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ALINE HIGA

Coleta, Acúmulo e Edição

Curitiba

2008
ALINE HIGA

Coleta, Acúmulo e Edição

Monografia apresentada para obtenção

do Título de Especialista no Curso de

Pós-Graduação em História da Arte

Moderna e Contemporânea, Escola de

Música e Belas Artes do Paraná.

Orientador: Prof. Dr. Ingo Harold

Moosburger

Curitiba

2008
“Pode-se classificar a imensa vegetação dos objetos como uma flora ou uma fauna,

com suas espécies tropicais, glaciais, suas mutações bruscas, suas espécies em vias de

desaparição? A civilização urbana vê sucederem-se, em ritmo acelerado, gerações de

produtos, de aparelhos, de gadgets, frente aos quais o homem parece uma espécie

particularmente estável. Tal abundância, caso se reflita a respeito, não é mais estranha do que

a das inumeráveis espécies naturais. Ora, estas, o homem as inventariou. E na época em que

começou a fazê-lo sistematicamente, pôde também, por intermédio da Enciclopédia, fornecer

um quadro exaustivo dos objetos práticos e técnicos pelos quais se achava cercado. A partir

daí o equilíbrio rompeu-se: os objetos cotidianos (não nos referimos às máquinas) proliferam,

as necessidades se multiplicam, a produção lhes acelera o nascimento e a morte, falta

vocabulário para designá-los. (...) Essa espécie de epopéia do objeto técnico, assinala as

mudanças de estruturas sociais ligadas a essa evolução técnica, mas pouco diz sobre a questão

de saber como os objetos são vividos, a que necessidades, além das funcionais, atendem, que

estruturas mentais misturam-se às estruturas funcionais e as contradizem, sobre que sistema

cultural, infra ou transcultural, é fundada a sua cotidianidade vivida.”

(Jean Baudrillard. O Sistema dos Objetos)


INTRODUÇÃO

Coleta, Acúmulo e Edição formam um processo de pintura aqui apresentado, que

é baseado na relação de convivência entre os materiais e objetos, e como isso pode se

transformar em objeto artístico.

Pelo viés da tríade-tema, este trabalho tem o intuito de apresentar o processo

específico desta pesquisa, e ao mesmo tempo apresenta-se ao observador como um

método para assimilar toda espécie de conteúdo, como será proposto na conclusão.

Coleta, Acúmulo e Edição são etapas da pesquisa plástica, que aqui é

desenvolvida em conjunto com a pesquisa teórica, e percebe empiricamente a teoria

apreendida, resolvendo e descobrindo novas questões teóricas com a ação plástica –

empírica e imprevisível, pois que a inserção de cada novo elemento muda todo o

conjunto.

A Coleta consiste em recolher objetos e informações para mantê-las próximas e

possibilitar a visualização do conjunto. Em Arte Moderna, Giulio Carlo Argan explicou

que “é o modo de comportamento próprio das épocas pré-históricas; e isso justamente

porque a humanidade ainda não formulou um projeto acabado de seu desenvolvimento.”1

O Acúmulo deixa à mão coisas que provavelmente serão necessárias em

momentos futuros, é um universo de instrumentos e possibilidades. E faz com que os

processos, sem prazos – já que sem projeto – possam levar o seu tempo de maturação, o

mais perto possível do natural, como os vinhos, que perdem qualidade quando o processo

de sua produção é acelerado.

1
In: ARGAN, Arte Moderna, pág. 558
Além disso, sempre gostei de guardar o que se pode chamar de tranqueiras, com a

suspeita de que as usaria em alguma ocasião futura2. A tranqueira poderia desempenhar a

mesma função primária novamente, ou poderia desempenhar outra função, ou ainda,

como declarou, em 1945, Pablo Picasso:

“Você se lembra daquela cabeça de touro exposta recentemente? Com o guidão e o selim de uma

bicicleta fiz uma cabeça de touro que todos reconheciam como cabeça de touro. Dessa maneira, completou-

se uma metamorfose; agora, eu gostaria de ver outra metamorfose ocorrer na direção oposta. Suponhamos

que a minha cabeça de touro seja jogada no lixo. Talvez algum dia uma pessoa chegará e dirá: ‘Ora, ali está

alguma coisa que seria muito boa para usar como guidão para a minha bicicleta...’ Assim, uma dupla

metamorfose se teria realizado.”3

Seja como guidão, ou como cabeça de touro, seja como velas em castiçais ou

monumentos de poucos centímetros de altura, os objetos do acúmulo são amostras da

natureza em que estou inserida. Os materiais utilizados são objetos que compõem o meu

cotidiano, que convivem – funcionalmente ou não - com os corpos dos outros elementos

do acúmulo doméstico, inclusive com corpos humanos que também habitam ali; por isso,

esse acúmulo tem uma dinâmica onde os corpos dos objetos, e também seus conceitos,

aproximam-se e afastam-se, combinam-se em decorrência da movimentação dos

moradores.

Sendo o acúmulo um conjunto de amostras, apresenta uma configuração em bases

que nos ajudam a entender o objeto estudado.

2
“Primeiro é preciso constatar que o conceito de coleção distingue-se do de acumulação. (...) [Na coleção]
estes objetos são acompanhados de projetos.” In: BAUDRILLARD, O Sistema dos Objetos, pág 111
3
In: CHIPP, H.B., Teorias da Arte Moderna, pág. 278
“Desde que uma informação goza das vantagens do inscrito, do cálculo, da classificação, do

superposto, disto que se pode inspecionar com o olhar, ela se torna comensurável com todas as outras

inscrições pertencentes a realidades até então estranhas umas às outras.”4

Meu acúmulo é fortemente marcado pela catalogação. Inventariar o material e as

informações é uma ação valiosa, para ter ciência do campo.5

“E se a terminologia técnica da informação nos desagrada, podemos dizer que o que entesouramos

não é ‘informação’, mas ‘significado poético, significado fantástico, sentido profundo da palavra poética’;

distinguindo-o do significado comum teríamos afinal feito a mesma coisa; e se ainda aqui falarmos em

informação para indicar a riqueza dos sentidos estéticos de uma mensagem, isso visará a realçar as

analogias que nos interessam.”6

Edição é a escolha de elementos e a sua combinação, processos que acontecem de

acordo com alguns critérios que mudam, eles mesmos, de acordo com o processo de

formação. Este será detalhado no Segundo Capítulo: Formatividade, e o assunto será

ainda retomado na conclusão, a propósito da autonomia da obra.

