You are on page 1of 136

TÓPICOS ESPECIAIS EM TEOLOGIA BÍBLICA

Conselho Editorial EAD


André Cezar (Coordenador)
Dóris Cristina Gedrat
Thomas Heimman
Mara Salazar Machado
Andréa de Azevedo Eick
Astomiro Romais

Obra organizada pela Universidade Luterana do Brasil.


Informamos que é de inteira responsabilidade dos autores a
emissão de conceitos.
Nenhuma parte desta publicação poderá ser reproduzida por
qualquer meio ou forma sem a prévia autorização da Editora
da ULBRA.
A violação dos direitos autorais é crime estabelecido na Lei nº .610/98
e punido pelo Artigo 184 do Código Penal.

Dados Internacionais de Catalogação na Publicação (CIP)

G736t Graff, Anselmo Ernesto


Tópicos especiais em teologia bíblica. / Anselmo Ernesto Graff,
Gerson Luis Linden e Vilson Scholz. – Canoas: Ed. ULBRA, 2013.
136p.

1. Teologia – bíblia. 2. Bíblia. 3. Teologia sistemática.


I. Linden, Gerson Luis. II. Schoolz, Vilson. III. Título.

CDU 22.06

Setor de Processamento Técnico da Biblioteca Martinho Lutero - ULBRA/Canoas

ISBN 978-85-7528-487-2
Editoração: Roseli Menzen
Supervisão de Impressão Gráfica: Edison Wolf
Gráfica da ULBRA

Dados técnicos do livro


Fontes: Palatino Linotype, Franklin Gothic Demi Cond
Papel: offset 75g (miolo) e supremo 240g (capa)
Medidas: 15x22cm
APRESENTAÇÃO

O que é Teologia Bíblica? É aquela que é de acordo com as Escrituras e em oposição


à herética? Ou é a teologia baseada nas Escrituras?
Na resolução dessa questão, a Teologia Bíblica geralmente é definida como sendo
distinta da Teologia Sistemática e da História das Religiões. O princípio é construir
uma teologia a partir das Escrituras, sem depender da Teologia Sistemática. Sem
depender; entretanto, não suprimir. A proposta é promover o diálogo entre as duas
e verificar a interação da Teologia Sistemática com a Teologia Bíblica.
Algumas definições de Teologia Bíblica e Teologia Sistemática procuram colocar
em relevo aspectos que as diferenciam, mas que ao mesmo tempo apontam
para atributos que servem para expressar a unidade de ambas. Donald Carson
cita Warfield, por exemplo, para fazer uma analogia entre a Teologia Bíblica e
a Sistemática. O trabalho da exegese pode ser comparado, embora de maneira
imperfeita, ao trabalho de um oficial de recrutamento. Há uma seleção de homens
que irão constituir o exército. A Teologia Bíblica organiza esses homens em
companhias, regimentos e batalhões, colocando-os em ordem e marcha e equipados
para o serviço. A Teologia Sistemática, por sua vez, combina esses grupos para
formar um exército, formado pelos homens recrutados pela exegese. Só que agora
eles não são mais vistos em termos individuais, mas em relacionamento aos outros
homens e uma corporação só.1
Paul Hiebert é outro que também tenta fornecer elementos que favoreçam a
necessidade de interação e o caráter de unidade existente entre a Teologia Bíblica
e a Sistemática, não obstante ele defina a primeira como diacrônica e a segunda
como sincrônica2. Segundo Hiebert, quando se estuda a natureza de Deus e do

1
CARSON, Donald A. Teologia Bíblica ou Teologia Sistemática? Unidade e diversidade no Novo Testamento.
Tradução de Carlos Osvaldo Pinto. São Paulo: Vida Nova, 2001, p.23.
2
Os termos diacrônico e sincrônico são mais familiares quando se trata da própria Teologia Bíblica ou
da Exegética. Quando se inicia um estudo exegético pela crítica literária, por exemplo, esse método é
chamado de diacrônico. Quando este estudo principia com o texto bíblico em si, o método é denomi-
nado de sincrônico. Numa analogia feita por Hiebert, ele compara a Teologia Sincrônica ao estudo de
peça por peça ou sistema por sistema de um automóvel. Quando a teologia é diacrônica, se estuda a
história desse automóvel, seus proprietários e viagens feitas. Nessa comparação, Hiebert conclui que
precisamos tanto da Teologia Bíblica como da Sistemática. HIEBERT, Paul. O Evangelho e a diversidade
de culturas. Tradução de Maria Alexandra Contar Grosso. São Paulo: Vida Nova, 1999, p.205-6.
universo, é preciso focar na Teologia Sistemática. Mas, quando queremos saber o
que está acontecendo, precisamos de uma Teologia Bíblica3.
Assim, a disciplina Tópicos Especiais em Teologia Bíblica está destinada a promover
reflexões introdutórias sobre o método da Teologia Bíblica, em comparação com
a Teologia Sistemática, e discutir temas teológicos contemporâneos e tópicos da
Escritura Sagrada à luz desse diálogo entre as duas teologias.

Anselmo Ernesto Graff

3
Idem, p.205-6.
SOBRE OS AUTORES

Anselmo Ernesto Graff

Possui graduação em Teologia pelo Seminário Concórdia (1997) e Mestrado em


Teologia Sistemática – Concordia Seminary (2008). Atualmente, é professor auxiliar
na ULBRA e no Seminário Concórdia. Tem experiência na área de Teologia Bíblica
e Missionária, atuando principalmente nas áreas da Teologia da Missão, Pessoa
do Missionário e Teologia Bíblica. É coordenador de Atividades Acadêmicas do
Curso de Teologia da ULBRA.

Gerson Luis Linden

Possui graduação em Teologia – Seminário Concórdia de São Leopoldo (1984) e


Mestrado em Teologia Exegética – Concordia Seminary de Saint Louis, Missouri,
Estados Unidos (1993). Atualmente, é professor adjunto da Universidade Luterana
do Brasil e professor titular – Seminário Concórdia. Tem experiência na área de
Teologia, com ênfase em Exegese do Novo Testamento e Teologia Sistemática,
atuando principalmente nos seguintes temas: escatologia, igreja, ministério,
luteranismo e apocalipse.

Vilson Schoolz

Formado em Teologia pelo Seminário Concórdia de Porto Alegre (1978). Mestrado


e Doutorado em Teologia Exegética pelo Concordia Seminary de Saint Louis,
Missouri, Estados Unidos (1981 e 1993). Professor do Seminário Concórdia, em
São Leopoldo, desde 1985, e da ULBRA, desde 1994, atuando principalmente nas
áreas da Hermenêutica e Exegese Bíblica do Novo Testamento. Professor visitante
do Concordia Seminary, Saint Louis (1996 a 1999). Consultor de traduções da
Sociedade Bíblica do Brasil.
SUMÁRIO

1 TEOLOGIA BÍBLICA – EXAME HISTÓRICO ...................................................................11


Introdução .............................................................................................................11
1.1 Idade Média ......................................................................................................11
1.2 Reforma............................................................................................................12
1.3 Racionalismo/iluminismo..................................................................................13
1.4 Do iluminismo à filosofia da religião ou Teologia Dialética....................................14
1.5 A perspectiva “histórico-religiosa” da Teologia do Novo Testamento
– A História da Religião .....................................................................................16
1.6 Da Teologia Dialética até o século XX ..................................................................18
Atividades de autoestudo ..................................................................................20
2 UM MODELO DE TEOLOGIA BÍBLICA..........................................................................23
Notas introdutórias .................................................................................................23
2.1 Aspectos funcionais de um corpo doutrinário em relação às Escrituras .................23
2.2 Alvos da Teologia Bíblica ....................................................................................24
2.3 Definindo uma Teologia Bíblica coerente ............................................................26
2.4 Fundamento para o culto ...................................................................................26
2.5 Fundamento para a Sistemática .........................................................................27
2.6 Teologia Bíblica e Sistemática – Em busca de uma unidade ..................................27
2.7 O conceito da presença divina como critério para uma Teologia Bíblica
Coerente ..........................................................................................................30
Atividades de autoestudo ..................................................................................35
3 A LEITURA DAS ESCRITURAS SAGRADAS EM TEMPOS PÓS-MODERNOS ......................37
Introdução .............................................................................................................37
3.1 O contexto contemporâneo pós-moderno ............................................................37
3.2 Impactos na interpretação bíblica ......................................................................38
Atividades de autoestudo ..................................................................................48
8

4 A DOUTRINA DA TRINDADE NA ESCRITURA SAGRADA.................................................51


ULBRA – Educação a Distância

Introdução .............................................................................................................51
4.1 O contexto contemporâneo ................................................................................51
4.2 Presença do Pai, do Filho e do Espírito no Antigo Testamento ...............................52
4.3 A presença do Filho no Antigo Testamento...........................................................53
4.4 A interpretação cristocêntrica do Antigo Testamento na história
da interpretação ...............................................................................................54
4.5 A presença do Filho: teofanias no Antigo Testamento ...........................................55
4.6 A presença do Espírito no Antigo Testamento ......................................................59
Atividades de autoestudo ..................................................................................61
5 O PECADO ORIGINAL NAS ESCRITURAS SAGRADAS ...................................................63
Introdução .............................................................................................................63
5.1 O pecado original no judaísmo do primeiro século................................................64
5.2 O pecado como condição natural do ser humano nos ensinos de Jesus
e dos evangelistas .............................................................................................65
5.3 O pecado como condição natural do ser humano nos ensinos do apóstolo
Paulo ............................................................................................................66
5.4 O pecado como condição natural do ser humano em Tiago e Pedro .......................68
5.5 O pecado original e a antropologia dos cristãos regenerados ...............................68
Atividades de autoestudo ..................................................................................70
6 PAULO – UM TEÓLOGO BÍBLICO: O ENSINO SOBRE A JUSTIFICAÇÃO, A PARTIR
DE UMA LEITURA DE ROMANOS 3.21 A 4.8 ...............................................................73
Introdução .............................................................................................................73
6.1 Um estudo em Romanos 3.21 a 4.8 .....................................................................74
6.2 Aspectos centrais da teologia da salvação ..........................................................79
Atividades de autoestudo ...................................................................................86
7 A NOVA PERSPECTIVA SOBRE O APÓSTOLO PAULO ....................................................89
Introdução .............................................................................................................89
7.1 E. P. Sanders .....................................................................................................90
7.2 A velha perspectiva ............................................................................................90
7.3 O contexto cultural da nova perspectiva ..............................................................93
7.4 O judaísmo palestino segundo Sanders ...............................................................93
7.5 Paulo segundo E. P. Sanders ...............................................................................95
7.6 Como responder a isso tudo................................................................................97
Atividades de autoestudo ................................................................................100
9

8 A RELAÇÃO OU CONEXÃO ENTRE ANTIGO TESTAMENTO E NOVO TESTAMENTO ............103

ULBRA – Educação a Distância


Introdução ...........................................................................................................103
8.1 A unidade dos dois testamentos .......................................................................104
8.2 O equívoco de chamar a religião do Antigo Testamentode judaísmo ....................106
8.3 O equívoco de entender torá em termos de “lei” ................................................108
8.4 O conceito de aliança ou testamento ................................................................110
8.5 A unidade em termos de antigo e novo ..............................................................111
8.6 A unidade em termos de profecia e cumprimento...............................................111
8.7 A unidade em termos de tipologia .....................................................................111
Atividades de autoestudo ................................................................................113
9 LINGUAGEM INCLUSIVA NO CONTEXTO TEOLÓGICO .................................................115
Introdução ...........................................................................................................115
9.1 Um caso concreto ............................................................................................116
9.2 Uma avaliação ................................................................................................119
9.3 Levar em conta o que é politicamente correto ....................................................121
9.4 Alguns exemplos bíblicos específicos ...............................................................122
Atividades de autoestudo ................................................................................124
10 O CONCEITO DE IGREJA NO NOVO TESTAMENTO: ALGUMAS OBSERVAÇÕES
INTRODUTÓRIAS ...................................................................................................127
Introdução ...........................................................................................................127
10.1 O termo “igreja” no Novo Testamento ..............................................................128
10.2 O significado do termo “igreja” (ekklesía) no Novo Testamento .......................128
10.3 Alguns tópicos controvertidos relacionados com igreja ....................................130
10.4 Igreja e Reino de Deus, com ênfase nos Evangelhos .........................................130
10.5 Igrejas e igreja, igrejas locais e igreja como um todo .......................................131
10.6 Igreja e sínodo...............................................................................................132
Atividades de autoestudo ................................................................................134
1
Anselmo Ernesto Graff
TEOLOGIA BÍBLICA – EXAME HISTÓRICO1

Introdução
Há questionamentos sobre a fonte principal da Teologia Bíblica, mas é o Novo
Testamento que tem servido como referência primária. A igreja pós Novo
Testamento não possuía uma Teologia Bíblica, pois o conteúdo dos escritos
canônicos, quando bem entendido, era idêntico ao dogma da igreja e havia uma
validade universal. A tradição apostólica era passada adiante pelos líderes e
professores dos primeiros séculos.
O objetivo deste capítulo inicial é obter uma visão panorâmica da Teologia Bíblica
desde os tempos primórdios até algumas tendências teológicas dos séculos XX
e XXI. Esse escaneamento histórico tem como finalidade a familiarização com
as diferentes correntes do pensamento teológico e implicações na visão de uma
unidade teológica do Antigo e do Novo Testamentos.

1.1 Idade Média


Antes do período da Reforma havia pouco interesse na Teologia Bíblica. O foco
estava na “dogmática”, ou seja, no dogma eclesiástico, o ensino tradicional da igreja.
A Bíblia servia para reforçar os ensinos dogmáticos da igreja. A Bíblia era utilizada
não apenas através do seu estudo específico, mas sua interpretação era conduzida
a se harmonizar com a tradição da igreja. O Antigo e o Novo Testamentos, junto
com a tradição eclesiástica, formavam a base tríplice do ensino da igreja.

1
HASEL, Gerhard. Teologia do Antigo e Novo Testamento. Tradução de Luís M. Sander e Jussara Marindir
P. S. Arias. São Paulo: Academia Cristã e Loyola, 2008, p.29-45.
12

Além disso, não havia a liberdade de interpretação para o estudioso individual.


ULBRA – Educação a Distância

Assim, exegese como tal praticamente era inexistente, de modo que o ensino oficial
da igreja nunca viesse a mudar. Esta abordagem alcançou sua expressão oficial
no Concílio de Trento. A Bíblia foi reconhecida como importante, no entanto, as
tradições eclesiásticas foram colocadas no mesmo nível de importância.

1.2 Reforma
Nesse período, houve um rompimento duplo: com a tradição da igreja e o seu modo
de interpretar as Sagradas Escrituras e a teologia escolástica, definida como um
movimento preocupado com a dogmática. Baseado nas premissas de Aristóteles, o
objetivo era articular, compreender, harmonizar e provar as doutrinas de maneira
racional.
Em termos hermenêuticos, a ênfase passou de uma interpretação alegórica para
uma interpretação literal. Daí se pode falar do início de uma Teologia Bíblica.
Embora Martinho Lutero tenha variado sua hermenêutica e até usado o modelo
quádruplo de interpretação [literal, alegórico, moral e anagógico], ele introduziu
uma nova hermenêutica que tem como núcleo o aspecto cristocêntrico da Bíblia.
A verdadeira Escritura é a que revela Cristo.
Outro fator importante foi a ênfase na origem divina da Escritura, que conferiu
maior autoridade a todo ensino fundamentado na mesma. A exegese nem sempre
era cuidadosamente histórica; por vezes era um tanto subjetiva. No entanto, abriu
caminho para os estudos bíblicos posteriores.
Em vez de apelarem para a interpretação oficial da igreja, os reformadores
insistiram no estudo da Escritura, à base do texto original. À Bíblia não foi somente
conferido o atributo da importância, mas o princípio da exclusividade, a saber, do
Sola Scriptura. A sistematização das verdades bíblicas fugia bastante do modelo
filosófico usado na dogmática de então. Não se fazia distinção entre teologia
do Antigo Testamento e do Novo Testamento. Qualquer parte da Escritura era
considerada igualmente válida para a fundamentação da doutrina e a unidade
teológica do Antigo e do Novo Testamento fora reafirmada.
No período imediatamente posterior à Reforma (Ortodoxia)2, desenvolveu-se muito
a visão a respeito da Escritura como fonte de textos-prova para fundamentar as
doutrinas. Havia, por outro lado, uma grande ênfase na unidade da Escritura.
Nesse período, pouca atenção se dava para o contexto histórico do texto, visto que
seu conteúdo era o mais importante.

2
O período conhecido como Ortodoxia foi depois do ano de 1580. Embora se atribua a esse período um
rótulo até pejorativo (“árida ortodoxia”), em razão de sua ênfase quase exclusiva na sistematização de
doutrinas, a época e o contexto exigiram o trabalho de salvaguardar os principais ensinos de erros.
13

Teologia Bíblica como disciplina teológica tem seus contornos iniciais na virada do

ULBRA – Educação a Distância


século XVIII para o XIX. Quando a Teologia Bíblica surgiu, em 1629 com Wolfgang
Christmann e em 1643 com Henricus Diest, ela consistia em “textos-prova” do
Antigo e do Novo Testamentos, para manter os sistemas de doutrina da antiga
Ortodoxia Protestante. A Teologia Bíblica se tornou disciplina subsidiária da
dogmática ortodoxa.
Com o pietismo (1675-1727), houve uma mudança de direção. Numa reação contra
a “árida ortodoxia” protestante, foi feita uma separação entre a Teologia Bíblica e
a Sistemática. Era o início do caminho da emancipação da Teologia Bíblica, que,
em princípio, seria o fundamento da Teologia Sistemática, não tendo mais o papel
de subsidiária.

1.3 Racionalismo/iluminismo
A separação entre Teologia Bíblica e Sistemática promoveu uma “rivalidade” entre
as duas teologias. Isso aconteceu principalmente com a influência racionalista.
Nesse período, desenvolveu-se a perspectiva de uma interpretação absolutamente
“objetiva” [científica] da Bíblia. O alvo era romper com o ensino oficial da igreja. O
texto bíblico passou a ser visto como um fruto da História. Os textos deixaram de
ser avaliados como “soprados” por Deus Espírito Santo para serem considerados
simplesmente um registro humano, a exemplo de outras formas de literatura.
A razão humana passou a ser o critério final e fonte principal do conhecimento.
A autoridade infalível da revelação divina foi rejeitada. Houve nessa época o
desenvolvimento do método histórico-crítico na interpretação bíblica. Um dos
primeiros nomes que surge é o do racionalista Johan Solomo Semler (1725-1791).
O princípio hermenêutico que passou a ser adotado é o de que nem todas as
partes da Escritura são inspiradas. A Bíblia passou a ser vista como um documento
[meramente] histórico. Assim, no processo de investigação deveria ser levada
em conta a metodologia histórica-crítica. Palavra de Deus e Escritura não eram
consideradas como idênticas. Num trabalho exegético de Gotthilf Traugott
Zachariä, o autor até se ateve à inspiração da Bíblia, o aspecto histórico considerado,
mas colocado em segundo plano.
O estudo da Bíblia passou a ser visto não como um estudo de teologia, mas de
história da religião, com os relatos da evolução da religiosidade de um povo (no
caso, Israel).
Foi em 31/3/1787, em uma aula inaugural, que Johan Philip Gabler fez uma
distinção profunda entre Teologia Bíblica e Dogmática. Nessa ocasião, Gabler
criticou a Teologia Dogmática, dizendo ser ela o fruto do filosofar humano, a partir
da própria razão; também incentivou para que se desse maior atenção à Teologia
Bíblica, por consistir ela de uma disciplina histórica. O objetivo da Teologia Bíblica
14

seria, segundo ele, descobrir o surgimento das ideias religiosas do povo de Israel,
ULBRA – Educação a Distância

identificando o que cada autor pensava em termos de religião. Em resumo, a


Teologia Bíblica tem caráter histórico, ela transmite o que os escritores pensavam
sobre as questões divinas, enquanto a Teologia Dogmática tem caráter didático.
O teólogo filosofa sobre as questões divinas de acordo com sua capacidade e
época.
A metodologia de estudo agora empregada tinha como pressupostos principais
os seguintes itens:
a. a inspiração da Bíblia não conta – o Espírito de Deus não acabou com a
habilidade própria do homem em entender e discernir as coisas. Assim, o que
conta não é a autoridade divina, mas o que os autores pensavam;
b. a função da Teologia Bíblica é reunir conceitos e ideias dos escritores bíblicos
de forma individual. A posterior tarefa é organizar, relacionar e comparar essas
descobertas;
c. a Teologia Bíblica é orientada a ser uma disciplina histórica e cuja tarefa é
investigar quais são as ideias aplicáveis hoje à doutrina cristã.
Este racionalismo de Gabler prevaleceu por uns 50 anos. Era caracterizado pela
convicção de que as únicas ideias religiosas dignas de crédito seriam aquelas
que estivessem de acordo com a razão humana. Ainda que houvesse muitas
modificações na Teologia Bíblica contemporânea, parte dos pressupostos do
racionalismo bíblico ainda hoje são utilizados por exegetas.

1.4 Do iluminismo à filosofia da religião ou Teologia Dialética


No período do iluminismo, a Teologia Bíblica foi isentada do papel de subsidiária
da Teologia Dogmática, para ser sua “rival”. Ela tornou-se uma ciência histórica
que descreve o que os escritores bíblicos pensavam, ou “o que queriam dizer”.
Depois, foi a filosofia de Hegel (1770-1831) que passou a influenciar a maneira de
estudar a Bíblia. Para ele, o “espírito” (“Geist”)3 se manifestava continuamente na
história humana, em um processo dialético de tese – antítese – síntese. Na história
da religião, Hegel via a evolução do “espírito”. Houve um processo sintético das
religiões da natureza, passando pelas religiões individualistas, para então chegar
ao cristianismo, que seria a religião absoluta.
Wilhelm Martin Leberechte de Wette foi aluno de Gabler, e sua intenção foi
combinar a Teologia Bíblica com o sistema filosófico (1813). A partir daqui se
fala em desenvolvimento genético da religião – hebraísmo, judaísmo e cristianismo.

3
“Espírito” para Hegel tem a ver com uma espécie de consciência geral ou uma mente comum a todas
as pessoas.
15

Há uma quebra da unidade do Antigo Testamento com o Novo Testamento, e a

ULBRA – Educação a Distância


teologia do Novo Testamento passou a ser vista da perspectiva do fenômeno da
história das religiões.
O ápice da teologia do Novo Testamento como puramente histórica foi com
Ferdinand Christian Baur (1792-1860). Ele seguiu a dialética hegeliana, propondo
que o cristianismo tem sua origem na luta dessas linhas de pensamento.
Tese: cristianismo judaico (Pedro, Mateus e Apocalipse);
Antítese: cristianismo gentio (Gálatas, 1 e 2 Coríntios, Lucas e Romanos);
Síntese: cristianismo primitivo – catolicismo primitivo (Marcos, João e Atos).
Segundo Baur, Jesus simplesmente expôs sua consciência religiosa, não uma
teologia. Assim, o Novo Testamento é resultado do confronto entre dois movimentos
contrários pós-Jesus.
Tese: o pensamento do apóstolo Paulo – o cristão está livre da lei;
Antítese: as ideias de Pedro e Tiago (cristianismo judaico) – a lei tem valor
permanente para a Igreja;
Síntese: catolicismo primitivo (segundo século) – harmonização entre as duas
posições.
Baur não estava preocupado com a verdade bíblica, mas com o desenvolvimento
histórico da mensagem bíblica. Sua preocupação é reconstruir os conceitos históricos
e o desenvolvimento das doutrinas. A “doutrina de Jesus” seria a pré-história da
teologia no Novo Testamento e não uma parte básica da teologia. Nesse sentido, são
apresentados três períodos no desenvolvimento na teologia do Novo Testamento.
a. primeiro período: conceitos de doutrina (Gálatas, 1 e 2 Coríntios e Romanos);
b. segundo período: Hebreus, epístolas menores de Paulo, 1 e 2 epístolas de
Pedro, Tiago, Sinóticos e Atos;
c. terceiro período: Epístolas pastorais e João.
Jesus não tem espaço nessa sequência histórica, mas antes dos três períodos, como
um elemento moral. Assim, a reconstrução de conceitos históricos apontava para
o progresso das doutrinas.
A partir de Bauer surgiu a Escola de Tübingen4, muito influente na Teologia
Bíblica da Alemanha.

4
Essa escola geralmente é identificada como tendo um período de visão mais conservadora no sentido
de ser mais bíblica, embora supernatural, que afirma que a autenticidade bíblica é atestada em parte
pelas profecias e pelos milagres. O outro período, com Baur, seria um tempo em que se inaugurou
uma abordagem mais racionalista das Escrituras.
16

Este movimento histórico encontrou um expoente em H. J. Holtzmann, cuja obra


ULBRA – Educação a Distância

sobre Teologia do Novo Testamento pode ser considerada como a declaração


clássica do pensamento “liberal”. Rejeitou qualquer abordagem à teologia do Novo
Testamento baseada em uma estrutura dogmática e também rejeitou a ideia de
revelação. Baseava sua abordagem da literatura em uma análise histórico-crítica
e que não aceitava a autenticidade dos textos.

1.4.1 Reações conservadoras


Durante este período, houve escritores com posicionamento mais conservador.
Hofmann, Tholuck, Bernard Weiss, Zahn e Feine. Eles se utilizavam de uma
abordagem mais histórica do que aquela empregada pelos dogmáticos, mas
mantinham que o texto era veículo de revelação.
Essa reação se caracterizava pela busca em combinar uma visão histórica com a
aceitação da revelação. E. W. Hengstenberg escreveu obras importantes: Cristologia
do Antigo Testamento (1829-1835) e História do Reino de Deus no Antigo Testamento
(1869-1871). Dava-se pouco valor à ideia de uma evolução histórica no texto
bíblico.
J. C. K. Hofmann adotou uma posição de maior valorização da história em uma
série de escritos sobre “Profecia e Cumprimento” (a partir de 1841). Defendia a
autoridade e origem da Escritura a partir do estudo da história. Desenvolveu a
Heilsgeschichte5. A Bíblia é o registro da história da salvação do ser humano. Ele
e outros teólogos (J. A. Bengel, J. T. Beck), da chamada “Escola de Erlangen”6,
sustentavam que a Escritura era o testemunho da ação de Deus na história, ação
esta que visava à salvação da humanidade. Não consideravam a Bíblia como um
conjunto de textos-prova de doutrinas. Antigo e Novo Testamentos contêm a
proclamação histórico-salvífica e, assim, um testemunho de Deus na história.
Com influência de Schleiermacher (1768-1834), desenvolveu-se nesse período o
aspecto mais subjetivo da Bíblia, ou a comunhão de Deus e homem mediada pelo
Espírito Santo. O Espírito Santo é responsável pelo escritos bíblicos e a formação
do cânone. A tarefa é investigar o local histórico dessas produções do Espírito.

1.5 A perspectiva “histórico-religiosa” da Teologia do Novo


Testamento – A História da Religião
William Wrede (1859-1906) escreveu um texto bem influente intitulado “A tarefa
e métodos da Teologia do Novo Testamento” (1897), em defesa da abordagem

5
Literalmente “história da salvação”. A atividade de Deus em favor da humanidade.
6
A Escola de Erlangen buscava combinar as “novas descobertas” com a teologia da Reforma.
17

histórica contra a abordagem dogmática das Escrituras. Segundo Wrede, o Novo

ULBRA – Educação a Distância


Testamento está mais ocupado com religião do que com teologia. Sua insistência de
que a teologia deve ser estudada na perspectiva do seu contexto histórico exerceu
uma influência poderosa em estudos subsequentes.
Wrede era um representante da chamada Escola do Desenvolvimento da Religião
(“religionsgeschichtliche Schule”). A fé cristã não estaria interessada em teologia, mas
em religião. Por isso, não se buscava a compreensão de verdades fundamentais,
mas as experiências religiosas presentes no cristianismo primitivo, entendidas a
partir de seu contexto religioso. Através do estudo comparativo entre a religião
cristã e as outras religiões, a escola objetivava descobrir em que a primeira havia
sido influenciada pelas últimas.
O Novo Testamento deixou de ser uma fonte autoritativa da teologia cristã
primitiva, para ser considerado como uma parte do quadro da religiosidade do
primeiro século. Isso levou a uma ênfase exagerada na apocalíptica judaica. Uma
consequência deste movimento foi o de distinguir o pano de fundo helenístico de
Paulo do apocalíptico judaico de Jesus. Não se poderia pensar em uma teologia
do Novo Testamento unificada nestas circunstâncias. Assim sendo, toda teologia
do Novo Testamento estava fadada a enfatizar, fragmentadamente, ou o ensino
de Jesus ou o de Paulo e João.
Para Wrede, é preciso abordar o Novo Testamento a partir da História. Não há
conexão entre Teologia Bíblica e Dogmática. Na verdade, ele indica um virtual
abandono da “Teologia Bíblica”, ficando no estudo da religião. Com isso ele
pretende falar da experiência da igreja cristã primitiva a partir de um ponto de
vista histórico. Nesta abordagem não há sentido em falar de doutrina, revelação,
ou mesmo de um cânone restrito como base para o estudo.
Há uma virtude na proposta de Wrede. Ele chama a atenção para o fato de que
não se deve considerar o Novo Testamento como um depósito de doutrinas. A
menos que se perceba a vida que está por detrás do texto do Novo Testamento,
acabaremos tendo um teologizar morto. No entanto, ele foi longe demais na sua
proposta. Na verdade, esta sugestão acaba fazendo da fé cristã um mero objeto de
estudo histórico e, portanto, relativamente pouco importante em termos práticos
para gerações posteriores. Visto que o Novo Testamento não é visto como revelação
de Deus, deixa de ser autoritativo para toda e qualquer época. Há um inevitável
reducionismo na busca humana por Deus no primeiro século da era cristã.
Por outro lado, é muito diferente a abordagem que entende o Novo Testamento
como sendo revelação de Deus aos homens. Tal visão concentra-se naquilo que
Deus tem a dizer ao homem e não na busca humana por Deus. Daí o estudioso
não tem a liberdade de escolher o que buscar no texto. É preciso levar em conta
tudo, ou nada. Ele vê o ensino do Novo Testamento como um todo e não como
partes desconexas. Daí que não pode concentrar-se em um aspecto (por exemplo, a
18

teologia de Paulo) em detrimento de outros. Nem se pode criar suas próprias ideias
ULBRA – Educação a Distância

de importância comparativa entre as diferentes ênfases. Ele está comprometido


em buscar os fatores que unificam a mensagem, pois sabe que a revelação não
pode ser contraditória.
Wilhem Bousset (1865-1920), em sua obra Kyrios Christos (1913), fez uma
diferenciação entre a consciência religiosa de Jesus, a fé do cristianismo primitivo
(que identificava Jesus com o Filho do homem do apocalipcismo judaico) e a posição
adotada pela Igreja helenista e Paulo (que afirmavam a divindade de Jesus). Para
Bousset antes da conversão, os cristãos eram adoradores de mistérios. Aconteceu
uma transferência dos deuses mitológicos para Jesus de Nazaré.
Adolf Von Schlatter (1852-1938) traz uma proposta bastante diferente da de Wrede.
Ele não vê a Dogmática e a pesquisa histórica como se anulando mutuamente. Na
verdade, ela vê a Dogmática e a Teologia Bíblica como bem próximas. Ele considera
o Novo Testamento como revelação de Deus aos homens. Assim, ele busca uma
abordagem não apenas histórica, mas teológica do texto bíblico.

1.6 Da Teologia Dialética até o século XX


Segundo estudiosos, a mudança de certos rumos no estudo da teologia foi em
grande parte decorrência e influência da Primeira Grande Guerra Mundial. Houve
uma perda de confiança no naturalismo evolucionista, colocando-se em dúvida se
a verdade histórica poderia ser obtida pela objetividade científica.
Mudanças na hermenêutica e na teologia foram notadas em Karl Barth (1886-
1968). Segundo ele, se tivesse que optar entre o método histórico-crítico (que tem
sua validade, segundo Barth, no sentido de conduzir à compreensão) e a “velha”
doutrina da inspiração, escolheria a segunda. Barth enfatiza o lado divino do
relacionamento Deus-homem e Deus como fonte de revelação.
Em termos práticos, a interpretação da Bíblia não se atém a problemas histórico-
críticos, mas ao testemunho da revelação contido na Bíblia. Sua tentativa era não
deixar o cristianismo se tornar uma ideologia ou um produto da cultura.
Sua teologia enfatiza a abordagem cristocêntrica à predestinação. A obra de Cristo
pressupõe a obra do Pai e a do Espírito Santo. Ele não identifica a Bíblia com a
Palavra de Deus, mas ela é um testemunho da Palavra. A Heilsgeschichte sustenta
que o meio da revelação de Deus é a história sagrada, e a Escritura se torna um
testemunho dessa história.
Rudolf Bultmann (1884-1976) não pretendeu oferecer uma abordagem meramente
histórica em sua Teologia do Novo Testamento (1951). Partindo de pressupostos
existencialistas, Bultmann sustentou que o texto bíblico tinha sempre relevância,
mas precisava ser constantemente reinterpretado. Os textos do Novo Testamento,
19

em que ele próprio baseou seu estudo, teriam sido fundados a partir da visão

ULBRA – Educação a Distância


mitológica de sua própria época. Era, assim, essencial submetê-los a um processo de
desmitologização7 diante das verdades eternas, as quais somente poderiam chamar
a pessoa a uma decisão. Não haveria, para Bultmann, nenhuma conexão entre o
Jesus histórico e o Cristo da fé. Na prática, segundo Bultmann, não se pode saber
praticamente nada a respeito do Jesus histórico, ou seja, a vida e a personalidade
de Jesus. Sua busca era por eliminar a historicidade dos evangelhos, exceto que
houve um homem chamado Jesus de Nazaré que morreu na cruz. O restante é
resultado da construção da comunidade dos crentes sobre Cristo. De certa forma,
sua abordagem coloca o homem como o objeto da teologia, de modo que a teologia
se torna dependente da antropologia.
Pouca atenção também era dada ao Antigo Testamento. Uma ilustração do que a
tese de Bultmann significaria na prática é encontrada num artigo de E. L. Allen8.
Usando os métodos de Bultmann, Allen decidiu por eliminar alguns conceitos
teológicos no Antigo Testamento, por não se encaixarem na mente moderna.
O conceito da escolha de Israel como nação escolhida, por exemplo. Isso seria
muito nacionalista e teria até traços racistas. O conceito de um Deus pessoal,
zeloso, ciumento, termos que seriam inapropriados para empregar em relação às
atitudes de Deus. Apenas o contrário seria possível. As pessoas têm esses tipos
de atitudes em relação a ele. Também não faria sentido o conceito de que Deus é
ativo na história, pois isso conecta a retribuição moral com a história. Também seria
irrelevante a ideia da ressurreição dos mortos, pois ela surrealmente considera a
morte como fato transitório e a continuação do corpo como mais importante, pelo
menos tão importante quanto a continuação da alma.
Durante este período de influência existencialista, outro movimento estava
devotando especial atenção à Teologia Bíblica, buscando descobrir alguma unidade
dentro da variedade do Novo Testamento. O mais notável dos expoentes deste
movimento foi Oscar Culmann, cuja ênfase principal estava na Heilsgeschichte, a
visão de que os atos de Deus, assim como suas palavras, são fundamentais para
a salvação, uma posição que questiona as bases do existencialismo. Dessa forma,
a história é vista como de grande importância na abordagem à teologia do Novo
Testamento.
É possível perceber, a partir deste exame, que não há concordância quanto ao
que uma teologia do Novo Testamento deveria buscar atingir. A maior parte dos
estudiosos tem optado por uma abordagem que apresenta a evidência como uma

7
Termo cunhado por Bultamnn como uma forma de oferecer uma interpretação para o homem moderno.
O princípio é remover da Escritura textos que seriam “mitos” antigos e proclamar a sua mensagem
numa linguagem contemporânea relevante.
8
LIVINGSTON, Herbert G. The Pentateuch in Its Cultural Environment. Michigan: Baker Book House,
1987, p.203.
20

coleção de diferentes teologias; a abordagem temática ou de unidade tem sido


ULBRA – Educação a Distância

pouco favorecida entre os estudiosos.


Vale observar que no século XXI há outras correntes interpretativas construídas em
cima de posições histórico-críticas do século passado e que continuam exercendo
influência. Dentre elas está a Crítica da Forma9, que se concentra em unidades
menores da Escritura Sagrada para estudar os processos orais envolvidos na
transmissão do texto e assim obter compreensão sobre a forma final do texto e
consequentemente checar a autenticidade do texto. Essa técnica exegética nega
a inspiração da Bíblia e a possibilidade de que um autor bíblico possa ter usado
mais de um estilo ou vocabulário nos seus escritos.10

Atividades de autoestudo
1. Um exame histórico dos avanços, variações e mudanças no conceito de
Teologia Bíblica indica que o iluminismo gerou um marco significativo nesse
desenvolvimento. Nesse período, não só houve uma separação entre a Teologia
Bíblica e Sistemática, como se criou uma rivalidade entre ambas. Descreva o
assunto de forma generalizada, bem como de forma mais específica sobre a
interpretação objetiva da Bíblia e suas consequências.

2. A influência de Schleiermacher (1768-1834) nos métodos de leitura bíblica


resultou, de forma particular, em que tipo de princípio hermenêutico?
a. A leitura se tornou mais objetiva e racional;

b. Desenvolveu-se o aspecto mais subjetivo na leitura da Bíblia;

c. Como o Espírito Santo é responsável pelo escritos bíblicos, a tarefa é


investigar o local histórico dessas produções do Espírito;

d. Houve o processo de desmitologização de textos do Antigo


Testamento;

e. As respostas “b” e “c” representam resultados na hermenêutica de


Schleiermacher.

9
Outras divisões da exegese bíblica que continuam tendo traços de influência: Crítica das Fontes,
Crítica Literária e Crítica Textual.
10
LINK, Hans Georg. Glossário de Termos Técnicos. In: Dicionário Internacional de Teologia do Novo Tes-
tamento. Lothar Coenen e Colin Brown, editores. Tradução de Gordon Chown. São Paulo: Vida Nova,
2000.
21

3. Segundo a Escola do Desenvolvimento da Religião (“religionsgeschichtliche

ULBRA – Educação a Distância


Schule”), o principal objeto de estudo da Teologia seriam as experiências
religiosas presentes no cristianismo primitivo, entendidas a partir de seu
contexto religioso. Através do estudo comparativo entre a religião cristã e as
outras religiões, a escola objetivava descobrir em que a primeira havia sido
influenciada pelas últimas. Quais podem ser algumas das implicações desta
forma de fazer teologia?
a. O Novo Testamento passa a ser considerado apenas como uma parte
do quadro da religiosidade do primeiro século;

b. Não há como pensar em uma unidade teológica do Novo


Testamento;

c. A teologia do Novo Testamento foi fragmentada em mais de uma


teologia;

d. O ensino dessa forma passa a ser visto como sendo ou de Jesus, ou de


Paulo, ou de João;

e. Todas as informações acima fazem parte das implicações e estão


corretas.

Respostas
2.e; 3. e

Referências
BROWN, Colin; COENEN, Lothar. Dicionário Internacional de Teologia do Novo Testamento.
Tradução de Gordon Chown. São Paulo: Vida Nova, 2000.
CARSON, Donald A. Teologia Bíblica ou Sistemática? Unidade e Diversidade no Novo Testamento.
Tradução de Carlos Osvaldo Pinto. São Paulo: Vida Nova, 2001.
HASEL, Gerhard. Teologia do Antigo e Novo Testamento. Tradução do AT: Luís M. Sander;
Tradução do NT: Jussara Marindir P. S. Arias. São Paulo: Academia Cristã e Loyola, 2008
2
Anselmo Ernesto Graff
UM MODELO DE TEOLOGIA BÍBLICA
11

Notas introdutórias
O princípio do Sola Scriptura [Somente a Escritura] pressupõe que existe uma
unidade entre a Palavra de Deus e as doutrinas sistematizadas nas confissões de
uma igreja. No entanto, a Palavra de Deus sempre deve ser vista como a regra
absoluta e autoridade decisiva em questões de doutrina e fé. A norma secundária
são as confissões. Ainda que sua necessidade seja relativa, elas é que determinam
se a compreensão da Escritura tem sido clara e verdadeira.
O objetivo principal deste capítulo é auxiliar na reflexão sobre parâmetros e
referências que podem ser consideradas na elaboração de uma Teologia Bíblica
coerente e autenticamente bíblica. A proposta está fundamentada na ideia do
diálogo entre a Teologia Bíblica e a Teologia Sistemática.

