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Associação dos Amigos da Escola Nacional Florestan Fernandes | ​número 01 

Cadernos de Análises 
da Conjuntura 
 

Contribuições para pensar o futuro a partir do entendimento do presente e 


da análise do passado. 
janeiro/2018. 
 

 
 

APRESENTAÇÃO 

  

Contribuições  para  pensar  o  futuro  a  partir do entendimento do presente e da análise 


do passado 

  

E  a  superação  do  capitalismo,  a  partir  do  desenvolvimento  de  suas 


contradições  internas,  é  o  que  a  prática  histórica  e  a  teoria  dessa  prática 
vêm  explicitando  por  meio  da  categoria  “socialismo”.  Fora  disto  a 
alternativa que resta é a barbárie (Saviani, 1991, p. 103-104). 

  

O  conjunto  de  textos  deste  “Caderno”  pretende  contribuir  para  que  nossos  associados, 
cidadãos  progressistas,  interessados  em  causas  sociais  em  geral,  participem  do  debate 
acerca da conjuntura atual e seus desdobramentos para 2018. 

Ao  longo  de  2017  realizamos  debates  com  associados  e  convidados  acerca  de  temas 
aqui  refletidos  e,  agora,  publicamos  este  volume  com  análises  em  diversas  áreas.  Em 
comum,  a  reflexão  crítica  acerca  da  conjuntura  política  do  Brasil  e  do  mundo,  realizada 
por  intelectuais  e  militantes  de  causas que estão no centro da disputa de poder, tendo o 
Golpe  que  depôs  a  presidenta  Dilma  em  2016  como  elemento  de  destaque  para  a  luta 
política. 

Adotamos  como  ideia  inicial  a  necessidade  de  realizarmos  análise  da  conjuntura  para 
possibilitar  a  compreensão  da  realidade,  as  relações  do  momento  presente  com  o 
passado  e  com  as perspectivas do futuro, a partir da relevância da conjuntura, entendida 
como  contexto  que,  em  grande  medida,  define  os  processos  socioculturais  de um dado 
grupo humano. Para Almeida (2017): 

A  conjuntura,  por  seu  turno,  não  é  formada  apenas  de  elementos 


passageiros,  pois  reflete  e  condensa,  num  determinado  momento,  a 
contextualização  de  relações  estruturais  e  superestruturais  mais 
permanentes  (Gramsci,  2000  e  Fiori,  2003).  Neste  sentido  —  e  numa 

 
 

leitura  mais  restrita — as Representações Sociais da Política contêm, como 


parte  de  seus  elementos,  um  “estado  de  opinião”  (Bourdieu,  1980  e 
Augras, 1978). 

  

A  partir  destas  premissas,  a  Associação  dos  Amigos  da  Escola  Nacional  Florestan 
Fernandes  (AAENFF)  convidou  amigas  e  amigos  que  atuam  em  diferentes  frentes  de 
militância a refletirem, a partir de suas experiências, sobre a conjuntura e as perspectivas 
para 2018. 

O  resultado  é  o  que  apresentamos  a  seguir.  São  textos,  em  sua  maioria  inéditos,  nos 
quais  nossos  associados  apresentam  reflexões  sobre  o contexto atual em suas áreas de 
atuação.  No  conjunto,  o  que  temos  é  uma  análise  abrangente  sobre  a  realidade 
brasileira  e,  sempre  que  se  faz  necessário,  conectando-a  ao  que  ocorre  no  mundo,  de 
maneira  a  apresentar  ao  leitor  uma  espécie  de  retrato  que  nos  interroga  e  faz  refletir 
sobre nossa condição e as perspectivas de nossa sociedade. 

São  textos  produzidos  por  militantes.  A  trajetória  dos  autores  deixa  suas  marcas  nas 
metodologias  de  abordagem,  na  linguagem  utilizada.  Alguns  têm  viés  mais  acadêmico, 
outros,  menos.  O  que  os  unifica  é  a  capacidade  de  explicar  o  Brasil  a  partir  de  uma 
perspectiva  progressista,  antes  de  ser  partidária.  É  a  realidade  do  país  analisada  pelo 
olhar  crítico  daqueles  que  não  se  conformam  e  lutam  por  mudanças.  São  textos, 
sobretudo, militantes, e que vislumbram uma nova ordem política. 

Os  temas  acompanham  a  diversidade  da  sociedade  brasileira:  ​povo  negro,  população 
LGBT; educação; direito à cidade; mulheres do campo; globalização e economia. 

Os  autores  também  revelam  a  diversidade  e  a  possibilidade  de  pensarmos  as questões 


do  nosso  tempo  a  partir  de  perspectivas  teóricas  e  de  experiências  de  vida  ao  mesmo 
tempo  ​relevantes,  complexas  e  diversas: Dermeval Saviani, Muryatan Barbosa, Amelinha 
Teles,  Leda  Paulani,  Ermínia  Maricato  e  Carina  Serra,  Kelli  Mafort  e  Ana  Terra,  Tatiana 
Berringer  e  Diego  Azzi.  São  militantes  com  diferentes  formações,  de  gerações  que 
conviveram  com  formas  de  luta  contra  a  opressão  e  que  buscam  posicionar  aquelas  e 

 
 

aqueles  que  lutam  contra  as  classes  dominantes  e  suas  metamorfoses,  utilizadas  para 
permanência  da  situação que a elas interessa, mas que nos é desfavorável. Combater as 
artimanhas dos poderosos é nossa tarefa histórica. Entender tais artimanhas é vital! 

A  leitura  de  tais  textos,  certamente,  contribuirá  para  nos  prepararmos  para  o  próximo 
período,  conhecendo  melhor  os  temas  que  definem  a  pauta  dos  movimentos  sociais, 
partidos  políticos  e  dos  segmentos  da  sociedade  civil  comprometidos  com  valores 
progressistas. 

Como  nossa  Associação  está  diretamente  ligada  a  uma  escola,  a  ENFF,  finalizamos 
nossa  apresentação  aos  textos  do Caderno com uma citação do texto do Prof. Dermeval 
Saviani, aqui publicado: 

 
Diante  desse  quadro  volto  a  advogar  a  resistência  ativa  [...]  que  implica 
dois  requisitos:  a)  que  seja  coletiva,  pois  as  resistências  individuais  não 
têm  força  para  se  contrapor  ao  poder  exercido  pelo  governo  ilegítimo  e 
antipopular;  b)  que  seja  propositiva,  isto  é,  capaz  de  apresentar 
alternativas às medidas do governo. 
Nessa  resistência  contamos  com  uma  teoria  pedagógica  cujo 
entendimento  das  relações  entre  educação  e  política  é  diametralmente 
oposto àquele esposado pela “escola sem partido”. Trata-se da pedagogia 
histórico-crítica  que,  contrapondo-se  ao  movimento  “escola  sem  partido”, 
postula  que  na  sociedade  de  classes,  portanto,  na  nossa  sociedade,  a 
educação  é  sempre  um  ato  político,  dada  a  subordinação  real  da 
educação à política. 

  

A  AAENFF,  com  estes  textos,  deseja  participar  da  luta  política  mais  geral  e  contribuir 
para o avanço das lutas contra a opressão de classes no Brasil. 

Abraços fraternos e boa leitura! 

Associação dos Amigos da Escola Nacional Florestan Fernandes. 

 
 

SUMÁRIO 
 
 
 
CRISE DO CAPITALISMO, CRISE POLÍTICA NO BRASIL E  
RETROCESSO NA EDUCAÇÃO ​01 
Dermeval Saviani 
 
 
CRISE MUNDIAL, CRISE BRASILEIRA E O RACISMO 11 
Muryatan S. Barbosa 
 
 
MULHERES E RESISTÊNCIA! 25 
Amelinha Teles 
 
 
A LATA D’ÁGUA MAIS PESADA: mulheres do campo e a luta contra o golpe ​35 
Kelli Cristine de Oliveira Mafort e Ana Terra Reis 
 
 
NÃO HÁ SAÍDA SEM A REVERSÃO DA FINANCEIRIZAÇÃO ​47 
Leda Maria Paulani 
 
 
GLOBALIZAÇÃO EM XEQUE ​55 
Tatiana Berringer e Diego Azzi 
 
 
BR CIDADES — UM PROJETO PARA AS CIDADES DO BRASIL ​60 
Ermínia Maricato e Carina Serra 

 
Cadernos de Análises da Conjuntura n. 1, jan/2018. 