O Primeiro Capítulo apresenta as origens da pesquisa, trabalhos anteriores

também resultado de processos de coleta, acúmulo e edição, e cujas questões se estendem

até a presente pesquisa. Uma das questões é o encontro de duas entidades autônomas;

4
In: PARENTE, André. Imagens que a Razão Ignora, pág. 10
5
Ou ainda: “As espécies animais e vegetais não são conhecidas porque são úteis; elas são consideradas
úteis ou interessantes porque são primeiro conhecidas. Pode-se objetar que uma tal ciência não deve
absolutamente ser eficaz no plano prático. Mas, justamente, seu objetivo primeiro não é de ordem prática.
Ela antes corresponde a exigências intelectuais ao invés de satisfazer às necessidades.” In: LÉVI-
STRAUSS, O Pensamento Selvagem, pág. 24
6
In: ECO. Obra Aberta, pág. 123
outra é o limite entre o industrial e a natureza, pois nosso ambiente é abundante em

produtos industriais, uma terceira é o isolamento em espaços definidos.

O Segundo Capítulo apresenta os objetos estéticos produzidos neste processo.

Esses trabalhos são tridimensionais: feitos juntando-se peças e objetos encontrados, e

peças confeccionadas em ateliê; também no segundo capítulo exporei alguns

fundamentos teóricos que permeiam a pesquisa, cuja base é a definição de arte como

formatividade, apresentado por Luigi Pareyson em sua obra Os Problemas da Estética; e

o conceito de bricolagem exposto em O Pensamento Selvagem, de Claude Lévi-Strauss.

Coleta, Acúmulo e Edição são também a base da pesquisa teórica, pois as idéias,

também as acumulamos para uso futuro, e as combinamos e editamos de acordo com as

circunstâncias, em processos de formatividade e bricolagem.


CAPÍTULO 1: As Origens da Pesquisa

Durante o último ano do curso de graduação, dediquei-me à pesquisa do Processo

como Resultado Evidenciado. Desenvolvi um trabalho em pintura que partia de materiais

cotidianos [ilustrações 1 e 2].

Pouco depois, do refugo da sociedade de consumo para uma moldura de slides foi

o ponto de partida que resultou na série Santa Terezinha: A Santa do Amor no Cotidiano.

Os diapositivos resultantes desse deslocamento do material eram digitalizados e, na

edição, alguns foram escolhidos e plotados em grandes dimensões [ilustração 3].

Quando essas imagens são ampliadas podemos perceber claramente muitos

detalhes dos elementos que as compõem: no caso dos impressos é possível ver as

retículas, as diversas cores que resultam em uma área aparentemente homogênea, e

também os espaços entre elas. Esse é ainda o desdobramento da mensagem dos

pequeninos expedientes contribuindo para a formação do todo harmonioso.

O trabalho que oficialmente inicia esta pesquisa é Fiat Lux, que apresenta objetos

formados com praticamente os mesmos materiais com que trabalho agora. São objetos

tridimensionais, porém os considero pintura. A série Fiat Lux é composta de três

momentos:
No 1º Momento [ilustração 4], ecrãs com imagens fixadas em caixas de fósforos

vazias são expostas em uma pequena galeria, cujo espaço é uma prateleira de madeira de

50x20cm, por onde transita o olhar do observador.

Para produzir as imagens, plastifiquei lã de aço molhada e um pouco de água

oxigenada. O calor inerente ao processo de plastificação catalisou a reação de oxidação

da lã de aço, e a água, além de colaborar com essa reação, serviu de mídia para que

partículas de ferrugem pigmentassem áreas próximas ao metal.

Esta ação foi realizada em suporte de formato A47 e, deste, foram selecionadas

secções de 30x40mm, então recortadas e fixadas sobre os suportes.

O 2º Momento [ilustração 5] consiste em dois objetos posicionados em um

suporte não previamente definido, dependente do que estiver disponível no espaço

expositivo; isso tira o observador do espaço narrativo anterior e o traz de volta ao espaço

da exposição.

Os dois objetos que compõem o 2º Momento são: uma vela decorada,

confeccionada em ateliê; e um objeto que, por sua vez, é formado pela união de velas

industriais e caco de vidro. Ambos foram produzidos como objetos solitários, e se

relacionaram diretamente apenas depois de prontos.

O 3º Momento [ilustração 6] tem como base um tabuleiro de xadrez, sobre o qual

estão apoiadas duas velas artesanais, com fundição da parafina em etapas distintas, e

pode-se perceber também o acréscimo de substâncias estranhas a ela, como a lã de aço e

pigmentos, e a modelagem com goiva.

7
210x297mm
CAPÍTULO 2: Os Trabalhos

Parte I – Quais são

De Coleta, Acúmulo e Edição participam 17 objetos.

Três deles compõem a série Fiat Lux, que apesar de formados anteriormente, são

a base para esta pesquisa.

A seguir, uma breve descrição dos trabalhos formados na pesquisa Coleta,

Acúmulo e Edição:

Objecto IV:

. [ilustrações 7 e 8]

. 23x21,5x23cm

. base cilíndrica de parafina branca, confeccionada em atelier. Sobre ela, um copo

de uísque; dentro dele, uma vela branca, queimada, e um anjinho de metal, que veio

dentro dessa vela, adquirida em loja de artigos religiosos. Sua fronteira com o espaço

transitável é marcado por uma estrutura vazada de madeira de pinus, formada por peças

encaixáveis. Com mais peças, forma-se uma adega. E, sobre a estrutura, como um

telhado, uma placa de parafina branca, confeccionada em atelier.

Objecto V:

. [ilustração 9]

. 23x21,5x6,5cm
. Neste trabalho, o objeto que recebe o espaço da obra é uma lata de bolachas,

antiga, feita de metal, que recebeu uma placa de parafina branca, e alguns respingos nas

laterais internas. Apoiado sobre a placa, no solo da lata, um vidro de esmalte de unha,

vazio mas com resíduos de esmalte cor-de-rosa. Uma caixa de madeira, confeccionada

sob encomenda, veste a lata, deixando aparente o encaixe para a tampa, de

aproximadamente 1cm.