2.1 Aspectos funcionais de um corpo doutrinário em relação


às Escrituras
Em primeiro lugar, vale destacar que há algumas metáforas12 usadas para descrever
o aspecto funcional de uma confissão de fé em relação à Escritura. Uma delas é
a de uma coleção de mapas dentro de um atlas. “Esse atlas” não será usado para
esboçar características geográficas, mas o conteúdo doutrinário das Escrituras.
Isso é relevante quando se entende que mapas não são elaborados para substituir

11
O modelo apresentado está baseado em artigo de David L. Adams. The Present God: A Framework
for Biblical Theology. In: Concordia Journal, v.22, n.3, julho de 1996, p.279-294.
12
O assunto das metáforas foi inspirado em texto de James W. Voelz, no livro What Does This Mean? St.
Louis: Concordia Publishing House, 1995, p.350-351.
24

ou evitar que se faça uma viagem para algum outro lugar. Eles são produzidos
ULBRA – Educação a Distância

cuidadosamente para providenciar direção para uma viagem. Um mapa, hoje mais
o GPS, gera confiança e segurança, o que nem sempre pode acontecer sem seu
auxílio. Além disso, o uso do mapa possibilitará chegar ao destino final.
No caso das confissões ou de um corpo doutrinário, o objetivo é entender a
totalidade das partes e sua relação de umas para com as outras, para também chegar
ao coração ou no centro, e que é encontrar um caminho coerente que auxiliará na
leitura e interpretação da Sagrada Escritura. As confissões ou o corpo doutrinário
podem funcionar como um mapa que nos auxilia na leitura da Sagrada Escritura.
E como um mapa não substitui a viagem, a leitura de documentos confessionais
não são substitutos para a leitura da Bíblia.
A analogia de um quebra-cabeça pode facilitar ainda mais essa compreensão.
Assim como um quebra-cabeça, as Escrituras contêm muitos conceitos diferentes
e que precisam ser colocados juntos e assim formar uma figura coerente e correta.
As Confissões (Credos, doutrinas) são auxílios em juntar essas peças individuais,
assim como a figura na caixa do quebra-cabeça serve como um auxílio para quem
se dispõe a montar as diferentes peças. As Confissões (ou o corpo doutrinário)
fornecem uma visão panorâmica da figura (Teologia) e na qual é possível discernir
e identificar as partes centrais do quebra-cabeça, bem como sua relação entre elas
e especialmente com o cerne da revelação de Deus, Jesus Cristo.
Como a Palavra de Deus não regula só questões de doutrina, mas toda a vida
em Cristo, é conveniente ter uma figura clara da maneira pela qual a Palavra
está relacionada aos vários aspectos que abrangem a vida em Cristo. Assim, a
investigação das Escrituras não será e tão somente reduzida a encontrar “textos
prova” para sustentar formulações sistemáticas, mas ela será dirigida na perspectiva
de buscar nela orientações para a vida e a fé.

2.2 Alvos da Teologia Bíblica


A tarefa de exegese de um texto começa com o exame do texto em si: palavras,
sentenças e gramática. Ela se torna completa quando fornece um entendimento do
relacionamento desses aspectos particulares (palavras, frases, partes), com o todo
da revelação divina na Escritura. Nesse sentido, a exegese conduz à formulação
de uma “Teologia Bíblica”.
A Teologia Bíblica, por sua vez, não é um fim em si mesmo. Ela serve para propósitos
mais altos, a saber, o culto cristão verdadeiro e o ensino correto. Uma pessoa não pode
prestar culto a Deus de forma apropriada, sem crer em Deus de forma verdadeira.
Também não se pode ter o objeto verdadeiro do crer, sem que haja um entendimento
correto da revelação divina. Nesse sentido, a Teologia Bíblica é inseparável tanto da
doutrina como do culto e modela toda a nossa vida em Cristo.
25

2.2.1 Três correntes na história da Teologia Bíblica em consideração

ULBRA – Educação a Distância


Há pelo menos três correntes na história da Teologia Bíblica que precisam
ser consideradas. [1] Tendências no estudo da Teologia Bíblica como sendo
Religionsgeschichte13; [2] A minimização, se não a remoção completa, de aspectos
sincrônicos em favor de uma abordagem teológica diacrônica ou evolucionária14;
[3] Visão de fé do Antigo Testamento como tendo “muitas vozes”, ou seja, não
haveria uma unidade teológica que pudesse ser identificada.
Dessas três, a última é de momento a mais significativa, tendo em vista o
objetivo deste capítulo. O estudo crítico do Antigo Testamento não só levanta a
possibilidade de existirem dentro dele teologias diferentes, como até pensamentos
conflitantes. É fundamental observar que qualquer Teologia Bíblica deve aceitar
o fato de que há diferentes expressões e ênfases entre os escritores do Antigo e
do Novo Testamento. Se não formos além do reconhecimento da diversidade de
pensamento na Escritura, falhamos em responder duas questões cruciais. Primeira,
o que fez com que a religião de Israel tenha sobrevivido às muitas mudanças de
circunstâncias e condições? Segunda pergunta: o que impulsionou ou dirigiu a
formação de um único cânone em meio às “muitas vozes” teológicas?
Uma diferença básica que salta aos olhos nas obras teológicas ao longo dos anos
é a maneira como se abordam as diferentes ênfases teológicas das Escrituras. Se,
por um lado, se busca juntar as ideias teológicas do Antigo e Novo Testamento e
formar um todo que seja coerente, por outro, a tentativa se resume em catalogar
os diferentes temas, sem a preocupação em relacioná-los dentro de uma Teologia
Bíblica coerente.
Ainda que para alguns isso seja considerado como um progresso, o esforço
renovado no exame da Escritura deve ser no sentido de encontrar uma Teologia
Bíblica conexa com o todo da revelação de Deus. Essa teologia permitirá cada
voz falar por si mesma e apontará o contexto original da revelação divina ao
povo de Deus ao longo dos anos. Mas ao mesmo tempo ela vai ser instigada a
apreciar a teologia da Bíblia como um todo, como sendo maior que suas partes
individualmente.

13
História das Religiões. É uma divisão que estuda primordialmente o desenvolvimento e a história de
religiões específicas na sua origem, evolução, fases e mudanças.
14
Diacrônico e sincrônico são termos que identificam dois métodos exegéticos no estudo das Sagradas
Escrituras. No diacrônico, a tarefa exegética inicia com o exame das fontes editoriais, a crítica literária
e outros expedientes, visando considerar as etapas que o texto sofreu para sua formatação final. No
sincrônico, o pressuposto é de que as Escrituras, como elas são, é o produto final, com uma unidade
teológica coerente e lógica.
26

2.3 Definindo uma Teologia Bíblica coerente


ULBRA – Educação a Distância

Há pelo menos três aspectos ou propriedades que uma coerente Teologia Bíblica
deve refletir. Ser autenticamente bíblica, providenciar um fundamento para a vida
de culto do povo de Deus e prover um alicerce sólido para a Teologia Dogmática
da igreja de Cristo.

2.3.1 Autenticidade bíblica


Talvez seja óbvio que uma Teologia Bíblica coerente deva ser bíblica. Porém, isso
nem sempre foi consenso absoluto. Há pelo menos dois elementos básicos que
estão presentes em qualquer teologia que queira ser qualificada como Teologia
Bíblica.
Primeiro elemento: Teologia Bíblica usa linguagem bíblica numa forma bíblica para
falar sobre assuntos bíblicos. A “dignidade” de ser bíblico deve ter relação com
perspectivas, métodos e linguagem das Escrituras. Ela não deve ser simplesmente
empacotada em Teologia Dogmática ou Sistemática. Também não é o bastante usar
meramente palavras bíblicas. Uma Teologia Bíblica coerente deve refletir o mundo
conceptual da Escritura.
Segundo elemento: a Teologia Bíblica provê um modelo de compreensão entre as
relações de todas as partes da Escritura. Se a abordagem metodológica da Teologia
Bíblica for sincrônica ou diacrônica, ela deve olhar além das vozes e perspectivas
individuais e encontrar o caminho para encaixar esses elementos particulares,
dentro daquilo que transcende as vozes individuais: a soma das partes, ou o todo
das Escrituras.

2.4 Fundamento para o culto


Uma Teologia Bíblica autêntica deve estar conectada à vida de culto do povo de
Deus. O culto é o primeiro ato de fé. É a resposta movida por Deus para o encontro
com Ele. Como Deus nos encontra em sua Palavra, é Ele que define a resposta
legítima por essa mesma Palavra.

2.4.1 O culto de Israel


Uma Teologia Bíblica coerente deve começar fornecendo um entendimento correto
do culto de Israel. Isso, por sua vez, apontará para a teologia do sistema sacrificial e
do templo do Antigo Testamento. Ao mesmo tempo, esse entendimento deve gerar
uma descrição adequada da forma pela qual o culto de Israel sobreviveu diante
da destruição do templo e do término do sistema de sacrifícios. Isso, por sua vez,
tornará possível a compreensão da mudança do foco do templo para a Palavra.
27

2.4.2 O culto do Novo Israel

ULBRA – Educação a Distância


Uma Teologia Bíblica legítima abordará o culto de Israel e do processo de transição
para o culto do Novo Israel, ou o culto cristão. Em especial, fundamentará o aspecto
do sistema sacramental presente no culto da Igreja Cristã.

2.5 Fundamento para a Sistemática


Da mesma maneira que uma Teologia Bíblica coerente deve prover o fundamento
para o entendimento da vida de culto do povo de Deus, ela igualmente deve
providenciar uma base para a Teologia Dogmática da igreja.
Há uma unidade fundamental entre a fé crida [Fides Quae], a fé que crê [Fides Qua]15
e a fé que se expressa no culto. Esse princípio sublinha a unidade fundamental
entre a Teologia Bíblica e a Teologia Dogmática da Igreja. Ainda que às vezes se
fale como que essas duas facetas fossem duas coisas diferentes, o fato é que são
dois lados de uma verdade.

2.6 Teologia Bíblica e Sistemática – Em busca de uma unidade


Qual o caminho da unidade entre a Teologia Bíblica e Sistemática? Como lidar com
situações em que eram consideradas até mesmo rivais em certas épocas da história?
A ideia é ver as duas teologias em termos de perspectivas, métodos e linguagem,
e assim manter o vínculo de unidade entre ambas.

2.6.1 Diferenças de perspectiva


A primeira diferença entre a Teologia Bíblica e a Sistemática é a diferença na
perspectiva. O testemunho bíblico é o relato da ação de Deus com a humanidade
contado da perspectiva humana. Ele revela, dentro do tempo e do espaço, peça
por peça, em todas as gerações, como Deus agiu e age entre o seu povo, tornando
conhecida a sua vontade, revelando seus ensinos e executando o plano de salvação
proposto em Jesus Cristo.
É importante observar que o testemunho bíblico contado da perspectiva humana
não é em hipótese alguma a negação da inspiração do texto bíblico. Isso visa, na
verdade, afirmar que Deus inspirou pessoas para isso, usando-as em toda a sua
humanidade para registrar e transmitir sua Palavra. Pelo fato de Deus ter usado

15
Fides Quae e Fides Qua são duas formas compactas na língua latina para afirmar verdades sobre a fé.
A primeira se refere à doutrina ou ao ensino da salvação em Cristo. Já a Fides Qua diz respeito à fé
pessoal, como meio receptor dos méritos de Cristo obtidos na cruz.
28

pessoas, a obra de Deus no mundo é uma narrativa contada na arena humana, no


ULBRA – Educação a Distância

tempo e com indivíduos específicos. É a história contada de dentro da história.


Enquanto o testemunho bíblico, e por isso a Teologia Bíblica, olha para o plano divino
revelado peça por peça, ao longo dos anos e dentro da experiência humana, a Teologia
Sistemática olha o todo, compactando elementos históricos e culturais e reunindo as
diferentes peças numa figura completa. É a história vista de fora da história.

2.6.2 Diferenças no método


O método da Teologia Sistemática tem muito em comum com a Filosofia, pois ambas
tentam construir e ver a realidade num todo, a partir de peças ou fragmentos da
existência humana.
A Teologia Sistemática é em sua essência caracterizada como dedutiva e analítica.
Ela toma o testemunho bíblico e faz um rearranjo, uma categorização e organização,
estruturando seus argumentos para responder questões vindas de fora.
A Teologia Bíblica, por sua vez, reflete pouco desse método filosófico. Ela toma
o testemunho bíblico assim como ele está e procura entender cada parte em seu
próprio contexto. Ela procura entrar na história de Deus agindo com suas criaturas
e assim ver suas ações conforme os “atores” a veem. Há comparações com outras
partes da Escritura, mas sem perder de vista o contexto histórico, cultural e teológico
da revelação de Deus.

2.6.2.1 É possível Teologia sem “Aristóteles”?


Como já foi visto acima, é muito óbvio que uma teologia coerente deve ser bíblica.
Ela deve reproduzir de forma autêntica o que Deus diz em sua Palavra. A Palavra
de Deus sempre é a Palavra de Deus e não está e nem pode ser submetida a
algum padrão filosófico. A revelação de Deus está além da compreensão racional
e assim deve ser examinada acima de tudo pela fé. Porém, isso não significa que a
Palavra de Deus tem um princípio mágico ativo dentro dela e o qual asseguraria
a compreensão plena de quem a lê. Isso também não significa que ela não deva
ser organizada, ou, caso seja, de maneira entusiasta, como se as diferentes peças
se ajustariam automaticamente. Além disso, Deus não é maniqueísta, como se o
intelecto não fosse parte da boa criação de Deus. Com certeza o é, e a razão pode
ser uma abençoada ferramenta para organizar e estruturar sua revelação em seus
diferentes contextos e assuntos, a fim de torná-la compreensível e expor de maneira
lógica a unidade de sua revelação.
A lógica de Aristóteles não é a salvadora da teologia. Sua contribuição não é
decisiva para apreender melhor a Deus, mas ela estimulou os pensadores cristãos a
pensarem mais logicamente e argumentar de maneira adequada para que algumas
29

verdades também estejam ancoradas em argumentos racionais. Ele foi o filósofo

ULBRA – Educação a Distância


que deu à teologia uma nova direção, especialmente a partir da Idade Média,
quando os teólogos sistemáticos procederam numa maneira em que seus estudos
e conclusões fossem dedutivos e analíticos. Inspirado pela lógica de Aristóteles,
Tomás de Aquino construiu uma ponte entre Aristóteles e o cristianismo, criando
uma disciplina pela qual a revelação de Deus é arranjada, categorizada, organizada
e ensinada sistematicamente. Aristóteles instigou a criação de uma ciência divina
chamada Teologia16.
Nós poderíamos afirmar que teologia pode ser feita com ou sem Aristóteles.
Sem ele, talvez ela seja mais subjetiva, menos racional, mas não necessariamente
errada, pois o crer não está ancorado somente naquilo que pode ser exposto
racionalmente. A revelação de Deus é suficientemente clara sobre o que deve ser
conhecido pelas pessoas independentemente de critérios racionais. Porém, não se
pode negar que a Teologia recebe o atributo adicional da credibilidade, quando
verdades bíblicas podem ser analisadas e entendidas pela razão, escrutinizadas
por processos racionais e intelectualmente aceitas, não somente pela autoridade per
si das Escrituras, mas também pela razão. A tarefa da Filosofia é antes orientar o
pensamento para raciocinar de um modo correto sobre Deus, do que penetrar nos
desígnios de Deus, o que, a propósito, também não é competência da Teologia.
A Filosofia e seus instrumentos de abordagem não precisam se tornar um corpo
estranho dentro da Teologia, desde que o conhecimento ou entendimento
racional não seja colocado na frente da fé. A presença da Filosofia pode proteger
a Teologia Bíblica de incongruências, de interpretações subjetivas ou entusiastas
e do pensamento pós-moderno que desconsidera a razão e afirma que a verdade
é apenas uma questão de perspectiva17.

2.6.3 Diferenças na linguagem


Estas diferenças em termos de perspectiva e método na Teologia Bíblica e
Sistemática conduzem a diferenças no uso da linguagem. A Teologia Sistemática
usa uma forma didática em sua linguagem e que é de natureza ontológica, ou

16
WORTHING, Mark William. Theology: Queen of Sciences? In: Concordia Journal, outubro 1994,
v.20, n.4, p.402-414. Esse é outro artigo que pode promover reflexões sobre o assunto. ZEUCH,
Manfred. A pesquisa em Teologia Sistemática numa perspectiva transdisciplinar: reflexões a partir
de uma experiência. In: Revista Igreja Luterana, v.59, junho/2000, n.1, p.29-46. Disponível em www.
seminarioconcordia.com.br/seminario/biblioteca/revistail.php
17
É importante a diferenciação do uso ministerial e magistral da razão humana. No uso magistral, a
recomendação é de que o conhecimento natural que o ser humano tem de Deus não funcione como
autoridade igualada à Palavra de Deus. Porém, no sentido ministerial ou instrumental, o emprego
correto das leis da linguagem humana bem como das leis do raciocínio humano (lógica) podem ser
legítimas, na medida em que se reconhece que Deus deu a sua palavra aos seres humanos se servindo
da linguagem e pensamento humanos (MUELLER, John Theodore. Dogmática Cristã. Canoas: Porto
Alegre: Editora da ULBRA / Concórdia, 2004, p.137).
30

seja, sua reflexão é dirigida na essência do ser. A Teologia Bíblica, por sua vez, usa
ULBRA – Educação a Distância

uma forma de linguagem narrativa e que é existencial em sua natureza. Ela tenta
descrever a maneira pela qual Deus age com a pessoa e como isso transparece em
termos de experiência humana18.
Um dos primeiros desafios do teólogo bíblico é construir uma ponte sobre este
vazio entre o modelo analítico de expressar a verdade, característica da Teologia
Sistemática, e o modelo sintético da Teologia Bíblica. Isso nem sempre é fácil. O
modelo analítico tem sido tão prioritário para formar paradigmas que expressam
a verdade que é difícil reconhecer que haja outro modelo. No entanto, essa ponte
é preciso ser construída para proclamar a Teologia Bíblica.

2.7 O conceito da presença divina como critério


para uma Teologia Bíblica coerente
É da essência de cada religião a preocupação relacionada ao encontro do humano
com o divino. Essa é a questão fundamental da religião. A resposta à maneira que
o divino interage com o humano vai determinar o caráter fundamental de uma
religião. Onde está Deus? Como é sua interação com o mundo atual? Como ele se
faz acessível ao ser humano?

2.7.1 O conceito de presença divina nas religiões em geral


O animista compreende que comunga com o divino de maneira direta,
experimentando o poder de Deus nas forças da natureza. Para o neoplatonista, o
encontro com Deus se dá somente através de exercícios místicos, sendo “extraído”
do mundo material através de uma contemplação mística, visando à absorção para
dentro de um ser superior.
O conceito da presença divina define tanto o conteúdo objetivo (doutrina) como o
encontro subjetivo (culto) e que por sua vez formam a essência de qualquer religião.
A fé revelada nas Escrituras não é exceção a essa regra. Em primeiro lugar, é preciso
entender como Deus é concebido na sua presença. Um exame rápido na tradição
cúltica do saltério mostra como é comum e importante o conceito da presença
de Deus para o povo do Antigo Testamento. O Deus das escrituras é um Deus
empaticamente presente.

18
Donald A. Carson, Teologia Bíblica ou Sistemática, p.23, oferece outra analogia para as diferenças e
semelhanças entre a Teologia Bíblica e a Sistemática. Ele cita Warfield para comparar o trabalho da
exegese (Teologia Bíblica) ao trabalho de um oficial de recrutamento que seleciona homens para o
exército e os organiza em companhias, regimentos e batalhões. Já a Teologia Sistemática combina
esses diferentes grupos para formar um exército.
31

2.7.2 O Deus presente na história da Teologia Bíblica

ULBRA – Educação a Distância


Embora haja estudos sobre o conceito de presença divina e seu entendimento seja
apropriado, há lacunas a serem supridas sobre essa faceta da teologia.
É certamente verdade que o estudo teológico está nos detalhes. Não há real
conhecimento sem o entendimento de fatos ou partes específicas. Ninguém pode
afirmar que entendeu um texto sem antes ter o conhecimento adequado sobre o
significado das palavras individuais, formas gramaticais e tempos verbais. Porém,
é também verdade que o verdadeiro entendimento transcende os detalhes. O
conhecimento adequado reside na correta percepção do relacionamento de ideias
e detalhes, não apenas em termos de vocabulário, morfologia ou sintaxe.
Em certo sentido e em alguns contextos, o estudo teológico mais recente pode
ser comparado a um expert em arte que decide estudar um vitral famoso. Ele
resolve que o foco de sua pesquisa serão as partes em azul do quadro. Ele estuda
sua composição, natureza e tintura usada. Ele examina detalhes sobre o estilo
do corte, e no fim ele consegue distinguir que vários profissionais participaram
na criação desta obra de arte. Em princípio, é tornado conhecido tudo que é
possível descobrir sobre as partes em azul do vitral. Porém, num outro nível de
conhecimento, esse estudioso acaba não sabendo nada sobre as peças do vidro
azul, pois no fim não houve compreensão de sua função em relação às demais
partes de vidro do vitral.
A mensagem da imagem a ser apreciada é mais do que a soma das partes ou suas
particularidades em si mesmas, mas é sua relação com o todo. Assim pode ser
comparado até certo ponto o estudo de teólogos modernos. O estudo das linguagens
cognatas na literatura do Antigo Oriente Próximo tem aumentado o conhecimento
do vocabulário e da filologia. O criticismo literário tem buscado isolar unidades
independentes dentro do todo da revelação. A crítica da forma tem procurado
examinar cada uma das partes em detalhe e relacioná-las a outras partes do mesmo
tipo e espécie. A tradição crítica e literária tentam determinar a história destas partes
individuais antes de elas fazerem parte do todo. O criticismo canônico tem como
alvo explicar o significado da formação das unidades maiores. Apesar dos benefícios
destes tipos de estudos específicos, muitas vezes, a impressão de que se sabe tudo
das “partes azuis” do vitral, mas pouco sobre a mensagem do vitral em si.
E em relação à presença divina no Antigo Testamento, a falha está justamente no
fato de que este conceito não está expresso em alguma palavra ou frase e que isso
é dificilmente identificável. O conceito de presença divina é antes uma complexa
rede de ideias e palavras, articulada e comunicada através de textos narrativos. O
conceito de presença divina é como um alicerce de uma construção. Ele tem uma
função de unir todas as partes e assegurar uma base única, sobre a qual o restante
da construção depende. Este alicerce está lá, é fundamental, mas não é a parte
mais óbvia da estrutura.
32

2.7.3 A natureza da presença


ULBRA – Educação a Distância

O criticismo histórico tem argumentado por quase 150 anos que a genuína noção
hebraica da presença de Deus foi derivada do seu contexto nômade. Por exemplo: a
presença de Deus associada com um lugar entrou no pensamento hebraico, quando
Davi precisou de uma teologia para justificar a construção do templo. Essa ideia,
segundo os críticos, foi “emprestada” da ideia cananita (Jebuseus). Para David
Adams, a genuína presença de Deus segundo a noção hebraica pode ser vista
como bipolar, ou seja, ela está associada tanto a pessoas como a lugares. Esses dois
elementos podem ser chamados de “presença local” e “presença acompanhada”
(Is 57.15). Esse conceito de presença bipolar pode ser uma chave para entender de
maneira adequada o desenvolvimento da fé hebraica.

Companhia
Presença acompanhada Presença local
de Deus

Deus é associado com


Deus é associado com pessoas,
lugares, especialmente
Presença particularmente naqueles textos
naqueles relatos nos
associada que afirmam que Deus estará com
quais o lugar recebe um
com as pessoas por onde quer que ela
nome como resultado da
esteja.
revelação divina.

A revelação ocorre em
A revelação ocorre em formas
formas que refletem
que refletem somente a palavra
um aspecto visual
divina, falada à parte de qualquer
explícito a quem está
Modos de aspecto visual, incluindo aqueles
sendo proporcionado o
revelação que acontecem na forma de
encontro, especialmente
sonhos, onde o elemento “visual”
aqueles em que Deus
está dentro da pessoa e não é
é visto, parcial ou
manifestação exterior.
plenamente.

Não é dada importância ao lugar O significado cúltico


do encontro, incluindo àqueles do local é aparente, seja
nos quais a localização não está através de sua associação
sinalizando como significativa prévia, a construção de
Significado
pela atividade cúltica (como a um altar, o nome a ser
cúltico
construção do altar), ou àqueles que atribuído ao lugar, ou
não têm (para o melhor do nosso o testemunho posterior
conhecimento) uma associação para o local como tendo
cúltica, antes ou depois. uso cúltico.

A passagem está
Categoria A passagem está relacionada à relacionada à teologia
teológica teologia do nome de Deus. Ela da glória de Deus. Ela
relacionada reflete a noção do tempo sagrado. reflete a noção do espaço
sagrado.
33

O entendimento próprio do conceito bíblico de presença não significa que há traços

ULBRA – Educação a Distância


conflitantes de um para com o outro, nem que isso seja uma tentativa para construir
uma teoria que explique a evolução de um para o outro, mas é uma apreciação
da interação destes elementos e como eles operam juntos numa tensão dinâmica.
Assim, a questão não é uma/ou, mas uma/e.

2.7.4 Fundamento bíblico para uma Teologia Bíblica


Entendido de forma adequada, o conceito bipolar de presença divina providencia
uma chave significativa no entendimento do desenvolvimento da fé hebraica. Sua
tensão dinâmica alimenta o entendimento da fé tanto em termos de conteúdo
(doutrina) bem como sua forma de expressão (culto). Sua amplitude provê a
possibilidade de cobrir tanto as visões proféticas como as visões sacerdotais,
as quais Israel foi chamada para estar em relacionamento com o Senhor. Seu
balanço providencia a flexibilidade que permitiu que a fé hebraica se adaptasse,
mas permanecesse fiel em sua natureza essencial, às mudanças circunstanciais a
que foi submetida. Enquanto o ponto de equilíbrio entre esses dois polos tenha se
modificado de tempo em tempo, a força de um dos polos providenciou uma linha
corretiva à tendência para algum tipo de excesso.
Certamente, elementos dessa noção bipolar podem ser encontrados em religiões
semíticas, mas este aspecto é inerente ao entendimento hebraico de Deus desde
o princípio.
O Deus presente aparece na criação, quando o Espírito “paira” sobre as águas
(Gn 1.2). Deus mantinha contato direto com Adão e Eva no Jardim (Gn 1.28; 2.16;
2.23; 3.8), mas depois da queda a expulsão significava separação da presença de
Deus (Gn 3.23).
No período do Êxodo e da peregrinação pelo deserto, essa tensão dinâmica entre
esses dois polos do entendimento hebraico da presença de Deus se torna mais claro
(Sinai, nuvem, coluna de fogo, Arca, Tabernáculo).
A época da distribuição da terra e dos juízes exibe uma tendência de uma presença
mais individualizada. Enquanto o sentido da presença local permanece ligado à arca
e ao Tabernáculo e em conexão com os outros lugares cúlticos, a fundamentação
que transformaria as tribos em uma nação ainda não começou a ter o seu efeito.
A ênfase estava no relacionamento entre Deus e as pessoas, especialmente com
indivíduos que eram os juízes.
Com o passar do tempo, a presença local começou a ter um efeito tanto na fé
como na vida social da comunidade, quando as tribos estavam se encaminhando
a ser uma nação. O pêndulo começou a oscilar para o outro polo, tanto que a
figura do rei e o templo começaram a receber um significado teológico e litúrgico.
34

Depois da divisão do reino, além da presença de Deus estar vinculada ao Norte


ULBRA – Educação a Distância

e ao Sul, a ênfase também recaiu sobre o templo.


Esse conceito de presença de Deus confere unidade e continuidade em meio
à diversidade teológica do Antigo Testamento. Além disso, torna-se a chave
para entender a experiência do povo de Deus no exílio babilônico. O ministério
profético de Ezequiel, Jeremias e Isaías preparam o povo para a perda do acesso
à presença de Deus, resultado de sua saída do templo. O conceito bipolar da
presença divina fornece o fundamento para a teologia do templo, mas reteve a
flexibilidade em permitir à fé de Israel sobreviver à sua destruição. Entender a
concepção hebraica da presença de Deus como revelada no Antigo Testamento
nos ajuda a entender como Deus pôde preservar um povo fiel no exílio e lhe dar
esperança para um futuro retorno do exílio e a vinda do Messias.
Com a destruição do templo e posteriormente o exílio, o pêndulo foi para a outra
direção. A existência de um entendimento alternativo estabelecido em como
Deus se fez presente, permitiu a sobrevivência do povo, tanto pela destruição
do templo como pelo desmembramento da nação. Se Deus tinha manifestado
o juízo sobre o povo, ele não abandonou seu povo. E deste processo emergiu o
começo da sinagoga e a crescente ênfase na Palavra e tradição escrita, o que pode
ser um marco nos estágios iniciais da transformação da fé do Antigo Testamento
para o judaísmo. Mesmo assim, a presença local não se perdeu. Sua existência
continuada está evidente no desejo de retorno à terra e a reconstrução do templo.
Além disso, houve uma crescente expectativa do reino messiânico.
O período pós-exílio mostrou a continuação dessas tendências. A reconstrução
do templo atesta para a sobrevivência do conceito de presença local. A ênfase
continua na palavra escrita, que gradativamente veio a ser entendida como uma
forma da presença divina e o crescimento das tradições rabínicas são evidências
do outro polo.
Visto dessa perspectiva, o conceito da presença de Deus serve para conectar
o Antigo Testamento tanto aos escritos intertestamentários como à revelação
de Deus em Cristo no Novo Testamento. O conceito de presença divina é o
fundamento necessário para a Teologia Bíblica, não só porque mantém as
diferentes partes do Antigo Testamento unidas, mas porque provê o conector
entre a revelação primeva e a posterior.
A revelação do Messias como o Emanuel expõe o fundamento do ministério e
ensino de Cristo. Depois de sua ressurreição e ascensão, a obra do Deus presente
entre seu povo continua com o derramamento do Espírito no dia de Pentecoste.
Através disso, Deus faz com que sua presença se manifeste nos cristãos, como
templos do Espírito Santo e no novo templo, a igreja. O próprio Deus energiza
35

o ministério da igreja através de sua presença nos meios da graça, ou nos meios

ULBRA – Educação a Distância


de sua presença e poder, a saber, pela Palavra, no Batismo e na Santa Ceia.
Assim, podemos entender e crer que uma legítima Teologia Bíblica emprega a
hermenêutica da presença de Deus. Esse é o fundamento da fé cristã. A igreja de
Cristo precisa uma Teologia Bíblica vital, e essa teologia não pode se restringir a
um mero exercício acadêmico de interpretação bíblica, mas afetar a nossa vida
em Cristo, a Palavra de Deus que se fez carne e se mostrou presente entre os
homens.

Atividades de autoestudo
1. Este capítulo tratou de aspectos que diferenciam a Teologia Bíblica da
Sistemática. Em que sentido elas podem ser vistas como uma unidade e
em que feições elas se diferenciam? Faça uma análise breve sobre a questão
proposta.

2. Correntes na história da Teologia Bíblica consideradas neste capítulo possuem


traços que acabam criando implicações teológicas significativas na abordagem
do texto bíblico. Quais podem ser essas decorrências?
a. Ler o Antigo Testamento como tendo diferentes teologias, contrariando
assim sua unidade teológica.

b. Ler o Antigo Testamento como sendo o desenvolvimento da história


de religiões específicas na sua origem, evolução, fases e mudanças.

c. Ler o Antigo Testamento de forma diacrônica, ou seja, a principal tarefa


da exegese é examinar as fontes editoriais do texto em estudo.

d. Todas as alternativas são falsas.

e. Todas as afirmações são verdadeiras.

3. Foi abordado neste capítulo o tema da Teologia Bíblica como dependente ou


não da sistematização, ou seja, de recursos filosóficos ou da Sistemática. Qual
é a conclusão a que se pode chegar a partir da análise feita?
I. A Teologia Bíblica não depende em absolutamente nada da formação
de corpo doutrinário (sistematização).

II. A Teologia Sistemática é um corpo estranho na história da Teologia e que


deve ser dispensada a fim de manter o puro ensino das Escrituras.
36

III. A Teologia Bíblica não depende da Sistemática, mas a partir dela a


ULBRA – Educação a Distância

Teologia foi organizada e pôde ser percebida de forma mais objetiva,


evitando assim o subjetivismo.

IV. A Teologia Sistemática pode orientar o pensamento para raciocinar


de um modo correto sobre Deus e as verdades reveladas na Escritura
Sagrada.

a. As afirmações I e II estão corretas.

b. Todas as afirmações estão corretas.

c. As afirmações III e IV estão corretas.

d. Todas as afirmações são falsas.

e. As afirmações I e IV são verdadeiras.

Respostas
2.e; 3.c

Referência
ADAMS, David L. The Present God: A Framework for Biblical Theology. In: Concordia Journal,
v.22, n.3, julho de 1996.
3
A LEITURA DAS ESCRITURAS
SAGRADAS EM TEMPOS
PÓS-MODERNOS

Anselmo Ernesto Graff

Introdução
Para a grande maioria dos cristãos de todos os tempos, a Escritura Sagrada é central
para dirigir e normatizar a doutrina e a existência da Igreja Cristã. Ela é a fonte e
a norma do que se crê e do que se pratica. Nesse sentido, é importante observar
como é exercida a interpretação de seus livros. O que significa para essa era “pós-
moderna” ler e interpretar a Escritura Sagrada?
O objetivo deste capítulo é considerar de forma especial dois aspectos que estão
influindo na interpretação bíblica: primeiro, que não haveria compreensão
objetiva de textos escritos, incluindo escritos bíblicos. Em outras palavras, com
a relativização, textos podem adquirir caráter meramente subjetivo, inclusive as
Sagradas Escrituras. Segundo, que não haveria explicação compreensiva sobre
qualquer coisa em consideração, mais uma vez incluindo também textos escritos.
Isso significa dizer que qualquer elucidação de um texto poderia ser apenas parcial
e dependeria da perspectiva de cada um.

3.1 O contexto contemporâneo pós-moderno


Como ponto de partida, é preciso entender que nenhuma interpretação da Escritura
é realizada no vácuo, mas sempre feita no contexto do mundo contemporâneo.
Como pode ser caracterizado este contexto geral “pós-moderno”? Quais são
suas características? Quatro aspectos podem ser destacados e assim fazer um
contraponto ao período anterior, denominado de modernismo.
As principais características do “modernismo” – perspectiva dominante no
Ocidente desde o iluminismo: 1) crença na superioridade da razão; 2) crença
38

na possibilidade do acesso e avaliação objetivos às informações; 3) crença na


ULBRA – Educação a Distância

possibilidade de uma explicação abrangente de tudo que está sob investigação; e


4) crença na inevitabilidade do progresso.
No mundo contemporâneo, cada um desses enunciados é questionado. Assim, o
pós-modernismo, por sua vez, é caracterizado por: 1) suspeita crescente na razão em
sua capacidade de alcançar a compreensão real; 2) falta de crença na objetividade no
entendimento de qualquer coisa no mundo; 3) descrença na possibilidade de uma
explicação abrangente de qualquer coisa, de modo que toda explicação é apenas
parcial; e 4) perda de fé na noção de “progresso”, incluindo a perda da crença da
inevitabilidade do progresso. O pós-modernismo, na sua forma mais extremada,
questiona a noção de uma “realidade lá fora”, separada de qualquer observador/
intérprete, mesmo na esfera científica.

3.2 Impactos na interpretação bíblica


Que impacto esse contexto gera na interpretação das Sagradas Escrituras? Por
um lado, pode-se reagir negativamente. Não podem ser adotadas as supostas
“ideias” do pós-modernismo radical, especialmente a afirmação de que não há
verdade ou fato fora da apreensão subjetiva, e que tudo seria completamente
relativo. Como cristãos, confessamos: “Eu creio em Deus...”. E isso não é uma
confissão que está baseada numa projeção de Deus (não importando o quão
subjetiva nossa compreensão de Deus possa ser), mas de que acreditamos em
uma realidade externa a nós, a qual atuou externamente a nós a fim de influenciar
as nossas vidas.
O desenvolvimento contemporâneo pós-moderno pode influenciar positivamente
os exegetas do século XXI, especialmente no que diz respeito a duas das ideias
que ela oferece. A primeira, de que não haveria compreensão objetiva de qualquer coisa,
incluindo textos escritos. E a segunda, de que não haveria explicação compreensiva sobre
qualquer coisa em consideração, mais uma vez, incluindo também textos escritos.
A primeira ideia, referente à compreensão objetiva, sustenta, por um lado, que
todos os dados são compreendidos e descritos apenas no seu contexto. Por outro
lado, que toda consideração sobre esses dados implica um grande envolvimento
por parte do intérprete. Isso quer dizer que não há imediato acesso que não seja
afetado pelo observador. A segunda ideia (relativa à explicação compreensiva)
sustenta, por um lado, que toda explicação é parcial e em perspectiva, e que a
compreensão da realidade ao nosso redor, incluindo textos, somente pode ser
alcançada através da utilização de modelos, os quais dão uma visão de um (ou
mais) aspecto do objeto de interpretação; e, por outro lado, que a aparência dos
dados é afetada dependendo da perspectiva e/ou modelo utilizado. Isso não quer
dizer que nenhum tipo de entendimento em larga escala pode ser alcançado, mas
39

é dizer que o paradoxo está no coração de toda realidade, incluindo a realidade

ULBRA – Educação a Distância


dos textos.
Do ponto de vista hermenêutico, o que significam atualmente para os cristãos as
ideias pós-modernas, especialmente as duas que acabamos de detalhar? Como é
que elas influenciam na busca pela interpretação dos textos da Escritura?

3.2.1 A questão da objetividade


Todo discurso está situado ou contextualizado, assim como os dados da realidade
que ele pretende refletir. Isso significa que não há discurso que seja uma descrição
não vinculada ao contexto real e, portanto, imediatamente transferível para todos
os outros contextos. Isso se aplica ao discurso bíblico, assim como se aplica a todos
os outros.
No nível mais fundamental, isso é visto em linguística. Não há sentido “real” para
palavras como significantes, nem é a etimologia uma chave para o sentido de uma
palavra em determinada passagem, nem existe um significado sólido “geral” de
uma palavra. Palavras são utilizadas com os significados, que são contextualizados
temporal, social e culturalmente.
Em um nível mais elevado, isso é visto na argumentação literária, ou, talvez,
seja mais bem colocado, na aplicabilidade de uma descrição ou de uma linha
de raciocínio em um texto. Na era pré-moderna, antes do iluminismo, todos os
textos bíblicos eram vistos como descrições da realidade como tal, e, portanto,
imediatamente transferíveis para o mundo contemporâneo. A exegese Medieval
e da Reforma servem de exemplo para esta visão. Com o iluminismo, porém,
as coisas mudaram e se desenvolveu uma situação de separação da “palha e do
trigo”. Agora, parte da Bíblia era vista como transportadora de verdades eternas,
imutáveis e “objetivas”, enquanto outras partes eram vistas como determinadas
por um contexto e não deveriam ser aplicadas. Esta é a visão do modernismo. É
certamente a visão dos métodos histórico-críticos e do “Seminário de Jesus”19.
Nesse sentido, haveria uma separação distintiva dos textos bíblicos.
a. Textos normativos ou instrutivos – aqueles que fornecem princípios básicos,
fundamentais e que devem caracterizar o povo de Deus.