CRISE DO CAPITALISMO, CRISE POLÍTICA NO BRASIL E 


RETROCESSO NA EDUCAÇÃO 
1
Dermeval Saviani  

 
A crise estrutural do capitalismo 
 
Conforme  Mészáros,  uma  crise  é  estrutural  quando “afeta a ​totalidade ​de 
um  complexo  social  em  todas  as  relações  com  suas  partes  constituintes  ou 
subcomplexos,  como  também  a outros complexos aos quais é articulada” (2002, 
p.  797).  É  distinta  da  crise  não  estrutural  que  “afeta  apenas  algumas  partes  do 
complexo  em  questão,  e assim, não importa o grau de severidade em relação às 
partes  afetadas,  não  pode  pôr  em  risco  a  sobrevivência  da  estrutura  global” 
(idem,  ibidem).  E  o próprio Mészáros (idem, p. 796) desde 1994, quando lançou a 
edição  original  de  ​Para  além  do  Capital​,  já  ​considerava  estrutural  a  atual  crise 
do  capitalismo,  tendo  em  vista  seu  caráter  ​universal​,  seu  alcance  ​global​,  sua 
escala  de  tempo  contínua  ou  ​permanente  e  seu  modo  de  desdobrar-se 
rastejante​,  isto  é,  mesmo  sem  negar  possíveis  manifestações  mais 
espetaculares,  a  crise  vai  persistentemente  se  insinuando  nas  várias dimensões 
características da estrutura, minando-a progressivamente.  
Hoje  os  sinais  da  crise  estrutural  estão  bem  mais  visíveis.  Tendo  se 
estendido  por  toda  a  Terra,  o  capitalismo  não tem mais para onde se expandir e 
passa  a  obter  uma  sobrevida  por  meio  da  “produção  destrutiva”.  Isso  porque 
aquilo  que  é  destruído  pode  ser  reconstruído  a  partir  das  relações  sociais  de 
produção  dominantes,  baseadas  na  propriedade  privada.  Mas  já  não  é  mais 
possível  desenvolver  novas  forças  produtivas  porque  as  relações  sociais 
privadas,  que  até  meados  do  século  XX  impulsionaram  o  desenvolvimento  das 
forças  produtivas,  a  partir  da  crise  dos  anos  de  1970,  que  determinou  a 
reconversão  produtiva  com  o  advento  do  neoliberalismo,  passaram  a  frear  o 

1
Professor Emérito da UNICAMP, Pesquisador Emérito do CNPq, Coordenador Geral do 
HISTEDBR e Professor Titular Colaborador Pleno do Programa de Pós-Graduação em Educação 
da UNICAMP. 


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avanço  das  forças  produtivas  gerando  esses  fenômenos  a  que  estamos 


assistindo  de  desastres  ambientais,  acidentes  de  trânsito,  guerras  localizadas e, 
mais  recentemente,  as  manifestações  acompanhadas  da  queima  de  veículos  e 
outras  formas  destrutivas  nomeadas  pela  imprensa  como  vandalismo,  assim 
como  pelas  ações  do  crime  organizado  tanto  a  partir  das  prisões  como  nas 
áreas  de  controle  do  tráfico  de  drogas.  Aliás,  os  dois  setores  que  movimentam 
as  maiores  somas  de  capitais nos dias de hoje são o comércio de armamentos e 
o comércio de drogas. 
Mas  além  desses  eventos  extrínsecos  ao  processo  produtivo  que 
alimentam  a  reprodução  capitalista,  o  próprio  modo  de  produzir  incorporou 
intrinsecamente  a  forma  destrutiva  ao  reger-se  pela  obsolescência  programada 
mediante  a  qual  os  bens  são  produzidos  para  durar  pouco  exigindo  em tempos 
cada  vez  mais  curtos  a  necessidade  de  sua  substituição.  Isso  ocorre  com  todos 
os  produtos  sendo  mais  evidente  nos  equipamentos  eletrônicos  que  utilizam 
como  matéria  prima  o  plástico  cujos  artefatos  obsoletos  inundam  o  planeta 
danificando o meio ambiente. 
Com  a  desintegração  do  “socialismo  real”, todos os problemas do mundo 
de  hoje  são  problemas  ​do  ​capitalismo.  Em  1990,  no  calor  dos  acontecimentos 
relativos  ao  colapso  da  União  Soviética, escrevi que em lugar de acreditar que o 
socialismo  morreu  e  que  Marx  fracassou,  as  evidências  apontam  em  sentido 
contrário,  pois  esse  fato  apenas  realça  a  consistência  da  tese  de  Marx segundo 
a  qual  “nenhum  modo  de  produção  desaparece  antes  de  ter  esgotado todas as 
suas  possibilidades”  e  que  não  é  possível  uma  solução  parcial  para  os 
problemas  postos  pelo  capitalismo.  Portanto,  o  que  se  comprova  é  que  a 
tentativa  de  se  implantar  o  socialismo  em  apenas  uma  parte  do  mundo  se 
revelou  inviável.  Fracassou,  pois,  o  socialismo  como solução parcial; mas não se 
pode  dar  como  comprovada  a  inviabilidade  do  socialismo  como  solução  global. 
Agora  não  há mais os problemas do socialismo paralelamente aos problemas do 
capitalismo.  Todos  os  problemas do mundo, hoje, são problemas ​do ​capitalismo. 
E  precisam  ser  resolvidos,  o  que  só  pode  ocorrer  com  a  superação  do  próprio 
capitalismo  como  totalidade.  E  a  superação  do  capitalismo,  a  partir  do 


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desenvolvimento  de  suas  contradições  internas,  é  o  que  a  prática  histórica  e  a 


teoria  dessa  prática  vêm  explicitando  por  meio  da  categoria  “socialismo”.  Fora 
disto, a alternativa que resta é a barbárie (Saviani, 1991, p. 103-104). 
Portanto,  o  grande  desafio  posto  pela  crise  global  do  capitalismo  diz 
respeito  à  sua  transformação  radical,  construindo,  pela  práxis  revolucionária, 
uma nova sociedade de base socialista. Mas, na conjuntura atual da crise política 
brasileira,  nos  defrontamos  com  um  desafio  preliminar:  a  necessidade  de 
restabelecer  a  democracia  formal  destruída  pelo  golpe  desfechado  contra  a 
Presidenta eleita, pois a deposição da presidenta sem que se configurasse crime 
de  responsabilidade  resultou na quebra da institucionalidade democrática com a 
consequente escalada de arbítrio que vem assumindo proporções inimagináveis.  
 
A crise política no Brasil hoje 
 
Em  consequência  da quebra da institucionalidade democrática abriram-se 
as  portas  para  toda  sorte  de  arbítrio  com  constantes  violações  dos  direitos  dos 
cidadãos  ao  arrepio  do  que  dispõe  a  Constituição.  Tudo isso com o beneplácito 
do  Supremo  Tribunal  Federal,  cuja  missão  é  velar  pelo  respeito  às  normas 
constitucionais.  Encontramo-nos,  pois,  num  verdadeiro  Estado  de  Exceção 
evidenciado  por  fatos  como  o  do  Tribunal  Regional  Federal  da  4ª  região  (Porto 
Alegre)  que,  em  decisão  acordada  numa  votação  de  13  votos  a  1,  declarou  que 
em  tempos  excepcionais  as decisões judiciais não precisam observar as leis; e o 
juiz  Alex  de  Oliveira,  da  Vara  da  Infância  e  Juventude  do  Tribunal  de  Justiça  do 
Distrito  Federal,  em  decisão  prolatada  em  30  de  outubro  de  2016,  autorizou  o 
uso  de  técnicas  de  tortura  para  convencer  os  estudantes  a  desocupar  as 
escolas;  em  São  Paulo  a  polícia  também  adotou  métodos  de  tortura 
evidenciados  no  vídeo  “Lute  como  uma  menina”  disponível no ​youtube​; invasão 
pela  polícia,  no  dia  4/11/2016,  da  Escola  Nacional  Florestan  Fernandes,  em 
Guararema-SP,  chegando com dez viaturas a pretexto de deter uma mulher sem, 
no  entanto,  a  ordem  judicial  de  prisão.  Pularam  a  janela  e  entraram  apontando 
as  armas,  e  a  Secretaria  de  Segurança  do  estado  de  São  Paulo  divulgou  a 


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versão  de  que  eles  teriam  sido  puxados  para  dentro  das  janelas  e  agredidos,  o 
que  motivou  sua  reação.  No  entanto,  as  câmeras  de  segurança  da  entrada  da 
escola  registraram  a  truculência  dos  policiais  e  o  modo  como  acondicionaram 
seus  fuzis para pular a janela da guarita e entrar nas dependências da escola em 
cujo  interior  se  encontravam  estudantes  de  36  países,  inclusive  dos  Estados 
Unidos  e  do  Canadá,  em  aulas  de  vários  cursos  que  a  Escola  ministra 
regularmente  em  convênio  com  universidades  e  órgãos  internacionais  como  a 
UNESCO.  Tal  operação  expressa  a  tendência  de  criminalizar  os  movimentos 
sociais, no caso o MST, que mantém a referida Escola Nacional.  
Para  não  nos  alongarmos  sobre as muitas arbitrariedades que vêm sendo 
cometidas,  registro  a  primeira  vítima  fatal  provocada  por  essa  escalada  de 
arbítrio  que  tomou  conta  do  país.  Trata-se  do  suicídio  do  reitor  da  Universidade 
Federal  de  Santa  Catarina  provocado  por  uma prisão injusta, sem provas, diante 
de  uma  acusação  sobre  fato  que  sequer  ocorreu  em  sua  gestão.  Conduzido  à 
Polícia  Federal,  ele  foi  despido,  submetido  a  revista  íntima  com  o  ânus 
inspecionado,  como  se  estivesse  escondendo  algo  ali,  vestido  com  roupa  de 
presidiário,  acorrentado  e  jogado  numa  prisão  de  segurança  máxima,  conforme 
entrevista  do  Desembargador  Lédio Rosa de Andrade à TV Floripa. Libertado no 
dia  seguinte,  foi  afastado  de  sua  função  de  reitor  e  proibido  de  entrar  na 
universidade.  Diante  dessa  humilhação  e  convencido  de  que,  com  a  sanha 
fascista  que  vem  tomando  conta  do  país  numa  verdadeira  histeria  coletiva  não 
teria  como  se  defender,  concluiu,  como  leitor  assíduo  de  Shakespeare,  que  o 
único  recurso  de  que  dispunha  para  se  contrapor  à  ignomínia  do  terrorismo  de 
Estado  e  alertar  a  população  era  a  tragédia.  Não  tendo  medo  da  morte,  o  que 
demonstrou  em  sua  luta  tenaz  contra  a  ditadura,  optou  pelo  suicídio.  Deu-nos, 
assim,  ainda  conforme  o  depoimento  do  Desembargador  Lídio,  sua  última  lição: 
a tragédia da própria morte. 
Todas  essas  arbitrariedades  vêm  sendo  acobertadas  por  versões 
divulgadas  pelas  autoridades  que  invertem  o  sentido  dos  fatos,  com  a 
cumplicidade  da  grande  mídia  que  não  apenas  transmite  como  verdadeiras  as 
versões  falsas,  mas  esconde  os  fatos  reais.  A  esse  respeito  é  eloquente  o 