Objecto VI:

. [ilustração 10]

. ø: 5cm h: 10,5cm

. papelão: cilindro de suporte de rolo de papel higiênico, envernizado. Um anel de

madeira é preso a ele com fio de nylon. Na base do cilindro, uma pequena camada de

parafina branca.

Objectos VII, XIII e XI:

. [ilustração 11]

. ø: 8cm h: 12cm

. papelão: vários cilindros de suporte de rolo de papel higiênico, cortados

longitudinalmente e encaixados uns sobre os outros. Colados com cola branca e pintados

com uma mistura de cola branca e pó de grafite.

Objecto VIII:

. [ilustração 12]
. ø: 5cm h: 7cm

. copo tipo martelinho, adquirido em lojas de utilidades domésticas. Dentro dele

uma vela, que foi queimada dentro do próprio copo, como castiçal.

Objecto IX:

. [ilustração 13]

. ø: 4cm h: 5cm

. vidro vazio de geléia, e dentro dele palitos de fósforo, virgens.

Objecto X:

. [ilustração 14]

. ø: 8cm h: 11cm

. papelão: cilindro de suporte de rolo de papel higiênico, cortado ao meio, preso a

uma placa circular de parafina, confeccionado em atelier. Sobre ela, uma vela branca.

Objecto XI:

. [ilustração 15]

. 14x16x9cm

. mídia (dvd) usada, dois pedaços de fita VHS colados na mídia, com fita adesiva.

Esta superfície é apoiada em um apoio para livros, composto por duas estruturas de mdf

encaixadas, adquirido em loja de produtos religiosos.

Objectos XII, XV, XVI, XVII:


. [ilustração 16]

. 3x2x4cm

. palito de fósforo vestido com tinta acrílica, fixados em borracha escolar.


Parte II: Formatividade

Os trabalhos mostrados no Capítulo 2, e também no Capítulo 1, que apresenta as

origens da pesquisa, seguem o modelo proposto na introdução: houve a coleta de

materiais, nesses casos, cotidianos, resultando em um acúmulo que conviveu e se

misturou com a rede funcional do espaço doméstico, e a escolha e combinação de

elementos, em diversas etapas de edição e reconhecimento do acúmulo.

Em seu livro Problemas da Estética, Luigi Pareyson deu três definições da arte:

arte como fazer, arte como conhecer e arte como exprimir; ele o faz para em seguida

apresentar a arte como formatividade, que reúne as três definições anteriores.

“A arte não é somente executar, produzir, realizar, e o simples ‘fazer’ não basta para definir sua

essência. A arte também é invenção. Ela não é execução de qualquer coisa já ideada, realização de um

projeto, produção segundo regras dadas ou predispostas. Ela é um tal fazer que, enquanto faz, inventa o por

fazer e o modo de fazer. (...) Nela concebe-se executando, projeta-se fazendo, encontra-se a regra operando,

já que a obra existe só quando é acabada, nem é possível projetá-la antes de fazê-la e, só escrevendo, ou

pintando, ou cantando é que ela é encontrada e é concebida e inventada. (...) Nela a realização não é

somente um ‘facere’, mas propriamente um ‘perficere’, isto é, um acabar, um levar a cumprimento e

inteireza, de modo que é uma invenção tão radical que dá lugar a uma obra absolutamente original e

irrepetível. Mas estas são características da forma, que é, precisamente, exemplar na sua perfeição e

singularíssima na sua originalidade. De modo que, pode dizer-se que a atividade artística consiste

propriamente no ‘formar’, isto é, ao mesmo tempo, inventar, figurar, descobrir.”8

8
In: PAREYSON. Os Problemas da Estética, págs. 25 e 26
Materialmente, com Fiat Lux eu comecei a me interessar bastante pela união de

parafina e vidro, então resolvi começar a acumular copos e afins. Adquiri copos de vidro

de vários formatos, em lojas de artigos domésticos, e lhes atribuí a função de castiçais.

Desempenhando a função imposta, em algum momento, um ou outro desses objetos

mostraram, com a mudança da altura da vela, a forma nascida do escorrimento da

parafina, uma proporção nas formas que me agradou, e resolvi manter esses instantâneos,

na medida em que aconteciam. Objecto XVIII é um dos vários instantâneos. Da mesma

maneira, a primeira peça de Objecto IV foi o copo com a vela. Este copo já fazia parte do

acúmulo doméstico; trincado em decorrência do uso, ele foi resgatado para a pesquisa. A

vela de dentro foi comprada em uma loja de artigos religiosos, o apelo dela era vir com

um anjinho de metal dentro, que revelar-se-ia enquanto a parafina derretia. Era

pequenininho o anjo e fiquei decepcionada, mas colei-o na parafina que escorria da sua

própria vela. Esse objeto ficou meses assim, junto com os outros instantâneos.

Participam ainda: copos tipo martelinho, um vidro de geléia que, acabado o doce,

eu usava para guardar cravos-da-índia; e vários vidros vazios de esmalte de unha, alguns

eu limpei, outros escorria o finzinho do esmalte, até secarem essas vias, e outros ainda

deixei como estavam.

Participam também várias velas. Compro de diversos tamanhos e espessuras, mas

todas brancas, para evitar simbolismo da cor. Mesmo os brancos são diferentes,

dependendo de sua massa e da pureza da parafina.

Há ainda canudos de papelão, que servem de suporte para o rolo de papel

higiênico. Gosto do tamanho deles, da cor e dos cortes diagonais no papelão. Acumulei
canudos desses por bastante tempo, sem saber o que faria com eles, mas quando

precisasse, já os teria em grande número.

Nesse tempo eu acumulei também leituras, para formar o texto. A pesquisa teórica

é quase toda de livros – discurso fechado, editado.

De um acúmulo material mais histórico, há uma caixa de metal herdada, que por

anos eu usei para guardar receitas avulsas; e ainda, argolas de madeira, cuja função inicial

era serem costuradas na cortina e encaixadas num varão, e que foram somadas ao

acúmulo por apresentarem um formato improvável para objetos de madeira.

Desde que onde há vela deve haver fogo, o acúmulo também conta com caixas de

fósforos; e, para finalizar, há borrachas escolares, comprei várias para fazer gravuras que

serviriam de selo, para arte postal.