19
Seminário de Jesus é a designação de um grupo de estudiosos que, na década de 1970, começou a
se reunir para verificar e determinar aquelas palavras que são autenticamente de Jesus e outras que
não são. Nesse sentido, cores eram atribuídas aos dizeres de Jesus. Vermelho, Jesus realmente fez tal
afirmação; rosa, palavras próximas ao que Jesus disse; cinza, significa palavras que Jesus não disse,
mas são de alguma forma próximas ao ensino de Jesus; e a cor preta significa que Jesus não poderia
ter dito tais palavras de forma alguma.
40

b. Textos descritivos – aqueles que narram exemplos de práticas aceitáveis entre


ULBRA – Educação a Distância

o povo de Deus.
c. Textos problemáticos ou corretivos – aqueles que lidam com problemas
específicos entre os judeus ou na igreja primitiva.
A visão pós-moderna é de que tanto a posição pré-modernista como a modernista
estão incorretas, porque, na verdade, todos os textos estão ligados ao contexto,
fazendo com que nenhum deles seja uma descrição da realidade como tal e,
portanto, imediatamente aplicáveis a um cenário contemporâneo.
Isso pode ser visto, por um lado, nos escritos de muitos autores, que fazem
declarações abrangentes e de natureza genérica, como, por exemplo, liberdade,
unidade e igualitarismo, mas, por outro lado, em outras situações, colocam
restrições no que eles dizem. O apóstolo Paulo faz isso. “Desse modo, não existe
diferença entre judeus e não judeus, entre escravos e pessoas livres, entre homens e mulheres:
todos vocês são um só por estarem unidos com Cristo Jesus” (Gl 3.28); em 1 Timóteo
2.12 ele afirma: “Não permito que as mulheres ensinem ou tenham autoridade sobre os
homens; elas devem ficar em silêncio”. Assim, quando o apóstolo Paulo fala de nossa
unidade em Cristo, sem diferenças entre judeu e grego, escravo e livre, homem
e mulher, não poderia ele estar se dirigindo ao contexto dos Gálatas, no qual as
barreiras para as pessoas eram comuns e no qual o acesso e a dignidade ante Deus
eram limitados severamente por leis de todo tipo?
Martinho Lutero também faz isso. Todos sabem que Lutero exalta todos os ofícios
dos cristãos, afirmando que nenhum ofício é inferior a qualquer outro, e que
nenhuma pessoa é inferior a qualquer outra.
Considere suas palavras no escrito À Nobreza Cristã:

Daí se segue que leigos, sacerdotes, bispos e, como dizem, espirituais e seculares no fundo
verdadeiramente não têm qualquer diferença senão em função do cargo ou da ocupação, e
não pelo seu estamento; pois todos eles são do estamento espiritual, autênticos sacerdotes,
bispos e papas.20

Porém, Lutero pode parecer bem menos igualitário em outro texto:

Muito acima e antes de todos esses [ser pai, mãe, empregado, bom governante], porém, exaltou
e distinguiu de forma especial este serviço, tanto dos que ouvem sua palavra quanto dos que
a pregam. A este serviço escolheu dentre todos os demais na terra como serviço especial a ele,
distinto dos demais serviços que o povo presta.21

20
LUTERO, Martinho. À nobreza cristã da Nação Alemã, acerca da melhoria do estamento cristão. Tradução
de Walter O. Schlupp. In: Obras Selecionadas. V.2. São Leopoldo/Porto Alegre: Sinodal e Concórdia,
1989, p.283.
21
LUTERO, Martinho. Resumo da vida cristã – 1 Timóteo 1. Tradução de Walter O. Schlupp. Obras Selecio-
nadas. V.5. São Leopoldo/Porto Alegre: Sinodal e Concórdia, 1995, p.88.
41

Em outras palavras, com base nesses exemplos, poderia ser dito de autores como

ULBRA – Educação a Distância


o apóstolo Paulo e Lutero: a) que eles são inconsistentes; b) que eles estão se
acomodando a um pensamento retrógrado; c) que eles estão se ligando a formas
mais antigas; d) que estão dando conselhos que, neste caso, são situacionais e
ligados ao contexto. Ou poderia se dizer ainda que a passagem não foi escrita
pelo mesmo autor.
Mas outra explicação, um tanto diferente de todas as outras, mas que pode ser
a mais satisfatória, é que, depois de tudo, as extensas generalizações não são tão
extensas, nem tão abrangentes ou tão gerais, mas elas são contextuais, a saber,
faladas em determinadas situações da vida real. Assim, quando Martinho Lutero
exalta o sacerdócio de todos os crentes, seu valor, sua liberdade, sua autoridade e
seus direitos, será que ele não está exaltando esse sacerdócio diante da insistência
Católica Romana de que a igreja é realmente a hierarquia do clero? Ou de que os
leigos devem ser subservientes às autoridades eclesiásticas, mesmo em assuntos de
Estado? E este é provavelmente o caso, e, portanto, observamos que, num contexto
diferente, quando novas preocupações surgem, as abordagens são diferentes.
Como a interpretação de um texto é contextualizada, significa que não há uma
interpretação objetiva. Dito de outra forma, toda interpretação envolve um
intérprete em um determinado contexto. Esse intérprete, por sua vez, nunca deixa
de se envolver ou está desapegado do processo de interpretação. Este princípio é
válido por duas razões. Primeiro, pela forma como o processo de interpretação de
textos ocorre em si. Considere que os leitores/receptores de um texto dificilmente
são passivos na leitura de qualquer texto. Primeiro, eles ativam o que veem,
fazendo as palavras na página “dizerem” algo em vez de simplesmente aparecerem
numa folha de papel. Em segundo lugar, eles decifram as palavras que eles
identificam como transmissoras de significado, o que inclui conectar ou matizar
seus significados, lidar com ambiguidades e preencher aquilo que o texto não diz
com todas as letras. Terceiro, eles interpretam o texto em um segundo nível, que
envolve, se for uma narrativa, por exemplo, “leitura” do significado das ações,
situações e condições, que são retratadas, e isso com mínima orientação ou direção.
Finalmente, os intérpretes podem, se assim escolherem, interpretar ainda em outro
nível, detectando implicações do que é dito para a reconstrução da situação do
autor. Colocando de uma maneira positiva, os leitores/receptores de qualquer texto
têm um importante e ativo papel no processo de interpretação textual.
Tudo isso pode ser visto ainda de outra maneira. Os próprios leitores/receptores
têm seu conjunto de crenças, conhecimento, atitudes, ideias e experiências.
Quando eles interpretam, tais conjuntos são trazidos em conexão ao texto na
medida em que a interpretação ocorre e prossegue. Eles são, por assim dizer,
textos em si, “segundos textos” complementares, poderíamos dizer, e que são
sempre um fator em interpretação textual.
42

Portanto, a interpretação de qualquer texto envolve, na verdade, dois textos: o


ULBRA – Educação a Distância

texto dado ou texto-“alvo” e, como parte da matriz para compreensão do texto-


alvo, o assim chamado “segundo texto”, da pessoa que faz a interpretação.
E é “contra” as características do “segundo texto” que o alvo é, na verdade,
interpretado. Assim, a significação de que Jesus é divino, percebida nos milagres
de Jesus em Mateus (Mt 11.2-6), será o resultado de outra matriz entre essas
atividades retratadas e o próprio eu do intérprete como texto. Mas diferentes
crenças e diferentes experiências na vida podem levar a outra conclusão, por
exemplo, de que Jesus estava em aliança com Satanás (Mt 12.24).
O mesmo é verdadeiro para o significado percebido de que Jesus era totalmente
humano, derivado de várias passagens em Marcos (Mc 3.5). O segundo texto
pessoal de outro indivíduo poderia levar à conclusão de que, como totalmente
humano, Jesus Cristo não era totalmente divino. Nos termos aqui indicados,
o leitor em si como “segundo texto” está ativo em quase todas as fases de
interpretação textual.
Quem é, então, um intérprete válido de um texto? É aquele que está conforme as
expectativas do autor. É aquele que está conforme os pressupostos de determinado
texto. O que significa que uma leitura “objetiva”, não engajada de um texto, não
só é impossível, mas, quem sabe, não é recomendável. Expresso de maneira mais
positiva, a adequada interpretação de um texto não é ter suposição alguma; ao
contrário, é proceder com as suposições apropriadas. A questão não é que os
leitores não devem ter nenhum envolvimento; ao contrário, eles devem estar
envolvidos, mas de forma adequada.
O ponto é que leitores são ensinados a ler. Leitores lidam com a linguagem,
porque eles são instruídos. Os leitores, através de conversação e discussão,
desenvolvem crenças e atitudes, um texto pessoal ou “segundo” texto. Os
leitores, assim, interpretam em uma comunidade, com outros leitores, com outros
receptores, com aqueles que são seus contemporâneos e com aqueles que vieram
antes. O intérprete válido de um texto, então, é aquela pessoa que assume o
papel “exigido”, por assim dizer, por determinado texto, o qual se torna o leitor
requerido por aquele mesmo texto. E essa pessoa é formada para assumir esse
papel por uma comunidade que assumiu esse papel em si.
Mas podemos perguntar então: “Todas as interpretações da comunidade são
iguais?”. Provavelmente, não há acordo sobre a resposta, e uma resposta radical
pós-moderna seria “definitivamente sim!”. Mas é provável que a comunidade
que participou na produção, recepção e preservação de um determinado conjunto
de documentos ensine seus membros a ler esses documentos de uma forma
“congruente” com eles, isto é, de forma a encontrar nos textos o que razoavelmente
pode ser encontrado neles. Ou seja, os membros desta comunidade possuirão as
43

competências para interpretação reclamadas por seus documentos, pois eles irão

ULBRA – Educação a Distância


operar sob um conjunto de crenças, padrões e conhecimentos congruentes com as
crenças, os padrões e o conhecimento presumidos pelos próprios textos. Por esse
motivo, para ser capaz de assumir o papel de um leitor adequado de determinado
conjunto de documentos, a pessoa deve ser um membro da comunidade dos
referidos documentos e deve ser ensinada a lê-los por ela.
O que isso significa para uma leitura das Escrituras Sagradas? Significa, ao que
parece, o seguinte: no que diz respeito especificamente ao Novo Testamento,
esses livros foram produzidos, recebidos e preservados pela comunidade cristã.
Dessa forma, é provável que esta comunidade ensine seus membros a lerem
esses documentos de uma maneira “congruente” com os mesmos, a assumir,
como dissemos, o papel do leitor à medida que leem. Para assumir o papel do
“leitor adequado” dos documentos do Novo Testamento, consequentemente,
a pessoa deve estar dentro da comunidade cristã e deve ser ensinada a ler por
ela. Colocando nos termos desta argumentação: como a pessoa está na igreja e
adota o que é confessado, o “texto pessoal” da pessoa torna-se equivalente com
o “texto pessoal” daqueles que produziram, receberam e preservaram aqueles
textos do Novo Testamento.
Expressando de uma maneira mais tradicional, estar naquela comunidade cristã é
aderir, confessar e interpretar as Escrituras no contexto de seus credos e da regula
fidei22, que está na base dos credos. Tais credos e regula não são algo estranho para
os livros do Novo Testamento. Pelo contrário, eles são – e desde o início eram
vistos como – “do mesmo todo” com estes mesmos livros, na medida em que são
extraídos da mesma fonte apostólica. Por conseguinte, viver dentro dos credos
e regula dá à pessoa uma matriz ou uma orientação para a leitura dos livros do
Novo Testamento. Essa é uma orientação congruente com eles e permite que a
pessoa os interprete de acordo com a intenção deles. A interpretação fora desse
contexto traz consigo o risco de uma interpretação subjetiva. Uma interpretação
se torna coerente e relevante através de intérpretes fiéis e cujas interpretações
são limitadas por esta regra de fé.
É neste contexto que temos que ver as Confissões eclesiásticas. Os documentos
confessionais estão firmemente dentro da tradição dos credos e da regula fidei
da igreja primitiva, e eles têm uma função específica quanto à interpretação
da Escritura. Essa função é uma questão de debate, é claro, porque em um
sentido eles são significativamente diferentes dos credos e da regula fidei
da igreja primitiva. Eles são declaradamente tirados das Escrituras e não

22
Regra de fé. A dimensão exata desta expressão tem sido debatida, mas, em geral, significa o ensino
de toda a Escritura Sagrada, ou, em alguns casos, os Credos formulados nos primeiros séculos da
Igreja Cristã.
44

são, por assim dizer, “apostolicamente independentes”, como são as regulae


ULBRA – Educação a Distância

e os credos. Diversos modelos têm sido propostos para o relacionamento


das Confissões com as Escrituras, mas qualquer que seja a visão tomada, a
mesma posição é proposta: a interpretação fiel da Escritura não significa que
ela seja completamente “objetiva”. Pelo contrário, é com base no credo e é
confessional, e, portanto, devidamente “subjetiva”, com os nossos “segundos
textos” procurando estar em conformidade com os leitores das Escrituras dos
primeiros séculos.

3.2.2 A questão da explicação abrangente


O foco agora é abordar a segunda das ideias pós-modernistas, que é a descrença
relacionada à explicação abrangente. Algo da física moderna pode ser relevante
para a interpretação da Escritura, quando se observa o contraste geral da física
contemporânea de Einstein com a física clássica ou newtoniana. O mundo de
Newton em e por si mesmo assume uma perspectiva cotidiana, uma perspectiva
humana sobre o mundo comum ao nosso redor. Sua perspectiva é intuitiva e
seus dados são fenomenológicos. Seu mundo não parece estranho. O tempo, por
exemplo, é constante e as coisas neste mundo são como parecem.
Em contrapartida, o universo de Einstein, tanto a teoria da relatividade quanto
a teoria quântica, apresenta características e assume uma perspectiva que é
completamente oposta em todos os aspectos. Ele assume uma perspectiva de
cientistas e pesquisadores e seu foco não está sobre os objetos de nosso mundo e da
vida do dia a dia, mas sim sobre galáxias distantes. Sua perspectiva é contraintuitiva,
seus dados são matemáticos e seu mundo é estranho. Dito de outra forma, o
contraste geral das perspectivas postuladas entre a física clássica newtoniana, por
um lado, e a física contemporânea de Einstein, por outro lado, é um contraste de
estruturas de referência e escala. A estrutura de referência assumida por Newton
é a vida diária como a conhecemos, enquanto a estrutura de referência assumida
por Einstein é o universo “como ele realmente é”.
Agora, esse contraste também pode ser visto analogicamente nos textos da
Escritura Sagrada. Há um entendimento intuitivo, fenomenológico e cotidiano
de nós mesmos, de Deus, e de nosso relacionamento com Deus. Uma “teologia
newtoniana” por assim dizer. E há entendimento contraintuitivo, um entendimento
do universo como ele é, um entendimento não fenomenológico de nós mesmos,
de Deus e de nossa relação com ele, uma “teologia einsteiniana”.
A caracterização disso, de forma mais concreta e conforme quatro características,
ajudará na compreensão desta proposição. Deus e Suas ações, a situação da
humanidade, a salvação pessoal e a vida Cristã.
45

3.2.2.1 A Teologia Bíblica da perspectiva “newtoniana”

ULBRA – Educação a Distância


a. Deus e Suas ações: conforme a perspectiva “newtoniana”, Deus é revelado
como um companheiro, alguém que responde ao que os seres humanos fazem.
Ele está satisfeito com os sacrifícios das pessoas e responde a eles. “Quando o
Senhor aspirou o agradável cheiro [do sacrifício de Noé], disse o Senhor em
seu coração: Não tornarei a amaldiçoar a terra por causa do homem” (Gn 8.21).
Deus também mostra satisfação por todos aqueles que o temem e fazem o que
é bom e aceitável diante dele (At 10.35). Ele não está distante das pessoas (At
17.27). Nesta perspectiva, Deus pode mudar de opinião, e a ele inclusive pode
ser apelado para que mude (ver Abraão intercedendo por Sodoma e Gomorra,
em Gn 18.22-33).
b. O estado da Humanidade: nessa perspectiva, o estado humano é revelado como
mau, ainda que não desamparado, e, por conseguinte, não sem responsabilidade.
O homem é descrito como ignorante (At 17.30) e andando em seus próprios
caminhos (At 14.16). Em outras palavras, distante de Deus (At 17.27).
c. Salvação pessoal: na perspectiva “newtoniana”, o ser humano tem de certa
forma o dever de responder diante de sua situação e do chamado de Deus. Ele
pode buscá-lo e encontrá-lo (At 17.27). Deus chama ao arrependimento (At 17.30)
e a crer no Senhor Jesus Cristo para a salvação (At 16.31). Deus instrui a que todos
se voltem para Ele (At 14.15).
d. A vida cristã: de acordo com esta perspectiva, a vida cristã é uma vida de ação
pessoal responsável. Os cristãos têm a habilidade de responder positivamente
e de vencer o mal em suas vidas. Todas as exortações em Deuteronômio e nas
epístolas paulinas essencialmente se enquadram nessa classe. “Não reine,
portanto, o pecado em vosso corpo mortal, de maneira que obedeçais às suas
paixões” (Rm 6.12). A partir desta perspectiva, pecado na vida cristã está sob o
controle do cristão.23
Esta perspectiva é fenomenológica, ou seja, é a visão de dentro do nosso tempo
e de nossas vidas diárias. Em geral, é a maneira como as coisas parecem ser
a partir de nossa experiência e a maneira que a realidade nos atinge. Esta é a
teologia “newtoniana”.

23
Uma analogia em Platão pode ajudar nessa reflexão. É como se cada cristão fosse um bom cocheiro
e na sua charrete tivesse dois cavalos. Um bom e o outro mau. Ambos rivalizam entre si e querem
“puxar” o cocheiro para seu lado. Exortações na Escritura funcionariam no sentido de que o cocheiro
(o cristão) tenha a responsabilidade de decidir em que direção ele irá, a boa ou a má (RAABE, Paul
e VOELZ, James. Why Exhort a Good Tree? Anthropology and Paraenesis in Romans. In: Concordia
Journal, April 1996, p.160).
46

3.2.2.2 A Teologia Bíblica da perspectiva “einsteiniana”


ULBRA – Educação a Distância

a. Deus e Suas ações: de acordo com a perspectiva de Einstein, Deus é revelado


como criador, eleitor, salvador e doador da vida. Ele criou e cria a partir do nada
(Gn 1). Ele escolhe e diz para o seu povo “o SENHOR teu Deus te escolheu, para
que lhe fosses o seu povo próprio” (Dt 7.6). Ele é o autor da nova criação daqueles
que estão em Cristo (2 Co 5.17; Ef 2.1). Seu povo é santificado e justificado por ele
(1 Co 6.11; ver 1 Co 1.30). É Ele que dá vida (Cl 2.13).
b. O estado da Humanidade: conforme esta perspectiva, as pessoas são
caracterizadas como estando numa condição de desespero completo. Elas estão
perdidas (Lc 19.10) e totalmente nas trevas (Jo 1.5). Jesus é a Luz do mundo (Jo
8.12). Elas são pecaminosas e, enquanto ainda eram pecadores, Cristo morreu por
elas (Rm 5:8). Em resumo, elas estão mortas (Cl 2.13) e não podem se ajudar.
c. Salvação pessoal: na teologia “einsteiniana”, o ser humano não contribui em
absolutamente nada para obtê-la. Cristo é que morreu por cada um (Rm 5.8; 2 Co
5.21); é Deus que escolhe (Jo 15.16) e dá vida (Ef 2.5). É ele que salva (Lc 19.10) e
encontra aqueles que estão perdidos (Lc 15).
d. A vida cristã: a vida cristã vista desta perspectiva, também é um ato de Deus.
A principal passagem para esta conclusão é Romanos 7. O cristão é descrito como
pecador, pois continua fazendo aquilo que não deseja fazer, diz Paulo. Ele precisa
ser libertado e ser salvo por alguém outro. Nessa perspectiva, os cristãos não são
muito melhores que os incrédulos em alguns aspectos. Eles devem ainda clamar
com Davi, “Ó Deus, cria em mim um coração puro” (Sl 51.10). Ou ainda: “Tira
de mim o meu pecado, e ficarei limpo” (Sl 51.7). Por esta perspectiva, pecado é
como câncer que destrói os cristãos e que por sua vez são indefesos contra ele.
Eles certamente não têm que ser encorajados a odiá-lo, pois, como Paulo diz em
sua aflição: “O mal que não quero, esse faço” (Rm 7.19b). “Desventurado homem
que sou! Quem me livrará do corpo desta morte?” (Rm 7.24). Colocando isso de
forma positiva, Paulo declara que Deus é responsável por tudo de bom que há
nele. Ele reconhece e confessa que não é mais ele que vive, mas “Cristo vive em
mim” (Gl 2.20).
Esta segunda perspectiva é aquela eterna e é vista da perspectiva de Deus. É a
perspectiva para reflexão madura da própria pessoa e da situação da pessoa. Esta
é a visão de “Einstein”, a teologia “einsteiniana”, por assim dizer, é a perspectiva
do que “realmente está acontecendo”.

3.2.3 A relação entre as duas perspectivas


Como estão relacionadas estas duas perspectivas? Da mesma forma que a física
newtoniana e a de Einstein estão relacionadas: ambas são verdadeiras, mas ambas
47

são verdadeiras em escalas diferentes, ou em diferentes estruturas de referência.

ULBRA – Educação a Distância


A teologia “newtoniana” é verdadeira de um ponto de vista humano normal. A
teologia “einsteiniana” é verdadeira do ponto de vista eterno de Deus. Cada uma
é necessária para compreender e atuar no mundo em que vivemos.
Essa formulação ajuda a apreciar cada visão. “Einstein” tem seus pontos fracos,
pode parecer irrelevante anunciar que em última análise Deus faz tudo. “Newton” é
mais prático para as mentes da maioria. Mas quando a real explicação é necessária,
“Einstein” simplesmente não pode passar batido. O verdadeiro desafio está em
não deixar que as pessoas acreditem que as afirmações “newtonianas” são análises
completas da realidade, mas fazê-las ver o que elas realmente são.
Esse tipo de abordagem também ajuda a interpretarmos com mais serenidade o
texto sagrado, não encontrando dificuldades indevidas e problemas, como alguns
fazem, em praticamente todas as partes. Poderia o salmista dizer no mesmo Salmo:
“Pois não te comprazes em sacrifícios; do contrário, eu tos daria; e não te agradas
de holocaustos” (Sl 51.16). E um pouco mais adiante; “Então, te agradarás dos
sacrifícios de justiça, dos holocaustos e das ofertas queimadas; e sobre o teu altar
se oferecerão novilhos” (Sl 51.19)? A duas afirmações estão separadas apenas por
dois versos e parecem se contradizer. Poderia o apóstolo Paulo dizer: “Porque
bem sabemos que a lei é espiritual; eu, todavia, sou carnal, vendido à escravidão
do pecado” (Rm 7.14), e antes ter dito: “Agora, porém, libertados do pecado,
transformados em servos de Deus, tendes o vosso fruto para a santificação e, por
fim, a vida eterna” (Rm 6.22)?
Diversas explicações têm sido dadas para este fenômeno, ou aparente contradição:
a) diferentes fontes teriam dado origem a diferentes textos (mesmo dentro de
um mesmo livro bíblico); b) são teologias conflitantes; c) é preciso harmonizar
os textos, entendendo tais passagens como se estivessem falando sobre
diferentes tópicos ou questões; d) diferentes perspectivas (abordagens) estão
sendo expressas a respeito do mesmo assunto. É com esta última explicação
que o presente conteúdo argumenta, sugerindo uma nova forma de entender
globalmente o que a Escritura diz.
Com efeito, nós vemos a proximidade destas duas perspectivas em Filipenses
2.12-13: “Assim, pois, amados meus, como sempre obedecestes, não só na minha
presença, porém, muito mais agora, na minha ausência, desenvolvei a vossa salvação
com temor e tremor; [Newton]; porque Deus é quem efetua em vós tanto o querer como
o realizar, segundo a sua boa vontade” [Einstein]. As Escrituras utilizam ambos os
modelos e perspectivas (conferir ainda e comparar os textos de Jo 6.44 com At 10.35).
Em resumo, então, é preciso perceber que as Escrituras Sagradas podem ser mais
complexas do que se pensa, o que significa que é preciso reverência e humildade
diante delas. Esta é a postura adequada, especialmente em nossos dias, em que um
48

trabalho duro está diante de nós na medida em que nos engajamos na interpretação
ULBRA – Educação a Distância

da Palavra de Deus.

Atividades de autoestudo
1. Este capítulo procurou fazer uma avaliação do contexto contemporâneo
da interpretação bíblica e apresenta considerações sobre dois aspectos da
hermenêutica pós-moderna. a) que não há compreensão objetiva (depende do
contexto) de qualquer coisa, incluindo textos escritos; b) não há explicação
abrangente (depende da perspectiva de cada um) sobre qualquer coisa em
consideração, mais uma vez, incluindo também textos escritos. Faça uma
avaliação desses dois aspectos embasando suas considerações.

2. É difícil afirmar que há uma interpretação objetiva de um determinado texto.


Isso porque toda interpretação envolve um intérprete com suas experiências
e que o torna de certa forma ativo na interpretação. Assim, leitores/receptores
de um texto não são passivos na leitura de um texto. Considerando que não
há esse aspecto objetivo, qual é a recomendação defendida neste capítulo?
a. Seguir o que é pragmático e o que é relevante às pessoas.

b. Além de princípios de interpretação saudáveis, também fazer uso dos


Credos para servirem de orientação para a leitura da Bíblia é uma
recomendação importante.

c. Respeitar o aspecto subjetivo de cada intérprete e do ouvinte.

d. Descartar aqueles textos que podem conter interpretações ambíguas.

e. Nenhuma das alternativas apresenta uma recomendação razoável.

3. O autor do texto usado para elaboração deste capítulo usou o contraste geral
da física contemporânea de Einstein com a física clássica de Newton como
auxílio na interpretação da Escritura. Analise as afirmações abaixo e depois
marque a opção correta:
I. A teologia “newtoniana” é aquela em que fatos e verdades são vistos
do ponto de vista humano.

II. A teologia “einsteiniana” é aquela em que fatos e verdades são vistos


do ponto de vista de Deus.
49

III. Na teologia “einsteiniana”, do ponto de vista de Deus, o ser humano

ULBRA – Educação a Distância


não contribui em absolutamente nada para ser salvo. Já na teologia
“newtoniana” o ser humano é que decide e aceita a salvação.

IV. Conforme a perspectiva “newtoniana”, Deus é revelado como um


companheiro, alguém que responde ao que os seres humanos fazem.

a. As afirmações I e III estão corretas.

b. As afirmações II e IV estão corretas.

c. a. As afirmações I, II e III estão corretas.

d. Todas as alternativas são verdadeiras.

e. Todas as alternativas são falsas.

Respostas
2.b; 3.d

Referência
VOELZ, James W. Reading Scripture as Lutherans in the Post-Modern Era. In:
Lutheran Quarterly, v.XIV, 2000.
4
A DOUTRINA DA TRINDADE
NA ESCRITURA SAGRADA

Anselmo Ernesto Graff

Introdução
Doutrinas da Igreja não podem ser provadas por argumentos racionais ou através
de experiências pessoais. Nesse sentido, elas são muitas vezes denominadas de
“mistérios”. Dentre esses “mistérios” quem sabe esteja a doutrina da Trindade24,
talvez o mais profundo mistério. Porém, isso não quer dizer que ela seja um enigma
totalmente inefável ou indefinível.
O tema deste capítulo é o exame da doutrina da Trindade à luz da Escritura Sagrada,
sem descartar, todavia, a observação de que ser bíblico não implica necessariamente
e tão somente a citação de textos bíblicos, mas escrutinar passagens bíblicas e o
próprio contexto bíblico com princípios hermenêuticos coerentes e olhar teológico
mais amplo.
Onde está o embasamento bíblico para a doutrina da Trindade? Podem as
Escrituras Sagradas fornecer subsídios para esse ensino da igreja cristã? O objetivo
deste capítulo é promover reflexões bíblico-teológicas que fundamentem esse
ensinamento e assim o aluno obtenha elementos que possibilitem a clareza em sua
reflexão e proclamação desta verdade.

4.1 O contexto contemporâneo


Para muitos teólogos ocidentais a doutrina da Trindade claramente não está
na Bíblia. O período pós-moderno tem reforçado o princípio de Descartes das

24
Ensino de que Deus é uma essência divina em três pessoas de igual poder e eternas: Pai, Filho e Espírito
Santo. Essa doutrina foi formulada e decretada a partir do Concílio Ecumênico de Niceia, realizado
no ano de 325.
52

“ideias claras e distintas” em todos os setores da vida25. Em relação à doutrina da


ULBRA – Educação a Distância

Trindade, assim como em outras doutrinas, existe uma exigência de proposições


bem formuladas, como foi, a propósito, o Credo Niceno26.
O aspecto problemático neste ensino é de que a fórmula trinitária ocorre, a rigor
e efetivamente, uma vez na Bíblia Sagrada. “Ide, portanto, fazei discípulos de todas as
nações, batizando-os em nome do Pai, e do Filho, e do Espírito Santo” (Mt 28.29). Essa
é a única referência clara e direta. Ainda poderia se perguntar por que os demais
escritores do Novo Testamento, de forma especial as epístolas paulinas, não incluem
com tal clareza a fórmula trinitária? É verdade, outras partes do Novo Testamento
contemplam a trindade, mas não de forma tão precisa e tão bem delineada. Textos
como de 2 Coríntios 13.13: “A graça do Senhor Jesus Cristo, e o amor de Deus, e a
comunhão do Espírito Santo sejam com todos vós”. Outras referências bíblicas não
exibem a fórmula Pai-Filho-Espírito Santo, mas usam de uma terminologia trinitária
que sustenta essa doutrina como sendo genuinamente bíblica27.
Não obstante a recomendação de que alguns ensinos sistematizados da Igreja
devam ser apenas contemplados, de forma especial a doutrina da Trindade, há
algumas portas da Sagrada Escritura que podem ser abertas a fim de espiar um
pouco sobre esse tema na perspectiva bíblica. A doutrina da Trindade está com
certeza na Palavra de Deus, mas é preciso abandonar a noção de que ela vem
desenhada na fórmula bem definida que a conhecemos hoje.

4.2 Presença do Pai, do Filho e do Espírito no Antigo Testamento


Deus se revela aos homens em grande parte através do gênero literário da narrativa.
Deus conta a sua história com as pessoas desde a criação até o cumprimento final
da história. É nesse contexto narrativo que Deus exibe seus atributos e de forma
especial sua essência trinitária. Ainda que a fórmula das três pessoas nunca apareça
no Antigo Testamento, elas certamente aparecem em ação na história de Deus
com os homens.
Deus como Pai quem sabe seja o menos controverso no ensino da doutrina da
Trindade. O Pai é o Deus de Israel, e isso fica claro quando Jesus chama a Deus de
“Pai”28. Na verdade, todo o Antigo Testamento conta a história da relação e das

25
JENSON, Robert. The Trinity in the Bible. In: Concordia Theological Quarterly. V.68: 3/4, July/October
2004, p.195.
26
O Credo Niceno surgiu da necessidade de salvaguardar o ensino apostólico concernente à divindade
de Cristo contra a heresia ariana, mas também possui em seu teor uma clara confissão da doutrina
da Trindade.
27
Dentre esses textos estão Efésios 4.4-6, João 14.23-26, Lucas 24.49, Mateus 10.1, 20. Ainda poderia ser
mencionado o evento do Batismo de Jesus, em que Filho, Pai e Espírito Santo estão presentes (Marcos
1.9-11).
28
Ocasiões em que Jesus se refere a Deus como sendo “Pai”: Mateus 5.45; 6.4, 6, 9, 15; 7.11; 10.32; 18.10;
24.36.
53

ações do Deus de Israel como sendo Pai29. Certamente, é a identificação da presença

ULBRA – Educação a Distância


do Filho e do Espírito no Antigo Testamento que pode ser mais problemática.

4.3 A presença do Filho no Antigo Testamento30


Lutero escreveu que toda a Escritura é “puro Cristo”. Esse é o princípio hermenêutico
por excelência. O próprio Cristo na verdade o ensina (Lc 24.27, 44-45).
Porém, quando se coloca esse fundamento em prática na exegese do Antigo
Testamento, algumas questões são levantadas. Cristo é muitas vezes visto no
Antigo Testamento mais nas profecias individuais31 e na tipologia32 do que em
termos de presença real. O entendimento é mais no sentido profético do que de
presença. Além disso, outras vezes são citados textos como de Gênesis 1.26 e
Isaías 6.8, como textos-prova da presença trinitária no Antigo Testamento, devido
à formula usada no plural: “Façamos o homem à nossa imagem”; “A quem enviarei e
quem há de ir por nós?”.
Também é preciso mencionar que há oposições à exegese Cristológica ou
Cristocêntrica no Antigo Testamento. O criticismo histórico não aprova esse
tipo de abordagem e outras correntes de interpretação contemporânea pregam a
cautela.

“Intérpretes devem exercitar extrema cautela com esse tipo de abordagem, para evitar uma
excessiva cristianização do Antigo Testamento. Passagens paralelas do Novo Testamento
não deveriam ser usadas para fazer as passagens do Antigo Testamento ensinarem verdades
do Novo Testamento. A igreja primitiva tinha essa tendência – que continuou com os
protestantes depois da Reforma – de ler conceitos teológicos do Novo Testamento dentro do
Antigo Testamento. Devemos evitar esse erro; nossa tarefa principal é sempre entender cada
texto dentro de suas próprias fronteiras, assim como os escritores e leitores o entenderam
originalmente”33.

Pode-se dizer que sempre há um elemento verdadeiro em novas proposições


teológicas. É óbvio que o intérprete da Bíblia deveria começar a interpretação

29
Dentre os textos do Antigo Testamento em que Deus é intitulado de ou como “pai” estão: 1 Crônicas
17.13; Salmo 103.13; Isaías 64.8.
30
GIESCHEN, Charles A. The Real Presence of the Son Before Christ: Revisiting an Old Approach to
Old Testament Christology. In: Concordia Theological Quarterly, v.68:2, April 2004, p.105-126.
31
Profecias como de Isaías 7.14; 9.6; 11.1-2; 53; ou de Jeremias 23.5; de Miqueias 5.2, ou Zacarias 9.9.
32
Um dos princípios utilizados para fundamentar a unidade dos dois testamentos é conhecido como
“tipológico”. Tipo e antítipo. “Anti”, não no sentido de “contra”, mas de correspondência, uma figura
que representa a outra. Uma das situações em que podemos observar esse caráter tipológico e que
fundamenta a unidade dos dois testamentos em relação a Cristo, está no cumprimento da missão de
servos de Deus no Antigo Testamento, em Cristo no Novo Testamento. Adão, Moisés, Josué, Juízes
– Jesus Cristo (Rm 5.14, cf. também Hebreus).
33
GIESCHEN, op. cit., p.107.
54

dos textos do Antigo Testamento dentro do seu contexto histórico e não ir logo
ULBRA – Educação a Distância

aos textos paralelos no Novo Testamento. Mas também é preciso notar que essa
questão é mais teológica do que simplesmente de uma mensagem cristocêntrica.
Sem diminuir a importância e o valor da profecia, além do princípio tipológico das
Escrituras, ênfase maior poderia ser concedida à presença real do Filho na exegese
do Antigo Testamento, o Deus que é ouvido e visto no Filho, no Antigo Testamento
depois da queda no jardim do Éden.
O ponto de partida é o texto de João 1.18: “Ninguém jamais viu a Deus; o Deus
unigênito, que está no seio do Pai, é quem o revelou”34. Como alguém pode ter escrito
isto, depois de ter lido o Antigo Testamento? Deus é visto repetidamente, mas o
“unigênito de Deus” foi quem o revelou. Essa abordagem exegética da presença
do Filho no Antigo Testamento não é nova.

“Por esta razão, nem Abraão, Isaque ou Jacó, nem homem algum viu o Pai e inefável Senhor
de absolutamente todas as coisas e do próprio Cristo, mas [viu] somente a ele, de acordo
com sua [do Pai] vontade, é tanto Deus, seu Filho e Anjo, porque ele ministra para o seu
propósito. A quem ele também quis fazer nascer da Virgem e quem uma vez se tornou fogo
para conversar com Moisés na sarça”35.

A cristologia do Antigo Testamento, segundo Justino, consistia não somente em


focalizar nas promessas, mas na presença real do Filho. Esta também é a teologia
de escritores do Novo Testamento. Essa exegese cristocêntrica está em contraste
muitas vezes à exegese teocêntrica e que caracteriza a exegese moderna do Antigo
Testamento.

4.4 A interpretação cristocêntrica do Antigo Testamento


na história da interpretação
Aqui é preciso lembrar que o Filho de Deus não é o “Cristo” antes da sua
encarnação. Por isso, talvez pudesse ser anacrônico falar em cristologia. O termo
“filhologia”, embora possa ser um tema de debate bem amplo, é apropriado, na
medida em que se toma o Novo Testamento como guia para entender a doutrina
de Deus e à luz da revelação do Pai, do Filho e do Espírito Santo. Assim, o Antigo
Testamento não ensina uma teologia genérica (no sentido de geral), mas teologia
baseada na revelação do Filho.
Muito poderia ser explorado sobre esse item. Mas há pelo menos duas coisas
que devem ser colocadas. Primeira, sempre houve uma tensão em ler o Antigo
Testamento tendo Cristo como centro ou fazer uma leitura teocêntrica. Isso pode

34
Conferir também 1 Timóteo 1.17; 6.15-16 e 1 João 4.12.
35
JUSTINO apud GIESCHEN, op. cit., p.111.
55

ser visto nas escolas de Alexandria e Antioquia ou na exegese de Lutero (mais

ULBRA – Educação a Distância


cristológica) e de Calvino (mais teocêntrica)36. Mais recentemente, o criticismo
histórico atribui à interpretação cristológica do Antigo Testamento o rótulo de
“exegese artificial”37.
O que é preciso refletir é o fato de que o significado de textos do Antigo Testamento
só encontra compreensão plena depois do nascimento de Cristo.

4.5 A presença do Filho: teofanias no Antigo Testamento


As teofanias do Antigo Testamento depois da queda são manifestações do Filho.
O fundamento teológico dessa proposição é a tensão da teofania e o fato de que
ninguém pode ver a Yahweh e viver. “E acrescentou: Não me poderás ver a face,
porquanto homem nenhum verá a minha face e viverá” (Êx 33.20). Quem é este Senhor
que não pode ser visto, mas foi visto38 e os que o veem continuaram vivos? Na
medida em que o Novo Testamento funciona como um guia hermenêutico para
ler o Antigo Testamento, ele pode ajudar a esclarecer esse “enigma”.
Para começar, essa base de interpretação é encontrada nos ensinos do próprio
Filho de Deus, Jesus Cristo (Jo 5.39, 45-47; Lc 24.27). Paulo declara que o Filho é a
“imagem do Deus invisível” (Cl 1.15). Essa imagem não se aplica somente ao seu
estado de encarnação, mas também na pré-encarnação. Ele foi a imagem de Deus
visto pelo pecador desde a queda no Éden (Jo 14.9).
Esse conceito de presença real do Filho no Antigo Testamento de fato não é nova.
Já foi citado Justino e Lutero também pode ser citado sobre o assunto.

Assim, com toda força e irrefutavelmente, pode-se afirmar que o Deus que tirou o povo de
Israel do Egito e o conduziu através do mar Vermelho, que o guiou pelo deserto através das
colunas de fogo e da nuvem, que os nutriu com o pão celestial e que realizou todos os milagres
descritos nos livros de Moisés, que também os levou para dentro da terra de Canaã e então lhes
deu reis, sacerdotes e todas as coisas, é por esta razão Deus e ninguém outro senão o próprio
Jesus de Nazaré, o filho da Virgem Maria, o qual nós chamamos Cristo, nosso Deus e Senhor
[...] e, mais, foi ele que deu a Moisés os Dez Mandamentos no Monte Sinai dizendo, “Eu
sou o Senhor que te tirei da terra do Egito, não terás outros deuses”. Sim, Jesus de Nazaré,
que morreu por nós na cruz, é o Deus que diz no Primeiro Mandamento, “Eu sou o Senhor,
eu sou teu Deus”39.

36
GIESCHEN, p.113.
37
Idem, p.114.
38
Jacó viu a Deus e por isso deu àquele lugar o nome de Peniel (Gn 33.20). Outro exemplo pode ser o
de Gideão em Juízes 6.22.
39
LUTERO apud GIESCHEN, op. cit., p.113.
56

4.5.1 O anjo de Yahweh


ULBRA – Educação a Distância

A primeira categoria das teofanias em que deve ser considerada a presença do Filho
e a mais popular entre os exegetas conservadores é a do Anjo do Senhor. O Anjo
do Senhor é mais proeminente nas teofanias em Gênesis. A distinção, e ao mesmo
tempo a inseparabilidade entre Yahweh e este “anjo”, é apresentada de maneira
bem clara em Êxodo 23.20-22. “Eis que eu envio um Anjo adiante de ti, para que te
guarde pelo caminho e te leve ao lugar que tenho preparado. Guarda-te diante dele, e ouve
a sua voz, e não te rebeles contra ele, porque não perdoará a vossa transgressão; pois nele
está o meu nome. Mas, se diligentemente lhe ouvires a voz e fizeres tudo o que eu disser,
então, serei inimigo dos teus inimigos e adversário dos teus adversários”. O Anjo possui
o nome de Yahweh e seu nome não pode ser separado da realidade de Yahweh.
O Anjo tem o poder para absolver e reter pecados, além da habilidade para falar
como Yahweh.
O testemunho mais significativo no Novo Testamento em relação às teofanias e
sua conexão com o anjo como sendo Cristo está em 1 Coríntios 10.1-10. É possível
que Paulo esteja advertindo os Coríntios quanto ao julgamento de Cristo por causa
da sua desobediência, olhando para trás e a punição sofrida por Israel por esse
mesmo motivo. Assim, foi o Filho que enviou as serpentes e ordenou a Moisés o
levantamento da serpente de bronze, a fim de que fossem curados os que estavam
morrendo. Outro escritor que pode seguir essa linha da presença do Filho no Antigo
Testamento é Judas. “Quero, pois, lembrar-vos, embora já estejais cientes de tudo uma
vez por todas, que o Senhor, tendo libertado um povo, tirando-o da terra do Egito, destruiu,
depois, os que não creram” (v.5). O detalhe está numa variante textual, com sólido
apoio de manuscritos, que traz “nosso Senhor Jesus Cristo”40.
Outras alusões ao anjo são significativas. Quando o anjo do Senhor se identifica e
aparece a Moisés como “anjo do Senhor” (Êx 3.2), na continuidade do diálogo é
possível perceber que é o próprio Deus que está falando com ele. “Vendo o SENHOR
que ele se voltava para ver, Deus, do meio da sarça, o chamou e disse: Moisés!
Moisés! Ele respondeu: Eis-me aqui! Deus continuou: Não te chegues para cá; tira
as sandálias dos pés, porque o lugar em que estás é terra santa” (Êx 3.4-5)41.
Todavia, o mais marcante evento das histórias do anjo do Senhor está no capítulo
22 de Gênesis, no episódio de Abraão levando seu filho Isaque para o sacrifício.
Abraão estava por oferecer seu filho em sacrifício, quando ouviu a voz do Anjo

40
OMANSON, Roger L. Variantes Textuais do Novo Testamento – Análise e Avaliação do Aparato Crítico
de “O Novo Testamento Grego”. Tradução e adaptação ao português por Vilson Scholz. Sociedade
Bíblica do Brasil, 2010, p.541.
41
É interessante também o exemplo de Hagar, quando fugira para o deserto. Aqui o anjo do Senhor
promete multiplicar a descendência dela (Gn 16.1-14). Também é bastante significativo o episódio do
sacrifício de Isaque (Gn 22.1-19), especialmente o versículo 12: “Então, lhe disse: Não estendas a mão
sobre o rapaz e nada lhe faças; pois agora sei que temes a Deus, porquanto não me negaste o filho, o
teu único filho”.
57

do SENHOR clamando desde o céu: “Abraão, Abraão”! Depois da resposta de

ULBRA – Educação a Distância


Abraão essa voz se identifica com pronomes que indicam que é palavra do próprio
Deus. “Não estendas a mão sobre o rapaz e nada lhe faças; pois agora sei que temes a Deus,
porquanto não me negaste o filho, o teu único filho” (Gn 22.12). Agora, comparando esse
evento ao que o evangelista João relata em seu primeiro capítulo, essa “palavra”
que se ouviu do céu se fez carne e habitou entre nós. “E o Verbo se fez carne e
habitou entre nós, cheio de graça e de verdade, e vimos a sua glória, glória como
do unigênito do Pai” (Jo 1.14)42.

