desses homens. Ora, o que existe nessas cabeças, nesses

305
A Teoria do Materialismo Histórico N. Bukarin

cérebros, nesses espíritos é o produto das influências mutuas


das relações recíprocas que se entrecruzam, por conseguinte
não há outro elemento psíquico a não ser aquele que existe
nos indivíduos, constantemente mergulhados numa
atmosfera de reação mutua, nos indivíduos «socializados»: a
sociedade é portanto um conjunto de homens socializados e
não um fabuloso Leviatã cujos órgãos seriam os indivíduos.

G. Simmel assim escreve, admiravelmente:

"Quando uma multidão, nos diz ele,


demole um edifício, ou pronuncia um
julgamento, ou clama violentamente, os
atos dos indivíduos formam uma soma,
e esta soma é um acontecimento que
designamos como um fato único, como
a realização de um sóconceito. E é
então que se produz uma importante
substituição: o resultado exterior de
um conjunto de processos psicológicos
individuais é interpretado como
resultado de um único processo de
conjunto, de um processo da alma
coletiva" (G. Simmel: Soziologie.
Untersuchungen uber die Formen
Vergesellschaftung — "Investigações
sobre as formas da socialização" —
Leipzig, 1908. Verlag Duncker und
Humbolt. Pag. 559-60).

306
A Teoria do Materialismo Histórico N. Bukarin

Outro exemplo: Acontece às vezes que as relações


recíprocas dos indivíduos produzem qualquer coisa
de novo e de mais considerável do que a simples soma das
tendências ou dos atos individuais.

''Se examinarmos as coisas bem de


perto, neste caso, trata-se do modo de
agir dos indivíduos que se
encontram sob a influênciado
ambiente; como resultado desse
ambiente, produzem-se transposições
de tom (Umstimmungen), transposições
nervosas intelectuais, hipnóticas (de
sugestão), morais, por comparação com
os estados espirituais que existiriam fora
desse ambiente e de suas influencias.
Mas se estas últimas, reagindo ainda
umas sobre as outras, modificam
igualmente o estado interior de todos os
membros do grupo, está claro que a sua
ação comum (Totalaktion) seria
diferente da ação de cada uma das
influencias quando ela se manifesta
isoladamente" (Ibidem, pag. 560).

Entretanto, nas expressões «alma racional», «espírito de


nosso tempo» há um certo sentido: estes termos indicam
exatamente dois fatos que podem ser observados em toda
parte e sempre: em primeiro lugar o seguinte: que em cada

307
A Teoria do Materialismo Histórico N. Bukarin

época, há uma tendência dominante nos pensamentos,


sentimentos, estados de alma, uma psicologia
dominante que colora toda a vida social; em segundo lugar:
que essa psicologia dominante modifica se em função do
«caráter da época». isto é, em nossa linguagem, em função
das condições da evolução social.

A psicologia dominante numa sociedade reduz-se aos


dois principais elementos seguintes: em primeiro lugar: a
caracteres psicológicos geraisque podem ser encontrados em
todas as classes da sociedade porque, apesar de toda a
diversidade das situações ocupadas por estas classes, pode
haver analogias entre estas situações; em segundo lugar a
uma psicologia da classe dominante que se impõe tão
fortemente na sociedade a ponto de dirigir toda a vida social,
submetendo mesmo as outras classes à sua influência. Como
exemplo do primeiro destes elementos pode-se relembrar o
que era visto nas épocas do feudalismo: tanto no senhor
como no camponês, havia traços psicológicos comuns: apego
às velhas coisas, rotina, tradições, submissão à autoridade,
«temor de Deus», estagnação do pensamento, aversão por
todas as novidades, etc.. Por que era assim? Em primeiro
lugar, porque as duas classes viviam numa sociedade
estacionaria: o movimento psicológico vem mais tarde das
cidades. Em segundo lugar, porque o senhor feudal sendo
«soberano e pai» no seu domínio, o camponês, por seu lado,
é também «soberano e pai» na sua família». A família, nós o
sabemos, é uma das organizações de trabalho dessa época.
Os laços do trabalho familiar na economia camponesa

308
A Teoria do Materialismo Histórico N. Bukarin

desempenham ainda nos nossos dias um papel importante.


Compreende-se, portanto, que o regime patriarcal, a
constituição do trabalho de família, a autoridade indiscutida
e o poder do pater familiae tenham determinado uma
psicologia correspondente: «Os mais idosos sabem melhor o
que se deve fazer». O espírito conservador da nobreza feudal
e dos camponeses em servidão, era «o espírito do tempo»
numa fase determinada da evolução social. Bem entendido,
ao lado disto, na psicologia social dominante, manifestavam-
se outros elementos que caracterizavam unicamente os
senhores feudais e não se difundiam senão em função da
situação dominante da nobreza.

Por outro lado, vemos muito mais frequentemente a


psicologia social — entendamos: a psicologia
social dominante — determinada pela psicologia da classe
dominante. Marx nos diz no Manifesto Comunista, capítulo
2.º:

«As idéias dominantes de uma época


qualquer não foram sempre senão as
idéias de uma classe dominante».

O mesmo pode-se dizer da psicologia social que domina


numa época determinada. Já demos, no exame das
ideologias, diversos exemplos de sentimentos, pensamentos
e estados de alma que dominavam nas sociedades.
Indaguemos agora, por exemplo, o que representava a
psicologia do Renascimento que se distinguia pelo seu amor

309
A Teoria do Materialismo Histórico N. Bukarin

pelas volúpias terrestres as mais refinadas, que falava latim


ou grego, que refinava na ciência, que tinha a paixão de
valorizar a personalidade para distingui-la do «vulgar», que
considerava com elegante desdém as superstições da Idade
Média, etc.. Está claro que esta psicologia nada tinha de
comum, por exemplo, com a da classe camponesa italiana
de então. Esta psicologia era o produto da vida das cidades
comerciais e nas cidades ela era o resultado da existência,
de uma aristocracia de financeiros e de comerciantes. As
cidades começavam então a ganhar terreno sobre os
campos, e eram banqueiros, aparentados com a sociedade
principesca, que nelas dirigiam os negócios. É a psicologia
desta camada social que se reconhece como sendo
dominante para a época: os monumentos do tempo são uma
expressão viva disto. É preciso ainda notar que à medida que
se desenvolvem as forças produtivas, a classe dominante
apodera-se de poderosos meios; que lhes servem para
formar, determinar a psicologia das outras classes.

«Realmente... três ou quatro jornais de


importância mundial chegarão, no
futuro, a determinar a opinião dos
jornais de provinda e, por conseguinte,
a determinar «a vontade do povo»,
como nos diz, sem constrangimento, o
filósofo da burguesia alemã
contemporânea, Spengler.

310
A Teoria do Materialismo Histórico N. Bukarin

Não deixa porém de ser evidente que, numa sociedade


constituída em classes, não existe uma «psicologia social»
maciça, comum, uniforme. Não existem, no melhor dos
casos, senão certos traços comuns dos quais não devemos
exagerar a importância.

O mesmo pode-se dizer daquilo que se denomina


"caráter de um povo", "psicologia dos povos", etc..... Bem
entendido, não é da conta dos marxistas contestar "em
princípio" certos traços comuns que podem existir entre as
diversas classes de um só e mesmo povo. Marx, numa certa
passagem, toma mesmo em consideração a influência
da raça; ele escreve com efeito:

"... A mesma base econômica — a


mesma nas suas condições essenciais —
pode mostrar, devido a circunstancias
empíricas inúmeras e diversas, devido a
condições climatéricas, devido a
relações de raça, de influência histórica
agindo exteriormente, etc., infinitas
variações na sua manifestação, o que
não pode ser compreendido senão pela
análise dessas circunstancias empíricas"
(Karl Marx: Capital, III).

Em outros termos: se duas sociedades quaisquer


passam pelo mesmo grau de evolução (digamos: pelo
feudalismo), elas apresentarão cada uma certas

311
A Teoria do Materialismo Histórico N. Bukarin

particularidades (bem que secundárias, não modificando os


"traços essenciais"). Estas particularidades explicam-se por
diversos desvios no processo da evolução, como
consequência de condições particulares da evolução no
passado. Seria absurdo negar estas particularidades, como
também não se podem contestar certos aspectos singulares
do "caráter nacional", do "temperamento", etc.. Bem
entendido, uma psicologia declasse não é ainda a prova da
existência de certos caracteres "nacionais" particulares;
(Marx, por exemplo, dizia do filósofo Bentham que este era
um fenômeno "especificamente inglês"; Engels denominava
o socialismo do economista Rodbertus "um socialismo de
junker prussiano", etc.). Eis porque o Dr. E. Hunvicz.
atualmente companheiro de Cunow na sua luta para a
exterminação dos bolchevistas, tem razão quando escreve
que

"a psicologia profissional não exclui a


psicologia popular" e "o que se dá com a
psicologia de casta dá-se com a
psicologia local: a psicologia de casta
não impede a existência da psicologia
nacional" (E. Hurwicz: Die Seelen der
Volker. Verlage Fr. Perthes. Gotha,
1920. Pag. 14 e 15).

Mas é preciso observar que os


marxistas explicam estas particularidades nacionais pela
marcha efetiva da evolução social e não se contentam em

312
A Teoria do Materialismo Histórico N. Bukarin

apontá-las com o dedo; em segundo lugar, eles não


exageram a importância dessas particularidades e sabem
"ver as arvores atrás da floresta", enquanto que os simples
partidários da "psicologia nacional", etc., são incapazes de
reconhecer a floresta; em terceiro lugar, os marxistas não
escrevem bobagens como o fazem constantemente os
sábios e os semi-sábios da pequena-burguesia, os fanfarrões
que floreiam sobre o tema da "alma popular". Todos sabem
por exemplo que o pequeno-burguês russo sempre
considerou como característica de todo alemão o ser
pequeno-burguês. Ora, os operários alemães nos provam
hoje em dia que isto não é verdade. Todos sabem quantas
tolices foram escritas e publicadas sobre "a alma eslava".
Quando, por exemplo, o mesmo Hurwicz descobre num
arroubo de imaginação que o bolchevismo não é senão o
czarismo às avessas, quando ele pretende reconhecer
no bolchevismo os métodos de governo da autocracia, o que
ele mostra com isto não são as características da "alma
russa", que segundo ele explicariam esta identidade de
métodos; mas ele manifesta a sua qualidade de alma de
pequeno-burguês internacional, apavorado pela Revolução e
que sustenta atualmente os partidos da social-democracia.

A psicologia de classe apóia-se sobre o conjunto


das condições de vida das classes respectivas e estas
condições de vida são determinadas pela situação das
classes e pelas conjunturas econômicas, políticas e
sociais.

313
A Teoria do Materialismo Histórico N. Bukarin

É preciso considerar, além disto, a complexidade de


toda psicologia social. Acontece por exemplo que psicologias
de classe, absolutamente opostas no fundo, apresentem
analogias flagrantes na forma. Quando se produz por
exemplo uma luta de classes encarniçada, uma luta de
morte, está claro que, no fundo, os sentimentos, tendências,
esperanças, desejos, aspirações, ilusões, etc.. serão
diferentes nas classes opostas; mas aforma, de seus estados
psíquicos, ardor extraordinário, violência apaixonada,
fanatismo da luta e mesmo um certo heroísmo particular,
poderá apresentar certas analogias nas duas classes.

Dissemos que a psicologia das classes é determinada


pelo conjunto das condições de vida de cada classe,
condições que têm a sua base na situação econômica de
cada classe. Esta é a razão por que é absolutamente
impossível reduzir toda psicologia da classe
ao interesse desta, como se faz às vezes. É indiscutível que
o interesse de classe determina essencialmente a luta de
classe. Mas a psicologia de classe a isto não se limita. Já
vimos mais acima que, na época da decadência do império
romano, filósofos da classe dirigente pregavam o suicídio e
que esta propaganda obtinha sucesso porque concordava
com a psicologia desta classe dirigente, que era uma
psicologia de homens saciados e por conseguinte fartos de
viver. Podemos perfeitamente explicar a formação de
semelhante psicologia; vemos que ela tem sua
raiz no parasitismo de uma classe dominante que nada fazia,
e cuja existência inteira se limitava a consumir sem cessar,

314
A Teoria do Materialismo Histórico N. Bukarin

a experimentar de tudo até se enfastiar. Isto se explicava


pela situação econômica dessa classe, pelo papel que ela
desempenhava (ou antes que ela não desempenhava) no
trabalho do país. A psicologia da saciedade e da morte era
uma psicologia de classe. Entretanto, é impossível dizer-se
que, pregando o suicídio, Sêneca exprimia um interesse de
classe, mas, de outro lado, não se poderia concluir que um
suicídio ou um ato desse gênero nunca tenha relação com o
interesse de classe. As greves de fome nas prisões russas
eram por exemplo atos de luta de classe, modos de protestar
e dar maior ímpeto à luta, atos simbólicos que indicavam a
solidariedade dos militantes e que os uniam no combate.
Ora, a luta se fazia em nome dos interesses de classe.
Acontece às vezes que o desespero se apodera das massas
ou dos grupos, depois de uma grande derrota na luta de
classe. Isto tem uma certa relação com o interesse de classe,
mas uma relação de caráter muito particular: os homens
eram levados para a luta por razões secretas de interesse;
mas eis o exército dos militantes vencido, derrotado; produz-
se então uma decomposição, há desespero na derrota; e
começa-se a esperar um milagre, foge-se da sociedade
humana, elevam-se os olhares para o céu. Depois da derrota
dos grandes movimentos populares que se produziram na
Rússia no século XVII e que se colocavam frequentemente
sob o estandarte religioso, apareceram formas de protesto

«extremamente diversas, inspiradas


pela desilusão e pelo desespero»;
«Pregava-se a fuga para o deserto ou o

315
A Teoria do Materialismo Histórico N. Bukarin

suicídio pelo fogo». «Centenas e


milhares de homens sobem por
espontânea vontade para a fogueira...
Exaltados, envolvendo-se numa
mortalha branca, deitam-se nos túmulos
e esperam a hora comparecer diante de
Deus» (S.
Melgunov: Os movimentos sociais.religi
osos do povo russo no século XVII, tomo
1, pag. 019).

Este estado de espírito é muito bem expresso em do


poemas dessa época citados por Melgunov:

Bela solidão, ó Mãe,


Longe dos rumores da terra,
Seja meu asilo e reconforto...

Ou:

Num ataúde feito de pinho,


Quero esperar a jazer
A trombeta do Julgamento...

Vemos assim que, examinando de perto a psicologia


classe, encontramo-nos em presença de um fenômeno mui
complexo que não pode ser reduzido somente ao interesse,
mas que, entretanto, explica-se sempre pelas circunstancias
concretas nas quais a classe encontrou seu destino.

316
A Teoria do Materialismo Histórico N. Bukarin

Na estrutura psicológica da sociedade, isto é, entre


diferentes aspectos da psicologia social, encontramos
igualmente a psicologia do grupo, da profissão, etc.

No interior de uma classe, podem existir diversos


grupos: por exemplo, na burguesia, encontramos o elemento
financeiro e capitalista, o elemento comercial, o elemento
industrial, etc..; na classe operária, encontramos uma
aristocracia de operários qualificados ao lado de operários
instruídos de modo simples ou desprovidos completamente
instrução profissional. Cada um desses grupos tem
interesses um pouco diferentes dos do grupo vizinho e
assinala-se por certos traços de caráter particular: por
exemplo, o operário qualificado gosta de seu oficio, ele se
orgulha de ter passado a mestre e de se distinguir dos
outros; ele tem tendência a se aproximar da classe superior
e gosta de pôr um colarinho branco para se dar ares de
burguês. A profissão imprime também sua marca sobre a
psicologia: quando, por exemplo, se reprocha os burocratas,
o que neles encontramos de ruim são certos traços de caráter
devidos à psicologia da profissão: espírito rotineiro, amor da
papelada, preferência dada à forma sobre o fundo
(formalismo), etc.

Formam-se tipos profissionais cujas particularidades


mentais decorrem diretamente do gênero de ocupação e cuja
psicologia dá origem a uma ideologia especial.

317
A Teoria do Materialismo Histórico N. Bukarin

«Os políticos profissionais,


escreve Engels, os teóricos do direito
positivo, os especialistas do direito
civil... perdem todo contato com os fatos
econômicos. Como, em cada caso, os
fatos econômicos devem revestir a
forma jurídica para serem sancionados
sob a forma de leis, e como é preciso,
além disso, levar em conta o sistema de
direito existente, a forma jurídica é tudo
e o conteúdo econômico nada» (Ludwig
Feuerbach).

A psicologia profissional revela o homem: alguns


minutos de conversação são suficientes para ver se temos
diante de nós um caixeiro, um açougueiro ou um jornalista.
Estes tragos característicos da profissão são internacionais:
podem ser observados nos mais diferentes países.

Assim, paralelamente à psicologia de classe, que é a


forma mais acentuada e mais importante da psicologia
social, existe uma psicologia de grupo, uma psicologia
profissional, etc.. E pode-se dizer que todo grupo de homens
(mesmo se for um clube de jogadores de xadrez ou de
coristas) imprime um certo traço no caráter da
sociedade. Mas como a existência de um grupo humano
qualquer está ligada ao regime econômico da sociedade, é
deste regime que ela depende em última análise e todas as
formas da psicologia social formam uma grandeza que

318
A Teoria do Materialismo Histórico N. Bukarin

depende do modo de produção social, da estrutura


econômica da sociedade.

É bastante fácil agora determinar a relação da psicologia


social e da ideologia social. A psicologia social é de certa
maneira um reservatório para a ideologia. Pode-se compará-
la a uma solução de cloreto de sódio em que se depositam
pouco a pouco os cristais da ideologia. Vimos, no princípio
deste parágrafo, que a ideologia se distingue por uma maior
sistematização de seus elementos, isto é, dos pensamentos,
sentimentos, sensações, imagens, etc.. Que é que a
ideologia sistematiza? Ela sistematiza aquilo que está pouco
sistematizado ou que não está absolutamente sistematizado,
isto é, a psicologia social. As ideologias são as cristalizações
da psicologia social. Vamos dar alguns exemplos. Já na
aurora do movimento operário, a classe operária tinha um
sentimento de descontentamento, ela tinha idéia da injustiça
do regime capitalista, o desejo vago de substituí-lo por
alguma coisa diferente. Mas tudo isso era confuso, sem nexo.
Não se tratava de uma ideologia. Mas eis que aparecem
fórmulas nítidas, coerentes, um sistema de reivindicações
(programa), um «ideal», etc.. É a isto que se dá o nome de
ideologia. Ou suponhamos ainda que a sensação do
sofrimento e do desejo de sair da sua situação se traduzem
numa obra de arte qualquer: isto será também uma
ideologia. Evidentemente, não se pode sempre demarcar
uma linha de separação rigorosa. A ideologia não está
separada da psicologia por uma parede estanque. Na
realidade, existe um processo contínuo de concretização, de

319
A Teoria do Materialismo Histórico N. Bukarin

solidificação da psicologia social numa ideologia social. Por


isso, toda variação da psicologia social é acompanhada de
uma variação da ideologia social, o que observamos várias
vezes no parágrafo precedente. Quanto à psicologia social,
ela varia em função das relações econômicas que estão em
via de constante transformarão, pois ao mesmo tempo se
produz um reagrupamento das forças sociais e as variações
do nível das forças de produção determinam a aparição de
novas recepções sociais.

Agora que demos uma série do exemplos na análise das


ideologias, é inútil demorarmo-nos sobre a modificação da
psicologia social e sobre a sua ligação com as modificações
da ideologia. Vamo-nos limitar a indicar que a literatura atual
estuda atentamente a questão do "espírito do capitalismo",
isto é. da psicologia dos empreendedores. Tais são os
trabalhos de W. Sombart (O burguês), de Max Weber e,
nestes últimos tempos, de Hermann Levy: (Estudos
sociológicos sobre o povo inglês, Iena, 1920). Já no tomo 1.º
do Capital, Marx escrevia:

"O protestantismo desempenha um


papel considerável na gênese do
capitalismo, mesmo que seja somente
pela transformação dos feriados
tradicionais em dias úteis".

Em várias ocasiões, ele indicou que a mentalidade


puritana, econômica e ao mesmo tempo trabalhadora,

320
A Teoria do Materialismo Histórico N. Bukarin

obstinada, prosaica do protestantismo, estranha à pompa e


ao brilho do catolicismo, era a mentalidade da burguesia no
seu período de crescimento. Esta teoria valeu-lhe numerosos
debiques. Ora, agora, os sábios burgueses mais eminentes a
retomam, mas evidentemente sem atribuí-la
a Marx. Sombart mostra que a acumulação dos traços mais
diferentes (sede de ouro, amor ao risco, espírito inventivo,
aliados à arte de saber contar, a razão fria e a moderação
judiciosa) deu como resultado «quilo que se denomina
"mentalidade capitalista". Esta mentalidade, naturalmente,
não se formou por si mesma; ela se constituiu paralelamente
à modificação das relações sociais: ao mesmo tempo que o
corpo do capitalismo se fortificava seu espírito se
desenvolvia; todos os traços fundamentais da psicologia
econômica se modificavam: na época pré-capitalista, a idéia
econômica fundamental do nobre era a da "conveniência",
daquilo que "fica bem para sua posição" (o dinheiro é feito
para ser gasto, escrevia Tomaz de Aquino); a economia era
gerida de maneira irracional, sem contabilidade exata, a
tradição e a rotina dominavam; a vida desenrolava-se num
ritmo lento (os dias feriados formavam quase a metade do
ano); a iniciativa e a energia faltavam; a mentalidade
capitalista, que sucedeu à mentalidade senhorial feudal, está
ao contrário fundada sobre a iniciativa, a energia, a rapidez,
a renuncia à rotina, a contabilidade racional e a reflexão, a
sede de acumulação, etc.. A transformação completa das
relações de produção foi acompanhada de uma
transformação completa da mentalidade.

321
A Teoria do Materialismo Histórico N. Bukarin

40. OS PROCESSOS IDEOLÓGICOS COMO TRABALHO


DIFERENCIADO

É possível e mesmo necessário abordar por outro lado a


questão das ideologias e das superestruturas em geral, afim
de compreender estes fenômenos extremamente
importantes da vida social. Sabemos já que, pela sua
composição, as superestruturas representam uma grandeza
complexa, em que entram homens e coisas; quanto às
ideologias, são por assim dizer um produto espiritual. Se
assim é — e isto é incontestável — precisamos considerar a
superestrutura no seu movimento (e por conseguinte, seus
processos ideológicos) como uma forma especial do trabalho
social (mas não da produção natural). No começo da
«história humana», isto é, na época em que o super-trabalho
não existe, não há quase ideologia. Não é senão depois da
aparição do super-trabalho que, «ao lado da imensa maioria,
exclusivamente ocupada no labor físico, forma-se uma classe
libertada do trabalho direto de produção e ocupada da
gerência das questões sociais: direção do trabalho,
administração do Estado, exercício da justiça, estudo das
ciências, produção das obras de arte, etc.. É assim que a lei
da divisão do trabalho forma a base da divisão em classes».
(Engels: O desenvolvimento do socialismo, da utopia à
ciência). Numa passagem Marx declara que os padres,
juristas, homens de Estado, etc., são «castas ideológicas»
(ideologische Stande). Em outros termos, podemos
considerar os processos ideológicos como uma forma
determinada de trabalho. Este trabalho não é a produção

322
A Teoria do Materialismo Histórico N. Bukarin

material. Não é nem mesmo uma parte dela. Mas como nós
já sabemos pela análise das ideologias, elesurge da
produção material e dela se destaca para formar ramos
especiais da atividade social. O crescimento da divisão do
trabalho exprime o crescimento das forças de produção da
sociedade; é por isso que o desenvolvimento das forças de
produção é acompanhado de um lado pela divisão do
trabalho no domínio da produção material, e doutro pela
aparição do trabalho puramente ideológico que, ele também,
se divide.

«A divisão do trabalho não é especifica


do mundo econômico; pode-se observar
a sua influência crescente nas regiões as
mais diferentes da sociedade. As
funções políticas, administrativas,
jurídicas se especializam cada vez mais.
O mesmo se dá com as funções artísticas
e cientificas. (E. Durkeim: Da divisão do
trabalho social, Paris, 1893, pag. 2).

Desse ponto de vista, toda a sociedade é como uma


imensa, máquina de trabalho com partes especiais para cada
trabalho. O trabalho social comporta duas divisões
fundamentais: primeiro, o trabalho material, isto é, a
produção; segundo, todas as formas de trabalho que dizem
respeito às superestruturas: administração, política, etc., e
também ao trabalho ideológico. Esse trabalho, em conjunto,
está organizado de acordo com o mesmo modelo que o

323
A Teoria do Materialismo Histórico N. Bukarin

trabalho material. Ele comporta uma hierarquia de classe: no


cume, os detentores dos meios de produção; em baixo, os
«não possuidores». Quase em todos os domínios do trabalho
«superestrutural» a situação é a mesma que no processo de
produção material, onde os que estão no cume representam
um papel especial pelo fato de que são eles os detentores
dos meios de produção e, portanto, acham-se igualmente no
cume do processo de repartição. É assim no exército, como
vimos; é assim igualmente na ciência e na arte. Na sociedade
capitalista, por exemplo, um grande laboratório técnico está
interiormente organizado como uma empresa industrial. A
organização dum teatro, com o proprietário, o diretor, os
artistas, os figurantes, os técnicos, os empregados, os
operários, lembra igualmente a de uma fábrica.

Por conseguinte (na medida em que se trata de uma


sociedade de classes) achamo-nos aqui em presença de
diversas categorias de pessoas, com funções diferentes, que
estão socialmente ligadas a essas pessoas, e a posição a
mais elevada implica a posse do que se poderia chamar
«meios espirituais de produção», que constituem
uma propriedade monopolizada de classe; segue-se que na
repartição dos produtos materiais (e é antes de tudo do gozo
de bens materiais que vivem os homens), os detentores
destes «meios espirituais de produção» recebem da
produção geral uma parte relativamente maior do que
aqueles que estão debaixo deles.

324
A Teoria do Materialismo Histórico N. Bukarin

Sabemos como as classes dirigentes são agarradas ao


seu monopólio do saber. Na antiguidade, os sacerdotes,
únicos detentores do saber, fechavam a entrada dos
"templos da ciência" e não deixavam penetrar senão um
número reduzido de eleitos; além disso, o próprio saber se
achava envolvido por um véu de mistério divino e terrível,
accessível unicamente a pequeno número de "sábios" e de
"justos". Para se ver a que ponto as classes reinantes
apreciavam esse monopólio, baeta ver-se a seguinte opinião
do filósofo idealista alemão Fr. Paulsen:

"Para aquele que, em virtude das


relações sociais, está ligado à profissão,
cuja situação material seria a do
operário manual, não haveria nenhuma
vantagem em receber a instrução de um
sábio; não somente por essa instrução
não melhorar a sua sorte, mas ao
contrário, lhe tornar a vida mais difícil."
(Frederic Paulsen: Das modern
Bildungwesen in Kultur der Gegenwart,
t. 1, p. 75. Note-se de passagem que
esta enorme edição da Cultura
Contemporânea, na qual tomou parte a
elite dos professores alemães, era
dedicada a Guilherme II!).

Assim o honrado filósofo idealista considera o homem


como preso, desde o seio mesmo de sua mãe, aos grilhões

325
A Teoria do Materialismo Histórico N. Bukarin

do capital e lhe tira direito à instrução, mesmo antes de sua


vinda ao mundo.

Esse caráter de monopólio da instrução foi a principal


causa da resistência tenaz dos intelectuais russos por ocasião
da Revolução proletária. Pelo contrário, uma das principais
conquistas da Revolução proletária foi a abolição deste
monopólio.

Se considerarmos a produção material, veremos que ela


se subdivide numa série de ramos diversos; primeiramente,
indústria e a agricultura, em seguida uma quantidade
enorme (numa sociedade capitalista desenvolvida) de
subdivisões secundárias, desde a indústria mineradora e a
produção dos cercais até à fabricação das agulhas e a cultura
da alface. Dá-se exatamente o mesmo no domínio das
«superestruturas»: encontram-se nelas as grandes
subdivisões (ponhamos, por exemplo, as admitidas no
passado, isto é, a gestão de negócios, a elaboração de leis,
as ciências, as artes, a filosofia e a religião, etc..); do outro
lado, cada uma dessas subdivisões compreende, por seu
turno, uma série de ramificações: a ciência, por exemplo,
agora se ramifica numa grande quantidade de especialidades
diferentes, e da mesma forma a arte. Prossigamos. Na
produção material, como vimos, deve haver, se existe uma
organização social, uma certa proporção, por grosseira que
seja, entre os diferentes ramos da produção, sem o que não
pode existir organização social. Tomemos mesmo uma
sociedade capitalista que ande a esmo, onde não existe um

326
A Teoria do Materialismo Histórico N. Bukarin

plano geral de produção, onde reina, pelo contrário, o que se


chama «anarquia da produção», isto é, a falta de proporção
entre os diferentes ramos da produção; constatamos, apesar
de tudo, por momentos, que essa «anarquia» se organiza
progressivamente; que essa grosseira ruptura de proporções
se corrige através de duras convulsões, é verdade, e não por
muito tempo, mas em todo caso se corrige por um certo
tempo; se não fosse assim, a primeira crise industrial seria
o fim do capitalismo. Indaguemos agora se pode existir numa
sociedade um estado de coisas tal, que entre a produção
material e os outros aspectos não materiais de trabalho, não
haja em absoluto nenhuma proporção. A esta questão pode-
se responder da seguinte forma: um tal estado de coisas
pode existir, mas então a sociedade não se pode
desenvolver, e tem de entrar em decadência. Se, por
exemplo, mais trabalho é despendido para sustentar os
teatros, ou o aparelho do Estado, ou a Igreja, ou mesmo a
arte, então inevitavelmente as forças produtivas declinarão.
Por que? Pela mesma razão que faria cair a produção numa
empresa em que um só trabalhasse onde este se ocupasse
em contar o que ele faz, onde dois cantassem para o animar
e onde um outro os controlasse a todos. Como ao mesmo
tempo todos comem, e não um só, está claro que uma tal
empresa não se manteria muito tempo com vida. Do outro
lado, não é menos claro que se não existisse nenhuma
pessoa para fazer o cálculo dos produtos, ninguém para
unificar o trabalho dessa empresa, ninguém (nem todos
juntos, nenhum deles) para coordenar de uma forma
qualquer a atividade de cada um dos membros, ninguém

327
A Teoria do Materialismo Histórico N. Bukarin

para entrar em relações com o mundo exterior, então os


negócios não marchariam tampouco, por mais esforços que
fizessem e por mais trabalho que pudessem fornecer os
operários os mais corajosos. Dá-se o mesmo, guardadas as
devidas proporções, na sociedade tomada em conjunto. Por
conseguinte, se uma ordem social existe de uma forma
durável, é que existe nela um certo equilíbrio, por menos
estável que seja, entre o conjunto do trabalho material e o
conjunto do trabalho de caráter «superestrutural».
Suponhamos um instante que nos Estados Unidos da
América desaparecessem numa noite todos os sábios:
matemáticos, mecânicos, químicos, físicos, etc. Uma
produção do tipo atual se tornaria impossível, pois ela está
toda fundada no cálculo cientifico. A produção entraria em
regresso, suponhamos doutra parte que 90% dos operários
atuais se transformassem por um milagre qualquer em
sábios matemáticos que não participassemda
produção. Resultaria na ruína igualmente completa: a
sociedade cairia de um só golpe, como uma chave na água.
Mas se em toda sociedade deve existir uma certa proporção
(se bem que, repitamo-lo os seus limites sejam
extremamente grandes) entre o conjunto do trabalho
material e o conjunto do trabalho compreendido nas
«superestruturas», é preciso acrescentar dum outro lado que
a repartição do trabalho dentro das superestruturas não é
em nada coisa indiferente. Da mesma forma que entre os
diferentes aspectos do trabalho material existe um certo
equilíbrio (os diferentes ramos do trabalho «tendem ao
equilíbrio», como disse Marx, no tomo 3, do Capital), da

328
A Teoria do Materialismo Histórico N. Bukarin

mesma forma entre os diferentes ramos do trabalho


intelectual deve haver um mínimo de equilíbrio. A repartição
destes «ramos de produção» intelectual é determinada
naturalmente pelaestrutura econômica da sociedade. Com
efeito, por que, por exemplo, uma enorme quantidade de
trabalho popular no antigo Egito se encaminhava para a
construção de monumentos gigantescos de arte feudal:
pirâmides, estatuas colossais de Faraós, etc.. Porque a
sociedade então, com sua estrutura econômica, não podia se
manter sem inculcar a todo momento aos escravos e aos
camponeses a idéia de grandeza e do poder divino daqueles
que reinavam. Não existiam então nem jornais nem agencias
telegráficas. A arte servia de comunicação intelectual. Era
pois uma necessidade vital para esta sociedade, e nada de
extraordinário, portanto, que o orçamento do trabalho do
país lhe reservasse uma parte tão grande. Por que na Grécia,
em fins do século V.º, era «ética», a elaboração de regras
morais, que tinha a proeminência na esfera do trabalho
intelectual? Porque, em presença da enorme quantidade de
contradições vitais entre as diferentes classes, dos diferentes
grupos e sub-grupos no momento em que o equilíbrio social
se tinha rompido em que estalavam os antigos
«fundamentos» da sociedade era natural que o que dizia
respeito às relações entre homens, as relações de homem
para homem, que os problemas de organização destas
relações se apresentassem uma forma particularmente
aguda, mesmo para as classes dirigentes, para as quais era
indispensável concertar por todos os meios possíveis os laços
sociais rompidos. Por que na América atual (nos Estados

329
A Teoria do Materialismo Histórico N. Bukarin

Unidos) a arte está tão pouco desenvolvida, enquanto que a


América é o primeiro país que criou em toda sua amplidão a
ciência da organização da produção (o Taylorismo,
psicotécnica, psicofisilogia do trabalho e outros ramos da
ciência)? Porque arte não é necessária para o mecanismo
capitalista americano: os cérebros são amoldados pela
imprensa capitalista americana, que atingiu nesse domínio à
virtuosidade; pelo contrário, a questão da racionalização da
produção de inevitavelmente representar um papel no país
dos «trustes» a «gestão científica» (scientific management)
é uma das grandes questões vitais de um tal sistema
econômico.

É assim que se estabelece também inevitavelmente,


domínio do trabalho de «superestrutura» (e por conseguinte,
de todo trabalho ideológico) uma certa proporção das partes
que o compõem na medida em que a sociedade se acha em
estado de equilíbrio; além disso, esta proporção que fixa a
repartição dos diferentes ramos do trabalho intelectual, é
determinada pela estrutura econômica da sociedade e pelas
exigências de sua técnica.

Essas considerações são confirmadas, entre outros, por


um dos ramos do trabalho intelectual: a escola. Com efeito,
o que é a escola em geral, tanto a superior como a
secundaria e a inferior ou primaria? É, no conjunto do
trabalho social, uma ramificação onde se «ensina», isto é,
onde se dá à força operária uma
competência determinada, um «ensino» especial, onde se

330
A Teoria do Materialismo Histórico N. Bukarin

faz de uma simples força operária uma força operária


particular. A língua popular diz: estudar «para ser médico»,
«para ser advogado», «para ser oficial», «para ser
engenheiro», «para ser técnico», etc.. Mas dá-se o mesmo
em todos os domínios do ensino, isto é, deste processo
especial no curso do qual os homens adquirem qualidades
particulares, que os tornam aptos ao cumprimento de
funções particulares mais ou menos especiais; sob este
aspecto, não existe diferença entre a escola profissional que
forma os serralheiros e o seminário donde saem sábios
padres, ou os corpos de cadetes do tempo dos czares que
preparavam oficiais. Segue-se que a instituição de escolas,
uma divisão em diversas categorias (escolas comerciais,
profissionais, militares, estabelecimentos técnicos
superiores, universidades, etc..) correspondem à
necessidade que sente uma dada sociedade de diferentes
modalidades de trabalho material ou espiritual que nela se
ensina.

Aqui estão alguns exemplos que esclarecem esta idéia:

Na idade média, por exemplo, a escola


estava toda ela nas mãos dos padres. A
sociedade feudal não podia viver sem
um formidável desenvolvimento da
religião. Aí está porque "as escolas dos
mosteiros", das catedrais, cujo número
ultrapassava o das universidades, a vida
em colégios, o ensino na faculdade de

331
A Teoria do Materialismo Histórico N. Bukarin

artes, tudo trazia um cunho monástico,


claustral, tudo era concebido e
estabelecido de acordo com um espírito
eclesiástico e teológico". (Prof. Ziegler:
Introdução à História da Pedagogia).

"À parte um pequeno número de escolas especiais de


medicina e de jurisprudência, a generalidade das
universidades, bem como as escolas primarias, serviam
principalmente para preparar cléricos". Ao lado existia uma
escola para a preparação de soldados-cavaleiros para estes,
''o ensino" consistia em formar uma “força de trabalho" não
eclesiástica, mas militar. Ensinavam-se principalmente às
crianças as sete "honorabilidades" do cavaleiro; "além das
seis artes físicas (equitare, natare, sagittare, cestibus
certare, aucupare, scassis ludere, isto é, equitação, natação,
tiro de arco, esgrima, caça, jogo de damas), contava-se
também a arte de versificare, a versificação e a música
singen und sagen". É claro que se tratava aqui de formar um
tipo de homens particular, necessário para a sociedade
feudal.