Montando uma exposição de arte postal, composta de trabalhos literalmente leves,

pensei em utilizar os canudos de papelão na estrutura da exposição. Então eles ganharam

uma camada de verniz, para ficarem mais bonitos e fortes. Em alguns deles foram

amarrados, com fio de nylon, uma argola de madeira; outros foram cortados ao meio e,

com uma base de parafina, receberam o convite para os presentes participarem da

próxima exposição de arte postal.

Todos ganharam uma base de parafina: os canudos com argola, depois de

descartados da função de expositores, ganharam a base bem fininha, que deixa entrar luz

com um leitoso efeito de catedral. Essa é a semente do processo da escolha de paredes de

parafina dos nichos. Ainda mais que neste caso, o Objecto VI, esta luz vitral está na base

e é difícil de ser visto a não ser com a manipulação do objeto.


Os canudos que foram cortados ao meio ganharam base de parafina de

aproximadamente 5mm de espessura, que fiz colocando parafina branca derretida em

uma forminha de quiche untada com vaselina, onde foram apoiados os canudos para ali

grudarem quando secos. Como eles tinham uma camada de verniz oleoso, o óleo da

parafina não estufou o papel com que entrou em contato.

A maior parte do acúmulo de canudos participa dos Objectos VII, XIII e XIV. Na

formação destes, cada canudo sofreu um corte longitudinal; o primeiro de cada Objecto

foi enrolado em canudos de aproximadamente 1,5cm de diâmetro e preso com elástico de

papel. Outros canudos foram sendo encaixados neste eixo, colados com cola branca e às

vezes também presos com elásticos, para não resultar em uma massa compacta, mas sim,

ganhar movimento, pois eu pensava em mandalas orientais. Por fim, misturei grafite em

pó à cola branca para pintá-lo mantendo, nas rebarbas, um vislumbre do corpo nu do

papelão.

Os recipientes da convocatória de arte postal foram os únicos que saíram de casa

durante o processo. Quando voltaram, ficaram guardados, até serem virados de cabeça

para baixo tornando-se também castiçais. E, como não são bem retinhos, a parafina

derretida escorre toda para o mesmo lado e forma linhas encorpadas na lateral da vela.

Este movimento foi especialmente abundante no que veio a ser o Objeto X, porque usei

essa vela para fazer, com o calor da chama, dois orifícios em uma placa de parafina (para

protótipo do nicho onde o objeto seria assentado), as linhas na lateral são formadas por

parafina pretejada pela fumaça. E com esse desenho ficou finalizado este objeto.
Gosto muito de mexer com caixinhas de fósforos, cheias ou vazias, fechadas ou

abertas. Gosto de suas cores, materiais e texturas, e também do palito, com sua cabeça

porosa, oval e inflamável. Por isso desmontei muitas e fiquei com uma quantidade

extraordinária de palitos em recipientes estranhos a eles, como o potinho de geléia que

guardava cravos, cuja tampa ficou enferrujada demais para guardar alimento. Como essas

novas embalagens não têm lixa para acender o fósforo, vários desses objetos ficaram pelo

acúmulo, praticamente intactos. Assim encontrei o Objecto IX.

Mexendo com esses palitos estéreis, trabalhei na construção de uma mandala,

com palitos colados com tinta acrílica, sobre mídias – cd – descartadas. Nesse processo vi

que a tinta encobria o corpinho do palito como se fosse um casacão plástico. Então, eu

comecei a segurá-los pela cabeça e mergulhá-los até alturas diferentes no tubo de tinta.

Para ficarem em pé, encaixei-os em borrachas brancas.

Os palitos foram espetados primeiro na borracha ainda com a embalagem de

plástico que trazia, para dispensar o excesso de tinta e resultar num pezinho, não em uma

poça de tinta. Como esse pezinho já é uma base, a borracha é o pedestal da peça.

Uma borracha sujou de tinta, foi uma manchinha apenas mas tirou a solidez do

casaco, por isso foi descartada, resultando em quatro objetos, que são Objectos XII, XV,

XVI e XVII.

Insistindo na compreensão das mandalas9, comecei a forrar outra mídia – dvd –

com pedaços de fita VHS, tentando unir movimento e centro. Na primeira operação, colei

nele, com fita adesiva, dois pedaços de fita, e notei que ficou parecendo um olho de gato,

assunto que chamara muito a minha atenção durante esse dia, porque eu passara um bom

9
O desejo de entender as mandalas serviu-me de pontapé inicial para manipular materiais e assim iniciar
outros processos de formatividade.
tempo mergulhada na paisagem dos olhos de uma gata que também convive com o meu

acúmulo. Então imediatamente parei de colar fitas e adotei o objeto.

O material da mídia é bastante reflexivo, e é comum decompor o branco em

outras cores. Assim, pode ser colocado junto com algum dos outros Objectos: ‘espelho,

espelho meu...’, onde o objeto pode ser “um, nenhum, cem mil”10. Para isso tinha que

permanecer na posição vertical. Lembrei-me de um apoio para livros, de um trabalho

antigo, esse apoio é um esqueleto leve, feito de mdf marrom escuro, com estrutura de

encaixe e linhas também felinas. Além disso, lembrei-me de que a pintura também pode

ser um espelho, que possibilita o reconhecimento do pintor, do observador, do contexto.

Na pintura, costumo começar com um elemento, freqüentemente material, e a

partir dele pego uma referencia figurativa, principalmente para fins de traçar proporções,

e crio um ambiente em conjunto com o suporte; no ambiente disponho os elementos e os

relaciono em uma harmonia controlada, a partir das relações de proporção ou do mito que

já vai se criando.

Como ambiente, a idéia inicial era fazer, para todos os Objectos, caixas com

orifícios para dois olhos. A parede com os orifícios e a oposta são de parafina, o que

resulta em uma luz difusa e suave que pára o tempo e lembra um templo. A semi-

transparência dos objetos faz com que não se tornem vultos, os corpos mantêm detalhes

de sua materialidade e personalidade; quando o corpo se torna vulto, a atenção se volta

para a paisagem.

10
PIRANDELLO, Luigi: “Não sou um autor de farsas, mas um autor de tragédias. E a vida não é uma
farsa, é uma tragédia. O aspecto trágico da vida está nessa lei a que o homem é forçado a obedecer, a lei
que o obriga a ser um. Cada qual pode ser um, nenhum, cem mil, mas a escolha é um imperativo
necessário”. In:< http://www.sinpro-rs.org.br/extra/ago01/extrato_esp.asp>
Durante a confecção das paredes e testes de luz, que tiveram o intuito de definir a

espessura das paredes, montei umas estruturas provisórias com módulos de uma adega de

madeira de pinus tão molenguinha que para guardar vinhos não confiei, mas ainda assim

eu relutava em jogar fora aquelas peças.