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suicídio  do  reitor  coberto  pela  mídia  com  o  manto  de  um  silêncio  acumpliciado. 
Para  esse  caso  vale  a manifestação da estudante Ana Júlia que, diante da morte 
de  um  estudante  numa  das  escolas  ocupadas  em  Curitiba,  lançou  aos 
deputados  na  Assembleia  Legislativa  o  libelo: suas mãos estão sujas de sangue. 
Sim,  dentre  as  várias  mãos  que  empurraram  o reitor para a morte encontram-se, 
sem  dúvida,  além  daquelas  dos  representantes do judiciário, as mãos da grande 
mídia.  E  a  população,  de  modo  geral,  fica  alienada diante da grave situação que 
estamos  vivendo.  Por esse caminho vai se escancarando o estado de ditadura e, 
o  que  é  pior,  uma  ditadura  com  a  participação  do  próprio  judiciário,  o  que 
significa  que  os  atingidos  não  terão  a  quem  recorrer.  Enfim,  é  preciso  resistir  a 
essa  escalada  do  arbítrio  antes  que  seja  tarde  demais.  Resta,  agora,  a 
resistência  ativa  de  todos  os  inconformados  com  as  injustiças  para  buscar 
restabelecer  a  institucionalidade  democrática  a  duras  penas  conquistada  após 
21 anos de ditadura militar. 
O  grupo  hoje  no  poder  revela-se  disposto  a  cumprir  à  risca  a  agenda 
neoliberal  derrotada  nas  urnas,  submetendo  o  país  aos  interesses  do  mercado 
financeiro  internacional,  o  que  acarreta  a  desindustrialização  e  o  retorno  à 
chamada  “vocação  agrícola  do  Brasil”,  disponibilizando  não  só  as  áreas 
agricultáveis, mas também as de preservação, com o sacrifício do meio ambiente 
para  satisfazer  os  interesses  dos  grandes  proprietários  de  terras  nacionais  e 
estrangeiros.  É  oportuno,  portanto,  refletir  sobre  o  significado  do  que  dispõe  a 
Constituição  Federal  de  1988  em  seu  Art.  225:  “Todos  têm  direito  ao  meio 
ambiente  ecologicamente  equilibrado,  bem  de  uso  comum  do  povo  e  essencial 
à sadia qualidade de vida, impondo-se ao Poder Público e à coletividade o dever 
de defendê-lo e preservá-lo para as presentes e futuras gerações”. 
E  o  que  foi  que  a  Constituição  proclamou  ao  definir  o  meio  ambiente 
como  “bem  de  uso  comum  do  povo”?  O  que  significa  “bem  de  uso  comum”? 
Trata-se  de  algo  que  não  é  propriedade  privada  e  nem  mesmo  propriedade 
pública.  É,  sim,  bem  de  natureza  difusa  e,  como  tal,  ninguém  dele  pode  dispor 
para  desfrute  próprio  ou  de  grupos,  por  mais  numerosos  que  sejam. 
Consequentemente,  o  que  é  facultado  a  toda  a  população  em  relação  ao  meio 


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ambiente,  enquanto  bem  de  natureza  difusa,  é  exclusivamente  o  direito  de  uso 
associado  ao  dever  de  todos  de  assegurar  esse  mesmo  direito  às  gerações 
futuras. 
Entretanto,  não  obstante  a  clareza  da  prescrição  constitucional,  é  sobre 
as  terras  preservadas  ambientalmente  que  agora  ocorre  o  avanço  desenfreado 
do  chamado  “capitalismo  verde”  que,  embora  sob  roupagem  ecológica  e 
supostamente  sustentável,  de  fato  segue  o  mesmo  modelo  imperialista  e 
expansionista da época do colonialismo. 
Como  mostra  Amyra  El  Khalili  (2017),  ​apenas  nos  últimos  doze  anos  mais 
de  3,8  milhões  de  hectares  já  foram  vendidos  legalmente  no  Brasil  a 
estrangeiros.  Não  satisfeitos,  procura-se  agora  avançar  também  sobre  as  terras 
da  União  que,  protegidas  por  leis  nacionais  e  internacionais,  não  podem  ser 
negociadas.  Eis  a  razão  pela  qual  vêm  sendo  aprovadas  novas  leis modificando 
as  anteriores  para  beneficiar  o  mercado  financeiro,  afetando  os  direitos 
fundamentais  dos  povos  indígenas,  dos  quilombolas  e  dos  camponeses,  o 
Código  Florestal,  os  direitos  trabalhistas.  E  para  justificar  essas  medidas 
argumenta-se  que  as  águas  e  florestas  só  serão  viáveis  se  tiverem  valor 
econômico.  Mas  El  Khalili  contra-argumenta  mostrando  que  se  trata  de  uma 
falácia,  “pois  valor  econômico  as  florestas  ‘em pé’ e as águas sempre tiveram. O 
que  não tinham, até então, era valor financeiro, já que não há preço que pague o 
valor  econômico  das  florestas,  dos  bens comuns e dos ‘serviços’ que a natureza 
nos proporciona gratuitamente”. 
Estamos,  portanto,  diante  de  uma  grave  ameaça  à  existência  da 
humanidade  e  de  todo  o  planeta.  Precisamos,  pois,  colocar  um  freio  a  essas 
ambições  desmedidas  de  empresários  e  banqueiros  nacionais  e  estrangeiros 
alinhados com o dito “capitalismo verde”.  
Enfim,  temos  a  responsabilidade  de  assegurar  às  gerações  presentes  e 
futuras  o  pleno  direito  de  uso  dos  bens  de  natureza  difusa  consolidando  a 
manutenção e melhoria de suas condições de preservação e desenvolvimento. 
 
 


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A educação golpeada 
 
Nesse  contexto  caracterizado  como  retrocesso  político,  a  educação  está 
sendo  fortemente  afetada.  As  reformas  educacionais  regressivas  do  atual 
governo  vêm  procurando desconstruir os limitados avanços dos governos Lula e 
Dilma  retomando  o  espírito  autoritário  que  foi  a  marca  do  período  da  ditadura 
militar.  É  assim que a reforma do Ensino Médio foi baixada por medida provisória 
sem  sequer  dar  conhecimento  prévio  às  Secretarias  de  Educação  e  aos 
Conselhos  Estaduais  de  Educação  que,  pela  Constituição  e  pela  LDB  são  os 
responsáveis  pela  oferta  pública  desse  nível  de  ensino.  É  assim,  também,  que 
vêm  sendo  tomadas  as  medidas  relativas  ao  Plano  Nacional  de  Educação  e  à 
realização  da  próxima  Conferência  Nacional  de  Educação  intervindo  no  Fórum 
Nacional  de  Educação  à  revelia  do  que  dispõe  a  lei  13.005,  de  25  de  junho  de 
2014,  que  aprovou  o  Plano  Nacional  de  Educação  2014-2024.  Esse  caráter 
autoritário  se  faz  presente,  ainda,  no  movimento  “escola  sem  partido”  , 
merecidamente  chamado  de  “lei  da  mordaça”,  pois  explicita  uma  série  de 
restrições  ao  exercício  docente  negando  o  princípio  da  autonomia  didática 
consagrado nas normas de funcionamento do ensino.  
A  atual  conjuntura  se  constitui,  pois,  num  momento  grave  no  qual o tema 
dos  desafios  educacionais  da  democracia  pode  ser  considerado  como  uma  rua 
de  mão  dupla:  por  um  lado  cabe-lhe  resistir,  exercendo  o  direito  de 
desobediência  civil,  às  iniciativas  de  seu  próprio  abastardamento  por  parte  de 
um  governo  que  se  instaurou  por  meio  da  quebra  do  Estado  Democrático  de 
Direito.  Por  outro  lado,  cumpre  lutar  para  assegurar  às  novas  gerações  uma 
formação  que  lhes  possibilite  o  pleno  exercício da cidadania tendo em vista não 
apenas  a  restauração  da  democracia  formal,  mas  avançando  para  sua 
transformação em democracia real. 
Diante  desse  quadro  volto  a  advogar  a  resistência  ativa  que  propus  na 
Conclusão  do  livro  sobre  a  atual  LDB,  cuja  13ª  edição  foi  lançada  em  2016,  ao 
ensejo  dos  20  anos  da  aprovação  da  LDB,  atualizada  e  ampliada  com  um  novo 