Mas eis que a cidade se desenvolve, a burguesia


comercial também, etc.. E o que acontece? A resposta (e
uma excelente resposta) nos é dada pelo mesmo professor
Ziegler:

"Porém, diz ele, novas necessidades


aparecem em matéria de ensino, noutro

332
A Teoria do Materialismo Histórico N. Bukarin

domínio. Os negociantes e artesãos


vivendo nas vilas florescentes tinham
necessidade duma instrução mais
prática que a recebida pelos sábios e
cavaleiros. As comunas urbanas se
puseram a construir elas mesmo suas
escolas, onde os habitantes da cidade
recebiam a instrução indispensável que
convinha ao seu estado." (Ziegler, loc.
cit.).

Com o desenvolvimento do capitalismo industrial e o


aumento da necessidade de operários qualificados, mesmo
no domínio do trabalho manual, aparece o que se chama
a escola profissional.

"Para manter a indústria nacional, os


governos e artesãos tiveram por fim que
dar aos alunos a instrução profissional
que eles outrora recebiam na oficina do
patrão que os empregava." (N.
Krupskaia: A instrução popular e a
democracia — 1921).

Depois, esta escola se transforma novamente por efeito


do crescimento da grande indústria e da nova procura de
"contra-mestres, fiscais, auxiliares, engenheiros, etc.."
(ibidem). Ao mesmo tempo, o desenvolvimento colossal
dos estabelecimentos secundários e superiores de

333
A Teoria do Materialismo Histórico N. Bukarin

ensino especial, onde as ciências naturais e as


matemáticas representam um grande papel: institutos
superiores de comércio, academias agronômicas, etc.

É com muita franqueza na sua impudência que o filósofo


idealista alemão F. Paulsen, já citado, nos revela o sentido
do ensino capitalista. Estas passagens de sua obra são tão
instrutivas, dão um quadro tão cru, que nós a citamos
integralmente (o que explica a franqueza de Paulsen, é que
tudo que ele escreve está num volume de tal espessura que
não há perigo de o ver cair nas mãos de um operário; ele
escreve, portanto, unicamente para os tubarões capitalistas
e é por isso que ele se permite misturar algumas verdades à
sua tagarelice):

"O estado efetivo da instrução é sempre


e por toda parte essencialmente
determinado pela forma da sociedade e
pela sua divisão... Na situação da
instrução social se reflete a da sociedade
que a provocou. A sociedade tem
sempre uma dupla divisão: divisão
segundo as formas do trabalho social, e
divisão segundo as relações de posse
(mais exatamente: da propriedade, N.
B.). A primeira divisão é uma divisão em
profissões; das diferenças de posse
nasce a divisão em classes sociais. As
duas divisões têm uma influência sobre

334
A Teoria do Materialismo Histórico N. Bukarin

as condições de ensino... as formas do


trabalho social e a situação profissional
determinam em geral oobjeto do
ensino; a situação de classe, ou o
estado de prosperidade das famílias
determina numa considerável
medida o grau de acesso da
juventude aos diversos cursos
escolares. A sociedade quer e possui
três espécies de funções, três espécies
de órgãos: motores, reguladores e
espiritualmente criadores e diretores. O
primeiro grupo é constituído por todos
aqueles cujo trabalho exige antes de
tudo força e habilidade física; é aqui que
se devem classificar os operários da
indústria e os artesãos, os operários
agrícolas e os pequenos camponeses,
enfim aqueles que, no comércio e no
transporte, são empregados na
qualidade de órgãos executivos de
última categoria. O segundo grupo
compreende aqueles cujo trabalho
profissional consiste em dirigir o
processo do trabalho social e garantir a
instrução dos operários no trabalho
físico; é aqui que se alinham os
fabricantes e técnicos, os diretores de
grandes empresas agrícolas, os

335
A Teoria do Materialismo Histórico N. Bukarin

negociantes e os banqueiros, os
funcionários superiores do comércio e
dos transportes, bem como os
funcionários inferiores do Estado e das
municipalidades, finalmente, o terceiro
grupo é o das profissões que se
denominam ordinariamente
"intelectuais" e cujo funcionamento
exige estudos independentes e o
desenvolvimento dos conhecimentos
científicos; ligam-se a este último grupo
os pesquisadores e inventores, em
seguida as pessoas que ocupam os
postos mais elevados da administração
civil e militar, na Igreja e na escola,
enfim os médicos, os técnicos colocados
nas posições de direção, etc. " (Paulsen-
Kultur der Gegenwart, pag. 64, 65).

É a essa divisão em três grupos que corresponde a


divisão das escolas em três graus. Esta pequena história que
nos narra Paulsen mostra-nos perfeitamente bem o
mecanismo da escola de uma parte, nela se forma a
quantidade desejada, o número almejado de operários para
toda a espécie de trabalho material e intelectual; do outro
lado, as funções intelectuais superiores estão
indissoluvelmente ligadas a classes determinadas, graças ao
que se mantém o monopólio da instrução e com ele o regime
capitalista. O único erro de Paulsen é de se colocar, ele e

336
A Teoria do Materialismo Histórico N. Bukarin

seus colegas) muito acima dos fabricantes e dos banqueiros,


cujas botas os intelectuais lambem, por necessidade ou sem
ela.

Assim a escola nos revela, primeiro, o sentido prático, a


raiz real de todas as ideologias. Suponhamos que um
matemático se insurja contra a nossa opinião de que a sua
ciência pura «tem um sentido absolutamente terrestre», nós
lhe perguntaremos: por que então se ensinam estas
matemáticas aos filhos de comerciantes nas escolas
comerciais, aos futuros geômetras nos estabelecimentos de
ensino agronômico, aos futuros técnicos nas escolas
técnicas, etc.? E se pretende que isto não são senão as
migalhas da ciência, perguntemos: por que os «matemáticos
puros», que efetivamente não representam nenhum papel
na vida prática, não compreendem dela coisa alguma e
atrapalham todas as coisas? Por que fazem preleções a
pessoas que estudam «para serem engenheiros» ou «para
serem geômetras»? E se, cedendo ainda um passo, nosso
contraditor nos opõe que existem sábios que não ensinam a
ninguém e não fazem conferencias, nós retrucaremos ainda:
sim, mas estes sábios não escreverão livros? Nesses livros,
quem os lê, senão os professores que ensinam os futuros
engenheiros, os quais, com a sua ciência, farão cálculos e
planos para construção de pontes, de caldeiras a vapor ou
de estações elétricas? Em segundo lugar, a escola nos revela
as necessidades relativas que sente uma sociedade dada
para as diferentes formas do trabalho qualificado, inclusive
as mais elevadas.

337
A Teoria do Materialismo Histórico N. Bukarin

Portanto, de fato, o mesmo laço econômico que liga


tojos os ramos do trabalho material liga também todas as
ciências entre si. E o mesmo se dá em todos os ramos do
trabalho intelectual. O trabalho material constitui sua base
constante e geral.

41. O ALCANCE DAS SUPERESTRUTURAS

Somos levados agora a um exame mais detalhado do


sentido das superestruturas em geral e entre elas, das
diferentes ideologias. Este sentido, parece que melhor se
pode esclarecer procedendo à critica das objeções que
ordinariamente são feitas pelos adversários da teoria do
materialismo histórico.

Chocamo-nos aqui, antes de tudo, nas objeções contra


as raízes práticas das ideologias, contra a afirmação de que
as «superestruturas» e as ideologias tenham alcance
auxiliar. Contra isto. argumenta-se com o fato de que muitas
vezes os saldos e os artistas não imaginam um só momento
que suas idéias ou suas obras de imaginação possam
representar um papel prático qualquer. Ao contrário, o sábio
procura a «verdade pura», ele a procura por ela mesma; é
um apaixonado desta bela dama a Verdade e as idéias
práticas nada têm a fazer aqui: trata-se de um casamento
de amor e não de um interesseiro. O verdadeiro artista crer
como o pássaro canta; ele ama a arte pela arte; é para ele o
alvo supremo, e nela e só nela vê o sentido da vida. Da
mesma forma que os juristas proclamaram: «Pereça o

338
A Teoria do Materialismo Histórico N. Bukarin

mundo, mas salve-se a «justiça» (vivat justitia pereat


mundus), da mesma forma o verdadeiro músico daria o
mundo inteiro por uma bela sinfonia. O verdadeiro artista
vive para a arte, o verdadeiro sábio para a ciência, o
verdadeiro jurista para o Estado (em Hegel, por exemplo, o
Estado capitalista e junker prussiano é a manifestação
suprema do espírito do mundo na história da humanidade;
como então não dar por ele a própria pele?)

Em primeiro lugar, será bem verdade que seja este o


pensamento e o sentimento dos sábios e dos artistas?
Talvez, como se diz, «encham a cabeça» do respeitável
publico, e o enganem na realidade sem escrúpulo algum?
Certamente, isto acontece também. Mas não se pode reduzir
a questão, mesmo parcialmente, ao desenvolvimento dessa
consideração. É um fato que o verdadeiro sábio, o verdadeiro
artista, o jurista-teórico erudito ama sua ciência como a si
próprio, e não cogita absolutamente de nenhum lado prático
do seu trabalho. Isto está fora de duvida e poderia ser
confirmado por milhares de exemplos de toda espécie. Mas
não é disso que principalmente se trata. Pois a psicologia
subjetiva da ideologia é uma coisa, e o papel objetivo da
ideologia outra. É uma coisa saber o que o homem pensa do
seu trabalho; é uma outra saber qual o alcance desse
trabalho para a sociedade. São essas questões, como
qualquer um pode se certificar, muito diferentes uma da
outra. Representemo-nos como as coisas se passam de fato.
Já o vimos, a ideologia, (as matemáticas, por exemplo) sai
sem duvida alguma de necessidades práticas. Mas ela se

339
A Teoria do Materialismo Histórico N. Bukarin

especializou e fragmentou-se numa série de domínios


diferentes; o especialista que trabalha num desses domínios
não vê que a ciência satisfaz a uma necessidade prática. Ele
se ocupa unicamente do «seu negócio», e mais esse negócio
lhe agrada, mais o seu trabalho é produtivo, mais progride.
Quanto a passar da aplicação de sua teoria à prática, é
negócio de outras pessoas que trabalham em outros
domínios. Antigamente, quando esta especialização não
existia, o alcance prático da ciência era claro para todos;
agora está velado. Antigamente o desenvolvimento do saber
servia, mesmo no cérebro dos homens, para fins práticos.
Agora, ele serve ainda para fins práticos, mas no cérebro de
especialistas isolados da vida prática ele aparece como
qualquer coisa de completamente independente desta
prática. A razão é fácil de se apanhar. Neste terreno também,
o estado de espírito dos homens é condicionado pelo seu
gênero de vida. Com efeito, ao homem que trabalha
unicamente num domínio biológico, é inevitável que este
domínio se apresente como o umbigo da terra, ao redor do
qual tudo gravita. Ele vive eternamente no circulo das noções
que se ligam a este ramo de atividade, pois, como bem o
indicou Engels (Ludwig Feuerbach, p. 52), toda a ideologia
não aparece ao seu autor

«senão uma operação, um trabalho


sobre idéias, consideradas como
independentes, desenvolvendo-se por
se próprias, como entidades submetidas
unicamente a suas próprias leis».

340
A Teoria do Materialismo Histórico N. Bukarin

Antigamente, antes da especialização, o homem


raciocinava assim: É preciso que eu reflita um pouco sobre
esta «geometria» para que no próximo ano a medida das
terras aráveis se faça mais facilmente. Hoje, o especialista
matemático dirá: É preciso resolver esta questão a todo
custo, é este o fim da minha vida. E. Mach exprime esta idéia
sob uma forma um pouco diferente, mas o fundo é o mesmo.
Ele escreve:

«Para o artesão, e ainda mais para o


pesquisador, o conhecimento o mai3
sumario, o mais simples, dum processo
natural determinado, que corresponde a
um esforço mínimo de gasto
intelectual, transforma-se ele
próprio num fim econômico; e ao lado
desse fim — se bem que este
conhecimento não tenha sido
originariamente, senão um meio de
atingir um fim — se desenvolvem
tendências intelectuais correspondentes
que exigem satisfação, e que
não cogitam mais, absolutamente, de
necessidades materiais». (E.
Mach.: Geschichte der Mechanik, 4.a
edição, pag. 7). (As passagens grifadas
o foram por nós, N. B.).

341
A Teoria do Materialismo Histórico N. Bukarin

Assim o sistema de superestruturas, desde a


superestrutura político-social, até a superestrutura filosófica
inclusive, está ligado à base econômica e ao sistema técnico
duma sociedade dada, como um elo indispensável dos
fenômenos sociais.

Engels escrevia a este respeito, numa carta a Franz


Mehring em data de 14 de julho de 1893:

"O trabalho ideológico é um processo


que, sem duvida, é conduzido por aquele
que se chama pensador, de uma forma
consciente (mit Bewusstsein), mas
falsamente consciente (aber mit einem
falschen Bewusstsein). As verdadeiras
forças motrizes, que o põem em
movimento, são por ele ignoradas:
senão não seria um processo ideológico.
Assim ele se forja falsas ou aparentes
forças motrizes. Como se trata de um
processo especulativo, ele deduz o
conteúdo e a forma da pura
especulação, seja da sua própria, seja
de seus predecessores. Ele trabalha
exclusivamente com um material
especulativo que recebe sem a menor
critica, como produto da especulação, e
não vai além até o processo mais
afastado, independente, da

342
A Teoria do Materialismo Histórico N. Bukarin

especulação; tudo isso lhe parece ir por


si só, pois para ele toda a atividade,
porque tem por intermediário a
especulação, aparece-lhe em última
análise como tendo por base esta
mesma especulação..." Daí "esta
miragem da história independente das
instituições políticas, dos sistemas
jurídicos, de concepções ideológicas em
todos os domínios particulares da
ciência, miragem que mais que tudo
cega muita gente". (F. Mehring:
Qeschicfate der Deutschen
Sozialdemocratie, 5.ª edição, Stuttgart,
1913, 1.º volume, pag. 386).

Outra objeção comumente apresentada contra a nossa


teoria apóia-se na seguinte interpretação: de fato, dizem,
não existe senão a economia, e tudo o mais não são senão
futilidades, qualquer coisa de uma ilusão, um nevoeiro, uma
miragem, que abusa dos olhos e não representa na realidade
coisa alguma; representa-se igualmente o materialismo
histórico como segue: existem diferentes «fatores» (forças
que agem) na história: a economia, a política, a arte, etc.;
entre estes «fatores, alguns são muito importantes, os
outros sem importância alguma; o «fator» econômico é o
único importante, os outros são como a quinta roda da
carroça, depois de se ter assim exposto o ponto de vista
marxista, começa-se a refuta-lo com veemência, provando

343
A Teoria do Materialismo Histórico N. Bukarin

em nome do bom senso que existem, mesmo fora da


economia, coisas que, elas também, têm alguma
importância. Um tal ponto de vista sobre a importância da
ideologia é totalmente incorreto, radicalmente falso. As
superestruturas não são em absoluto uma futilidade
insignificante. Já demos exemplos em apoio disto: suprimam
o Estado capitalista — a produção capitalista se tornará
impossível; suprimam a ciência contemporânea. — suprimii-
se-à ao mesmo tempo a grande produção com a sua técnica;
suprimam os meios de Comunicação espiritual, a língua e a
literatura, e a sociedade não poderá mais existir e cairá em
decomposição. É portanto uma afirmação sem fundamento
dizer que a teoria do materialismo histórico nega toda a
importância às superestruturas em geral e às ideologias em
particular. A questão para os partidários da nossa teoria (do
materialismo histórico) não está absolutamente em negar a
ideologia e as superestruturas em geral, de considerá-las
como um elemento inexistente ou sem importância; a
questão está em explicá-las. Isto é uma coisa muito
diferente, como nós já o sabemos pelo capítulo sobre
odeterminismo e o indeterminismo.

É da mesma forma errado raciocinar do ponto de vista


da importância dos «fatores» e dizer que a economia é um
fator importante e, por exemplo, a política ou a ciência um
fator «não importante». Uma tal posição da questão pode
criar uma quantidade de mal entendidos. Como se pode, com
efeito, falar da importância dos «fatores» quando, sem a
política capitalista, a economia capitalista não pode existir?

344
A Teoria do Materialismo Histórico N. Bukarin

Propor a questão da importância relativa dos «fatores»,


equivale a propor, por exemplo, questões como estas: O que
é mais importante, o cão da espingarda ou o cano? O braço
esquerdo ou a perna direita? A mola do relógio ou a
engrenagem? E assim por diante. Pode-se, em certos casos,
dizer que uma coisa é mais importante do que outra (está
fora de duvida, por exemplo, que a economia é mais
importante do que a coreografia), mas em outros casos isto
não é possível. Isto porque em todo sistema pode haver
partes igualmente indispensáveis para a existência do todo.
O cão da espingarda é tão importante quanto o cano (numa
espingarda com cão, bem entendido); algumas vezes um
parafuso ínfimo do mecanismo é tão importante como
qualquer outra parte essencial, pois sem este parafuso nosso
mecanismo não é um mecanismo. Chegamos ao mesmo
resultado se examinamos, como fizemos mais acima, o
trabalho «superestrutural» como parte do conjunto do
trabalho social. Que é mais importante para a indústria
contemporânea, a metalurgia ou a indústria mineradora? A
pergunta é absurda: «Ambas são indispensáveis». O que é
mais importante, o trabalho propriamente material ou a
gestão de uma empresa? Um é inconcebível sem o outro para
estados de evolução determinados. É portanto uma coisa
absurda expor as coisas como se agissem de «fatores»
simplesmente de importância maior ou menor. É uma
posição incorreta, confusa e sem valor da questão. «Na
história do desenvolvimento da ciência social, essa teoria
(isto é, a teoria dos fatores), representou o mesmo papel que
a teoria das diferentes forças físicas na história natural. Os

345
A Teoria do Materialismo Histórico N. Bukarin

progressos da história natural conduziram à doutrina


da unidade dessas forças, à doutrina moderna da energia.
Da mesma forma que os progressos da ciência social
deveriam conduzir à substituição da teoria dos fatores, este
fruto da análise social, por um ponto de vista sintético sobre
a vida social», (N. Beltov-Plekanov: A concepção
materialista da história, p. 313). Convém assim rejeitar a
teoria dos fatores. Mas então, no que fica o sentido da
separação entre a produção material e as superestruturas?
E como se deverá então compreender suas relações
recíprocas?

Trata-se de se estabelecer a diferença de caráter entre


as diversas funções. A administração da produção não tem o
mesmo papel que a própria, produção. Qual é o seu papel?
Ela evita atritos, atenua contradições, sistematiza e
coordena os diversos elementos de trabalho ou, para
empregar uma expressão corrente, faz sobressair uma regra
determinada de trabalho, uma «ordem» determinada. Da
mesma forma nos outros domínios. Já vimos, por exemplo,
que a moral, os costumes e as leis coordenam a atividade
dos homens, mantem-nas em certos quadros, de forma a
impedir a desagregação da sociedade. Da mesma maneira
para a ciência; esse ramo do trabalho não faz em última
análise (trata-se das ciências naturais) senão abrir o
caminho ao processo da produção, regulando-o, e regulando
a sua marcha. E a filosofia? Dela também, já vimos a
verdadeira significação. A repartição do trabalho entre as
ciências engendra entre elas diversas contradições. É a

346
A Teoria do Materialismo Histórico N. Bukarin

filosofia que as coordena, que lhes traz ordem e coesão, ou


pelo menos se esforça por trazer esta ordem.

Ela nasce das ciências da mesma forma que a


administração da produção nasce na produção tomada em si
(e nesse sentido, ela é um fenômeno não mais «primário»,
mas «secundário», não «fundamental», mas «derivado»);
mas doutro lado, ela administra até a um certo ponto as
ciências, pois lhes traz o que se chama «um ponto de vista
geral», ou um «método», etc.

Tomemos um exemplo: a linguagem. A linguagem,


Como vimos, nasce da produção, evolui sob a influência da
evolução social, isto é, ela se determina, na sua evolução
pelas leis da evolução social. Mas em que consiste o seu
papel? Ele coordena a atividade dos homens: pois a
compreensão recíproca é bem o aspecto mais simples do
acordo e da coordenação das relações, dos atos,
parcialmente dos sentimentos, etc..

Estes exemplos são suficientes para fazer sobressair o


sentido profundo da separação estabelecida entre o domínio
da produção material e o domínio do trabalho ideológico ou
de qualquer outro ligado às «superestruturas»; suas relações
consistem nisto, em que o trabalho ideológico, ao mesmo
tempo que é um elemento derivado, é ao mesmo tempo um
princípio regulador. Em relação ao conjunto da vida social, o
essencial dessa diferença é a diferença de funções.

347
A Teoria do Materialismo Histórico N. Bukarin

Isto esclarece perfeitamente a questão da «influência de


retorno» das superestruturas sobre a base econômica e
sobre as forças produtivas da sociedade. Elas mesmas (as
superestruturas) são engendradas pelas relações
econômicas e pelas forças produtivas que determinam estas
relações. Mas têm elas do seu lado uma influência sobre
estas últimas? Depois do que ficou dito mais acima, está
claro que elas não podem deixar de o ter. Elas podem ser
uma força de evolução, podem também, em condições
determinadas, ser um obstáculo à evolução. Mas de uma
forma ou de outra, elas têm sempre uma influência sobre a
base econômica e sobre o estado das forças produtivas.
Noutras palavras, entre as diversas séries
defenômenos sociais existe um processo incessante
de ação recíproca. A causa e o efeito se substituem um ao
outro.

Mas se reconhecemos esta ação recíproca, em que ficam


os fundamentos da teoria marxista? Da mesma forma é este
ponto de vista da ação recíproca o da maioria dos sábios
burguêses. Portanto, onde está a nossa tese, segundo a qual
base da análise deve ser dada pelas forças produtivas e as
relações de produção? Não demolimos nós com as nossas
próprias mãos o que edificamos nas páginas precedentes?

Estas duvidas podem, é certo, impressionar por um


momento o leitor. Mas elas não têm fundamento. Porque,
dentre todas as ações recíprocas, as influencias
entrelaçadas, etc., uma coisa se conserva invariável: em

348
A Teoria do Materialismo Histórico N. Bukarin

todo momento dado, a estrutura interna da sociedade é


determinada pelas relações desta sociedade com o meio
exterior, isto é, pelo estado das forças produtivas materiais
sociais; e estas transformações formais são determinadas
pelos movimentos das forças produtivas. A «teoria das ações
recíprocas» limita-se a reconhecer estas ações recíprocas.
Ela não vai mais longe. Vemos bem que todas estas
inumeráveis séries de fatos que se produzem no interior da
sociedade, as influencias se entrecruzando ao infinito, os
choques, as interferências de forças e de elementos da
sociedade, que tudo isto, se produz dentro de quadros
gerais, dados pelas relações entre a sociedade e a natureza.
Estão livres os nossos adversários de tentar destruir este
estado de fato, que Goethe já conhecia, em linhas gerais,
quando escrevia nas Metamorfoses dos animais:

(Alie Glieder bilden sich aus


nach ew'gen Gesetzen,
Und die seltenste Forni
bewarhrt im Geheimem das
Urbild.
Also bestimiTit die Gestalt die
Lebensweise des Tieres,
Und die Weise, zu leben; sie
wirkt auf alie Gestalien
Machtig zuruck. So zeigt sich
fest die geordgnete Bildung,
Wefche zum Wechsel sich

349
A Teoria do Materialismo Histórico N. Bukarin

neigt durch aussenrlich


wirkende Wesen).

Todos os membros se desenvolvem segundo leis


naturais, — e a forma mais estranha guarda no fundo a
imagem original. — Assim a sua feição determina o gênero
de vida do animal, — e esse gênero de vida, por seu turno,
age consideravelmente — sobre toda feição. Assim aparece
fixa ordem da criação, — que se inclina à metamorfose sob
ação do ser exterior.

Este estado de coisas é incontestável. E nessas


condições, está claro que a análise deve expressamente
partir das forças produtivas; que a interdependência ao
infinito entre as várias partes da sociedade não suprimem
em absoluto a dependência fundamental, ativa «no fim de
contas», a mais profunda de todas, aquela que estabelece
um laço de efeito para causa entre todos os fenômenos
sociais e a evolução das forças produtivas; que a
multiplicidade das causas que fazem sentir a sua ação na
sociedade não contradiz em nada a existência de uma lei
única de evolução social.

Não podemos citar aqui todas as objeções dos diferentes


sábios burgueses; o seu número é legião. De fato eles
repetem sempre a mesma coisa de uma forma mortalmente
aborrecida. Daremos por exemplo uma das últimas
tentativas "criticas". Eis como o professor V. M. Khvostov
expõe a doutrina de Marx:

350
A Teoria do Materialismo Histórico N. Bukarin

"Ela consiste em linhas gerais (!) nisto,


que entre todos os fatores (!) históricos,
o que aparece no primeiro plano é o
fator econômico (!)... todos os outros
fenômenos se encadeiam sob a
influência unilateral (!) das relações
econômicas". (Teoria do processo
histórico pag. 315).

Depois do que dissemos, é inútil insistir sobre a


fidelidade com que M. Khvostov expõe a teoria de Marx. A
verdade nos obriga a dizer que ele não constitui uma
exceção. Pelo contrário, quanto mais gasta erudição em
"refutar" Marx, mais se revela a sua ignorância em expor as
suas doutrinas.

Eis aqui, para dar uma idéia da "refutação" (do mesmo


professor):

"Creio (!) que é próprio do homem uma


grande variedade de aspirações. Em
primeiro lugar, ele pensa na
conservação do seu ser físico, e por isso,
possui certa atividade. Em segundo
lugar, ele pensa no conhecimento do
mundo que o cerca e de si próprio, e esta
tendência é inata, independente de
qualquer cálculo material. Em terceiro
lugar, o homem tem ainda necessidades

351
A Teoria do Materialismo Histórico N. Bukarin

tais como, por exemplo, a aspiração do


poder, da liberdade. Existem no homem
necessidades religiosas, estéticas,
necessidades de simpatia para com
outrem e de outrem, etc..".

Depois dessa salada de necessidades, o sr. Khvostov


conclui "que uma explicação monista (isto é, de conjunto,
partindo de uma unidade qualquer, N. B.)... é impossível",
por enquanto, este só exemplo permite mostrar todo o
absurdo da oposição "kvostoviana" da questão (posição
extraordinariamente espalhada entre os "sábios" do mundo
inteiro), e a necessidade, precisamente de uma explicação
monista. O que é com efeito senão uma irrisão ao
pensamento cientifico, atribuir à religião, ao poder, etc. a
qualidade de categorias eternas? Nem mesmo ao espírito do
autor vem a idéia de propor o problema da sua explicação. A
religião existe no mundo. Como a explica? Por uma
necessidade religiosa. O poder existe no mundo. Por que? Aí
está, porque existe a necessidade do poder. Não é isto outra
coisa senão a explicação do sono pela "virtude dormitiva".
Será que isto explica seja o que for? Por esta forma pode-
se sem esforço e sem pensar um só instante "explicar" tudo
o que se quer: o Estado se explica pela necessidade do
Estado, a arte pela necessidade da arte, o circo pela
necessidade do circo, as explicações à moda de Khvostov
pela necessidade de explicações à Khvostov, e assim por
diante, até o infinito. Mas uma tal "teoria do processo
histórico" não nos serve de nada. "O próprio do homem é a

352
A Teoria do Materialismo Histórico N. Bukarin

aspiração à liberdade": mas isto não é verdade! Tome-


se Nicolau II durante o seu reinado. Será que a sua natureza
e a da sua classe o faziam "aspirar" à liberdade em geral?
Evidentemente que não. Assim, esta nobre aspiração não é,
mau grado Khvostov, propria de todos os homens. E desde
que se constatou isto, o problema se propõe imediatamente
por si só: por que se encontra esta aspiração em alguns
homens e não em outros? É então que se é obrigado a
indagar — que horror! — as condições da existência destes
homens, etc.. Dá-se o mesmo com as outras "várias
necessidades" de Khvostov. Protestando contra uma
explicação monista ou de conjunto, os sábios burgueses
protestam de fato contra toda explicação em geral.

42. OS PRINCÍPIOS CONSTITUTIVOS DA VIDA SOCIAL

Chegamos agora a um problema geral que se apresenta


depois dos raciocínios desenvolvidos mais acima. Eis aqui em
que consiste este problema. Vimos que a psicologia, a
ideologia, a economia social se distinguem por um certo
número de traços típicos. Não será possível apanhar esses
traços? Não se poderá neste caos, neste verdadeiro oceano
de fenômenos econômicos, políticos, sócio-psicológicos,
ideológicos, extrair um núcleo do que é fundamental,
decisivo, achar o que constitui o traço característico dum
«momento dado», duma «época» dada? Não nos parecerá
aqui que o laço que liga entre si todos os fenômenos sociais
se manifestará nisto, que os diferentes fenômenos sociais
terão entre si qualquer coisa de comum? Vimos que todos

353
A Teoria do Materialismo Histórico N. Bukarin

são «em última análise determinados pelas forças produtivas


e pelas relações produção? Então, como exprimir esse laço
em algumas palavras? E como proceder à solução desta
questão?

Tomemos um dos fenômenos mais «subtis» e mais


complexos da vida espiritual, a arte. Vimos que em cada
época ela tem o seu «estilo» especial, isto é, um caráter
particular que se exprime por formas particulares. Estas
formas particulares (lembremo-nos, por exemplo, da arte
egípcia) correspondem a um conteúdo particular, este
conteúdo a uma ideologia determinada, esta ideologia a uma
psicologia determinada, esta psicologia a uma economia
determinada, esta economia, finalmente, a um grau definido
da evolução das forças produtivas.

Mas se em todos os domínios da vida social constatamos


um conjunto de formas determinadas não podemos nós falar
do «estilo» de todos os domínios da vida? Certamente que
sim. Pode-se falar do «estilo» da ciência com tanta razão
como do da arte. Pode-se falar de um estilo da vida, isto é,
de formas particularmente típicas desta vida (vide, por
exemplo, sobre o «estilo» da vida, Simmel: Filosofia do
Dinheiro, p. 480), pode-se falar num certo sentido do estilo
da economia social, e então, sob o nome de estilo desta
economia, compreender-se-á simplesmente o
que Marxchama «relações de produção», os modos de
produção, ou a «estrutura econômica da sociedade». Da
mesma forma que o estilo de uma construção qualquer se

354
A Teoria do Materialismo Histórico N. Bukarin

define pela reunião dos elementos que o compõem, da


mesma forma o «estilo» da economia social se exprime nas
particularidades das relações de produção, no «aspecto e no
modo particular» de unificação dos elementos do todo social.

(«O aspecto e o modo particular desta


unificação diferenciam as épocas
econômicas particulares da estrutura
social», Marx,Capital, t. 2, p. 12).

Mas ao lado do «modo de produção», existe também nm


«modo de representação». É o «estilo» da ideologia geral de
uma época dada, isto é, este modo particular de reunião das
idéias, dos pensamentos, dos sentimentos, das imagens, que
é característico de uma época determinada, esta «unidade
de formas do pensamento cientifico da concepção do mundo
e da concepção da vida», como se exprime o professor Marbe
(Karl Marbe: A unidade de formas do mundo. Pesquisas de
filosofia e de ciência positiva).

Assim, somos levados a confrontar o «modo de


produção» de um lado, e o «modo de representação» do
outro. Em outras palavras: somos levados a confrontar o
«estilo» econômico de uma sociedade dada e seu «estilo»
ideológico. Um tal confronto é admissível? De tudo quanto
vimos no nosso exame das superestruturas em geral e das
ideologias em particular, decorre de uma forma
absolutamente indiscutível que temos plenamente o direito
de proceder a esta confrontação.

355
A Teoria do Materialismo Histórico N. Bukarin

Esclareçamos com um exemplo. Tomemos a sociedade


feudal. Seu estilo econômico pode ser expresso pelo princípio
de uma solida hierarquia,ou, o que vem a dar no mesmo,
pela idéia da ordem (classificação). Eis
como Marx caracteriza o feudalismo:

«Em lugar do homem independente,


encontramos aqui cada indivíduo em
estado de dependência, tanto os servos
como os proprietários territoriais, tanto
os vassalos como os senhores, tanto os
leigos como os clérigos. A dependência
pessoal caracteriza de uma forma tão
decisiva as relações sociais da produção
material quanto às (outras) esferas da
vida estabelecidas sobre esta
produção». (Capital, t. 1, pag. 43).

Esses caracteres da economia e das outras «esferas da


vida» constituem precisamente o «estilo» de uma época.
Dependência hierárquica na economia; dependência
hierárquica nas outras «esferas da vida»; «estilo»
hierárquico de toda atividade intelectual. Não vimos nós com
efeito que todo estado de espírito do homens estava nesta
época impregnado de religião? E a religião é bem um sistema
de idéias onde tudo se explica pelomodo da hierarquia,
pela ordem (classificação). A ciência está penetrada da idéia
de ordem, a arte também, e esta ordem encontra sua
expressão até no estilo da arte. A ordem, eis o «estilo»

356
A Teoria do Materialismo Histórico N. Bukarin

de toda a vida dessa época. Até na unidade deste estilo vê-


se a dependência do «modo de representação» com relação
ao «modo de produção», do «sistema de idéia», do «sistema
das coisas», isto é, pelas forças produtivas materiais da
sociedade. Pois bem, isto que constitui o eixo dum «estilo»,
como num momento dado a hierarquia ou a ordem
(classificação), é a isto que se pode chamar um princípio
constitutivo da vida social. Vemos que ele tem por base
as relações de produção.

Esta unidade do estilo da vida salta de tal forma aos


olhos, que uma série de sábios mesmo burgueses
subscrevem integralmente esta idéia. É assim, por exemplo,
que Carl Lamprecht edifica uma doutrina "dominante", isto
é, do tipo dominante de psicologia, o qual muda com as
condições de cada época; a antiga dominante desaparece e
uma nova aparece, um novo "estilo de vida" se constitui (A
ciência moderna e a história).

Se ligarmos o problema proposto por Hammacher à


questão dos princípios constitutivos, torna-se bastante fácil
resolve-lo. Este sábio levanta contra a teoria do materialismo
histórico a objeção que se segue:

"Fica sempre o problema de saber por


que só as relações econômicas
encontram acesso na alma da história"
(O sistema filosófico econômico do
marxismo).

357
A Teoria do Materialismo Histórico N. Bukarin

Esse enigma é de fácil solução. O que tem uma influência


sobre as pessoas, não são só os acontecimentos econômicos,
mas tudo o que se encontra na esfera da sua experiência.
Ora, os princípios constitutivos gerais são determinados
pelas relações de produção, que por conseguinte se
"refletem" nos domínios ideológicos. É na religião que
podemos melhor constatá-lo. Evidentemente, a luz do sol, o
trovão, a morte, o sono e todos os outros fenômenos, tudo
isto "tinha acesso à alma da história". Mas a idéia de
divindade, de "forças superiores", da "classificação" não
aparece na representação do mundo senão com o advento
da classificação na vida social. É neste quadro que se
encerram todos os fenômenos "correspondentes", entre os
quais o sono e a morte. Por que, nos despotismos
sangrentos, o deus principal era geralmente o deus da
guerra? Porque, sendo o deus da guerra, ele se tornava por
isto mesmo o deus do trovão e do raio, como forças as mais
temíveis, as mais "guerreiras" da natureza; a tempestade e
os fenômenos semelhantes produziam uma impressão sobre
a "alma da história", mas a forma era dada pelo quadro das
relações sociais. Pode-se perguntar por que as relações
sociais condicionam uma forma determinada? Donde provém
esta conexão interna? É muito simples. Isto provém de que
o meio social tem nas relações de produção o
seu fundamento vital. "... A unidade de forma dos
fenômenos psíquicos pode ser relacionada com a unidade de
forma das condições destes fenômenos". Uma série de fatos
deste domínio "aparecem como produtos da civilização.
Huber mostrou que, nas experiências feitas a respeito de

358
A Teoria do Materialismo Histórico N. Bukarin

Associações de idéias, a qualidade das palavras-reações


depende da profissão e dos hábitos de vida das pessoas
submetidas à experiência" (K. Marbe, op. cit., p. 52), isto é,
que as respostas dadas a perguntas idênticas (por exemplo,
dizer uma palavra, não importa qual) dependiam do gênero
de vida das pessoas interrogadas. Será de espantar depois
disto que a psicologia e a ideologia social dependam do modo
de produção da vida material, e com ele, das forças
produtivas?