4.5.2 O nome ou o nome de Yahweh


Ainda que reconhecidas de maneira menos frequente, as teofanias no Antigo
Testamento que deveriam ser entendidas como manifestações do Filho também são
aquelas identificadas como “o Nome” ou o “Nome de Yahweh”. Os textos estão
principalmente em Deuteronômio, livros históricos e Jeremias. Estes falam sobre
a presença de Yahweh como o Nome habitando no meio de Israel e mais tarde no
templo. “Então, haverá um lugar que escolherá o SENHOR, vosso Deus, para ali fazer
habitar o seu nome” (Dt 12.11; Cf. também 1 Rs 5.5).
A designação do “Nome de Yahweh” é mais do que palavras ou sons, mas é a
designação para a forma pessoal e tangível de Yahweh. O testemunho do Novo
Testamento também aponta para essa direção. Jesus foi identificado como aquele
que possui o Divino Nome. “Mas, a todos quantos o receberam, deu-lhes o poder
de serem feitos filhos de Deus, a saber, aos que creem no seu nome” (Jo 1.12; Cf.
ainda Jo 5.43; 17.11b). Jesus mesmo se identifica como sendo o Nome Divino (Jo
12.23,28; 3 Jo 7) e textos de epístolas confirmam isso (Hb 1.4; Fp 2.9).

4.5.3 Glória de Yahweh


O livro de Êxodo mostra a terceira maneira pela qual as teofanias são designadas: a
nuvem e o fogo (Êx 24.15-18, Êx 3), enquanto o profeta Ezequiel figura semelhante
a um homem. “Como o aspecto do arco que aparece na nuvem em dia de chuva, assim era
o resplendor em redor. Esta era a aparência da glória do SENHOR” (Ez 1.28). Aqui está
formada a teologia do Novo Testamento que em Cristo se contempla a glória de
Deus (Jo 1.14; 17.5; 12.39-41 – Cf. também Is 6.10).
O apóstolo Paulo tem interpretação similar da teofania do Sinai, quando ele
compara o que Moisés viu com o fato de que Cristo agora contempla a mesma
glória de Deus (2 Co 4.3).

42
JENSON, op. cit., p.201.
58

4.5.4 Palavra de Yahweh


ULBRA – Educação a Distância

O Anjo do Senhor possui o Nome Divino (Êx 23.21). Essa “Palavra” única
que ele possui, o tetragrama, é provavelmente a base para o fato de que em
algumas das teofanias a imagem divina é identificada como a “Palavra de
Yahweh” (Jr 1.1-9).
Muitas vezes isso é tratado mais como uma abstração do que um título para a
imagem visível de Yahweh. Mas esta designação é usada no Novo Testamento
por Cristo no início do evangelho de João (Jo 1.1) e pelos escritores de Hebreus e
Apocalipse (Hb 4.12-13; Ap 19.12-13). Aqui cabe dizer que, apesar da popularidade
de “logos” no mundo greco-romano do primeiro século, o princípio da teofania
do Antigo Testamento é que fundamenta o seu uso na cristologia do Novo
Testamento.

4.5.5 O Filho como Yahweh no Antigo Testamento


Lutero entendeu que a presença real do Filho no Antigo Testamento significa que
este falou sobre si as profecias no Antigo Testamento. Por exemplo, Lutero estava
convencido de que é o Filho que proclama o protoevangelho em Gênesis 3.15. O
Reformador, inclusive, aconselha ao intérprete da Bíblia, o que prestar atenção
quando está diante de um texto em que Deus fala.

“Mas onde a Pessoa não se identifica claramente ao falar e aparentemente só uma Pessoa
está envolvida, você pode seguir a regra dada acima e estar certo que você não vai escolher o
caminho errado em interpretar o nome YAHWEH como se referindo ao nosso Senhor Jesus
Cristo, o Filho de Deus”.

E isso não é nenhuma invenção de Lutero. É teologia baseada no Novo


Testamento. Em Isaías 45.23b-24a, Yahweh é que está falando, e, em Filipenses
2.9-11, o apóstolo Paulo aplica aquele texto a Cristo. “O nome de Jesus” pode ser
entendido como o “nome que Jesus possui”, pois o clímax do hino é a confissão
“Jesus Cristo é o Senhor” (Fp 2.11). A estrutura lógica e paralela de Filipenses
2.10-11a é clara:
Todo joelho se dobrará perante o nome de Jesus, porque o nome de Jesus é YAHWEH.
Toda língua confessará que Jesus é Senhor, porque Jesus é verdadeiramente YAHWEH.
Portanto, esse texto demonstra que Paulo identifica Yahweh falando em Isaías
45 com o Filho exaltado em Filipenses. Outro exemplo pode ser aquele em que
o apóstolo Paulo aplica Jeremias 9.24 a Cristo em 1 Coríntios 1.31 e 2 Coríntios
10.17.
59

4.6 A presença do Espírito no Antigo Testamento

ULBRA – Educação a Distância


O que é verdade em relação ao Filho e sua presença do Antigo Testamento também
é verdade em relação ao Espírito: sua presença não está delineada numa fórmula
trinitária exata, mas em texto narrativos que salientam sua ação na vida do povo
de Deus, como a terceira pessoa da trindade. No livro de Lorenz Wunderlich, The
Half-Known God43, o autor esboça a ação da terceira pessoa da Trindade no Antigo
Testamento e ajuda, através dessas referências, a identificar biblicamente a sua
presença e missão.
Atuando como pessoa, ele impõe juízo sobre o mal e sustenta o que é bom, como
foi nos dias de Noé (Gn 6.3). Já no tempo do profeta Isaías, é o Espírito que protege
o seu povo contra as investidas de seus inimigos (Is 59.19). Neemias e Isaías
exaltam ao Senhor, porque foi o Espírito que instruiu e guiou o povo durante sua
caminhada no deserto (Ne 9.20; Is 63.14). A presença e o poder do Espírito são a
garantia de Deus para Zorobabel e seu encargo de liderar a reconstrução do templo
de Jerusalém (Zc 4.6).
Também no Antigo Testamento é possível perceber que o Espírito Santo é
identificado com missões das quais pode ser inferida a conclusão de que ele é Deus,
assim como é o Pai e o Filho. É o Espírito que capacita os servos de Deus a falar.
“O Espírito do SENHOR fala por meu intermédio, e a sua palavra está na minha língua.
Disse o Deus de Israel, a Rocha de Israel a mim me falou: Aquele que domina com justiça
sobre os homens, que domina no temor de Deus” (2 Sm 23.2-3). Deus Espírito Santo tem
também a missão de ser o revelador das profecias a serem pregadas (Nm 11.25,29;
2 Sm 23.2; Sl 110.1; Ez 2.2; Mq 3.8-12).
A obra do Espírito Santo no Antigo Testamento é vista de forma particular e
interessante no livro de Juízes. São sete alusões que relacionam a ação dos homens
de Deus com Espírito44. Vale a referência que homens como Otniel, Gideão, Jefté
e Sansão foram escolhidos por Deus como libertadores de seu povo da opressão
e, em cada caso, a competência para a missão que lhes foi conferida é concedida
pelo Espírito. “Veio sobre ele o Espírito do SENHOR e ele julgou a Israel” (Jz 3.10; Cf.
ainda 6.34; 11.29; 13.25; 14.6,19; 15.14).

43
WUNDERLICH, Lorenz. The Half-Known God. St. Louis: Concordia Publishing House, 1963. A tradução
do título poderia ser “O Deus conhecido pela metade”, ou, como geralmente é, “O Deus pouco
conhecido”.
44
Wunderlich ainda faz menção ao profeta Ezequiel, que frequentemente menciona a ação do Espírito
em transportá-lo, seja corporalmente, seja em uma visão, aos locais de sua missão (Ez 8.3; 11.5). É o
Espírito da sabedoria que é especialmente mencionado em Êxodo (Êx 28.3, 31.3). A ênfase nos livros
de Samuel e de Crônicas está sobre o Espírito como o Doador da inspiração profética (1 Sm 11.6;
16.13; 19.20; 2 Sm 23.2; 1 Cr 12.18; 2 Cr 24.20). A ênfase em Isaías está em seu vínculo com o ministério
público do Messias (Is 11.2; 61.1).
60

4.6.1 O ministério do Espírito em duas esferas


ULBRA – Educação a Distância

De maneira geral, o ministério do Espírito Santo no Antigo Testamento está em


evidência em duas esferas. Na primeira, é Ele que dirige a criação e a humanidade
em geral. Nesse caso, a missão do Espírito é chamada de “relações cósmicas ou
universais do Espírito de Deus”. Este ministério não está confinado aos eleitos e
não inicia com a regeneração destes, mas está relacionado com toda a criatura,
animada e inanimada. É o Espírito que gera, sustenta e dá continuidade à vida.
Ele é criador e sustentador do universo, dando-lhe beleza e ordem.45
Nesse sentido, pode-se afirmar que o Espírito também agiu na liderança política
em Israel, abençoando seus mandatários em suas funções oficiais. Foi assim com
os setenta anciãos, os quais foram equipados pelo Espírito com o dom da profecia.
“Então, o SENHOR desceu na nuvem e lhe falou; e, tirando do Espírito que estava sobre
ele, o pôs sobre aqueles setenta anciãos; quando o Espírito repousou sobre eles, profetizaram;
mas, depois, nunca mais” (Nm 11.25). Josué, sucessor de Moisés, foi particularmente
denominado como “homem em quem há o Espírito” (Nm 27.18). Após ser ungido por
Samuel como o primeiro rei de Israel e durante os primeiros anos de seu reinado,
Saul teve a assistência e direção do Espírito do Senhor (1 Sm 10.10). O mesmo pode
ser dito a respeito de Davi (1 Sm 16.13; Sl 51.11; 2 Sm 23.2), bem como nos dias da
reconstrução de Jerusalém, quando Zorobabel foi investido no poder do Espírito
do Senhor (Zc 4.6)46.
Na segunda frente, o Espírito é aquele que realiza a missão especificamente na sua
igreja. Esta área de atividade do Espírito na igreja tem sido chamada de “relações
teocráticas ou redentoras do Espírito de Deus”. O ofício do Espírito aqui se aplica a
Israel como povo escolhido de Deus, bem como aos cristãos individuais, dirigidos
pela graça e vontade de Deus47.
Nessa esfera, o Espírito Santo teve atuação fundamental no Antigo Testamento.
José era um homem cheio do Espírito de Deus (Gn 41.38). Moisés e Arão foram
duas lideranças promovidas e movidas pelo Espírito. O profeta Isaías identificou
o Espírito Santo como guia de Israel durante a vida deste povo no deserto. “Como
o animal que desce aos vales, o Espírito do SENHOR lhes deu descanso. Assim, guiaste o
teu povo, para te criares um nome glorioso” (63.14). A analogia aqui se justifica porque
as necessidades do povo de Deus são comparadas à dependência que os animais
domésticos têm das pessoas. Dentre todas as bênçãos que Deus concedeu ao seu
povo na caminhada pelo deserto também está incluído o dom do Espírito, de forma
muito parecida com promessa feita pelo Senhor Jesus no Novo Testamento. “Mas o
Consolador, o Espírito Santo, a quem o Pai enviará em meu nome, esse vos ensinará todas

45
THOMAS, apud WUNDERLICH, op. cit., p.79-80.
46
Ibid., p.82.
47
Idem, p.80.
61

as coisas e vos fará lembrar de tudo o que vos tenho dito” (Jo 14.26). “E lhes concedeste

ULBRA – Educação a Distância


o teu bom Espírito, para os ensinar; não lhes negaste para a boca o teu maná; e água lhes
deste na sua sede” (Ne 9.20).

Consideração final
Olhar para o Antigo Testamento em busca da fórmula trinitária “em nome do Pai e
do Filho e do Espírito Santo” pode ser frustrante. Ela não aparece. Em princípio, não
existe dificuldade em perceber a presença de Deus como Pai. Isso parece claro. Mas
isso não significa que o Filho e o Espírito não estejam lá. Em tons mais implícitos,
mas nem por isso imprecisos, é possível perceber a ação e a missão executadas pelo
Filho e o Espírito Santo já no Antigo Testamento. Na Antiga e na Nova Aliança Deus
executa sua obra salvífica, criadora e sustentadora através da trindade. A implicação
teológica disso é que o caráter da proclamação da Igreja e o principal objeto de
estudo da Teologia, em todos os tempos, deve ser cristocêntrica, pois é em Cristo que
a revelação de Deus encontra seu ápice e Ele é a última Palavra de Deus (Hb 1.1-2).

Atividades de autoestudo
1. Na discussão sobre o ensino da Trindade, é significativo perceber como o Antigo
Testamento apresenta as três pessoas, o Pai, o Filho e o Espírito Santo. Ainda
que não mencionada assim, os três estão lá. Defenda bíblico-teologicamente a
verdade de que a Trindade é ensino desde o Antigo Testamento.

2. A doutrina da Trindade é um dos mistérios que a razão humana não está


autorizada a desvendar e fornecer muitas explicações. Porém, considerando que
ela está na Palavra de Deus, qual é a recomendação básica para sua abordagem?
a. É preciso reunir o maior número de textos bíblicos em que aparece a
fórmula trinitária.
b. É necessário abandonar a noção de que ela vem pronta na fórmula e
bem definida que a conhecemos hoje: Pai, Filho e Espírito Santo e vê-la
mais bíblico-teologicamente.
c. Como não há clareza bíblica sobre o tema, nesse caso, é preciso se ater
somente à Teologia Sistemática para explicar este ensino.
d. A doutrina da Trindade em si não tem sustentação bíblica no Antigo
Testamento, apenas em Mateus 28.19, e é desse texto que precisa ser
ensinada.
e. Como é um ensino controverso, não há necessidade nem de
aprofundamento nem do ensino, senão deixar o Espírito agir.
62

3. Quais têm sido os argumentos plausíveis e até lógicos de que especialmente


ULBRA – Educação a Distância

nas teofanias do Antigo Testamento e aparições do Anjo era o Filho que estava
se manifestando?
a. Pela forma sobrenatural dessas manifestações.

b. Pelo testemunho das Escrituras de que ninguém viu a Deus, mas nessas
passagens Deus foi visto.

c. Pelos resultados extraordinários vistos na vida das pessoas


envolvidas.

d. A aplicação de palavras, como de Filipenses 2.9-10, a Jesus e que


originalmente foram endereçadas ao Senhor no Antigo Testamento.

e. A alternativas “b” e “c” são argumentos importantes nessa


discussão.

Respostas
2.b; 3.e

Referências
GIESCHEN, Charles A. The Real Presence of the Son Before Christ: Revisiting an Old Approach
to Old Testament Christology. In: Concordia Theological Quarterly, v.68:2, april 2004.
JENSON, Robert. The Trinity in the Bible. In: Concordia Theological Quarterly, v.68: 3/4, July/
October 2004.
WUNDERLICH, Lorenz. The Half-Known God. St. Louis: Concordia Publishing House,
1963.
5
O PECADO ORIGINAL
NAS ESCRITURAS SAGRADAS

Anselmo Ernesto Graff

Introdução
Pecado original é uma expressão que não está na Bíblia. Porém, ela é usada na
Teologia como um termo que carrega o sentido de que não são necessariamente
os atos que tornam o ser humano condenado diante de Deus, mas a sua essência
pecaminosa, herdada de Adão e Eva. Esse pecado é assim designado porque
sua origem está em Adão e Eva e é a origem dos pecados cometidos pelos seres
humanos.
O pecado original é definido como sendo a corrupção natural e completa de todo
o ser humano, desde a sua concepção. Martinho Lutero extrai da mitologia grega
uma imagem para descrever a seriedade do pecado original: “um monstro de
muitas cabeças e com o qual temos que lutar até o dia da nossa morte”48.
A extensão do pecado original é ampla. O ser humano está afetado como um todo:
corpo, desejos, ações e pensamentos. Isso, por sua vez, compromete sua presença
diante de Deus. Por isso, desde a sua concepção, todos são pecadores, e a propensão
natural para o mal persegue a humanidade. A implicação teológica disso é que
desde bebê o ser humano necessita da graça perdoadora e salvadora de Cristo.
Onde está a base bíblica para esta verdade? Este capítulo está designado a responder
de forma especial a essa pergunta, a fim de que o aluno possa avaliar as evidências
bíblico-teológicas do pecado original, solução, sua seriedade e consequências na
vida do ser humano e consequentemente na proclamação da Igreja de Cristo.

48
LUTERO apud Gieschen, Charles A. Original Sin in the New Testament. In: Concordia Journal, v.31,
october 2005, n.4, p.359.
64

5.1 O pecado original no judaísmo do primeiro século


ULBRA – Educação a Distância

Para os judeus do primeiro século havia várias explicações sobre a origem do


pecado no mundo e seu impacto sobre a humanidade. A literatura judaica deste
período revela que existiam aqueles que atribuíam o mal aos “anjos caídos” (Gn
6.1-5; 1 En 6.11)49. Outros colocavam toda responsabilidade do pecado somente a
Eva (Sr 25.24). Também se entendia que a inclinação para o mal em Adão e Eva é
que gerou o pecado (4 Ed 3.20-30; Sr 15.14; 37.3), enquanto outros ainda viam o
pecado como resultado da ação individual de cada ser humano (2 Br 54.19).50
A partir dessas informações, é possível perceber que para o judaísmo do primeiro
século, não obstante o texto de Gênesis 3 ser central nesta discussão, não havia
uma forma uniformizada em avaliar a questão. De fato, havia entre o ensino
rabínico a ideia de que Adão e Eva foram criados com uma “inclinação para o
mal” e que isso acabou sendo posto em prática por ocasião do pecado.
Porém, similar à perspectiva bíblica, especialmente do Novo Testamento e de forma
particular o texto de Romanos 5, havia alguns textos rabínicos que mostravam
que o domínio do mal no coração humano foi após a queda em pecado de Adão e
Eva. Assim, o pecado, ou a inclinação para o mal, é entendido como uma condição
herdada dos primeiros pais (4 Ed 7.118). Segundo Cranfield, o que está implícito
no relato de Gênesis 2.17b e 3.3,19, que a entrada do pecado gerou a morte, está
explícito em texto judaicos posteriores, como de Eclesiástico 25.24, “a mais antiga
passagem a asseverar que a morte física é devida ao pecado original e a relacionar
a pecaminosidade de todos os homens com o pecado de Adão e Eva”51.
Por outro lado, também é importante notar que havia evidências de uma
antropologia mais otimista entre o judaísmo desta época. Alguns textos, como
de 2 Baruque 54.15,19, declaram que Adão não é a causa do pecado, mas cada
um se torna “seu próprio Adão”. Nesse caso, haveria ainda uma capacidade
natural no ser humano em escolher entre o bom e o mau. Nesse sentido, para os
mestres fariseus o relato de Gênesis 3 é considerado como um exemplo típico
de desobediência contra Deus e que gera culpa no ser humano. Segundo essa
linha, os impulsos para o mal se contrapõem aos bons impulsos durante a vida
terrena, mas não conseguem obscurecer nem extinguir plenamente a pureza da
alma e a faísca divina dentro de cada ser humano.
Essa descrição das posições judaicas, de certa forma, resume bem o pensamento
teológico atual sobre a origem e o nível de interferência do pecado na vida do ser

49
1 Enoque (En), Siraque (Sr), 4 Esdras (Ed) e 2 Baruque (Br) estão na lista dos livros considerados como
apócrifos, termos aplicado pela patrística à literatura cuja origem é obscura. No período da Reforma
esse termo foi aplicado para os livros não canônicos.
50
GIESCHEN, idem, p.360
51
CRANFIELD, C. E. B. Carta aos Romanos. Tradução de Anacleto Alvarez. São Paulo: Edições Paulinas,
1992, p.116.
65

humano. Este é um dos pontos controversos e que pretende ser abordado neste

ULBRA – Educação a Distância


capítulo. Em resumo, poder-se-ia se afirmar que existe uma posição otimista a
respeito do ser humano, como ainda tendo algo de bom por natureza e outra mais
pessimista, que descarta qualquer “faísca” boa na natureza humana e que por isso
é completamente dependente da ação divina de regeneração.

5.2 O pecado como condição natural do ser humano nos ensinos


de Jesus e dos evangelistas
Os evangelhos sinóticos não apresentam de forma direta e explícita o tema do
pecado original como condição que corrompe toda a humanidade. Porém, em
algumas afirmações de Jesus é possível identificar elementos que apontam para
essa verdade. Um dos exemplos mais claros está em Marcos 10.18. Ao responder
à pergunta do jovem rico, que havia chamado Jesus de bom, o Filho de Deus
responde que “ninguém é bom senão um só, que é Deus”. É evidente que Jesus
não estava negando sua própria bondade, muito menos sua divindade, mas ele
estava forçando o jovem a reconhecer que sua esperança e confiança deveriam
estar somente em Deus e na bondade Dele, além de implicitamente lhe dizer que
nada que ele fizesse o tornaria alguém bom.
Outro texto que pode ser usado para definir bem o domínio do pecado sobre o
ser humano é quando Jesus fala sobre a natureza do Pai, em Mateus 7.11. “Ora, se
vós, que sois maus, sabeis dar boas dádivas aos vossos filhos, quanto mais vosso
Pai, que está nos céus, dará boas coisas aos que lhe pedirem?”. É importante
entender que Jesus não está se referindo a essa condição humana como resultado
da boa criação de Deus, mas do resultado da queda em pecado de Adão e Eva.
Isso pode ser corroborado na discussão a respeito do divórcio, onde Jesus reafirma
que essa “dureza de coração” não existe desde o princípio, mas foi resultado da
ação dos primeiros homens e que assim corromperam toda boa criação de Deus.
“Respondeu-lhes Jesus: Por causa da dureza do vosso coração é que Moisés vos
permitiu repudiar vossa mulher; entretanto, não foi assim desde o princípio” (Mt
19.8; cf. Mt 19.1-12; Mc 10.1-12)
Outro ensino de Jesus que revela o diagnóstico do ser humano como sendo
essencialmente pecado é no texto de Marcos 7.21-23. “Porque de dentro, do
coração dos homens, é que procedem os maus desígnios, a prostituição, os furtos,
os homicídios, os adultérios, a avareza, as malícias, o dolo, a lascívia, a inveja, a
blasfêmia, a soberba, a loucura.
Ora, todos estes males vêm de dentro e contaminam o homem”. Aqui Jesus diz
de forma clara que os atos exteriores têm origem interior e que por sua vez é
pecaminosa. O referente de coração aqui, como em outras partes da Escritura, é o
ser de cada pessoa (cf. Gn 6.5).
66

O Evangelho de João também apresenta uma avaliação pessimista da condição


ULBRA – Educação a Distância

humana por causa do seu estado pecaminoso. Em vez de retratar as múltiplas ações
individuais, João normalmente usa a forma singular para o pecado, enfatizando,
com isso, uma condição universal (Jo 1.29, 15.22. 16.8). Nessas passagens, ainda
que por inferência, mas sem contradizer o ensino da Escritura Sagrada, João está
dizendo que o pecado é uma condição que escraviza toda a criação, incluindo as
pessoas. Por isso há uma necessidade universal por um renascimento de Deus e do
qual Jesus falou a Nicodemos (Jo 3.3). Nesse contexto Jesus também está falando,
ainda que implicitamente, que essa condição pecaminosa é herdada de Adão e
Eva (Jo 3.6; 6.63). Não obstante Adão e Eva não serem citados, “carne” aqui, como
“condição pecaminosa”, pode ser entendida como a realidade que passou a toda
a humanidade desde a queda no Jardim do Éden. Isso, por sinal, não fecha com
o pensamento judaico em sua negação pela necessidade de serem libertados (Jo
8.33) e o julgamento condenatório que veementemente fizeram do cego que foi
curado por Jesus (Jo 9.34).

5.3 O pecado como condição natural do ser humano nos ensinos


do apóstolo Paulo
Certamente, o assunto do pecado como condição humana natural tem forte atenção
na epístola aos Romanos e, de forma particular, Romanos 5.12. Porém, ainda que a
palavra pecado não apareça antes de Romanos 3.9, toda a seção de Romanos 1.18-
3.20, talvez seja o mais longo e mais aprofundado testemunho da universidade do
pecado e que corrompe toda a raça humana. Usando principalmente porções dos
Salmos, Paulo declara que “não há um justo, nem sequer um” (Rm 3.10). É interessante
observar que Paulo também usa na grande maioria das vezes a forma singular para
pecado, enfatizando-o como condição humana e quem sabe, indo um pouco mais
longe, afirmando-o como poder que escraviza todo o ser humano (Rm 3.23).
Mas o texto central e que tem sido considerado a evidência chave nessa discussão
sobre o pecado como condição de toda a humanidade é Romanos 5.12. “Portanto,
assim como por um só homem entrou o pecado no mundo, e pelo pecado, a
morte, assim também a morte passou a todos os homens, porque todos pecaram”.
O contexto mostra que essas palavras não são uma mera repetição de Romanos
3.23, mas que o pecado de Adão envolve o restante da humanidade e que por isso
está sob condenação. A vida começa com uma natureza pecaminosa (Gn 8.21; Sl
51.5, 58.3)52.

52
Com o princípio de que Salmos tem como objetivo principal evocar sentimentos e emoções e por
isso é preciso cuidado ao ler e interpretar um salmo, eles não podem ser lidos primariamente com
a intenção de extrair doutrinas. Porém, eles podem, como o próprio apóstolo Paulo fez na Carta aos
Romanos, ilustrar e confirmar verdades escritas em outros textos da Escritura Sagrada. No caso, aqui,
eles acabam revelando pelas confissões dos salmistas o seu estado pecaminoso.
67

O versículo inicia com um “portanto”, o que significa que há uma ligação íntima

ULBRA – Educação a Distância


com o que foi afirmado em Romanos 5.1-11. Nessa seção, Paulo mostra o aspecto
universal da obra reconciliadora de Cristo. “O fato de esta reconciliação ser
realidade no caso dos crentes, não se sustenta por si mesma: significa que algo foi
realizado por Cristo, algo tão universal na sua efetividade quanto foi o pecado do
primeiro homem”53.
Assim, o caráter universal da obra salvadora de Cristo é posto lado a lado com o
caráter universal do pecado. Com Adão e sua transgressão se deu a entrada no
mundo54 ao pecado. Já a entrada do pecado significava também a entrada da morte,
“que acompanhou o pecado como sombra”55. Essa é a consequência natural para
toda a humanidade. A morte apodera-se de cada pessoa, de geração em geração.
Quando o apóstolo Paulo fala que todos pecaram, ele fala sobre o pecar pessoal
de cada ser humano, mas como consequência da natureza corrompida herdada de
Adão. Assim como Cristo é a única fonte da justiça dos homens, assim só Adão é
responsável pela ruína de todas as pessoas56. Vale ressaltar, no entanto, que isso não
significa uma transmissão de responsabilidade, como se as pessoas simplesmente
morressem por causa do pecado de Adão, mas cada um contribui pessoalmente
para seu próprio pecar.
Ainda que Eva estivesse envolvida de forma direta por ocasião do primeiro pecado,
ao estabelecer o princípio tipológico de Cristo como segundo Adão, o apóstolo
Paulo deixa claro que a origem do pecado e da morte está na desobediência
de Adão. Ainda que existam variações na interpretação deste versículo, alguns
detalhes atestam que a morte é o resultado da desobediência de Adão, que trouxe
o pecado que escraviza o Cosmos, incluindo toda a humanidade. Como a morte
alcança todas as pessoas através da transgressão de Adão (Rm 5.12,15,18; 1 Co
15.22) e porque a morte é o “salário do pecado” (Rm 6.22), Paulo entendeu que
todos compartilham da transgressão de Adão. Em resumo: quando Adão pecou,
“todos pecaram” (Rm 3.23, 5.12,19), e desde o tempo da transgressão de Adão
“todos estão sob o pecado” (Rm 3.9).
Nessa discussão, o texto de Romanos 5.19 também adquire importância. “Porque,
como, pela desobediência de um só homem, muitos se tornaram pecadores, assim
também, por meio da obediência de um só, muitos se tornarão justos.” Essas
palavras dão suporte a esse aspecto coletivo e universal do pecado de Adão, pois
através dele todos estão sujeitos à condição de pecador57, mas também deixam claro

53
CRANFIELD, op. cit., p.113.
54
Segundo Cranfield, mundo aqui “muito provavelmente no sentido de humanidade ou vida humana” (p.114).
55
CRANFIELD, p.114.
56
Idem, p.115.
57
Outros textos importantes do apóstolo Paulo que podem servir como subsídios no debate a respeito
do aspecto coletivo ou universal da transgressão de Adão: 2 Co 5.14; Gl 4.8-9; Ef 2.1-3.
68

que o pecado de Adão e a obediência de Cristo não estão em pé de igualdade. A


ULBRA – Educação a Distância

condenação por causa do pecado é universal, mas não eterna e nem irreversível.
Pelo contrário, Jesus Cristo levou até o fim o processo de reversão dessa situação
e sua obra que dá vida e perdão é em proveito de todos os homens. Cristo tomou
sobre si o fardo do pecado e todos os que nEle creem recebem dEle o dom gratuito
do perdão e da vida.

5.4 O pecado como condição natural do ser humano em Tiago e Pedro


Não obstante as evidências mais claras sobre o pecado como condição humana
estarem nas cartas paulinas, é possível fazer alusão, ainda que breve, a algumas
referências em Tiago e nas epístolas de Pedro. Já no primeiro capítulo, Tiago
apresenta a verdade de que nos maus desejos interiores está a origem dos pecados
atualmente cometidos. “Ninguém, ao ser tentado, diga: Sou tentado por Deus;
porque Deus não pode ser tentado pelo mal e ele mesmo a ninguém tenta. Ao
contrário, cada um é tentado pela sua própria cobiça, quando esta o atrai e seduz.
Então, a cobiça, depois de haver concebido, dá à luz o pecado; e o pecado, uma
vez consumado, gera a morte” (Tg 1.13-15). Tiago está dizendo que ninguém
pode tirar de si a responsabilidade de seus pecados, pois eles são resultado dos
desejos maus tão inerentes desde a queda em pecado. Além disso, em Tiago 4.1-2,
“carne” pode ser entendida como a condição pecaminosa da qual Cristo libertou
a humanidade.
Na primeira epístola de Pedro a ênfase é para o pecado como uma condição herdada
e da qual é preciso ser liberto, “sabendo que não foi mediante coisas corruptíveis,
como prata ou ouro, que fostes resgatados do vosso fútil procedimento que vossos
pais vos legaram” (1 Pe 1.18). É desta condição que é preciso ser regenerado ou
nascido de novo (1 Pe 1.23) e assim viver como crianças recém-nascidas (1 Pe 2.2).
No texto de 1 Pedro 1.18, a importância está na frase “que vossos pais vos legaram”.
Ainda que a etimologia não possa ser usada para sustentar teologicamente uma
verdade, é possível, amparado pelo testemunho dos outros textos da Escritura,
afirmar que aqui a etimologia pode auxiliar na compreensão. O patropadotos é um
substantivo composto que significa uma tradição que tem ligação com o pai (pater)
e que é passada adiante (paradidomi). Embora o apóstolo não faça referência a Adão,
a origem do pecado está implícita nesta declaração.

5.5 O pecado original e a antropologia dos cristãos regenerados


As evidências do Novo Testamento acima listadas, de forma particular Romanos
5.12, providenciam suficiente entendimento e clareza de que a origem do pecado
está na desobediência de Adão, que por sua vez tem poder para escravizar
69

hereditariamente toda a criação. Além disso, esse pecado, denominado de pecado

ULBRA – Educação a Distância


original, tem impactos intensos e multifacetados na vida das pessoas. Mais do que
uma lista de pecados individuais, o Novo Testamento mostra que o pecado é uma
condição que escraviza e desencadeia toda sorte de males. As boas notícias para
esse diagnóstico sombrio dessa condição veio através de Jesus Cristo, que se fez
pecado (2 Co 5.21) e anulou toda a sua força condenatória.
E com Jesus Cristo habitando o crente e regenerado pelo Espírito, a condição do
passado e do presente de um cristão é diferente? Ele ainda está sob influência dessa
condição pecaminosa? Esse pode ser o segundo ponto controverso importante
nessa questão e que será abordado a partir de agora.
Até certo ponto, e a julgar pelas inúmeras exortações feitas pelos escritores do
Novo Testamento aos cristãos a viverem a nova vida, é possível concluir a priori
que mesmo regenerados os cristãos precisam ser ensinados em como viver a
nova vida em Cristo. Logo, eles ainda estão sujeitos a algum tipo de influência ou
interferência dessa sua natureza pecaminosa. O texto clássico para essa conclusão,
além dos textos exortativos das epístolas, já aludidos, é Romanos 6-8.

5.5.1 O passado e o presente – Paulo antes e depois da conversão


Em primeiro lugar, é preciso entender que, ao falar de sua condição de convertido,
Paulo pinta um quadro radicalmente diferente daquele seu estado anterior à
conversão. Ele distingue de forma precisa o passado e o presente, o antes de o
depois de Cristo entrar em sua vida. Em Romanos 6.1-10 ele usa a linguagem da
vida e da morte. Antes ele vivia58 no pecado e morto para Deus. Agora, entretanto,
ele está vivo para Deus e morto para o pecado. A partir da união com Cristo, através
do Batismo, quando lhe foi aplicado a morte e a ressurreição de Cristo, houve uma
ressurreição para uma nova existência, ou, como o próprio apóstolo Paulo diz,
agora ele “anda em novidade de vida” (v.4).
Em Romanos 6.15-23, ele contrasta sua condição anterior e pós conversão utilizando
a linguagem da escravidão e da liberdade. Antes ele era “escravo” do pecado, mas
agora, servo da justiça, ou então, servo de Deus. Essa mesma imagem da morte e
da escravidão é usada pelo apóstolo em relação à Lei (Rm 7.1-6). Antes, na carne,
a Lei acabava estimulando a prática do pecado. Agora, libertado da condenação
da Lei, ele pertence a Cristo e realiza obras segundo a novidade do Espírito. Em
Romanos 8.1-11, Paulo foca no papel do Espírito na vida dos regenerados. É o
Espírito que liberta os cristãos do jugo do pecado e da morte. Agora eles não estão
mais na carne (Rm 7.5), mas em Cristo e no Espírito.

58 Na verdade, estava morto no pecado – ideia similar em Efésios 2.1.


70

5.5.2 O passado e o presente – Duas condições simultâneas


ULBRA – Educação a Distância

Ao falar do passado e do presente, o apóstolo Paulo também menciona a


existência cristã em duas condições opostas e simultâneas. Não obstante aspectos
controversos no capítulo 7 de Romanos, a mudança do tempo verbal do passado
(Rm 7.7-13) para o tempo verbal presente, indica que o apóstolo estava falando
efetivamente de sua condição presente ou pós conversão. Agora, e por um lado,
ele se deleita na Lei e quer obedecê-la. Por outro lado, ele reconhece que ainda
é carnal e sujeito ao pecado. Nesta seção (Rm 7.14-25), Paulo revela que em sua
existência cristã ocorre uma divisão dissonante e que não havia na sua vida antes
de ser cristão. Por um lado, ele foi renovado em seus pensamentos e vontade,
existindo nele agora o desejo de agir de acordo com a vontade de Deus. Por outro
lado, ainda existe o pecado que nele habita e que o incapacita de realizar somente
as coisas boas que a Lei pede. Paulo se vê servindo simultaneamente a duas
realidades antagônicas. Ainda que ele repudie o pecado ou as ações pecaminosas,
o pecado ainda é uma condição ou realidade presente na sua existência cristã.
A partir disso e em suma, pode-se afirmar que o apóstolo faz uma pintura da
existência cristã, como tendo duas forças ativas e opostas dentro dele. Cristo/
Espírito e o pecado como inimigo ativo (cf. Rm 6.1). Assim, a vida cristã é
caracterizada por uma constante batalha entre as obras do Espírito e as obras da
carne, ou do pecado original, revelando que de fato ele é um “um monstro de
muitas cabeças e com o qual temos que lutar até o dia da nossa morte”. Esse é um
lado da moeda. Além disso, vale salientar que a morte, como salário do pecado,
não pode ser vista apenas como um fenômeno biológico, mas uma consequência
inevitável para todas as pessoas, quer elas reconheçam ou não.

Atividades de autoestudo
1. Dentre controvérsias teológicas sobre o pecado, duas delas foram abordadas
neste capítulo: o nível de interferência no ser humano (ele deixa o ser humano
completamente corrupto ou apenas parcialmente corrompido) e o quanto o
pecado exerce influência sobre os cristãos regenerados. Considere esses dois
tópicos e faça uma análise com fundamentação bíblico-teológica para defender
sua posição.
2. As diferentes posições judaicas sobre o pecado abordadas neste capítulo, de
certa forma, resumem o pensamento teológico atual sobre a origem e o nível
de interferência do pecado na vida do ser humano. Alguns defendem a total
corrupção humana a partir do pecado, outros entendem que há ainda algo de
71

bom no ser humano. Qual das posições teológicas abaixo não é unanimidade

ULBRA – Educação a Distância


no judaísmo?
a. Os impulsos para o mal se contrapõem aos bons impulsos durante a
vida terrena, mas não obscurecem a pureza da alma e a faísca divina
dentro de cada ser humano.

b. A inclinação para o mal em Adão e Eva é que gerou o pecado e todos


ainda são criados assim hoje.

c. A existência do mal e, consequentemente, do pecado é atribuído a anjos


caídos, que não guardaram seu estado original.

d. O pecado é simplesmente o resultado da ação individual de cada ser


humano.

e. O pecado foi um ato de desobediência de Adão e Eva e que


irremediavelmente corrompeu toda a raça humana.

3. Parece claro, pelo testemunho do Novo Testamento, que o pecado existe como
uma condição natural do ser humano, e sua interferência é percebida mesmo
em cristãos regenerados. Que aspectos importantes precisam ser observados
no contexto da existência do pecado?
a. Que o pecado pode ser dominado e erradicado completamente com
profunda devoção na Palavra.

b. Que o pecado é exclusivo das pessoas não cristãs.

c. Que o pecado como condição gera todos os tipos males e atos maldosos,
além de conduzir todos, sem exceção, à morte.

d. Que o pecado de fato é ativo somente nos cristãos denominados de


carnais.

e. Que a Teologia Bíblica do pecado apresenta variações significativas


entre o Antigo e o Novo Testamento.

Respostas
2.e; 3.c
72

Referências
ULBRA – Educação a Distância

CRANFIELD, C. E. B. Carta aos Romanos. Tradução de Anacleto Alvarez. São Paulo: Edições
Paulinas, 1992.
Gieschen, Charles A. Original Sin in the New Testament. In: Concordia Journal, v.31, n.4,
october, 2005, p.359-375.
RAABE, Paul R.; VOELZ, James W. Why Exhort a Good Tree?: Anthropology and Paraenesis
in Romans. In: Concordia Journal, v.22, n.2, April 1996, p.154-163.
6
PAULO – UM TEÓLOGO BÍBLICO:
O ENSINO SOBRE A JUSTIFICAÇÃO,
A PARTIR DE UMA LEITURA DE ROMANOS
3.21 A 4.8

Gerson Luis Linden

Introdução
A Epístola de Paulo aos Romanos é considerada um dos principais de seus escritos.
Nela o apóstolo expõe de maneira clara e um tanto sistemática seu ensinamento,
especialmente a respeito de como o ser humano é aceito na comunhão com Deus.
Logo no início, no primeiro capítulo, versículo 17, Paulo introduz o tema da
justificação: “a justiça de Deus se revela no evangelho, de fé em fé, como está escrito:
O justo viverá pela fé”. Esta declaração de Paulo deve ser interpretada pelo que
segue na carta, de maneira especial nos capítulos 3 e 4. Conforme N. T. Wright59,
o capítulo 3 de Romanos “é onde o tema [da justificação] se torna visível, central
e vital”. Ainda conforme Wright (p.106), nos versículos 21 a 26, Paulo esboça o
coração de sua mensagem.
Neste estudo, examinaremos primeiramente o texto de Paulo em Romanos 3.21 a
4.8, ressaltando alguns de seus aspectos centrais, levando em conta seu contexto.
Depois, discutiremos algumas ênfases de Paulo relacionadas à salvação. Quatro
aspectos serão ressaltados, com observações sobre o que o Antigo Testamento
e Jesus dizem sobre o assunto. Dessa forma, poderemos observar como Paulo,
o grande apóstolo do cristianismo, se utiliza do Antigo Testamento para suas
afirmações. Por isso, Paulo pode muito bem ser considerado um “teólogo
bíblico”.