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capítulo  analisando  as  39  leis  que  a  modificaram.  O  que  chamei  de  resistência 
ativa  implica  dois  requisitos:  a)  que  seja  coletiva,  pois  as  resistências individuais 
não  têm  força  para  se  contrapor  ao  poder  exercido  pelo  governo  ilegítimo  e 
antipopular;  b)  que  seja  propositiva,  isto  é,  capaz  de  apresentar  alternativas  às 
medidas do governo.  
Nessa  resistência,  contamos  com  uma  teoria  pedagógica  cujo 
entendimento  das  relações  entre  educação  e  política  é  diametralmente  oposto 
àquele  esposado  pela  “escola  sem  partido”.  Trata-se  da  pedagogia 
histórico-crítica  que,  contrapondo-se ao movimento “escola sem partido” postula 
que,  na  sociedade  de  classes,  portanto,  na  nossa  sociedade,  a  educação  é 
sempre  um  ato  político,  dada  a  subordinação  real  da educação à política. Dessa 
forma,  agir  como  se  a  educação  fosse  isenta  de  influência  política  é  uma  forma 
eficiente  de  colocá-la  a  serviço  dos  interesses  dominantes.  E  é  esse  o  sentido 
do  projeto  “escola  sem  partido”,  que  visa  subtrair  a escola do que seus adeptos 
entendem  como  “ideologias  de  esquerda”,  colocando-a  sob  a  influência  da 
ideologia  e  dos  partidos  da  direita,  portanto,  a  serviço  dos  interesses 
dominantes.  Ao  proclamar  a  neutralidade  da  educação  em  relação  à  política  o 
objetivo  é  estimular  o  idealismo  dos  professores  fazendo-os  acreditar  na 
autonomia  da  educação  em  relação  à  política, o que os fará atingir um resultado 
inverso  ao  que  estão  buscando:  em  lugar de, como acreditam, estar preparando 
seus  alunos  para  atuar  de  forma  autônoma  e  crítica  na  sociedade,  estarão 
formando  para  ajustá-los  à  ordem  existente  e  aceitar  as  condições  de 
dominação  às  quais  estão  submetidos.  Eis  por  que  a  “escola  sem  partido”  se 
origina  de  partidos  situados  à  direita  do  espectro  político,  com  destaque  para  o 
PSC  (Partido  Social  Cristão)  e  PSDB  secundados  pelo  DEM,  PP,  PR,  PRB  e  os 
setores  mais  conservadores  do  PMDB. Como se vê, a “escola sem partido” é, de 
fato,  uma  escola  ​de  partido.  É  a  escola  dos  partidos  da  direita,  os  partidos 
conservadores  e  reacionários  que  visam  manter  o  estado  de  coisas  atual  com 
todas  as  injustiças  e  desigualdades  que  caracterizam  a  forma  da  sociedade 
dominante no mundo de hoje. 


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Enfim,  guiados  pela  pedagogia  histórico-crítica,  é  imperativo organizar na 


forma  da  resistência  ativa  a  luta  contra  as  medidas  do  governo  imposto  após  o 
golpe  e  especificamente  contra  as  propostas  do  movimento  “escola  sem 
partido” e contra tudo o que ele representa. 
A  luta  contra  o  projeto  de  lei  deve  ser  travada  mostrando  que se trata de 
uma  aberração,  pois  fere  o  bom  senso,  vai  na  contramão  do  lugar  atribuído  à 
escola  na  sociedade  moderna  e  nega  os  princípios  e  normas  que  compõem  o 
aparato jurídico vigente no Brasil, sendo manifestamente anticonstitucional.  
Fere  o  bom senso, pois retira dos professores o papel que lhes é inerente 
de  formar  a nova geração para se inserir ativamente na sociedade, o que implica 
trabalhar  com  os  alunos  os  conhecimentos  tendo  como  referência  a  busca  da 
verdade, sem quaisquer tipos de restrição.  
Vai  na  contramão  da  sociedade  moderna  que  no  século  XVIII  forjou  o 
conceito  de  escola  pública  estatal  e  buscou  implantar,  no  século  XIX,  os 
sistemas  nacionais  de  ensino  como  instrumentos  de  democratização  com  a 
função  de  converter  os súditos em cidadãos. É esta a condição para a existência 
das  sociedades  democráticas  mesmo  sob  a  forma  capitalista  e  burguesa  que 
proclama  a  democracia  como o regime baseado na soberania popular. E o povo, 
para  se  transformar  de  súdito  em  cidadão,  isto é, para ser capaz de governar ou 
de  eleger  e  controlar  quem  governa,  deve  ser  educado.  Para  esse  fim, 
eminentemente político, é que foi instituída a escola pública.  
Em  consonância  com  esse  significado  histórico  da  escola,  a  Constituição 
vigente  no  Brasil  define como finalidade da educação o “pleno desenvolvimento 
da  pessoa,  seu  preparo  para  o  exercício  da  cidadania  e  sua  qualificação  para  o 
trabalho”.  Ora,  o  preparo  para  o  exercício  da  cidadania  tem  um  significado 
precipuamente político. 
A  resistência  ativa  é,  pois,  indispensável  como  estratégia de luta por uma 
escola  pública  livre  das  ingerências  dos  grupos  conservadores  balizadas  pelos 
interesses  do  mercado.  Com efeito, nessa fase difícil que estamos atravessando, 
marcada  por  retrocesso  político  com  o  acirramento  da  luta  de  classes  lançando 
mão  da  estratégia  dos  golpes  parlamentares  visando  a  instalar  governos 


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ilegítimos  para  retomar  sem  rebuços  a  agenda  neoliberal, resulta imprescindível 


combatermos  as  medidas  restritivas  dos  direitos  sociais,  entre  eles  o  direito  a 
uma  educação  de  qualidade,  pública  e  gratuita,  acessível  a  toda  a  população. 
Essa  foi  e  continua  sendo,  agora  de  forma  ainda  mais  incisiva,  a  nossa  luta.  A 
luta de todos os educadores do Brasil.  
 
Referências: 
 
ANDRADE, Lédio Rosa (2017). ​Entrevista à TV Floripa em 6 de outubro de 2017​. Disponível em: 
https://www.youtube.com/watch?v=3htNqsWVtoQ&feature=em-upload_owner​. Último acesso: 24 
out. 2017. 
 
EL KHALILI, Amyra (2017). ​A lógica perversa do capitalismo verde. ​Disponível em: 
http://www.alainet.org/es/node/184965​. Último acesso: 24 abr. 2017. 
 
MÉSZÁROS, István (2002). ​Para além do capital: rumo a uma teoria da transição. ​São Paulo, 
Boitempo. 
 
SAVIANI, Dermeval (1991). ​Educação e questões da atualidade. ​São Paulo, Livros do Tatu/Cortez. 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 

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2
CRISE MUNDIAL, CRISE BRASILEIRA E O RACISMO  

Muryatan S. Barbosa

A  sobrevivência  e  o  crescimento  do  movimento  negro  brasileiro 


depende  de  sua  capacidade  de  refletir  sobre  o  que  se 
convencionou  chamar  de  crise  mundial,  na  sua  forma  presente e 
nos seus desdobramentos (Joel Rufino dos Santos, 1985, p 300).  

 
O racismo como fato estruturador das relações de poder 
 
Entender  a  relevância  do  racismo  brasileiro  hoje,  como  fato  estruturador 
do  poder  (Barbosa,  2009),  implica  um  duplo  olhar.  O  primeiro  sobre  sua 
existência  histórico-estrutural  de  longa  duração.  O  segundo  mais  conjuntural, 
observando-o  desde  o  sistema  internacional  contemporâneo  e  da  crise 
brasileira,  em  particular.  Neste  ensaio,  tais  pontos  serão  analisados  de  forma 
sucinta.   
Desde  a  primeira  perspectiva,  o  que  se  entende  por  racismo 
histórico-estrutural  é  sua  existência  como  elemento  central  de  reprodução 
social.  Algo  que  se  originou,  obviamente,  dos  quatrocentos  anos  de  escravidão 
aqui  existente.  Mas  que,  desde  o  pós-abolição,  continua  se  mantendo  e 
desenvolvendo  como  fato  estruturador  das  relações  de  poder.  Este  tema  foi 
tratado  por  diversos  pensadores  e  intelectuais  do  movimento  negro  brasileiro, 
assim  como  também  por  intelectuais  acadêmicos.  Abaixo  apresentamos  uma 
síntese  dos  resultados  deste  esforço  intelectual  de  gerações,  citando  apenas 
alguns  autores/as  pioneiros  das  análises  referidas.  Para  estes,  o  racismo 
naturaliza: 

2
Agradeço  aos  professores  Wilson  do  Nascimento  Barbosa  (USP)  e  Demétrio  G.  C.  de  Toledo 
(UFABC)  por  críticas  ao  texto.  A  primeira  versão  deste  foi apresentada  no encontro da ​Agrarian 
South Summer School, Harare​ (Zimbábue), Janeiro de 2016.   
3
​Professor  Adjunto  do Bacharelado em Ciências e Humanidades e do Bacharelado em Relações 
Internacionais da Universidade Federal do ABC (CECS/UFABC).