43. TIPOS DE ESTRUTURAS ECONÔMICAS E TIPOS


DIVERSOS DE SOCIEDADES

Examinando a questão da sociedade,


encontramos tipos históricos definidos de sociedades. E isto
que significa? Que não existe uma sociedade «em geral»-que
na realidade uma sociedade existe sempre sob um invólucro
histórico determinado qualquer; que ela traz o uniforme do
seu tempo. É perfeitamente compreensível. Sabemos que
uma sociedade (não importa qual) é um conjunto de pessoas
que exercem umas sobre as outras uma ação recíproca
constante; estas inúmeras influencias recíprocas têm por
base as relações que o trabalho cria entre essas pessoas, o
sistema de relações de produção, se se tomam essas
relações e estas influencias mutuas num instante dado. Mas
esse sistema de relações de produção é constituído por um
conjunto de pessoas dispostas de uma maneira definida, de
pessoas que se unem não simplesmente pelo laço do
trabalho, mas por um tipo determinado de laço de trabalho.

359
A Teoria do Materialismo Histórico N. Bukarin

Está claro, pois, que a sociedade não existe senão sobre uma
base de trabalho definida; e como a esta base definida, a
este «modo de produção» definido corresponde também um
«modo de representação» definido, é igualmente
compreensível que é aquilo mesmo que dá também o tipo
de toda sociedade, duma sociedade no seu conjunto, e não
só na sua parte de produção material e econômica. A técnica
duma sociedade está ligada ao seu modo de produção, o
modo de produção como modo de representação, e esta
união do sistema material, do sistema humano e do sistema
espiritual faz duma sociedade um tipo social bem
determinado. Da mesma forma que no reino animal
distinguimos várias espécies animais, vários gêneros, várias
famílias, etc., da mesma forma, na sociologia, distinguimos
diversos gêneros de sociedades. Disto já falamos várias
vezes. Mas é preciso aqui frisar a idéia fundamental deste
parágrafo, a saber que esta diferença entre «gêneros»
sociais, os tipos de sociedade, pode ser apanhada sem
esforço não somente na esfera econômica, como também,
em qualquer série de fenômenos sociais. Um tipo de
sociedade pode caracterizar-se pela sua ideologia ou pela
sua economia. Da arte feudal se pode chegar às relações de
produção feudais ou à religião feudal ou ao caráter da
psicologia feudal em geral, etc., e assim em todos os casos.
É por isso, por exemplo, que pela decifração de qualquer
monumento literário descoberto pelos arqueólogos, podemos
representar os diferentes aspectos das relações dos povos
desaparecidos e imaginar o seu gênero de vida. Lendo o
código de Hamurabi, ressuscitamos a vida econômica da

360
A Teoria do Materialismo Histórico N. Bukarin

Babilônia; pela Ilíada e pelaOdisséia podemos julgar da


história da Grécia homérica, e assim por diante.

Assim, as formas históricas da sociedade, o caráter


de determinação destas formas, dizem respeito não somente
à base econômica, mas também a todo conjunto dos
fenômenos sociais, pois a estrutura econômica determina a
estrutura política e a estrutura ideológica. Dado um termo, o
outro também o será. Não se segue evidentemente que um
tipo de sociedade seja separado do outro, por fronteiras tão
marcadas que não deixem lugar a nenhum elemento comum
a estas sociedades diferentes.

«As estreitas linhas divisórias da


abstração separam tão pouco as épocas
da história da sociedade humana,
quanto as épocas da história da
terra.» (Capital, t. 1).

Pelo contrário, a vida real nos mostra em cada tipo


social, em cada nova estrutura social, os restos de antigas
formações econômicas às vezes muito consideráveis e que
representam um grande papel. Se tomarmos, por exemplo,
a sociedade capitalista contemporânea, encontraremos uma
grande quantidade de vestígios de antigas instituições
econômicas. Toda a importante camada camponesa com sua
economia particular é essencialmente o resto da época
feudal, da mesma forma o artesanato, etc.. O capitalismo
«puro» supõe uma burguesia e um proletariado, e não supõe

361
A Teoria do Materialismo Histórico N. Bukarin

nem camponeses nem artesãos, nem nada de parecido.


Portanto, se na estrutura econômica uma tal «pureza» não
pode existir, está claro que no domínio ideológico também
haverá inevitavelmente uma certa «mistura de idéias».
Noutras palavras, podem-se encontrar na sociedade
capitalista tantos traços de ideologia feudal quantos se
quiser; na aristocracia fundiária, no campesinato, nas
«classes rurais» que se apóiam sobreantigas relações
agrárias, onde se conservou um certo número de traços
antigos.

«... Supõe-se em teoria (trata-se aqui


da teoria da economia capitalista, N. B.)
que as leis do modo de produção
capitalista se desenvolvem na sua
pureza. Mas, na realidade, nunca se tem
mais que uma aproximação, e essa
aproximação é tanto maior quanto o
modo capitalista de produção está mais
desenvolvido e que o emaranhado com
os vestígios de estados econômicos
anteriores desaparecem em
parte». (Capital, t. 3, p. 154).

Ao mesmo tempo que se produz o entrelaçamento


de formas econômicas, haverá também, fatalmente, o
entrelaçamento de formas ideológicas. Eis por que não existe
nunca nem um «modo de produção» absolutamente único,
nem, com mais razão, um «modo de representação»

362
A Teoria do Materialismo Histórico N. Bukarin

absolutamente único (dissemos «com muito mais razão»,


porque o «modo de representação» é diferente nas diversas
classes, mesmo quando elas pertençam a uma só e mesma
cultura econômica tomada na sua pureza virginal). Todavia,
não se segue absolutamente que não possamos ou devamos
distinguir diversos tipos de relações de produção e de formas
ideológicas. Pois em qualquer sociedade existente há sempre
um tipo dominante determinado de relações de produção, e
por conseguinte, um «modo de representação» também
determinado e dominante. É com razão que W. Sombart diz:

«Eu distingo uma época na vida


econômica pelo espírito da vida
econômica, com a condição que um
espírito determinado seja realmente
dominante num momento dado». (O
burguês, p- 6).

Exatamente da mesma forma falava Marx, a respeito do


capitalismo, duma «forma social na qual domina o modo
capitalista de produção» (Teoria sobre a mais valia, t. 1, p.
424). Da mesma forma em zoologia distinguimos o macaco
do homem, apesar dos seus traços de semelhança;
distinguimos pelo exame das formas sociais uma forma da
outra, apesar dos seus traços comuns, embora nas formas
«superiores» encontremos comumente restos perfeitamente
inúteis, incompreensíveis à primeira vista, de aspectos
antigos.

363
A Teoria do Materialismo Histórico N. Bukarin

No terceiro capítulo deste livro já indicamos que, no


exame da sociedade, é indispensável discernir a forma social
que tem a sua raiz nasparticularidades da estrutura
econômica. Este ponto de vista já provocou mais de uma vez
os protestos da ciência burguesa oficial, a quem desagrada
toda a idéia de reedificação radical das relações sociais. Os
próprios sábios burgueses reconhecem agora que é bem aqui
que está o nó da questão. Assim o dr. Bernard Odenbreit
escreve:

"Marx, como é natural para um


"revolucionário", considerava de um
modo particularmente agudo o caráter
histórico transitório das constituições
sociais. A esta idéia geral no domínio das
ciências sociais junta-se um
conhecimento conscientemente critico
do domínio mais estreito da economia
política..." (Pleige, Contribuição à
ciência política, 1.o caderno; D.
Odenbreit: A teoria comparativa da
indústria em Karl Marx).

Aí estamos! Considerar "de uma forma aguda o que se


transforma, isto não se pode encontrar senão em
revolucionários". Está aqui, como já sabemos, uma das
principais causas da proeminência das ciências sociais do
proletariado revolucionário sobre as ciências sociais da
burguesia contra-revolucionária.

364
A Teoria do Materialismo Histórico N. Bukarin

Se tomarmos a mais antiga das formas de sociedade


conhecidas, que se chama o Comunismo primitivo, veremos
que a seu tipo de relações de produção, onde a
«individualidade» trabalhadora não se separou ainda da
«horda», correspondem também suas formas particulares de
consciência: nada de religião, nenhuma idéia de classificação
social, nem mesmo a idéia de personalidade, de separação,
de particular, de individual. Mas consideremos a sociedade
feudal, «cujos traços essenciais são de um lado a
fragmentação do país numa quantidade de feudos
independentes, de principados, e de senhorios privilegiados,
e de outro lado, a união desses feudos por laços contratuais
de vassalagem». (N. P. Silvanski: Ofeudalismo na antiga
Rússia, p. 45). Aqui, o estilo da economia tem um caráter
hierárquico, o estilo da «política» tem o mesmo caráter e
assim também o «estilo» da ideologia. Como já vimos, em
tudo domina a idéia de ordem (classificação). Na base se
encontra a grande propriedade fundiária («nenhuma terra
sem senhor», tal é o adágio que caracteriza esse edifício
econômico), imóvel e fixa. Os laços econômicos são os laços
entre proprietários e servos; eles são fixos, imóveis,
imutáveis do ponto de vista dos membros da sociedade
feudal; tudo está «amarrado», «preso» ao seu lugar no
sistema hierárquico. E da mesma forma na superestrutura
política, que refletia essas relações de produção.

«A tendência hierarquizante da vida


feudal foi erigida em teoria e em sistema
pelos juristas do XIII.º século (trata-se

365
A Teoria do Materialismo Histórico N. Bukarin

aqui do feudalismo europeu, N. B.)... Os


pregadores viam facilmente uma divisão
horizontal da sociedade considerada
como um todo, mesmo se ela se divide
em senhores e servos. Eles lembravam
aos servos as palavras do apostolo, que
ordenava aos escravos obedecerem ao
senhor. «Deus pôs sobre a terra os reis,
os duques e outras pessoas, a quem
ordenou que mandassem nos outros.
Foram colocados por Deus para que os
pequenos dependessem dos fortes». (L.
N. Karsavine: A cultura na idade média).

Toda concepção do mundo é religiosa, isto é, penetrada


do princípio de ordem (classificação), e como se diz ainda,
«autoritário»; daí sua imobilidade, seu tradicionalismo; a
ciência é, antes de tudo, uma interpretação da tradição e das
Sagradas Escritores; a arte é «divina» e exalta na sua forma
e no seu conteúdo as forças «superiores», celestes e
terrestres; a moral dominante é uma moral de fidelidade, de
orgulho nobiliário, de culto da gloriosa recordação dos
antepassados, de respeito ao «bom sangue» e à «nobre
extração»; aquod liced Jove, non liced bovi», o que é
permitido a Júpiter não o é a um boi. Numa palavra, temos
sob as vistas um «modo» social particular, uma forma
particular de sociedade, de suas bases econômicas até às
formas mais «elevadas» da consciência social.

366
A Teoria do Materialismo Histórico N. Bukarin

Consideremos agora a sociedade capitalista. Sua base


econômica é constituída por um gênero de relações
completamente diferentes.

«A oposição entre o poder da


propriedade fundiária que se apóia sobre
relações pessoais entre servos e
senhores, e o poder impessoal do
dinheiro está claramente expressa em
dois ditados franceses: «Nenhuma terra
sem senhor». «O dinheiro não tem
senhor». (Marx, Capital, I).

Esta tese de Marx nos revela uma das dependências


econômicas fundamentais da sociedade capitalista, a saber,
o laço que une as empresas por meio do mercado, e que faz
surgir o poder impessoal deste mercado, e o poder
impessoal, «abstrato» do dinheiro. A coisa tem ainda,
contudo, outro aspecto. O poder social impessoal do dinheiro
transformado em capital encontra, apesar de tudo, um
senhor, na medida em que a simples produção de
mercadorias se transforma em produção capitalista.

«Da mesma forma que no ouro são


apagadas todas as diferenças
qualitativas das mercadorias, o ouro por
sua vez tal como umleveller(1) radical,
apaga todas as diferenças. Mas o
dinheiro é ele mesmo uma mercadoria,

367
A Teoria do Materialismo Histórico N. Bukarin

uma coisa palpável que se pode tornar a


propriedade de cada um. Esta força
social se torna desta forma uma força
particular dum homem tomado em
particular». (Capital, t. I).

Daí decorre o segundo traço da economia da sociedade


capitalista, seu caráter de hierarquia. Este traço também é
brilhantemente evidenciado por Marx. Ele escreve no
capítulo sobre o trabalho coletivo (Capital, t. I):

«A direção capitalista é quanto à forma,


despótica. À medida que o trabalho
coletivo se desenvolve sobre uma
grande escala, este despotismo toma
formas particulares e adequadas... O
capitalismo se libera de todo trabalho
manual, desde que seu capital atinge
uma certa grandeza mínima, a partir da
qual se torna possível a produção
capitalista no sentido próprio da
palavra; da mesma forma, a fiscalização
direta e constante de operários isolados,
ou de grupos de operários, passa desde
então a uma categoria particular de
operários assalariados. Tanto quanto um
exército precisa de uma hierarquia de
superiores militares, uma massa de
operários reunidos num trabalho

368
A Teoria do Materialismo Histórico N. Bukarin

comum, sob o comando de um só e


mesmo capital, precisa de oficiais
superiores, industriais (administradores,
gerentes), e de sub-oficias (inspetores,
contra-mestres, etc.), que, durante o
processo do trabalho, dirigem em nome
do capital. O trabalho de fiscalização se
fixa neles como sua função exclusiva».

Assim, o modo de produção capitalista tem um duplo


caráter: de um lado, é o conjunto de «empresas» separadas,
particulares, ligadas entre se pelo laço anárquico do mercado
e da troca, e onde o poder elementar do mercado domina
toda empresa particular; doutro lado, é um sistema
hierárquico de «comando do capital». Nada de extraordinário
que sobre a base de um tal modo de produção se eleve um
modo de representaçãocorrespondente. Seu «estilo» deve
refletir este duplo caráter. Com efeito, o «modo de
representação» do mundo capitalista se caracteriza, de um
lado por aquilo que Marx chamou o fetichismo da
mercadoria, doutro por este mesmo princípio de «ordem»
(classificação) que observamos também na sociedade feudal.
A reunião destes dois «princípios constitutivos» nos dá o
estilo fundamental do «modo de representação» que rege o
mundo capitalista.

Que é o fetichismo da mercadoria?

369
A Teoria do Materialismo Histórico N. Bukarin

Na sociedade capitalista mercantil, a empresa trabalha


«independentemente» para o mercado desconhecido. No
fundo, cada trabalho é aqui uma parcela do trabalho social e
todas as partículas dependem umas das outras. Mas isto se
passa de tal maneira, que o laço social entre os homens,que
trabalham de fato uns para os outros escape aos olhos
humanos. Se tivéssemos diante de nós uma sociedade
socialista, onde tudo caminha de acordo com um plano, seria
claro para todos que os homens trabalham uns para os
outros, que cada aspecto separado do trabalho não é senão
uma partícula do conjunto do trabalho social. As relações
entre os homens seriam claras, nada os mascararia; mas não
é assim no mundo capitalista. Aqui, este laço de
trabalho entre os homens é invisível, esconde-se aos
homens. Por que se esconde? Pelo mercado. No mercado, as
mercadorias passam, compram-se e se vendem. Mas não são
os homens que racionalmente dominam o mercado, é o
mercado que com seu preço domina os homens. Os homens
vêem o movimento das coisas, e no entanto não
compreendem que trabalham uns para os outros, que estão
todos ligados pelo laço geral do trabalho. Este laço de
trabalho que os une lhes aparece sob o aspecto particular do
extraordinário poder das coisas, das mercadorias, sob o
aspecto do «valor» dessas mercadorias. As relações entre os
homens parecem-lhes relações entre as coisas. Eis aí o
fetichismo da mercadoria, esta atribuição às coisas de
propriedades extraordinárias, enquanto o seu movimento
dissimula na realidade o trabalho mutuo dos homens. É este
fetichismo, pelo qual «as relações sociais definidas entre os

370
A Teoria do Materialismo Histórico N. Bukarin

homens... tomam aos seus olhos a forma fantástica de


relações entre as coisas (Marx), que constitue a
particularidade distintiva do «modo de representação»
capitalista. Já vimos como os sábios, artistas, filósofos, etc.,
da classe burguesa se revoltam quando ouvem falar nas
raízes sociais da ciência, da arte e da filosofia. Eles são
fetichistas até à medula dos ossos; pois não vêem o laço
social, não podem compreender que seu trabalho divino e
inspirado é, ele também, uma parte do conjunto do trabalho
social.

O fetichismo do mundo capitalista aparece com relevo


singular no domínio do que se chama as normas morais ou a
"ética", de que os sábios professores tanto gostam de falar.
Já explicamos que as normas éticas são regras de conduta
indispensáveis à vida da sociedade, da classe ou do grupo
profissional etc.. Elas têm a significação de regras auxiliares
sociais indispensáveis. Contudo, na sociedade fetichista, esta
significação humana e social que elas possuem não é
consciente. Pelo contrário estas normas, isto é, estas regras
técnicas de conduta, aparecem como um "dever" suspenso
sobre os homens, como uma força exterior, quase divina, de
coação: este inevitável fetichismo ético foi muito bem
expresso pelo genial filósofo burguês Emanuel Kant, na sua
teoria do "imperativo categórico".

É de uma forma completamente diferente que o


proletariado deve encarar este assunto. Ele não se pode
fazer arauto do fetichismo capitalista. Para ele, as normas da

371
A Teoria do Materialismo Histórico N. Bukarin

sua conduta são regras dum mesmo valor técnico do que


aquelas a que obedece o carpinteiro para fazer uma cadeira.
Quando o carpinteiro quer fazer uma cadeira, ele serra,
prega, cola, etc.. Isto decorre do processo mesmo do seu
trabalho. Ele não irá se ocupar das regras de preparação da
madeira ou do quer que seja estranho, que pertença a um
outro domínio que não o seu. Da mesma forma o proletariado
na sua luta social. Se ele quer conquistar o comunismo,
deverá fazer isto e aquilo, exatamente como o carpinteiro
que quer fazer uma cadeira. E tudo que se conforma com
este fim deve ser feito. A "ética" se transforma pouco a pouco
para o proletariado em simples regras técnicas de conduta,
facilmente compreensíveis e necessárias para chegar ao
comunismo e que, assim, deixam de ser uma ética. Na
verdade é da essência mesmo da ética ser um conjunto de
regras dissimuladas sob um invólucro fetichista. O fetichismo
é a essência da ética. Lá onde desaparece este fetichismo,
também desaparece a ética. Não virá ao espírito de pessoa
alguma chamar os estatutos de uma cooperativa ou de um
partido de "ética" ou de "moral". Isto porque nesses casos
cada um conhece o sentido humano deste estatuto. A ética
supõe um nevoeiro fetichista onde mais de um perde o seu
caminho. Assim o proletariado precisa de normas de
conduta, e normas muito precisas, mas não de uma ética,
molho fetichista para uma iguaria util. Está claro que o
proletariado não se libertará por si, de um só golpe, do
fetichismo da sociedade mercantil em que vive. Mas isto já é
questão diferente.

372
A Teoria do Materialismo Histórico N. Bukarin

O fetichismo da ideologia capitalista mercantil se


combina com o princípio da «ordem» (classificação), e esses
dois princípios fundamentais constituem o eixo do modo de
representação capitalista, o quadro em que se insere o seu
cometido ideológico. Assim, a sociedade capitalista é, ela
também, uma espécie de sociedade, com traços
particulares, característicos, em todos os «andares» da vida
social, até as mais altas construções ideológicas
compreendidas. Assim, um tipo de cultura econômica supõe
tombem um tipo de estrutura social e política e um tipo de
estrutura ideológica. A sociedade tem um «estilo»
fundamental em todas as manifestações dominantes da sua
vida.

44. CARÁTER CONTRADITÓRIO DA EVOLUÇÃO:


EQUILÍBRIO "EXTERIOR" E EQUILÍBRIO "INTERNO" DA
SOCIEDADE

Examinamos nos parágrafos precedentes o fenômeno do


equilíbrio social. Mas não devemos perder de vista um só
instante a circunstancia de que se trata de um equilíbrio
instável, isto é, de um estado de coisas tal que o equilíbrio
se rompe constantemente para se restabelecer noutra base,
rompe-se novamente e assim por diante. Noutros termos,
temos diante de nós um processo contraditório; temos não
um estado de repouso nem de adaptação absoluta, mas uma
luta de contradições, um processo dialético de movimento.
Por conseguinte, quando examinamos a estrutura da
sociedade, isto é, as relações entre as suas partes, não

373
A Teoria do Materialismo Histórico N. Bukarin

devemos absolutamente nos representar qualquer harmonia


perfeita entre essas partes. Pois toda estrutura tem as suas
contradições; em toda forma social, fundada sobre classes,
essas contradições são singularmente acentuadas. Contudo,
mesmo aqueles sociólogos burgueses que vêem o laço que
une os diversos fenômenos sociais, não compreendem
absolutamente o caráter de contradição interna das formas
sociais.

Toda a escola do «fundador» da sociologia


burguesa, Augusto Comte, é particularmente curiosa sob
este ponto de vista. Na sua doutrina existe um laço entre
todos os fenômenos sociais (é o que ele chama
o consenso), e é este laço que constitui a «ordem». Mas as
contradições desta «ordem», e em particular aquelas que
conduzem esta ordem à destruição inevitável, não são
analisadas por ele. Pelo contrário, para os partidários do
materialismo dialético, este lado da questão é um dos mais,
senão o mais importante de fato, como já vimos, as
contradições dum sistema dado são precisamente aquilo que
o põe em movimento, o que conduz a uma transformação de
formas no processo do desenvolvimento ou da decadência
social.

Examinando a estrutura social, vimos que essas


transformações são ligadas às mudanças das relações entre
a sociedade e a natureza. Chamávamos este último equilíbrio
de exterior, enquanto dávamos ao equilíbrio entre as
diversas ordens de fenômenos sociais o nome de

374
A Teoria do Materialismo Histórico N. Bukarin

equilíbriointerno da sociedade. Se agora considerarmos toda


sociedade do ponto de vista do caráter de contradição da
evolução, uma série de problemas surgirá diante de nós:
antes de tudo veremos que cada ordem de fenômenos
sociais traz em se as suas contradições (por exemplo, na
economia, as contradições entre as diversas funções do
trabalho; na estrutura social e política, contradições entre as
classes; na ideologia, contradições entre os sistemas
ideológicos das classes, etc., sem falar numa série de outras
contradições); distinguiremos depois sem esforço as
contradições entre a economia e a política (quando por
exemplo, as normas jurídicas «atrasam» sobre a evolução
econômica, e que, por exemplo, uma «reforma» qualquer se
torna urgente; entre a «economia» e a «ideologia», entre a
«psicologia» e a «ideologia» (quando por exemplo se faz
sentir a necessidade de qualquer coisa de novo, e que esta
coisa ainda não se constituiu, ainda não se fundiu numa
forma ideológica); entre a ciência e a filosofia, etc.. Estas são
contradições entre as diferentes ordens de fenômenos
sociais. Tanto as segundas como as primeiras dizem respeito
ao equilíbrio interno. Mas existe também contradição entre a
sociedade e a natureza, ruptura de equilíbrio entre a
sociedade e o meio ambiente, que encontra sua expressão
no movimento das forças produtivas. É este o domínio
do equilíbrio exterior. Sabemos já que existe ainda um caso
extremamente importante de contradição. É a contradição
entre o movimento das forças produtivas e da estrutura
social e econômica (e toda outra espécie de estrutura) da
sociedade. Entram aqui em conflito as relações que existem

375
A Teoria do Materialismo Histórico N. Bukarin

entre a sociedade e a natureza, e as relações que se


constituíram no interior da sociedade. Não é difícil ver que
esse conflito, esta contradição, deve inelutavelmente
representar um papel de grande importância na vida da
sociedade, pois ele abala os «fundamentos do edifício
existente» e os «alicerces» sobre que repousa uma ordem
dada de coisas.

Não fizemos aqui mais do que indicar as principais


questões que as contradições sociais apresentam. O estudo
destas questões será o objeto do capítulo seguinte, em que
examinaremos a sociedade em movimento; até agora
estudamos principalmente a estrutura da sociedade, a
estrutura de uma fórmula social dada. Falta-nos agora falar
das passagens duma estrutura a outra. E é importante notar
aqui mais uma vez, que a lei do equilíbrio social é a lei de
um equilíbrio instável que não somente não exclui, mas pelo
contrário supõe os antagonismos, as contradições, os
defeitos de adaptação, os conflitos, a luta, e — o que é
particularmente importante — a inclutabilidade, em
condições determinadas, de catástrofes e de revoluções.
Nossa teoria marxista é uma teoria revolucionária.

376
A Teoria do Materialismo Histórico N. Bukarin

CAPÍTULO VII

RUPTURA E RESTABELECIMENTO DO
EQUILÍBRIO SOCIAL
45 — O PROCESSO DAS TRANSFORMAÇÕES SOCIAIS E
AS FORÇAS PRODUTIVAS

O processo das transformações sociais está, como


sabemos, em ligação com a transformação do estado das
forças produtivas. Este movimento das forças produtivas,
assim como o movimento e reagrupamento de todos os
elementos da sociedade que estão ligados a ele, não é outra
coisa que o processo de perpetua ruptura do equilíbrio social
e do seu contínuo restabelecimento. Com efeito,
suponhamos um movimento progressivo das forças
produtivas. E disso, que resulta? Primeiro e antes de tudo,
que entre a técnica social e a economia social nasce uma
contradição: o sistema sai do seu equilíbrio. As forças
produtivas ganham um certo avanço. Donde: deve dar-se
um certo reagrupamento dos homens. Por que? Porque não
havendo equilíbrio, o sistema não pode subsistir por muito
tempo. Esta contradição se resolve. Como? Precisamente por
este reagrupamento dos homens; a economia se «adapta»
ao estado das forças produtivas, à técnica social. Mas o
reagrupamento dos homens no processo econômico supõe
necessariamente o seu reagrupamento na estrutura social e
política da sociedade (uma outra combinação de partidos, do

377
A Teoria do Materialismo Histórico N. Bukarin

seu poder, etc..); depois a mesma circunstância provoca


necessariamente a transformação das leis (jurídicas, morais
e outras). Isto porque não é senão por esta forma que se
resolve a contradição, ou, o que vem a dar no mesmo, que
se restabelece o equilíbrio entre os sistemas dos homens e o
das normas. Ora, dá-se o mesmo com toda a psicologia da
sociedade e toda sua ideologia. É o que muito bem
expôs Plekanov:

«É pelo aparecimento, pela


transformação e destruição das
associações de idéias sob a influência do
aparecimento, transformação e
destruição de certas combinações de
forças sociais que se explica numa
medida considerável a história das
ideologias» (N. Beltov, Da compreensão
materialista da história, «Crítica de
nossos críticos», p. 333).

A nova «combinação» dos homens entra em conflito com


a velha combinação das idéias (com as velhas associações
de idéias). Aqui rompeu-se o equilíbrio interior. Ele se
restabelece numa nova base, quando aparece uma nova
combinação de idéias, isto é, a psicologia social e a ideologia
social se põem de acordo para que o equilíbrio seja
novamente rompido, e assim por diante.

378
A Teoria do Materialismo Histórico N. Bukarin

Apresenta-se aqui uma questão muito importante, tanto


do ponto de vista teórico como do prático.

Podemos, com efeito, imaginar-nos o restabelecimento


do equilíbrio social sob duas formas: sob a forma de uma
adaptação lenta (evolutiva) dos elementos do conjunto
social, ou sob a de bruscas transformações. A história nos
ensina que tem havido e ainda há revoluções. São fatos
históricos. Quando é que eles se produzem? Quando é que
se já uma curta adaptação recíproca dos vários elementos da
sociedade, e quando uma explosão? Onde está o fundo deste
conflito, desta colisão que se exprime pela revolução?

Em ligação com este problema surge toda uma série de


problemas de dinâmica social. Com efeito, sabemos que toda
sociedade, qualquer que ela seja, está continuamente num
processo incessante de transformações, de reagrupamentos
interiores, de remodelações de forma e conteúdo. Sabemos
que este processo está ligado à evolução das forças
produtivas. Contudo, constatamos de um lado
transformações nos limites duma só e mesma estrutura
social, e do outro, a passagem duma «espécie» de sociedade
a outra, substituição dum «modo de produção» por outro.
Quando é que se dá um ou outro destes fenômenos? É
preciso também responder a esta pergunta.

Encontra-se em Marx, na Crítica da


Economia Política, uma descrição geral do processo do
movimento social. Eis como ele descreve tal processo:

379
A Teoria do Materialismo Histórico N. Bukarin

«Em certo estágio de sua evolução, as


forças produtivas materiais da sociedade
entram em contradição com as relações
de produção em vigor, ou, o que é a
expressão jurídica do mesmo fato, com
as relações de propriedade no interior
das quais elas até então se tinham
movido. De formas de evolução das
forças produtivas, estas relações se
transformam em obstáculos a esta
evolução. Abre-se então uma época de
revolução social. Com a derrubada dos
fundamentos econômicos, produz-se, de
uma maneira mais ou menos lenta ou
rápida, uma transformação de toda a
monstruosa superestrutura. No exame
de tais transformações é preciso
distinguir constantemente entre a
transformação material nas condições
econômicas da produção, o que se pode
constatar com a exatidão duma análise
de história natural, e entre as formas
jurídicas, políticas, religiosas ou
filosóficas, numa palavra, ideologias em
geral, sob as quais os homens tomam
consciência deste conflito e o utilizam na
luta. É tão difícil julgar o indivíduo pelo
que ele pensa de se próprio, como julgar
tais momentos de transformação pela

380
A Teoria do Materialismo Histórico N. Bukarin

sua consciência; é indispensável, pelo


contrário, explicar esta consciência à luz
do conflito que se observa entre as
forças produtivas sociais e as relações
de produção».

Assim, segundo Marx, a transformação, a revolução se


produz quando o equilíbrio entre as forças produtivas da
sociedade e os traços fundamentais da sua
estrutura econômica se rompe. Aí está o fundo do conflito
que a revolução deve resolver. Trata-se aqui, por
conseguinte, da passagem de uma forma a outra. Mas
enquanto a estrutura econômica torna possível o
desenvolvimento das forças produtivas, as transformações
sociais não assumem o caráter de desordem: elas se
produzem na «ordem da evolução».

Examinaremos em seguida esta questão com maiores


detalhes. Queremos, contudo, desde já, chamar a atenção
para um ponto: segundo Marx, a causa duma revolução não
reside de forma alguma no conflito da economia com o
direito, como afirma uma quantidade de críticos do
Marxismo, mas no conflito entre as forças produtivas e a
economia. E isto não é em absoluto a mesma coisa. Veremos
em «seguida por que as cousas assim se passam.

381
A Teoria do Materialismo Histórico N. Bukarin

46. AS FORÇAS PRODUTIVAS, A ESTRUTURA SOCIAL E


ECONÔMICA

Dissemos que a causa de uma revolução, duma


passagem violenta dum tipo de sociedade a outro, deve ser
procurada no conflito que estala entre as forças produtivas,
seu crescimento, de um lado, e a estrutura econômica da
sociedade, isto é, as relações de produção, do outro. Pode se
objetar a isto, por exemplo, o seguinte: Será que a evolução
das relações de produção não é condicionada pelo
movimento das forças produtivas? Não será a transformação
a mais progressiva das relações de produção resultado dum
conflito entre as forças produtivas e as velhas relações
«caducas» de produção? Representemo-nos o crescimento
das forças produtivas na sociedade capitalista. Sabemos que
com este crescimento produziram-se também importantes
reagrupamentos dos homens no processo econômico. Assim
o desaparecimento da antiga «classe média», o
aniquilamento do artesanato, o crescimento do proletariado,
o aparecimento de formidáveis empresas. A textura humana
da produção se transforma perpetuamente. Melhor, não
haverá uma passagem duma forma de capitalismo a outra,
por exemplo, do capitalismo industrial ao capitalismo
financeiro, sem a menor revolução? E no entanto, todas
estas transformações eram a expressão de uma constante
ruptura de equilíbrio, de um incessante conflito entre as
forças produtivas e as relações de produção. No seu
crescimento, as forças produtivas se chocavam com as
relações do artesanato, rompeu-se o equilíbrio: a economia

382
A Teoria do Materialismo Histórico N. Bukarin

do artesanato já não correspondia aos progressos da técnica.


O equilíbrio rompido se restabelecia constantemente sob
uma nova base: pois paralelamente crescia também uma
nova economia que «correspondia» à técnica, etc.. Segue-
se, portanto, evidentemente, que todo conflito entre as
forças produtivas e as relações de produção não provoca
necessariamente uma revolução, e que o problema é, por
conseguinte, muito mais complexo. Para se analisar o
problema do gênero de conflito que provoca uma crise
revolucionária, convém dirigir-se à análise, ao exame das
diferentes espécies de relações de produção.

Por relações de produção entendemos, como já se sabe


toda espécie de relações possíveis entre as pessoas que
aparecem no processo da vida social e econômica, isto é, no
processo da produção, que em se também inclui a repartição
dos meios de produção, e no processo da distribuição dos
produtos. Está claro que estas relações de produção são
extremamente variadas: o especulador que compra em Paris
ações de um «trust» americano de botões, entra por isso
mesmo em relação de produção com os operários e
proprietários, contra-mestres e engenheiros das fábricas
compreendidas neste «trust». O banqueiro que emprega
contadores está em relação determinada de produção para
com eles. Da mesma forma, o carpinteiro está em relações
determinadas de produção com o torneiro que trabalha na
mesma oficina, ou com a quitandeira que lhe vende um
arenque no mercado, ou com o contra-mestre e o vigia. Mas
o mesmo carpinteiro está também em relações determinadas

383
A Teoria do Materialismo Histórico N. Bukarin

de produção com o pescador que apanhou o arenque e o


tecelão que produziu, entre outros, o tecido da sua calça,
etc., etc.. Numa palavra, temos realmente, diante de nós,
uma quantidade enorme de relações de produção variadas,
heterogêneas, que diferem entre elas em gênero e em
espécie.

O problema consiste em introduzir uma classificação


qualquer entre estas diferentes espécies de relações, e
esforçar-se em apanhar em que gênero de relações de
produção é preciso que haja conflito, para que se
desencadeie uma revolução.

Para procurar a solução deste problema de outra forma


que pelo simples chuchar de dedos, e resolve-lo de acordo
com a realidade, convém considerar como, de fato, se
realizaram as revoluções, isto é, como se resolveu a
contradição entre a evolução das forças produtivas e a base
econômica da sociedade. É inútil lembrar que este conflito
sempre se resolveu pelos homens, e isto por uma cruel luta
de classes. Que resultado se obtinha depois da vitória da
revolução? Em primeiro lugar, um deslocamento do poder
político. Em segundo lugar, um deslocamento das classes no
processo da produção, uma transformação na repartição dos
meios de produção que, como sabemos, está na mais
estreita ligação com a situação das classes. Noutras
palavras: a luta no tempo da revolução tem por objetivo a
apropriação dos meios de produção mais importantes que,
numa sociedade fundada sobre classes, estão nas mãos

384
A Teoria do Materialismo Histórico N. Bukarin

de uma classe, a qual consolida ainda esta dominação sobre


as coisas, e por conseguinte sobre as pessoas, pelo poder da
sua organização política.

Chegamos aqui ao ponto decisivo da nossa pesquisa,


que diz respeito a estas relações de produção que a
revolução deve fazer saltar, se a sociedade é capaz de
prosseguir na evolução de suas forças produtivas. Marx, no
tomo III do Capital (2.a parte), propõe a questão com toda
a sua acuidade, destacando de todo o conjunto das relações
de produção a sua parte fundamental, especifica.

«Uma forma econômica especifica, na


qual um trabalho suplementar não
retribuído é por assim dizer roubado dos
produtores diretos, determina uma
relação de senhores a sujeitados, tal
como nasce imediatamente da produção
mesma e por seu turno tem sobre ela
uma influência determinante. É sobre
isto que se funda toda a conformação do
corpo social econômico que decorre das
próprias relações de produção e ao
mesmo tempo sua forma, especifica
política. Encontramos cada vez o
mistério o mais secreto, o fundamento
escondido de toda construção social e,
por conseguinte, também da
forma política, que representa relações

385
A Teoria do Materialismo Histórico N. Bukarin

de soberania e dependência, numa


palavra, de toda forma especifica
de Estado... nas relações imediatas dos
detentores dos meios de produção com
os produtores imediatos.»

Como, em consequência, se passam as coisas? Duma


forma muito simples. Entre toda variedade de relações de
produção, um gênero se destaca pela sua importância:
aquele que exprime as relações entre as classes que têm os
principais meios de produção e as outras classes que não
possuem senão os meios secundários, ou que não possuem
nenhum. A classe dominante na economia domina também
na política, e reforçapolíticamente um tipo dado de relações
de produção, garantindo um processo de produção que a
favorece... «A política é uma expressão concentrada da
economia», como diz uma das resoluções do IX Congresso
do P. C. Russo.

Pode-se ainda exprimi-lo em termos um pouco


diferentes. Trata-se, nós o vemos, não de todas as relações
de produção, de qualquer espécie, mas das relações
de domínio econômico — apoiado nas relações determinadas
com o mundo material — e dos meios de produção. Para
falar a linguagem dos legisladores e juristas, trata-se
das relações de propriedade fundamentais, das relações
de propriedade de classe dos meios de produção. Estas
«relações de propriedade» não são qualquer coisa de
diferente das relações de produção fundamentais. São

386
A Teoria do Materialismo Histórico N. Bukarin

exatamente a mesma coisa, mas expressa noutros termos,


em linguagem jurídica e não econômica. São precisamente
estas relações, ligadas à dominação econômica duma classe,
que esta classe procura conservar, fortalecer e alargar a todo
preço.