59
WRIGHT, N. T. What Saint Paul Really Said. Was Paul of Tarsus the Real Founder of Christianity? Grand
Rapids: Eerdmans, 1997, p.105.
74

6.1 Um estudo em Romanos 3.21 a 4.8


ULBRA – Educação a Distância

(21) Mas [e] agora, sem lei, a justiça de Deus se tornou manifesta [foi revelada] sendo testificada
pela lei e pelos profetas; (22) e justiça de Deus por meio da fé em Jesus Cristo [fidelidade de
Jesus Cristo] para todos os que creem, pois não há distinção, (23) pois todos pecaram e carecem
da glória de Deus, (24) sendo justificados por dádiva em sua graça, através da redenção, a (que
está) em Cristo Jesus (25) a quem Deus manifestou publicamente [propôs/planejou] [como]
lugar/meio de propiciação [expiação] por meio da fé no seu sangue, para demonstração da
justiça por causa do deixar impunes as transgressões que ocorreram antes, (26) na paciência
de Deus, para a demonstração de sua justiça no tempo [era] presente, para ser ele justo e o
justificador daquele (que é) da fé em Jesus [fidelidade de Jesus]. (27) Onde, então o orgulho?
Foi excluído. Por qual lei? Das obras? Não, mas pela lei da fé. (28) Pois somos da opinião que
um homem é justificado por fé, sem obras da lei. (29) Ou (seria) Deus dos judeus apenas? Não
é também dos gentios? Sim, dos gentios também. (30) visto que Deus (é) um, o qual justificará
circuncisão [o que é circuncidado] da fé e incircuncisão [o incircunciso] por meio da fé. (31)
Estamos nós, então, anulando [a] lei? De maneira nenhuma; pelo contrário estabelecemos
[confirmamos] [a] lei. (4.1) O que, pois, diremos ter alcançado Abraão, nosso pai segundo a
carne? (2) Pois se Abraão foi justificado de obras, ele tem algo do que se orgulhar, mas não
perante Deus. (3) Pois o que diz a Escritura? Mas [e] Abraão creu em Deus e foi imputado a
ele [foi colocado na sua conta] para justiça. (4) Mas ao que trabalha, a recompensa [salário]
não é considerada [colocada na sua conta] como um favor [por bondade], mas como uma dívida
[como aquilo que lhe é devido]. (5) Mas ao que não trabalha, mas crê naquele que justifica o
ímpio, sua fé é considerada [colocada na sua conta] para justiça. (6) Como também Davi [a
respeito] da bênção do homem a quem Deus considera [coloca em sua conta] justo, à parte
de obras. (7) Abençoados são aqueles cujas iniquidades foram perdoadas e cujos pecados
foram cobertos. (8) Abençoado o homem de quem de maneira nenhuma o Senhor considerará
[colocará em sua conta] pecado.

Paulo inicia o texto em estudo (3.21) com uma referência ao testemunho dado pela
lei e os profetas, numa clara referência às páginas do Antigo Testamento. Para os
apóstolos, o Antigo Testamento não apenas aponta e testemunha a obra futura de
Cristo, mas serve de base para sua própria proclamação. Este tema também pode
ser observado, por exemplo, no discurso de Pedro ante Cornélio e sua família e
amigos, em Cesareia: “Dele todos os profetas dão testemunho de que, por meio
do seu nome, todo aquele que nele crê recebe remissão de pecados” (Atos 10.43).
Para os apóstolos o Antigo Testamento não é livro para judeus simplesmente, mas
é um testemunho antecipado a respeito de Jesus Cristo, como salvador de todos
os povos.
Vale observar que em 3.21 Paulo emprega o termo “lei” duas vezes. Na segunda
ocasião, na expressão “lei e profetas”, trata-se de uma referência mais específica à
Torah, o conjunto dos livros escritos por Moisés (Gênesis, Êxodo, Levítico, Números,
Deuteronômio). Na primeira menção à “lei”, seu significado deriva da referência a
ela nos versículos anteriores (3.19,20). Neste caso, lei é aquela Palavra de Deus que
75

denuncia e condena o pecado. Ou seja, aqui “lei” está em oposição a “evangelho” (a

ULBRA – Educação a Distância


boa nova do perdão, da salvação pela fé em Cristo). “Sem lei”, diz Paulo, isto é, no
que se refere à salvação, não é a lei (como exigência e como palavra condenatória)
que tem a última palavra no que se refere à justiça de Deus. Esta justiça tem a ver
com a obra que Cristo realizou e que é recebida pela fé.
“Justiça de Deus ... para todos [e sobre todos] os que creem” (3.22). Observe-se
que algumas cópias do texto não trazem a expressão “sobre todos”. A. Nygren60
considera que o texto mais longo (incluindo “sobre todos”) seja o correto. Ele se
pergunta o que significaria a justiça de Deus “sobre” todos. Sugere, então, um
paralelo com Rm 1.18, onde a mesma preposição grega é usada. Em 1.18 é dito
que na era antiga, sob o domínio da lei, tudo está sob a ira de Deus; neste novo
tempo, com a obra de Cristo completa, a justiça salvífica de Deus se manifesta
sobre todos. Na antiga era tudo está debaixo do domínio do pecado e da morte; na
nova, tudo está debaixo do poder de salvação da justiça de Deus. De cima, do céu,
vem a ira de Deus sobre todos; também de cima vem a justiça. A fonte, portanto,
é Deus em cada caso.
“Pois não há distinção” (3.22) – esta expressão é repetida por Paulo em Rm 10.12,
sendo que naquele caso a aplicação é feita a judeus e gentios. O mesmo pode
também ser o caso em 3.22, visto que nos capítulos 1 e 2 Paulo está tratando da
situação dos gentios e judeus, sob a Lei. Agora ele declara que, de acordo com a
justiça salvífica de Deus, também não há distinção.
“Pois todos pecaram e carecem da glória de Deus” (3.23) – a universalidade do
pecado é enfatizada por Paulo em Romanos; aqui ele está repetindo o que disse
antes, em outras palavras, em 3:9 e na citação do Antigo Testamento que segue
(3:10-18) de Ec 7.20; Sl 14.1-3; 53.1-3; 5.9; 140.3; 10.7; Is 59.7s; Pv 1.16; Sl 36.1. A
“glória de Deus” é sua manifestação – assim a expressão é usada também no
Antigo Testamento. Deus se manifesta como o Criador, mantenedor e redentor da
humanidade. Somos chamados a ser participantes desta glória, desfrutando das
bênçãos de sermos criaturas amadas por Deus. No entanto, o pecado frustra este
intento. Observe-se que para Paulo o pecado não configura apenas atos contrários
à vontade de Deus. Como fica evidenciado em outros textos do apóstolo, o pecado
é um estado no qual a pessoa se encontra por natureza (como deixou claro nos dois
primeiros capítulos da Epístola), estado este no qual a pessoa deixa de usufruir da
glória de Deus, ou seja, de sua manifestação amorosa para com suas criaturas.
“Sendo justificados por dádiva em sua graça, através da redenção, que está em
Cristo Jesus” (3.24) – uma das mais significativas aplicações que Paulo faz do
Antigo Testamento é atribuir a Jesus aquilo que naquele texto se atribui a Yahweh
(o SENHOR). Por exemplo, neste texto, a redenção está “em Jesus”. Paulo se utiliza

60
NYGREN, Anders. Commentary on Romans. Philadelphia: Fortress Press, 1988, p.152.
76

de uma fraseologia que lembra o Salmo 130.7, onde a redenção é considerada como
ULBRA – Educação a Distância

estando “em Yahweh”.


Justificação e redenção são colocados lado a lado por Paulo neste texto e também
em 1 Co 1.30. Nygren61 lembra que “redenção” implica atuar contra poderes
inimigos que tornam o homem um escravo. Paulo aborda com mais detalhe o tema
das forças escravizadoras do homem nos capítulos 5 a 8 – ira de Deus, pecado, lei
e morte. Justificação é um termo que vem do contexto jurídico, da declaração de
inocência de alguém por parte de quem tem o direito de julgar. É significativo que
Paulo empregue na mesma frase duas metáforas de origem diferente para abordar
a maneira como Deus traz salvação à humanidade. Note-se ainda em ambas as
palavras a ênfase na doação da parte de Deus, imerecida por parte do homem. Ao
afirmar a justificação e a redenção como vindas de Deus unicamente, Paulo nega
qualquer participação humana, o que vem expressa e enfaticamente colocado na
expressão “gratuitamente, em sua graça”.
A justificação e a redenção encontram seu lugar em Cristo Jesus, “a quem Deus
manifestou publicamente [propôs/planejou] como lugar [meio] de propiciação
[expiação] através da fé no seu sangue, para demonstração da justiça por deixar
impunes as transgressões que ocorreram antes” (3.25) – é significativo que Deus
apresentou Jesus como propiciação; não são os homens que apresentam Cristo
como sacrifício para Deus. Com isso Paulo mostra a diferença radical entre o Deus
verdadeiro e os ídolos, e entre a fé cristã e os cultos pagãos.
Pode haver aqui uma referência indireta ao que ocorreu por ocasião da morte
de Cristo, quando o véu do santuário se rompeu. O “lugar da propiciação” – o
propiciatório – foi revelado; assim como a plena propiciação se revelava na morte
de Jesus, que ocorria fora da cidade.
Em Êxodo 25.22, Deus disse a Moisés que se manifestaria ao seu povo naquele
local, no propiciatório. A glória de Deus se manifestava no Dia da Expiação neste
local. Paulo parece ter isso em mente, ao mostrar que Deus se manifesta, em sua
glória, em Cristo, na sua obra da cruz. Não mais se esconde na nuvem que está
no templo, mas apresenta publicamente Cristo diante do mundo. O objetivo de
Deus ao mostrar Cristo publicamente também é expresso por Paulo – tornar sua
justiça conhecida. A ideia de manifestação e demonstração pública é central em
todo este texto de 3.21-31. A. Nygren62 sustenta que a tese principal de Paulo é que
a justiça de Deus foi manifestada em Cristo, e esta verdade é repetida de diversas
maneiras.

61
Idem, p.155.
62
Idem, p.157-158.
77

Sobre a última parte do versículo 25, Franzmann mostra que a justiça de Deus é

ULBRA – Educação a Distância


aqui tanto a justiça do Juiz, que condena, como do Salvador, que dá a sua justiça.
Ele explica:

A história do mundo, por assim dizer, pusera em dúvida a justiça de Deus, o Juiz, pois a história
da humanidade fora em grande parte a história da longanimidade de Deus. Mesmo em Israel
podia-se dizer, com alguma aparência de direito: “Qualquer que faz o mal passa por bom aos
olhos do Senhor ... Onde está o Deus do juízo?” (Ml 2.17); e Epicuro podia sonhar de deuses
despreocupados que nem puniam e nem recompensavam. Mas agora, na hora suprema da
história, no grande “agora” da libertação, na cruz, demonstrou fora de qualquer dúvida sua
justiça como Juiz; demonstrou que todo seu “fazer vistas grossas” aos pecados anteriores dos
homens foi apenas isso, suspensão do juízo que tinha esta hora em vista. Agora ficou claro:
poupou a humanidade, não poupou seu Filho, mas o entregou por todos (8.31)63.

“Para a demonstração de sua justiça no tempo presente” (3.26) – A expressão “no


tempo presente” (no grego, nun kairoo) é também usada por Paulo em Romanos 8.18;
11.5; 2 Coríntios 6.2; 8.14. Ela é usada pelo apóstolo para mostrar a contemporaneidade
da justiça de Deus. Por um lado, a justiça de Deus se manifestou na obra redentora
de Cristo, obra esta que para os leitores de Paulo estava no passado, pelo menos
há uns 25 anos. Por outro lado, esta obra se torna contemporânea a Paulo e seus
leitores quando a mensagem do evangelho lhes é anunciada. Em outras palavras,
para Paulo a justiça de Deus está se manifestando naquele momento, em que seus
leitores ouvem (leem) a boa-nova da salvação em Cristo.
“Onde, então [fica] o orgulho? Foi excluído. Por qual lei? Das obras? Não, mas pela
lei da fé.” (3.27) – Gathercole entende orgulho, mencionado neste texto, como se
referindo ao “orgulho nacional de Israel”64, assim que Paulo estaria voltando ao
que havia dito antes (2.17-23). Orgulhar-se desta forma seria a “confiança de que
Deus iria vindicar Israel com base tanto na eleição como na obediência e que os
vindicaria tanto diante como contra os gentios”.
A expressão “lei da fé” precisa esclarecimento. Gathercole65 considera este texto
como um paralelo ao que Paulo diz em Romanos 9.31,32. Baseado nisso, ele
argumenta que “lei” (no grego, nomos) deveria ser entendido como se referindo
ao que o Antigo Testamento chama de Torah, ou seja, o ensinamento divino.
Trata-se de um uso mais amplo da palavra “lei”, englobando a revelação divina,
inclusive a mensagem da salvação. Gathercole ainda argumenta que esta “lei”
deve ser vista “como primeiramente dirigindo seu leitor à fé no único Deus …
como o meio de justificação, não importando que obras são realizadas”, portanto

63
FRANZMANN, Martin H. Carta aos Romanos. Traduzido por Mário Rehfeldt e Gládis K. Rehfeldt.
Porto Alegre: Concórdia, 1972, p.59.
64
GATHERCOLE, Simon J. Where is Boasting? Early Jewish Soteriology and Paul’s Response in Romans 1-5.
Grand Rapids: Eerdmans, 2002, p.226.
65
Idem, p.230.
78

“o padrão ‘obras – justificação – orgulho’ é abandonado. Somos deixados com o


ULBRA – Educação a Distância

padrão ‘fé – justificação’.”


“Pois somos da opinião que um homem é justificado por [em] fé, sem obras da
lei” (3.28) – um texto clássico para a afirmação do sola fide – somente pela fé! Tudo
o mais, que não a fé, é excluído da justificação. Qualquer ato humano está fora.
Somente a fé tem lugar na justificação. É importante ressaltar que a fé não está aí
como fonte, mas como o meio de recepção do presente que é dado gratuitamente
por Deus – o perdão em Cristo.
Nos versículos 29 e 30, Paulo volta a tratar da questão da aplicação da justiça de
Deus a judeus e gentios: “Ou [seria] Deus dos judeus apenas? Não é também
dos gentios? Sim, dos gentios também, visto que Deus [é] um, o qual justificará
circuncisão [ou seja, aqueles que são circuncidados, os judeus] da fé e incircuncisão
[os não circuncidados, isto é, os gentios] por meio da fé”.
O v. 30 traz as expressões gregas ek pisteoos e dia pisteoos – devem ser elas entendidas
como sinônimos ou têm diferentes referentes? Pode ser significativo observar que
ambas as expressões são usadas por Paulo alguns versos antes (ek pisteoos – v.
26; dia pisteoos – v. 22,25), sem nenhuma sugestão de que se refiram a diferentes
realidades. O ponto fundamental para Paulo é que a origem étnica não sugere
diferentes caminhos de salvação. Do ponto de vista da justiça divina, judeus e não
judeus estão na mesma situação. Por um lado, sobre todos estes igualmente pesa
o veredito de condenação por causa do pecado (como Paulo deixou muito claro
em Romanos 3.9-20). Por outro lado, a justiça de Deus é atribuída igualmente a
judeus e não judeus unicamente pela fé em Jesus Cristo.
Argumentos tão fortes a favor da justificação pela fé poderiam dar a entender
algo que o apóstolo não quer dizer. Por isso, Paulo mesmo argumenta: “Estamos
nós, então, anulando a lei? De maneira nenhuma; pelo contrário, confirmamos a
lei” (3.31). Na proclamação de Paulo, a lei não deixa de ter valor; ela fica de pé.
No entanto, Paulo a entende na sua função própria. E esta função não é salvar (no
que estaria usurpando o lugar da graça de Deus, do evangelho), mas seu papel é
condenar. E o faz demonstrando ser o homem totalmente pecador e merecedor da
condenação. Anular a lei (antinomismo) acaba esvaziando também o evangelho.
Não havendo acusação e condenação, o que seria o evangelho, senão um mero
consolo humano?
Na sua argumentação, Paulo evoca o exemplo de Abraão. Este é particularmente
importante, por ser considerado pelos judeus como exemplo de pessoa aceita por
Deus. Paulo argumenta: “O que, pois, diremos ter alcançado Abraão, nosso pai
segundo a carne? Pois se Abraão foi justificado de obras, ele tem algo do que se
orgulhar, mas não perante Deus. Pois o que diz a Escritura? E Abraão creu em Deus
e [isto] foi imputado a ele [foi colocado na sua conta] para justiça” (4.1-3).
79

A razão pela qual (“pois”) Abraão não tem razão de se orgulhar perante Deus é

ULBRA – Educação a Distância


que sua justiça não veio de obras de obediência, mas da fé na promessa. Chama a
atenção que Paulo copia explicitamente a Septuaginta (LXX) em Gênesis 15.6. O
verbo empregado, tanto na LXX como por Paulo, logizomai (colocar algo na conta de
alguém, imputar), é usado cinco vezes neste início do capítulo 4 (até o versículo 8).
Abraão é tomado como exemplo, não pela sua atitude pessoal, mas pelo fato de ter
ele sido aceito por Deus pelo mesmo meio que Paulo está propondo para judeus e
gentios, ou seja, pela fé. O verbo passivo (“foi imputado”) deve ser observado – foi
colocado na sua conta (Deus é o sujeito). A fé aponta para a promessa, não para
o que a pessoa está fazendo. Por causa da promessa – que se concretiza na obra
de Cristo – vem a justiça, como algo de fora da pessoa e não como algo que ela
alcança por conquista própria. Para Paulo (assim como para Moisés em Gênesis)
a justiça é atribuída por Deus ao homem e não conquistada por este. É um ato da
graça divina, um presente, portanto (cf. 3.24).
Nos vv. 4 a 8 Paulo usa a comparação com o trabalho que alguém realiza na sua
vida diária. O salário pelo trabalho não é um favor do patrão, mas sua obrigação
e direito do trabalhador. Esta metáfora não pode ser usada quando se trata da
relação da pessoa com Deus. Neste caso, o que “não trabalha” (isto é, não realizou
obras para este fim) tem a justiça divina colocada na sua conta. É obra de Deus, que
Paulo coloca lado a lado com o perdão dos pecados (v. 7). Deus perdoa o pecador
por graça, por causa da obra redentora realizada por Cristo. Isso nada mais é que
a “justificação” do pecador.
Note-se a ênfase no fato de Deus “considerar justo” ou “atribuir justiça”. A justiça
não está na pessoa, mesmo considerando-se a pessoa que crê. A justificação do
pecador não deve ser equiparada a uma mudança de vida da pessoa. Não é o fato
de que alguém que crê passa por uma alteração de sua forma de ser e agir que se
configura na justificação. Tal mudança é resultado da justificação, não a própria
justificação. A justiça está em Deus, ao realizar a obra da salvação dos pecadores
por meio de Cristo. Por causa do que Jesus realizou, Deus olha o pecador com
outros olhos, por assim dizer. O pecador continua sendo o que ele é, mas Deus
lhe atribui (imputa) justiça. Afinal, ao crer em Cristo, o pecador recebe como
propriamente seu aquilo que Cristo obteve para o mundo inteiro – perdão dos
pecados, justiça, salvação.

6.2 Aspectos centrais da teologia da salvação

6.2.1 Justiça
Considerando as diversas ocorrências da família de vocábulos relacionados a dikaios
(= justo) no Novo Testamento, e comparando com as ocorrências de outras palavras
80

usadas para trazer a ideia de redenção/expiação, Morris66 chega à conclusão de


ULBRA – Educação a Distância

que, especialmente para Paulo, esta é uma “ideia dominante”.


No Antigo Testamento, a ideia trazida por tzedakah é, conforme Morris67, “declarar
justo, mais do que tornar justo. … O pano de fundo forênsico é inegável, e o verbo
só pode significar ‘declarar justo’ ou ‘absolver’”. É importante ter em mente que
o conceito de justiça no Antigo Testamento trata do relacionamento entre Deus e
homem; portanto, trata-se de um conceito religioso, não um conceito ético, como
bem mostra Guthrie68.
Em Romanos 3.21, Paulo declara que a justiça de Deus, que ele está expondo, não é
uma novidade, pois foi testemunhada pela “lei e pelos profetas”. Paulo não parece
estar se referindo a algum texto (textos) especificamente, mas à mensagem do
Antigo Testamento como um todo. Ainda assim, podemos observar alguns textos
do Antigo Testamento que se referem à justiça de Deus e que combinam bem com
a maneira como Paulo trata deste tema:
- Salmos 71.2,15,16,19,24 (Sl 70 na LXX): a expressão “tua justiça”, referindo-se a
Deus. A justiça de Deus liberta e é usada como sinônimo da salvação (v.2). Este
paralelo pode ser visto especialmente no v.15.
- Daniel 9.16: o texto hebraico tem o plural, onde a LXX tem o singular (de onde
pode ser vista a referência de Paulo). Daniel está orando pelo seu povo. Daniel
está confessando os pecados de seu povo e assumindo que se pode esperar a ira
de Deus. Daniel argumenta com a justiça de Deus (seus feitos justos) como a razão
pela qual Deus age com perdão. A situação é semelhante ao contexto de Paulo em
Romanos 3:21.
- Isaías 51:5,6,8: a justiça de Deus (com o pronome da 1ª pessoa – Deus está falando)
é para sempre, está próxima e aparece como sinônimo da salvação de Deus. Um
novo aspecto é a referência às “nações”, visto que os outros textos enfatizam a justiça
de Deus para com Israel. Tal referência também é significativa para o estudo de
Paulo na carta aos Romanos, visto que nos primeiros capítulos ele trata da questão
dos gentios e dos judeus.
O que na abordagem de Paulo à justiça de Deus reflete os ensinamentos do
Antigo Testamento? Pelo que podemos observar na forma como se refere à “lei e
os profetas”, Paulo com certeza vê a referência à justiça de Deus que não depende
das obras da lei. Mas mais do que isso pode ser sugerido. Esta justiça enfatiza a
salvação graciosa de Deus. É uma justiça que se manifesta em um contexto dos
pecados do povo, pois significa perdão dos pecados. É notável que o conceito em

66
MORRIS, Leon. The Apostolic Preaching of the Cross. 3rd edition. Grand Rapids: Eerdmans, 1988,
p.251.
67
Idem, p.259.
68
GUTHRIE, Donald. New Testament Theology. Downers Grove: Inter-Varsity Press, 1981, p.493-4.
81

Paulo segue muito proximamente seu uso no Antigo Testamento, como pode ser

ULBRA – Educação a Distância


visto nos exemplos acima, no sentido de que a justiça de Deus não é tratada sob
a ideia do “que Deus ordena”, mas “o que Deus dá”. Em outras palavras, é um
conceito no campo do evangelho, não da lei.
É importante notar que Paulo liga sua exposição da justiça à morte de Cristo em
Romanos 3. É correta a observação de Guthrie69 de que entre a justiça de Deus
(como uma qualidade nele) e a justificação do pecador está a morte de Cristo, com
seu caráter substitutivo. A justificação somente é possível por causa da obra de
Cristo como propiciação.
Se consideramos agora o uso que Jesus fez do termo dikaiosynee, observaremos que
ele o fez diversas vezes. Duas delas chamam especialmente a atenção. Ambas estão
no Sermão do Monte (Mt 5.20; 6.33). A justiça que as pessoas devem ter é a justiça
de Deus, e ela excede aquela dos líderes judeus. Isso sugere que um tipo diferente
de justiça seja necessário para alguém tornar-se como Deus espera. Guthrie70 lembra
corretamente que, mesmo não havendo referência específica à justificação pela fé, os
ditos de Jesus podem ser vistos como uma preparação para a exposição de Paulo.

6.2.2 Fé em Jesus Cristo / Fidelidade de Jesus Cristo


Considerando-se os capítulos 3 e 4 da Epístola aos Romanos, observa-se que por duas
vezes Paulo usa a expressão pistis Ieesou (Xristou). A expressão pode ser entendida ou
como um genitivo objetivo (fé em Jesus Cristo – a interpretação tradicional) ou como
um genitivo subjetivo/possessivo (fidelidade de Jesus Cristo). Há um longo debate a
respeito de qual tradução seria preferível. Qualquer que seja a melhor explicação, é
importante observar que o texto ainda tem uma referência específica à fé em Cristo
(eis pantas tous pisteuontas = para todos os que creem). Conforme a primeira explicação,
esta expressão seria uma repetição (ênfase); conforme a segunda, introduziria uma
nova ideia. Há bons argumentos para cada uma das explicações, mas se poderia
pensar na possibilidade de uma ambiguidade deliberada.
No versículo 26 a expressão pistis Ieesou parece ser melhor compreendida como
um genitivo objetivo (fé em Jesus). Se fosse de outra forma, poder-se-ia levantar
a questão de que algumas pessoas seriam “da fidelidade de Jesus” e outras não,
ou, dito de outra forma, que a fidelidade de Jesus valeria para alguns e não para
outros. Isso poderia contradizer o que Paulo havia dito há pouco, de não haver
distinção na maneira como Deus considera o homem (v. 22).
Sem discutir o mérito do debate com respeito à natureza do genitivo, uma conclusão
pode ser alcançada, considerando o uso enfático de fé/crer por Paulo no texto.

69
Idem, p.501.
70
Idem, p.496-8.
82

Paulo está considerando dois diferentes critérios para a questão da salvação do


ULBRA – Educação a Distância

pecador. Um deles é o campo das obras da lei; o outro é o domínio da fé. O critério
da lei, rejeitado por Paulo, coloca no próprio ser humano a capacidade de alcançar
a justiça de Deus. O critério da fé inclui a obra objetiva de Cristo, que é referida no
texto com linguagem do comércio e de sacrifício (ver adiante). Trata-se da fé como
a confiança do homem na obra salvífica de Deus em Cristo.
Outra questão que merece reflexão é o uso por Paulo do termo “fé” para mais de
um referente. Na maioria dos usos do termo, Paulo se refere à fé como confiança
em Cristo, ou seja, a fé que tem Cristo como objeto. Na linguagem teológica, tem
sido usada a expressão latina fides qua, que resume a expressão “fé que crê”. Outro
uso para pistis é a fé como o conteúdo do crer – a verdade sobre Cristo e sua obra.
Paulo usa o termo neste sentido, por exemplo, em Gálatas 1.23 (“agora anuncia
a fé que antes procurava destruir”. Neste caso, Paulo está usando o termo “fé”
como um sinônimo de “mensagem” ou, mais propriamente, de “evangelho”. A
expressão fides quae (fé que é crida) é usada para referir-se a este uso de pistis. O
fato é que Paulo sempre considera “fé” como vinculada a Cristo e sua obra. A fé tem
um objeto certo e específico. O uso moderno de fé como um sentimento positivo
dentro da pessoa está muito longe daquilo que Paulo entende pelo conceito. Fé
verdadeira, fé pela qual alguém é justificado (declarado justo) perante Deus, não é
uma fé qualquer, mas a fé no objeto certo, isto é, Jesus e sua obra salvadora.

6.2.3 Redenção
Como já foi observado acima, Paulo conecta o conceito de justificação ao de
redenção. Ele diz em Romanos 3.24: “sendo justificados como dádiva pela sua
graça, através da redenção, a [que está] em Cristo Jesus”.
“Redenção” traduz o termo grego Apolytroosis. Este termo se origina na linguagem
comercial – “comprar de volta um escravo ou cativo; libertá-lo pelo pagamento
de um resgate … libertação do pecado e da finitude que vem através de Cristo.
Redenção, absolvição”.71
Este termo e lytroosis são relativamente raros já desde o grego clássico72. Apolytroosis
é empregado na LXX apenas em Daniel 4.34, referindo-se a Nabucodonosor
sendo libertado de sua loucura. Lytroosis é mais frequente no Antigo Testamento,
traduzindo geulah = redenção (Lv 25.29,48 ; Is 63.4 ) ou, mais frequentemente,

71
BAUER, Walter. A Greek-English Lexicon of the New Testamentant. Other Early Christian Literature. 2.ed.
Traduzido e adaptado por William F. Arndt e F. Wilbur Gingrich. Chicago: University of Chicago
Press, 1979, p.96.
72
BROWN, Colin. Apolytroosis. O Novo Dicionário Internacional de Teologia do Novo Testamento, Colin
Brown, ed. IV, p.93.
83

pakhah = resgate, e outras palavras da mesma família (Sl 111.9 ; 130.7).73 Pode-se

ULBRA – Educação a Distância


observar que o que o Salmo atribui a Yahweh Paulo considera como sendo algo
que pertence a Jesus (Sl 130.7).
No ensino de Jesus, podem-se notar duas ocasiões quando sua morte é vista como
redenção, no sentido de um resgate. São as palavras de Mateus 20.28 (Mc 10.45) e
suas palavras na instituição da Santa Ceia. Guthrie74 (p.440-442, 476) argumentou
convincentemente que se pode observar uma ligação entre estas passagens e Isaías
53 (o Servo do Senhor, que pelo seu sofrimento, redime o povo).
Apolytroosis é o termo que Paulo usa (Rm 8.23; 1 Co 1.30; Ef 1.7,14; 4.30; Cl 1.14).
Algumas vezes ele é empregado num sentido escatológico (Rm 8.23; Ef 1.14; 4.30);
em outras passagens, refere-se a uma possessão presente (Rm 3.24; Cl 1.14; Ef
1.7; 1 Co 1.30). Nestes casos, é equiparado ao perdão dos pecados. No primeiro
sentido, no entanto, o perdão pode ser visto como sendo implícito. Conforme
Büchsel75, este conceito “está ligado de maneira estrita à pessoa de Jesus. Redenção
não pode ser considerada como um fato que Ele realmente estabeleceu, mas que
então tem sua vida e poder intrínsecos próprios, à parte de Sua pessoa, assim que
alguém poderia tê-la sem estar em comunhão pessoal com Ele. Dar à redenção esta
autonomia objetiva é separar-se de Paulo. Para ele somente há redenção dentro
da esfera da fé em Jesus.”
Pode-se questionar se no uso do termo pelo Novo Testamento há a ideia do
pagamento de um resgate, própria da etimologia da palavra. Büchsel76 entende
que o termo é usado pelo apóstolo como “o próprio ato de emancipação e o que
ele implica”. Por outro lado, Guthrie77 argumenta que pode ser observada uma
“alusão, indireta, mas certa, ao custo da libertação (isto é, o sangue), o que mostra
que a ideia de resgate está em mente”. Esta também é a sugestão de Ladd78, que
indica que o preço da redenção é frequentemente expresso no contexto, citando
Romanos 3.24 (graça) e Efésios 1.7 (sangue) como evidências. Isso pode ser visto
nas declarações de Paulo, assim como também é claro a partir do sistema sacrificial
do Antigo Testamento e nas palavras de Jesus na instituição da Santa Ceia.

6.2.4 Expiação/Propiciação
Em Romanos 3.25, Paulo diz que Deus mostrou publicamente (proetheto) Cristo
como propiciação (hilasteerion). Há apenas mais um lugar no Novo Testamento em

73
Idem, p.97.
74
GUTHRIE, op. cit., p.440-442, 476.
75
BÜCHSEL, F. Apolytroosis. Theological Dictionary of the New Testament. Gerhard Kittel, ed. Traduzido
por Geoffrey W. Bromiley. IV: 351-356. Grand Rapids: Eerdmans, 1967, p.354.
76
Idem, p.355.
77
GUTHRIE, op. cit., p.476.
78
LADD, George Eldon. A Theology of the New Testament. Grand Rapids: Eerdmans, 1988, p.433.
84

que este vocábulo é empregado, Hebreus 9.5, onde se refere ao propiciatório, ou


ULBRA – Educação a Distância

seja, a tampa colocada sobre a Arca da Aliança.


O termo hilasteerion é empregado pela LXX para traduzir o termo hebraico kaporeth,
onde a palavra é usada 22 vezes em referência ao propiciatório, a tampa sobre
a arca, e cinco vezes para uma das saliências do altar, assim como foi visto por
Ezequiel; ela tem sido entendida como “lugar de expiação” ou como “meio de
expiação”, mas de qualquer maneira está sempre ligada ao culto79. É usado em
Levítico 16.13-15, referindo-se ao “lugar de expiação”, de fato a tampa da Arca
da Aliança, sobre a qual o sangue de um touro e de bode eram aspergidos no Dia
da Expiação. Parece haver, no caso de Paulo, uma associação direta entre a obra
de Cristo e o que aconteceu no Dia da Expiação (cf. Lv 16). Chama a atenção que
linguagem sacrificial é usada aqui no mesmo contexto que linguagem originalmente
usada num contexto forense (justificação) ou comercial (redenção).
O conceito de propiciação no Antigo Testamento trata da realidade do pecado, da
ira de Deus e do perdão. Morris80 procura mostrar a particularidade dos sacrifícios
propiciatórios no Antigo Testamento:

Mas é importante notar que o remover desta ira não se deve ao oferecimento que o homem
faz a Deus … mas a Deus mesmo … não estamos lidando com a ideia pagã quando falamos
de propiciação. Uma passagem como Levítico 17.11 claramente indica a posição. Pode-se
considerar o culto como o meio de tirar a ira de Deus de sobre o pecador, pelo oferecimento
de um kopher; mas é assim não porque o Deus de Israel possa ser comprado, mas porque Ele
deu para o povo este meio de evitar a ira.

Voltamos à questão se hilasteerion refere-se mais propriamente ao lugar ou ao


meio de expiação. Como já foi observado, no Novo Testamento o termo é usado
em Romanos 3.25 e em Hebreus 9.5, onde se refere literalmente ao propiciatório.
A dúvida é se Paulo tem isso em mente quando usa o termo em Romanos 3.25.
Morris81 argumenta que,

mesmo sob premissas da LXX, hilasteerion sem o artigo não denota necessariamente o
propiciatório. A própria palavra significa ‘propiciatório’… pode denotar o kapporeth, mas isso
porque se referia a sua função, e não porque formava uma tradução exata do termo hebraico. … é
melhor considerar hilasteerion como denotando “meio de expiação” do que como um lugar.

Ladd82 sugere que, não importa qual seja o melhor referente, o fato é que, “pelo uso
da palavra, Paulo faz uma alusão direta à oferta pelo pecado que era apresentada
pelo sumo-sacerdote no grande Dia da Expiação”.

79
MORRIS, op. cit., p.159.
80
Idem, p.177.
81
Idem, 189, 191.
82
LADD, op. cit., p.425.
85

Pode-se perguntar ainda se o conceito de hilasteerion deve ser entendido em termos

ULBRA – Educação a Distância


de propiciação ou de expiação. A diferença entre os dois conceitos está em que
propiciação refere-se à relação entre Deus e homem (uma pessoa é propiciada),
enquanto que expiação refere-se ao fato, ato ou coisa83. Guthrie84 coloca a diferença
desta forma: “A expiação se refere aos pecados, e a propiciação, a Deus. Expiação é
um ato que permite a remoção das consequências do pecado, enquanto propiciação
é um ato que permite Deus receber o pecador”. Morris85 chama a atenção para o
contexto do uso do termo, que aponta para a ira de Deus contra a humanidade, e isso
favorece a ideia de propiciação. Franzmann86 argumenta a favor do entendimento
do termo como se referindo à propiciação. Ele lembra que o pecado não é apenas
algo que saiu errado com o homem, mas é o homem todo que se extraviou, o
homem rebelado contra seu Deus. (Sl 51.4). Este aspecto pessoal do pecado quase
não se nota em “expiação”.
Por outro lado, como lembra Guthrie (p.469), nada impede que ambas as ideias
estejam presentes – Deus foi propiciado e o pecado foi expiado pela oferta sacrificial
de Jesus, na sua morte.
A linguagem sacrificial de Paulo não é algo completamente novo, se considerada
em comparação com o ensino de Jesus a respeito do significado de sua morte.
Guthrie87 resume as evidências dos Evangelhos Sinóticos, a respeito da importância
da morte de Cristo, possibilitando que se afirme:
a) Jesus considerou sua morte como um ato voluntário;
b) a morte de Cristo foi vista como diretamente relacionada à remissão de
pecados;
c) Jesus reconheceu que sua morte seria vicária, no sentido de que ele estava
fazendo algo em lugar de outros;
d) a morte foi entendida como um sacrifício, com vínculos especiais com a nova
aliança; Sob alguns aspectos ela ratificou a nova aliança, assim como o sangue
sacrificial ratificava a antiga aliança;
e) Jesus considerou-se como um substituto no sentido de que lembrava e cumpria
o Servo sofredor de Isaías;
f) a paixão tem um aspecto escatológico. A morte foi considerada como um
prelúdio necessário para a realização plena do reino.

83
MORRIS, op. cit., p.201.
84
GUTHRIE, op. cit., p.468.
85
MORRIS, idem, p.200.
86
FRANZMANN, op. cit., p.57.
87
GUTHRIE, op. cit., p.447-8.
86

Conclusão
ULBRA – Educação a Distância

Neste capítulo procuramos demonstrar que Paulo é um teólogo bíblico coerente


em relação ao ensino do Antigo Testamento e do próprio Jesus. Podem-se observar
diversas conexões entre o ensino de Paulo a respeito da salvação e o Antigo
Testamento. Isso pode ser visto não apenas no uso direto que Paulo faz de passagens
do Antigo Testamento, mas também ao empregar conceitos teológicos, como a
justiça de Deus (que salva em vez de condenar o homem), redenção, propiciação,
fé e a imputação da justiça de Deus sobre o homem. Pode-se observar também que
a proclamação de Paulo a respeito da salvação está relacionada ao ensino de Jesus
a respeito de sua obra de salvação.
Considerando agora o tipo de linguagem que Paulo emprega, pode ser visto no
texto de Romanos 3;4 que ele emprega linguagem sacrificial no mesmo contexto
de linguagem forense e linguagem comercial. Considerar uma destas linguagens
como sendo paulina, negando isso às outras, seria contradizer o texto. É mais correto
dizer que Paulo empregou linguagem do Antigo Testamento e também linguagem
metafórica a partir de seu contexto, a fim de refletir de maneira muito rica sobre a
obra de Cristo para a salvação. Paulo é um erudito bíblico fiel, não se satisfazendo
simplesmente em citar a linguagem do Antigo Testamento e de Jesus. Ele usa o
pano de fundo de maneira criativa, sem deixar de ser fiel e coerente em relação ao
ensino do Antigo Testamento e de Jesus. Neste sentido, o apóstolo não é somente
mestre na doutrina da salvação, como também é um modelo de teólogo bíblico.

Atividades de autoestudo
1. Considere as seguintes alternativas, que tentam explicar como acontece a
justificação do pecador perante Deus, comentando aquela que melhor expressa
a forma de Paulo entender o tema: a) a pessoa se torna justa na medida em que
é fiel aos preceitos de Deus na sua santa lei; b) Deus transforma o pecador em
justo, de modo que a pessoa não peca mais; c) Deus declara justo aquele que
ainda é pecador e isso por causa da obra de Cristo, recebida pela fé.

2. Paulo utiliza o exemplo de Abraão em seu argumento, porque este:


a. é exemplo de boas obras que agradam a Deus.
b. por meio de sua vida justa e correta alcançou um lugar de destaque no
Reino de Deus.
c. escreveu os livros do Antigo Testamento onde o conceito de justificação
está presente.
d. sendo o “pai dos crentes”, ele próprio foi justificado diante de Deus
por meio da fé e não das obras.
e. foi o primeiro representante do povo de Deus a ser circuncidado.
87

3. Observe as frases abaixo, a respeito de “Propiciação”:

ULBRA – Educação a Distância


I. É um conceito nunca usado por Paulo, mas diversas vezes por Jesus e
Tiago.

II. Tem a ver com os sacrifícios de animais no Antigo Testamento e o


sacrifício de Cristo pelos pecados.

III. Este termo traduz hilasteerion, que está ligado ao termo hebraico para
a tampa da Arca da Aliança.

IV. No Antigo Testamento se referia à obras que as pessoas faziam para


conquistar o favor de Deus.

Estão corretas as afirmações:


a. Todas elas.

b. I e IV.

c. II e III.

d. II, III e IV.

e. Nenhuma alternativa correta.