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▪ Superexploração  do  trabalho,  antes  e  depois  do  escravismo  (Carlos 


Hasenbalg, Nelson do Valle Silva, Marcelo Paixão, Wilson do N. Barbosa). 

▪ Utilização  da  violência  e  do  encarceramento  como  forma  de  controle 


social  (MNU;  Campanha  Contra  o  Genocídio  da  Juventude  Negra  e 
Periférica).  

▪ Desagregação  do  tecido  social:  a)  despersonalização  das  vítimas 


(Guerreiro  Ramos);  b)  potencialização  do  caráter  sádico  da  dominação 
(Lélia  Gonzalez);  c)  obstrução  da  consciência  de  classe  (Florestan 
Fernandes,  Joel  Rufino  dos  Santos,  Henrique  Cunha  Jr.,  Clóvis  Moura); d) 
obstrução  da  solidariedade  intragênero  (Lélia  Gonzalez,  Sueli  Carneiro, 
Luiza  Barros);  e)  destruição  das  heranças  étnico-culturais  dos  povos 
dominados (Abdias do Nascimento, Wilson do N. Barbosa).  

▪ Construção  de  uma  identidade  nacional  excludente  mas  aparentemente 


universalista,  fundada  no  mito  da  democracia  racial  e  no  ideal  de 
branqueamento  (Abdias  do  Nascimento,  Kabengele  Munanga,  Thomas 
Skidmore).  

▪ Coesão  ideológica  e  solidariedade  das  populações  eurodescendentes 


(branquidade  e  eurocentrismo).  Em  particular,  das  classes  dominantes  e 
médias (Guerreiro Ramos).   

Quando  os  ativistas do movimento negro brasileiro se referem ao racismo 


estrutural  de  nossa  sociedade  eles  estão  se  referindo  essencialmente  a  este 
quadro,  com  variações  de  ênfase,  inclusão/exclusão  de  um  ou  outro 
componente,  de  um  ou  outro  autor/autoras  etc.  É  importante entender o quanto 
esta análise difere daquilo que usualmente chama-se de “política de identidade”, 
que  é  o  termo  atual  usado  para  caracterizar  a  luta  do  movimento  negro 
brasileiro.  Mas  de  fato  seria  melhor  chamá-la  de  estrutural,  na  medida  em  que 
pretende  superar  a  estruturação  racial  que  faz  do  Brasil,  Brasil;  tanto  em  seus 

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defeitos  quanto  em  suas  supostas  qualidades  (tolerância,  país  do  futuro, 
miscigenação como valor em si etc).  
Entrementes,  para  além  desta  caracterização  histórico-estrutural,  temos 
as  questões  conjunturais  do  racismo  no  Brasil,  e  no  mundo  atual.  Aqui  deve-se 
fazer  um  parêntese  que  se  julga relevante. É certo que o racismo moderno é um 
fenômeno  derivado  da  escravidão  atlântica  contra  a  população 
afrodescendente.  No  entanto,  isto  não  significa  que,  com  o passar das décadas, 
4
ele  tenderia  a  se  tornar  residual  no  mundo .  Infelizmente,  vemos  hoje o quanto 
esta  percepção  está  longe  da  realidade.  E,  do  ponto  de  vista  acadêmico,  os 
estudos  sobre  desigualdade  racial  foram  decisivos  nesta  percepção  e  crítica, 
desde  o  clássico  de  Carlos  Hasenbalg  (​Discriminação  e  desigualdades  raciais 
no  Brasil​,  1979).  O  fato  é  que  o  racismo  é  uma  poderosa  forma  de  distinção 
social.  Ele  nasce  e  se  reproduz  de  relações  hierárquicas  de  poder  entre  povos 
conquistadores  e  outros  conquistados,  a  partir  da  racialização  (via 
esteriotipificação  sistemática  e  naturalização)  –  positiva  e  negativa  –  de 
diferenças  fenotípicas  entre  tais  povos.  No  mundo  atual,  trata-se  da  dominação 
de  europeus  e  eurodescendentes  (”brancos”)  contra  outros  grupos 
populacionais  (“não  brancos”,  em  suas  variações).  Todavia,  a  questão 
fundamental  não  está  mais  na  sua  origem,  mas  na  sua  capacidade  de 
reprodução.  Sociedades  racistas  (ontem,  hoje  e  amanhã)  são  lugares  de 
conquista  em  que  um  grupo  populacional  continuam  submetendo  outros, 
criando  formas  de  manter  e  naturalizar  sua  exploração  e  dominação  (Fanon, 
1956).  No  moderno  sistema  mundial,  trata-se  de  uma  distinção  essencial  à 
reprodução  do  capitalismo  realmente  existente,  pois  naturaliza  a  violência  e  as 
disparidades  sociais  em  um  mundo  idealmente  igualitário  (liberalismo),  mas 
concretamente desigual (Wallerstein, 2001).   
Mas  ocorre  que  este  moderno  sistema  mundial  não  é  igual  para  todos 
sempre,  nem  linear.  Ele  depende  de  estruturações  conjunturais  do  sistema 

4
Aliás, como acreditavam no Brasil, autores de renome e antirracistas, como Guerreiro Ramos (​A 
patologia social do branco brasileiro​, ​1955​, reeditado em ​Introdução crítica à sociologia 
brasileira​, 1957) e Florestan Fernandes (“​A integração do negro na sociedade de classes​”, 1964).  

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internacional,  que  são  diversas  e  em  transformação.  Para  entender  a  estrutura 


do  atual  sistema  internacional  iremos  aqui  nos  basear  no  trabalho  coletivo  do 
GPENN  (Grupo  de  Estudos  sobre  o  Novo  Neocolonialismo),  recentemente 
5
instituído na Universidade Federal do ABC .   
 
1. O  atual  sistema  internacional  foi  formado  após  o  fim  de  Bretton  Woods e 
a  primeira  reunião  do  G-7  (1975)  marcam  o  início  do  atual  sistema 
internacional.  Quatro  fatos  históricos  o  caracterizam:  a)  a  revolução 
tecnoprodutiva  dos  anos  1970;  b)  a  retomada  do  poderio  estadunidense 
na  década  de  1980,  garantida  pela  expansão  do  seu  complexo 
industrial-militar,  difusão  do  neoliberalismo  e  financeirização;  c) o declínio 
e  posterior  derrocada  da  URSS;  d)  a  ascensão  chinesa,  dirigida  pelo 
Estado  e  baseada  num  modelo  próprio  de  industrialização  e  expansão 
externa.  
 
2. Estes  eventos  formam  a  estrutura  do  sistema.  A  reafirmação 
estadunidense,  ao  defender  militarmente  os  interesses  dos  grandes 
monopólios,  tende  a  ser  mais  imperialista  do  que  a  chinesa.   Ademais, 
após  a  crise  de  2008,  ela  passou  a  conviver  com  desafios  internos 
importantes  e,  externamente,  com  o  avanço  do  poderio  da  China  no 
cenário  internacional.  Mas  dentro  dessa  estrutura  do  sistema,  tanto  a 
reafirmação  do  poder  americano  quanto  a  projeção  externa  chinesa 
favorecem  ao  seu  modo  a  atual  expansão  do  novo  neocolonialismo  no 
“Terceiro  Mundo”.  Um  fenômeno  que,  mais  recentemente,  também  vem 
se  consolidando  em  certos  países  do  “Primeiro  Mundo”,  que  estão 
perdendo  sua  capacidade  de  reproduzir  sua  posição  no  centro  do 
sistema.  

5
Se houver citação destas teses é importante que se faça referência ao Grupo (GPENN), e não 
apenas ao autor deste texto. Afinal, trata-se de trabalho coletivo. Professores e professoras 
integrantes (UFABC): Valéria Lopes Ribeiro, Muryatan Santana Barbosa, Demétrio G. C. de 
Toledo, Flávio Thales Ribeiro Francisco, Regimeire Maciel e Vitor Schincariol. Mais informações 
no endereço eletrônico: https://gpennblog.wordpress.com/ 

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3. O  neocolonialismo  é  uma  relação  específica  entre  nações  dominantes  e 


outras  subordinadas.  Diferentemente  do  colonialismo,  o  neocolonialismo 
existe  pela  dominação  indireta,  que  depende da colaboração das classes 
dominantes  locais  para  perpetuar  as  hierarquias  vigentes  da  divisão 
internacional  do  trabalho.   Como  tal,  o  neocolonialismo  não  nasceu  na 
África,  de  onde  surgiu  sua  teorização  inicial,  mas  nas  relações  da 
Inglaterra  e  dos  EUA  com  a  América  Latina  no  século  XIX.  Quanto  mais 
sistêmica  é  esta  dominação  menos  necessária  se  faz  a  força  coercitiva 
externa,  pois  as  próprias  classes  dominantes locais se tornam defensoras 
dos  interesses  do  capital  externo,  que  é  quem  em  última  instância 
garante  sua  própria  acumulação.  Estas  burguesias  não  são  nacionais  ou 
internas, são intermediárias.  
 