Nestes quadros, todas as mutações possíveis «de ordem


evolutiva» podem-se produzir; mas sair destes quadros não
é possível, senão pela transformação revolucionária. Por
exemplo: nos limites das relações de propriedade capitalista,
pudemos assistir ao desaparecimento do artesanato, ao
aparecimento de novas formas de empresas capitalistas, à
vinda ao mundo de uniões capitalistas antes desconhecidas,
à ruína de membros particulares da classe burguesa
(falências); alguns membros isolados da classe operária
podem chegar à situação de pequenos proprietários e em
seguida empresários; novas camadas sociais podem crescer
(por exemplo, o que se chama a «nova classe média», isto
é, os técnicos intelectuais) e assim por diante. Mas
a classe operária não se pode tornar detentora dos meios de
produção; não pode alcançar o poder, ter direitos na
produção, dispor dos meios fundamentais de produção.
Noutras palavras, qualquer que seja a transformação que se
possa efetuar sob a influência das forças produtivas nas
relações de produção, seu eixo fundamental permanece. E
se entra em conflito com as forças de produção, ele se
rompe. E é isto a revolução que assegura a passagem a uma
outra forma social.

387
A Teoria do Materialismo Histórico N. Bukarin

«Na medida em que o processo do


trabalho é um simples processo entre o
homem e a natureza, seus elementos
simples conservam-se idênticos em
todas as formas sociais de sua evolução.
Mas toda forma histórica determinada
deste processo faz avançar a evolução
de seus fundamentos materiais e das
suas formas sociais. Chegada a um certo
grau de maturidade, uma
forma.histórica dada é afastada e cede
seu lugar a uma forma superior. A hora
desta crise aparece quando a
contradição e oposição entre as relações
de repartição de um lado, e por
consequência os aspectos históricos
determinados das relações de produção
correspondentes, e doutro lado as forças
produtivas, atingem uma certa
amplitude e uma certa profundidade.
Produz-se então o choque entre a
evolução material da produção e sua
forma social» (Capital tomo III, parte
2).

Assim a revolução se produz quando se apresenta um


conflito agudo entre as forças produtivas que se
desenvolvem, que não cabem mais no quadro das relações
de produção, e as ditas relações, isto é, as «relações de

388
A Teoria do Materialismo Histórico N. Bukarin

propriedade», e os meios de produção. Então este quadro


«estala».

Não é difícil compreender por que as coisas se passam


assim e não de outra forma. Não é difícil porque são
estas relações de produção que apresentam o aspecto mais
fixo, mais conservador: é que exprimem o domínio
econômico exclusivo de uma classe, firmado e refletido por
seu domínio político. É natural que um tal invólucro, que
materializa os interesses fundamentais de uma classe, seja
mantido por esta classe até o último limite possível,
enquanto as mutações que se operam no interior deste
invólucro, isto é, as mutações parciais, que deixam na sua
integridade os princípios fundamentais duma sociedade,
podem-se produzir, e se produzem, relativamente sem dor.
Segue-se entre outras coisas que não existe revolução
«puramente política»; toda revolução é uma revolução
social, isto é, que desloca classes; e toda revolução social é
uma revolução política. Isto porque não é possível derrubar
as relações de produção sem derrubar a força política destas
relações; inversamente, derrubar o poder político significa
derrubar o poder de uma classe também no domínio
econômico, pois «a política é a expressão concentrada da
economia». Responder-se-á a isto: comparai a revolução
francesa com a revolução bolchevique russa; no primeiro
caso, houve revolução política; no segundo, social; na
revoluçãobolchevique triunfante, a política e as
transformações políticas não representaram maior papel que

389
A Teoria do Materialismo Histórico N. Bukarin

na revolução francesa, mas as transformações no domínio


das relações de produção não são nem mesmo comparáveis.

Esta «objeção» não faz senão confirmar o que acima já


dissemos. Consideremos com efeito as coisas sob o seu
aspecto político. É perfeitamente claro que na época da
revolução francesa o poder passou das mãos de um grupo
de proprietários às mãos de outro grupo também de
proprietários. A burguesia derrubou o Estado dos
proprietários territoriais e organizou o Estado da burguesia
industrial, enquanto na Rússia a organização dos
proprietários de qualquer categoria foi completamente
varrida. A transformação política foi muito mais profunda.
Tanto mais que o deslocamento das relações de produção
(nacionalização da indústria, supressão do domínio dos
proprietários territoriais, germens de sociedade socialista,
etc..) foi mais profundo.

Em resumo, a causa de uma revolução é um conflito


entre as forças produtivas e as relações de produção,
baseadas, estas na organizaçãopolítica da classe dominante.
Estas relações de produção dificultam a tal ponto a evolução
das forças produtivas, que elas devem necessariamente ser
abolidas para que a sociedade possa seguir na sua evolução.
E se não podem ser abolidas, elas esmagam e sufocam o
desenvolvimento das forças produtivas, e toda a sociedade
estagna ou retrocede, isto é, passa por um período de
decadência.

390
A Teoria do Materialismo Histórico N. Bukarin

A transformação revolucionária que acompanha a


passagem de uma forma de sociedade de classe a outra
aparece como uma colisão entre forças produtivas e as
relações de produção. Mas pergunta-se, quando se produz
tal transformação? Sim, porque a contradição entre as forças
produtivas e as relações de propriedade duma sociedade
dada não aparece bruscamente, não cai inopinadamente do
céu como um aguaceiro. Ela se revela e se manifesta muito
antes da revolução, desenvolve-se por muito tempo, e não é
senão como resultado desta revolução que ela se resolve
pela ruptura destas relações de produção que punham
obstáculo ao evolver posterior das forças produtivas. Chega-
se a este «ponto de ebulição» no momento em que no
próprio seio das antigas relações de produção as novas já
chegaram de forma latente à maturidade.

«Uma formação social não perece nunca


antes de se terem completamente
desenvolvido todas as forças produtivas
que ela pode conter; e novas relações de
produção, superiores, não entram
jamais em cena antes que suas
condições materiais de existência não
tenham sido
primeiramente chocadas sob a asa da
mesma antiga sociedade».
(Marx, Crítica da
Economia Política, prefacio).

391
A Teoria do Materialismo Histórico N. Bukarin

Que significa isto? Tomemos um exemplo na época


contemporânea.

A estrutura capitalista é o conjunto das relações de


produção da sociedade capitalista, cujo eixo é o conjunto das
relações entre operários e capitalistas, relações que, como já
sabemos, se exprimem pelos objetos (Capital). Por
conseguinte, a estrutura capitalista da sociedade se define,
em primeiro lugar, pela combinação das relações que
existem entre os capitalistas tomados à parte, e as relações
entre os operários também tomados à parte. A estrutura
capitalista não se reduz de forma alguma só às relações
internas da classe dos capitalistas; do mesmo modo, sua
«essência» não consiste nas relações entre os operários.
Esta «essência» se encontra na reunião destes dois grupos
de relações de produção. É mesmo esta a relação de
produção fundamental do capitalismo, este laço que reúne e
liga as duas classes fundamentais, que cada qual por sua vez
traz em si um conjunto de relações de produção (relações
entre os capitalistas de um lado, entre os operários do
outro). Se perguntarmos agora de que maneira
«amadurece», no interior do antigo modo de produção
determinado, um novo «modo de produção», descobriremos,
tomando para exemplo ainda o capitalismo, o seguinte:

No interior das relações de produção do capitalismo, isto


é, no interior da combinação das classes, uma parte destas
relações de produção é ao mesmo tempo o fundamento
duma nova ordem, socialista. Com efeito, já vimos o

392
A Teoria do Materialismo Histórico N. Bukarin

que Marx considera como base da ordem socialista. É de um


lado a centralização dos meios de produção (isto é, das
forças produtivas) e é em seguida (e é isto que se relaciona
com as relações de produção), o trabalho socializado, isto é,
antes de tudo as relações no interior da classe operária, todo
o conjunto das relações de produção no proletariado, o laço
de produção entre todos os operários. São precisamente
estas relações de produção, que consistem na colaboração,
que, amadurecendo no seio das relações de produção
capitalistas em geral, são a pedra sobre a qual se erguerá o
templo do futuro.

Eis aqui mais alguma coisa que nos deve esclarecer.


Vimos mais acima que a camada de uma revolução reside no
conflito entre as forças produtivas e as relações
fundamentais de produção ou relações de propriedade.

Vimos agora que esta contradição de base encontra sua


expressão numa contradição de produção, a saber, na
contradição entre uma parte das relações de produção do
capitalismo e uma outra parte destas relações. Com efeito.
Está claro que o trabalho social e centralizado, encarnado
pelo proletariado, torna-se cada vez menos compatível com
a dominação econômica (e por conseguinte política) dos
capitalistas. Este «trabalho socializado» exige uma economia
metódica e não suporta a anarquia das classes. Ele exprime
a tendência da sociedade moderna para a organização; ora,
esta organização não pode ser obtida da
sociedade capitalista. Isto porque a sociedade fundada sobre

393
A Teoria do Materialismo Histórico N. Bukarin

classes é uma sociedade contraditória, portanto


inorganizada. Ora, está claro que os capitalistas não podem,
não querem aniquilar seu domínio de classe. Por
conseguinte, para que surjam possibilidades de organização
«em toda linha», é preciso acabar com a dominação dos
capitalistas. Temos assim sob nossas vistas um conflito entre
estas relações de produção que são encarnadas no
proletariado, e as que se encarnam na burguesia.

Isto nos permite compreender a sequência. É certo que


são os homens que fazem a história. Por conseguinte, é inútil
acrescentar que um conflito entre as forças produtivas e as
relações de produção não se manifesta pelo fato dos meios
de produção, máquinas inertes, numa palavra,objetos, se
«levantarem» contra os homens. Uma tal suposição seria
monstruosa e irrisória. Que se passa então? Passa-se
evidentemente que a evolução das forças produtivas coloca
os homens em relações de contradição marcada e que o
conflito entre as forças produtivas e as relações de produção
encontra sua expressão num conflito entre os homens, num
conflito entre classes. Acabamos justamente de ver como
isto se dá. As relações de colaboração entre os operários se
exprimem nos homens vivos, no proletariado, com seus
interesses, suas aspirações, sua força e seu poder social. E
vice-versa, a base das relações de produção do capitalismo,
que domina e oprime, também se exprimem em homens
vivos, na classedos capitalistas. Todo conflito encontra sua
expressão na luta violenta de classes, na luta revolucionária
do proletariado contra a classe capitalista.

394
A Teoria do Materialismo Histórico N. Bukarin

Os trovadores oportunistas da social-democracia, no


gênero de H. Cunow, gostam de se alongar sobre o tema da
"maturidade imperfeita" das relações atuais; e para se
justificarem apelam para... Marx, que ensinava que
nenhuma forma de produção é substituída por outra
enquanto deixa ainda lugar à evolução das forças produtivas.
E estes "homens de espírito" começam a galopar pelo mundo
todo para mostrar que existem ainda aldeias na África
Central, onde ainda não há Bancos, e onde vivem ainda
selvagens nus.

Podemos opor esta afirmação:

"a guerra mundial, o inicio de uma era


revolucionária, etc., são precisamente
a expressão desta maturidade
objetiva de que é questão. Pois este
conflito da mais alta intensidade foi a
consequência dum antagonismo
chegado ao apogeu e que se produzia
continuamente e se desenvolvia no
seio do sistema capitalista. Sua
capacidade de abalo é o índice bastante
exato da grande evolução capitalista e a
expressão trágica da absoluta
incompatibilidade do desenvolvimento
posterior das forças produtivas com o
invólucro das relações capitalistas de
produção que as encerra. É bem isto

395
A Teoria do Materialismo Histórico N. Bukarin

este zusammenbruch, este krack tantas


vezes previsto pelos criadores do
comunismo cientifico." (N. Bukharin, A
Economia do Período de Transição).

47. A REVOLUÇÃO E SUAS FASES

O ponto de partida da revolução é, como dissemos, um


conflito entre as forças produtivas e as relações de produção,
conflito que coloca numa situação particular a classe
portadora do novo modo de produção, e «determina» de
uma forma precisa sua consciência e sua vontade. As
premissas da revolução são portanto a modificação profunda
da consciência duma nova classe, a revolução ideológica na
classe que será o coveiro da antiga sociedade.

É indispensável pararmos neste ponto. Antes de tudo, é


preciso lembrar que esta revolução tem uma base material.
Depois é preciso compreender nitidamente porque se trata
assim de uma transformarão violenta na consciência de uma
nova classe, dum processo revolucionário.Examinemos esta
questão com atenção. Toda ordem social, como se aprendeu
nos capítulos anteriores, não repousa unicamente sobre os
fundamentos econômicos: pois qualquer que seja a ideologia
reinante numa ordem de coisas dada, ela não é senão o laço
que sustem esta ordem.

As ideologias não são simplesmente acidentes, mas


círculos de gêneros diversos que encerram como um tonel o
corpo social, e o mantém em equilíbrio. Perguntemos agora

396
A Teoria do Materialismo Histórico N. Bukarin

o que aconteceria se a psicologia e a ideologia das classes


oprimidas estivessem numa posição de hostilidade declarada
contra a ordem de coisas reinante. Está claro que, nestas
condições, esta ordem não poderia mais se manter.
Consideremos com efeito uma forma qualquer de sociedade,
e nos convenceremos imediatamente que enquanto subsistir
esta sociedade reina, em geral e em conjunto, uma
mentalidade e uma ideologia de paz civil. Isto se torna
particularmente claro se tomamos por exemplo o capitalismo
no inicio da guerra de 1914-1918. Certamente, a classe
operária tinha desenvolvido uma ideologia independente da
da burguesia. E que vemos nós? Mesmo no seio da classe
operária existia uma crença extraordinariamente forte na
estabilidade da ordem capitalista, um certo apego ao Estado
capitalista, uma psicologia de paz civil. Era preciso toda uma
revolução psicológica e ideológica para que uma classe se
levantasse efetivamente contra outra. E quando se efetua
esta revolução ideológica e psicológica? Quando a evolução
objetiva coloca a classe oprimida numa «situação
insuportável», quando esta classe vê e adquire uma
consciência nítida de que «na ordem de coisas atual não há
possibilidades de melhoria possível», «que não existe saída»,
«que isto não pode durar». Isto se produz quando o conflito
entre o desenvolvimento das forças produtivas e as relações
de produção provocou o rompimento do equilíbrio social, e
a impossibilidade de restabelecê-lo em suas antigas
bases. Prossigamos tomando por exemplo a revolução
proletária. A classe operária, como já vimos, desenvolveu no
curso da evolução capitalista da humanidade uma psicologia

397
A Teoria do Materialismo Histórico N. Bukarin

e uma ideologia mais ou menos hostil à ordem existente. É


no Marxismo que esta ideologia recebeu a sua expressão a
mais marcada, a mais nítida, a mais significativa e a mais
profunda. No entanto, na consciência das massas, e por este
fato de que o capitalismo ainda podia se desenvolver, que
ele se desenvolvia e podia mesmo melhorar os salários
graças ao saque e à exploração sem piedade das colônias,
por este fato o capitalismo não era em absoluto
«insuportável» à consciência das massas operárias. Melhor
ainda. Na classe operária européia e norte-americana se
estabeleceu mesmo uma «comunidade de interesses»
particulares com o «Estado nacional capitalista». Ao mesmo
tempo, o Marxismo de Marx, nascido no solo da revolução de
1848, se transformava nos partidos operários num
«Marxismo II.ª Internacional» todo especial, que traía, e
desnaturava a doutrina de Marx, mesmo sobre a revolução
social, o empobrecimento do proletariado, a queda inevitável
do capitalismo, a ditadura do proletariado, etc.. Tudo isto
encontrou sua expressão na traição dos partidos sociais-
democratas e no estado de espírito patriótico da classe
operária em 1914. Foi preciso que a guerra e suas
consequências aparecessem como expressão das
contradições do regime capitalista, para mostrar, ou melhor,
começar a mostrar, que «isto não podia mais durar». À
psicologia, e à ideologia de paz civil, substituíram-se uma
psicologia e uma ideologia de guerra civil, e no domínio
puramente ideológico, o «Marxismo» da II.ª Internacional
cedeu seu lugar ao verdadeiro Marxismo, isto é,
ao comunismo cientifico.

398
A Teoria do Materialismo Histórico N. Bukarin

Assim, esta revolução nas idéias é constituída,


pelo krack da antiga psicologia e da antiga ideologia,
rompidas pela irrupção de fatos próprios da vida social, e
pela instauração duma ideologia e duma psicologia novas e
verdadeiramente revolucionárias.

A canalha social democrata não o compreenderá jamais.


Pelo contrário, ela quer apresentar a coisa da seguinte
forma: no terreno da miséria e da fome, não pode haver
revolução proletária, por conseguinte toda revolução que se
produza nesse terreno não é uma "verdadeira" revolução. É
interessante opor a isto a forma pela qual Marx encara as
coisas; num artigo por ele assinado no "New York Tribune"
de 2 de fevereiro de 1854, lemos:

"não podemos esquecer que existe na


Europa uma sexta potencia que, a um
momento dado, afirmará seu poder
sobre as outras cinco chamadas
"grandes potencias" todas juntas,
fazendo-as tremer diante de si. Esta
potencia, é a revolução. Depois de longo
silêncio e retiro, ela é novamente
chamada para a frente de batalha
pela crise e pela fome... Não é preciso
senão um sinal para que a sexta mais
poderosa das potencias entre em cena
com todo o esplendor da sua armadura,

399
A Teoria do Materialismo Histórico N. Bukarin

a espada na mão... Este sinal será dado


pela guerra européia ameaçadora".

Assim, Marx não adiantava este raciocínios imbecis


sobre a impossibilidade duma revolução proletária, depois de
uma guerra, sobre a impossibilidade de edificar a revolução
sobre a fome, etc.. Marx se enganava sobre o ritmo da
evolução, mas ele geralmente apanhou o esquema essencial
dos acontecimentos: crise, fome, guerra.

A segunda fase da revolução é a revolução política isto


é, a tomada do poder por uma nova classe. Aqui a psicologia
revolucionária da nova classe entra em ação. A classe
oprimida se choca diretamente com a força concentrada da
classe reinante, o seu aparelho de Estado. Para quebrar essa
oposição, a classe nova, no processo da luta, desorganiza,
destrói numa medida maior ou menor a organização do
Estado adversário, e em parte com antigos elementos, em
parte com novos, instaura sua organização de Estado. É aqui
indispensável notar e frisar que a «tomada do poder» por
uma nova classe não pode consistir numa simples passagem
da mesma organização de Estado de uns para outros. Uma
idéia assim ingênua das coisas foi extremamente difundida
até em meios socialistas. Portanto, em Marx e Engels,
consta expressamente a destruição do poder antigo e a
organização de um novo. É muito compreensível. Com efeito,
a organização de Estado é a expressão suprema do poder da
classe reinante, é a sua fortaleza, sua força concentrada, seu
principal aparelho de luta, sua principal arma defensiva

400
A Teoria do Materialismo Histórico N. Bukarin

contra a classe oprimida. Como então poderá a classe


oprimida quebrar a oposição da classe opressora, deixando
intacto seu principal instrumento de opressão? Como vencer
um inimigo sem desorganizar as forças deste inimigo?
Evidentemente, de duas uma: ou as forças da classe reinante
conservam-se tais quais, e então a revolução está por
definição vencida; ou então a revolução é vencedora e isto
subentende a desorganização, a destruição das forças (isto
é, em primeiro lugar, a organização do Estado) da classe
dirigente. E como a força material do poder do Estado
encontra sua principal expressão na força armada, está claro
que este trabalho preliminar de destruição deve-se dirigir
principalmente contra o antigo exército. Mostrou-nos isto,
entre outros exemplos, a revolução inglesa do século XVII,
que destruiu o aparelho de Estado do poder dos reis e
proprietários fundiários, seu exército, etc.. e instituiu o
exército revolucionário dos puritanos e a ditadura
de Cromwell. Isto nos é ainda demonstrado pela revolução
francesa, que desfocou o exército real e instituiu o exército
revolucionário, edificado sobre novos princípios. Isto é
finalmente demonstrado e provado pela revolução russa de
1917 e dos anos seguintes, que destruiu o aparelho de
Estado dos proprietários fundiários e da burguesia, que
dissolveu o exército imperialista e edificou um novo Estado,
dum tipo absolutamente sem precedentes, e um exército
revolucionário novo. Assim, a fase política da revolução não
consiste em tomar a nova classe a antiga máquina deixada
intacta, mas demoli-la, mais ou menos (conforme a classe
que procede à transformação social), eedificar uma

401
A Teoria do Materialismo Histórico N. Bukarin

organização nova, isto é, combinar de uma nova forma


homens e coisas, e sistematizar duma nova forma as idéias
correspondentes.

A terceira fase da revolução é a revolução


econômica. Consiste em utilizar-se a classe vencedora do
poder que adquiriu como de uma alavanca para a
transformação econômica, acabando de destruir as relações
de produção do antigo tipo e ajudando a se desenvolver e
consolidar as novas relações que já amadureciam na antiga
ordem, mas em contradição com ela. Eis como Marx definiu
este período da revolução, examinando a revolução do
proletariado:

«O proletariado aproveitará da sua


dominação política para arrancar
inteiramente à burguesia todo o capital,
para centralizar nas mãos do Estado,
isto é, do proletariado organizado como
classe dominante, todos os meios de
produção, e para aumentar, na medida
do possível, a massa das forças
produtivas (este último ponto, como
vemos, não vem senão mais tarde, e se
relaciona propriamente com o período
seguinte, N. B.). Isto não pode
evidentemente se dar sem irrupções
despóticas no direito de propriedade e
nas relações burguesas de produção, e

402
A Teoria do Materialismo Histórico N. Bukarin

por conseguinte, por meio de medidas


que aparecem economicamente
insuficientes e insustentáveis mas que,
na marcha da evolução, saem do seu
próprio quadro e são inevitáveis como
meios de transformação radical de todo
modo de produção» (Manifesto
Comunista).

Noutra passagem do Manifesto, Marx fala do


proletariado que,

«como classe no poder,


transformará pela violência as antigas
relações de produção».

Aqui se apresenta uma nova questão muito importante


e fundamental: como, num caso típico, se produz, e deve
inelutavelmente se produzir, esta reorganização das relações
de produção?

A maneira pela qual, antigamente, a social-democracia


representava as coisas era a mais simples: uma nova classe,
no caso o proletariado, «afasta» os que estão à frente do
processo econômico, dizendo «Vão-se embora, imbecis!»; os
«imbecis» retiram-se, mais ou menos empurrados pelo
proletariado, que recebe completo e intacto o aparelho social
de produção, todo pronto, amadurecido no seio de Abraão
capitalista. O proletariado se instala à frente do processo
econômico, e está tudo acabado: a produção segue sem

403
A Teoria do Materialismo Histórico N. Bukarin

embaraços, a continuidade do processo de produção não se


rompe e a sociedade toda escorrega, sem choques, pelo
caminho da ordem, socialista desabrochada. Examinemos
contudo com maior atenção a revolução nas suas relações
com a produção. O que indicam antes de tudo estas relações
de produção do ponto de vista do processo do trabalho? Não
são outra coisa senão um aparelho humano complexo de
trabalho, um sistema de pessoas mutuamente ligadas umas
às outras, já o sabemos, segundo um tipo determinado. Mas
além disto — e isto é especialmente importante — as funções
de trabalho dos diversos grupos de pessoas numa sociedade
de classes são ligadas ao seu papel de classe, por assim
dizer, germinadas com ele. Por conseguinte, a transposição
das classes é, numa certa medida, a destruição do antigo
aparelho de trabalho, e a construção de
um novo, exatamente como na fase política da revolução. É
lógico que resultará, inevitavelmente, por um certo período,
um declínio das forças produtivas: toda reconstrução exige
despesas. Da mesma forma, compreende-se que o grau de
destruição do antigo aparelho, a importância
das demolições depende em primeiro lugar da importância
do deslocamento que se observa nas classes. Nas revoluções
burguesas, por exemplo, o poder de comando na produção
passa de um grupo de proprietários a outro; mas o princípio
da propriedade fica em vigor, o proletariado conserva-se no
lugar onde estava. Por conseguinte, a demolição, a
destruição da antiga ordem é aqui muito menos importante
que no caso em que a camada inferior da pirâmide, o
proletariado, procura chegar ao cume. Neste caso, é

404
A Teoria do Materialismo Histórico N. Bukarin

necessário um abalo profundo. A antiga cadeia: burguesia,


alta classe intelectual, média classe intelectual,
proletariado, estala. O proletariado conserva-se mais ou
menos só. Contra ele estão todos os outros. Dai uma
inevitável desorganização temporária da produção,
desorganização que se prolonga enquanto o proletariado não
dispôs os homens segundo uma outra ordem, e não os uniu
por um laçodoutro tipo, isto é, enquanto não estabeleceu
um novo equilíbrio de estrutura da sociedade.

Estas idéias foram expostas pelo autor da presente obra


no seu livro A Economia do período de transição (veja-se
especialmente o capítulo III), ao qual remetemos os
camaradas que queiram conhecer mais em detalhe as
considerações desenvolvidas a este respeito. Não faremos
aqui senão uma série de reparos complementares. Antes do
mais, até que ponto pode esta opinião ser considerada como
ortodoxa? Pensamos que é precisamente este o ponto de
vista de Marx sobre a questão. Um fato
característico: Marx empregava aqui exatamente a mesma
expressão que a propósito da destruição do Estado. Escrevia
que o invólucro das relações de produção capitalista
"saltava" (Capital, tomo I); em outras passagens fala da
"decomposição" e da "refundição". Compreende-se bem que
quando as relações de produção "saltam", isto não pode
deixar de agitar a "continuidade do processo de produção",
o que seria, é natural, muito mais agradável. É
provavelmente também esta idéia que transparece
em Marxquando diz que "a irrupção despótica" do

405
A Teoria do Materialismo Histórico N. Bukarin

proletariado é economicamente "insustentável", mas em


seguida ela se justifica e, por assim dizer, encontra sua
compensação.

Outra observação: Fazem-nos uma porção de objeções


a propósito da Nova Economia Política (N.E.P.) na Rússia.
Indica-se que na nossa "Economia do período de transição"
ocupamo-nos em fazer com parcialidade a defesa do partido
comunista russo, que agira como macaco em loja de louça.
E agora, dizem, a vida provou que não era preciso destruir o
antigo aparelho e que estamos tão calmos como o bando
de Scheidman. Noutros termos: a destruição do aparelho
capitalista de produção foi um fato da realidade russa e
absolutamente não uma lei geral da passagem de uma forma
de sociedade (capitalista) para uma outra (socialista). Esta
"objeção" se apóia visivelmente numa "serena"
incompreensão das coisas. Os operários russos não podiam
"soltar" os capitalistas, etc.., senão depois de abalar suas
bases e se terem consolidado no poder, isto é, depois de
terem estabelecido nas suas linhas gerais o novo equilíbrio
social. Mas nossos críticos querem começar pelo fim. Com
efeito, até no aparelho de Estado (por exemplo, o exército)
deixamos entrar numerosos quadros de oficiais do antigo
regime e os colocamos em funções de comando. Poderíamos
fazer a mesma coisa no começo da revolução? Poderíamos
então ter deixado de destruir o antigo exército czarista? Não
seriam então os operários que lhes imporiam sua própria
direção, mas eles quem imporiam a deles aos operários. É
isto coisa suficientemente provada pela política dos

406
A Teoria do Materialismo Histórico N. Bukarin

ministros Scheidman—Noske na Alemanha, Otto Bauer.


Renner na Áustria, Vandervelde na Bélgica, etc..

Terceiro reparo: a nova política econômica na Rússia


decorre, numa proporção de 9 para 10, do caráter camponês
do país, isto é, de condições especificamente russas.

Quarto reparo: É evidente que o que temos em vista é


um tipo de marcha dos acontecimentos. Mas em condições
particulares, pode-se dar um estado de coisas tal que não
haja destruição: por exemplo, se o proletariado vencer nos
países de primeira importância, então é possível que a
burguesia com todo o seu aparelho capitule de uma só vez.

O ponto de vista que acabamos de expor não afirma em


absoluto que se trata unicamente de homens isolados. Ele
afirma que as diversas camadas hierárquicas dos homens se
separam umas das outras; o proletário rompe com as demais
camadas (técnicos, burguesia, etc.), mes ele mesmo, como
conjunto de homens, mais se agrega em um conjunto
homogêneo, pelo menos numa parte considerável. Está
mesmo aí a base dasnovas relações de produção (já vimos
mais acima que "o trabalho socializado", representado
principalmente pelo proletariado, é justamente o que
amadureceu nos quadros do antigo regime econômico).

Enfim, a quarta e última fase da revolução é a revolução


técnica. Depois que se atingiu um novo equilíbrio social, isto
é, depois da constituição de um novo invólucro estável para
as relações de produção, que possa servir de forma

407
A Teoria do Materialismo Histórico N. Bukarin

à evolução das forças produtivas, a partir de um ponto


determinado começa a sua evolução acelerada:
desaparecidos os obstáculos, a sociedade começa uma
ascensão até então desconhecida. Introduzem-se novos
instrumentos, forma-se uma nova base técnica, produz-se a
revolução técnica. E desde então começa o período
«normal», «orgânico» de desenvolvimento da nova forma
social, que se constitui uma psicologia e uma ideologia
correspondentes.

Recapitulemos. O ponto de partida do desenvolvimento


da revolução foi, como vimos, a ruptura do equilíbrio entre
as forças produtivas e as relações de produção. Isto se dá na
ruptura do equilíbrio entre as diversas categorias das
relações de produção. Por seu turno, esta última ruptura de
equilíbrio conduz à ruptura de equilíbrio entre as classes, que
se manifesta antes de tudo na destruição da ideologia de paz
social. Produz-se em seguida uma brusca ruptura de
equilíbrio político e sua restauração numa base nova, em
seguida uma brusca ruptura do equilíbrio da estrutura
econômica e sua restauração também numa nova base,
enfim o aparecimento dum novo fundamento técnico. Assim
a sociedade começa a se desenvolver sobre uma nova base
de vida, e todas as funções vitais fundamentais tomam outro
aspecto histórico.

408
A Teoria do Materialismo Histórico N. Bukarin

48. AS LEIS DO PERÍODO DE TRANSIÇÃO E DA


DECADÊNCIA

Estudando o processo da revolução, que não é outra


coisa que o processo da passagem duma sociedade duma
forma a outra, chegamos à conclusão de que, iniciando-se
pelo choque das forças produtivas e das relações de
produção, este processo percorre diversas fases da ideologia
à técnica, isto é, parece, segundo uma ordem invertida.

Para ver como se passam as coisas, tomemos um


exemplo concreto, digamos, a revolução proletária.

H. Cunow, novo crítico de Marx, opôs as seguintes


passagens extraídas, uma da Miséria da Filosofia e outra
do Manifesto Comunista. A primeira diz:

«A classe operária no curso da evolução


transforma a sociedade burguesa em
uma associação tal que excluirá as
classes e as contradições entre elas, por
uma associação onde não haverá
propriamente poder político, pois que o
poder político é justamente a expressão
oficial das contradições no interior da
sociedade civil».

Na outra passagem, Marx assim define o curso dos


acontecimentos:

409
A Teoria do Materialismo Histórico N. Bukarin

«Se o proletariado se une como classe


na sua luta contra a burguesia, ele se
torna pela revolução a classe
dominante, e como classe dominante
abolirá pela violência as suas antigas
relações de produção; ora, ao mesmo
tempo que estas relações, ele destrói as
condições de existência das contradições
de classes em geral, e entre outras, a
sua própria dominação de classe».

A este propósito, Cunow observa o seguinte (ob. cit, vol.


I, pag. 321):

«Isto (trata-se da passagem


do Manifesto, N. B.) é sob o ponto de
vista sociológico quase a inversão
completa da frase mais acima citada
da Miséria da Filosofia. Assiste-se lá
(na Miséria, N. B.) no curso da evolução
social. primeiro à supressão da divisão
em classes, e é somente em seguida que
por efeito deste mesmo fato a base do
antigo poder político é derrubada, e
produz-se uma nova conquista
«política» (!). No Manifesto
Comunista, pelo contrário, a conquista
do poder do Estado dá-se antes de tudo
e somente em seguida, por meio da

410
A Teoria do Materialismo Histórico N. Bukarin

transformação deste poder, é que se


produz o deslocamento das relações de
produção capitalista; em seguida, por
sua queda progressiva, o
desaparecimento da oposição de classe,
e ao mesmo tempo, finalmente, a
supressão das classes em geral».

Assim Cunow afirma que na Miséria Marx é um sábio


evolucionista e no Manifesto um revolucionário insensato. O
sr. Cunow mente cinicamente, pois sabe perfeitamente que
a Miséria da Filosofia apela para a «luta sangrenta» («Luta
Sangrenta ou Morte. É só assim que a história apresenta a
questão»). Mas examinemos a coisa em si. Na primeira
passagem citada de Marx, trata-se do período que
se segue à conquista do poder e ao desaparecimento
progressivo do poder do proletariado. Não se fala na
«conquista política». O poder do proletariado é desde o inicio
compreendido como um elemento condenado a desaparecer.
Da mesma forma na passagem do Manifesto. Assim, está
fora de dúvida que Marx considerava a conquista do poder
político, (isto é, a destruição da antiga máquina de Estado e
a organização duma nova, original) como uma condição para
a destruição das relações de produção por meio da
expropriação violenta dos expropriadores. Por conseguinte,
aqui também, está-se diante de uma «ordem invertida». A
análise vai, não da economia à política, mas desta àquela.
De fato, se as relações de produção são transformadas com
auxilio da alavanca do poder político, segue-se que a

411
A Teoria do Materialismo Histórico N. Bukarin

economia é aqui determinada pela política. E Cunow não terá


agora razão de dizer que nós temos aqui uma sociologia em
contradição com a verdadeira sociologia de Marx?

Não, certamente, não tem razão. Ele não faz mais que
falsificar Marx, e age como um vulgar falsário.

Com efeito. Não se deve perder de vista o ponto de


partida de todo o processo. Onde está tal ponto? No conflito
entre a evolução das forças produtivas e as relações de
produção. É esta a base do processo, o ponto inicial de toda
reorganização social. Quando interrompe o processo a sua
marcha louca? Quando se constitui um novo equilíbrio na
estrutura da sociedade. Noutras palavras, a revolução
começa porque as relações de propriedade se tornaram um
entrave ao desenvolvimento das forças produtivas; a
revolução, para falar por metáforas, «desempenha o seu
papel» quando se edificam novas relações de produção,
podendo servir de forma à evolução das forças produtivas. E
que há entre estes dois pontos da revolução? A influência em
torno das superestruturas.

Vimos nos capítulos precedentes que as superestruturas


não são elementos «passivos» do processo social: são
também forças determinadas. Seria ridículo contestá-lo, e o
sr. Cunow, ele mesmo, não tem a audácia de levantar
alguma objeção. O que se produz aqui é precisamente um
processo, muito ampliado no tempo, de influência ambiente;
esta extensão no tempo decorre do caráter catastrófico de

412
A Teoria do Materialismo Histórico N. Bukarin

todo o processo, da supressão de todas as funções comuns.


Num período normal, toda contradição entre as forças
produtivas e a economia, ou outra qualquer, se resolve
rapidamente, exerce rapidamente sua influência sobre a
superestrutura, em seguida a superestrutura sobre a
economia e as forçar produtivas, e o circulo recomeça sem
cessar. Mas aqui, esta acomodação mutua das diferentes
partes do mecanismo social se opera de uma forma áspera,
cruel, como preço de sacrifícios prodigiosos; as próprias
contradições tomam uma amplitude formidável. Nada de
extraordinário, portanto, que o processo de influência em
torno das superestruturas (ideologia política — conquista do
poder, transformação deste poder para o refazimento das
relações de produção) seja longo, enchendo todo um período
histórico. É aí que reside a originalidade do período de
transição, coisa perfeitamente incompreensível para o
sr. Cunow.

É indispensável não perder de vista o que aqui se segue.


Toda força que se prende às superestruturas, e entre outras,
o poder concentrado de uma classe, um poder de Estado, é
uma força. Mas esta força não é ilimitada. Nenhuma força
pode fazer o que está acima dela. Por que então, se
acha limitada a força política da nova classe que vem tomar
o poder? Pelo estado das forças econômicas dadas e, por
conseguinte, das forças produtivas. Noutras palavras: esta
transformação das relações econômicas, que pode ser
realizada com o auxilio da alavanca política, depende ela
mesma do estado anterior das relações econômicas. Não se

413
A Teoria do Materialismo Histórico N. Bukarin

poderia melhor explicá-lo que com o exemplo da revolução


proletária russa. A classe operária tomou em 1917 o poder
nas suas mãos. Ela, porém, não poderia nem pensar em
centralizar e socializar a economia pequeno-burguesa,
particularmente a economia camponesa. Tornou-se claro em
1921 que a economia russa resistira ainda mais do que se
esperava, e que as forças do Estado proletário bastavam
apenas para conservar socializada a grande indústria, e
assim mesmo nem toda ela.