Respostas
2.d; 3.c

Referências
BAUER, Walter. A Greek-English Lexicon of the New Testamentand Other Early Christian Literature.
2. ed. Traduzido e adaptado por William F. Arndt e F. Wilbur Gingrich. Chicago: University
of Chicago Press, 1979.
BROWN, Colin. Apolytroosis. O Novo Dicionário Internacional de Teologia do Novo Testamento,
Colin Brown, ed., v.II, tradução de Gordon Chown. Sãso Pauo: Vida Nova, 2000.
BÜCHSEL, F. Apolytroosis. Theological Dictionary of the New Testament. Gerhard Kittel, ed.
Traduzido por Geoffrey W. Bromiley, IV: 351-356. Grand Rapids: Eerdmans, 1967.
FRANZMANN, Martin H. Carta aos Romanos. Traduzido por Mário Rehfeldt e Gládis K.
Rehfeldt. Porto Alegre: Concórdia, 1972.
GATHERCOLE, Simon J. Where is Boasting? Early Jewish Soteriology and Paul’s Response in
Romans 1-5. Grand Rapids: Eerdmans, 2002.
GUTHRIE, Donald. New Testament Theology. Downers Grove: Inter-Varsity Press, 1981.
88

LADD, George Eldon. A Theology of the New Testament. Grand Rapids: Eerdmans, 1988.
ULBRA – Educação a Distância

MCGRAWTH, A. E. “Justification.” In: Dictionary of Paul and His Letters. Ed. por Gerald F.
Hawthorne e Ralph P. Martin. Leicester: Inter-Varsity Press, 1993.
MORRIS, Leon. The Apostolic Preaching of the Cross. 3rd edition. Grand Rapids: Eerdmans,
1988.
NYGREN, Anders. Commentary on Romans. Philadelphia: Fortress Press, 1988.
POLLARD, Paul. “The ‘Faith of Christ’ in Current Discussion.” In: Concordia Journal, 23/3
[Julho de 1997]: 213-228.
WRIGHT, N. T. What Saint Paul Really Said. Was Paul of Tarsus the Real Founder of Christianity?
Grand Rapids: Eerdmans, 1997.
7
A NOVA PERSPECTIVA SOBRE
O APÓSTOLO PAULO

Vilson Scholz

Introdução
A nova perspectiva sobre Paulo é, como o próprio título diz, um estudo nas cartas de
Paulo. Isso já indica, de saída, que não será fácil ou não é ponto pacífico. Afinal, na
segunda carta de Pedro já existe um parecer que se confirma sempre de novo: “Nas
cartas dele [de Paulo] há algumas coisas difíceis de entender, que os ignorantes e
os fracos na fé explicam de maneira errada” (2 Pe 3.16, NTLH). Como será visto ao
longo deste estudo, não há unanimidade quanto ao que se quer dizer, exatamente,
ao se usar a expressão “a nova perspectiva sobre Paulo”.
Em seu livro intitulado Teologia de Paulo, James Dunn, um dos expoentes dessa nova
perspectiva, toca no assunto dentro do capítulo da “justificação pela fé”. Isso por
si só já sugere que a nova perspectiva mexe com textos fundamentais das cartas de
Paulo. Um exemplo é Gálatas 2.15-16: “Nós, judeus por natureza e não pecadores
dentre os gentios, sabendo, contudo, que o homem não é justificado por obras da
lei, e sim mediante a fé em Cristo Jesus, também temos crido em Cristo Jesus, para
que fôssemos justificados pela fé em Cristo e não por obras da lei, pois, por obras
da lei, ninguém será justificado”. Segundo Dunn, em um de seus muitos artigos e
ensaios, neste texto Paulo começou a formular a questão da justificação. Ele o teria
feito “ao correr da pena”, ou seja, na medida em que ia escrevendo, buscando a
melhor formulação. Seja como for, nesse texto de Gálatas aparecem os termos que
entram em discussão nessa nova perspectiva: judeus e gentios, justificação, fé e
obras da lei. São, com certeza, temas centrais da teologia paulina e, por que não
dizer, de toda a fé cristã. Por isso vale a pena procurar entender do que se trata e
como se pode avaliar essa “nova perspectiva sobre Paulo”.
90

7.1 E. P. Sanders
ULBRA – Educação a Distância

A rigor, o termo “nova perspectiva” foi cunhado por James Dunn, num escrito de
1982. Mas essa nova perspectiva, como o próprio Dunn reconhece, só foi possível a
partir de um livro de Ed Parish Sanders, ou, como ele costuma assinar, E. P. Sanders.
O livro, de 627 páginas, se intitula “Paul and Palestinian Judaism: A Comparison
of Patterns of Religion” e foi publicado em 1977.
Esse livro de Sanders nunca foi traduzido para o português. (Outra obra de
Sanders, mais breve, intitulada “Paulo, a Lei e o Povo Judeu”, existe em tradução
portuguesa.) É feito de duas partes, começando de trás para frente (em termos do
título anunciado): judaísmo palestino e Paulo. O leitor poderia esperar três partes:
judaísmo palestino, Paulo, e Paulo e o judaísmo palestino. No entanto, essa terceira
parte, a comparação, aparece apenas brevemente, na conclusão.
No Prefácio, Sanders apresenta seus objetivos, relacionados com o judaísmo
palestino e Paulo. O que chama a atenção é o que ele pretende em relação ao
judaísmo palestino ou rabínico: “Destruir a visão de judaísmo rabínico, que
ainda é comum em grande parte, ou talvez na maior parte, das obras acadêmicas
relacionadas com o Novo Testamento, e criar uma visão diferente do judaísmo
rabínico”.
Convém esclarecer que, no tempo do Novo Testamento, havia, por assim dizer,
dois tipos de judaísmo: o palestino e o helenista (da diáspora). Paulo era um judeu
helenista. No entanto, a nova perspectiva não trabalha com esse suposto contraste
entre diferentes tipos de judaísmo; o que interessa, como Sanders indicou, é a visão
do judaísmo daquele tempo que se tem (ou tinha) em círculos cristãos. Ao falar
sobre “judaísmo palestino” ou “judaísmo rabínico”, Sanders e outros têm em vista o
judaísmo que acabou sobrevivendo à destruição do Templo em 70 d.C. Em seu livro,
Sanders se ocupa de modo especial com os escritos rabínicos dos dois primeiros
séculos da era cristã, especialmente os rabinos que viveram entre a revolta de Bar
Kochba (135 d.C.) e o surgimento da Mixná, por volta de 200 d.C.

7.2 A velha perspectiva


Sanders faz um breve histórico de como os teólogos cristãos interpretaram o
judaísmo rabínico. Afirma que até o século XVIII a literatura cristã procurava, acima
de tudo, mostrar a concordância entre os pontos de vista judaicos e a teologia cristã! A
intenção era mostrar que as afirmações dos próprios judeus – sobre intermediários
como memra ou lógos – confirmavam a verdade das doutrinas cristãs. Em outras
palavras, o objetivo era convencer os judeus a partir do que eles próprios haviam
dito ou escrito.
91

Isso começou a mudar, segundo Sanders, em 1880, com um livro escrito por

ULBRA – Educação a Distância


Ferdinand Weber. Um dos editores desse livro foi o renomado Franz Delitzsch.
Nesse livro, Weber afirmou que o judaísmo é a antítese do cristianismo. O judaísmo
era uma religião legalista, em que Deus se encontra longe e é inacessível. Essa
tese foi aceita por Wilhelm Bousset (em 1903), que a repassou a seu aluno Rudolf
Bultmann, que a espalhou pelo mundo.
Outro que aceitou a tese de Ferdinand Weber foi Paul Billerbeck, em sua obra
Kommentar zum Neuen Testament aus Talmud und Midrash (Comentário sobre o
Novo Testamento a partir do Talmude e do Midrash), publicada em 1928. Essa
obra se tornou muito influente, apesar de nunca ter sido traduzida, nem mesmo
ao inglês. Billerbeck compilou um grande número de “paralelos” a textos do Novo
Testamento tirados da literatura rabínica. Segundo Sanders, quem fazia uso de
Billerbeck nem se dava conta de que estava citando determinada leitura desses
textos, a saber, a leitura do próprio Billerbeck (e de Weber, que foi antecessor
dele). Sanders escreve:88 “Ao se referirem a Billerbeck, muitos eruditos do Novo
Testamento pensam que estão apelando diretamente às fontes, sem se dar conta de
que estão apenas se referindo à opinião de um erudito”. (O mesmo deverá valer,
como se verá adiante, no caso de quem cita o livro de Sanders!)
Billerbeck fez um resumo disso que, à luz de Sanders, pode ser chamado de “a
velha perspectiva sobre o judaísmo rabínico”. O próprio Billerbeck denomina isso
de “o sistema soteriológico da antiga sinagoga”. Sanders transcreve esse resumo
de Billerbeck. Diz assim: “Deus entregou a Israel a Tora para que os israelitas
tivessem a oportunidade de conquistar mérito e recompensa. As pessoas têm a
capacidade de escolher o bem, e todo o sistema da ‘soteriologia farisaica’ depende da
possibilidade que a pessoa tem de cumprir a lei. Cada vez que um israelita cumpre
um mandamento ele ganha um mérito (zekut), ao passo que cada transgressão
representa uma dívida ou culpa (hobah). Deus faz um registro tanto dos méritos
quanto das dívidas. Quando os méritos são a maioria, o homem é considerado
justo, mas quando as transgressões são mais numerosas do que os méritos ele é
considerado iníquo (rasha’). Se existe equilíbrio, ele se encontra numa situação
intermediária. O homem nunca sabe como está a sua conta diante de Deus, o que
faz com que não tenha segurança neste mundo. O balanço da conta desse homem
pode mudar a qualquer momento. No fim, seu destino último é decidido com base
naquela conta. Quem tem mais cumprimentos do que transgressões vai para o Gan
Eden; quem tem mais transgressões vai para o Gehinnom; e no caso daquele que
se encontra numa situação intermediária, Deus tira uma transgressão da conta,
para que os cumprimentos tenham mais peso do que as transgressões. Assim, o
homem tem que se esforçar para que os cumprimentos sejam mais pesados ou

88
SANDERS, E. P. Paulo – A Lei e o povo judeu. São Paulo: Paulus, 1990, p.42.
92

numerosos do que as suas transgressões. Há duas maneiras de se conseguir isso.


ULBRA – Educação a Distância

Uma delas é a atividade positiva de amontoar cumprimentos da lei, suplementada


por ‘boas obras’ (ou seja, boas ações que não estão estritamente ordenadas na lei).
Além disso, pode apelar para os méritos dos pais, para suplementar sua conta de
méritos. Em segundo lugar, pode-se reduzir o número de transgressões por meio
de atos de expiação, que cancelam pecados e, consequentemente, algumas das
dívidas ou culpas”89.
Segundo Sanders, existe (existia) um grande grupo de eruditos, em grande parte
de luteranos da Alemanha, que está (ou, estava) disposto a aceitar essa descrição
do judaísmo rabínico como o ponto de vista padrão. Muitos artigos do dicionário
teológico de Kittel (o Theological Dictionary of the New Testament, ou TDNT)
incorporam elementos desse modelo de Weber, dando-lhe um status especial, por
se encontrarem num dicionário de renome. [Certamente, é por isso que essa leitura
do judaísmo (e a correspondente resposta de Paulo) é chamada de “visão luterana”.]
Sanders conclui que esse judaísmo supostamente legalista equivale a “atribuir
ao judaísmo aquilo que os protestantes consideram a coisa mais questionável no
catolicismo romano, a saber, a existência de um tesouro de méritos estabelecido
por obras supererrogatórias”.90
Num livro escrito em 1949, intitulado Cristianismo primitivo em seu contexto
contemporâneo, Bultmann tem um capítulo sobre “legalismo judaico”. Nesse
capítulo, interpreta o judaísmo do período do intertestamento como uma
tentativa fracassada de fugir da realidade histórica. Entendia Bultmann que, na
visão do judaísmo, a atividade redentora de Deus estava confinada ao passado
escriturístico ou ao futuro fantástico dos apocalípticos. No presente, “a nação
vivia fora da história” e em “extraordinário isolamento” do mundo exterior.91 Os
ritos se tornaram mais importantes do que a moralidade, assim que os judeus “se
esqueceram de suas responsabilidades sociais e culturais”92. A lei tinha que ser
obedecida cegamente, mesmo quando seus preceitos se haviam tornado obsoletos
e sem significado, devido à mudança da situação histórica. Não se fez nenhuma
tentativa de determinar o princípio unificador da lei. É claro que a lei não era vista
como um peso por aqueles que estavam familiarizados com ela desde a infância.
No entanto, ainda assim a moralidade judaica se tornou casuística e legalista. Até
mesmo o arrependimento “se tornou uma boa obra que obtinha mérito e graça
diante de Deus. No final das contas, todo o âmbito do relacionamento do homem
com Deus passou a ser visto em termos de mérito, incluindo até mesmo a fé”93. Fica
claro que Bultmann não gosta do que descreve. Entretanto, sua descrição se baseia

89
Idem, p.42-43.
90
Idem, p.57.
91
Idem, p.60.
92
Idem, p.62.
93
Idem, p.71.
93

em textos rabínicos mal compreendidos que são de um período posterior, incluídos

ULBRA – Educação a Distância


no comentário de Billerbeck. Bultmann não se interessou em reexaminar os textos
rabínicos, o que certamente não é uma postura científica recomendável.

7.3 O contexto cultural da nova perspectiva


Segundo Dunn, em sua Teologia de Paulo, a “justificação pela fé” foi o tema que
ocupou o centro da teologia no século XX, em grande parte por influência de
Rudolf Bultmann e Ernst Käsemann. (Para este, a justificação era o “cânone dentro
do cânone”.) O ensino paulino sobre justificação era visto como uma reação contra
o judaísmo. O pano de fundo escuro sobre o qual era projetada a luz da teologia
paulina era o judaísmo. Dois acontecimentos, no entanto, contribuíram para uma
mudança de atitude: o assim chamado holocausto, perpetrado pelos nazistas, e o
concílio Vaticano II, no começo da década de 1960. Na era pós-Vaticano II, afirma
Dunn, o velho debate entre protestantes e católicos não mais podia ser repetido
em sua forma tradicional. Do mesmo modo, a teologia do pós-Holocausto não
mais podia engolir a representação sombria (denigration) do judaísmo histórico. Foi
nesse contexto que Sanders se propôs a mostrar que o judaísmo sempre havia sido
antes de tudo e em primeiro lugar uma religião da graça, sendo que a obediência
humana era vista como resposta a essa graça.

7.4 O judaísmo palestino segundo Sanders


Sanders não foi o primeiro a levantar a sua voz contra esse estereótipo ou essa
visão preconceituosa do judaísmo rabínico. Já no início do século XX, George Foote
Moore e Claude Montefiore entenderam que o judaísmo não foi legalista e que a
conclusão de que ele era resultava de uma distorção das fontes judaicas. Por mais
eruditos e notáveis que fossem esses estudiosos, seus estudos não tiveram maior
impacto sobre a pesquisa em Novo Testamento. A visão tradicional do judaísmo
como legalista continuou tendo supremacia no pensamento teológico.
Em seu livro de 1977, Sanders examinou em especial os documentos encontrados
na região do mar Morto e os assim chamados apócrifos e pseudepígrafes (Siraque,
1 Enoque, Jubileus, Salmos de Salomão e 4 Esdras). Chegou à conclusão de que
existe continuidade entre a religião dos tempos bíblicos (o Antigo Testamento) e
os tempos pós-bíblicos. Reconheceu que a maior parte da literatura rabínica do
período que ele se dispôs a examinar (segundo século d.C.) consistia em material
haláquico ou legal, no sentido de que os rabinos se preocupavam com a aplicação
de um mandamento (o do sábado, por exemplo). Isso parece preocupação com
detalhes irrelevantes, mas, segundo Sanders, reflete o fato de que nas questões
maiores havia consenso. O que levava os rabinos a fazerem esse exame minucioso
da lei? Acontece que, na opinião deles, Israel tinha um relacionamento especial
94

com Deus, resultante do fato de que Deus havia escolhido Israel. Deus havia agido
ULBRA – Educação a Distância

a favor deles e os israelitas aceitaram seu domínio (o jugo da Torá). Aprouve a


Deus dar mandamentos a seu povo, e o cumprimento desses mandamentos é o
ato religioso característico do israelita: é a sua maneira de responder ao Deus que
o escolheu e redimiu. O israelita deve cumprir o que lhe foi ordenado; ele não
questiona se Deus está cumprindo a sua parte, como rei, juiz e redentor. Raramente
se discute, na literatura rabínica, o papel de Deus dentro da aliança. Dentro da
aliança, a obediência é recompensada e a desobediência é punida. Em caso de
descumprimento, o homem pode se valer dos meios divinamente ordenados para
fazer expiação, sendo que em tudo isso se requer arrependimento. Enquanto o
homem continua com o desejo de permanecer dentro da aliança, ele participa
das promessas divinas ligadas à aliança, inclusive a vida no mundo vindouro. A
intenção e o esforço para obedecer são a condição para permanecer na aliança, mas
essa intenção e esse esforço não merecem a entrada na aliança. Em outras palavras,
a obediência à lei não é necessária para obter o status de membro da aliança, mas
para manter tal status.
Sanders denomina esse tipo de religião de “nomismo da aliança”. O “padrão” ou a
“estrutura” desse nomismo da aliança é este94: (1) Deus escolheu Israel e (2) lhe deu
a lei. A lei implica duas coisas: (3) a promessa divina de manter de pé a eleição e (4)
a exigência de que Israel seja obediente. (5) Deus recompensa a obediência e pune
a transgressão. (6) A lei provê meios de expiação, e a expiação (atonement) resulta
(7) na manutenção ou no restabelecimento da relação de aliança. (8) Todos os que
são mantidos na aliança por meio de obediência, expiação e pela misericórdia de
Deus pertencem ao grupo que será salvo. Tanto o ponto 1 (eleição) quanto o ponto
8 (salvação final) são considerados atos da misericórdia de Deus, e não fruto de
conquista humana.
Segundo Sanders, esse tipo de “nomismo da aliança” era comum em todas as
regiões da Palestina, no período antes de 70 d.C. Era, portanto, o tipo fundamental
de religião que Jesus conheceu e que, supostamente, também Paulo conheceu.
É claro que, por mais que queira, Sanders não consegue ser mais objetivo do que
todos os outros que já se debruçaram sobre a literatura rabínica. Em outras palavras,
também Sanders tem a sua subjetividade. E embora exista um grande consenso de
que a análise de Sanders está fundamentalmente correta, também existem aqueles
que questionam se ele levou em conta toda a evidência. Não cabe entrar nos detalhes
disso agora, mas fica o registro de que pesquisadores já apontaram para o fato de
que nos textos encontrados na região do mar Morto (Qumran) existe um tema que
aparece sempre de novo: o desejo de cumprir a lei em todos os seus detalhes. Há

94
SANDERS, E. P. Paul and Palestinian Judaism: A Comparison of Patterns of Religion. Minneapolis: Fortres
Press, 1977, p.422.
95

textos que dizem claramente que Deus julgará os atos humanos com todo o rigor.

ULBRA – Educação a Distância


E um texto de Qumran (4QPs 8.4-5) diz: “O homem é examinado dessa forma,
cada um é recompensado pelos seus atos”.
Partindo do pressuposto de que a análise de Sanders está correta, não será necessário
grande esforço mental para perceber que a crítica de Jesus em relação aos fariseus
parece exagerada. E Paulo parece estar confrontando um judaísmo de outro tipo.
Aliás, segundo Dunn, o Paulo “protestante” sempre havia sido um enigma para
eruditos judeus que tentaram levar Paulo a sério, gente como Schoeps, Sandmel e
outros. A solução que eles encontraram foi que Paulo devia estar reagindo contra
uma forma de judaísmo do qual nada restou ou sobreviveu.
Por outro lado, em relação à descrição que Sanders faz do judaísmo, é preciso levar
em conta que se trata, como no caso das demais descrições, de um quadro extraído
da literatura daquele tempo que chegou até nós. Raramente ocorre aos eruditos
que poderia, de fato, ter havido um judaísmo prático que – conforme a suspeita
dos eruditos judeus citados no parágrafo anterior – poderia ter sido diferente desse
judaísmo que aparece nos textos. Também se poderia argumentar que, por mais
que fosse um convertido ao cristianismo, Paulo certamente tinha um conhecimento
mais adequado do judaísmo do seu tempo do que qualquer reconstrução moderna é
capaz de obter. Aliás, C. K. Barrett fez o seguinte comentário a respeito de Sanders:
“Ele é um homem presunçoso que supõe compreender o judaísmo do primeiro
século melhor do que Paulo” (citado por Donald A. Hagner, “Paulo e o judaísmo”,
em Stuhlmacher, Lei e Graça em Paulo, p.111). Porém, a grande crítica que alguns
fazem a Sanders é que, mesmo que no início e no final do “processo” apareça a
graça de Deus, o esforço que se requer do homem para permanecer dentro da
aliança certamente pode ser descrito como um procedimento legalista.

7.5 Paulo segundo E. P. Sanders


Sanders não ficou famoso por sua leitura ou releitura de Paulo, e sim por sua
releitura do judaísmo rabínico. A leitura que Sanders faz de Paulo é dependente de
Albert Schweitzer (e aqueles que o antecederam nesse ponto de vista), na medida
em que coloca no centro, não a justificação pela fé, mas a participação e união com
Cristo (a célebre locução “en Christô”). Esse pensamento de Paulo é caracterizado
por Sanders como “escatologia de participação”, ou seja, participação em Cristo
nos tempos do fim. Quanto à postura de Paulo diante da lei, Sanders entende que
Paulo não transita do problema para a solução, mas da solução para o problema. Em
outras palavras, não é porque a lei é inadequada que precisa existir outro caminho,
mas porque existe outro caminho (Cristo) é que a lei se mostra inadequada. Este,
diga-se de passagem, é o movimento que se deduz de uma leitura cuidadosa de
Filipenses 3, por exemplo. Seguir a lei é errado, segundo Sanders, não porque se
quer seguir a lei, mas porque, ao fazer isso, a pessoa não busca a justiça que é dada
96

por Deus com a vinda de Cristo (Rm 10.2-4). A conclusão de Sanders é esta: o que
ULBRA – Educação a Distância

Paulo vê de errado no judaísmo é que “o judaísmo não é o cristianismo”95.

7.5.1 A nova perspectiva sobre Paulo


Essa nova perspectiva sobre Paulo acabaria resultando do trabalho de outros
teólogos, que tomaram como ponto de partida a reconstrução do judaísmo dos
primeiros séculos feita por E. P. Sanders. Se Paulo não combate um judaísmo
legalista, com o que ele polemiza então? Se “obras da lei” não são obras feitas para
merecer a salvação, que “obras” são essas? Ou Paulo não entendeu seus oponentes
(ou, tratou de representá-los de forma equivocada, o que seria pior) ou os exegetas
terão que encontrar outros adversários que Paulo estaria criticando. Há uma terceira
alternativa: os intérpretes de Paulo, denominados pejorativamente de “luteranos”,
fizeram uma leitura equivocada dos textos paulinos. Esta é a conclusão a que
chegaram os defensores da nova perspectiva. Assim, faz-se necessária uma releitura
de Paulo, uma “nova perspectiva sobre Paulo”. Entre os teólogos que fizeram essa
releitura de Paulo estão principalmente James Dunn e N. T. Wright.
Como se sabe, sempre é mais fácil desconstruir do que construir. Ou seja, é mais
fácil dizer que a leitura que tradicionalmente se fazia de Paulo é equivocada do
que propor uma alternativa mais adequada. Também não é fácil sintetizar o que
vários autores disseram e ainda dizem sobre o assunto. Mas, levando-se em conta
o pensamento de Dunn e Wright, a nova perspectiva é basicamente esta: o ponto
de vista tradicional colocava a justificação do indivíduo no centro da teologia de
Paulo; na nova perspectiva, Deus e o indivíduo dão lugar a dois grupos étnicos,
os judeus e os gentios. Paulo não promove uma polêmica contra o legalismo ou a
justiça das obras, mas contra o exclusivismo dos judeus, na medida em que isso
impedia os gentios de terem acesso à salvação. O problema dos judeus do tempo
de Paulo não era ativismo (no sentido de “justificação por obras”), mas nacionalismo
(ou etnocentrismo); era exclusivismo, e não legalismo.
Segundo essa releitura de Paulo, “fé” representa uma compreensão inclusiva do
povo de Deus, na medida em que inclui os gentios que não guardam a lei. “Obras”,
por sua vez, representa uma compreensão exclusiva do povo de Deus, segundo a
qual um pré-requisito para a salvação é a conversão plena às práticas do judaísmo,
ou seja, as “obras da lei”. Nessa perspectiva, as “obras da lei” não são ações feitas
para granjear méritos diante de Deus, mas ações que servem para demarcar o
território, definindo quem é judeu (e membro da aliança) e quem não é. Essas
“obras da lei” seriam basicamente a circuncisão e a observância do sábado, além
das regras alimentares do puro e impuro.

95
Idem, p.552.
97

O que decorre dessa visão de Dunn e Wright é que “justificação” deixa de ter

ULBRA – Educação a Distância


uma dimensão vertical para ter uma dimensão horizontal. Em outras palavras,
a justificação sai do capítulo da soteriologia e entra no capítulo da eclesiologia.
A terminologia (boundary markers ou marcos de fronteira, por exemplo) passa
a ser derivada das ciências sociais, e não mais da teologia, por se entender
que a metodologia sociocientífica é mais apropriada do que a teológica. Não
necessariamente.

7.6 Como responder a isso tudo


Numa palestra proferida em 2001, que não foi publicada, o teólogo britânico Francis
Watson faz uma rigorosa análise dessa nova perspectiva. O título da palestra é “Não
a nova perspectiva”. (Ele havia considerado a possibilidade de dizer: “Para além
da nova perspectiva”, mas preferiu dizer aquele “não”.) Além de Watson, vários
outros levantam sérios questionamentos em relação à nova perspectiva. Um deles é
Thomas Schreiner, num artigo publicado no Concordia Journal de 2009, p.140-155. O
título do artigo é “Uma perspectiva antiga sobre a nova perspectiva”. No que segue,
faremos o registro de alguns dos temas levantados por Schreiner e Watson.
É interessante ouvir o que Watson tem a dizer, pois inicialmente ele era defensor da
nova perspectiva. Watson chama a atenção para uma interessante manobra exegética
feita pelos defensores da nova perspectiva. Ela é feita de três passos. Primeiro: nota-
se que um texto paulino parece contrastar o evangelho com uma compreensão
judaica ou judaico-cristã da lei. Paulo acentua a graça em contraposição à lei, fé
em vez de obras. Segundo: sabemos que o ensino dessas antíteses paulinas não
pode ser o contraste entre a ênfase do evangelho na ação divina e a ênfase judaica
na ação humana. Se pensamos que isso é assim, ainda estamos presos ao modo
antigo de ver as coisas, ou seja, somos cativos da ideologia da Reforma. Sabemos
que tal antítese não aparece nos textos paulinos porque E. P. Sanders nos ensinou
que o judaísmo era e é uma religião da graça. Terceiro: precisamos entender essa
antítese paulina de forma diferente, como uma afirmação “eclesiológica” a respeito
do caráter do povo de Deus.
Em resposta, pode-se dizer que Paulo de fato se preocupa com o alcance da ação
salvadora de Deus em Cristo. Deus não é Deus apenas dos judeus, mas também
dos gentios. A proclamação da justiça pela fé se dirige a ambos (Rm 3.29-30).
Ressuscitado dentre os mortos, Jesus foi entronizado como Senhor de todos, judeus
e gentios, assim que todo aquele que invocar o seu nome será salvo (Rm 10.6-13).
Entretanto, o que Paulo tem a dizer sobre o alcance da salvação não esgota o que
ele tem a dizer sobre o seu conteúdo. Paulo não se limita a dizer que, em Cristo,
Deus inclui os gentios no âmbito do povo da aliança. Ele fala do que Deus fez em
Jesus, seu Filho, entregando-o por todos nós e ressuscitando-o dentre os mortos.
Isso não é apenas a ampliação do foco, mas o estabelecimento de uma nova base
98

para o relacionamento entre Deus e os homens. Para tanto, Paulo se baseia no que
ULBRA – Educação a Distância

as Escrituras dizem. Ele apela para a promessa feita a Abraão, uma promessa com
alcance universal que agora se cumpriu em Jesus.
No fundo, trata-se da velha questão de termos uma Palavra de Deus que se opõe à
outra, ou seja, do evangelho que se contrapõe à lei. Por um lado, Deus se compromete
de forma incondicional a salvar todos em seu amor. Por outro lado, a lei propõe
algo diferente: a salvação está condicionada ao cumprimento dos mandamentos.
Quem os observa é que viverá (Lv 18.5 e todo o livro de Deuteronômio). Como
reconciliar Gênesis 12 e Deuteronômio? Segundo Paulo, a própria lei declara que
o projeto que ela apresenta é um beco sem saída. Ela ensina que quem pratica os
mandamentos viverá por meio deles, mas ao mesmo tempo ensina que essa busca
acabará em fracasso, levando à aplicação da maldição que a lei proclama contra
os transgressores (Gl 3.10-11 e Rm 3.9-20, 7.7-12). A lei deixa tudo entregue ao
ser humano, oferecendo a opção de vida ou morte, bênção ou maldição. Mas ela
também reconhece que, por causa do pecado, o resultado fatalmente será maldição
e morte, e não bênção e vida. Assim sendo, a lei confirma o anúncio do evangelho
de que, em Cristo, Deus assumiu total responsabilidade pelo destino e salvação
do ser humano. Portanto, permanece de pé a polaridade lei-evangelho, que Lutero
de forma tão clara percebeu nos textos paulinos.
Outro ponto ressaltado por Francis Watson é que Sanders não se deu conta de
que, na literatura judaica daquele tempo, a lei e a aliança são inseparáveis. Não
existe um ato divino de eleição divina anterior à entrega da lei no monte Sinai. As
duas coisas ocorrem juntas, eleição de Israel e outorga da lei, no Sinai. A lei é ao
mesmo tempo dom e tarefa, a promessa “eu serei o teu Deus” e a exigência “vós
sereis o meu povo”. A base do relacionamento entre Deus e Israel é a Tora, e tudo
que veio antes do acontecimento no Sinai é incorporado de forma retrospectiva
naquele acontecimento de outorga da lei.
Quem faz a distinção entre aliança ou promessa e lei é Paulo (veja Gl 3.17). Paulo
contrapõe a aliança com Abraão com a entrega da lei, que ocorreu 430 anos depois.
Nada disso ocorre nos textos judaicos. Segundo eles, os patriarcas Abraão, Isaque
e Jacó, muito mais que habitar numa zona “sem lei”, ou seja, muito mais que
viver unicamente da promessa, têm o seu relacionamento com Deus determinado
antecipadamente pela Tora. Eles cumpriram a lei de forma antecipada (antes de
ela ser dada) e de forma exemplar. Na mentalidade judaica daquele tempo, era
inconcebível que Deus pudesse ter eleito Israel em outro momento que não fosse
no Sinai. Obedecer à lei se torna, assim, um aspecto fundamental da aliança.
Outro aspecto lembrado por Francis Watson é que Sanders não conseguiu eliminar
por completo a ideia de que a ação salvadora de Deus depende da fiel (embora
imperfeita) observância da lei. Esse ponto de vista pode não aparecer em todos os
textos, mas é bastante comum. Se ao menos para alguns judeus a observância da lei
99

era uma espécie de pré-requisito para a ação salvadora de Deus, não há como dizer

ULBRA – Educação a Distância


que Paulo não pudesse ter contraposto a proclamação do evangelho (que dá uma
prioridade radical à ação de Deus) a essa ênfase na ação humana. Nada impede
que Paulo tivesse dito que o que justifica é a fé que reconhece a ação salvadora
de Deus, e não as ações humanas que podem ser descritas como “obras da lei”.
Thomas Schreiner como que complementa este ponto, dizendo que, ao se examinar
os escritos paulinos, há claros indícios de que ele combateu, sim, uma forma de
legalismo, que é esse ponto de vista de que o correto relacionamento com Deus se
baseia em obras, possibilitando ao homem que se glorie delas (Rm 3.21-26).
Schreiner enfatiza que os defensores da nova perspectiva apontam para a inclusão
dos gentios, apresentada em Rm 3.29-30, como evidência de que o problema era
a inclusão dos gentios, e não o legalismo. Segundo Schreiner, essa argumentação
propõe uma falsa alternativa. Paulo faz as duas coisas. Ele está preocupado com
a inclusão dos gentios (Rm 4.9-12), mas ao mesmo tempo enfatiza que eles são
incluídos pela fé, e não por obras. A salvação é oferecida e dada a todos sem
distinção, tanto a judeus como a gentios, pela fé em Cristo Jesus (Rm 1.16; 2.6-11;
3.9, 22-23, 29-30; 4.9-12, 16; Gl 3.7-9, 14; Ef 2.11-22).
A isso se pode acrescentar que, se os defensores da nova perspectiva estiverem
certos, Paulo foi antes de tudo e em primeiro lugar um defensor da causa dos gentios.
Para incluí-los no povo da aliança, teria como que desenvolvido a “doutrina” da
justificação pela fé. Mas é possível fazer a argumentação contrária, que parece mais
coerente com as cartas paulinas: ao “se dar conta” de que a promessa foi feita a
Abraão quando ele ainda era “ímpio” e que a promessa se dirigia a todos os povos,
pela fé, Paulo “tirou a conclusão lógica” de que, na medida em que Deus era um
(podendo, portanto, ter apenas um plano e não dois), essa justificação pela fé teria
que ser estendida aos gentios. Como escreveu J. Gresham Machen: “Paulo não se
dedicava à doutrina da justificação pela fé por causa da missão aos gentios; ele se
dedicava à missão aos gentios por causa da doutrina da justificação pela fé”96.
Por fim, ao criticar os judeus por confiarem na justiça própria, Paulo estava julgando
o seu próprio passado. Sua atitude não é antijudaica, pois essa inclinação a confiar
em si ou nas próprias obras não é um problema típico e exclusivo dos judeus, mas
um problema do ser humano em geral. Prova disso é que, em suas advertências,
Paulo se dirige também aos gentios.
Em síntese, pode-se dizer que o conceito de “nomismo da aliança”, apresentado por
E. P. Sanders, é demasiadamente simplista. Além disso, existe uma clara polêmica
contra uma forma de legalismo ou mau uso da lei nas cartas de Paulo à qual ele
propõe a proclamação de que Deus nos aceita em Cristo, pela fé, sem mérito de
nossa parte, unicamente por causa do seu amor.

96
HAGNER, Donald. The New Testament – A Historical and Theological Introduction, p.113.
100

Atividades de autoestudo
ULBRA – Educação a Distância

1. Disserte sobre a “nova perspectiva sobre Paulo”, apontando as implicações


em relação à perspectiva tradicional popularizada pelos reformadores.

2. Acerca da “nova perspectiva em Paulo” e do pensamento de seus proponentes,


é correto afirmar:
a. O termo foi cunhado por James Dunn e mexe com textos fundamentais
das cartas de Paulo.
b. Trata-se de uma visão preconceituosa enxergar o judaísmo rabínico
como uma religião legalista.
c. A justificação pela fé não é tema central em Paulo, mas ganha melhor
formulação à medida que o apóstolo vai escrevendo suas cartas.
d. Surge num contexto pós-Guerra e pós-Vaticano II que busca uma
releitura do debate entre protestantes e católicos e das representações
do judaísmo histórico.
e. Todas as alternativas acima estão corretas.

3. Assinale a alternativa que questiona a integridade da “nova perspectiva sobre


Paulo”.
a. Em seus estudos, Sanders não conseguiu eliminar por completo a ideia
de que a ação salvadora de Deus depende da fiel observância da lei,
o que prova a existência de um judaísmo legalista e a necessidade da
pregação do evangelho nas cartas de Paulo.
b. Por se tratar de um estudo nas cartas de Paulo, a “nova perspectiva
sobre Paulo” é unanimidade entre os estudiosos da Bíblia.
c. Diversas passagens em Paulo atestam que a salvação é oferecida e dada
a todos sem distinção, tanto a judeus como a gentios, pela fé em Cristo
Jesus (Rm 1.16; 2.6-11; 3.9, 22-23, 29-30; 4.9-12, 16; Gl 3.7-9, 14; Ef 2.11-
22), denotando que o apóstolo estava sim preocupado com a inclusão
dos gentios, mas também se opunha a uma forma de legalismo ou mau
uso da lei, onde o relacionamento com Deus se baseia em obras.
d. A polaridade lei-evangelho, proposta por Lutero, não aparece de forma
clara nos textos paulinos, justificando a visão do judaísmo como uma
religião da graça.
e. As sentenças “a” e “c” estão corretas.
101

Respostas

ULBRA – Educação a Distância


2.e; 3.e

Referências
HAGNER, Donald. The New Testament – A Historical and Theological Introduction. Grand
Rapids, Baker Academic, 2012.
SANDERS, E. P. Paul and Palestinian Judaism: A Comparison of Patterns of Religion. Minneapolis:
Fortres Press, 1977.
SANDERS, E. P. Paulo – A Lei e o povo judeu. São Paulo: Paulus, 1990.
8
A RELAÇÃO OU CONEXÃO
ENTRE ANTIGO TESTAMENTO
E NOVO TESTAMENTO

Vilson Scholz

Introdução
É fácil (e perigoso) generalizar, mas não custa começar com uma afirmação
genérica: “O Antigo Testamento é pouco conhecido na igreja cristã”. Existe pouca
familiaridade com o texto em si e, considerando-se a extensão desse testamento,
não é grande o número de versículos que as pessoas têm memorizado (ou que
saibam identificar, em termos de “essas palavras estão em Isaías 43.1”, por
exemplo). Quem estudou as duas línguas bíblicas (grego e hebraico), que são, na
verdade, três (incluindo-se o aramaico), aos poucos tende a deixar que caiam no
esquecimento, pela falta de utilização. Nesse caso, a primeira que desaparece da
memória e do horizonte é o hebraico, a língua em que foi escrita a maior parte do
Antigo Testamento. Até por ser uma língua semítica que não tem parentesco com
o português e não o influenciou em nada que vá além de “aleluia” e “amém”.
Lá nos seus inícios, a igreja cristã teve, por assim dizer, a opção de reter o Antigo
Testamento ou, então, de descartá-lo. Num primeiro momento, antes de se ter o
Novo Testamento, a Igreja teria ficado sem Bíblia, o que seria impensável. É claro
que poucos foram os que, de forma consciente, pensaram na possibilidade de ficar
sem o que hoje chamamos de Antigo Testamento. A teologia cristã não poderia ficar
sem a rocha da qual ela foi esculpida. É claro que isso colocou, desde cedo, a questão
de como ler o Antigo Testamento. Como ele se relaciona com a teologia cristã, com
o Novo Testamento? Essa foi, e ainda é, uma das mais importantes questões da
teologia cristã: o que fazer com o Antigo Testamento? Como vamos fazer a leitura
desses textos? Da resposta a estas perguntas depende, em grande parte, a teologia
que se professa e a igreja que se é. O exegeta alemão Leonhard Goppelt escreveu:
“O tema de Cristo e do Antigo Testamento ... é uma questão-chave para a teologia
104

como um todo”. É por isso que se torna importante refletir sobre a relação ou a
ULBRA – Educação a Distância

conexão entre o Novo Testamento e o Antigo Testamento.