Quando vesti o copo com a estrutura de pinus, para então apoiar nela as paredes, o

anjinho, tão pequenininho, agigantou a vela e deu à estrutura um caráter arquitetônico.

Como a estrutura de madeira tinha uma peça horizontal que ficava bem na frente

do anjo, usei uma base também de parafina para erguer o copo que o contém. Pois,

durante os testes, produzi também outros formatos resultando em um acúmulo de peças

de parafina.

Uma das placas de parafina serviu de telhado para esse altar. Nela há uma marca

feita com a ponta de um objeto afiado. A marca riscada na parafina nasceu quando eu ia

cortá-lo e mudei de idéia. Este é o Objecto IV.

O processo de testes foi interrompido quando paredes da caixa de metal que

servia de molde ficou respingada com parafina, de modo a lembrar um jardim nevado.

Do acúmulo, um vidro de esmalte veio fazer o papel do personagem que define o

espaço do Objecto V.

A característica forte deste processo de formatividade é a observação do acúmulo

para que a edição seja precisa, sintética em relação à espiritualidade11 do momento. O

doméstico e cotidiano possibilitam o conhecimento de bricoleur, na relação com o corpo,

na convivência cotidiana, onde o objeto pode ser abordado de várias maneiras, e ficam

indissolúveis a forma e o conteúdo, conforme descreveu Luigi Pareyson, e ganham


11
poder espiritual: não só religioso, também é poder que se refere à cultura, às artes, às formas de viver.
caráter sacro, na semelhança com o seguinte trecho de O Pensamento Selvagem, de Lévi-

Strauss:

“’Cada coisa deve estar em seu lugar’, notava com profundidade um pensador indígena (Fletcher

1904, 34). Poder-se-ia mesmo dizer que é isso o que a torna sagrada, pois, se fosse suprimida, mesmo em

pensamento, toda a ordem do universo seria destruída; portanto ela contribui para mantê-la ocupando o

lugar que lhe cabe. Os requintes do ritual, que podem parecer dispensáveis quando examinados de fora e

superficialmente, explicam-se pelo cuidado com aquilo que se poderia chamar de ‘microperequação’: não

deixar escapar nenhum ser, objeto ou aspecto, a fim de lhe assegurar um lugar no interior de uma classe.

Nesse sentido, a cerimônia do Hako, dos índios pawnee, só é particularmente reveladora porque foi bem

analisada. A invocação que acompanha a travessia de um curso d’água divide-se em várias partes que

correspondem respectivamente ao momento em que os viajantes colocam os pés na água, em que os

deslocam, em que a água recobre seus pés inteiramente; a invocação ao vento separa os momentos em que

o frescor é percebido somente nas partes molhadas do corpo, depois aqui e ali e, enfim, sobre toda a

epiderme: ‘apenas então podemos prosseguir com segurança’ (id., pp. 77-78). Como assinala o informante,

‘devemos dirigir um encantamento especial a cada coisa que encontramos, pois Tirawa, o espírito supremo,

reside em todas as coisas, e tudo aquilo que encontramos no caminho pode nos socorrer... Fomos ensinados

a prestar atenção em tudo o que vemos’ (id., pp. 73 e 81).”12

Como no meu trabalho as coisas já estão praticamente prontas e eu escolho e

desloco, os imprevistos mostram conjuntos interessantes, que primeiro elejo, e depois

analiso e formalizo o mito.

Encontrar um lugar para cada elemento, dentro de uma unidade mitológica

coerente, além de conferir-lhes caráter sacro, é seguir a lei da própria obra. Enquanto a

12
In: LÉVI-STRAUSS. ibid. pág. 25
formatividade acontece, aumenta a profundidade das relações e percepções do pintor que

então convive com o modelo.


Parte III: Apresentação

Uma coisa que tenho visto com bastante freqüência é a produção de instalações e

de pinturas em grandes dimensões, onde o corpo do observador parece entrar. Aqui

acontece a inversão disso, principalmente porque esses objetos têm uma concepção

arquitetônica onde alguns elementos são personagens. Assim, o observador pode se sentir

gigante, e pode se sentir como uma obra, ou um organismo a ser consultado (ou uma

linguagem construída etc.), como essas grandes obras de arte. Essa inversão pode ser

comparada à que Bruno Latour aponta a propósito da cartografia:

“Inversão propriamente fantástica, pois aquele que seria dominado, na paisagem desenhada ao

fundo, torna-se dominante assim que entra em seu gabinete de trabalho e desdobra os mapas para rasurá-

los. Para compreender esta inversão, não devemos esquecer, bem entendido, a conéctica, que liga este lugar

a todos os outros, por intermédio das expedições, das viagens, dos colóquios, das academias, pela mediação

das vias comerciais tratadas a fogo e sangue, da matemática pura, que permite experimentar vários sistemas

de projeção, e pela dos gravadores em cobre e dos impressores. Prestemos atenção por um instante à

inversão das relações de força entre aquele que viaja numa paisagem e aquele que percorre com o olhar o

mapa recém-desenhado.”13

Essa comparação pode ser também estendida à produção do texto, pois a escolha

destas frases edita e organiza a conéctica deste lugar a todos os outros, é um caminho que

leva do mundo à inscrição. A formação do meu texto segue em processo semelhante ao

da pintura: várias etapas de textos, anotações dispersas ou textos correntes. Uma

diferença grande é que na pintura a assimilação é feita do todo para as partes, e no texto

13
LATOUR, Bruno. In: PARENTE (org.). Tramas da Rede, pág. 47
as partes são assimiladas no tempo da leitura, e o todo só é percebido no final. Mesmo no

texto, tento escrever sem muitas censuras, já atribuindo à edição uma importância grande,

que se confirmou quando percebi que estava escrevendo vários textos com abordagens

diferentes do processo de pintura: um relatório do processo prático, um do processo

conceitual, um sobre o fazer o texto e várias anotações candidatas a anexos. Isso já

mostrou uma semelhança entre as linguagens: a não visualização do resultado final.