4. As  teorias  da  dependência  buscaram  captar  este  fato.  Mas  o  novo 
neocolonialismo  (pós-1970)  é  uma  mudança  qualitativa  da  situação 
clássica  de  dependência,  na  medida  em  que  se  estrutura  na  completa 
realização  material  desta  burguesia  intermediária  em  escala  global.  Em 
particular,  por  seu  papel  na  especulação  financeira,  exploração  de 
commodities  (naturais  e  minerais)  e  exportação  de  capitais. 
Diferentemente  da  burguesia  intermediária  do  século  XIX,  esta  nova 
burguesia  intermediária  não  depende  mais  tão  somente  da  exploração 
massiva  e  direta  do  trabalhador,  tanto  porque  sofisticou  outros  meios  de 
acumulação,  quanto  porque  estamos  num  mundo  de  automação  e 
mecanização  industrial.  Neste  contexto,  o  neoliberalismo  é  uma  política 
econômica  possível  para  justificar  tal  realidade  neocolonial,  mas  está 
longe de ser a única.  
 
5. Tal  condição  de  novo  neocolonialismo  possui  consequências  drásticas 
aos  países  subordinados  envolvidos,  pois  impulsionam  processos  de 
desindustrialização  ou,  na  melhor  das  hipóteses,  de  industrializações 
dependentes,  associadas  e  restritas  (por  multinacionais  pós-fordistas  e 

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maquilas).  A  formação  das  sociedades  industriais  de  outrora  foi  o 


fundamento  objetivo  da  construção do ​ethos nacional ao longo do século 
XIX  e  XX,  tanto  no  centro  quanto  na  periferia  do  sistema;  seja  de 
dominantes, seja de dominados. Independentemente do que se pretendia 
construir  com  tais  projetos  nacionais,  o  cidadão  existia  porque  ele  era  o 
trabalhador  a  ser  disciplinado,  pronto  para  ser  explorado.  Era  preciso 
educá-lo,  alimentá-lo,  torná-lo  saudável  e  ordeiro.  Em  suma,  torná-lo 
nacional  e,  quando  possível,  “branco”,  ou  pelos  menos  ocidentalizado. 
Uma  industrialização  moderna,  mecanizada  e  automatizada ainda precisa 
de  parte  desta  força  de  trabalho.  Mas  em  sociedades desindustrializadas 
—  como  as  que  estão  cada  vez  mais  surgindo  da  situação  de  novo 
neocolonialismo  —  ela  não  se  faz  mais  necessária  como  outrora.  Sua 
própria existência excedente é um problema a sanar.  
 
6. A  escassez  entrópica  dos  recursos  naturais,  incluindo  o  progressivo 
desgaste  do  solo  fértil,  conduzirá  a  um  aumento  dos  conflitos 
distributivos.  Esta  tendência  intensificará  as  políticas  imperialistas  e  o 
quadro  de  repressão  doméstica,  na  disputa  pelos  recursos  restantes.  Ao 
mesmo  tempo,  a  escassez  entrópica  tenderá  a  reduzir  a  acumulação  de 
capital,  dado  o  encarecimento dos recursos básicos e o desaparecimento 
progressivo  de  áreas  “virgens”  para  a  acumulação,  fundindo  os 
problemas  da  escassez  de  terras  férteis  e  de  mercados  externos  numa 
escala  amplificada.  Se  mantida  a diminuição do crescimento populacional 
e  assim  a  queda  do  “exército  industrial  de  reserva”,  as  respostas 
autoritárias  esforçar-se-ão  para  manter um excedente relativo de força de 
trabalho barato que regule os salários. No nível tecnológico, a reprodução 
de  alimentos  e  matérias-primas  tenderá  a  “artificializar-se”  ainda  mais, 
com  ameaças  à  segurança  alimentar  em  forma  de  alimentos 
geneticamente  modificados  e  destruição  dos  pequenos  produtores.  Por 
sua  vez,  a  continuidade  da  substituição  de  recursos  naturais  por 

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sintéticos  aumentará  a  pressão  sobre  os  termos  de  troca  dos  países 
neocoloniais, agravando o quadro. 
 
7. O  racismo  e  o  sexismo  são  as  ideologias  que  tornam  possível  a 
reprodução  social  do  capitalismo  realmente  existente  pois,  além  de 
trazerem  unidade  ideológica  à  dominação  (em  particular,  da 
masculinidade  eurodescendente),  naturalizam  a violência, a desigualdade 
e  a  superexploração  do  trabalho  num  sistema  objetivamente  desigual, 
mas  ideologicamente  igualitário  (liberalismo).  Isto ocorre porque, tanto do 
ponto  de  vista  quantitativo  quanto  qualitativo  (traços  fisionômicos; 
sobretudo  cor  da pele e sexo biológico), a raça e o gênero são categorias 
de  fácil  distinção  social,  com  forte  poder  de  introjeção  inconsciente. 
Quanto  mais  a  industrialização  clássica  deixa  de  ser  uma  referência 
civilizacional,  mais  elas  serão  utilizadas  para  naturalizar  a  barbárie,  tanto 
no  centro  quanto  nas  periferias  do  sistema.  Estamos  no  início  deste 
processo  mundial,  que  implicará  novas  formas  de  controle  social 
(encarceramento  em  massa,  esterilização,  novas  tecnologias  militares 
para  fins  “civis”  etc.)  e  de  atuação  política  via  pseudo-nacionalismos, 
reacionários  e  protofascistas,  que  ressurgiram  baseados  em  tais 
ideologias.   Em  particular,  no  “Primeiro  Mundo”,  onde  ainda  existem 
frações burguesas com interesse e poder de se opor à lógica globalizante 
do novo neocolonialismo.  
 
8. A  transformação  gradual  da  antiga  burguesia  nacional  ou  interna  (onde 
ela  existiu)  em burguesia intermediária, intensificada e consagrada após a 
década  de  1970,  interdita  o  caminho  reformista  clássico.  Hoje,  do  ponto 
de  vista  das  classes,  restam  como  elementos  potencialmente nacionais a 
pequena  burguesia  (funcionários  públicos,  militares,  profissionais  liberais 
etc.),  os  trabalhadores  (do  campo  e  cidade)  e  a  massa  popular, 
estruturalmente  desempregada  ou  subempregada.  Construir  projetos 
nacional-populares coerentes neste contexto é o desafio que se coloca. A 

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situação  de  novo neocolonialismo que se está cristalizando só interessa a 


uma  ínfima  burguesia  intermediária,  que  só  começa  a  desenvolver  sua 
nova  consciência  de  classe  global:  racista,  sexista,  eurocêntrica, 
antinacional,  globalizante.  Em  suma,  genocida.  E  é  provável  que,  com  os 
avanços  científicos  e  a  mercantilização  da  biotecnologia,  esta  luta 
sócio-racial que está nascendo se intensifique exponencialmente. 
 

Ou  seja,  dentro  do  atual  sistema  internacional — novo neocolonialismo — 


a  expansão  da  barbárie  será  uma  consequência  sistêmica  enquanto  estivermos 
sob  dominação  desta  nova  burguesia  intermediária,  cada  vez  mais 
pós-industrial.  Isto  significa  dizer  que,  para  além  de  sua  existência 
histórico-estrutural  de  longa  duração,  conforme  anteriormente  elencado,  o 
racismo  no  Brasil  (assim  como  o  sexismo)  será  um  elemento  essencial  para 
garantir  a  reprodução  genocida  que  se  instaura.  O  interessante  é  que,  embora 
tal  fato  vá  se  potencializar  com  a  instauração  de  governos  protofascistas,  como 
dito,  ele  já  vem  se  esboçando  antes,  como  podemos  ver  da  história  recente 
brasileira.  
 
Genocídio no Brasil contemporâneo 
 
Assim  como  outros  países  americanos,  o  Brasil  é  um  dos  mais  violentos 
do  mundo.  Por  exemplo,  aqui  estão  quinze  dentre  os  vinte  países  com  maior 
taxa  de  homicídios  no  mundo.  Esta  particularidade  do  continente  é  geralmente 
explicada  por  duas  outras  particularidades:  (a)  desigualdades  sóciorraciais 
gritantes;  (b)  grande  quantidade  disponível  de  armas  de  fogo.  Daí  que  o 
extermínio da população juvenil não branca por aqui seja algo comum e corrente 
desde  tempos  coloniais.  Mas  o  Brasil  tem sua especificidade neste quadro. Aqui 
se  instauraram, já na década de 1930, importantes fábricas de armas de fogo por 
substituição  de  importações,  e  a  polícia  passou  a  fazer  uso  massivo  de  tais 
instrumentos  como  forma  de  controle  social  das  massas urbanas emergentes. A 
situação  tornou-se  pior  com  a  instauração  da  Ditadura  Militar,  em  1964.  Desde 