8.1 A unidade dos dois testamentos


Um princípio hermenêutico fundamental é pressupor a unidade dos dois
testamentos da Bíblia. Isso foi articulado de várias maneiras em diferentes épocas,
mas, com poucas exceções (uma delas sendo Marcião, na igreja antiga, que rejeitou
o Antigo Testamento), essa unidade tem sido pressuposta de forma quase que
intuitiva na Igreja até os tempos modernos. Desde que se tornou mais fácil imprimir
os dois testamentos num só volume (com a Bíblia em português isso só se deu em
1819), a noção de que os dois testamentos formam um todo se consolidou. Isso não
significa, é claro, que os dois testamentos são lidos na mesma proporção dentro
da Igreja. Por exemplo, em denominações históricas que fazem uso de lecionários
ou ciclos de leituras fixas para domingos e dias festivos, apenas se tornou comum
ler um trecho do Antigo Testamento a partir da elaboração da Série Trienal, na
segunda metade do século XX. Antes disso, se liam quando muito os Salmos, tanto
assim que havia até edições da “Bíblia” que traziam apenas o Novo Testamento
e os Salmos.
O Novo Testamento mostra que pressupor tal unidade entre os testamentos, o
Antigo e o Novo, não é um ato arbitrário do intérprete cristão. Afinal, os próprios
escritores do Novo Testamento de modo geral pressupõem o Antigo. Muito da
linguagem e da imagística do Novo Testamento vem do Antigo. Calcula-se até
que um décimo do Novo Testamento vem diretamente do Antigo, na forma de
citações e alusões. Há até um dado que informa que 257 passagens do Novo
Testamento são citações diretas do Antigo. E essas citações estão ali não apenas na
forma de material ilustrativo, sendo antes de valor fundamental e argumentativo.
Até prova em contrário, o escritor do Novo Testamento cita o Antigo Testamento
plenamente consciente do contexto em que se encontra a citação. Depois do
período do Novo Testamento ou da igreja apostólica, também os Pais da Igreja
(antiga), os reformadores do século XVI e até mesmo os hinos cristãos formulados
ao longo dos tempos atestam essa unidade entre os testamentos. Como disse
Gerhard Hasel, “sem o Novo Testamento, o Antigo Testamento parece um corpo
sem membros, e o Novo Testamento, sem o Antigo, é um prédio que não tem
alicerces”.
Existe, é claro, uma óbvia conexão histórica entre os dois testamentos. Trata-se
de uma só história da salvação, e não de duas. Deus age a favor da redenção de
seu povo e das nações, e esta é uma história que continua e atinge seu ponto alto
no Novo Testamento. Jesus é o Filho de Davi, e o Cristo do Novo Testamento é o
messias que havia sido anunciado no Antigo.
105

Além de continuidade histórica, existe conexão linguística. Muito do vocabulário

ULBRA – Educação a Distância


grego do Novo Testamento foi enriquecido com significado hebraico. É claro que
isso se deu através da Septuaginta, a tradução grega do Antigo Testamento, que já
estava à disposição de apóstolos e evangelistas. Por exemplo, para expressar a noção
de “glória”, no sentido de manifestação visível de Deus (em hebraico, kabod), os
escritores do Novo Testamento não precisaram se empenhar na busca de um termo
grego adequado, pois este já havia sido escolhido pelos tradutores da Septuaginta.
Um termo – dóxa – que normalmente significava “opinião” passou a ter o significado
de “glória”. Por outro lado, poucas são as palavras-chave do Antigo Testamento
que não foram enriquecidas no Novo. Por exemplo, um conceito fundamental como
“graça” precisa, agora, ser visto à luz do que aconteceu em Cristo. Como diz em
Tito 2.11, “a graça de Deus se manifestou salvadora a todos os homens”.
Deixando o vocabulário, que tem implicações teológicas, é claro, e partindo para
o que é propriamente teológico, pode-se dizer que é algo axiomático que, em
princípio, a teologia do Antigo Testamento seja essencialmente idêntica à do Novo
Testamento. Existem rupturas na superfície, é bem verdade, mas o enfoque principal
é o da continuidade. Deus é o mesmo e o seu plano para a humanidade não foi
alterado na plenitude do tempo (Gl 4.4), e sim implantado em sua fase final. Outros
temas do Antigo Testamento que têm continuidade no Novo são, por exemplo,
criação, promessa, fé, eleição, justiça, amor, pecado, perdão, juízo, salvação,
escatologia, messianismo, povo de Deus, remanescente, e assim por diante.
Unidade, entretanto, não implica uniformidade. É quase um lugar-comum dizer-
se que a Bíblia não é um livro-texto de Dogmática ou uma Teologia Sistemática.
No entanto, é muito fácil perder de vista esse fato, especialmente em igrejas
conservadoras, que dão tanto destaque à doutrina pura ou correta. Em termos
práticos, é muito fácil formular um “cânone dentro do cânone”, destacando
aquelas porções da Bíblia que mais se aproximam da linguagem e da formulação
dogmáticas. Tal postura (muitas vezes inconsciente) leva, por exemplo, a privilegiar
as epístolas paulinas e ignorar o Antigo Testamento.
Dizer que não existe uniformidade na Bíblia é outra forma de dizer que nela se
encontram diferentes “teologias”. Esta parece uma afirmação problemática, mas,
caso for bem entendida, não deveria nos assustar. Por “teologias” se entende,
neste caso, não pontos de vista fundamentalmente opostos (como teólogos de
uma linha mais liberal gostam de enfatizar), mas questões de ênfase, vocabulário e
formulação. Exatamente por ter a Bíblia uma orientação histórica e não sistemática
é que essas “teologias” variam consideravelmente de livro para livro e às vezes
existem variações até dentro do mesmo livro bíblico. Num bloco de textos como a
literatura de sabedoria do Antigo Testamento, por exemplo, pode-se apontar para
o contraste entre o otimismo de Provérbios (“teme ao SENHOR que tudo vai dar
certo”) e o pessimismo de Eclesiastes (“eu fiz isso, mas mesmo assim deu errado”).
106

Tal tensão, convém frisar, longe de ser um problema, é algo positivo. Mostra que
ULBRA – Educação a Distância

a Bíblia está como que atenta à complexidade da vida humana, até mesmo no que
se refere ao relacionamento com Deus.
Existem muitas variações “teológicas” desse tipo também dentro do Novo
Testamento. Bastaria citar os Evangelhos sinóticos e as diferenças de ênfase entre
Gálatas e Romanos. Mas o que se quer destacar, de momento, são as diferenças entre
os testamentos, ou seja, aquelas que se aplicam ao Antigo Testamento como um
todo, em contraste com o Novo Testamento. Não custa repetir que tais diferenças
são antes de tudo questão de vocabulário, não de assunto. Assim, o título “Cristo”
(ou até mesmo “Messias” no seu sentido técnico) e o nome “Jesus” não aparecem
no Antigo Testamento. Mas há uma grande diferença entre constatar isso e não
querer enxergar Cristo de jeito nenhum no Antigo Testamento. E enxergar Cristo
no Antigo Testamento deveria ser algo normal, tão logo o “véu” tenha sido tirado
de nossos olhos (2 Co 3.14).
Muito da diferença entre os testamentos pode ser resumido em termos de “implícito-
explícito”. “Jesus Cristo” não aparece explicitamente no Antigo Testamento, mas
a fé cristã insiste que Cristo não deixa de ser o assunto implícito. Outra forma de
expressar essa “unidade na diversidade” entre os dois testamentos é dizer que
“o Antigo Testamento nos diz o que o Cristo é; o Novo Testamento, quem ele é”.
Mas a formulação clássica e incomparável é a de Agostinho: Novum Testamentum
in Vetere latet; Vetus in Novo patet (O Novo Testamento está latente no Antigo; o
Antigo Testamento se torna patente no Novo).

8.2 O equívoco de chamar a religião do Antigo Testamento


de judaísmo
Quando cristãos olham para o Antigo Testamento, sua leitura dos dados ou da
evidência pode facilmente ser equivocada ou, pelo menos, resultar num registro
que se presta a equívocos. Um desses equívocos é o hábito bem arraigado de falar
sobre “judeus” no Antigo Testamento e descrever a religião do Antigo Testamento
como “judaísmo”. Isto é um erro histórico e também teológico. O nome que o povo
de Deus usa, no Antigo Testamento, é “israelita” ou “filhos de Israel”. Com exceção
de um breve período, após a morte de Salomão, em que o termo “Israel” teve um
uso político, parece que “Israel” é quase sempre um termo essencialmente religioso,
relacionado com a aliança, evocando a eleição dos patriarcas e a libertação de seus
descendentes do Egito.
Gramaticalmente, “judeu” é uma contração e derivação de “judaíta”, ou seja,
o habitante da província de Judá. Aparece apenas perifericamente no Antigo
Testamento, um pouco antes e um pouco depois do exílio (quando restou quase só
Judá), e ao que parece nunca com uma conotação religiosa específica. Infelizmente,
107

muitas traduções (e até alguns dicionários do hebraico) traduzem a palavra

ULBRA – Educação a Distância


hebraica para “judaíta” (em hebraico, yehudi, ou, no plural, yehudim) por “judeu”.
Isso resulta num grande e infeliz mal-entendido. Um exemplo é 2 Reis 16.6, que é
a primeira ocorrência desse termo no Antigo Testamento. A tradução de Almeida
e a NTLH trazem “os judeus”, ao passo que a NVI diz, mais apropriadamente:
“os homens de Judá”.
Quanto a “hebreu”, que mais tarde veio a ser termo honorífico (Fp 3.5), é uma
designação que, no Antigo Testamento, é usada apenas por outros em referência
aos israelitas, e, ao que parece, sempre como termo de desprezo ou deboche. No
tempo do Novo Testamento, o termo “judeu” aparece com frequência, agora sem
conotações geográficas, ou seja, com significado apenas religioso e cultural. Não
se pode dizer com certeza quando o judaísmo se tornou uma religião que pode ser
distinguida daquela que aparece no Antigo Testamento. Essa passagem se deu por
meio de uma mudança gradual, percebida apenas em retrospectiva, isto é, depois
que ela tinha ocorrido. O judaísmo normativo (que é a sobrevivência e/ou triunfo
do partido farisaico dos tempos de Jesus) apenas passou a existir bem depois da
destruição de Jerusalém em 70 d.C. No entanto, muito antes do tempo de Jesus já
se podiam perceber os contornos principais. Assim, “judeus” aparecem repetidas
vezes no Novo Testamento e, infelizmente, cada vez mais como um grupo religioso
antagônico a Jesus e seus seguidores. Isso se percebe com clareza no Evangelho de
João, por exemplo.
O judaísmo quer ser o verdadeiro herdeiro e continuador do Antigo Testamento.
Acontece que o judaísmo moderno não se baseia simplesmente no Antigo
Testamento, pois apela para a sua tradição oral tanto quanto para o Antigo
Testamento. Supostamente, essa tradição oral remonta ao tempo de Moisés, tendo
sido, mais tarde, registrada no Talmude. O Novo Testamento e o cristianismo fazem
reivindicação semelhante. De certa forma, o cristianismo é o Antigo Testamento
mais o Novo Testamento, ao passo que o judaísmo é o Antigo Testamento mais o
Talmude. Quem está com a razão? Nenhuma das duas religiões afirma que é uma
religião exatamente idêntica à do Antigo Testamento. A rigor, essa pergunta sobre
quem tem razão não pode ser respondida de forma objetiva e científica, por envolver
afirmações de fé. Agora, quando cristãos falam sobre “judeus” e “judaísmo” no
Antigo Testamento, isso equivale a “entregar os pontos” antecipadamente e admitir
que o cristianismo é apenas uma “seita judaica”. Quem não exerce controle sobre
a linguagem que usa em casos como este acaba por criar uma grande confusão.
Em especial, quando se diz que a religião que aparece no Antigo Testamento é o
judaísmo e se apresenta o judaísmo como uma religião “legalista” (o que, na melhor
das hipóteses, é uma meia-verdade), tal combinação reforça o equívoco de que o
Antigo Testamento representa uma religião da “lei” (entendida como legalismo) que
é, em boa parte, se não fundamentalmente, diferente do Novo Testamento, com a
108

sua suposta inédita ênfase na graça. No entanto, uma visão mais equilibrada afirma
ULBRA – Educação a Distância

que a Bíblia como um todo, Antigo e Novo Testamentos, é feita de lei e evangelho.
Ou seja, existe evangelho – e muito! – no Antigo Testamento, assim como existe
lei – e em grande quantidade e com boa ênfase! – no Novo Testamento.
Que nome se poderia dar, então, à religião do Antigo Testamento, que nós
confessamos ser uma forma incipiente de cristianismo, ou seja, uma prefiguração do
cristianismo? Talvez o termo mais apropriado seja “javismo”, a partir do nome de
Deus, o famoso tetragrama (YHWH ou Javé). Quanto aos seguidores dessa religião,
é melhor seguir o exemplo do Antigo Testamento e chamá-los de “israelitas”. Em
todo caso, em se tratando do Antigo Testamento, o termo “judeu” deveria ser
tirado de circulação.

8.3 O equívoco de entender torá em termos de “lei”


Mais desastrosa ainda é a tradução errônea de torá por “lei”. Por mais esforço que
se faça, a tradução acaba soando como o contrário de “evangelho”, ou, no mínimo,
assume uma conotação moralista ou legalista. Quando não existe a suspeita de que
o Antigo Testamento tem um plano de salvação diferente daquele que aparece no
Novo Testamento (por obras, e não por graça), então ao menos se tem a impressão
de que a distinção entre justificação e santificação não era lá tão clara assim no
Antigo Testamento.
Essa confusão se manifesta especialmente entre luteranos, que dão destaque a
Romanos e Gálatas e enfatizam a dialética lei-evangelho em sua dogmática. Mas
o problema não fica restrito a luteranos. E é claro, existem passagens em Paulo
(bem como em Lutero) que, isoladas de seu contexto maior, parecem reforçar esse
mal-entendido.
No entanto, diferentemente do termo grego nómos (que pode ter vários significados,
na Bíblia), talvez a melhor tradução para tora seja “evangelho”! O sentido básico do
termo é “instrução”, e por vezes é usado para a instrução específica quanto a isso
ou aquilo. Em geral, no entanto, é um termo genérico para designar a totalidade da
instrução de Deus, ou seja, a “revelação”. Isso é muito importante para se entender,
por exemplo, o Salmo 19. Ao dizer que a lei do SENHOR (torat Yhwh) “restaura a
alma e alegra o coração” (vv. 7 e 8), o salmista entende por “lei” aquele testemunho
da santa vontade de Deus que inclui as promessas divinas e a eleição de Israel, isto
é, todo o fundamento da história da salvação. Assim, o testemunho da salvação
lança sua luz de alegria até mesmo sobre os mandamentos da lei.
O termo torá é usado também para os livros onde essa revelação aparece resumida
de forma magistral, especialmente o Pentateuco. A própria estrutura do Pentateuco
confirma esse ponto de vista. A estrutura básica é história, uma narrativa, “boas-
novas”, se preferir. Vai da criação do mundo à morte de Moisés, tendo como ponto
109

alto o êxodo (num contexto bíblico mais amplo, da criação à segunda vinda de

ULBRA – Educação a Distância


Cristo, tendo por centro sua morte e ressurreição). Tudo o mais é secundário ou
subordinado.
Se traduzirmos torá por “evangelho”, deve ficar claro que usamos a palavra num
sentido amplo, incluindo tanto lei quanto evangelho. Na verdade, o uso paulino (e
dogmático) da palavra lei (nómos) praticamente não aparece no Antigo Testamento.
A ideia está lá, mas “juízo-salvação” seria uma forma mais adequada de resumir o
que o Antigo Testamento tem a dizer sobre o assunto “lei-evangelho”. E o propósito
do juízo de Deus (ou da lei), como os profetas deixam bem claro, é estar a serviço do
evangelho no sentido estrito; quer “sacudir” o povo e evocar arrependimento.
Outra opção seria traduzir de forma mais livre por “Palavra (de Deus)”, ou algo
assim. Os dois termos aparecem em paralelismo na poesia bíblica, especialmente
no Salmo 119.
Um assunto que se relaciona diretamente com o tema da “lei” é “dez
mandamentos”. Também estes são objeto de incompreensão. Seria, de fato,
necessário referir-se a eles em termos de “os assim chamados dez mandamentos”,
porque, em geral, o Antigo Testamento não se refere a eles como “mandamentos”,
e sim como “dez palavras” ou “dez sentenças” (Êx 34.28). Isso faz com que
“decálogo”, que significa “dez palavras”, seja uma designação mais adequada. A
forma cristã de enumerar os mandamentos reforça esse mal-entendido, pois omite
a primeira palavra que aparece na própria Bíblia (Êx 20.2; Dt 5.6), que é um resumo
da narrativa do êxodo, o coração do “evangelho” no Antigo Testamento. Colocar
essa primeira palavra no início da série faz com que se veja todo o decálogo
numa perspectiva diferente. Isso porque a primeira palavra é, sem dúvida,
uma declaração, não um mandamento, e o natural seria ler as demais palavras
de forma semelhante. Pode-se argumentar que a forma gramatical do decálogo
reforça essa visão (o hebraico tem a negação lo, a negação do indicativo, e não
al, que geralmente é usado com imperativos negativos), embora este argumento
não seja decisivo por si só.
Tradicionalmente, os luteranos enfatizaram o aspecto legal, a exigência e
condenação que o decálogo traz. Num sentido, este aspecto de fato sempre vem
em primeiro lugar, tanto para o homem natural quanto para o crente, que neste
mundo continua sendo santo e pecador ao mesmo tempo. Agora, exegeticamente,
isto é, no contexto histórico, o decálogo aparece após a eleição de Deus e do
estabelecimento da aliança com o seu povo. A primeira “palavra” resume este
evangelho da eleição, e as demais palavras podem ser lidas da seguinte maneira:
“Se de fato conheces e crês neste evangelho, tu não vais (em função desse novo
relacionamento estabelecido com Deus) transgredir os seguintes parâmetros”.
Em outras palavras, a forma negativa da maioria dos mandamentos não é
negativismo restritivo, mas simplesmente define os limites do reino ou senhorio
110

de nosso Deus, naquilo que se costuma chamar de “terceiro uso da lei”. Do lado
ULBRA – Educação a Distância

de lá, isto é, indo além desses limites, há outros “deuses” e “senhores”. Mas
dentro dos limites existe “liberdade cristã”.

8.4 O conceito de aliança ou testamento


Na tradição reformada ou calvinista, usa-se com mais frequência o termo “aliança”,
ao passo que luteranos preferem “testamento” (Hb 9). Lutero preferiu o termo
“testamento”, pois parecia acentuar o aspecto da graça pura. No entanto, o termo
original é “aliança”. O próprio Novo Testamento, seguindo a profecia de Jeremias
31, várias vezes aplica a expressão “nova aliança” à sua própria época, o tempo
de Cristo e da igreja cristã.
Assim como acontece com tantos outros termos bíblicos, “aliança” tinha no
início um sentido secular: “contrato”, “tratado”, ou algo assim. Num sentido,
então, alianças bíblicas são bilaterais também. Há duas partes envolvidas, que
prometem fazer algo. É neste sentido que se devem entender as condições
(“se...”, como, por exemplo, em Isaías 1.19-20) que aparecem com frequência no
Antigo Testamento, bem como muitas das bênçãos e maldições. A promessa é
condicional no sentido de que podemos perder a graça oferecida, recusando-nos a
aceitá-la. No entanto, essa condição de modo algum deve ser interpretada como
indício de que a aliança está condicionada, no sentido de que depende de nossa
aceitação ou uma ação prévia nossa que mereça a graça de Deus. Assim, a ênfase
maior no Antigo Testamento está no fato de a aliança de Deus ser unilateral.
O próprio Deus estabelece ou institui a aliança sem nenhuma cooperação
prévia. Isso aparece de forma magistral em Deuteronômio 7.7-8 (que às vezes é
chamado de “o João 3.16 do Antigo Testamento”). Em termos linguísticos, isso
transparece no termo que foi escolhido pelos tradutores da Septuaginta para,
de forma preferencial, traduzir o termo hebraico para “aliança” (em hebraico,
b’rit), a saber, diathêke. Eles tinham a possibilidade de usar o termo synthêke, que
já aparece nos textos gregos de autores como Platão e Tucídides. No entanto, esse
termo, que denota um acordo (entre duas partes, indicada, em parte pelo prefixo
syn = “com”), aparece raras vezes no Antigo Testamento grego (a Septuaginta),
mais especificamente quatro vezes (Is 28.15; 30.1; Dn 11.6,17), e nunca para
designar a aliança que Deus estabeleceu com o seu povo. Em contrapartida,
o termo diathêke (em que o prefixo diá parece enfatizar o caráter unilateral de
algo que é outorgado) aparece 299 vezes na Septuaginta. E este é o termo usado
para “aliança” no Novo Testamento. Na literatura grega, diathêke era usado para
designar um “testamento”, que, como diz uma definição jurídica, é um “ato
unilateral, personalíssimo ...” (Dicionário Houaiss).
111

8.5 A unidade em termos de antigo e novo

ULBRA – Educação a Distância


Há diferentes maneiras de se expressar a unidade entre os dois testamentos. Uma
delas é o uso dos adjetivos “antigo” e “novo”. O uso teológico desses termos
difere do uso que é feito no dia a dia. Para nós, “antigo”, ou, ainda mais, “velho”,
é algo gasto, ultrapassado, irrelevante. Em contrapartida, “novo” nos sugere algo
atualizado, bom, útil. Se as pessoas já têm as suas dúvidas quanto ao significado
ou à aplicação do Antigo Testamento como Palavra de Deus aos nossos dias, ao
ouvirem o termo “velho” podem facilmente ter confirmada a sua suspeita. Talvez
por essa razão, no contexto da Sociedade Bíblica do Brasil, optou-se por falar em
“Antigo Testamento” a partir da Almeida Revista e Atualizada, ou seja, a partir de
meados do século XX. Em muitas denominações, contudo, ainda persiste o uso
de “Velho Testamento”.
No contexto da Teologia Bíblica, “antigo e novo” são praticamente sinônimos
de “profecia e cumprimento” ou “tipo e antítipo”. Implicam tanto continuidade
quanto ruptura. Assim, existe um novo coração, um novo espírito (Sl 51.10), um
cântico novo (Sl 98.1), e assim por diante. O modelo básico não é evolução, mas
cumprimento. Se a metáfora da evolução for utilizada, deve ser entendida em
termos de algo que vai de dentro para fora, e não de baixo para cima. Trata-se da
relação que existe entre o botão e a flor. Há momentos em que “renovado” seria
melhor do que “novo”.

8.6 A unidade em termos de profecia e cumprimento


Profecia não é sinônimo de predição ou previsão do futuro, mas de proclamação.
Os profetas eram, acima de tudo, pregadores. Sua preocupação era levar o povo
ao arrependimento ou fortalecer o povo em sua esperança (lei e evangelho).
Quando se fala do cumprimento, muitas vezes o assunto termina tão logo se
falou do cumprimento que se deu em Jesus Cristo. No entanto, é preciso ir além,
mostrando como isso se cumpre para nós também, pela ação do Espírito Santo, em
palavra e sacramentos. Ainda aguardamos o cumprimento de promessas. Neste
sentido, ainda estamos no Antigo Testamento. Ainda somos pecadores, embora
ao mesmo tempo já sejamos santos, em Cristo. Ainda estamos sujeitos ao tempo e
espaço, embora os fins dos séculos já tenham chegado sobre nós, como diz Paulo
em 1 Coríntios 10.11.

8.7 A unidade em termos de tipologia


A Bíblia não faz uso frequente desse conceito da tipologia, no sentido de que
a palavra como tal é rara. No entanto, teologicamente, trata-se de uma forma
interessante de resumir muito do que a Bíblia ensina a respeito de sua unidade.
112

Destaca-se, neste particular, a carta aos Hebreus. No entanto, conforme argumenta


ULBRA – Educação a Distância

Leonhard Goppelt, em seu livro Typos (e também no verbete com o mesmo título,
no dicionário teológico de Kittel), a postura fundamental do Novo Testamento
em relação ao Antigo é o da tipologia. Em outras palavras, os escritores do Novo
Testamento olham para o Antigo Testamento em termos de tipologia. À luz do
antítipo, que é o cumprimento, sempre em escala maior, no Novo Testamento,
o que eles enxergam no Antigo Testamento são tipos, prefigurações, sempre em
escala menor. Um exemplo clássico é 1 Coríntios 10, onde Paulo, partindo da
realidade da igreja de seu tempo, fala sobre prefigurações ou tipos do batismo e
da santa ceia no tempo de Moisés. Aliás, se pensarmos em termos de palavra e
sacramentos (batismo e ceia), a tipologia seria a parte dos sacramentos, enquanto
a profecia seria a palavra.
Como é sabido, existem, na Bíblia, acontecimentos, pessoas e instituições ou lugares
tipológicos. Sobre acontecimentos, a criação do mundo é um tipo da nova criação.
O dilúvio é tipo do batismo (1 Pe 3.21). Mais notório é o acontecimento salvífico
do êxodo. O Egito, neste sentido, é um tipo dos poderes das trevas. Os oráculos
contra as nações (com destaque para Edom e Babilônia) lembram que praticamente
cada nação pode aparecer como um tipo dos reinos deste mundo que se levantam
contra o Reino de Deus. O faraó do período do êxodo se torna praticamente um
tipo de Satanás ou do anticristo.
Pessoas tipológicas incluem Adão, Abraão, Moisés, Josué, entre outros. Moisés
é o arquétipo de profeta, sacerdote e rei do Antigo Testamento, antecipando os
três ofícios de Cristo. A relação tipológica entre o Novo Testamento e Moisés fica
estabelecida em 2 Coríntios 3 e em Hebreus 3.1-6. Os juízes são tipos do Salvador.
Davi tipifica aquele que é maior do que Davi. Com Salomão, aparece o tema da
sabedoria. Israel é tipo da igreja, como mostra Gálatas 6.16.
Sobre lugares e instituições, pode-se dizer que esta é a única espécie de tipologia
que é mencionada nas Confissões Luteranas. No artigo XXIV da Apologia (seções
36 e 37), que trata da missa, discute-se o tipo levítico do sacrifício diário. Além
disso, são tipológicos a terra (prometida), Sião ou Jerusalém, o templo (como selo
da presença de Deus), a páscoa, o sábado. Este já aparece com tipo e antítipo no
próprio Antigo Testamento, onde é visto como memorial ou atualização (no sentido
de tornar presente) da criação (Êx 20.11) e do êxodo (Dt 5.15). O sábado era também
tipo do ano sabático. Jesus fez referência indireta a isso no seu sermão inaugural,
conforme Lucas 4.16-30. Por fim, a circuncisão é um tipo do batismo (Cl 2.11-12).
Ao se tratar da tipologia, é preciso levar em conta a centralidade de Cristo e o
detalhe de que o antítipo supera ou excede o tipo. Outro aspecto importante é não
confundir tipologia e alegoria. A alegoria ignora a história e se põe a fazer aplicações
subjetivas e arbitrárias. Ela é puramente vertical, buscando apenas verdades mais
“elevadas” ou “espirituais”. A tipologia é horizontal, levando a história a sério.
113

No caso de Agar e Sara, por exemplo (Gl 4.21-31), em momento algum Paulo nega

ULBRA – Educação a Distância


a realidade histórica dessas duas mulheres.
Existem, é claro, limites para a tipologia. Alguns, é bem verdade, veem um
sentido tipológico em praticamente tudo, até mesmo no cordão vermelho que a
prostituta Raabe amarrou na janela (Js 2.18). Outros têm um enfoque minimalista:
só é tipológico o que a Escritura identifica como tal. Assim como profecia é algo
mais amplo do que a soma das profecias individuais, podemos dizer o mesmo da
tipologia. Ela simplesmente representa a convicção da igreja cristã de que a sua
fé é essencialmente do mesmo tipo da fé que aparece no Antigo Testamento. Não
é possível e nem se deveria tentar fazer uma lista completa de tipologias. Quem
quiser propor uma interpretação tipológica, isto é, a identificação de um tipo
veterotestamentário para algo que aparece no Novo Testamento, deveria observar
os seguintes princípios: a) algum tipo de autorização por parte das Escrituras;
b) fundamentação clara na exegese histórico-gramatical, c) possibilidade de
demonstrar uma conexão com temas centrais da história da salvação.

Atividades de autoestudo
1. Devido à sua orientação histórica e não sistemática, a Bíblia não se apresenta
de maneira uniforme, mas com consideráveis variações de ênfase, vocabulário
e formulação de livro para livro e, às vezes, até dentro do mesmo livro bíblico.
Explique a unidade da Bíblia diante dos contrastes e tensões que a mesma
apresenta.

2. Em relação à unidade do Antigo e do Novo Testamentos, é incorreto afirmar que:


a. Os escritores do Novo Testamento olham para o Antigo Testamento
em termos de tipologia (um tipo veterotestamentário para algo que
aparece no Novo Testamento).

b. Os escritores do Novo Testamento, ao inaugurarem o cristianismo,


não fazem alusão ao Antigo Testamento, numa clara ruptura com o
judaísmo.

c. Pressupor a unidade dos dois testamentos da Bíblia é um princípio


hermenêutico fundamental.

d. O Novo Testamento é pródigo em alusões e citações do Antigo


Testamento.

e. “O Novo Testamento está latente no Antigo; o Antigo Testamento se


torna patente no Novo” (Agostinho).
114

3. Visto que é um equívoco histórico chamar o povo do Antigo Testamento de


ULBRA – Educação a Distância

“judeu” e descrever a religião do Antigo Testamento como “judaísmo”, assinale


a sentença correta:
a. “Israel” é quase sempre um termo essencialmente religioso, relacionado
com a aliança.

b. O nome que o povo de Deus usa é “israelita” ou “filhos de Israel”.

c. O judaísmo, como tal, se baseia no Antigo Testamento e na sua tradição


oral, o Talmude.

d. O termo mais apropriado para a religião do Antigo Testamento seria


“javismo”.

e. Todas as sentenças acima estão corretas.

Respostas
2.b; 3.e

Referências
HASEL, Gerhard F. Teologia do Novo Testamento: questões fundamentais no debate atual. Trad.
Jussara Marindir Pinto Simões Arias. Rio de Janeiro: Juerp, 1988.
HUMMEL, Horace D. “How to preach the Old Testament.” In: Concordia Pulpit, 1986, p.1-14.
9
LINGUAGEM INCLUSIVA
NO CONTEXTO TEOLÓGICO

Vilson Scholz

Introdução
O assunto da linguagem inclusiva é de origem relativamente recente, ao menos
no contexto brasileiro. É tema polêmico, porque mexe com a linguagem usada na
igreja, em especial no culto. E, se “a linguagem é a casa do ser”, segundo o poeta
Mario Quintana, a linguagem que usamos diz muito da nossa essência, revela um
bocado a respeito de quem somos.
No contexto de fala inglesa, essa já é uma discussão mais antiga. Envolve, de
modo especial, traduções bíblicas, mas tem a ver também com material que
é usado em cultos. Aflorou de modo especial com o lançamento, em 2001, da
TNIV (Today’s New International Version), que é uma atualização da NVI (“New
International Version”), lançada originalmente em 1973. Essa TNIV adotou a
assim chamada linguagem inclusiva. Foi (e ainda é) fortemente criticada por
setores mais conservadores, incluindo autores mais conhecidos como Wayne
Grudem e Vern Poythress. Do outro lado do fosso, defendendo o uso de linguagem
inclusiva, encontra-se gente como Donald Carson, Craig Blomberg, Mark Strauss,
entre outros. É um assunto que cria tensões e até divisão dentro de algumas
denominações. Sente-se que há a necessidade de explicar isso, tanto assim que
denominações ou igrejas preparam documentos de esclarecimento sobre o assunto.
A Comissão de Teologia e Relações Eclesiais do Sínodo de Missouri, nos Estados
Unidos, que é uma das grandes denominações luteranas, publicou um estudo
em 1998. Este estudo foi traduzido e publicado no Brasil, em 2003, com o título
Revelação Bíblica e Linguagem Inclusiva (Editora Concórdia).
No contexto de língua portuguesa, esse problema ainda não se tornou agudo, por
não existir nenhuma tradução que faça uso de linguagem inclusiva. É bem verdade
que a comissão de tradutores que preparou a Nova Tradução na Linguagem de
116

Hoje considerou a possibilidade de fazer uso esporádico de linguagem inclusiva


ULBRA – Educação a Distância

(dizer “irmãos e irmãs”, por exemplo, quando o termo “irmãos” se refere a toda
a igreja). Entretanto, tal projeto foi abandonado, por ser prematuro e criar uma
polêmica desnecessária num momento pouco oportuno.
O que é essa “linguagem inclusiva”? Seria possível fazer uso dela numa tradução
bíblica? Ao final desta aula, você saberá mais a respeito desse assunto e terá
elementos para se posicionar pessoalmente diante desse tema que, em alguns
lugares e contextos, já se mostra bastante polêmico.

9.1 Um caso concreto


Em 1983, antes de existir uma tradução bíblica que fizesse uso de linguagem
inclusiva, o Conselho Nacional de Igrejas, nos Estados Unidos, publicou um
lecionário com linguagem inclusiva. Um lecionário é uma coletânea de textos,
em número de três (ou quatro) para cada domingo ou dia festivo, utilizado por
várias igrejas históricas, incluindo a católico-romana, a luterana, a presbiteriana,
a metodista, entre outras. Esse tipo de material é preparado e publicado desde os
primeiros séculos da igreja cristã, tanto assim que bom número de manuscritos
gregos antigos é feito desses lecionários. O que interessa, neste caso, é que o
lecionário de 1983 resultou do trabalho de um grupo de doze teólogos e teólogas
de fala inglesa. O objetivo era produzir um lecionário com linguagem inclusiva. A
tarefa foi realizada com base numa tradução existente, a RSV (“Revised Standard
Version”), com recurso aos originais em hebraico e grego. O fato de ser citado neste
momento é simples: ilustra muito bem essa questão da linguagem inclusiva.
Tão logo esse lecionário foi publicado, a professora Elizabeth Achtemeier, que
lecionava homilética (ou pregação) e Antigo Testamento no Union Theological
Seminary, na Virgínia, escreveu uma resenha. Apresentaremos um apanhado
dessa resenha, que é tanto mais interessante por ter sido escrita por uma teóloga,
embora não da linha feminista.
Nesse lecionário, explica Achtemeier, foi feito um esforço no sentido de eliminar
a masculinidade de pessoas do sexo masculino e atribuir sexualidade a Deus. No
caso dos homens (sexo masculino), opta-se por uma expressão neutra. Em João
9.1, por exemplo, “um homem que tinha nascido cego” passa a ser “uma pessoa
que tinha nascido cega”. Em João 19.26, as palavras de Jesus, “mulher, eis aí o teu
filho”, são mudadas para “mulher, eis a tua criança” (em inglês, child). O mesmo
ocorre com Isaías 7.14: “conceberá e dará à luz uma criança”. No caso de uma leitura
tirada de Gênesis 2, que trata da criação do homem, há uma nota, indicando que
esse “homem” não tinha sexualidade. Diz a nota: “A criação da sexualidade – de
macho e fêmea, homem e mulher – só ocorre nos vv. 21-24”. Se isso for levado a
sério, diz a professora Achtemeier, parece que Deus criou, no princípio, um ser
assexuado, que, depois, foi partido ao meio!
117

É claro que, nesse lecionário, as mulheres são sempre mulheres, e a pessoalidade

ULBRA – Educação a Distância


delas é resguardada com todo o cuidado. Segundo os textos desse lecionário,
nenhum homem “toma para si uma esposa” (em inglês, take a wife; Mateus 1.20).
Em Gênesis 2.25, “esposa” (wife, em inglês) é substituído por “mulher” (como
já se encontra nas traduções ao português), mas “marido” não foi alterado, em
Gênesis 3.6.
Sempre que aparece um homem (pessoa do sexo masculino), procura-se evitar
o uso de “ele”, “a ele”, “o” e outros pronomes – preferindo-se usar o nome da
pessoa. Isso ocorre com João Batista, José, Herodes, Abraão, Nicodemos, Jacó,
Jessé, Samuel, Lázaro, etc. Em 2 Reis 4.16, onde se promete um “filho” à mulher
sunamita, isso é transformado em “herdeiro” (heir, em inglês, que é neutro). O
profeta não é chamado de “homem de Deus”, mas “servo de Deus” (também neste
caso servant é um termo neutro ou ao menos não masculino). Nesse lecionário, a
mulher samaritana não chama Jesus de “senhor”, em João 4.11,15,19. Tal negação
das realidades deste mundo acaba por introduzir pontos obscuros no texto. A
passagem de Mateus 1.20-21, que diz: “José, filho de Davi, ... ela dará à luz um filho
e lhe porás o nome de Jesus, porque ele salvará o seu povo dos pecados deles”,
passa a ser: “José, descendente de Davi, ... ela dará à luz uma criança, cujo nome será
Jesus, porque essa criança salvará o povo dos seus pecados”. Pergunta a professora
Achtemeier: Que povo? E Jesus e José não são do sexo masculino?
Como em inglês se faz necessário usar sempre o pronome pessoal “ele” (em
inglês, he), essa operação destinada a remover tudo que seja masculino na Bíblia
acaba sendo bem mais ampla do que pode parecer a partir do português. Em
João 1.12, “ele deu-lhes o poder” é transformado em “poder lhes foi dado” e, em
Tito 3.5, “ele nos salvou” passa a ser “fomos salvos”. Nestes casos, para evitar o
uso de pronomes masculinos, a agência ou ação de Deus fica camuflada atrás de
construções em voz passiva.
A equipe que elaborou o referido lecionário de linguagem inclusiva, por mais que
afirme que a Palavra se fez gente, raramente admite que Jesus era um homem (do
sexo masculino). Em lugar dos pronomes masculinos, colocam-se os termos “Jesus”
ou “Cristo”. Jesus não se esvaziou a si mesmo (himself, uma forma masculina, em
inglês), mas esvaziou o seu ser (em inglês, self). Em João 1.11, a formulação “veio
para o seu próprio lar (em inglês, his own home – que inclui o pronome masculino
his), e o seu próprio povo (em inglês, his own people, outra vez com a presença do
pronome masculino his) não o (outro pronome masculino) recebeu” é transformada
no que segue: “a Palavra veio para o que era da Palavra, mas aqueles para quem
a Palavra veio não receberam a Palavra”. Temos aqui, conforme a professora
Achtemeier, além de um estilo horrível, um ressurgimento do docetismo! Assim
sendo, Jesus não é o “Filho do Homem”, mas “o Humano” (em inglês, the Human
One); não é o “Filho de Deus”, mas a “Criança de Deus” (em inglês, Child of God).
118

Com isso, perdem-se as conexões entre o Antigo e o Novo Testamento. Filho de


ULBRA – Educação a Distância

Deus tem conexão com a apresentação de Israel como “filho” e com a teologia
da casa de Davi. Também o título “Filho do Homem” tem uma longa história no
Antigo Testamento e na literatura do período do intertestamento. No entanto, o
uso de “o Humano” faz com que se perca essa conexão.
Nesse lecionário, Deus se caracteriza pela “bissexualidade”. A comissão se expressa
assim: “Deus é o pai maternal da criança que surge”. Ele tanto gera como dá à luz.
(Nos dias atuais, muitas feministas falam sobre um “Deus que dá à luz”.) Assim,
no Getsêmani, Jesus ora assim: “Deus, meu Pai e Mãe, se for possível, passa de
mim esse cálice”. A gente pode perguntar, diz Elizabeth Achtemeier, que fim levou
a virgem Maria. Deus e Jesus também não são chamados de “Senhor” ou “Rei”, e
eles não têm um “reino” ou “reinado”, mas apenas um “âmbito” ou “campo” (em
inglês, realm). Todos os reis passam a ser “monarcas” ou “governantes”.
Também os fatos históricos são reescritos à luz da agenda feminista. Em Mateus
3.9, Jesus é levado a dizer: “Não comecem a dizer a vocês mesmos: Temos por pai
Abraão e por mães temos Sara e Agar”. Mas, pergunta Achtemeier, será que alguém
do povo da aliança em algum momento se viu como descendente de Agar? Falando
em termos teológicos, Paulo diz com todas as letras, em Gálatas 4.31: “não somos
filhos da escrava, mas da mulher livre”. Os formuladores do referido lecionário
tentam impor sua moralidade pessoal aos leitores e ouvintes do lecionário. Isso
ocorre em Mateus 5.32, onde pedem desculpas pelas palavras ditas por Jesus, que
“para pessoas de nosso tempo, soam severas e restritivas”. E, embora supostamente
tenham se proposto a eliminar termos “racistas” como “escuridão”, trataram de
fazê-lo em Isaías 9 e 60, mas deixaram de fazê-lo em João 1 e Gênesis 1.
Segundo a avaliação de Elizabeth Achtemeier, esse lecionário com linguagem
inclusiva é um monstrengo, sob vários aspectos. Em termos literários, os textos
acabam ficando de mau gosto. Do ponto de vista da integridade acadêmica,
falsamente atribui aos autores bíblicos palavras que eles nunca escreveram nem
disseram. Exemplo disso é Isaías 55.6, que diz: “Buscai o SENHOR enquanto
pode ser achado, invocai-o enquanto está próximo”. Isso é transformado em:
“Buscai Deus, que pode ser achado; invocai Deus, que está próximo”. Trata-se de
uma mudança fundamental, que elimina a referência temporal (o “enquanto”)
do texto hebraico. Em termos teológicos, o lecionário nega a realidade concreta
da encarnação de Cristo e atribui a Deus, que é santo, ou seja, diferente de tudo
que foi criado, a sexualidade, que é uma estrutura da criação (isto é, algo que foi
criado, conforme Gênesis 1). Em termos éticos, o lecionário revela total ojeriza,
para não dizer ódio, a tudo que é masculino. Em termos históricos, impõe à Bíblia
um conjunto de relacionamentos, costumes e moral que é totalmente estranho a
ela. E tudo isso foi feito para satisfazer uma ideologia feminista, que foi imposta
ao texto bíblico e levou a esse tipo de alterações que agradam às feministas, diz a
teóloga Achtemeier.
119

Resumindo, pode-se dizer que o cânone da fé cristã foi transformado num

ULBRA – Educação a Distância


documento que faz propaganda para um grupo de interesses bem peculiares. A
fé foi submetida à ideologia, a honestidade acadêmica deu lugar aos conceitos
vigentes em nossos dias. A autoridade maior não é mais o cânone, mas os pontos
de vista dos grupos feministas radicais.
A bem da verdade, constata Achtemeier, é preciso dizer que, neste mundo, mulheres
e homens recebem a liberdade através do evangelho cristão, proclamado pelas
Escrituras Sagradas. Essa liberdade se baseia no fato de que a Palavra de Deus
efetivamente se encarnou, assumindo a natureza humana do homem Jesus de
Nazaré. Por meio de sua vida, morte, ressurreição e ascensão à direita do Pai, o
terrível conflito entre macho e fêmea foi superado, fomos todos feitos um em Cristo
Jesus, e recebemos o seu Espírito, que nos leva a clamar: Aba, Pai, na comunhão e
no culto do povo da aliança do Senhor. Essa mensagem, que se dirige à fé, é uma
maravilhosa notícia, e nos é mediada por meio da Bíblia. Agora, se parte dessa
mensagem é eliminada – se você submete a Bíblia às alterações que interessam a
um ou a mais grupos de interesse, como ocorreu naquele lecionário; se você elimina
a realidade da encarnação, como ocorre naquele lecionário; se você submete o
evangelho à cultura – não nos restará nenhuma boa nova de liberdade, mas apenas
escravidão a este mundo caduco com o seu pecado e seus ódios mesquinhos. Eu,
de minha parte, conclui Achtemeier, me recuso a me submeter outra vez a tal
escravidão. “Para a liberdade foi que Cristo nos libertou; permanecei, pois, firmes,
e não vos submetais outra vez a jugo de servidão.” Infelizmente, esse lecionário
com linguagem inclusiva não ajudará à causa das mulheres. Ao contrário, fará com
que as suas demandas pareçam idiotice, acabará dividindo a igreja e criará maior
oposição à causa da igualdade das mulheres.