Outra semelhança é a participação do acaso na busca das informações, ou seja,

sem a organização em pastas e arquivos, foi necessário folhear os cadernos várias vezes,

lendo mesmo que rapidamente as várias anotações sobre diversos assuntos e assim eu me

deparei com idéias pertinentes mas que a princípio não estavam no discurso idealizado.

Isso provocou um emaranhado de idéias que rapidamente deixou de ser linear, mas ao

mesmo tempo enriqueceu a sustentação teórica, deu-me segurança e me deixou bastante à

vontade para traçar mais relações. Isso é, de certa forma, visualizar o todo antes das

partes.

O desenvolvimento do texto antecipou a definição da apresentação. A partir daí, a

produção dos objetos foi praticamente simultânea ao planejamento da sua apresentação, e

uma coisa influenciou a outra, somando-se ainda a produção do texto, que catalisou o

levantamento consciente dos conceitos, a construção dos mitos e do discurso.

Os objetos seriam todos exibidos em pequenas capelas, sozinhos ou em

composição com outros, num espaço de natureza-morta [ilustrações 17 e 18]. Os objetos

mostrados são tridimensionais, mas a visão dos que estão no nicho se dá como se fosse
um plano de pintura e mostra o trabalho como uma coisa cujo habitat não é o mundo, mas

que está no mundo para ser consultado.

Ao aproximar-se, o observador pode reconhecer objetos e materiais bastante

familiares. Além da distância do seu universo habitual, a concepção arquitetônica e

teatral relativiza valores padronizados corroborando para uma desfamiliarização dos

objetos. Por outro lado, a concepção teatral pode funcionar como espelho, como na

pintura tradicional, reassumindo a familiaridade14. E é essa pulsação de percepções que o

observador encontra.

“Justas são as exigências de reconhecer de um lado o condicionamento social da arte e, de outro, a

sua ineliminável pessoalidade e inventividade. Estas duas exigências nem ao menos estão em contraste;

antes, convergem e coincidem nos conceitos de pessoa e de criatividade humana. Uma vez que pessoa

significa singularidade irrepetível, inconfundível, original, mas não tem nada a ver com o ‘sujeito’, que

reduz a pura intimidade e atividade subjetiva tudo aquilo com que entra em relação: a pessoa é aberta,

comunicativa, social, de modo que toda atividade humana, e por isso também a arte, tem sempre um caráter

pessoal e social a um só tempo; e a criatividade humana tem um caráter inventivo e original pelo qual,

entre as suas condições e os seus materiais, de um lado, e os seus resultados, de outro, existe sempre um

salto, mas não é de modo algum uma criatividade absoluta, que inventa também as condições e os

materiais: estes conservam a sua natureza e o seu peso no interior do ato inventivo, o qual permanece por

eles condicionado, ainda que não determinado, e, em todo caso, alimentado, enriquecido, incrementado,

porque é própria do ato inventivo a capacidade de extrair o máximo fruto das próprias condições, de modo

14
“Ao fazerem parte do espaço real e, no entanto, estarem de alguma forma alijados desde, a bola suspensa
e a meia-lua [de Giacometti] buscam abrir uma fissura na superfície contínua da realidade. Assim, a
escultura ensaia uma experiência que às vezes temos na vida acordada, uma experiência de descontinuidade
entre diferentes fragmentos do mundo.” Sobre o que a autora chama de Objetos assentados. In: KRAUSS.
Caminhos da Escultura Moderna, pág. 138
que toda atividade humana, e portanto também a arte, tem sempre um caráter inventivo e condicionado a

um só tempo.”15

Isso fica bastante claro nesta pesquisa com objetos industrializados, que também,

os acasos trazem à pesquisa o conceito de objetos encontrados:

“A poética do objet trouvé, ou do ready made, não é dos nossos dias: foi elaborada pelos

surrealistas e pelos dadaístas. (...) Havia na base destas operações figurativas um projecto assaz subtil: cada

objecto traz consigo uma carga de significados, quase constitui um termo de vocabulário, com as suas

referências bem precisas, como se se tratasse de uma palavra: isolemos o objecto, afastêmo-lo do seu

contexto habitual para o inserirmos num outro contexto; ele ganhará outro significado, ganhará um halo de

referências insuspeitadas, dirá algo que até ao momento não tinha dito...” 16

As intenções dessas escolhas – encontros – não são sempre claras; no processo,

coisas antes incombináveis se combinam de maneira inusitada. Talvez as informações se

esclareçam na manipulação e nas memórias futuras do encontro com o objeto. No caso

desta pesquisa, elas partiram de um viés funcional, em que ‘motivos expressivos e

problemas técnicos se equivalem’.

“As pessoas não são passivas frente aos estímulos – e não é qualquer estímulo que poderá tornar-

se ‘acaso’ ou ‘inspiração’. As pessoas estão é receptivas; receptivas, a partir de algo que já existe nelas em

forma potencial e que encontra no acaso como que uma oportunidade concreta de se manifestar. Por mais

surpreendente que sejam os acasos, eles nunca surgem de modo arbitrário e sim dentro de um padrão de

15
In: PAREYSON, op. cit. pág. 115
16
In: ECO. A Definição da Arte, pág. 204
ordenações, em que as expectativas latentes da pessoa e os termos de seu engajamento interior representam

um elo vital na cadeia de causa-efeito.”17

Assim, o processo de edição que se dá a partir do acúmulo não tem regras

previamente definidas, assemelha-se à bricolagem descrita por Lévi-Strauss em O

Pensamento Selvagem:

“O bricoleur está apto a executar um grande número de tarefas diversificadas porém, ao contrário

do engenheiro, não subordina nenhuma delas à obtenção de matérias-primas e de utensílios concebidos e

procurados na medida de seu projeto: seu universo instrumental é fechado, e a regra de seu jogo é sempre

arranjar-se com os ‘meios-limites’, isto é, um conjunto sempre finito de utensílios e de materiais bastante

heteróclitos, porque a composição do conjunto não está em relação com o projeto do momento nem com

nenhum projeto particular mas é o resultado contingente de todas as oportunidades que se apresentaram

para renovar e enriquecer o estoque ou para mantê-lo com os resíduos de construções e destruições

anteriores. O conjunto de meios do bricoleur não é, portanto, definível por um projeto (...); ele se define

apenas por sua instrumentalidade e, para empregar a própria linguagem do bricoleur, porque os elementos

são recolhidos ou conservados em função do princípio de que ‘isso sempre pode servir’. Tais elementos

são, portanto, semiparticularizados: suficientemente para que o bricoleur não tenha necessidade do

equipamento e do saber de todos os elementos do corpus, mas não o bastante para que cada elemento se

restrinja a um emprego exato e determinado. Cada elemento representa um conjunto de relações ao mesmo

tempo concretas e virtuais; são operações, porém, utilizáveis em função de quaisquer operações dentro de

um tipo.” 18

17
In: OSTROWER. Acasos e Criação Artística, pág 4
18
In: LÉVI-STRAUSS. op. cit. pág. 33
Em ‘Coleta, Acúmulo e Edição’ apresento os objetos do universo instrumental. O

fato de usar os próprios objetos em vez de representá-los é dividir o ‘ser sujeito’ com o

observador19 que, no museu, vê o objeto e, talvez numa quietude contemplativa,

relacione-se com ele e o contextualize num mito próprio.