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então,  com  a  reorganização  das  chamadas  polícias  militares,  o  Estado  assumiu 


sua  face  genocida,  já  que  oficializou  uma  milícia  tipo  “justiceiros”  própria,  que 
utiliza contra a população civil.  
Por  outro  lado,  já  no  período  da  redemocratização,  iniciou-se  também 
uma  política  de  encarceramento  em  massa  que  tem  aumentado 
geometricamente  neste  início  de  século.  Durante  o  Governo  Lula  (2003-2010), 
por  exemplo,  o  número  de  presidiários  cresceu  três  vezes  em  números 
absolutos,  tornando  o  Brasil  o quarto país com o maior número de encarcerados 
no  mundo.  Em  alguns  Estados,  como  Minas  Gerais,  a  população  carcerária 
cresceu  sete  vezes  neste  mesmo  período.  Não  por  acaso,  é  naquele  Estado 
local que o projeto de privatizações de presídios está mais avançado....  
E  há  aí  uma  seletividade  racial  colocada,  que  é  inegável.  Neste  período 
recente,  a  população  negra  foi  encarcerada  1,5  vezes  mais  do  que  a  branca. 
Além  de  possuir  uma  taxa  de  homicídio  73%  maior  do  que  a  dos  brancos.  Em 
verdade,  neste  período  a  taxa  de  homicídios  entre  a  população  branca  diminui 
(entre  homens,  32,3%),  enquanto  que  só  fez  aumentar  entre  a população negra. 
Em  2014,  morreram  2,6  vezes  mais  negros  que  brancos  vitimados  por  arma  de 
fogo.  E  vale  lembrar:  o  Brasil  tem  hoje  uma  das  maiores  taxas  de  homicídio  do 
mundo  (10º  lugar).  Há também uma seletividade de gênero, de corte racial. Entre 
2004  e  2014,  teve-se  um  aumento  da  taxa  de  homicídios  de  54%  entre  as 
mulheres  negras, enquanto que entre as mulheres brancas esta taxa diminui 10% 
no mesmo período (Wailselfisz, 2015).  
Tudo  isto  ficou  mais  notável  no  ano  de  2006,  quando  a  polícia  militar  do 
Estado  de  SP,  em  resposta a ataques organizados por grupos criminosos, matou 
em  um  mês  mais  de  500  pessoas  pelas  ruas  da  maior  metrópole  da  América 
Latina.  
Estes  fatos  e  dados  devem  nos  levar  a  uma  reflexão  séria  e  ampla,  que 
não  pode  ser  aqui  tratada  como  deveria.  Em  relação  ao  encarceramento 
crescente,  poder-se-ia  supor  que  um  elemento  que  ajudaria  a  explicar  tal 
fenômeno  seja  a  consolidação  de  um  moralismo  conservador  entre  as  classes 
populares,  potencializado  pela  expansão  recente  das  Igrejas  evangélicas.  Mas 

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isto  é  só  uma  ilação,  teria  que  se  provar.  Em  relação  às  taxas  gritantes  de 
homicídios,  parte  do  problema  colocado,  sem  dúvida,  refere-se  ao  despreparo 
policial.  Só  no  Estado  de  São  Paulo,  por  exemplo,  a  taxa  de  assassinatos 
cometidos  por  estes  é  igual  à  taxa  estadunidense,  ou  seja,  de todo os EUA. Isto 
poderia  ser  mudado,  sem  dúvida.  Poder-se-ia  prender  em  vez  de  matar. 
Poder-se-ia  também promover campanhas de desarmamento. Mas mesmo que a 
polícia  seja  disciplinada,  ou  seja,  que  prenda  em  vez  de  matar,  é  esta  a 
sociedade  que  os  brasileiros  querem?  É  o  modelo  de  Minas  Gerais,  sob 
Governo  Aécio  Neves  e  correligionários?  A ideia é colocar cada vez mais jovens 
nos  presídios,  para  depois  forçá-los  a  trabalhar  para  corporações  privadas?  A 
quem isto interessa?   
É  neste  imbróglio  que  o  movimento  negro  brasileiro  está  entrando 
quando  instaurou  a  “Campanha  Contra  o  Genocídio  da  Juventude  Negra  e 
Periférica”,  após  os  eventos  de  2006.  Em  particular,  com  o  Grupo  “Mães  de 
Maio”.  Afinal,  ele  tem  toda a legitimidade para fazê-lo, pois são os jovens negros 
as  principais  vítimas  desta  situação,  seja  como  vítimas,  seja  como  algozes.  Se  o 
fizer  com  competência,  ele  estará  na  vanguarda  de  um assunto espinhoso: o da 
segurança  pública.  Um  tema  que  será  importante  para  definir  o  que  será  uma 
política  de  esquerda  e  de  direita  em  breve  no  mundo,  embora  isto  possa  ainda 
6
não estar claro para todos os envolvidos .   
Uma  hipótese  que  surge  deste  quadro  trágico  é  que,  durante  os 
Governos  Lula-Dilma  (2003-2014),  na  medida  em  que  não  se  enfrenta 
seriamente  o  problema  das  desigualdades  (além  de  outras  questões  que  não 
cabe  assinalar),  o  desenvolvimento  nacional  sob  base  capitalista,  em  vez  de 
diminuir,  aumenta  a  violência  contra  a  população  negra  e  pobre  no  Brasil.  Ou 
seja,  a  melhora  da  renda  do  trabalhador que ocorreu neste período (2003-2010) 
aumentou  o  problema,  em  vez  de  amenizá-lo.  Em  particular,  nas  cidades 
menores  do  país.  É  facilmente  perceptível  que  as  políticas  neoliberais  do 

6
Ideia originalmente exposta pelo sociólogo Uvanderson Vitor da Silva na UFABC durante Ciclo 
de Palestras “O Brasil na Mira do Novo Bandung” (19/11/2014).  

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“Estado  Mínimo”  só  tendem  a  exacerbar  a violência urbana. Mas em relação aos 


governos progressistas? 
Após  o  golpe  parlamentar  de  2014  no  Brasil,  parece  que  estamos 
retomando  nossa face genocida consciente que formou este país. Vale destacar, 
entretanto,  como  dito,  que  se trata de um processo global dos países periféricos 
(ou  semiperiféricos),  com  a  consolidação  do  novo  neocolonialismo  e  das 
burguesias  intermediárias.  Algo  que  se  tornou  mais  drástico  com  a  expansão 
imperialista  estadunidense  pós-crise  de  2008.  É  difícil  saber  se  isto  continuará 
se  expandindo  sob  um  discurso  neoliberal,  ou  algo  ainda  pior  que  se  está 
gestando.   
Salvo  melhor  juízo,  ainda  está  por  se  fazer  um  estudo  pormenorizado  do 
quanto  as  políticas  (antidemocráticas,  antinacionais  e  antipovo)  que  vem  sendo 
instauradas  pelo  novo  “governo”  atingem  especificamente  a  população  negra 
brasileira.  Se  realmente  ainda  não  foi  feito,  trata-se  de  algo  urgente.  Em 
particular,  em  relação  à  PEC  241  (que  congela  os  investimentos  públicos  pelos 
próximos  20  anos)  e  as  reformas  trabalhista  e  previdenciária.  Só  a  título  de 
exemplo,  vale  uma  observação  simples  sobre  esta  última.  Sabe-se  que  a 
expectativa  de  vida  da  população  negra  no  Brasil  é de 67 anos, enquanto que a 
dos  brancos  é  de  73.  No texto original da proposta apresentado pelo “governo”, 
o  tempo  mínimo  para  entrada  de  pedidos  de  aposentadoria  seria  de  65  anos! 
Ou  seja,  no  caso  da  população  negra,  seriam  em  média  dois  de  “usufruto”  de 
previdência. Seria hilário se não fosse trágico. 
 
Ponderação final 
 
Não  existem  respostas  fáceis  para  as  questões  colocadas.  Mas  é 
relevante  lembrar  que,  dada  a  sua  notória  diversidade,  o  movimento  negro 
brasileiro  tem  conseguido  suas  maiores  conquistas  quando  consegue  se 
articular  em  prol  de  lutas  conjunturais  razoavelmente  consensuais.  É  isto  o  que 
se  pode  observar,  por  exemplo,  na  luta  em  prol  das  Ações  Afirmativas,  que 
ganharam  notoriedade  nos  anos  2000.  Isto,  inclusive,  foi  para  além  do 

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movimento  em  si,  criando  um  campo  antirracista  multiétnico  em  que  muitos 
brancos  progressistas cerraram fileiras com o movimento negro, neste particular. 
Trata-se  de  uma  experiência  histórica relevante que precisa ser hoje remontada, 
de  forma  mais  radical  do  que  antes.  Este  é  o  potencial  da  “Campanha  contra o 
Genocídio  da  Juventude  Negra  e  Periférica”,  que  está  na  vanguarda  daqueles 
que podem colocar o “dedo na ferida” do Brasil.  
Ao que parece, a única alternativa viável de curto prazo é a construção de 
um  projeto  nacional-popular  para  o  Brasil,  que  consiga  se  opor  à  lógica 
genocida  do  novo  neocolonialismo.  Todavia,  isto  depende  de  uma  reflexão 
nossa,  sincera  e  coletiva,  sem  o  que  não  se  pode  nem  entender  a  realidade 
estrutural  do  racismo  aqui  existente,  que  nos  faz  ser  o  que  somos.  Em  outras 
palavras, nosso molde de fazer cerâmica.  
Por  entender  este  fato  histórico,  sobretudo  do  ponto  de  vista  simbólico, 
muitos  antropólogos  se  colocaram  contra  as  ações  afirmativas  quando  este 
debate  aqui  se  instaurou  publicamente,  no  início  do  século  XXI.  Afinal,  eles 
sabiam  que  é  o  racismo  que  caracteriza  o  país,  para  o  bem  e  para  o mal. Mas é 
preciso  ter  coragem  de  ir  além  desta  constatação  se  queremos  ser  pessoas 
progressistas.  Se  tivermos  que  mudar  o  Brasil, então que mudemos de verdade. 
É  certo  que,  para  isto,  teremos  que  abandonar  todo  o  “freyrianismo”  do  nosso 
Ser,  mesmo  que  ele  esteja  lá  disfarçado  à lá Darcy Ribeiro do celebrado ​O povo 
brasileiro  (1995).  E,  nesta  “descida  aos  infernos”,  como  diria  o  velho  Guerreiro 
Ramos,  enxergar  o  país  como  ele  é:  uma  sociedade  racista!  É  o  único  caminho 
possível  para  fazer  avançar  uma  esquerda  menos  eurocêntrica  no  Brasil.  E  nem 
falo da direita porque desta não se pode esperar mais nada.   
Poderíamos  terminar o texto neste ponto. Todavia, visando o diálogo mais 
pragmático,  vale  destacar  alguns  elementos  concretos  que  julgamos  relevantes 
a  partir  da  análise  aqui  precedida.  Em  nossa  opinião, a superação gradual deste 
racismo  estrutural  só  poderá  ser  encaminhada  por  pautas  específicas  num 
verdadeiro projeto nacional-popular brasileiro, que poderiam incluir:   
● Crescimento  via  desenvolvimento  científico-tecnológico,  e  não  via 
superexploração do trabalho.  