Atendamos agora ao seguinte: Vimos mais atrás que o


processo revolucionário interrompe o desenvolvimento das
forças produtivas, melhor, que ele rebaixa o nível destas
forças. É indispensável esclarecer esta idéia e o sentido deste
fenômeno.

Uma sociedade inorganizada, cujo exemplo concreto


mais típico é a sociedade capitalista mercantil, se desenvolve
sempre por saltos. Todos sabem agora que, por exemplo, o
capitalismo traz em si guerras e crises industriais. Ninguém
ignora que estas guerras e estas crises são o «atributo
inevitável» da ordem capitalista. Que indica esta lei se a
considerarmos do ponto de vista das forças produtivas da
sociedade? Tomemos antes as crises. O que se dá em tempos
de crise? A parada das empresas, o aumento da falta de
trabalho, a diminuição da produção, a ruína e a perda duma
quantidade de empresas, sobretudo as pequenas, numa
palavra, a ruína parcial das forças produtivas. Ao mesmo
tempo, ao lado disto, a ascensão das formas de

414
A Teoria do Materialismo Histórico N. Bukarin

organização do capitalismo: a consolidação das maiores


empresas, o desenvolvimento dos «trusts» e outras fortes
uniões monopolizadoras. E depois da crise? Um novo ciclo de
evolução, uma nova ascensão sobre uma nova base, com
formas superiores de organização, que dão um novo impulso
à evolução das forças produtivas. Assim, é pelo preço de uma
crise, e de uma perda considerável de forças produtivas, que
a crise adquire a possibilidade de uma evolução posterior.

Dá-se a mesma coisa, até um limite determinado, nas


guerras capitalistas. Elas são a expressão da concorrência
capitalista. São acompanhadas duma queda temporária das
forças produtivas. Mas depois os Estados da burguesia são
aumentados, os fortes tornam-se ainda mais fortes, os
pequenos foram absorvidos; o capital se centralizou numa
escala mundial, adquiriu um campo de exploração mais
vasto, os quadros da evolução das forças produtivas se
alargaram, e depois de um declínio temporário, o processo
de acumulação tomou novo impulso.

A mesma lei se aplica na evolução geral da sociedade


capitalista. Sabemos já que a significação da revolução é
aniquilar os obstáculos ao desenvolvimento das forças
produtivas. Mas, porquanto pareça estranho, aniquilando
estes obstáculos, ela aniquila também temporariamente uma
parte das próprias forças produtivas. E isto é tão inevitável
quanto às crises no regime capitalista.

415
A Teoria do Materialismo Histórico N. Bukarin

Assim, a passagem da sociedade de uma forma a


outra se acompanha de um rebaixamento temporário das
forças produtivas, rebaixamento sem o qual toda evolução
posterior é impossível.

A lei do período de transição se distingue da lei da


decadência em que, neste último caso, não há passagem a
uma forma superior de economia; a queda das forças
produtivas se manifesta até que a sociedade receba um
abalo, um choque exterior qualquer, ou até que encontre seu
equilíbrio numa base inferior, depois do que começa uma
«repetição do passado» ou um estado prolongado de
estagnação, mas, em nenhum caso, uma forma superior de
relações econômicas.

Se analisamos as camadas da decadência constatamos


que em geral elas se reduzem ao seguinte: as relações de
propriedade dadas não se podem romper; por conseguinte,
elas se tornam obstáculos à evolução, pesando em torno
sobre as forças produtivas, que «cedem», por assim dizer,
constantemente. Isto se pode produzir, por exemplo, quando
na revolução as forças, das classes em presença são
aproximadamente iguais, de tal forma que nem uma nem
outra pode vencer, e que a sociedade toda deperece. Aqui, o
conflito entre as forças produtivas e as relações de produção
determinou duma maneira definida a vontade das classes,
mas a revolução não ultrapassou sua primeira fase. As
classes se entre devoram, nenhuma consegue obter a
vitória, a produção se extingue, a sociedade agoniza. Ou

416
A Teoria do Materialismo Histórico N. Bukarin

então pode acontecer que a classe vitoriosa não está em


condições de desempenhar as funções que assumiu. Ou
ainda, podemos nos imaginar que as coisas não foram até a
revolução, mas que a evolução das forças produtivas chegou
a um ponto onde determinou um agrupamento todo
particular das classes; de um lado uma classe reinante
parasita e de outro lado uma classe oprimida completamente
sem força. Então, também, não haverá revolução; haverá
simplesmente, mais cedo ou mais tarde, uma decomposição
e uma decadência, por assim dizer «exangue». Pode enfim
haver um tipo misto de revolução. Neste caso, vemos que o
desenvolvimento das forças produtivas conduz a uma
economia tal e a tais «superestruturas», que sua influência
ambiente paralisa a evolução das forças produtivas e as
impele para baixo. E cedendo as forças produtivas, não é
preciso acrescentar que também baixará o nível de todo o
conjunto da vida social.

49. A EVOLUÇÃO DAS FORÇAS PRODUTIVAS E A


MATERIALIZAÇÃO DOS FENÔMENOS SOCIAIS
[ACUMULAÇÃO DA CULTURA)

Quando examinamos o processo da produção e


reprodução num período de crescimento das forças
produtivas, notamos esta lei geral: nos períodos de
crescimento sempre a maior parte do trabalho é despendido
na produção de instrumentos de produção. Com auxilio
destes meios de produção sempre em aumento e que entram
para a técnica social, uma parte cada vez menor de trabalho

417
A Teoria do Materialismo Histórico N. Bukarin

vai dando quantidades cada vez maiores de produtos úteis


de toda espécie. O trabalho manual de preparação de
instrumentos de produção absorvia antes relativamente
pouco tempo; com instrumentos miseráveis, sem valor,
feitos à mão, os homens, com esforço considerável, tinham
uma produtividade reduzidíssima. Pelo contrário, nas
sociedades evoluídas, uma parte enorme do trabalho social
é gasto na produção de poderosos instrumentos de trabalho,
máquinas e aparelhos destinados a produzirem em massa
outros instrumentos de produção, tais como usinas
consideráveis, entrepostos, geradores de energia elétrica,
etc.. Um grande gasto de forças humanas é feito neste
sentido. Mas em compensação, com estes poderosos meios
de produção, o trabalho vivo se torna de uma produtividade
inaudita: as «despesas adiantadas» são reembolsadas com
usura.

Na sociedade capitalista, esta lei encontra sua expressão


no crescimento relativo do capital constante em comparação
com o variável. A parte do trabalho dedicada à construção
de usinas, máquinas, etc., cresce mais depressa que a
dedicada ao salário dos operários. Ou, noutras palavras, na
evolução das forças produtivas da sociedade capitalista, o
capita constante cresce mais depressa que o variável. Isto
pode ainda ser expresso de outra forma: no desenvolvimento
das forças produtivas, estas se repartem constantemente de
forma diferente, de tal sorte que uma parte cada vez maior
só é colocada nos ramos que produzem meios de produção.

418
A Teoria do Materialismo Histórico N. Bukarin

Assim, o crescimento das forças produtivas, a


acumulação do poder do homem sobre a natureza, se
exprimem no fato de que o «peso especifico» dos objetos, do
trabalho morto, da técnica social, vai sempre em aumento.

Perguntamos agora se não se produzem fenômenos


análogos nos outros domínios da vida social. Eis o que nos
confere o direito de propor esta questão. Vimos mais acima
que o trabalho relativo às superestruturas é também um
trabalho diferenciado, cindido, separado do trabalho
material. Vimos também que a superestrutura, por sua
estrutura interna, contém simultaneamente elementos
materiais, humanos e ideológicos no sentido próprio dessa
palavra. Como se produz, portanto, aqui a acumulação desta
cultura intelectual? Não haverá aqui alguma analogia com o
processo material da produção, e no caso afirmativo, como
ela se manifesta?

Digamo-lo já: existe uma analogia, e ela se manifesta


nisto, que a ideologia social se materializa, se fixa nas coisas,
se acumula ela também sob a forma de objetos
perfeitamente materiais. Com efeito, lembremo-nos das
fontes de que nos servimos para ressuscitar as antigas
«culturas intelectuais», o que chamamos os «monumentos»
das épocas passadas, os restos de bibliotecas antigas, os
livros, as inscrições, as estatuas, os quadros, os templos, os
instrumentos de música encontrados, os milhares de
outras coisas. Estes objetos são para nós como que a forma
fixada, materializada, da ideologia de épocas afastadas, e

419
A Teoria do Materialismo Histórico N. Bukarin

por eles podemos com aproximação julgar da psicologia dos


contemporâneos, da sua ideologia, exatamente da mesma
forma que, pelos instrumentos de trabalho, fazemos um
juízo sobre o grande desenvolvimento das forças produtivas
e em parte também da economia destas épocas. Notemos
ainda o seguinte: No trabalho de superestrutura, no
ideológico, os meios de prazer representam ao mesmo
tempo meios de produção ulterior. Examinemos, por
exemplo, uma galeria de quadros. Estes quadros são para o
publico que os contempla um motivo de prazer. Mas são ao
mesmo tempo meios de produção, não certamente
comparáveis aos pincéis ou à tela, mas em todo o caso meios
de produção dum caráter particular. Isto por que, por eles,
as gerações seguintes aprendem. Quando surge uma nova
escola artística, uma nova corrente de pintura ela não cai do
céu: nasce das que a precederam, mesmo quando as ataca
violentamente, quando «nega» e destrói o antigo sistema
ideológico. Nada nasce do nada. Do mesmo modo que em
política, em tempos de revolução, o antigo Estado é
destruído, mas que o novo é até certo ponto constituído de
elementos antigos, ligados entre si de uma outra forma,
assim também no domínio ideológico, mesmo nas rupturas
mais bruscas, há transmissão e ligação com o passado: o
novo não se constrói sobre uma «tabula rasa» absoluta. Os
quadros são para os artistas um meio de produção,
experiências artísticas acumuladas, ideologia condensada, a
partir da qual começa neste domínio todo o movimento
ulterior.

420
A Teoria do Materialismo Histórico N. Bukarin

A isto pode-se objetar mais ou menos o seguinte: que


contradição grosseira é esta! Que existe de comum entre a
alta doutrina cristã e os sinais materiais traçados em
caracteres negros sobre um pergaminho ou um papel? Que
existe de comum entre aquilo e o couro de porco com que se
encaderna o Evangelho? Que existe de comum entre a sabia
ideologia e a massa de velharias acumuladas nas bibliotecas?
Todos os argumentos deste gênero repousam num mal
entendido. Certamente nem o papel tomado em si, nem os
materiais ornamentais, nem o couro de porco teriam
significado algum para nós se não os considerássemos na
sua, existência social. Vimos no § 30 deste livro que mesmo
a máquina tomada fora do seu laço social é simplesmente
um pedaço de metal, madeira, etc.. Porém ela possui ao
mesmo tempo uma existência social como objeto utilizado
pelo homem, no processo de trabalho. Da mesma forma:
fora da sua existência física como um pedaço de papel, ele
tem também sua vida social; ele é compreendido como livro
no processo da leitura. E é aqui que precisamente ele se
manifesta como ideologia concentrada, como meio de
produção ideológica.

Se abordamos por esse lado a questão da acumulação


de cultura intelectual, veremos sem esforço que esta
acumulação tem precisamente lugar sob formas concretas, e
de certa forma se precipita em deposito palpável, material.
Tanto mais o domínio da cultura intelectual é «rico», mais
grandioso, mais amplo é o domínio desses «fenômenos
sociais materializados». Para falar por metáforas (e sem

421
A Teoria do Materialismo Histórico N. Bukarin

esquecer que se trata apenas de uma analogia), a carcaça


material da cultura intelectual constitui «o capital de base»
desta cultura; é tanto mais rica quanto ele é mais
considerável, o que novamente, «em última análise»,
depende do nível de evolução das forças produtivas
materiais. Inscrições ingênuas, mascaras, ídolos grosseiros,
desenhos sobre pedra, monumentos artísticos, manuscritos
de papiros, «livros» de pergaminho, etc. — e mais tarde
galerias, museus, jardins botânicos, laboratórios, jornais,
etc. — tudo isto é a experiência acumulada, materializada da
humanidade. As novas prateleiras de livros, com os livros
novos que constantemente se ajuntam aos que já lá estão,
mostram-nos, de uma forma concreta, a colaboração de uma
quantidade de gerações que se sucedem umas às outras
numa sequencia ininterrupta.

50. O PROCESSO DE REPRODUÇÃO DA VIDA SOCIAL NO


SEU CONJUNTO

Podemos agora recapitular brevemente.

Entre a sociedade e a natureza produz-se


constantemente uma «troca de substancias», um processo
de reprodução social, de trabalho que se repete por ciclos e
que constantemente substitui o que está errado, alarga sua
base, paralelamente à revolução das forças produtivas, o que
dá à sociedade a possibilidade de alargar constantemente as
fronteiras da sua vida.

422
A Teoria do Materialismo Histórico N. Bukarin

Mas o processo da produção de produtos materiais é ao


mesmo tempo um processo de relações econômicas dadas.

«O processo capitalista de produção,


diz Marx, considerado como qualquer
coisa de contínuo, isto é, como processo
de reprodução, não produz unicamente
mercadorias, mas também produz e
reproduz esta relação mesma que se
chama capital, isto é, de um lado o
capitalista, e doutro, o operário
assalariado». (Capital, tomo I).

Esta fórmula de Marx não é somente verdadeira para o


modo capitalista de produção; é verdadeira em geral. Se, por
exemplo, tomarmos a economia escravagista da
antiguidade, cada ciclo de produção será acompanhado por
este fato de que o senhor de escravos receberá a sua parte,
os escravos a sua, que também no ciclo seguinte o dono de
escravos desempenhará um papel, o escravo outro; que em
caso de ampliação da reprodução a mudança consistirá
apenas no aumento da parte do senhor, do seu poder, do
número de seus escravos, da massa de trabalho suplementar
por ele fornecida. Assim o processo de reprodução material
é ao mesmo tempo um processo de reprodução das relações
de produção, o envoltório histórico dentro do qual ele se
coloca. Doutra parte, o processo de reprodução material é
um processo de constante reprodução das forças operárias
correspondentes.

423
A Teoria do Materialismo Histórico N. Bukarin

«O homem ele próprio, diz Marx,


considerado simplesmente como força
trabalhadora em si, é um objeto da
natureza, uma coisa, viva sem dúvida e
consciente de ser uma coisa; e mesmo
seu trabalho aparece com uma
exteriorização concreta da sua
força»(Capital, tomo I).

Mas nos diversos períodos históricos, em correlação com


a técnica da sociedade, o modo de produção, etc., tem-se
forças operárias definidas, a saber, forças operárias de
qualificação adequada. O processo de reprodução reproduz
constantemente esta qualificação. Noutras palavras: o
processo de reprodução social reproduz não somente as
coisas, mas também «as coisas vivas», isto é, operários
qualificados de forma determinada; ele reproduz também as
relações entre eles; ele traz, no caso de alargamento, as
correções correspondentes ao novo nível das forças
produtivas, dispondo nesse caso de outros homens, de outra
forma qualificados, doutras «máquinas vivas», de outros
postos do campo de trabalho. Mas deixa imutáveis (se não
se trata de um período revolucionário de transição) o plano
fundamental das relações de produção, reproduzindo-o
constantemente numa escala cada vez maior.

Se se quer dar ao conjunto das diferentes forças de


qualificação das forças de trabalho o nome
de fisiologia social, pode-se dizer que o processo de

424
A Teoria do Materialismo Histórico N. Bukarin

reprodução reproduz constantemente a economia da


sociedade, e, por consequência, sua fisiologia.

Mas ao mesmo tempo que o processo de reprodução


material, gira toda a gigantesca máquina da vida social; há
a reprodução das relações entre classes, reprodução das
relações de organização do Estado, reprodução das relações
que dizem respeito aos diferentes ramos do trabalho
ideológico. Paralelamente a essa reprodução de conjunto da
vida social, reproduzem-se também constantemente
as contradições sociais. As contradições parciais que
aparecem como ruptura do equilíbrio consecutiva a um
choque vindo da evolução das forças produtivas, se resolvem
constantemente pela reconstrução parcial da sociedade nos
quadros do modo de produção que é o seu. Mas as
contradições fundamentais, que decorrem da essência
mesma da estrutura econômica dada, estas se reproduzem
sobre uma base que constantemente se alarga, até que seu
crescimento alcance tais dimensões, que elas conduzem à
catástrofe. Desaba então toda a antiga formação das
relações de produção, e para que a sociedade possa se
desenvolver, é preciso que se estabeleça uma nova forma de
relações de produção.

«A evolução das contradições duma


forma histórica dada de produção é o
único meio histórico da sua deslocação e
reforma».(Capital, t. 1).

425
A Teoria do Materialismo Histórico N. Bukarin

Este momento se acompanha de uma interrupção


temporária do processo de reprodução, da sua ruptura, que
encontra sua expressão na ruína duma parte das forças
produtivas. A refundição geral de todo aparelho de trabalho
humano, a reorganização de todos os laços humanos conduz
a um novo equilíbrio, e a sociedade começa um novo ciclo
histórico de sua evolução, alargando sua base técnica e
acumulando sua experiência social, que cada vez serve de
ponto de partida a todo movimento para frente, qualquer que
ele seja.

426
A Teoria do Materialismo Histórico N. Bukarin

CAPÍTULO VIII

AS CLASSES E A LUTA DE CLASSES


51. CLASSE, CONDIÇÃO, PROFISSÃO

É-nos agora indispensável entrar mais a fundo na


questão das classes e da luta de classes. Sabemos já pelo
que precede o papel relevante que desempenham as classes
na evolução da sociedade humana. A própria estrutura
social, em uma sociedade fundada sobre as classes, é
determinada pela sua divisão em classes, as relações mutuas
dessas classes, etc.; toda mudança importante na vida
social, é de uma maneira ou de outra ligada à luta de classes;
toda passagem da sociedade de uma forma a outra se realiza
por uma luta sem tréguas entre as classes. É precisamente
por isso que Marx e Engels começaram o Manifesto
Comunista por estas palavras:

«Até os nossos dias, a história de toda a


sociedade não tem sido senão a história
das lutas de classes».

Que é, pois, uma classe?

Pelo que foi exposto mais acima, já demos, em tragos


largos, a resposta a esta pergunta. Precisamos agora
examinar o assunto mais de perto. Já vimos que por classe
social se entende um conjunto de pessoas desempenhando

427
A Teoria do Materialismo Histórico N. Bukarin

um papel análogo na produção, tendo no processo da


produção, relações idênticas com outras pessoas, sendo
essas relações expressas também nas coisas (meios de
trabalho). Daí decorre que, no processo de repartição dos
produtos, cada classe é unida pela identidade de sua fonte
de rendimentos, pois as relações de repartição dos
produtos são determinadas pela relação de sua produção. Os
trabalhadores têxteis e metalúrgicos não constituem duas
classes diferentes, porém uma únicaclasse, pois diante de
outros homens (engenheiros, capitalistas) eles se encontram
em relações idênticas. Do mesmo modo os possuidores de
uma mina de carvão, duma usina de ladrilhos e duma fabrica
de espartilhos formam uma única categoria de classe: pois,
mau grado as diferenças físicas entre as coisas com as quais
se ocupam, eles estão perante os homens, no processo da
produção, em relações idênticas (de «domínio»), as quais se
exprimem também nas coisas (O Capital).

Assim, na base da divisão da sociedade em classes se


encontram as relações de produção. Um dos modos de ver
mais comuns, é a divisão em classes segundo o índice
«ricos» e «pobres». Se um homem tem no bolso dinheiro e
um outro tem duas vezes mais, segue-se que eles pertencem
a duas classes diferentes. Considera-se aí ou a dimensão das
posses, ou o nível de vida. Um sociólogo inglês (D'Ett)
elaborou um quadro completo de divisão em classes: a
primeira classe, a mais baixa (os pés rapados) tem um
orçamento de despesas de 18 «shillings» por semana; a
segunda classe, de 25 «shillings»; a terceira, de 45, etc.. (Cf.

428
A Teoria do Materialismo Histórico N. Bukarin

o trabalho muito minucioso, e além disso marxista, do


professor S. I. Solntsev: As classes sociais. Os momentos
mais importantes na evolução do problema das classes, e as
doutrinas fundamentais (em russo). Tomsk, 1919. p. 268-
399). Por simples que seja semelhante maneira de ver, ela
é perfeitamente ingênua e absolutamente falsa. Segundo
esse ponto de vista, por exemplo, seriamos levados, na
sociedade capitalista, a excluir do proletariado um operário
metalúrgico ou um linotipista, e em troca, inscrever um
camponês pobre ou um artista na classe operária. A «classe»
mais revolucionária seria então o «lumpen-proletariat» (o
proletariado andrajoso), e seria nele que se deveria fundar
as esperanças como força que deveria realizar a passagem a
uma forma superior de sociedade. De outro lado, dois
banqueiros, dos quais um é três vezes mais rico que o outro,
deveriam ser agrupados em classes diferentes. Ora, a
experiência quotidiana nos mostra que categorias diferentes
de operários se reúnem muito mais rapidamente na ação, o
que não acontece com operários e artistas, e operários e
camponeses, etc.. O camponês não se sente membro da
mesma classe que o operário. Ao contrário, dois banqueiros,
quando mesmo um deles seja dez vezes mais rico do que o
outro, se sentem membros de uma única família bem amada.

«O conteúdo da bolsa —
escrevia Marx na Miséria da Filosofia —
é uma diferença puramente
quantitativa, com o auxilio da qual dois
indivíduos de uma única e mesma

429
A Teoria do Materialismo Histórico N. Bukarin

classe podem excelentemente ser


lançados um contra o outro».

Em outros termos, a diferença de «riqueza» não pode


servir de critério suficiente para definir a classe, ainda que
tendo uma ação determinada mesmo nos quadros de uma
única e mesma classe.

Outra teoria bastante espalhada é a que toma por


fundamento da divisão da sociedade em classes o processo
da repartição, isto é, a partilha da renda social. Falando-se,
por exemplo, da sociedade capitalista, a partilha da renda
em três partes principais: lucro, renda e salário, serve de
base à delimitação de três classes: capitalistas, proprietários
territoriais, proletários (assalariados); a parte de cada um
deles, sendo dada uma grandeza determinada da renda
social, não pode ser aumentada senão à custa da parte de
uma das outras classes. Eis porque os membros de uma
classe são ligados entre si pela comunidade e
homogeneidade de seus interesses de um lado, e são por
outro lado opostos às outras classes pela contradição de seus
interesses com os dessas outras classes.

Se esta teoria não nos leva a procurar quem recebe mais


ou quem recebe menos, e a raciocinar como acima, então se
apresenta inevitavelmente uma questão: por que as pessoas
ligadas entre si como classe, se reproduzem como classe?
Porque, na sociedade capitalista, existem diferentes espécies
de rendimentos? Onde está a causa da estabilidade dessas

430
A Teoria do Materialismo Histórico N. Bukarin

diferentes espécies de rendimento? É bastante apresentar


esta questão para que se veja de um só golpe a realidade.
Esta estabilidade repousa sobre as relações entre os homens
e os meios de produção, os quais por sua vez exprimem as
relações entre os homens no processo da produção. O papel
dos homens na produção e a posse dos meios de produção,
isto é, a «repartição dos homens» e a «repartição dos meios
de produção», são elementos estáveis nos limites de um
modo de produção dada. Desde o instante que dizeis
capitalismo, tereis de um lado uma categoria de pessoas
dirigindo o processo da produção e, ao mesmo tempo,
dispondo de todos os meios de produção, e de outro lado
uma categoria de pessoas trabalhando sob o comando das
primeiras, submetendo-lhes sua força de trabalho e
produzindo para elas valores mercantis. É precisamente por
esta razão que, no domínio da repartição dos produtos do
trabalho (isto é, na partilha da renda) se encontram
igualmente leis determinadas. Em outros termos, chegamos
à constatação de que os aspectos mais importantes da
produção — «repartição dos homens», «repartição das
coisas» — constituem igualmente as bases das relações de
classes.

Com efeito, nós não poderíamos chegar a outra


conclusão. Abordemos, pois, a questão por outro lado;
vamos formulá-la de um modo mais geral. É claro que cada
classe é um certo «complexo real», isto é, um conjunto de
pessoas submetidas sem cessar a ações recíprocas, de
«homens viventes» que mergulham por suas raízes na vida

431
A Teoria do Materialismo Histórico N. Bukarin

da produção e, por seus pensamentos, elevam-se até às


nuvens. É um sistema humano, parcial e particular no
interior do grande sistema que nós chamamos sociedade
humana. Segue-se evidentemente que nós devemos abordar
a classe pelomesmo lado que nós abordamos
a sociedade. Em outros termos: a análise das classes deve
partir da produção. Naturalmente as classes se diferenciam
uma da outra por diferentes aspectos: Sobre o plano da
produção, sobre o plano da repartição, sobre o plano político,
sobre o plano ideológico, sobre o plano psicológico. Um plano
depende do outro, todos esses fenômenos são ligados
reciprocamente um ao outro: não se podem ligar rebentos
burgueses a raízes econômicas do proletariado, o que seria
pôr uma sela em uma vaca. Mas, precisamente este laço está
condicionado, no fim de contas, pela situação da classe no
processo da produção. Eis porque se deve definir uma classe
segundo o seu índice deprodução.

Em que se distingue a classe social da condição


social? (as «ordens» do antigo regime). Por classe, já o
sabemos, entende-se uma categoria de pessoas reunidas por
um papel comum no processo da produção, um conjunto de
pessoas das quais cada uma se encontra em relações
semelhantes em face de outros participantes do processo da
produção. Ao passo que por condição entende-se grupos de
pessoas unidas por sua situação comum na ordem jurídica
da sociedade. Os grandes proprietários territoriais são de
uma classe. Os nobres (em russo: «dvorianié») são uma
condição. Por que? Porque os grandes proprietários

432
A Teoria do Materialismo Histórico N. Bukarin

territoriais são assinalados por um índice determinado na


economia e produção, ao passo que não é esse o caso dos
nobres. O nobre tem direitos jurídicos determinados, fixados
pela lei do Estado em que ele vive, e privilégios ligados à sua
«nobre condição». Mas, economicamente, este nobre pode
estar de tal modo empobrecido que pode acontecer
justamente que ele reúna os dois extremos; ele, pode ser
mesmo um proletário «pé-rapado», mas como condição ele
não cessa de ser nobre (tal o «barão dos Bas-Fonds»,
de Máximo Gorki). Tomemos outro exemplo. Sob o governo
do czar, lia-se sobre o passaporte de muitos operários:
«Fulano, camponês de tal governo, tal distrito, tal cantão».
Este camponês nunca trabalhou como camponês; ele nasceu
na cidade e tinha desde a sua infância trabalhado como
operário assalariado. Vê-se aqui claramente a diferença
entre a classe e a condição (isto é, no ponto de vista das leis
czaristas que dividiam assim os homens segundo as suas
condições): este homem, pelo seu índice de classe é um
operário, e pelo seu índice de condição, ele é um camponês.
Mas aqui apresenta-se desde logo a questão seguinte: nós
sabemos que a «política» (nela compreendido o direito) é a
«expressão concentrada da economia». Podemos então
parar no direito, sem descer mais profundamente?

Certamente que não; não dizíamos nós há pouco,


justamente raciocinando sobre as classes, que era
importante para nós, do ponto de vista do método, abordar
os agrupamentos sociais expressamente pelo lado da

433
A Teoria do Materialismo Histórico N. Bukarin

produção? Como então pretender resolver a questão pelo


lado das «condições»?

Ouçamos antes de tudo o que diz sobre esta questão o


professor Solntsev, o autor do trabalho mais solido sobre as
classes:

«Os grupos de condições socialmente


desiguais aparecem, diz ele, não sobre o
terreno das relações do processo do
trabalho, nem sobre o terreno das
relações econômicas, mas antes de tudo
sobre o terreno das relações do Direito e
do Estado. A condição é uma categoria
jurídica e política, e como tal pode se
manifestar sob diferentes formas...
Diante da diferença da divisão em
condições, a de classes aparece sobre
as bases das relações econômicas...»
(loc. cit., p. 22).

Todavia, não é a condição unicamente a classe


«revestida» de uma categoria «juridico-política»? A isto,
Solntsev responde negativamente. Entretanto, ele próprio
indica que, por exemplo, no mundo antigo, «a ordem das
condições não podia deixar de refletir as diferenças de
classes...» (loc. cit., 25), que «a luta de classes reveste a
forma particular da luta de condições», (loc. cit, 26). Esta

434
A Teoria do Materialismo Histórico N. Bukarin

posição extremamente embrulhada da questão obriga-nos a


esforçar-nos em procurar uma fórmula mais clara.

Tomemos um exemplo. No tempo da grande revolução


francesa, designava-se sob o nome de «terceiro estado»
(isto é, «terceira condição») uma mistura de diversas
classes, ainda mal diferenciadas então umas das outras: ele
compreendia a burguesia, os operários e as classes
intermediarias (artífices, pequenos comerciantes, etc.).
Todos pertenciam ao terceiro estado. Por que? Porque,
juridicamente, eles não eram «nada» em comparação com
os proprietários territoriais feudais privilegiados. O «terceiro
estado» era a expressão jurídica do bloco das classes
levantadas contra os senhores do poder. Logo, classe e
condição (ou «estado») podem não coincidir. Mas sob a
crosta da condição oculta-se necessariamente a realidade de
classe (há aqui uma condição, e não uma, porém várias
classes, na verdade classes, e não alguma coisa de incerto
como aparecia pouco mais ou menos a Solntsev).

Por outro lado, a não coincidência entre a classe e a


condição pode ser de gênero diverso, como já falamos mais
atrás: um homem pode pertencer a uma «classe inferior» e
a uma «condição superior» (por exemplo, um nobre
economicamente arruinado servindo de porteiro ou de
chauffeur); e vice-versa, ele pode pertencer a uma condição
inferior, e à classe dirigente superior (tal um grande
comerciante, saído dos camponeses abastados, dos
«kulaks»). Isto, que quer dizer? Onde haverá aqui um

435
A Teoria do Materialismo Histórico N. Bukarin

«conteúdo de classe sob uma crosta econômica»? É claro que


isso não existe. Como pois exprimir teoricamente este «fato
irredutível»?

Para encontrar, também aqui, a solução exata da


questão, é indispensável estudá-la não do ponto de vista de
um caso isolado, mas do ponto de vista das
relações típicas nos quadros de uma organização econômica
determinada. Fixemos nossa atenção sobre a circunstância
fundamental seguinte: as condições foram suprimidas pelas
revoluções burguesas, pelo desenvolvimento das relações
capitalistas. Se examinarmos por que o capitalismo não pôde
tolerar a existência das condições, chegaremos sem
dificuldade às deduções seguintes: nas formas pré-
capitalistas da sociedade, todas as relações eram muito mais
conservadoras, o ritmo da vida muito mais lento, as
mudanças muito menos frequentes que no capitalismo. A
classe reinante — a aristocracia territorial — era aí, podemos
dizer, hereditária. E é essa espantosa imobilidade das
relações que tornam possível a firmeza dos privilégios de
classe de uma parte, e das obrigações de outra, por uma
quantidade de normas jurídicas; essa imobilidade permitia
revestir uma classe (ou classes) com a denominação de
«condição». Assim, no seu conjunto as «condições»
marchavam lado a lado com as classes, ou melhor, grupos
de classes, em sua oposição a uma classe qualquer. Mas a
penetração das relações capitalistas comerciais, muito mais
fluida e móbil, deu um golpe violento nessa correlação: «O
homem de baixa condição» furou, os «novos ricos»

436
A Teoria do Materialismo Histórico N. Bukarin

apareceram; o fenômeno tornou-se vulgar; uma parte dos


proprietários territoriais passou a ser constituída pelos
capitalistas, uma outra empobreceu-se e caiu na miséria, a
terceira se mantém no seu antigo nível, etc.. Deste modo a
mobilidade das relações capitalistas tirou toda a base à
existência das condições. O período transitório de
decomposição das relações feudais tinha tido sua expressão
na ausência crescente de correlação entre o conteúdo
econômico das classes e o seu invólucro jurídico de
condições. Um tal período desenvolveu a falta de correlação,
que devia inevitavelmente conduzir à queda de todo o
sistema das condições. O invólucro das condições se
manifestou incompatível com o desenvolvimento das
relações de produção capitalista, do mesmo modo que o
invólucro das classes se manifestou por sua vez incompatível
com a evolução futura das forças produtivas. Eis por
que Marxescrevia na Miséria da Filosofia:

«A condição da libertação da classe


operária é a abolição de todas as
classes, exatamente como a condição do
terceiro estado... era a supressão de
todas as «ordens».

E Engels, em seu comentário, anexava a esta página a


nota seguinte:

«Trata-se aqui das «condições (ou


«ordens») no sentido histórico das

437
A Teoria do Materialismo Histórico N. Bukarin

«condições» do Estado feudal, das


«condições» gozando de privilégios
definidos e delimitados. A revolução
burguesa aboliu as condições com todos
os seus privilégios. A sociedade
burguesa conhece somente as classes.
Eis por que designar o proletariado com
o nome de «quarto estado» está em
contradição absoluta com a história».

Assim, para o período dos sistemas pré-capitalistas


estáveis, as condições ou «ordens» eram a expressão
jurídica das classes; a não coincidência crescente destes
elementos (a ruptura de equilíbrio entre o conteúdo de classe
e a forma jurídica de condição) foi provocada pelo
desenvolvimento das relações capitalistas e pela
decomposição das antigas classes feudais, tanto as inferiores
como as superiores: no sistema feudal, o camponês como
classe coincidia em geral com o camponês como condição;
porém, mais tarde, os camponeses formam a burguesia
agrícola e o proletariado, duas classes opostas: ora, a forma
«condição» fica a mesma: é claro que ela devia desaparecer.

Convém agora definir exatamente uma terceira


categoria ligada às questões estudadas. Convém saber o que
é profissão. É claro que a profissão está ligada ao processo
do trabalho. Ela se diferencia da classe, em primeiro lugar
porque a repartição em profissão não segue as relações dos
homens entre si, mas suas relações com as coisas; ela

438
A Teoria do Materialismo Histórico N. Bukarin

considera sobre que coisas e com que coisas eles trabalham,


que coisa eles elaboram. O serralheiro se distingue do
marceneiro e do pedreiro, não por que eles tenham relações
diversas com os capitalistas, mas porque o serralheiro
trabalha o metal, ao passo que o marceneiros trabalha a
madeira e o pedreiro a pedra.

Entretanto, não se pode dizer que não se trata


aqui senão de coisas, pois a profissão é, apesar de tudo, ao
mesmo tempo uma relação social;no processo da produção,
em que operários de profissões diversas são ligados entre si
pelas normas do processo da produção, há evidentemente
entre os homens relações determinadas. Porém, por mais
diferentes que sejam estas relações, todas elas se apagam
diante das diferenças existentes sob o ponto de vista
principal e fundamental: as diferenças entre o trabalho
dirigente e o trabalho executante, as diferenças expressas
pelas relações de propriedade.

A divisão em profissões, repousando sobre as relações


entre os homens, as quais decorrem de suas relações
técnicas com os instrumentos, os métodos e o objeto do
trabalho, não coincidem de nenhum modo nem com a divisão
do trabalho em trabalho dirigente e trabalho subordinado,
nem com a «repartição dos meios de produção» que lhe
correspondem, isto é, com as relações de propriedade sobre
estes meios de produção.

439
A Teoria do Materialismo Histórico N. Bukarin

Eis porque é falsa a afirmação do professor Solntsev, a


saber que a profissão é "uma categoria natural-técnica"
(sublinhada pelo autor, N. B.), que ela é inata nas relações
humanas mesmo no período pré-histórico, e em todos os
estádios viventes, que "é uma categoria não histórica, não
de ordem social" (op, cit., p. 21) enfim, que é uma categoria
eterna. A profissão torna-se profissão porque uma espécie
determinada de trabalho liga-seordinariamente ao homem
durante a vida: o sapateiro está por toda sua vida ligado ao
seu banco. Mas nada prova que tivesse sido sempre assim e
que será sempre assim. O automatismo crescente da técnica
libertará os homens desta necessidade e mostrará quanto
esta categoria, como as outras, era simplesmente de ordem
histórica.

Agora que já vimos a diferença que separa a classe da


condição e da profissão, é-nos preciso parar ainda nesta
questão: quais são as classes existentes. Nós julgamos poder
dar, pouco mais ou menos, a divisão seguinte:

I — As classes fundamentais de uma determinada forma


social (as classes no sentido próprio da palavra). As classes
deste gênero são em número de duas: a classe dirigente e
detentora dos meios de produção de um lado; a classe
executante, privada dos meios de produção e trabalhando
para a primeira, do outro lado. A forma especifica, particular
desta relação de exploração econômica e de servidão
determina também a forma da sociedade de classe que ela
caracteriza. Por exemplo: se as relações entre a classe

440
A Teoria do Materialismo Histórico N. Bukarin

dirigente e a classe executante se reproduzem por meio da


compra de força de trabalho no mercado, há capitalismo; se
elas se reproduzem por meio da compra de homens ou da
pilhagem, ou por outros meios, mas sem compra de
nenhuma força de trabalho, e se, além disto, a classe
dirigente dispõe não somente da força de trabalho, mas «da
alma e do corpo» do explorado, há escravidão, etc..