“Ela [a obra] fala a todos, mas a cada um de seu modo, e assim assegura uma universalidade

através da individualidade e institui uma comunidade através da singularidade. De tal modo, ela mostra,

com evidência máxima, que o essencial da sociedade não é a despersonalização, mas a personalidade, uma

vez que, no público criado pela arte, os vínculos são tanto mais estreitos quanto mais individual foi o

colóquio do indivíduo com a obra. (...) A relação entre o artista e o público é constitutiva da arte; tanto isto

é verdade, que até o artista não visa outra coisa senão tornar-se espectador da própria obra: o processo

artístico pode ser interpretado como um movimento em que o autor tende a transformar-se em espectador,

uma vez que a obra não pode dizer-se bem sucedida senão no momento em que, autônoma e viva por conta

própria, reclama reconhecimento e aprovação de todos, e, em primeiro lugar, daquele mesmo que a

produziu.” 20

E também é jogar para o observador a possibilidade do caráter artístico de todas

as atividades, apontada por Luigi Pareyson21.

19
Apesar do anteparo que alude à pintura tradicional que assume a hegemonia do pintor e estabelece uma
hierarquia de valores dentro do quadro. O ponto de vista é imposto.
20
In: PAREYSON. op. cit. pág. 123
21
Cf. ibidem, pág. 22
Com o ângulo de visão limitado, é do observador o poder da formação da pintura,

como em Étant Donés, de Marcel Duchamp.

“Em Étant Donnés, de Marcel Duchamp, há a inversão da pirâmide albertiana: a parafernália

tridimensional que vira imagem bidimensional. O trabalho só existe no olhar do observador pelo buraco da

porta.”22

Por outro lado, trabalha-se também com o corpo do observador, que é imobilizado

em um ponto de observação específico, contendo os seus movimentos, assim como as

dimensões de natureza-morta desses trabalhos implicam em uma certa posição do corpo

durante o trabalho de formação do objeto, todo aplicado na atenção ao pequeno.

“Colocada sob o signo da arte, a pessoa se torna vontade e iniciativa de arte, assume

inteiramente uma direção artística, traz, de per si, uma vocação formal, torna-se uma carga de

energia formante.”23

O corpo inteiro participa, num exercício que envolve ao mesmo tempo controle e

humildade, com ênfase a dar apoio ideal e confortável, detectando o que deve ser

tensionado e o que deve ser relaxado, para que a energia flua sem refração, e seja assim

aplicada integralmente ao trabalho, seguindo a ação e percepção das mãos24, enquanto o

22
In: PAZ. O Castelo da Pureza, pág. 88
23
In: PAREYSON. ibid, pág. 107
24
“Mudrá, uma palavra com muitos significados, é caracterizada como gesto, posicionamento místico das
mãos, como selo ou também como símbolo. Estas posturas simbólicas dos dedos ou do corpo podem
representar plasticamente determinados estados ou processos da consciência. Mas as posturas determinadas
podem também, ao contrário, levar aos estados de consciência que simbolizam. (...) Elas são utilizadas para
que a pessoa se coloque num determinado estado de consciência. Através da prática destas mudrás o
praticante pode não apenas agir positivamente sobre seu corpo e espírito, mas também despertar forças
praticante tem como propósito abrir mão de si mesmo para se entregar ao presente e

sentir “o tempo que influi sem outro intento que o de deixar as idéias e sentimentos se

sedimentarem, amadurecerem, libertarem-se de toda impaciência e de toda contingência

efêmera”. 25

espirituais. (...) Enquanto as religiões asiáticas encaram a linguagem gestual no rito de maneira
basicamente positiva, a cristandade valoriza menos os gestos. O desprezo à linguagem gestual no Ocidente
pode ser compreendido a partir de sua história e dos sentimentos devotos do mundo ocidental. O Ocidente
cristão sempre tem considerado o corpo como adversário e empecilho no caminho da salvação.”
25
In: CALVINO. Seis Propostas para o Novo Milênio, pág. 66
CONCLUSÃO

A convivência diária com os objetos, dado o caráter doméstico do acúmulo,

implica em passar por eles várias vezes, ter deles várias percepções distraídas. Essa

distração proporciona, para o processo de bricolagem, uma pré-edição nutrida em base

pouco consciente, mas não por isso deficiente em perceber qualidades, atribuir valores e

conhecer possibilidades.

“Adquirimos além disso o hábito de intelectualizar ao extremo nossas percepções. Uma imagem

cujos contornos se apreende numa olhada traduz-se imediatamente por um conceito e isso em detrimento

do impulso afetivo, da emoção.”26

É freqüentemente com a manipulação distraída que percebo as possibilidades da

sua utilização no contexto estético. E os materiais cotidianos se sujeitam praticamente o

tempo todo a este contato. Eles dão o tempo para o tátil se unir ao conceitual diversas

vezes. A percepção da mão e olhos se estende a todo o corpo, e ao intelecto e ao espírito.