9.2 Uma avaliação


Percebe-se que a resenha da professora Achtemeier é bastante crítica em relação
ao uso de linguagem inclusiva. A rigor, o que foi feito naquele lecionário não foi
simplesmente usar linguagem inclusiva, mas “desmasculinizar” a linguagem
relacionada com Deus e Jesus. Porém, a professora Achtemeier não aborda questões
aparentemente mais simples, como usar “irmãos e irmãs”, onde o texto original
diz apenas “irmãos”. É possível fazer isso (dizer “irmãos e irmãs”) sem incorrer
naquilo (chamar Deus de “pai e mãe”)?
Uma tradução como a TNIV (Today’s New International Version) faz exatamente
isso: não mexe com a linguagem relacionada com Deus, mas procura usar linguagem
inclusiva quando se tratam dos relacionamentos interpessoais. Isso provocou a fúria
de um grupo de teólogos conservadores, como foi observado na Introdução. Esses
teólogos que se opõem a essa adaptação aos tempos modernos são, ao mesmo
tempo, ardorosos defensores do princípio de tradução por equivalência formal.
120

Dito de outra forma, eles defendem uma tradução extremamente literal da Bíblia.
ULBRA – Educação a Distância

Se está escrito “adelphói” (“irmãos”), só poderá ser traduzido por “irmãos”, e não
por “irmãos e irmãs”. Entendem que aceitar essa agenda do politicamente correto
(dizendo “irmãos e irmãs”) acabará fatalmente resultando em algo horrível como
o lecionário que foi descrito e avaliado acima.
Nem todos, porém, concordam com a tese de que uma coisa necessariamente levará
à outra. Entre eles está o renomado teólogo conservador Donald Carson. Entende
que é possível e até necessário ser sensível ao modo de falar e escrever de hoje.
Argumenta que, por vezes, o termo grego “adelphói” pode se referir a um grupo de
homens e mulheres, fazendo com que, em certos contextos, seja permissível traduzir
por “irmãos e irmãs”, especialmente se o texto será lido e ouvido por pessoas que
pensam (ou estão acostumadas a pensar) que o termo “irmãos” automaticamente
exclui as mulheres.

9.2.1 Um parecer de uma comissão de teologia


Um ponto de vista semelhante é expresso no documento da Comissão de Teologia
da Igreja Luterana dos Estados Unidos. Constata que as línguas bíblicas conhecem o
fenômeno do gênero gramatical (substantivos femininos, masculinos e até neutros,
no caso do grego) e que Deus recebe nomes e títulos masculinos, sendo também
citado através do uso de pronomes masculinos. Ao mesmo tempo, afirma que a
Bíblia ensina claramente que Deus está acima de todas as categorias de gênero.
Em outras palavras, o fato de Deus ser apresentado como “ele” não significa que
Deus seja do sexo masculino. (O gênero gramatical das palavras não tem nada a
ver com gênero biológico ou sexo. O melhor exemplo disso é a palavra portuguesa
que designa o caráter daquilo que é masculino, a saber, “masculinidade”: é uma
palavra feminina!) Deus é diferente. Deus é transcendente. Em Deuteronômio
4.15-18, Moisés adverte: “Quando o SENHOR, nosso Deus, falou com vocês do
meio do fogo no monte Sinai, vocês não viram a forma de ninguém. Portanto,
tenham todo o cuidado e não cometam o erro de fazer imagens para adorar. Não
façam nenhuma imagem que sirva de ídolo, seja em forma de homem, ou de
mulher, ou de animal, ou de ave, ou de animal que se arrasta pelo chão, ou de
peixe”. (O destaque a “homem” e “mulher” certamente se deve ao fato de que,
no contexto religioso daquele tempo, havia divindades masculinas, como Baal, e
femininas, como Astarote. O Deus verdadeiro não tem forma e também não é do
sexo masculino ou feminino.)
No caso da linguagem relacionada com Deus, entende o documento da Comissão
de Teologia do Sínodo de Missouri que é preciso respeitar e manter a linguagem
que foi utilizada no processo da revelação da Palavra de Deus. Diga-se de passagem
que isso explica o uso do termo “revelação bíblica” no título daquele documento. As
principais metáforas para falar sobre Deus – rei, pai, juiz, senhor, entre outras – são
121

todas masculinas e precisam ser mantidas como tais. No caso de “Pai” e “Filho”,

ULBRA – Educação a Distância


lembra o documento, são se tratam a rigor de metáforas ou simples formas de
falar. Deus não é apenas chamado de Pai; ele é Pai. E ele é Pai, não por ser do sexo
masculino, mas por ter o Filho, que é Jesus.
É bem verdade que a Bíblia usa imagens maternas ou femininas para descrever o
amor de Deus, especialmente em textos proféticos. Isaías 43.14 é um exemplo: “O
SENHOR diz: “Por muito tempo, eu não disse nada, fiquei calado e não respondi;
mas agora vou gritar como uma mulher em dores de parto, vou me lamentar
e clamar” (NTLH). Semelhante é Isaías 66.13: “Como a mãe consola o filho, eu
também consolarei vocês; eu os consolarei em Jerusalém” (NTLH). Um pouco mais
intrigante é o texto de Isaías 46.3, especialmente na tradução de Almeida Revista e
Atualizada: “Ouvi-me, ó casa de Jacó e todo o restante da casa de Israel; vós, a quem
desde o nascimento carrego e levo nos braços desde o ventre materno”. De quem
é esse ventre materno? Para não deixar dúvidas, a Nova Tradução na Linguagem
de Hoje se expressa assim: “Desde que vocês nasceram, eu os tenho carregado”.
Outros exemplos de linguagem feminina ou materna são Isaías 49.14-15 (“O povo de
Sião diz: ‘O SENHOR nos abandonou; Deus nos esqueceu’. O SENHOR responde:
‘Será que uma mãe pode esquecer o seu bebê? Será que pode deixar de amar o
seu próprio filho? Mesmo que isso acontecesse, eu nunca esqueceria vocês’.”) e
Oseias 11.4 (“Com laços de amor e de carinho, eu os trouxe para perto de mim;
eu os segurei nos braços como quem pega uma criança no colo. Eu me inclinei e
lhes dei de comer”). Entretanto, esses textos são claramente poéticos, como indica
o uso de símiles (“como uma mulher em dores de parto”, “como a mãe consola
o filho”, “como quem pega uma criança no colo”). Permanece o fato de que Deus
nunca é chamado de “mãe”. Segundo o documento da Comissão de Teologia
do Sínodo de Missouri, isso desautoriza o uso do termo “mãe” em referência a
Deus. Argumenta, inclusive, que, quando a divindade é uma “mãe”, o mundo se
origina do seu ventre, assim que a natureza e seus processos e ciclos são vistos
como extensões da divindade. Isso acaba eliminando a diferença entre Criador e
criatura. (Um risco semelhante, só que em sentido inverso, se verifica com o uso
do conceito “mãe natureza”, que acaba por sugerir que a natureza é divina, na
medida em que gera todos os seres.)

9.3 Levar em conta o que é politicamente correto


Este zelo em relação à linguagem relacionada com Deus, conforme nos foi revelada
nas Escrituras, não significa que se deve resistir com unhas e dentes a todas as
tentativas de usar linguagem inclusiva no contexto eclesiástico e litúrgico. Fato é
que, no contexto brasileiro, essa insistência no uso de “todos e todas”, “presidente
e presidenta”, “irmãos e irmãs”, é um fenômeno mais recente e em grande parte
restrito ao âmbito secular. Em certos contextos, como o universitário, é praticamente
122

obrigatório ser sensível a essa agenda do “politicamente correto”. É bem verdade


ULBRA – Educação a Distância

que termos como “todos” e “irmãos” não são masculinos, mas neutros e, por
conseguinte, inclusivos. Sempre foram. Como o português não tem o gênero
neutro, o gênero masculino faz a vez de. “Todos”, portanto, se refere a todos
mesmo, homens e mulheres. Quando, porém, se diz “todos e todas”, esse “todos”
é claramente masculino. À medida que esse linguajar dito inclusivo se tornar mais
difundido, a igreja e, por extensão, as suas traduções bíblicas terão que ser sensíveis
a esse fenômeno. Se “todos e todas” é irritante para muitos, a mesma irritação
pode ser sentida por alguém que, já hoje ou em dias futuros, entende que “todos”
não inclui as pessoas do sexo feminino. Importa, portanto, ser sensível à forma
contemporânea de se comunicar. Isso não significa necessariamente abrir mão de
princípios teológicos fundamentais ou aderir de forma irrefletida à agenda de um
feminismo radical que pode ser tão odioso quanto sempre foi e ainda é o machismo.
No caso das traduções bíblicas, vigora e sempre deveria vigorar o princípio expresso
por Gordon Fee e Mark Strauss: “Traduções bíblicas que fazem uso de linguagem
inclusiva fazem isso apenas quando se tratam de pessoas e quando o original dá
a entender que se tem em vista pessoas dos dois sexos.”97

9.4 Alguns exemplos bíblicos específicos


A Bíblia foi escrita, em grande parte, da perspectiva masculina, dirigindo-se
ao homem (pessoa do sexo masculino ou o macho). Assim, ao se dizer “não
adulterarás”, o endereçado primário é o macho. Por isso, ao “desmetaforizar”
Provérbios 5.15, “Bebe a água da tua própria cisterna e das correntes do teu poço”,
a Nova Tradução na Linguagem de Hoje corretamente diz: “Seja fiel à sua mulher
e dê o seu amor somente a ela”. A palavra se dirige ao homem, ao marido, e a
tradução preserva o paralelismo ou a repetição, típica da poesia hebraica. Agora,
seria este um versículo que poderia ser colocado em linguagem inclusiva, para
que a mulher ou esposa também se sentisse endereçada? E como ficaria a tradução
desse versículo, se insistíssemos nesse ponto?
Nem sempre é fácil, nos casos em que é possível utilizar linguagem inclusiva,
chegar a uma tradução que seja, além de correta, elegante do ponto de vista do
estilo. Tomemos o exemplo de Mateus 4.19, um texto bem conhecido que diz:
“Vinde após mim, e eu vos farei pescadores de homens”. Esta tradução não poderia
ser mais literal. No entanto, caso quiser prestar alguma ajuda ao leitor, o tradutor
se deparará com a dificuldade de traduzir a metáfora de “pescar homens” e, se
o ouvinte for sensível a essa questão da linguagem inclusiva, terá de lidar com o
uso do termo “homens”. É claro que “homens”, neste caso, não tem um sentido

97
FEE, Gordon; STRAUSS, Mark. How to choose a translation for all its worth. Zondervan, 2007, p.102.
123

exclusivo, como referência apenas a pessoas adultas do sexo masculino. É claro que,

ULBRA – Educação a Distância


em geral, ainda se aceita que “homens” é um termo genérico, que inclui homens e
mulheres. Mas o que fazer, caso esse “homens” soar demasiadamente restritivo?
Como expressar aquele “homens” em termos de “seres humanos”? Seria possível
dizer “pessoas”? Uma tradução inglesa, que tem o recurso de notas explicativas
(a NET Bible – que pode ser consultada on-line em net.bible.org), decidiu traduzir
isso por “eu farei de vocês pescadores de pessoas” (“I will turn you into fishers of
people”). As traduções portuguesas tendem a reter o consagrado “pescadores de
homens”. É o que se verifica não somente em Almeida, mas também na Nova Versão
Internacional (NVI) e na Bíblia de Jerusalém (BJ). A tradução que já se encaminha
na direção de uma linguagem inclusiva é a Nova Tradução na Linguagem de Hoje
(NTLH): “Venham comigo, que eu ensinarei vocês a pescar gente”.
Um caso semelhante, por exemplo, ocorre em Mateus 5.16: “Brilhe também a
vossa luz diante dos homens”. “Homens”, neste caso, é genérico, referindo-se
a outras pessoas, pouco importando o sexo e a idade. Também neste caso, NVI
e BJ traduzem literalmente: “diante dos homens”. NTLH segue uma linha mais
inclusiva, dizendo: “a luz de vocês deve brilhar para que os outros vejam”. Alguém
ainda poderia argumentar que “os outros” não inclui “as outras”. Neste caso, talvez
prefira a tradução em linguagem comum feita em Portugal (A Bíblia para Todos),
que diz: “façam brilhar a vossa luz diante de toda a gente”. Neste caso, porém,
alguém poderia perguntar: a quem se refere esse “toda a gente”? Seriam todas as
pessoas? Sendo assim, trata-se de algo plausível?
Um último exemplo é 1 Timóteo 2.5-6. Neste caso, vamos começar pelo outro
lado, citando a tradução da NTLH: “Pois existe um só Deus e uma só pessoa que
une Deus com os seres humanos — o ser humano Cristo Jesus, que deu a sua vida
para que todos fiquem livres dos seus pecados”. Esta tradução é semelhante ao
que aparece também na TNIV, citada anteriormente. Nem seria necessário dizer
que, no contexto de fala inglesa, tal tradução foi fortemente contestada. Afinal,
como as traduções de equivalência formal indicam (ARA, NVI, BJ, etc.), o texto
grego diz, literalmente, “porquanto há um só Deus e um só Mediador entre Deus
e os homens, Cristo Jesus, homem, o qual a si mesmo se deu em resgate por todos”.
Entretanto, é fácil perceber que, neste caso, o que realmente importa e recebe ênfase
não é a masculinidade de Jesus, mas a sua humanidade. O único intermediário
que podia percorrer o caminho entre a humanidade e Deus, possibilitando um
relacionamento entre eles, é Jesus.

Referência comentada
REVELAÇÃO bíblica e linguagem inclusiva. Documento elaborado pela Comissão
de Teologia e Relações Eclesiais da Igreja Luterana – Sínodo de Missouri (EUA).
Tradução de Rony Ricardo Marquardt. Porto Alegre: Editora Concórdia, 2003. (Este
124

é um texto que traz um enfoque bastante equilibrado e que permite aprofundar o


ULBRA – Educação a Distância

assunto desta aula. Será necessário levar em conta que se trata de uma tradução.
O texto leva em conta a realidade da língua inglesa e a tradução nem sempre fez
a devida adaptação à realidade do português).

Atividades de autoestudo
1. Retome a questão levantada anteriormente, relacionada com Provérbios 5.15:
seria este um versículo que poderia ser colocado em linguagem inclusiva,
para que a mulher ou esposa também se sentisse endereçada? E como ficaria
a tradução desse versículo, se insistíssemos nesse ponto? Leve em conta o
princípio enunciado por Fee e Strauss: “Traduções bíblicas que fazem uso de
linguagem inclusiva fazem isso apenas quando se tratam de pessoas e quando
o original dá a entender que se tem em vista pessoas dos dois sexos”.

2. Sobre a questão da linguagem inclusiva nas traduções bíblicas, é incorreto


afirmar:
a. Em 2001 foi lançada, nos Estados Unidos, a TNIV (Today’s New
International Version) que adotou a linguagem inclusiva.

b. Teólogos que se opõem a uma linguagem inclusiva são, via de regra,


defensores do princípio de tradução por equivalência formal (tradução
extremamente literal da Bíblia).

c. Ainda não existe uma tradução em língua portuguesa que faça uso de
linguagem inclusiva.

d. A Nova Tradução na Linguagem de Hoje (NTLH) da Sociedade Bíblica


do Brasil caracteriza-se como uma tradução bíblica de linguagem
inclusiva.

e. Donald Carson, teólogo conservador, entende que é possível e até


necessário ser sensível ao modo de falar e escrever de hoje.
125

3. Em 1998, uma das maiores denominações luteranas dos Estados Unidos, a

ULBRA – Educação a Distância


Igreja Luterana – Sínodo de Missouri, publicou um estudo sobre linguagem
inclusiva na Bíblia, onde constam as seguintes referências:
a. Constata que as principais metáforas para falar sobre Deus são todas
masculinas e precisam ser mantidas como tais, por se tratarem de
metáforas ou simples formas de falar.

b. Entende que, no caso da linguagem relacionada com Deus, é preciso


respeitar e manter a linguagem que foi utilizada no processo da
revelação da Palavra de Deus.

c. Afirma que a Bíblia ensina claramente que Deus está acima de todas
as categorias de gênero.

d. Autoriza o uso do termo “mãe” em referência a Deus, visto que o mundo


se origina do seu ventre.

e. As alternativas “a”, “b” e “c” são referências do aludido estudo da


Igreja Luterana – Sínodo de Missouri.

Respostas
2.d; 3.e

Referências
ACHTEMEIER, Elizabeth. “An inclusive language lectionary: readings for Year A.”
Interpretation, 38 (1984), p.64-66.
FEE, Gordon D.; STRAUSS, Mark L. How to choose a translation for all its worth. Grand Rapids,
Michigan: Zondervan, 2007.
REVELAÇÃO bíblica e linguagem inclusiva. Documento elaborado pela Comissão de
Teologia e Relações Eclesiais da Igreja Luterana – Sínodo de Missouri (EUA). Tradução de
Rony Ricardo Marquardt. Porto Alegre: Editora Concórdia, 2003.
10
O CONCEITO DE IGREJA
NO NOVO TESTAMENTO: ALGUMAS
OBSERVAÇÕES INTRODUTÓRIAS

Vilson Scholz

Introdução
Dizem os historiadores da igreja que, durante mais ou menos mil e quinhentos
anos, viveu-se, na igreja, sem uma definição de “igreja”. Acontece que a igreja
estava tão presente na vida das pessoas ao longo de tanto tempo, na forma de
uma organização monolítica, que não havia necessidade de definir esse conceito.
A igreja era “confessada”, nos Credos (especialmente o Niceno), como “una, santa,
católica (cristã) e apostólica”. Mas não havia necessidade de ir muito além disso.
Com o início do movimento da Reforma, no século XVI, o conceito de igreja se
tornou problemático.
Em sua confissão basilar, a Confissão de Augsburgo (Artigo VII), os evangélicos
(depois chamados de luteranos) afirmaram que “sempre haverá e permanecerá
uma única santa igreja cristã, que é a congregação (ou “reunião”) de todos os
crentes, entre os quais o evangelho é pregado puramente e os santos sacramentos
são administrados de acordo com o evangelho”. E quando muitos quebravam
a cabeça em busca de uma definição filosófica da igreja, Lutero, nos Artigos de
Esmalcalde (Artigo XII, Da igreja), se gaba de que “... graças a Deus, uma criança
de sete anos sabe o que é a igreja, a saber, os santos crentes e ‘os cordeirinhos que
ouvem a voz de seu pastor’”.
Martinho Lutero preferiu o termo “congregação” ou “comunidade” (em alemão,
“Gemeinde”). O consagrado termo “Kirche” (igreja) ele reservou para umas poucas
passagens do Antigo Testamento, em geral relacionadas com idolatria. Um caso
específico é 2 Reis 10.23, em que Lutero usou o termo “Kirche” para traduzir a
locução “casa de Baal”.
128

Entretanto, em sua definição de igreja nos Artigos de Esmalcalde, Lutero faz a


ULBRA – Educação a Distância

criança de sete anos recitar uma definição tirada diretamente do texto bíblico,
mais especificamente João 10. Isso parece indicar que, para se ter uma definição
adequada do que seja “igreja”, é preciso investigar o texto bíblico.

10.1 O termo “igreja” no Novo Testamento


Uma pesquisa na concordância grega revela que o termo “igreja” (em grego, ekklesía)
aparece, ao todo, 114 vezes. Parece um número baixo, e é. Na verdade, o conceito de
igreja é muito mais importante do que esse número dá a entender. Acontece que o
assunto aparece, mesmo onde o termo “igreja” não é usado. É o caso, por exemplo,
da definição de Lutero: “os cordeirinhos que ouvem a voz de seu pastor”.
Nos Evangelhos, o termo igreja aparece em somente duas passagens: Mateus 16.18
e Mateus 18.17. Neste último texto, o termo aparece duas vezes. No livro de Atos,
“igreja” ocorre 23 vezes. O maior número de ocorrências está nas cartas de Paulo: 46
vezes. O termo não é usado em 1 Pedro, 2 Pedro, 2 Timóteo e Tito. O termo é mais
frequente no singular do que no plural. O plural ocorre apenas 35 vezes, sendo 20
delas em Paulo e várias outras em Atos dos Apóstolos e no Apocalipse.
Entretanto, como já foi indicado, o tema da eclesiologia é bem mais amplo.
Acontece que a igreja é apresentada de outras formas. Não será possível elaborar
uma lista completa. Basta, para fins de ilustração, citar as seguintes designações:
sal da terra, carta de Cristo, ramos da videira, lavoura de Deus, edifício de Deus,
senhora eleita, noiva de Cristo, os cidadãos, os pobres, povo de Deus, o novo
Israel, raça eleita, nação santa, as doze tribos, a verdadeira circuncisão, filhos de
Abraão, os eleitos, rebanho, sacerdócio real (“do rei”), os santificados, os fiéis, os
justificados, seguidores, discípulos, família de Deus, filhos de Deus, irmandade,
corpo de Cristo.

10.2 O significado do termo “igreja” (ekklesía)


no Novo Testamento
Apesar de todos os esforços em sentido contrário, ainda se percebe, pelo menos
num nível mais popular, uma forte tendência no sentido de definir “igreja” a partir
de um exame da suposta etimologia. Argumenta-se que ekklesía é derivado do
verbo ekkaléo, que, em grego, pode significar “chamar para fora”. Por conseguinte,
a igreja seria o conjunto daqueles que foram “chamados para fora”. Este pode ser
um aspecto que faz parte de uma definição de igreja, mas não deriva diretamente
o uso do termo grego. A rigor, nos tempos bíblicos, essa suposta etimologia, se é
que alguma vez foi levada a sério, havia sido há muito esquecida.
129

Assim, em seu uso (que é o que realmente importa), a palavra pode designar, num

ULBRA – Educação a Distância


sentido mais secular, uma “reunião” ou “assembleia popular dos cidadãos”. No
mundo antigo, portanto, a ekklesía era a assembleia popular dos membros da pólis,
a cidade. Tal assembleia de cidadãos é o que se tem em vista em Atos 19.32,39. Um
segundo significado de ekklesia, não totalmente diverso do anterior, é “congregação”
ou “comunidade cristã reunida”. Tal uso se verifica em Romanos 16.5,16, por
exemplo. Um terceiro significado, numa espécie de ampliação do significado
anterior é o de “todos os cristãos que vivem num lugar”, como acontece em Atos
8.1. E, por fim, num sentido talvez mais teológico ainda, ekklesía pode designar
“todos os crentes”, como em Efésios 1.22.

10.2.1 Formulações interessantes relacionadas com “igreja”


Das várias formulações que aparecem no Novo Testamento, algumas se destacam
pela sua singularidade. Inicialmente, as formulações com o termo igreja no singular.
Em Atos 5.11, ao final da história de Ananias e Safira, informa-se que “sobreveio
temor a toda a igreja”. Naquele momento a igreja estava como que restrita a
Jerusalém, mas isto não significa que não havia cristãos em outros lugares. No
entanto, nota-se que uma assim chamada igreja local é chamada simplesmente de
igreja, sem qualquer adjetivação. Mais adiante, em 1 Coríntios 15.9, Paulo afirma
que perseguiu a igreja de Deus. A rigor, ele perseguiu a igreja de Jerusalém e
tencionava perseguir a igreja de Damasco. Portanto, uma igreja local é claramente
chamada de “igreja”.
Em Atos 11.22, tem-se em vista claramente a igreja local de Jerusalém, ao se dizer: “a
igreja que estava em Jerusalém”. Em vários momentos se usa uma expressão como
“a igreja de Antioquia” (At 13.1). A rigor, a igreja é “de Antioquia” no sentido de
estar em Antioquia. Tanto assim que, em Romanos 16.1, onde a tradução de Almeida
traz “a igreja de Cencreia”, o que consta no original grego é, na verdade, “a igreja
que está em Cencreia”. Em Atos 20.28 fica claro que a igreja é “de Deus”.
Em se tratando do uso do termo no plural, as igrejas são “de Cristo” (Rm 16.16),
“de Deus” (1 Co 11.16), mas podem ser também as igrejas “dos santos” (1 Co
14.33), no sentido de “igrejas do povo de Deus” (NTLH), e as igrejas “dos gentios”
(Rm 16.4), sentido de “igrejas dos crentes vindos do paganismo”, como aparece
em certa tradução (A Bíblia para Todos, feita em Portugal). Mas essas igrejas têm
também uma localização específica em determinado lugar, a ponto de poderem ser
apresentadas como “de certo lugar”. Assim, existem “as igrejas da Galácia” (1 Co
16.1), as igrejas “da Ásia” (1 Co 16.19) e “da Macedônia” (2 Co 8.1). Fica claro que
se tratam de igrejas que se encontram naquelas regiões. No Apocalipse, aparecem
“sete igrejas” (Ap 1.4).
130

10.3 Alguns tópicos controvertidos relacionados com igreja


ULBRA – Educação a Distância

Um assunto que se discute desde longa data é a conexão entre Jesus e igreja. A
princípio, nada poderia ser mais óbvio: a igreja está conectada com Jesus, pois é
o corpo de Cristo. No entanto, trata-se, neste caso, da discussão se Jesus tinha a
intenção de “fundar” uma igreja, vista aqui mais no sentido de organização. A
pergunta é pertinente, porque, no caso de João Batista, pode-se afirmar com relativa
segurança que ele não tinha a intenção de formar uma “comunidade dos seguidores
de João Batista”, por mais que ele tivesse discípulos. Em outras palavras, as pessoas
não deixavam sua casa, sua profissão, etc. para seguir João Batista. Com Jesus foi
diferente, o que já ajuda a encaminhar uma resposta.
Antes da resposta, no entanto, convém formular bem a pergunta. Era intenção de
Jesus que a igreja viesse a existir? A pergunta se impõe, em função da seguinte
observação, feita sempre de novo: “Jesus anunciou a vinda do Reino de Deus, mas
em seu lugar surgiu a igreja”.
De fato, Jesus falou muito sobre o reino e aparentemente pouco sobre igreja. Não
há registro de que num determinado momento ele tenha “fundado” a igreja, o que
não significa que ele não previa o surgimento da igreja. Também é verdade que o
termo “igreja” aparece apenas três vezes nos Evangelhos, o que não significa que,
pela falta do termo, a “coisa em si” lá não esteja. Ao falar sobre um “pequenino
rebanho” (Lc 12.32), Jesus estava se dirigindo à sua igreja. Mas talvez o maior indício
de que Jesus tinha a igreja em mente é a escolha dos apóstolos. Essa escolha deu
conta de duas coisas: constituiu a igreja e instituiu o ministério. Em outras palavras,
os apóstolos eram ao mesmo tempo igreja e ministério (pastoral) dessa igreja. Jesus
escolheu os apóstolos para que esses pudessem ser o que o termo apóstolo indica:
seus representantes na continuação da obra de proclamação do Reino de Deus.
Levando isso em conta, é problemático afirmar que a igreja cristã foi fundada no
dia do Pentecostes. O próprio Novo Testamento não faz essa identificação. O dia
do Pentecostes foi muito antes o início da missão cristã no mundo.

10.4 Igreja e Reino de Deus, com ênfase nos Evangelhos


Não raras vezes, os termos “igreja” e “Reino de Deus” são usados como se fossem
sinônimos. Fato é que, por mais ligados que estejam, reino e igreja não são a mesma
coisa. Antes de detalhar alguns aspectos em que os dois conceitos se diferenciam,
convém fazer algumas afirmações sobre o conceito que parece mais “vago” ou
mais fácil de ser interpretado de forma equivocada. O reino de que fala Jesus não
é primariamente algo espacial, mas dinâmico. Em outras palavras, não se trata de
um lugar, mas de um poder que atua. De certa forma, o Reino de Deus é a ação do
rei, que é Deus. Assim sendo, o reino sempre é de Deus. Para ser nosso, ele precisa
ser dado e é dado (Lc 12.32). Nos Evangelhos, o Reino de Deus é o próprio Jesus.
131

Se o Reino de Deus é semelhante a isso ou aquilo, seria possível dizer que aquilo

ULBRA – Educação a Distância


que Deus faz na pessoa de seu Filho, Jesus, é semelhante ao que ali é apresentado.
Também é verdade que esse reino já veio (Lc 17.20) e ainda virá (Mt 6.10).
Significativo é o dado relacionado com verbos usados em conexão com “Reino
de Deus” e “igreja”, pois aponta para a diferença entre ambos. O reino é pregado
(Mt 4.23), é de alguém (Mt 5.3), nele se entra (Mt 5.20), ele vem (Mt 6.10), pode ser
buscado (Mt 6.33), pode ser comparado com algo (Mc 4.30). Por vezes alguém fala
sobre a “edificação” do reino. O Novo Testamento não faz uso dessa linguagem.
De certa forma, trata-se de algo impossível, caso se levar em conta que o reino é
essencialmente a pessoa do Rei Jesus. A igreja, sim, pode ser edificada (Mt 16.18;
1 Co 14.4, 12), pode “ouvir”e “falar” (Mt 18.17), pode ser devastada e perseguida
(At 8.3), pode edificar-se e caminhar no temor (At 9.31), reunir-se (Atos 14.27),
enviar (At 15.3), receber (bem) (At 15.4), ser fortalecida na fé (At 16.5), ser saudada
(At 18.22) e mandar saudações (Romanos 16.16), ser pastoreada (At 20.28), pode
eleger ou escolher pessoas (2 Co 8.19), ser objeto de preocupação (2 Co 11.28). A
igreja está sujeita a Cristo (Ef 5.24), é amada (Ef 5.25) e cuidada (1 Tm 3.5) por ele.
3 João 10 fala sobre ser expulso da igreja.
Quanto à relação entre reino e igreja, seria possível dizer que, no caso do reino, a
ênfase está mais na ação de Deus e na pessoa de Jesus, ao passo que a igreja é mais
o resultado da ação do reino (o corpo de Cristo, os discípulos). Além disso, pode-se
dizer que o reino cria e mantém a igreja; os poderes do reino (com destaque para a
palavra) atuam na igreja. O reino atua através da igreja e é proclamado pela igreja.
Neste sentido, a igreja é a “guardiã” do reino. A vinda do reino resulta na igreja;
onde está a igreja (de fato), ali está também o Reino de Deus. Os antigos tinham
um ditado que dizia: onde está Cristo, ali está a igreja. Seria possível dizer: onde
está o reino, ali está a igreja.

10.5 Igrejas e igreja, igrejas locais e igreja como um todo


Viu-se, numa seção anterior, que o Novo Testamento fala tanto sobre “igreja”
(no singular) quanto sobre “igrejas” (no plural). Num primeiro momento, seria
possível pensar que a igreja é o resultado da combinação de todas as igrejas.
Somando todas as igrejas ou vendo todas em conjunto se teria, então, a igreja.
Esta seria uma “solução” matemática ou, então, sociológica. No entanto, a igreja
não é uma grandeza sociológica, e sim teológica. Tanto assim que se pode falar
de uma igreja local e dizer que ela é a igreja. Afinal, o que constitui a igreja não
é o número de pessoas ou a sua localização geográfica, mas a presença do reino,
que é Jesus, principalmente através de sua palavra. Na definição das Confissões
Luteranas (Artigo VII da Confissão de Augsburgo), as marcas da igreja são
palavra e sacramentos. Onde dois ou três estão reunidos em nome de Jesus, ele
está no meio deles. E ali estará a igreja. E a essa igreja nada falta. Ela está em si
132

completa. Não é apenas uma parte da igreja, um núcleo da igreja, mas é a igreja.
ULBRA – Educação a Distância

Cada uma das ekklesiai (“igrejas”) é ekklesia (“igreja”) no sentido pleno da palavra.
Claro, a igreja não se limita àquele grupo reunido em torno da Palavra de Deus
em determinado lugar.
O Novo Testamento não afirma isso com todas as letras, mas essa é uma conclusão
que se pode, legitimamente, tirar das várias formulações usadas para falar sobre
a igreja. Em especial, no livro de Atos dos Apóstolos. L. Coenen, no verbete sobre
“Igreja”, no Dicionário Internacional de Teologia do Novo Testamento (v.2, p.404-405)
afirma: “Em Atos dos Apóstolos ... a igreja é uma só, em última análise, embora
somente apareça conforme se reúne em lugares específicos (cf. 14.27). Isto, porém,
sempre subentende a totalidade”. Ainda à página 405, Coenen constata que a
igreja “é uma só, em todo o mundo, e, ao mesmo tempo, é plenamente presente
em todas as assembleias individuais. Há identidade qualitativa (destaque nosso)
entre o singular e o plural. Lucas [em Atos] ... pode falar no singular igualmente
da igreja em geral (At 8.3 – “Saulo, porém, assolava a igreja, entrando pelas casas
...”) e da ekklesia “por toda a Judeia, Galileia e Samaria” (At 9.31)”. À luz disso,
pode-se concluir que são problemáticas, para não dizer equivocadas, as noções
de que a igreja como um todo feito de partes que se encontram espalhadas por
todo o mundo (que alguém poderia chamar de visão mais católica) e também
de que a igreja é basicamente um grande grupo de comunidades que, reunidas
ou vistas no seu todo, formam a igreja (no que se poderia chamar de visão mais
congregacionalista). Em termos teológicos, é preciso dizer que a una sancta (para
utilizar um termo da Teologia Sistemática) é ao mesmo tempo o conjunto de
todos os crentes em Cristo e os crentes em Cristo que se reúnem concretamente
em determinado lugar. Portanto, ninguém está autorizado a chamar um grupo
de cristãos reunidos em determinado lugar (especialmente quando procedem de
diferentes igrejas locais) de “representantes da igreja” ou de “núcleo da igreja”,
porque aquele povo reunido em torno da Palavra de Deus é a igreja.

10.6 Igreja e sínodo


No contexto das igrejas luteranas, é comum usar o conceito de sínodo. O que se
entende por sínodo? De tempos em tempos se ouve alguém dizer que “sínodo”
vem do grego e significa “caminhar juntos”, o que, se não for realidade, deveria
ser o grande alvo de um grupo de igrejas locais que forma um sínodo. Na verdade,
porém, o termo sínodo significa reunião ou concílio, e não um caminhar juntos.
Sínodo é, portanto, outro termo para igreja. Conota, entretanto, mais o aspecto
organizacional ou institucional (mais ou menos como “convenção” e “ministério”,
que são termos usados em outras denominações cristãs).
Normalmente, um “sínodo” é um grupo de congregações ou igrejas locais que se
unem, ou, então, reúnem, para fazer uma tarefa em conjunto. É assim, ao menos,
133

que muitos luteranos entendem a função de um sínodo. Formação de pastores

ULBRA – Educação a Distância


e obreiros, expansão missionária, produção de literatura, serviço social e outras
coisas que uma igreja local isolada não conseguiria realizar a contento sozinha são
tarefas assumidas por um sínodo.
A pergunta que alguém poderia fazer é se existe algo semelhante a um sínodo na
Bíblia, e, em caso afirmativo, se podemos aprender algo de uma experiência assim.
Antes de responder, é preciso dizer que, mesmo que não houvesse nenhum vestígio
de “sínodo” na Bíblia, isso não significaria que se estaria desautorizado a formar
um. Sob a ótica da liberdade cristã, se não foi proibido, pode ser feito, desde que
seja conveniente, isto é, desde que não ofenda os demais nem fira o mandamento do
amor ao próximo. Isso precisa ser enfatizado sempre de novo, contra o pensamento
de que só se pode fazer o que está explicitamente autorizado nas Escrituras.
Respondendo a pergunta quanto a sínodo na Bíblia, pode-se dizer que o mais
próximo que se chega da noção de um “sínodo” é a coleta que Paulo organizou
nas igrejas por ele fundadas. Paulo fala disso nas Cartas aos Coríntios (1 Co 16.1-
4; 2 Co 8-9) e na Carta aos Romanos (Rm 15.22-33). O começo de tudo parece ter
sido a promessa que Paulo tinha feito a Tiago, Pedro e João, em Jerusalém, de
lembrar os pobres das igrejas entre os judeus (Gl 2.10). Disso resultou a assim
chamada coleta para ajudar o povo de Deus em Jerusalém, um projeto ao qual o
apóstolo Paulo se dedicou por mais de uma década! Por vezes se fala sobre “as
igrejas paulinas”. Estas poderiam ser descritas, nos dias atuais, em termos de um
sínodo ou uma convenção.
Fica difícil saber se as igrejas de Filipos e Tessalônica (na província da Macedônia)
ou as igrejas de Corinto e Cencreia (na província da Acaia) estavam se dando
conta de que faziam parte de um “sínodo”. Também é verdade que, o quanto se
sabe, não houve uma reunião sinodal ou convenção para discutir essa e outras
questões. Aquela coleta foi um projeto que o apóstolo Paulo “vendeu” às igrejas.
Era um trabalho de serviço social cristão. Paulo procurou sensibilizar as igrejas
cristãs entre os não judeus para a situação difícil pela qual passavam os cristãos
necessitados de Jerusalém.
Agora, esse projeto da coleta em favor dos cristãos pobres de Jerusalém foi um
desafio e tanto para o apóstolo Paulo! A maior resistência ao “projeto sinodal” veio,
pelo que parece, dos cristãos de Corinto. Ao ler a argumentação de Paulo em 2
Coríntios 8 e 9, percebe-se que eles conheciam muito bem algumas das desculpas
que ainda hoje as pessoas usam para se esquivar de projetos que vão além das
fronteiras de nossa própria congregação ou igreja: “Se só tivéssemos mais recursos,
seria muito mais fácil ajudar” (2 Co 8.12). “Para aliviar os outros, vamos pôr um
peso sobre nós mesmos”! (2 Co 8.13). “Se dermos para os outros, vai faltar para
nós” (2 Co 9.8). Além de fazer frente a cada uma dessas desculpas, o apóstolo Paulo
aponta para o grande amor de nosso Senhor Jesus Cristo, que “era rico, mas, por
134

amor a vocês, ... se tornou pobre a fim de que vocês se tornassem ricos por meio
ULBRA – Educação a Distância

da pobreza dele” (2 Co 8.9).


Com certeza, a criação de uma mentalidade “sinodal” ou “transcongregacional”
é um desafio ainda hoje. Entre luteranos, em especial, tende a imperar uma
mentalidade congregacional. Tudo que transcende o nível local, em termos de
distrito, região ou federação nacional de igrejas, costuma vir acompanhado de
algum adjetivo: igreja nacional, distrito da igreja, etc. À luz da definição teológica
de igreja dada acima, seria possível e necessário, em qualquer um desses níveis
(local, regional, etc.), dizer simplesmente “igreja”.

Atividades de autoestudo
1. Nos Evangelhos, o termo “igreja” aparece unicamente três vezes, em dois textos:
Mateus 16.18 e Mateus 18.17. Examine esses textos dentro de seu contexto e
diga se em cada um desses o que se tem em vista é uma igreja local ou a igreja
mais no sentido universal (o conjunto de todos os crentes).

2. A igreja estava tão presente na vida das pessoas ao longo de tanto tempo, na
forma de uma organização monolítica, que não havia necessidade de definir
esse conceito. A igreja era “confessada”, nos Credos (especialmente o Niceno),
como “una, santa, católica (cristã) e apostólica”, ganhando novas conceituações
com o advento da Reforma, no século XVI. De acordo com Lutero e as confissões
luteranas, a igreja é:
a. Os santos crentes e os cordeirinhos que ouvem a voz de seu pastor.

b. A reunião de todos os crentes, entre os quais a pregação e os sacramentos


são administrados de acordo com o evangelho.

c. Marcada pela disciplina eclesiástica.

d. Marcada pela palavra e sacramentos.

e. As alternativas “a”, “b” e “d” são corretas e correspondem à definição


de Lutero e das confissões luteranas.
135

3. O termo “igreja” (em grego, ekklesía) aparece, ao todo, 114 vezes no Novo

ULBRA – Educação a Distância


Testamento, podendo significar:
a. A congregação ou comunidade cristã reunida.

b. Todos os cristãos que vivem num lugar.

c. Todos os crentes de uma forma geral.

d. Uma reunião ou assembleia popular dos cidadãos, num sentido mais


secular.

e. Todas as alternativas apresentam possíveis significados para o


termo.

Respostas
2.e; 3.e

Referências
COENEN, L. “Igreja.” In: Dicionário Internacional de Teologia do Novo Testamento. São Paulo:
Vida Nova, 1982, v.2, p.392-408.
KLOHA, Jeffrey. “The Trans-Congregational Church in the New Testament.” In: Concordia
Journal, July 2008, p.172-190.

You might also like