No que concerne ao capitalismo, considera-se


habitualmente que há nele três classes fundamentais. Isto
parece confirmado por uma certa passagem do fim do tomo
III do Capital, de Marx, onde o "manuscrito é interrompido",
e onde está encaixada uma análise das classes da sociedade
capitalista. Eis a passagem:

"Os proprietários de uma força de


trabalho, os proprietários do capital e os
proprietários fundiários, cujas fontes
respectivas de rendas são o salário, o
lucro e a renda, constituem as três
grandes classes da sociedade
contemporânea, repousando sobre o
modo capitalista de produção."

Mas do fato de que o grupo dos proprietários fundiários


forma uma grande "classe", não se segue que ela seja uma
das classes fundamentais. Assim, em Marx, nós
encontramos a seguinte passagem, à qual se refere também
mui judiciosamente o professor Solntsev:

441
A Teoria do Materialismo Histórico N. Bukarin

"O trabalho passado e o trabalho vivo


são os dois fatores em oposição mutua
sobre os quais repousa a produção
capitalista, o capitalista e o operário
assalariado são os únicos funcionários e
fatores da produção, cujas relações
mutuas decorrem do caráter da
produção capitalista.... A produção,
como o nota James Mill, poderia sem
inconveniente continuar a sua marcha,
mesmo que os proprietários fundiários
particulares desaparecessem e que o
seu lugar fosse tomado pelo Estado...
Este fato, na origem do qual se encontra
a essência mesma do modo capitalista
de produção em oposição ao modo
feudal, ao modo antigo, etc., — este fato
de que as classes participando
diretamente na produção se resumem a
duas, capitalistas e assalariados,
excluídos os proprietários
fundiários (sublinhado por nós, N. B.),
os quais não vêm senão post festum, e
graças a relações determinadas de
propriedade que não apareceram no
terreno do modo capitalista de
produção, mas que para aí se
transportaram do seio da economia
feudal(sublinhado por nós, N. B.)...

442
A Teoria do Materialismo Histórico N. Bukarin

este fato constitui a diferença


especifica da produção capitalista e
sua expressão teórica adequada."
(Marx: Teoria sobre a mais valia. T. II,
pp. 292-299).

E Marx fala do mesmo modo quando se refere à questão


da nacionalização da terra.

As classes fundamentais se subdividem por sua vez


em sub-classes, em frações diversas: por exemplo, na
sociedade capitalista, a burguesia dominante fraciona-se em
burguesia indústria!, burguesia comercial, banqueiros, etc.;
a classe operária se fraciona em operários qualificados e não
qualificados.

II — As classes intermediarias. Podemos aqui enumerar


agrupamentos econômico-sociais que, não sendo restos de
uma ordem antiga, e aparecendo como indispensáveis ao
regime no qual eles se encontram, ocupam um lugar
intermediário entre a classe dirigente e a classe explorada.
Tal é, por exemplo, na sociedade capitalista, a classe dos
técnicos intelectuais.

III — As classes de transição. — Contamos aqui grupos


vindos de uma forma precedente da sociedade, e que, na
forma atual, se decompõem, dando nascimento a diversas
classes com funções opostas na produção. Tais são, por
exemplo, na sociedade capitalista, os artífices e os
camponeses. É uma herança do regime feudal, que dá

443
A Teoria do Materialismo Histórico N. Bukarin

nascimento a elementos tanto burgueses como proletários.


Tomemos o campesinato. No capitalismo ele se decompõe
constantemente em camadas diversas, ou, como diz a
ciência econômica, ele se diferencia: do camponês médio sai
o pequeno kulak; do grande camponês, um açambarcador
qualquer; depois, um degrau mais e vós tereis o mais
autentico burguês, e do outro lado, um proletariado se forma
igualmente por graus: camponês pobre, camponês sem
cavalo, meio-operário ou operário temporário, por fim
proletário puro.

IV — Os tipos de classes mistas. Contamos aqui grupos


que pertencem, ao mesmo tempo, por um lado a uma classe
e por outro a outras classes. Assim um ferroviário que possui
um pequeno sitio e toma ao seu serviço um jornaleiro, é, em
relação à companhia de caminhos de ferro, um operário, e
em relação ao seu empregado, um patrão, etc..

V — Enfim, convém classificar à parte o que se chama


os grupos dos «desclassificados», isto é, os grupos de
pessoas saídas dos quadros de todo trabalho social: lumpen
proletariat, mendigos, «boêmios», vagabundos e outros.

Quando nós analisamos um «tipo abstrato» de


sociedade, isto é, uma forma social qualquer pura, nós nos
preocupamos somente, ou quase somente, com as classes
fundamentais. Ao contrário, quando vamos observar no seu
movimento a realidade concreta, então é natural que temos

444
A Teoria do Materialismo Histórico N. Bukarin

de contar com toda a miscelânea dos tipos das relações


sociais e econômicas.

A causa geral da existência das classes é determinada


por Engels no Anti-Duhring, da maneira seguinte:

"... Todas as contradições históricas que


até o presente têm existido entre
exploradores e explorados, governantes
e oprimidos, têm as suas raízes na
produtividade relativamente não
evoluída do trabalho humano. Desde
que a população trabalhando
efetivamente está de tal modo absorvida
pelo seu trabalho indispensável que não
lhe sobra tempo para cuidar dos
negócios gerais da sociedade inteira —
divisão do trabalho, negócios do Estado,
arte, ciência, etc. — enquanto isso for
assim deve sem dúvida existir uma
classe particular, que, livre do
verdadeiro trabalho, se ocupe dessas
coisas, sem desfalecimentos, graças ao
privilegio de que goza de lançar um
fardo cada vez mais pesado sobre os
ombros das massas trabalhadoras".

445
A Teoria do Materialismo Histórico N. Bukarin

Noutra passagem. Engels repete quase a mesma coisa,


dizendo que a sociedade se divide em duas classes, e
acrescenta, para resumir:

"lei da divisão do trabalho, eis em


suma o que está na base da divisão
em classes".

O professor Solntsev, criticando G. Schmoller, o qual vê


na divisão do trabalho a fonte principal da formação das
classes, replica à referencia por ele feita de Engels, da
maneira seguinte:

"Engels põe efetivamente o processo da


formação das classes em próxima
ligação com o processo de divisão do
trabalho; mas... para Engels, a divisão
do trabalho não é senão uma condição
natural e técnica indispensável da
formação das classes sociais e não a sua
causa; a causa fundamental da
formação das classes, Engels a
via, não na divisão do trabalho, mas nas
relações de produção e de repartição,
isto é, no processo de caráter
puramente econômico", (op. cit., p. 203,
sublinhado por nós, N. B.).

Como já vimos acima, examinando a questão da


profissão, não se pode opor a divisão do trabalho às

446
A Teoria do Materialismo Histórico N. Bukarin

relações de produção, pois que a divisão do trabalho é


ela também um dos aspectos das relações de produção. O
erro de Schmoller (Cf. G. Schmoller: Die Tatschen der
Arbeitsteilung "Os fatos da divisão do trabalho". Jahrbucher,
1890, e do mesmo: Das Wesen der Arbeitsteilung und
Klassenbildung "A divisão do trabalho e a formação das
classes", Jahrbucher, 1890), consiste em que ele apaga a
diferença entre divisão profissional e divisão em classes,
esforçando-se por espalmar as contradições de classe
segundo o espírito da escola orgânica, A teoria de L.
Gumplovitch e de F. Oppenheimer sobre a origem das
classes, tirada da "violência extra-econômica"' não
compreende a diferença entre uma teoria abstrata da
sociedade e a marcha concreta dos acontecimentos
históricos. Na realidade histórica, o papel da violência extra-
econômica, ou conquista foi muito grande e teve sua
influência sobre o processo da formação das classes. Mas em
uma pesquisa puramente teórica, é indispensável deixar isto
de lado. Suponhamos que analisamos "uma sociedade
abstrata" na sua evolução: mesmo aí apareceriam classes,
em virtude do que se chamam as "causas internas da
evolução", como o demonstraEngels. Em suma, o papel das
conquistas etc., não é senão um fator (muito importante) de
complicações.

52. O INTERESSE DE CLASSE

Vimos pelo que precede, que as classes são grupos


particulares de homens, «complexos reais» diferindo uns dos

447
A Teoria do Materialismo Histórico N. Bukarin

outros pelo seu papel na produção, que encontra sua


expressão nas relações de propriedade. Mas sabemos
também que com estes dois lados do processo de produção
coexiste um terceiro lado — o processo de repartição dos
produtos sob tal ou qual forma. A produção corresponde à
distribuição.

Às formas de produção correspondem as de repartição.


À posição das classes na produção, corresponde sua posição
na repartição. O antagonismo entre classe dirigente e classe
dirigida, classe detendo em monopólio os meios de produção
e classe não possuindo os meios de produção, acha a sua
expressão no antagonismo das rendas, na contradição entre
as partes de produtos elaborados cabendo a cada classe na
partilha da massa total dos produtos. Uma semelhante
diferença de condição de existência (maneira de viver) entre
classes determina também a sua «consciência». As
contradições entre condições de vida (maneira de viver)
acham a sua expressão a mais imediata na formação
de interesses de classe. A expressão a mais primitiva e ao
mesmo tempo a mais comum dos interesses de classe é
o desejo das classes de aumentar sua parte na repartição da
massa dos produtos.

No sistema da sociedade fundada sobre as classes, o


processo da produção é ao mesmo tempo um processo de
exploração econômica dos trabalhadores manuais. Eles
produzem mais do que recebem. E não somente porque uma
parte dos produtos fabricados (na sociedade capitalista,

448
A Teoria do Materialismo Histórico N. Bukarin

valores) é destinada a ampliar a produção (na sociedade


capitalista, à acumulação), mas também porque a classe
trabalhadora sustenta os proprietários dos meios de
produção, trabalha para eles. Eis porque os interesses mais
gerais da minoria no poder podem ser formulados como a
aspiração de manter e ampliar as possibilidades da
exploração econômica, e os interesses da maioria explorada,
como a aspiração de se libertar dessa exploração. Ao passo
que a primeira fórmula dada acima fala somente de uma
sociedade dada e não sai de seus limites, a segunda implica
a questão da própria existência duma determinada
sociedade.

Mas a estrutura econômica de uma sociedade é, já o


sabemos, fixada na sua organização de Estado e reforçada
por uma quantidade infinita de superestruturas. Não há pois
motivo para nos admirarmos de que o interesse econômico
de classe tome a mascara de interesse político, cientifico,
religioso, etc.. Assim os interesses de classe se desenvolvem
em todo um sistema abraçando os mais diversos domínios
da vida social. Esses interesses sistematizados, reunidos em
feixe pelo interesse geral de classe, conduz à construção do
que se chama o «ideal social», que aparece sempre como a
quinta-essência dos interesses de classe.

Examinando a questão dos interesses de classe, é


preciso fixar ainda a nossa atenção sobre alguns pontos.

449
A Teoria do Materialismo Histórico N. Bukarin

É indispensável, primeiramente, distinguir os interesses


duráveis e gerais e os interesses transitórios,
passageiros. Os interesses «passageiros» podem estar em
contradição objetiva com os interesses duráveis. Do ponto
de vista dos interesses transitórios, por exemplo, os
operários ingleses têm agido judiciosamente vivendo em paz
com a burguesia inglesa e defendendo-a durante a guerra
imperialista; eles têm, com essa atitude, defendido mesmo
a alta dos salários de que eles gozam à custa dos
trabalhadores coloniais. Mas ao mesmo tempo, rompendo
com esse ato a solidariedade dos operários em geral e
fazendo frente única com os «seus» patrões, eles
prejudicaram os interesses gerais e duráveis de sua própria
classe.

Em segundo lugar, é indispensável distinguir, por um


lado os interesses corporativos, os interesses de grupo, e
por outro os interesses gerais de classe. Por exemplo,
quando, na sociedade capitalista, a burguesia no poder
suborna uma aristocracia operária (operários qualificados),
os interesses particulares deste grupo não coincidem mais
com os interesses de todo o conjunto da classe operária: são
interesses de grupo e não de classe; ou então, quando, em
tempo de guerra, os especuladores da burguesia infringem
tanto quanto podem as regras comerciais elaboradas pelo
seu próprio estado burguês, o qual faz a guerra no interesse
da burguesia como classe. Vêem-se aqui os interesses de
grupo da fração comerciante-especuladora (os «tubarões»)

450
A Teoria do Materialismo Histórico N. Bukarin

da burguesia, interesses que em semelhante caso se afastam


dos interesses da burguesia como classe.

Terceiro, é indispensável não perder de vista a mudança


de princípio da direção dos interesses correntes de uma
classe, que se produz ao mesmo tempo que a mudança de
princípio de sua situação social. Tomemos um exemplo. Na
sociedade capitalista, o proletariado tem por interesse o mais
durável e o mais geral a supressão da ordem capitalista. Por
conseguinte, é segundo esse plano que se estabelecem seus
interesses parciais: estes consistem em conquistar posições
estratégicas e em minar a sociedade burguesa. Melhorar sua
situação material, aumentar seu poder social, reunir suas
forças para atacar o sistema capitalista inteiro, eis ao que
conduz a tarefa do proletariado. Mas eis que o proletariado
preencheu a sua missão histórica. Ele destruiu a antiga
máquina do Estado, construiu uma nova, um novo equilíbrio
social se terá constituído; o proletariado passa a ocupar o
lugar da classe dirigente provisória. É claro que a direção de
seus interesses muda então, radicalmente: todos os seus
interesses particulares, examinados do ponto de vista dos
interesses gerais, se estabelecem sobre o plano
da consolidação e da evolução das novas relações, de
sua organização e da resistência a toda tentativa
destruidora. Esta transformação dialética é a consequência
da evolução dialética do próprio proletariado, o que se «tem
constituído como poder político».

451
A Teoria do Materialismo Histórico N. Bukarin

Em que consiste, pois, a síntese dessas duas direções de


interesses opostos? É sua unidade superior: a edificação de
uma nova forma social, trazida pelo proletariado, edificação
que pressupõe a destruição do velho invólucro que impedia
a evolução das forças produtivas.

Toda classe nova que é capaz não somente de destruir


o antigo sistema de relações sociais, mas também de
construir novo sistema, que por consequência é capaz de se
tornar a organizadora de uma sociedade nova, deve
inevitavelmente dar a seus interesses uma cor
de produção, isto é, abordar as questões sociais não do
ponto de vista da partilha e da simples repartição, mas do
ponto de vista da destruição das antigas formas, em nome
da construção de formas que implicam uma produção mais
perfeita, e forças produtivas mais poderosas.

53. PSICOLOGIA DE CLASSE E IDEOLOGIA DE CLASSE

A diferença de condições de existência material, base da


divisão da sociedade em classes, põe seu estigma sobre toda
a consciência das classes, isto é, sobre a psicologia e
ideologia de classe. Sabemos já, pelo que precede, que a
psicologia de classe, ou mais exatamente a psicologia duma
classe, não coincide sempre com o interesse material dessa
classe (por exemplo, a psicologia do desespero, da renuncia
ao mundo, a tendência para o suicídio, etc..) mas que ela
deriva sempre e é sempre determinada pelas condições de
vida dessa classe. Vejamos agora alguns exemplos da

452
A Teoria do Materialismo Histórico N. Bukarin

maneira pela qual se determina realmente uma psicologia e


uma ideologia de classe.

Tomemos antes de tudo um exemplo prático, da vida


corrente, de fatos comuns. Todos têm conhecimento da
discussão havida na Rússia entre marxistas e socialistas-
revolucionários, sobre qual a classe que levaria a sociedade
ao socialismo; os marxistas afirmavam que seria a classe
obreira, o proletariado; os socialistas-
revolucionários esforçavam-se por todas as maneiras em
demonstrar que a classe campesina suplantaria o
proletariado. Os fatos deram toda razão aos marxistas: os
camponeses têm sustentado o proletariado na sua luta
contra os fidalgos e os capitalistas; eles os sustentam porque
o proletariado protege a terra campesina e proporciona à
economia campesina a possibilidade de se desenvolver,
porém eles discordam completamente da «comuna», eles se
apegam com todas as suas forças às antigas formas de
propriedade da terra, de cultura da terra, da sua velha
economia em geral. Como explicar este fenômeno? E como
explicar ao mesmo tempo o heroísmo do proletariado na luta
e o incomensurável apoio com que ele acolheu a edificação
socialista e a ideologia comunista? Por outro lado, se
pretendermos atribuir a solução da questão ao fato do mujik
não ser tão pobre, então porque não foi o proletariado
andrajoso, porque não foram os miseráveis, os
desclassificados, etc., que forneceram os efetivos da luta?

453
A Teoria do Materialismo Histórico N. Bukarin

Para respondermos a isto, poderemos formular a


questão preliminar, a de saber quais os traços que deve ter
a classe que pode executar a metamorfose da sociedade e
levá-la da sua estrada capitalista para o caminho socialista.

1.º Deve ser uma classe que no regime capitalista


é explorada economicamente e oprimida
politicamente. Senão, é evidente que não terá razões
suficientes para se revoltar contra a ordem capitalista; ela
não poderá então, em caso algum, sublevar-se contra ela.

2.º Segue-se que essa classe deve também, numa


expressão simplista, ser uma classe pobre; senão ela não
poderá comparar sua pobreza à riqueza das outras classes.

3.º Ela deve ser uma classe produtora. Senão, se ela


não tomar parte direta na criação dos valores, ela pode, na
hipótese mais favorável, destruir, mas nunca construir, criar,
organizar.

4.º Ela não deve estar ligada à propriedade


privada. Pois, se tivermos uma classe cuja existência
material estiver vinculada à propriedade privada, é
facilmente compreensível que ela aspirará ao aumento do
que é «seu», sua propriedade, e nunca na abolição da
propriedade privada, queé o objetivo do comunismo.

5.º Ela deve enfim ser uma classe unificada pelas


condições de sua existência, e habituada ao trabalho em
comum, ao trabalho feito ombro a ombro, um ao lado do

454
A Teoria do Materialismo Histórico N. Bukarin

outro. Pois, doutro modo, ela não será capaz nem de desejar
e nem de realizar uma sociedade tal que seja a encarnação
do trabalho social, do trabalho de camaradagem. E ainda
mais, ela não seria mesmo capaz de levar adiante uma
luta organizada, ela não seria capaz de organizar um novo
poder político.

Comparemos agora estes diversos índices num quadro,


e examinemos qual é a classe que dentre os nossos três
grupos satisfaz melhor a estas exigências. Assinalemos com
+ aquela que satisfizer a cada índice, e com — a que não
satisfizer.

Proletariado
Campesinato Proletariado
andrajoso

1. Exploração
+ — +
econômica

2. Opressão política + + +

3. Pobreza + + +

4. Produtividade + — +

5. Sem vínculos com


— + +
a propriedade privada

6. Unidade na
produção, trabalho — — +
em comum

455
A Teoria do Materialismo Histórico N. Bukarin

Vemos aqui claramente como se apresenta a questão.


Falta muito à classe campesina, para ser uma classe
realmente comunista; ela está ligada à propriedade, por ela
está presa e serão precisos ainda muitos anos para
processar-se a sua reeducação, fato que não é possível
senão quando o poder do Estado está nas mãos do
proletariado. O campesinato não é unido na produção, ele
não está habituado ao trabalho social e à produtividade
unificada; ao contrário, toda a alma do camponês está no
seu pedaço de terra: ele está acostumado com a
economia individual e não social. Quanto ao proletariado
andrajoso, seu principal defeito está na ausência do trabalho
produtivo. Ele poderá destruir, porém não está habituado a
construir. Sua ideologia é frequentemente representada
pelos anarquistas. Um homem de espírito disse que o seu
programa se compunha de dois artigos: Art. 1.º: «Não
haverá nada». Art. II.º: «Ninguém se encarregará da
execução do artigo precedente».

Tocamos assim o laço que une a condição da existência


material com a psicologia e a ideologia de classe ou de grupo
que daí resultam: no proletariado, ódio ao capital e ao seu
Estado, espírito revolucionário, hábito de agir duma maneira
organizada, psicologia de camaradagem, atitude criadora,
produtiva, desprezo ao passado, atitude negativa em face da
«sacrossanta propriedade privada» alicerce da sociedade
burguesa, etc.; no campesinato, apego à propriedade
privada, que o torna hostil a todas as inovações,
individualismo, desconfiança de tudo que ultrapassa ao seu

456
A Teoria do Materialismo Histórico N. Bukarin

horizonte estreito; no proletariado andrajoso, negligencia e


inconsistência, ódio às velharias e ao mesmo tempo
impotência e inércia na construção, na organização,
individualismo desorganizados caráter fantasista. A uma tal
psicologia, uma ideologia correspondente: no proletariado,
comunismo revolucionário; no campesinato, ideologia de
propriedade; no proletariado andrajoso, anarquismo instável
e histérico. É evidente que uma vez que se tenha por base
semelhante psicologia e ideologia, é ela que dá o traço
característico geral a toda uma psicologia e ideologia duma
classe ou dum grupo correspondente.

Nas antigas discussões entre marxistas e socialistas-


revolucionários russos, estes últimos apresentavam a
questão sob o ponto de vista da filantropia, da "ética", da
"piedade" para com os "irmãos inferiores" e outras tolices de
fidalgos intelectuais. Para a maioria dos "ideólogos" deste
gênero, a questão de classes era uma questão de ética de
intelectuais torturados pelos remorsos da consciência, que
visavam derrubar a autocracia, que não lhes oferecia muito
espaço, ensaiavam apoiar-se sobre o mujik (uma vez que
este não lhes tinha incendiado os castelos dos seus tios e
tias), e esforçavam-se em conquistar sua confiança,
redimindo as faltas cometidas por um nobre "auxilio aos
humilhados e aos ofendidos". Enquanto que para os
marxistas não era questão nem de lamurias e nem de
filantropia, mas da exata avaliação das capacidades das
classes, para saber qual seria a atitude que tomaria

457
A Teoria do Materialismo Histórico N. Bukarin

inevitavelmente cada uma delas na iminência da luta pelo


socialismo.

Um bom estudo (se bem que conservador e apologético,


destinado a sustentar toda reação) sobre a psicologia
do campesino, nos é apresentado no trabalho do pastor
evangélico A. l'Houet: Zur Psychologie des Bauerntums ("Da
psicologia do campesinato", 2.ª edição, 1920, de Mohr,
Tubingen, em alemão). O sábio eclesiástico cristão aprecia a
classe camponesa "em primeiro lugar" como... reservatório
de saúde corporal, espiritual, moral e religiosa,
como tesouro militar para o país (Reichskriegsschatz: o
autor quer dizer — "como carne para canhão", N. B.), etc..
(op. cit., IV). O pastor Houet, que, no número dos caracteres
do campesinato, conta a sua homogeneidade (massa
homogenia), sua separação do resto do mundo, seu
tradicionalismo, etc., dá muito justa definição da ideologia
da classe camponesa. Apenas entusiasma-se com frequência
justamente por aquilo que nós consideramos como a "idiotice
da vida camponesa" (Marx). Ele exalta, por exemplo,
a inércia do camponês, sua repugnância por tudo que é
novo:

"... Em face do amor à novidade, o


camponês pertence a um outro mundo,
aquele que coloca acima de tudo os
tempos antigos, que conserva
firmemente os fundamentos vitais do
passado, que continua a fiar os antigos

458
A Teoria do Materialismo Histórico N. Bukarin

fios.... Com o inconveniente dele


"atrasar o seu tempo", "não caminhar
passo a passo com ele"; em
compensação, com a vantagem de que
todas as suas manifestações de vida,
precisamente em virtude dessa
unilateralidade, se distinguirem
favoravelmente pela sua segurança, sua
seriedade e seu valor durável" (op. cit,.
p. 16).

Esta rotina se manifesta por toda parte:

"Conservação dos antigos lugares de


estabelecimento, conservação da antiga
casa, conservação dos antigos bens,
costumes, nomes; conservação do
dialeto, da velha poesia popular, da
velha estrutura espiritual, do antigo tipo
de fisionomia! Por toda parte, o mesmo
espírito conservador..." (ibidem).

O sr. Houet regozija-se extremamente pelo fato de


serem as habitações dos camponeses, em 1871, pouco
diferentes do que eram na idade da pedra (pag. 17). Ele se
regozija com o simplismo e pobreza hereditária da alma
do camponês, de que o

"número dos seus problemas da vida,


como sejam religiosos, morais, de arte e

459
A Teoria do Materialismo Histórico N. Bukarin

outros quaisquer, serem extremamente


restritos" e de que "a mesma concepção
destes problemas se transmite de
geração em geração" (op. cit., pag. 29);

mas ele não se regozija pelo fato de que esse espírito


limitado, esta "idiotice" que não é a falta, mas
a desgraça dos camponeses, seja quebrado pelo vapor e
pela eletricidade, pois, admirai! este princípio de tradição
conduz "à simples, à antiga e grandiosa existência". A
gravidade, a desconfiança e a avareza, a cupidez do
proprietário, etc., são, bem entendido, louvados por todas as
maneiras por este pastor (ex. pag. 63), e isto ocupando
páginas e páginas inesgotáveis.

Os exemplos apresentados mostram bem o essencial da


psicologia e da ideologia de classe dos proprietários agrários
e de seus curas e pastores, que se esforçam em salvaguardar
e lisonjear os caracteres do camponês que o impedem de
"marchar de acorda com a sua época".

Na nobreza fundiária, (isto é, entre os proprietários


feudais) a psicologia de classe se caracteriza também por um
inevitável espírito conservador e reacionário, cruamente
expresso, de tal forma que não existe nenhum paralelo em
nenhuma outra classe, E é bem compreensível: os
proprietários feudais são com efeito os representantes
supremos da sociedade feudal, a qual "entregou sua alma a
Deus", além de tudo. O culto da tradição, das "formas

460
A Teoria do Materialismo Histórico N. Bukarin

solidas", da família aristocrática e da "ancestralidade" (de


seus privilégios, de sua gloria, de seu "valor"),
simbolicamente expresso na "arvore genealógica"; os
"serviços" e os "méritos", o feudo, a "honra", os costumes
convenientes à "nobreza", o desprezo aos "plebeus", o direito
às relações sexuais e outras somente com "iguais", são tais
os traços característicos desta antiga classe dirigente.
(Conforme Simmel: Sociologia, digressão sobre a nobreza —
em alemão — pgs. 737 e 399).

A psicologia e a ideologia das classes da sociedade


burguesa isto é, das classes urbanas, é muito mais dócil. A
burguesia, sobretudo no período de sua evolução, quando
ela não estava diretamente ameaçada pela revolução
proletária, não se caracteriza absolutamente por um
conservadorismo semelhante ao da nobreza. Seu traço
predominante é seu individualismo, decorrente da luta pela
concorrência, o racionalismo, fruto do ''cálculo econômico",
como fundamentos vitais desta classe; a psicologia e a
ideologia liberal repousam sobre "a iniciativa", a "liberdade
de empreendimento". Especialmente sobre a psicologia
econômica da burguesia em diversos estádios de sua
evolução, encontraremos bastantes observações
interessantes em Sombart (der Bourgeois) e em Max Weber
(ob. cit.). Sombart, por exemplo, remonta até a aparição do
espírito de empreendimento. Este devia constituir-se pela
fusão de três tipos psicológicos: o conquistador, o
organizador e o mercador. O "conquistador" dá a
possibilidade de projetar um plano e de realizá-lo: ele tem a

461
A Teoria do Materialismo Histórico N. Bukarin

resistência e a firmeza, a elasticidade, a energia intelectual,


a capacidade de intensificar os seus esforços, a força de
vontade; o organizador deve saber dispor coisas e gentes de
modo a atingir o maximum de resultado útil; o comerciante,
o mercador distingue-se pela sua capacidade de discutir com
não importa quem e de ganhar o seu negócio (Sombart. ob.
cit. cap. V: L'essence de l'esprit d'entreprise, pgs. 69-399).
É pela combinação desses traços que se caracteriza a
burguesia na época do seu aparecimento.

Quanto à psicologia do proletariado, dela já nos


ocupamos anteriormente, e é sobretudo do que mais falamos
neste livro.

É claro que a psicologia e a ideologia das classes mudam


em correlação com as trocas da «maneira de ser social»
dessas classes, como nós já o notamos nos capítulos
precedentes, mais de uma vez.

Convém fazer aqui mais uma observação. De tudo que


nós dissemos ressalta claramente que a psicologia das
classes intermediarias é igualmente intermediaria, a dos
grupos mistos, igualmente mista, etc.. É isto que explica
que, por exemplo, a pequena-burguesia e o campesinato
«hesitem» constantemente entre o proletariado e a
burguesia, que «tem nelas duas almas», e assim por diante.

«Sobre as diferentes formas da


propriedade, sobre o que se chama as
condições de existência, se eleva toda

462
A Teoria do Materialismo Histórico N. Bukarin

uma superestrutura de sentimentos


diversos e originalmente constituídos,
de ilusões e modos de pensar e conceber
a vida. Toda a classe as cria e as forma
sobre a base material e sobre as
relações sociais correspondentes».
(Marx, Le 18 Brumaire).

54. «CLASSE EM SI» E «CLASSE PARA SI»

A psicologia e a ideologia de classe, a consciência que


uma classe tem de seus interesses, não somente
passageiros, mas duráveis e gerais, decorre da posição dessa
classe na produção. Mas isso não significa absolutamente
que essa posição dessa classe na produção provoque dum só
golpe, nessa classe, a noção de seus interesses gerais e
fundamentais. Ao contrário, podemos dizer que isso não
acontece quase nunca. Então na vida real, primeiro, o
processo de produção percorre diversos estádios de sua
evolução e as contradições da estrutura econômica não se
descobrem senão no curso da evolução ulterior; segundo,
uma classe não cai por acaso do céu, mas ela se constitui,
por assim dizer, inconscientemente, a partir de diferentes
outros grupos sociais (classes de transição, intermediarias e
outras, camadas, agrupamentos sociais em geral); terceiro,
passa-se ordinariamente um certo tempo, antes que a
experiência da luta dê a uma classe sua consciência de
classe, tendo seus interesses particulares, seus desejos,
suas aspirações próprias dela e exclusivamente dela, seus
«ideais» sociais, que a opõe de modo decisivo a todas as

463
A Teoria do Materialismo Histórico N. Bukarin

outras classes da sociedade da qual ela faz parte; enfim,


quarto, não se deve esquecer o trabalho de nivelamento
psicológico e ideológico que pratica constantemente a classe
no poder, tendo nas mãos o organismo do Estado, afim de,
duma parte, aniquilar os rebentos da consciência de classe,
nas classes oprimidas, e de outra, inculcar-lhes por todos os
meios possíveis a ideologia da classe dominante, ou então
fazer-lhe penetrar numa medida mais ou menos intensa a
influência dessa ideologia, ou até, finalmente, implantá-la à
força. Todas estas circunstâncias tornam possível uma
situação tal, que uma classe já exista, embora como um
conjunto de pessoas desempenhando um papel determinado
no processo da produção, conquanto não exista ainda como
classe consciente de si mesma. A classe então existe, mas
ela «não é ainda consciente». Ela existe como fator de
produção; ela existe como complexo determinado de
relações de produção. Mas não existe ainda como força social
independente, que saiba o que quer, ao que aspira, e que
tenha consciência de sua personalidade, da oposição dos
seus interesses aos das outras classes, etc..

Para designar esses diversos estados no processo da


evolução das classes, Marx emprega duas expressões: Ele
chama classe «em si» uma classe não tendo ainda
consciência de si mesma; e chama classe «para si» aquela
que já tenha adquirido consciência do seu papel social.
Na Misére de la Philosofie, (Stuttgart, 1920, pags. 161,
162) Marx declara:

464
A Teoria do Materialismo Histórico N. Bukarin

"As primeiras tentativas dos


trabalhadores se unirem uns aos outros,
tomam sempre a forma de coalizões. A
indústria pesada une num só e mesmo
laço uma massa de gente desconhecida
entre si, a concorrência os divide quanto
aos seus interesses; mas a manutenção
do salário a um nível conveniente, esse
interesse comum contra seu patrão,
une-os em um só pensamento comum
de resistência, em uma coalizão (por
"coalizão", entende-se nessa passagem,
em todo este trecho, união de
trabalhadores, N. B.). Assim a coalizão
tem constantemente um fim duplo: pôr
fim à concorrência entre trabalhadores,
a fim de ficar em estado de fazer
concorrência comum ao capitalista.
Embora o fim primordial da resistência
seja somente a manutenção do salário a
um nível conveniente, as coalizões,
isoladas ao começo, se formam à
medida que os capitalistas por seu lado,
sob a pressão, se unem em grupos e,
contra o capital em vias de constante
unificação, a defesa das associações
torna-se ainda mais importante para
eles do que a defesa do salário. Nessa
luta, verdadeira guerra civil, todos os

465
A Teoria do Materialismo Histórico N. Bukarin

elementos se unem e se desenvolvem


para a próxima batalha. Uma vez
atingido esse objetivo, a coalizão toma
seu outro caráter: político.

"As relações econômicas transformaram


em seguida uma massa da população
em trabalhadores. A dominação do
capital criou para essa massa uma
situação comum, de interesses comuns.
Assim essa massa aparece já como uma
classe em relação ao capital, mas não
ainda como uma classe em si mesma.
Na luta da qual nós indicamos algumas
fases, a massa acha-se a si própria,
constitui-se como classe em si mesma.
Os interesses que ela defende tornam-
se interesses de classe". (O grifo é
nosso, N. B.).

55. AS FORMAS DA SOLIDARIEDADE RELATIVA DOS


INTERESSES

Do que acabamos de dizer ressalta já a possibilidade,


em condições determinadas, duma
solidariedade relativa das classes. É necessário, não
obstante, distinguir aqui duas formas principais dessa
solidariedade relativa.

466
A Teoria do Materialismo Histórico N. Bukarin

Em primeiro lugar, essa solidariedade pode ser tal que


ela una o interesse permanente de uma classe com o
interesse temporário de outra, esse interesse
temporário contradizendo os interesses gerais dessa classe.

Em segundo lugar, essa solidariedade pode ser tal que


não exista contradição, como se tratasse da coincidência do
interesse durável duma classe com o interesse transitório de
uma outra, ou de interesses transitórios das duas partes.

Para explicar o primeiro caso, tomemos como exemplo


a guerra imperialista de 1914-18, e ensaiemos a análise da
atitude dos trabalhadores no começo dessa guerra. É um fato
conhecido que na maior parte dos grandes países, os mais
evoluídos sob o ponto de vista capitalista, os trabalhadores,
esquecendo os seus interesses internacionais e gerais de
classe, atiraram-se em defesa de suas «pátrias». Ora, sob
estas «pátrias» se ocultavam, em realidade, as organizações
de Estado da burguesia, isto é, as organizações da classe do
capital. Por consequência, a classe trabalhadora partiu em
defesa das organizações econômicas, marchando umas
contra as outras numa guerra de concorrência para a
repartição dos mercados de escoamento, de mercados de
matérias primas, de esferas de expansão do capital. É claro
que houve aqui, da parte dos trabalhadores, traição aos seus
interesses de classe. Não obstante, qual era o fundo da
questão? Onde residia a causa oculta a mais profunda dessa
monstruosa negação, conscientemente sustentada pelos
partidos sociais-democratas oportunistas? Essa causa, era

467
A Teoria do Materialismo Histórico N. Bukarin

a solidariedade relativa entre o proletariado e a burguesia


dos países capitalistas financeiros. Eis aí sobre que ela se
baseava. Representemo-nos toda economia mundial. Na
inumerável rede de fios que se entrecruzam — as relações
de produção — existem nós fortes e espessos: os grandes
países capitalistas. Lá se encontram os grupos «nacionais»
da burguesia, organizados politicamente. Eles se
assemelham às gigantescas empresas, aos grandes trustes,
que «trabalham» nos limites da economia mundial. Tanto
mais um desses Estados é poderoso, mais ele explora sem
piedade a sua periferia econômica: colônias, esferas de
influência, semi-colônias, etc.. Com a evolução da sociedade
capitalista, a situação da classe trabalhadora deveria piorar.
Mas os estados rapaces da burguesia, escorchando até
arrancar sangue suas enormes possessões coloniais e
«esferas de influência», induzem «seus» trabalhadores a
interessar-se na exploração das colônias. Assim se cria uma
«comunidade de interesses» relativa, entre a burguesia
imperialista e o proletariado. Dessas relações de produção
germina também a psicologia e ideologia correspondente,
que se liga à renascença da idéia de pátria. O raciocínio era
dos mais simples: se «nossa» indústria (em realidade,
dever-se-ia dizer: «a indústria de nossos patrões»)
desenvolve-se, o salário de seu lado aumentará; e a indústria
se desenvolve quando ela possui mercados e esferas de
colocação de capital; então a classe trabalhadora é
interessada na política colonial da burguesia; então, é
necessário defender «a indústria da pátria», é necessário
bater-se pelo seu lugar ao sol. E daí decorre todo o resto:

468
A Teoria do Materialismo Histórico N. Bukarin

celebração da potencia da pátria, da grande nação, etc., e


também aranzeis empolados ao infinito sobre a humanidade,
a civilização, a democracia, o desprendimento e outros
temas que tiveram curso nos primeiros tempos da guerra.
Era com a ideologia de «imperialismo obreiro», que a classe
trabalhadora traía seus interesses permanentes gerais pelas
migalhas que lhe atirava a burguesia, oprimindo os
trabalhadores e semi-trabalhadores das colônias. E, feitas as
contas, a marcha da guerra e o período do após-guerra
mostraram à classe trabalhadora que ela tinha jogado uma
má cartada, que os interesses duráveis de uma classe são
mais importantes do que seus interesses passageiros. Então
começa um processo de rápida «revolucionarização».