De certa forma isso já acontece até mesmo antes da manipulação, pois quando

esses objetos se unem ao acúmulo doméstico, desenvolvem, em geral, uma relação

subjetiva com o sujeito. Segundo Jean Baudrillard, “o meio habitual conserva um estatuto

ambíguo: nele o funcional desfaz-se continuamente no subjetivo, a posse mistura-se ao

uso, em um empreendimento sempre carente de total integração. (...) Se a posse é feita da

26
In: RESTANY. Os Novos Realistas, pág 118
confusão dos sentidos (mão, olho), de intimidade com um objeto privilegiado, é

igualmente toda feita de procura, de ordem, de jogo e de agrupamento”.27

Baudrillard citou também Maurice Rheims, quando disse que os objetos são um

registro privilegiado do discurso da subjetividade, “interpondo entre o devir irreversível

do mundo e nós uma tela descontínua, classificável, reversível, repetitiva, área do mundo

que nos pertence, dócil à mão e ao espírito.”28 Baudrillard ainda aponta outra caracter

“Os objetos não nascem: nós os fabricamos; não têm sexo; e tampouco morrem: gastam-se,

tornam-se inúteis. Seu túmulo é a lixeira ou o forno de fundição. A técnica é neutra e estéril. Pois bem, a

técnica é a natureza do homem moderno: nosso ambiente e nosso horizonte. Certo, toda obra humana é

negação da natureza; do mesmo modo, é uma ponte entre ela e nós. A técnica transforma a natureza de uma

forma mais radical e decisiva: desalojando-a. O famoso retorno à natureza é uma prova de que entre ela e

nós se interpõe o mundo da técnica: não uma ponte, mas uma muralha.”29

Se a produção em série implica em uniformidade e efemeridade, e “a

uniformidade tende a passar despercebida”30, resgato-os dessa situação, assim como de

seu suposto túmulo. É resgate da matéria, que carrega informações não processadas em

documentações, por isso, nada melhor do que o objeto ali, ele mesmo, como retard31. Daí

remetem ao passado pois cada consulta remete à anterior. E remetem ao futuro pois o

27
In: BAUDRILLARD. op. cit. págs. 95, 96
28
Ibid, págs. 95, 97 e 102
29
In: PAZ. op. cit. 28
30
In: CALVINO. O Caminho de San Giovanni, pág. 80
31
“As figurações de Picasso atravessam velozmente o espaço imóvel da tela; nas obras de Duchamp o
espaço caminha, se incorpora e, tornado máquina filosófica e hilariante, refuta o movimento com o retard, o
retar com a ironia. Os quadros do primeiro são imagens; os do segundo, uma reflexão sobre a imagem.” In:
PAZ, op. cit, pág. 8
cuidado com a conservação destes frágeis objetos é uma preocupação com o futuro. Além

disso,

“Devemos considerar também a tecnologia como fato cultural multitemporal, ou seja,

acontecimentos singulares que remetem ao passado, ao presente ou ao futuro, formando um mapa dobrável

e desdobrável como uma geometria variável. A cada dobra mudamos as conexões de seus componentes e

novos estratos se refazem. O desenvolvimento da história da tecnologia se parece muito com as descrições

das teorias do caos e do tempo topológico: acontecimentos que parecem afastados estão muito próximos,

ou o contrário. Na verdade, seria mais exato dizer que a multitemporalidade nos leva a uma outra

concepção e imagem do tempo. O tempo multitemporal passa e não passa, ele percola, diz Serres, mas não

passa de modo uniforme e contínuo.

Segundo Serres, o tempo funciona como um filtro, que ora faz passar, ora impede a passagem. É

desta forma que as tecnologias remetem ao duplo movimento de aceleração e desaceleração, inovação e

tradição, desterritorialização e territorialização.”32

Nas dobras do mapa do acúmulo, alguns encontros mostram bastantes

informações que me ajudam a formar mitos, que são nutridos com valores de caráter

tradicional, e, enquanto a obra vai se formando, ela mesma começa a mostrar novas

relações e a formar as suas próprias leis. Isso é possível pelo seguinte:

“Tudo surge e se define em interações recíprocas. A composição de uma imagem vai sendo

formada à medida em que entrarem os elementos visuais (digamos: certas linhas, cores, superfícies) e com

eles se articularem certos relacionamentos formais (digamos: contrastes, semelhanças, tesões espaciais,

ritmos) – e ao mesmo tempo, nesta mesma composição, o significado de cada um dos elementos e das

posições que ocuparem, vai ser redefinido pelo conjunto dos outros elementos presentes. Quer dizer: o

32
In: PARENTE. Tramas da Rede, pág.94
significado de cada detalhe dependerá das funções específicas que passe a desempenhar na estrutura da

totalidade que ajudou a formar.” 33

E, pelo mesmo motivo, quando a obra começa a determinar as leis, muda o modo

de olhar para os seus elementos, e tudo é questionado novamente e assim, mesmo o

método acaba por se submeter às leis da obra.

“Isto concilia liberdade e lei, contingência e necessidade, inventividade e norma, criação e rigor,

originalidade e legalidade: o artista inventa não só a obra, mas na verdade a legalidade interna dela, e a tal

legalidade ele é o primeiro a estar submetido.”34

Relações que o processo me aponta parecem, muitas vezes, mais pertinentes do

que o que foi pré-concebido por mim. Essa autonomia da obra eu permito através da

observação atenta. Por causa dessa disposição é importante visar a contemplação, se

despir de preconceitos. Com objetos é encorajador fazê-lo, já que eles são dóceis à mão e

ao espírito.

33
In: OSTROWER, op. cit., pág. 33
34
In: PAREYSON, op. cit, pág 184
ANEXO:

ILUSTRAÇÕES
. Ilustração 1 .

Spicy Lautrec
Parafina, pigmentos, casca de cebola, pimenta rosa e gergelim entre vidros, 2005
23x23cm
. Ilustração 2 .

Pintura Pixelada
Lã de aço e verniz entre vidros, 2005
14x19cm
. Ilustração 3 .

Imagem
Papel de bala digitalizado e plotado, 2005
101x68cm (matriz: 3x2cm)
. Ilustração 4 .

. Ilustração 5 .

39
. Ilustração 6 .

. Ilustração 7 .

40
. Ilustração 8 .

41
. Ilustração 9 .

42
. Ilustração 10 .

43
. Ilustração 11 .

44
. Ilustração 12 .

45
. Ilustração 13 .

46
. Ilustração 14 .

47
. Ilustração 15 .

48
. Ilustração 16 .

49
. Ilustração 17 .

50
. Ilustração 18 .

Ilustrações 1, 2 4, 5 e 6: fotografias de Susana Sá


Ilustrações 7, 8, 9, 10, 11, 12, 13, 14, 15, 16, 17 e 18: fotografias de Regiane Bressan

51
REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

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