O professor Tugan Baranovski, já falecido, que se


considerava como "quase marxista'', mas que encontrou
tempo, durante a revolução russa, de ser por um momento
ministro branco (isso por excesso de "ética": ele reprovava
sem cessar a Marx de não ser bastante "ético" e de se deixar
levar demasiado pelo ódio de classe, o que é, certamente,
muito pouco filantrópico), esse Tugan Baranovski fazia ainda
a Marx a objeção seguinte:

"Marx, dizia ele, não vê a solidariedade


de interesses e nega-a na sociedade
capitalista. Portanto "na defesa da
independência proletária do Estado (do
Estado burguês, N. B.) todas as classes
estão igualmente interessadas quanto

469
A Teoria do Materialismo Histórico N. Bukarin

ao ponto de vista ideal. No domínio


econômico, o Estado serve não somente
de base à dominação de uma classe,
mas também de auxilio à evolução
econômica e ao aumento da soma total
da riqueza nacional, o que corresponde
aos interesses de todas as classes
sociais como coletividade. A isto
acrescenta-se também a missão
educadora do Estado, que está
diretamente interessado no progresso
da cultura e na elevação do nível
intelectual da população nacional,
quando mais não seja, pela razão do
poderio político e econômico estar ligado
à "cultura"." (Tugan-Baranovski.
Theorische Grundiangen des Marxismus
— "Fundamentos teóricos do marxismo"
— em russo).

O sr. Cunow (op. cit., vol. IL pag. 78-79) cita esta


passagem de Tugan e a aprova, afirmando somente que aí
Tugan confunde interesses sociais e interesses do Estado.
Mas, realmente, Cunow confunde o ponto de vista
revolucionário de Marx com o ponto de vista de traição da
social-democracia de Scheidemann. A argumentação de
Tugan—Cunow é pueril. Desde o momento em que o Estado
não se preocupa somente de opressão,mas também de...,
então todas as classes aí estão interessadas. Brava gente!

470
A Teoria do Materialismo Histórico N. Bukarin

Deste modo, pode-se provar tudo que se deseja. Depois que


os trustes não se preocupam somente de exploração, mas
também de produção, eles são de utilidade publica. E assim
por diante. Aí vê-se com que tolices o sr. Cunow enche dois
volumes "de estudos" sobre a sociologia marxista! Cunow,
deste modo, bate o record sobre todos os falsificadores do
marxismo, por sua cínica insolência.

"De acordo com a doutrina de Marx —


escreve ele, às páginas 77 e 399 do
segundo volume da sua obra — aquela
vontade geral, na qual se baseava a
antiga filosofia social, não existe
absolutamente, porque a sociedade não
é uma coisa concreta com interesses
absolutamente idênticos, (Que
sociedade!) mas ela é dividida em
classes (isto não é mau, mas enfim, que
faz Cunow do Estado? De quem este
exprime a vontade? N. B.). Mas existem
perfeitamente interesses sociais
universais, porque (notai bem!) como a
vida e a atividade social são impossíveis
sem uma certa ordem, todos os
membros da sociedade — desde que não
neguem pertencer à sociedade — estão
interessados na manutenção da uma tal
ordem: mas como, em virtude de suas
diversas posições dentro dessa ordem

471
A Teoria do Materialismo Histórico N. Bukarin

social, têm um ideal de ordem diversa,


visto não serem identicamente
interessados nas regras de ordem
particular, eles encaram estas regras
sob o ponto de vista de sua classe, isto
é, sob prismas diferentes".

Em linguagem vulgar: — há indivíduos que pensam, por


exemplo, que no regime capitalista a burguesia se interessa
pelo regime, e o proletariado pela queda do mesmo.
Absolutamente! No fim Cunow se adianta e explica: visto
que a vida é impossível sem ordem, todos estão interessados
em manter o capitalismo. Mas considerando que os operários
têm "um ideal" diferente, — pois bem, Cunow os autoriza a
que critiquem as "regras particulares". Mas se fizerem mais
qualquer coisa, então... adeus, — cairão de chofre entre os
indivíduos que negam pertencer à sociedade. Eis aí o
marxismo corrigido e completado pelo sr. Cunow!

Tomemos ainda o período da evolução da classe


operária, quando esta ainda se achava em «relações
patriarcais» com seus patrões, em cada empresa tomada à
parte; a prosperidade da empresa, dada a fragilidade dos
laços sociais em geral, interessa os operários no sucesso do
patrão. Os operários e seu «benfeitor», aquele que os
«alimentava», aquele que lhes dava trabalho, ilustram
também a questão do papel da solidariedade relativa dos
interesses em detrimento dos interesses comuns da classe
em seu conjunto.

472
A Teoria do Materialismo Histórico N. Bukarin

Há aqui alguma analogia com a comunhão dos


interesses dos escravos e dos senhores de escravos no
mundo antigo, na medida que havia ainda «escravos de
escravos» (por exemplo, os «vicarii» romanos); os escravos
que possuíam escravos, eram por esse fato considerados
possuidores de escravos, e compreende-se bem que nesse
terreno eles tinham uma «comunhão de interesses» com os
senhores de escravos «do primeiro grau», por assim dizer.

Nas atuais cooperativas agrícolas da Europa ocidental,


observa-se frequentemente que os camponeses vão lado a
lado com os proprietários de terras e com seus patrões
agrícolas e capitalistas: eles se ligam com aqueles no terreno
da venda de seus produtos agrícolas; eles se opõem à
população urbana, como seus fornecedores, interessados em
preços elevados, exatamente como está nisto interessado o
grande proprietário agrícola.

Mas as este exemplo nos conduz, desde já, fora dos


limites da primeira forma de solidariedade relativa das
classes, porquanto na realidade ela constitui pouco a pouco
no seio da classe camponesa uma verdadeira burguesia
agrícola, que em nada se distingue da burguesia agrícola
hereditária.

Como segunda forma de solidariedade relativa entre


classes, na qual essa solidariedade relativa se pôs em
contradição com os interesses permanentes das classes,
pode-se designar antes de tudo os casos onde se formam

473
A Teoria do Materialismo Histórico N. Bukarin

blocos de classes contra um inimigo comum. Num


determinado grau de evolução, esse fato é perfeitamente
possível. Por exemplo, durante a revolução francesa, (na sua
primeira fase) ela tinha contra o regime feudal, tanto na
economia, como na política, diversas classes: burguesia,
pequena-burguesia, proletariado. Todos esses
agrupamentos tinham um interesse comum na derrubada do
feudalismo. Em seguida, naturalmente, o bloco comum se
desagregou e a pequena-burguesia, em seu conjunto, em
luta contra a grande burguesia, passou à contra-revolução,
desembaraçou-se ao mesmo tempo, sem dó nem piedade,
de todas as tentativas de movimentos independentes do
proletariado, (execução dos «enragés», etc.). Temos aqui
um exemplo de solidariedade de classes não contradizendo
os interesses gerais e duráveis das mesmas.

56. LUTA DE CLASSES E PAZ DE CLASSES

Os diferentes graus de interesses originam diferentes


aspectos da luta. Sabemos agora que todo o interesse de
uma parte de uma determinada classe não representa por si
só um interesse de classe. O interesse dos operários de uma
usina isolada, se contradiz os interesses das outras partes da
classe operária — não é um interesse de classe, mas um
interesse de grupo; mas mesmo se tivermos presente o
interesse de um grupo de operários não contrariando os
interesses de outros grupos, mas, contudo, não unindo ainda
esses grupos, não existe ainda aqui, de fato, nem na
consciência das massas, o interesse de classe e por

474
A Teoria do Materialismo Histórico N. Bukarin

conseguinte, rigorosamente falando, a luta de classes ainda


não existe: quando muito, o que existe são germens de
interesse de classe e germens de luta de classes. O interesse
de classe aparece quando ele opõe uma classe ou outra. A
luta de classe aparece quando ela opõe uma classe contra
outra, na ação. Em outros termos: A luta de classes
propriamente dita só se desenvolve num determinado grau
de evolução da sociedade de classes; noutras fases desta
evolução, ela pode aparecer também como gérmen (quando
se assiste a uma luta entre parcelas isoladas de classes, uma
luta que não se eleva à altura dos princípios de classes, não
envolvendo nem unindo uma classe como tal), ou como
forma oculta «latente» (já que não há luta aberta, mas sim
«resistência passiva», um descontentamento surdo com o
qual, de bom ou mau grado, a classe dominante deve
contar).

«Homem livre e escravo, patrício e


plebeu, barão e servo, mestre-artesão e
aprendiz, numa palavra, opressores e
oprimidos, em constante oposição, têm
vivido numa guerra ininterrupta, ora
franca, ora disfarçada; uma guerra que
termina sempre, ou por uma
transformação revolucionária da
sociedade inteira, ou pela destruição
simultânea das duas classes em
luta». (Manifesto
Comunista, sublinhado por nós, N. B.).

475
A Teoria do Materialismo Histórico N. Bukarin

Vamos dar alguns exemplos para ilustrar o que se acaba


de dizer.

Suponhamos que na época da escravatura, num


latifúndio qualquer, se produza uma revolta com saque de
bens, depredações, etc.. isto ainda não é a luta de classes
no sentido próprio da palavra: É um assalto isolado de uma
pequena parcela da classe dos escravos; todo o resto da
classe está calma, um punhado se mete numa luta incruenta;
mas esse punhado se acha isolado, ele se compõe de poucos
homens: a classe propriamente dita não entra em jogo; aí
não há oposição de classe contra classe. É porém diferente
quando os escravos sublevados sob a direção dum Spartacus
fazem uma verdadeira guerra civil para a libertação dos
escravos: neste caso são levantadas massas de escravos,
isto é de fato uma luta de classe. Suponhamos ainda que
assistimos a uma greve de operários de uma usina visando
aumento de salários; todos os outros operários ficam em
silencio e sem ação nas suas colocações, isso ainda não
significa mais do que o gérmen de luta de classes, pois a
classe propriamente dita não entra em ação. Mas tomemos
o caso, por exemplo, de uma «onda de greves»: isto já é a
luta de classes, porque aí uma classe se opõe a outra classe.
Não se trata dum interesse de grupo pondo em movimento
um grupo, mas dum interesse de classe, lançando em
movimento uma classe: Isso é de fato uma luta de classe,
no sentido próprio da palavra. Tomemos ainda um exemplo:
Um descontentamento ainda vago, turvo, se expande
largamente entre os camponeses servos; ele pode irromper,

476
A Teoria do Materialismo Histórico N. Bukarin

mas por qualquer motivo ele não se produz; os escravos têm


medo, e eles não empreendem a luta, mas eles começam a
«resmungar». Aí está uma forma «latente» de luta, aludida
no Manifesto Comunista.

Assim, por luta de classe entende-se uma luta em que


uma classe se opõe à ação de outra. Daí deduz-se um
axioma de grande importância, que«toda luta de classe é
uma luta política» (Marx). Com efeito, o que se passa
quando a classe oprimida se dirige como força de classe
contra a classe opressora? Isto significa que a classe
oprimida procura minar as bases da «ordem existente». E
como a organização do poder da «ordem existente» é a
organização de Estado da classe dirigente, compreende-se
perfeitamente que toda ação da classe oprimida é
objetivamente dirigida contra a máquina estatal da classe
dirigente, mesmo que aqueles que tomam parte na luta da
classe oprimida disto não tenham consciência no princípio.

Toda ação deste gênero tem por consequência inevitável


um caráter político.

Consideremos por exemplo os sindicalistas


revolucionários, ou os «Operários Industriais do
Mundo» (Industrial Workers of the World — abreviado I. W.
W.) da América. Eles nem querem ouvir falar em luta política.

É que por luta política, como bons oportunistas ingênuos


que são, eles só entendem a luta parlamentar. Suponhamos,
portanto, que os I. W. W. organizem, não uma greve geral,

477
A Teoria do Materialismo Histórico N. Bukarin

mas apenas uma greve de foguistas, mineiros e


metalúrgicos. Quem não compreenderia toda a enorme
importânciapolítica que tomaria inevitavelmente esta greve?
Por que? Porque neste caso os quadros do proletariado
seriam atirados à luta. Porque uma semelhante greve
seria perigosa para a burguesia como classe. Porque ela
ameaçaria fazer uma brecha na máquina da burguesia
organizada. Porque consequentemente ela seria
objetivamente dirigida contra o poder de Estado da
burguesia.

No Manifesto Comunista, Marx descreve claramente,


tomando o exemplo do proletariado, essa transformação de
episódios isolados da luta em luta de classes. No começo,

''às vezes os operários triunfam; mas


esse triunfo é efêmero. O verdadeiro
resultado da suas lutas, não é tanto o
sucesso imediato, mas antes a
solidariedade crescente dos
trabalhadores. Essa solidariedade é
facilitada pelo aumento dos meios de
comunicação, que permite aos operários
de localidades diferentes se porem em
contacto. As vezes basta esse contacto
para transformar as numerosas lutas
locais, que em toda parte revelam o
mesmo caráter, numa luta
nacional, numa luta de classes. Mas

478
A Teoria do Materialismo Histórico N. Bukarin

toda luta de classes é uma luta


política".

Nas Cartas a Sorge (em alemão, pag. 42) Marx define


da seguinte maneira esta transformação dos conflitos
separados em luta de classes, isto é, em luta política. (A
carta é escrita em alemão misturado com palavras em
inglês):

"O movimento político da classe obreira


tem, naturalmente, por objetivo a
conquista do poder político; e para isso,
evidentemente, uma organização
preliminar da classe obreira
desenvolvida até a um certo ponto e
tendo nascido dela própria na luta
econômica, é indispensável. Mas do
outro lado, todo movimento no qual a
classe operária se atira, como classe
contra as classes dominantes, e visa
constrange-las por uma pressão
exterior, é um movimento político".

O sr. Cunow, que fez essa citação (op. cit., t. II, pag.
59), assim o explica:

"'... A um determinado grau de evolução


do processo econômico em seu
conjunto, surgem classes sociais
distintas, que em virtude de sua

479
A Teoria do Materialismo Histórico N. Bukarin

participação neste processo


têm seus interesses econômicos
particulares e procuram lhes dar um
caráter político".

Este comentário não é absolutamente exato,


porque Cunow dissimula o que é fundamental, o
que Marx faz sobressair em primeiro plano: a oposição de
princípios de classe para classe, onde toda luta é uma parte
do processo da luta geral para o poder e para o domínio na
sociedade.

O professor Hans Delbruck, no seu artigo


excepcionalmente insolente: A concepção da história em
Marx (Preussische Jahr-buecher, vol. 182, caderno 2, pp.
157 e 399) "critica" a teoria da luta de classes, e assim
fazendo revela uma ignorância verdadeiramente
surpreendente dos problemas do marxismo. Na página 165
ele afirma que Marx não distinguia classe de condição; à
página 166 ele afirma que em Roma antiga não houve a
"desaparição de duas classes em luta" desde que a queda do
Império Romano é um fato incontestável: havia no princípio
guerras civis e em seguida nem os senhores vencedores, ou
os escravos vencidos, se sentem capazes de fazer a
sociedade progredir. Na página 167, ele diz que jamais
houve feudalismo na Inglaterra! Na página 169 ele
"refuta" Marx, mostrando que os camponeses caminham às
vezes lado a lado com os junkers (V. sobre este ponto o que
dissemos mais atrás) e assim por diante. Mas o cumulo de

480
A Teoria do Materialismo Histórico N. Bukarin

suas "objeções" é este: Delbruck cita um texto descoberto


pelo célebre egiptólogo Ehrmann, que fala duma revolução
no Egito antigo, onde os escravos teriam galgado o poder. O
texto tem algo de curioso, que parece até ter sido escrito por
um Merejkovsky ou outro grande senhor branco enfurecido
contra os bolcheviques. Aí se pintam os horrores os mais
tremendos. E o sr. Delbruck exclama num tom terrível: Eis
aí vossa luta de classes! Mas o respeitável professor alemão
não se lembra que ele cai em contradição quando acrescenta
(pag. 171) que semelhante estado de coisas durou
"trezentos anos". Mesmo um asno compreenderia que viver
trezentos anos sem produção e numa anarquia absoluta é
impossível. De sorte que a coisa deixa de ser tão terrível, e
que a argumentação de Delbruck, apoiando-se no caso sobre
o sentimento dum "burguês apavorado", é simplesmente
ridícula.

Encontram-se também impagáveis objeções sobre a


teoria de Marx em J. Delevsky (Os antagonismos sociais e a
luta de classes na história, em russo, São Petersburgo,
1910). Eis sua objeção principal: Ele cita a seguinte
passagem de Engels (prefacio do 18 Brumário, de Marx):

"Ninguém descobriu antes de Marx a


grande lei do movimento histórico, isto
é, que toda luta histórica, quer se realize
no domínio político, religioso, filosófico,
ou qualquer outro domínio ideológico,

481
A Teoria do Materialismo Histórico N. Bukarin

não é senão a expressão mais ou menos


clara da luta de classes sociais".

Citando este trecho, o sr. Delevsky concorda


com Sombart, propondo-se a completar o princípio da luta
de classes pelo "princípio da luta das nações". A réplica
de Plekanof, mostrando que nada havia a completar aí
porque a luta de classes é uma noção do domínio dos
processos internosda sociedade e não de vínculos entre
sociedades, não parece satisfazer o sr. Delevsky.

"De duas uma — diz ele — ou bem


existem na base da história dois
princípios ou então não há mais do que
um... se há dois princípios, o da luta de
classes e o da luta das nações, então
qual é a lei que rege o segundo
princípio...? E se... não há senão o
princípio da luta de classes, então qual é
o sentido da distinção entre a luta no
interior da sociedade, e a luta entre as
sociedades...? Ou serão talvez as
sociedades, as nações, os Estados,
também classes?" (pag. 92).

Essa saída é "sui generis". Examinemos, portanto, a


questão em si. Poderá haver duas causas fundamentais:
pode-se tratar ou bem de uma única sociedade (por
exemplo, a atual economia mundial); retalhada em

482
A Teoria do Materialismo Histórico N. Bukarin

organizações de Estado, de frações ''nacionais'' da burguesia


mundial; ou então de sociedades inteiramente distintas,
quase sem ligações entre si (por exemplo, quando se trava
uma luta entre dois povos diferentes, dos quais um,
suponhamos, seja de outra parte do mundo, coisa que
certamente já se deu mais de uma vez na história: assim por
exemplo, a conquista do México pelos espanhóis).
No primeiro caso a luta entre burguesias é um modo
particular da concorrência capitalista. Mas só o sr.
Delevsky pode ter a idéia bizarra, de que a teoria da luta de
classes exclui, por exemplo, a concorrência capitalista. Isto
é uma forma de antagonismo no interior de classes, que,
entretanto, não podem em caso algum mudar
os fundamentos de uma estrutura de produção conhecida.
Se a teoria de Marxreconhece a possibilidade duma
solidariedade relativa entre classes, ela também reconhece
a possibilidade dum antagonismo relativo no interior das
classes. Mas haverá uma objeção à teoria da luta de classes?
Quanto ao segundo caso, temos aí uma questão de
método. A teoria da evolução da sociedade é uma teoria da
evolução duma sociedade abstrata, e está inteiramente
justificado que ela não tenha, rigorosamente falando, relação
com as sociedades concretas. Sua análise tem por alvo: Que
é a sociedade em geral, e quais são as leis de sua evolução?
Se nós passamos destas questões a outras mais concretas,
e entre outras, aquela das relações entre as diversas
sociedades, encontramos certamente leis particulares, mas
que também não estarão em contradição com a teoria
marxista; e isso não porque as sociedades sejam diversas

483
A Teoria do Materialismo Histórico N. Bukarin

classes (esta suposição do sr. Delevsky é simplesmente


absurda), mas porque a "expansão" em si tem causas
econômicas; porque, por exemplo, a conquista viria
inevitavelmente a favor do reagrupamento das forças de
classe; porque, em semelhantes casos, é sempre o modo de
produção mais levado que obtém a vitória, etc.. Mas tudo
isso não abala de forma alguma a teoria da luta de classes.

Portanto, vimos acima que as classes oprimidas não


levam sempre a uma luta de classes no sentido próprio da
palavra. Mas isso, como vimos mais adiante, não implica
absolutamente que em períodos de relativa calma «tudo
esteja calmo, apaziguado, sob a vigilância divina». Isso
significa apenas que a luta de classes lá está, em seu estado
latente, ou no estado embrionário: é daí que se desenvolve
a luta de classes no sentido próprio da palavra. Precisamos
então nos recordar da dialética que considera tudo
em movimento, em vias de acontecer; momentaneamente
pode não haver luta de classes, mas «ela se prepara». É
assim que as coisas se passam do lado das classes
oprimidas. E do lado das classes dominantes? Estasdirigem
constantemente a luta de classes. Pois o caráter aparente
da organização de Estado mostra que a classe dominante se
constituiu como uma classe para si mesma, quanto ao poder
político. Isto faz supor uma plena consciência dos interesses
fundamentais da classe que guia a luta contra as classes
opostas aos seus interesses (contra a sua ameaça direta e
contra a sua ameaça possível) e isto por todos os meios que
lhe fornece a máquina do Estado.

484
A Teoria do Materialismo Histórico N. Bukarin

57. LUTA DE CLASSES E PODER POLÍTICO

A questão do Estado, como superestrutura determinada


pela base econômica, já foi estudada mais atrás (V. § 38). É
no momento indispensável abordá-lo sob outro prisma,
examiná-lo sob um ponto de vista especial, sob o ponto de
vista da luta de classes. Antes de tudo, é preciso frisar-se
novamente, de modo mais categórico, que o organismo de
Estado é um organismo exclusivamente de classe, «uma
classe constituída em poder político», «a violência social
duma classe concentrada e organizada» (Marx). A classe
oprimida, portadora de uma nova forma de produção, se
transforma, como já vimos, no desenvolvimento da luta de
classe, numa classe de per si; na luta igualmente ela cria
suas organizações de combate, que se tornam pouco a pouco
organizações que arrastam atrás de si toda a classe em
questão. Quando se produz uma revolução, uma guerra civil,
etc.., estas organizações se atiram contra o inimigo e
aparecem como células embrionárias de um novo aparelho
de Estado sob forma direta ou disfarçada. Tomemos por
exemplo a grande revolução francesa.

«Os clubes populares, ou jacobinos,


foram as antigas sociedades dos Amigos
da Constituição, outrora burgueses,
depois
democráticos, montagnards, sans-
culottes, fanáticos, partidários da
igualdade e da união... Foram fundados

485
A Teoria do Materialismo Histórico N. Bukarin

para fins educativos populares, antes


para a propaganda do que para a ação;
mas as circunstâncias os forçaram a agir
no domínio político, e, (quando a
pequena-burguesia subiu ao poder, N.
B.) eles se imiscuíram diretamente na
administração... Pelo decreto de 12
de frimaire, os jacobinos tornaram-se
em toda França instrumentos da escolha
e da nomeação dos funcionários»
(Aulard: História política da Revolução
Francesa, pags. 386 e 387).

«Finalmente... foram as sociedades


jacobinas que mantiveram... a unidade
e salvaram a pátria» (ibidem).

Durante a revolução inglesa o «Conselho do Exercito»,


corpo revolucionário composto de oficiais, pôs seus homens
no «Conselho de Estado». Durante a revolução russa, os
órgãos de combate dos obreiros e dos soldados —
os soviets — e o partido revolucionário extremista —
formaram os organismos de base do novo Estado.

Contra a concepção do Estado como Estado de classe e


do seu poder como poder político, opõem-se duas objeções
principais:

A primeira diz: O traço predominante dum Estado é ser


uma administração centralizada. É por isso — dizem por

486
A Teoria do Materialismo Histórico N. Bukarin

exemplo, os anarquistas, — que toda administração


centralizada significa a existência dum poder de Estado. Por
conseguinte, na sociedade comunista avançada, por
exemplo, onde a economia estará de acordo com um plano,
ainda aí haverá um Estado. Este raciocínio repousa
inteiramente sobre um ingênuo erro burguês: a ciência
burguesa vê, em lugar de relações sociais, relações materiais
ou técnicas. Mas é claro que o «espírito» do Estado não está
nas coisas, mas sim nas relações sociais; não na
administração centralizada, como tal, mas na periferia das
classes da administração centralizada. Exatamente como o
capital não é uma coisa (por exemplo, uma máquina), e sim
uma relação social entre o empregado e seu patrão, relação
expressa nas coisas, da mesma maneira a centralização não
é absolutamente na essência uma centralização
de Estado, ela se torna «do Estado», desde que ela exprime
relações de classes.

Já examinamos, em parte a segunda objeção contra a


teoria «de classe» do Estado, que é ainda mais tola e
ridícula.Ela parte disso, de que o Estado preenche uma série
de funções de utilidade geral (por exemplo, o Estado
capitalista contemporâneo constrói suas estações elétricas,
hospitais, vias férreas, etc.). Este argumento reúne de uma
maneira chocante o social-democrata Cunow, o socialista-
revolucionário da direita Delevsky, o conservador Delbruck,
e até mesmo.... o imperador babilônico Hamurabi! Mas este
respeitável quarteto não se engana menos redondamente,
porque a existência de funções de utilidade geral do Estado

487
A Teoria do Materialismo Histórico N. Bukarin

não modifica em nada o caráter puramente de classe do


poder político. A classe dominante, para poder explorar as
massas, aumentar o campo desta exploração, favorecer sua
marcha «normal», deve recorrer a empresas de «utilidade
geral» de diferentes espécies. Por exemplo, sem o
desenvolvimento da rede das vias férreas, o capitalismo não
pode desenvolver-se; sem escolas profissionais, não terá a
força obreira eficiente; sem institutos científicos, não haverá
progresso na técnica capitalista, e assim por diante. Mas em
todas as medidas semelhantes, o poder político dos
capitalistas raciocina e age no interesse de sua classe. Já
apresentamos o exemplo do trust. O trust também guia a
produção, sem a qual a sociedade não poderia viver. Mas ele
a guia partindo de um cálculo de classe. Tomemos qualquer
antigo Estado de propriedade fundiária despótica, do gênero
do Estado dos faraós do Egito. Enormes trabalhos de
regularização do movimento das águas eram socialmente
necessários. Mas o Estado faraônico os protegia e os
empreendia, não para nutrir os esfomeados ou por se
incomodar com o bem de todos, mas porque eles eram o
prelúdio indispensável do processo de produção, que era ao
mesmo tempo um processo de exploração. O cálculo de
classe — tal era, nesse caso, o objetivo do Estado. Por
conseguinte, esta ordem de instituições do Estado não é de
maneira alguma uma prova da falsidade do ponto de vista
de classe.

Uma outra ordem de medidas de utilidade geral é


provocada pela ofensiva das «classes inferiores». Tal é, por

488
A Teoria do Materialismo Histórico N. Bukarin

exemplo, a legislação obreira dos países capitalistas.


Partindo desta constatação, numerosos sábios (V. por
exemplo Takhtaref) consideram que o Estado não é um
organismo puramente de classe, pois ele é fundado sobre um
compromisso. Basta refletir sobre isso por um instante, para
descobrir-se o fundo da questão. Será, por exemplo, que o
capitalista cessa de ser um «capitalista, na acepção da
palavra», desde que, sob a ameaça de uma greve, considere
mais vantajoso, para si mesmo, ceder? Evidentemente não.
O mesmo sucede quanto ao Estado. Bem entendido, o Estado
de classe pode fazer concessões às outras classes, do mesmo
modo que no nosso exemplo o patrão faz concessões aos
operários. Mas não se deduz daí absolutamente que cesse
por isso de ser puramente de classe para se tornar um
organismo de bloco das classes, isto é, um organismo
efetivamente de utilidade geral.

Isso naturalmente não é o sr. Cunow que o compreende.


Porém, dá prazer ver como o cínico professor Hans Delbruck,
já citado, mete a ridículo esses muito doutos falsificadores
do marxismo:

"A diferença entre nós outros, burgueses


de espírito social e político, e vós. é
apenas de um degrau. Mais alguns
passos no caminho que trilhais, amáveis
senhores, e a neblina marxista se
dissipará" (loc. cit., pag. 172).

489
A Teoria do Materialismo Histórico N. Bukarin

58. CLASSE, PARTIDO, CHEFES

Quando se fala de uma classe, entende-se um grupo de


pessoas reunidas por uma circunstância comum na
produção, por conseguinte, por uma circunstância comum na
repartição e partindo de interesses comuns (interesses de
classe). Entretanto, seria uma ingenuidade supor que cada
classe constitui um todo perfeitamente homogêneo, onde
todos os partidos são iguais, onde João é semelhante a
Pedro.

Para esclarecer com um exemplo, tomemos o


trabalhador contemporâneo. Não se trata aqui unicamente
de desigualdade de espírito ou de capacidade. Mesmo
a situação, a «maneira de viver» das diversas partes da
classe obreira, não é idêntica. Isto provém: Primeiro, porque
não há perfeita homogeneidade das unidades econômicas;
segundo, porque a classe trabalhadora não cai do céu já
feita, mas forma-se constantemente entre os camponeses,
artesãos, pequena-burguesia urbana, etc., isto é, entre os
demais grupos da sociedade capitalista.

Não está claro, com efeito, que o operário de uma


grande usina magnificamente instalada e o operário de uma
pequena oficina sejam duas cousas diferentes? Aqui a causa
da heterogeneidade é a heterogeneidade das empresas e de
todo o seu regime de trabalho. Uma outra causa é o tempo
da permanência na classe proletária: Um camponês que

490
A Teoria do Materialismo Histórico N. Bukarin

acaba de entrar numa usina é diferente dum operário que ali


trabalha desde a sua infância.

A diferença do «modo de vida» se reflete na consciência.


O proletariado não é mais homogêneo em sua consciência
que na sua posição social. Ele é mais ou menos homogêneo
comparado às outras classes. Mas se examinarmos esses
diversos partidos, obtêm-se o quadro que acabamos de
esboçar.

Assim, quanto à sua consciência de classe, isto é, em


relação aos seus interesses mais duráveis, gerais, não
comparativos, não de grupos, não grosseiramente materiais,
nem pessoais, e sim os seus interesses gerais de classe, a
classe operária é dividida numa série de grupos e subgrupos,
como se fosse uma única corrente, composta de uma
série de elos, cuja solidez seja variável.

É esta heterogeneidade de classe que torna


um partido indispensável.

Com efeito, suponhamos por um instante que a classe


operária seja perfeita e absolutamente homogênea. Ela
poderia então a qualquer tempo agir como massa compacta.
Para a direção de todas as suas ações, poder-se-ia escolher
os homens ou os grupos por turnos: uma organização
continua de direção seria supérflua, essa necessidade não se
faria sentir.

491
A Teoria do Materialismo Histórico N. Bukarin

A realidade é bem diferente. A luta da classe operária é


inevitável. Uma direção é indispensável para esta luta. Ela é
tanto mais indispensável, quanto mais o adversário é forte,
astuto, e a luta contra o mesmo é uma luta incruenta. Quem
deve dirigir toda a classe? Qual de suas partes? Está claro: a
mais avançada, a mais educada e a mais unida.

É esta parte que é o partido.

O partido não é uma classe, mas uma parte da classe,


talvez uma parte muito restrita, mas o partido é a cabeça da
classe. Eis porque é o cumulo do absurdo opor o partido à
classe. O partido da classe operária é o que exprime do
melhor modo os seus interesses de classe. Pode-
sedistinguir classe e partido do mesmo modo que se
distingue a cabeça do resto do corpo. É impossível opô-
los, da mesma forma que é impossível decapitar um homem
sob o pretexto de lhe prolongar a vida.

Do que depende, nestas condições, o sucesso da


luta? Das relações normais entre as diferentes partes da
classe operária, e antes de tudo, das relações normais entre
o partido e os sem-partido. É preciso, de um lado, dirigir e
comandar; doutro, educar e convencer. Sem educação e sem
convicção, não é possível dirigir. De um lado é preciso que o
partido seja compacto e organizado à parte, como
fazendo parte da classe operária. Doutro, ele deve unir-se
mais e mais estreitamente às massas sem partido, atraindo-
as cada vez mais para dentro de sua organização. O

492
A Teoria do Materialismo Histórico N. Bukarin

crescimento moral e intelectual duma classe encontra em


suma a sua expressão no crescimento do partido desta
classe. E inversamente, o declínio duma classe se exprime
no declínio de seu partido ou na diminuição de sua influência
sobre os sem partido.

Acabamos de ver que a heterogeneidade duma classe


tem por resultado a necessidade dum partido desta classe.
Mas as condições de vida capitalista e o baixo nível
intelectual não somente da classe operária, mas também de
outras classes, criam uma situação tal que à vanguarda do
proletariado, isto é, ao seu próprio partido, também falta
homogeneidade. Ele é mais ou menos homogêneo se o
compararmos às outras partes da classe operária, mas se
tomarmos as diferentes partes desta vanguarda, isto é, do
partido em si mesmo, põe-se facilmente a descoberto esta
heterogeneidade interna.

Retomamos aqui, ponto por ponto, o mesmo raciocínio


que há pouco para a classe.

Imaginemos um caso contrário à realidade, a saber, uma


homogeneidade perfeita do partido, sob todos os pontos de
vista: quanto à consciência de classe, quanto à experiência,
quanto à arte de dirigir, etc.. Não haveria então necessidade
de chefes. As funções de «chefe» poderiam ser assumidas
sucessivamente por cada um, sem mal para a causa.

Mas, de fato, esta plena homogeneidade não existe,


mesmo na vanguarda. E aí está a causa fundamental da

493
A Teoria do Materialismo Histórico N. Bukarin

absoluta necessidade de agrupamentos mais ou menos


estáveis de pessoas dirigentes, designadas pelo nome de
«chefes», «guias», «dirigentes», etc..

Os bons chefes são chefes porque exprimem da melhor


forma as justas tendências do partido. E do mesmo modo
que é absurdo opor o partido à classe, será absurdo opor o
partido aos seus chefes.

É contudo isto que temos feito, quando opunhamos a


classe operária aos partidos social-democratas ou às massas
organizadas de operários a seus chefes. Mas nós o fizemos e
o fazemos para destruir a social-democracia, para destruir a
influência da burguesia, que toma por seus intermediários os
chefes social-traidores. Mas seria estranho transportar tais
métodos de destruição das organizações inimigas para nós
mesmos, e apresentar isto como expressão do nosso espírito
revolucionário por excelência.

Descobre-se uma situação análoga nas outras classes.


Tomemos por exemplo a Inglaterra contemporânea. A
burguesia é aí a classe dominante, mas ela governa pelo
partido de Lloyd George ou de Stanley Baldwin, e o partido
de Lloyd George ou de Stanley Baldwin governa por
intermédio dos seus chefes.

Isto mostra bem, entre outras coisas, a inépcia das


lamentações proferidas contra a ditadura do partido
bolchevista na Rússia, ditadura que os inimigos da
revolução opõem à ditadura da classe operária. Depois do

494
A Teoria do Materialismo Histórico N. Bukarin

que acabamos de dizer, compreende-se bem que uma classe


dirige por intermédio da sua cabeça, isto é, do partido. E
é somente desta forma que pode dirigir. Portanto,
suprimindo-se a cabeça, isto é, o partido, atinge-se com o
mesmo golpe a própria classe, como classe para si, fazendo
dela, invés duma força social consciente e independente, um
simples fator de produção, nada mais.

Não é este naturalmente o modo de ver do sr. Heinrich


Cunow. Ele protesta contra o caráter de classe dos
partidos em geral. Eis sua argumentação (op. cit., t. II, p.
68):

"Um partido não pergunta a quem quer


que seja que queira aderir a ele:
"Pertences a esta ou aquela classe?" O
partido social-democrata também não
faz esta indagação. Pode aderir quem
quer que reconheça os seus princípios
fundamentais e suas reivindicações,
seu programa. E este programa
contém, não só reivindicações
econômicas determinadas, provocadas
pelo interesse, mas também, na mesma
forma que o programa de outros
partidos, opiniões determinadas,
políticas e filosóficas, exteriores à
esfera dos interesses materiais. (A
última frase grifada por nós, N. B.).

495
A Teoria do Materialismo Histórico N. Bukarin

Certamente a base da maior parte dos


partidos é um agrupamento
determinado de classe; mas pela sua
estrutura, todo partido é ao mesmo
tempo uma formação ideológica, o
representante dum complexo
particular de pensamentos políticos.
E muitas pessoas entram num partido
não devido aos seus interesses
particulares nem da classe que
representam, mas porque são atraídas
por este complexo ideológico".

Estes argumentos do principal teórico social-democrata


atual são extremamente instrutivos. O sr. Cunow, sem
suspeitar de nada, opõe os pontos de vista políticos e
filosóficos do partido às suas reivindicações econômicas.
Que é isto, cidadão Cunow? Que resta do vosso marxismo?
O programa é o mais alto grau da tomada de
consciência de todos os "complexos ideológicos". Os
"pontos de vista políticos e filosóficos" não estão suspensos
nas nuvens, nascem das contradições da existência destas
classes. Não somente não contradizem, mas pelo
contrário, exprimem estas condições de existência, e tanto
quanto se trata de reivindicações de programa, está claro
que as partes filosóficas e políticas servem de invólucro à sua
parte econômica.

496
A Teoria do Materialismo Histórico N. Bukarin

A mesma coisa pode-se estudar no partido do


sr. Cunow, a social-democracia alemã. Como ela incorpora
um número crescente de não operários, e se separa da classe
operária, apoiando-se, dentro da classe operária, sobretudo
na sua aristocracia qualificada, o complexo ideológico e
político do seu "programa" também se transforma. Nas suas
reivindicações, tornou-se extremamente moderada: e eis a
razão por que, ideologicamente, a social-democracia alemã
faz um marxismo deslavado, castrado, um "marxismo" do
sr. Cunow; eis porque ela escolhe para comentador do seu
programa o sr. Bernstein, há longo tempo traidor do
marxismo, e para filósofo oficial o sr. Vorlaender, idealista
kantiano.

59. AS CLASSES COMO INSTRUMENTO DE


TRANSFORMAÇÃO SOCIAL

Se se encara a sociedade como um sistema que evolui


objetivamente, vê-se que a passagem dum sistema de classe
(duma «formação social» de classe) a outro, se processa
através de uma luta violenta de classes. As classes são, na
evolução objetiva do processo das transformações sociais, o
aparelho vivo e fundamental de transmissão, por meio do
qual se produz toda a transformação do conjunto das
relações vitais da sociedade. A estrutura da sociedade se
transforma pelos homens e não ao lado deles e sem eles; as
relações de produção são um produto da atividade e da luta
humana, da mesma forma que o fio ou o tecido (Marx). Mas
se no meio da infinita quantidade de vontades individuais

497
A Teoria do Materialismo Histórico N. Bukarin

indo para as direções as mais diversas, e dando afinal uma


certa resultante social, tentamos isolar as direções
fundamentais, obteremos alguns feixes homogêneos de
vontades: estes serão as vontades de classe. A sua oposição
é particularmente sensível nas revoluções, isto é, quando a
sociedade toda se abala na passagem duma forma de classe
para outra.

Mas, doutro lado, sob as leis da evolução da vontade de


classe, no emaranhado de idéias diferentes, no choque de
vontades de classe opostas e diversas, escondem-se as leis
mais profundas da evolução objetiva, que, em cada fase,
determina os fenômenos de ordem voluntária.

Doutro lado, sabemos que os efeitos da vontade são


definidos pelas condições exteriores, isto é, que as mudanças
de condições susceptíveis de serem produzidas pela
influência em torno da vontade dos homens, são limitadas
pelo estado precedente destas condições. Assim, a luta de
classes e a vontade de classe constituem o aparelho de
transmissão que funciona na passagem duma estrutura
social para outra.

Nesta passagem, a nova classe deve agir como


organizadora e portadora duma nova forma de vida social
e econômica. Uma classe que não é portadora duma nova
forma de produção, não pode «refundir» a sociedade. Pelo
contrário, a força de classe que encarna as relações de
produção em gestação, e mais progressivas, constitui a

498
A Teoria do Materialismo Histórico N. Bukarin

alavanca viva da transformação social. Assim a burguesia,


portadora de novas relações de produção, duma nova
estrutura econômica, transportou, com as suas revoluções,
toda a sociedade das antigas vias feudais para as novas vias
da evolução burguesa; assim o proletariado, portador e
organizador do modo socialista de produção, sob a sua
fórmula primitiva de classe, transporta a sociedade, que
objetivamente não pode viver sobre sua antiga base, das
vias burguesas para as vias proletárias.

60. A SOCIEDADE SEM CLASSES DO FUTURO

Tocamos aqui numa questão que tem sido pouco


esclarecida pela literatura marxista. Eis no que ela consiste.
Vimos mais acima que a classe dirige por intermédio do
partido, o partido por intermédio dos chefes; que classe e
partido têm, por assim dizer, o seu quadro de comando. Este
quadro é tecnicamente indispensável, porque, como vimos,
ele nasce da heterogeneidade da classe e da não-
homogeneidade intelectual dos membros do partido. Noutras
palavras, cada classe tem seus organizadores. Se se encara
por este lado a evolução da sociedade, chega-se
naturalmente a propor esta questão: é possível a sociedade
sem classes de que falam os marxistas?

Com efeito, sabemos que as classes, elas mesmas,


derivam organicamente, como Engels frisou, da divisão do
trabalho, da necessidade de funções organizadoras para a
evolução da sociedade. Ora, está claro que a sociedade

499
A Teoria do Materialismo Histórico N. Bukarin

futura não precisará menos deste trabalho organizador.


Pode-se, é verdade, responder a isto que na sociedade futura
não haverá propriedade privada nem formação da sociedade
privada.

Ora, estas relações de propriedade privada são


precisamente o que constitui essencialmente uma classe.

Mas existe contra isto uma contra-argumentação.


Assim, por exemplo, o professor Robert Michela, no seu
interessantíssimo trabalho Zur Sociologie des Parteiwesen in
der modernen Demokratie (Sociologia dos partidos na
democracia contemporânea), Leipzig, edição do Dr. Werkner
Klinhkardt, 1910 (em alemão) escreve (p. 370):

«Existem ainda sobre este ponto


dúvidas muito reais, cujo exame atento
leva à integral negação da possibilidade
dum Estado (mais exatamente: duma
sociedade, N. B.) sem classes. A gestão
dum enorme capital (isto é, meios de
produção, N. B.)... dá aos
administradores um poder pelo menos
igual ao que lhes daria a posse dum
capital privado, a propriedade privada».

Desta forma, toda evolução social se apresenta no


máximo como uma troca, de grupos de chefes (V. Vilfredo
Pareto com a sua teoria daCirculação das elites).

500
A Teoria do Materialismo Histórico N. Bukarin

Importa examinar esta questão. Pois se esta teoria é


certa, a dedução que R. Michels tira, a saber, que
os socialistas podem vencer, mas não osocialismo, também
o é.

Tornemos antes um exemplo. Quando a burguesia


domina, ela domina, sabemo-lo, não simultaneamente por
todos os membros de sua classe, mas por seus chefes. No
entanto sabe-se e vê-se bem que isto não produz nenhum
desmembramento no interior da burguesia. Os senhores
nobres reinavam na Rússia por meio de seus funcionários
superiores, que representavam todo um quadro, toda uma
camada social. E no entanto, esta camada não se opunha,
como classe, aos demais senhores. Por que? Por esta razão
muito simples: porque a situação vital destes últimos não
diferia em nada da dos primeiros; o nível intelectual era
também, em linhas gerais, o mesmo, e é sempre na classe
dos senhores que se recrutavam aqueles que «dirigiam» o
aparelho do Estado.

Aí está porque Engels tinha perfeitamente razão quando


escrevia que as classes são, até um certo momento, a
consequência do insuficiente desenvolvimento das forças
produtivas: é preciso administrar, e «não existem sempre
meios suficientes para remunerar convenientemente a
administração». Daí, paralelamente ao desenvolvimento das
funções organizadoras, socialmente indispensáveis, o
crescimento simultâneo da propriedade privada. Mas a
sociedade comunista é uma sociedade onde as forças

501
A Teoria do Materialismo Histórico N. Bukarin

produtivas são muito desenvolvidas e se desenvolvem muito


depressa. Por consequência, não existe nela base econômica
para a criação duma classe dominante particular. Porquanto
— mesmo se supomos um poder estável de administradores,
segundo Michels — será um poder de especialistas sobre
máquinas, e não sobre homens. Com efeito, como poderiam
eles realizar este domínio sobre homens? Não teriam
nenhum meio para isto. Michels admite um ponto
fundamental e decisivo: toda posição dominante e
administrativa tem sido até hoje pretexto para a exploração
econômica. Mas um poder fechado, estável, dum grupo de
homens, não seria possível nem mesmo sobre as máquinas.
Porquanto a base das bases desaparecerá para a formação
de grupos monopolizadores deste gênero, ou seja o que
Michels classifica na eterna categoria de «incompetência da
massa». A «incompetência da massa» não é absolutamente
atributo obrigatório de toda vida em comum: ela é
precisamente, ela também, um produto de condições
econômicas e técnicas, que agem por intermédio da situação
intelectual geral e das condições de educação. A sociedade
futura verá uma grandiosa superprodução de organizadores,
de forma que não haverá mais estabilidade de grupos
dirigentes.

A questão é muito mais árdua no período de transição do


capitalismo ao socialismo, isto é, para o período da ditadura
proletária. A classe operária vence no momento em que não
é — e não pode ser — uma massa homogênea. Ela vence em
condições de declínio das forças produtivas e de insegurança

502
A Teoria do Materialismo Histórico N. Bukarin

das massas. Esta é a razão por que uma tendência para a


«degenerescência», isto é, para a separação duma camada
dirigente, como gérmen de classe, aparecerá fatalmente.
Mas doutro lado, ela será paralisada por duas tendências
opostas: o crescimento das forças produtivas e a supressão
do monopólio de instrução. A reprodução em grande escala
de técnicos e de organizadores em geral, saídos do seio da
classe operária, cortará pela raiz qualquer nova classe
eventual. O resultado da luta dependerá somente de saber
quais as tendências que se mostrarão mais fortes.

Assim a classe operária, tendo à sua disposição um


instrumento tão belo como a teoria marxista, deve lembrar-
se que é por suas mãos que se constitui e que se
estabelecerá definitivamente uma ordem de relações sociais
tal que se diferenciará em princípio de todas as formações
sociais do passado: da horda comunista primitiva, por isto
que será uma sociedade de homens de alta cultura,
conscientes deles mesmos e dos outros; das formas
fundadas sobre classes, por isto que, pela primeira vez, a
existência do homem será assegurada não somente para
alguns grupos isolados, mas para toda a massa dos homens,
massa que cessará de ser massa e se tornará sociedade
humana única, harmonicamente construída.

503
A Teoria do Materialismo Histórico N. Bukarin

SUPLEMENTO:

BREVES NOTAS SOBRE O


PROBLEMA DA TEORIA DO
MATERIALISMO HISTÓRICO
No meu livro «Teoria do Materialismo
Histórico», procurei não somente expor de novo o que tinha
sido dito antes, mas ainda dar-lhe outras fórmulas e, além
disso, precisar e desenvolver os princípios do materialismo
histórico, fazer avançar o estudo dos problemas que ele
comporta. Como é sabido, Engels dizia, pouco antes de sua
morte, que não se tinha dado senão os primeiros passos no
domínio do materialismo histórico. Assim, a tarefa imediata
que incumbia aos discípulos dos grandes mestres, lhe parecia
ser a de trabalhar no desenvolvimento desses problemas
teóricos. Porém, tal é a força do conservantismo inerente ao
pensamento humano, que muitos são organicamente
incapazes de compreender esta tarefa(1). Entretanto, o
estudo e a solução destes problemas estão na ordem do dia.
A literatura dos nossos adversários tem aumentado
formidavelmente. Nós devemos proceder a um contra-
ataque, e isto sobre a base ampliada de nossas próprias
teses teóricas. Nestas «breves notas» eu tentarei justificar
as «inovações» que se encontram em minha obra e que,
afirmo, estão inteiramente conformes com «a interpretação
a mais ortodoxa, a mais materialista e a mais revolucionária
de Marx»(2)

504
A Teoria do Materialismo Histórico N. Bukarin

1.º O «MECÂNICO» E O «ORGÂNICO»

Até os últimos tempos opunham-se estas noções em


nosso meio. No domínio das ciências sociológicas, nós,
marxistas, protestávamos contra «a explicação mecânica»,
preferindo falar de laços «orgânicos», etc., se bem que
fossemos completamente estranhos aos preconceitos do que
se chama a escola orgânica, em sociologia.

Depois, dois fatores decisivos apareceram: em primeiro


lugar a falência das concepções sobre a estrutura da
matéria; em seguida, o desenvolvimento extraordinário
do idealismo na ciência burguesa oficial. A revolução na
teoria sobre a estrutura da matéria mudou completamente a
concepção do átomo como unidade absolutamente isolada.
Ora, é precisamente esta concepção do átomo que se trazia
para o indivíduo («átomo» e «indivíduo» se traduzem em
russo por uma única e mesma palavra: «indivisível»). As
«Robinsonadas» nas ciências sociológicas correspondiam
exatamente aos átomos da antiga mecânica. Entretanto, no
domínio das ciências sociológicas, tratava-se precisamente
de conseguir «Robinsonadas». Era preciso enérgica e
resolutamente pôr em primeiro plano o ponto de vista social,
o que havia sido feito de maneira genial porMarx, opondo-se
às teorias dos individualistas burgueses, compreendendo
entre eles os brilhantes «clássicos» da economia política
(Smith eRicardo). Os protestos contra o elemento
«mecânico» no domínio das ciências sociológicas eram então
justificados? Evidentemente que sim.

505
A Teoria do Materialismo Histórico N. Bukarin

Mas é preciso não se limitar a lembrar termos, sem


compreender a essência da questão. Agora, o que é justo
dialeticamente se transforma em seu contrário. Pois a
concepção atual da matéria transtornou as antigas idéias. O
átomo isolado e desprovido de qualidade morreu. O
elemento do vinculo, da interdependência, da eclosão de
qualidades novas, etc., foi restabelecido em todos os seus
direitos. Opor o «mecânico» ao «orgânico» é, deste ponto de
vista, uma falta de senso.

Por outro lado, a extensão que o idealismo tomou na


ciência e na filosofia burguesa conduziu
ao misticismo «orgânico. A concepção de «vida» tornou-se
mística (Bergson, Drisch e seus compadres). Que se segue
daí? Que é preciso, na nossa ideologia, renunciar à antiga
oposição entre o mecânico e o orgânico, se quisermos
seriamente lutar pela concepção materialista do mundo em
geral e pela sociologia materialista em particular.

2.º DIALÉTICA E TEORIA DO EQUILÍBRIO

Marx, sabe-se, despiu à dialética de seu invólucro


místico, expondo a tese segundo a qual a dialética, como
categoria do pensamento, é o reflexo da dialética no
processo do pensar real, material, pois o «ideal» não é senão
o «material» traduzido no cérebro humano numa língua
especifica. Entretanto, tenta-se ainda, e de mais em mais
frequentemente, destacar o processo pensado do processo
material, transformar a dialética em uma construção

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A Teoria do Materialismo Histórico N. Bukarin

puramente ideológica, em um método ao qual não


corresponde nenhuma realidade. A este respeito, o «austro-
marxismo», com o seu teórico Max Adler, é típico. Como
combater-se este desvio manifestamente antimaterialista do
marxismo? É claro que é preciso pôr em evidencia a raiz
material da dialética, isto é, encontrar nas formas da matéria
em movimento aquilo ao que «corresponde» a fórmula
dialética de Hegel. O choque incessante das forças, a
desagregação, o desenvolvimento dos sistemas, a formação
de sistemas novos e o seu próprio movimento, em outros
termos, a destruição contínua do equilíbrio, o seu
restabelecimento sobre uma outra base, restabelecimento
seguido de uma nova destruição, e assim por diante, eis o
que corresponde de maneira real à tríade de Hegel. Que trás
de «novo» esta interpretação? No fundo, nada. Ela porém
sublinha o processo material e o movimento da
forma material. Em outras palavras, tem-se aqui a dialética
do pensamentomaterial, expressa ideologicamente pela
tríade hegueliana.

Increpar esta formulação por ser mecânica, é errar, e


isto porque não se pode opor a mecânica atual à dialética.
Se a mecânica não é dialética, isto é, se o movimento no seu
conjunto não é dialético, que fica então da dialética? Ao
contrário, o movimento constitui, se assim nos podemos
exprimir, a alma material do método dialético e sua base
objetiva.

507
A Teoria do Materialismo Histórico N. Bukarin

Marx e Engels despiam a dialética de seu invólucro


místico na ação, isto é, nela aplicando, de maneira
materialista, o método dialético no estudo dos diferentes
domínios da natureza e da sociedade. Trata-se agora de
fazer uma exposição teórica sistemática deste método e de
assentá-lo sobre uma argumentação igualmente teórico
sistemática. Chega-se a este resultado precisamente
pela teoria do equilíbrio.

Há ainda um argumento, e não dos menores, em favor


da teoria do equilíbrio. Esta teoria desembaraça a concepção
do mundo de um certo elemento teleológico inevitavelmente
ligado à formulação hegueliana, que repousa sobre a
evolução imanente do «espírito». Em lugar de evolução,
eunicamente de evolução, ela permite ver também os casos
de destruição das formas materiais. Por isso mesmo, ela
constitui uma formula mais geral das leis que regem os
sistemas materiais em movimento, fórmula que é, além
disso, expurgada de todo elemento idealista.

3.º TEORIA DO EQUILÍBRIO E FORÇAS PRODUTIVAS

A questão fundamental para a teoria do materialismo


histórico é a de saber porque se tomam as forças produtivas
como causa final, como causa que tudo explica (em última
análise). Sobre este ponto há uma diferença bem marcada
entre os marxistas (aí compreendidos os marxistas
ortodoxos, os comunistas). Frequentemente conduz-se a
questão para a «teoria dos fatores», teoria, manifestamente

508
A Teoria do Materialismo Histórico N. Bukarin

sem valor, ao mesmo tempo que se substitui a noção das


forças produtivas pelas das relações de produção («fator
econômico»). Muitas vezes levanta-se a questão do ovo e da
galinha do ponto de vista da sua «gênese». A solução que dá
o próprio Plekanov (no ponto de vista monista) não é
satisfatória. Como ele apresenta a questão? Ele toma a
controvérsia entre duas correntes de pensamentos: uma que
afirma: «as opiniões regem o mundo» e outra que assevera
que «as condições de vida criam o homem». Para empregar
a nossa terminologia, diríamos superestruturas e base. A
superestrutura influi sobre a base? Sim. A base influi sobre
a superestrutura? Sim, igualmente. E Plekanov reconhecia
que, posta assim, a questão é insolúvel. Onde está pois a
solução? Segundo Plekanov, ela está no fato de que estas
duas grandezas que influem uma sobre a outra dependem
de uma terceira (as forças produtivas). É isso justamente
que resolve todo o problema.

Não é entretanto difícil de ver que, desta maneira, a


questão não é senão afastada e não resolvida. Com efeito, a
superestrutura e a base influem elas por sua vez sobre as
forças produtivas? Sim. E estas sobre aquela? Sim,
igualmente. Assim a questão apresenta-se de novo, sobre
outra base, e é tudo.

É esta a questão central da sociologia. Pois se a isso não


se responde no espírito do monismo metodológico e procura-
se entrincheirar-se atrás da «teoria dos fatores», não se

509
A Teoria do Materialismo Histórico N. Bukarin

tratará mais, como o faz notar com justeza o professor


burguês alemão E. Brandenburg:

«senão de uma diferença quantitativa na


apreciação das influencias econômicas e
espirituais»(3).

Mas então ter-se-á uma teoria que antes de tudo nada


absolutamente explica e por conseguinte nada tem de
marxista.

O professor Brandenburg inclina-se graciosamente


diante desta assim dita teoria marxista. Mas eis aqui o que
ele diz da verdadeira concepção materialista da história:

«Ela quer ligar todas as variações da


vida em comum dos homens às
mudanças que sobrevêm no domínio das
forças produtivas; mas ela não pode
explicar porque estas últimas devem,
elas próprias, mudar constantemente e
porque esta mudança deve
necessariamente se efetuar na direção
do socialismo»(4)

É precisamente esta fórmula do professor Brandenburg


que melhor pode nos servir para pôr no justo lugar a
nossa própria metodologia na solução do problema
sociológico em questão, problema que, eu repito, é capital.

510
A Teoria do Materialismo Histórico N. Bukarin

A única resposta justa a esta questão é esta: as forças


produtivas determinam a evolução social porque elas
exprimem a correlação entre a sociedade, conjunto real
determinado, e o seu meio... Ora a correlação entre o meio
e o sistema é uma grandeza determinando, em última
análise, o movimento de não importa que sistema.

Está aí uma das leis gerais que regem a dialética da


forma em movimento. É o quadro no qual se produzem os
deslocamentos moleculares das forças e onde se atam, se
desatam e se entrecruzam as inúmeras ações, reações e
contradições. Que as forças produtivas sofram
modificações sob a influência da «base» e das
«superestruturas», a constatação dessas influencias não
altera em nada este fato fundamental: a correlação entre a
sociedade e a natureza, a quantidade de energia material
sobre a qual vive e sociedade e que é susceptível de toda a
sorte de transformações no processo da vida social, é cada
vez uma grandeza determinante.

É assim, e unicamente assim, que pode ser resolvido o


problema fundamental da teoria do materialismo histórico.

4.º RELAÇÕES DE PRODUÇÃO

Segundo Marx, as relações de produção são a base


material da sociedade. Entretanto, entre numerosos grupos
marxistas (ou, antes, pseudo-marxistas), existe uma
tendência irresistível para «espiritualizar» esta base

511
A Teoria do Materialismo Histórico N. Bukarin

material. Os progressos da escola e do


método psicológicos na sociologia burguesa não podiam
deixar de «contaminar» os meios marxistas e semi-
marxistas. Este fenômeno caminhava de par com a influência
crescente da filosofia acadêmica idealista. Puseram-se a
reproduzir em obras inferiores a construção de Marx,
introduzindo-lhe sob a sua basematerial a base psicológica
«ideal», a escola austríaca (Böhm-Bawerk), de L. Word
e tutti quanti. Presentemente também, a iniciativa parte
outra vez do austro-marxismo teoricamente em decadência.
Põem-se a tratar da base material no espírito do «Pickwick
Club». O econômico, o modo de produção passaram para a
categoria inferior de reações psíquicas. O alicerce sólido
do material desapareceu do edifício social.

Na literatura russa, esta transformação psicológica do


marxismo foi proseguida sistematicamente nas obras de A.
Bogdanov. Segundo Bogdanov, a própria técnica não é uma
coisa material, mas a habilidade dos homens, a arte de
trabalhar com o auxilio de instrumentos determinados, um
treino psicológico, por assim dizer.

É evidente que um tal marxismo «psiquizado» afasta-se


nitidamente do materialismo sublinhado «con
amore» por Marx, em sociologia.

Como pois considerar o caráter material das relações de


produção?

512
A Teoria do Materialismo Histórico N. Bukarin

Na literatura marxista, não se deu, segundo me parece,


resposta precisa a esta questão, e é o que explica em parte
que construções «psicológicas», às quais não se pode negar
uma certa unidade e uma certa lógica, exercem ainda
influência sobre espíritos marxistas(5).

Como resolver este problema? O adversário trás uma


série de argumentos sérios. O mais importante é que
a concepção das relações entre os homens pressupõe a ação
psíquica recíproca destes últimos. O laço de trabalho se torna
assim um vinculo de ordem psíquica e como não se pode
duvidar que a criação e a manutenção dessas relações
constituem um processo psicológico resultante de atos
psíquicos objetivando-se sobre o plano social, o caráter
social psíquico da «base» se acha por isso mesmo
estabelecido.

Eu afirmo que a esta argumentação nada foi oposto em


nossos meios. Eis porque eu proponho uma solução
nova, materialista, do problema, solução conforme as
de Marx. Ei-la:

Como relações de produção, eu entendo a coordenação


dos homens (considerados como «máquinas vivas») pelo
trabalho no espaço e no tempo.O sistema dessas relações é
tão pouco «psíquico» quanto um sistema planetário com o
seu sol. A determinação do seu lugar em cada ponto
cronológico, eis o que constitui um sistema. Deste ponto de
vista, toda atribuição de caráter psíquico desaparece pela

513
A Teoria do Materialismo Histórico N. Bukarin

base. E o fato de que os elementos psíquicos são um fator


intermediário, não destrói nem afeta o encadeamento do
nosso argumento: toda superestrutura serve de fator
intermediário no processo de reconstituição em comum da
vida social.

Eu considero esta solução como a única justa e como a


única materialista. Só ela, além disso, permite refutar Adler
e seus pares.

5.º SUPERESTRUTURA E IDEOLOGIA. ESTRUTURA DAS


SUPERESTRUTURAS

A análise destes fenômenos sociais, no seu «corte»


estático(6), tem sido extremamente insuficiente.

Daí uma série de mal entendidos, erros, assim como


impasses teóricos e explicações falsas ou fictícias. Por
exemplo, caía-se sobre um laboratório cientifico, com seus
instrumentos de trabalho, suas relações particulares de
trabalho, etc.. Concluia-se daí que o trabalho de laboratório
(por extensão, todo trabalho cientifico) se refere à produção.
Proseguindo mais longe o desenvolvimento desta tese,
acabava-se por achar que todo o trabalho socialmente útil é
um trabalho produtivo. Resultado: tudo reentrava na
«produção», e a teoria marxista se transformava em
explicação absurda da parte pelo todo, nada mais do que
isso. Ou melhor, não se sabia onde colocar, no esquema
arquitetural de Marx, fenômenos tais como uma associação

514
A Teoria do Materialismo Histórico N. Bukarin

científica, um aparelho burocrático, uma sociedade filosófica,


um observatório astronômico.

Eis porque eu propus, em meu livro, separar as


noções ideologia e superestrutura, tomando esta última
como noção mais larga e mais geral. A ideologia é o sistema
de idéias, de sentimentos, de imagens, de normas, etc.. A
superestrutura engloba ainda muitas outras coisas. Nas
superestruturas é preciso distinguir três esferas principais:

1. — A técnica da superestrutura, os
«instrumentos de trabalho» (utensílios de
laboratório nas ciências; casas, canhões,
máquinas de calcular, diagramas, etc., no
aparelho estático; pincéis, instrumentos de
música, etc., na arte, etc.).
2. — As relações entre os homens
(associação científica, organização burocrática,
relações das pessoas em um «atelier» artístico,
coordenação dos músicos em uma orquestra).
3. — Os sistemas de idéias, de imagens, de
normas, de sentimentos, etc.. (ideologia).

Eu procurei ainda levar esta análise adiante, isto é,


esboçar as linhas de um fracionamento e de uma
diferenciação ainda maior (notadamente na música). Assim
desaparecia uma série de dificuldades, e o método histórico-
materialista tornava-se mais exato e mais preciso.

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A Teoria do Materialismo Histórico N. Bukarin

6.º DEPENDÊNCIA DAS SUPERESTRUTURAS EM RELAÇÃO


À BASE

O ponto de vista acima exposto permite apresentar, de


maneira muito mais concreta, a questão da dependência das
superestruturas em relação à base e, em seguida, às forças
produtivas. O vício fundamental da posição sumaria da
questão residia e reside na indeterminação da noção de
dependência ou de determinação. Foi o que deu lugar a
«desvios» nos meios marxistas e vizinhanças. É bastante
citar, entre muitas outras, as obras do camarada
Chuliatikov (Justificação do capitalismo na filosofia da
Europa Ocidental), ou de Eleutheropulos e outros. Nossos
inimigos, em suas críticas, têm, muitas vezes, explorado esta
divergência. Entretanto, se se distingue em cada
superestrutura os elementos que a constituem, não é difícil
demonstrar que ela é: 1.º a dependência concreta desses
elementos em relação um ao outro; 2.º sua dependência em
relação aos elementos das outras superestruturas; 3.º a
dependência destes últimos em relação à base; 4.º a
dependência direta destes elementos em relação à base; 5.º
sua dependência da técnica, etc.. Por isso mesmo
desaparecem todos os «desvios», simplificação,
vulgarização, posição sumária da questão. Ao contrário, isso
impõe, é verdade, ao investigador a obrigação de «cavar»
profundamente a análise da superestrutura que ele estuda,
isto é, de se entregar a um trabalho extremamente
minucioso. Mas convenhamos que isso não pode constituir
um argumento contra as minhas «inovações».

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A Teoria do Materialismo Histórico N. Bukarin

7.º AS SUPERESTRUTURAS COMO ESFERAS DE TRABALHO


DIFERENCIADO

Eu me propus igualmente analisar as superestruturas do


ponto desvista do trabalho. Não é sem razão
que Marx falava de «produção intelectual» e de «clãs»
ideológicos (ideologische Stands). Eu não falarei aqui do
valor pratico destas questões, especialmente para a nossa
época e para o nosso partido. Eu me limitarei a justificar de
maneira puramente teórica este «aspecto» da questão.

Em primeiro lugar, o ponto de vista mencionado acima


esclarece maravilhosamente a questão da correlação
existente entre a produção materiale as produções
«intelectuais» e mostra com evidencia o absurdo que há em
apresentar a questão em bloco também neste domínio (tudo
o que é «útil», é produção). Com uma tal solução da questão,
é claro que o trabalho intelectual de alguma
forma deriva constantemente, depois sediferencia da
produção material; as questões casuísticas sutis
concernentes às categorias situadas mesmo nos confins
destes domínios, são metodologicamente afastadas, do
mesmo modo que as «terríveis» questões concernentes aos
agrupamentos sociais intermediários e outras grandezas
variáveis.

Em segundo lugar, uma tal maneira de apresentar a


questão permite explicar a necessidade da aparição de tal ou
qual gênero de trabalho superestrutural, assim como a

517
A Teoria do Materialismo Histórico N. Bukarin

disposição particular dos diferentes ramos deste trabalho,


isto é, suas dimensões relativas numa determinada
sociedade. (Antes, parece-me, não se propunham questões
como a da proporção entre o trabalho material e o trabalho
não material, entre os diferentes gêneros de trabalho
«espiritual» e assim por diante. Entretanto, isto é
indispensável, para explicar toda uma série de fenômenos
essenciais. Compare-se, por exemplo, o valor pratico que
tem para nós a questão da produção material e do aparelho
administrativo burocrático).

8.º O MODO DE REPRESENTAÇÃO E OS PRINCÍPIOS


FORMANDO A VIDA SOCIAL

Como teórico, eu julguei dever pôr em primeiro plano a


tese de Marx sobre o «modo de
representação» (Vortstellimgsweise), tese que todo mundo
esqueceu. Não resta dúvida que, em Marx, esta concepção
era correlativa à do «modo de produção». Em outros termos,
a um modo dado de produção corresponde um modo de
representação adequado a este último e determinado por
ele. Marx não expôs a questão do modo de representação
com uma lógica tão clara e tão precisa como a do modo de
produção. Mas, várias notas isoladas (por exemplo, sobre a
necessidade de estudar a questão dos «clãs intelectuais»,
etc..) mostram claramente seu ponto de vista sobre a
maneira de colocar estes problemas. Assim se resolve a
questão concernente ao «estilo» fundamental único da vida
social, da base à cumeeira, assim como o caráter

518
A Teoria do Materialismo Histórico N. Bukarin

historicamente relativo de todas as ideologias, consideradas


não do ponto de vista de seus princípios (que podem ser
eternos), mas do ponto de vista dos tipos de
ligaçãoexistentes entre elas, dos princípios particulares de
coordenação que são o índice constitutivo da concepção do
«modo de representação».

9.º A FISIOLOGIA HUMANA E AS LEIS DA EVOLUÇÃO


SOCIAL

Eu procurei conduzir para um terreno inteiramente novo


os debates intermináveis sobre a correlação das leis da
biologia e da sociologia, etc.. Assim, eu considero as
particularidades fisiológicas dos agrupamentos humanos,
assim como as particularidades psicológicas que lhes
correspondem, como a qualificação das forças de trabalho
determinadas da sociedade (particularidades psico-
fisiológicas do carregador, do músico, do industrial, do
comerciante, do espião, do chauffeur, do oficial, etc.). Esta
solução do problema não implica de nenhum modo este
absurdo desdobramento das «leis» que se encontra a cada
instante mesmo nas melhores obras marxistas (de um lado,
as leis da biologia, da fisiologia, etc., do outro, as da
evolução social). Na realidade, há aí dois aspectos de uma
única coisa. Um só e mesmo fenômeno é considerado de
diferentes pontos de vista. A estrutura psico-fisiológica do
carregador e a qualificação de seu trabalho não são duas
grandezas diferentes, mas duas maneiras de considerar uma

519
A Teoria do Materialismo Histórico N. Bukarin

única e mesma grandeza. É o que aparece com uma clareza


particular no estudo do taylorismo, da psicotécnica, etc..

10.º MATERIALIZAÇÃO DOS FENÔMENOS SOCIAIS

Outra «inovação» minha é a teoria que expus sobre a


materialização dos fenômenos sociais, sobre o processo
especial de acumulação da cultura, que se produz quando a
psicologia e a ideologia sociais se condensam e se cristalizam
sob forma de coisas, tendo uma existência social original.
Estas psicologia e ideologia sociais materializadas se tornam,
por sua vez, o ponto de partida de toda evolução ulterior
(livros, bibliotecas, galerias de arte, museus, etc.). Se a
materialização dos fenômenos sociais é uma das leis
fundamentais do desenvolvimento da sociedade, é claro que
é por aí que é preciso começar a análise nos domínios
correspondentes (isto é, nas superestruturas). Aqui ainda, o
ponto de vista materialista encontra uma nova
confirmação(7).

11.º A LEI DO PERÍODO DE TRANSIÇÃO E A LEI DA


DECADÊNCIA

Uma das objeções capitais levantadas contra o


materialismo histórico, é a da, suposta essência mística,
em Marx, das forças produtivas, que devem, não se sabe
porque, se desenvolver custe o que custar. É preciso
reconhecer que, em suas obras, numerosos marxistas
«exigem» este desenvolvimento. Marx, porém,

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A Teoria do Materialismo Histórico N. Bukarin

pessoalmente, não está por isso, pois ele tem por muitas
vezes assinalado o caso de «destruição das duas classes em
luta» e, ao mesmo tempo, de toda a sociedade, portanto de
suas forças produtivas. A questão de saber se a sociedade é
destinada a se desenvolver ou a perecer, não pode ser
resolvida de maneira abstrata nem em um sentido nem em
outro. Ela não pode ser solucionada senão sobre uma base
concreta.

Do mesmo modo, está demonstrado empiricamente que


os períodos de transição, acompanhados de revoluções,
estão ligados a uma decadência temporária, mais ou menos
prolongada, das forças produtivas.

Por consequência, a fórmula habitual das bases teóricas


do materialismo histórico que começa pelas palavras: «O
crescimento das forças produtivas», é por demais restrito,
pois ela não abrange nem as épocas de decadência, nem os
períodos transitórios revolucionários.

Eis porque, ainda aqui, como teórico, eu julguei de meu


dever fazer a análise da lei destes fenômenos que têm
desempenhado um papel importante. E isto é tanto mais
necessário fazê-lo, quanto, sem esta análise, é impossível
compreender o período atual. Assim pois caracterizei
socialmente com precisão, e nos quadros gerais da teoria,
estes períodos como período de regressão das forças
produtivas sob a influência das superestruturas, com
limitação constante deste fenômeno pelo estado anterior das

521
A Teoria do Materialismo Histórico N. Bukarin

forças produtivas; em outros termos, caracterizei a lei


fundamental destes períodos como o processo temporário da
reação das superestruturas (nos casos de período transitório
até o momento em que se estabelece um novo equilíbrio
social).

Por outra parte, esforcei-me por dar a fórmula


das fases necessárias no processo da revolução,
apoiando.me em parte, (como na Economia do período de
transição) sobre as observações do camarada Kritzman, a
quem cabe a prioridade da solução deste problema. Deste
modo a teleologia foi expulsa do seu último refugio.

Eu não mencionei aqui senão as minhas principais


«inovações». Eu poderia enumerar uma série de outras,
notadamente no que concerne à doutrina das classes, às
relações entre os chefes e o partido, à doutrina da revolução,
etc.. Infelizmente, falta-me o tempo. Eu me desculpo
portanto, junto ao leitor, do caráter fragmentário destas
«breves notas». Como se pôde ver, os problemas que temos
diante de nós são bastante complexos. Na medida de minhas
forças, procurei resolve-los. Para todo homem inteligente, e
com mais forte razão para todo bolchevique, é claro que a
tendência geral das minhas «inovações» está conforme à
interpretação ortodoxa, revolucionária e materialista
de Marx. Aceitarei com reconhecimento toda observação
proveitosa, pois aqui, como em qualquer outro domínio, uma
ampla colaboração é indispensável. «Mas, dirá talvez o leitor,
como se explica que nenhum dos vossos críticos tenha

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A Teoria do Materialismo Histórico N. Bukarin

mesmo mencionado todos esses problemas importantes,


fundamentais?»

«Perguntai ao vento nos campos», como dizia Knut


Hamsun, em outra circunstância.

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