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● Controle  da  violência  interna  do  Estado  e  fim  do  encarceramento  em 
massa,  via  legalização  das  drogas  e  desmilitarização  progressiva  da 
polícia militar.  
● Políticas  antirracistas  consistentes  nas  instituições  sociais  (família,  escola, 
fábrica, igreja, partidos, universidades etc.) contra o racismo institucional.   
● Nova  identidade  nacional,  baseada  na  negritude  efetiva  do  nosso  povo 
(Guerreiro  Ramos,  1957)  e  em  seu  caráter  antropofágico  (Paixão,  2013), 
com a consequente desconstrução da branquidade e do eurocentrismo.   
 
Evidentemente,  trata-se  aqui  apenas  de  uma  contribuição  pontual  para 
um  debate  maior,  coletivo,  crítico  e  autocrítico.  Vários  outros  elementos  teriam 
que  contar  neste  projeto  mais amplo, que visasse uma alternativa civilizacional e 
democrática  ao  país.  Seja  como  for,  quiçá  tenha  chegado  à  hora  do  Brasil 
finalmente  enfrentar  o  seu  pior  demônio,  o  racismo,  que  tão  secretamente 
carregamos  no  bolso das nossas calças. Vamos falar seriamente do assunto? Ou 
esperamos pelo próximo Golpe?   
 
Referências:  
 
BARBOSA, Wilson do N (2009). A discriminação do negro como fato estruturador do poder. 
Sankofa​: revista de história da África e de estudos da diáspora africana, ​v. 2, n. 3, pp. 71-103.   

DOS SANTOS, Joel Rufino (1985). O movimento negro e a crise brasileira. ​Política e 
Administração​. Fundação Escola do Serviço Público/RJ. Vol. 2, Julho-Setembro, pp. 285-308.   

FANON, Frantz. Racismo e cultura (1956). In: SANCHES, Manuela R. (org.). ​Malhas que os 
impérios tecem:​ textos anticoloniais, contextos pós-coloniais. Lugar da História. Lisboa: Edições 
70, 2012.   

FERNANDES, Florestan (2008) . ​A integração do negro na sociedade de classes​. Globo, [1964].  

GEPENN (2017). ​Teses sobre o novo neocolonialismo e suas consequências​. Outubro. Disponível 
em: ​https://gpennblog.wordpress.com/​. Último acesso: 27 out. 2017.  
 
PAIXÃO, Marcelo (2013). ​500 anos de solidão​: ensaios sobre as desigualdades raciais no Brasil. 
Curitiba: Editora Appris Ltda. 
 
RAMOS, Alberto (1995). G. ​Introdução crítica à sociologia brasileira​. Rio de Janeiro: UFRJ.   
 
RIBEIRO, Darcy (1995). ​O povo brasileiro​: a formação e o sentido do Brasil. São Paulo: 
Companhia das Letras. 
 

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WAISELFISZ, Julio J (2015). ​Mapa da violência: homicídios por armas de fogo no Brasil​. São 
Paulo: FLACSO.   

WALLERSTEIN, Immanuel (2001). ​Capitalismo histórico e civilização capitalista​. Rio de Janeiro: 


Contraponto.   

 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 

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MULHERES E RESISTÊNCIA! 
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Maria Amélia de Almeida Teles  

As  mulheres  não  tem  tido  prioridade  nas  lutas  políticas  gerais,  em 
particular  no  campo  macro.  No  entanto,  nos  momentos  cruciais,  quando  as 
forças  mais  conservadoras  e  de  extrema-direita  investem  contra a democracia e 
se  apoderam  de  forma  arbitrária  e  autoritária,  com exclusividade da vida política 
do  país,  as  mulheres  são  o  alvo  principal  de  ameaças,  ataques  e  sequestro  de 
direitos.  É  o  que  temos  visto  no  Brasil,  em  diversos  momentos  de  inflexões  e 
retrocessos  políticos.  Começam  com  os  ataques  às  mulheres,  principalmente as 
negras,  as  indígenas,  trabalhadoras  rurais  e  domésticas,  as  imigrantes  e 
avançam  no  sentido  de  atingir  outros  segmentos,  como  a  classe  trabalhadora 
das  cidades  e  do  campo,  a  juventude  negra  e  periférica, a comunidade LGBT. A 
população  negra,  com  destaque  para  a  juventude  negra,  é  alvo  histórico  da 
violência  de  estado.  Não  é  absurdo  falar  em  genocídio  do  povo  negro  quando 
se  atenta  à  realidade  que  aponta  dados  estarrecedores.  Segundo  o  Atlas  da 
Violência  2017  (Ipea),  divulgado  no  dia  17  de  outubro,  de  cada  100  pessoas 
vítimas  de  mortes  violentas,  71  são  negras.  Em  2015,  foram  registrados  59.080 
homicídios  sendo  que  destes,  31.264  correspondiam  a  morte  de  pessoas  entre 
15  e  29  anos.  Concluem  que  os  negros  têm  chances  23,5%  maiores  de  serem 
assassinados  em relação a brasileiros de outras raças. As mulheres, mães, irmãs, 
companheiras,  amigas ou namoradas, de um modo geral, são as que saem à luta 
em  busca  de  informações  sobre  estas  mortes  e  seus  responsáveis.  Mesmo 
assim,  carregam  sua  dor  solitariamente  e  são  pouco  reconhecidas.  Mas  as 
mulheres  vão  mais  adiante.  Procuram  autonomia  e  querem  protagonizar  suas 
ações, suas vidas e história.  
Portanto,  a  importância  da  luta  das  mulheres  está  vinculada  a  todo 
processo  que  busca  a  transformação  da sociedade numa perspectiva igualitária, 

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União de Mulheres de São Paulo e Comissão de Familiares de Mortos e Desaparecidos 
Políticos. 

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libertária  e  justa.  Por  isso  temos  que  falar  dos  feminismos  e  de  suas  ações  de 
ruptura,  desconstrução  das  práticas  discriminatórias  e  da  construção  de 
caminhos  de  visibilidade,  reconhecimento  e  ampliação  dos  espaços  que  as 
mulheres ocupam. 
Os  feminismos  nos  convocam  a  tomar  consciência  do  processo  histórico 
pelo  qual  tem  trilhado  a  humanidade  na  busca  de  uma  vida  justa,  igualitária  e 
digna.  Ai  se  encontram  as  denúncias  dos  lugares  subalternos  que  ocuparam  e 
ocupam  ainda  as  mulheres  e  dos  papéis  sociais  que  a  elas  foram  impostos  de 
modo  a  impedir-lhes  de  serem  donas  de  suas  vidas,  de  suas  escolhas  e 
decisões.  Os  fatos,  quando  deles  se  toma  conhecimento,  indicam  o  quanto  o 
movimento  de  mulheres  e  as  feministas  têm  sido  corresponsáveis e promotoras 
das  mudanças  sociais  na  construção  da  democracia,  das  liberdades  políticas, 
coletivas  e  individuais,  da  justiça  social.  As  mulheres  resistem  e  se  propõem  a 
consolidar  suas  pautas  políticas  de  lutas  por  autonomia,  independência  e  plena 
cidadania  e  as  demonstram  em  manifestações  de  rua,  em  casa  e  no  trabalho 
quase que diariamente.  
Mais  do  que  isso,  argumentam  de  diversas  formas  para  que  haja 
compreensão  sobre  a  importância  de  se  estabelecer  a  perspectiva  de  que  uma 
sociedade,  como  um  todo,  não  consegue  avançar  no  sentido  progressista  se 
não  for  considerado  e  respeitado  o  protagonismo  das  mulheres,  o  segmento 
mais oprimido e explorado. 
Da  luta  pelo  voto  feminino,  em  muitas  ocasiões,  entrelaçada  com  a  luta 
pela  abolição  da  escravatura  negra,  direito  à  educação,  por  igualdade  de 
direitos  nas  famílias,  pelos  direitos  de  escolha,  pelo  fim  do  casamento 
indissolúvel,  por  direito  ao  divórcio,  por  direitos  trabalhistas  e  previdenciários 
para  as  mulheres  e  para  toda  a  classe  trabalhadora,  pelo  fim  da  maternidade 
obrigatória,  pelo  direito  de  escolher  ser  ou  não  mãe,  pelo  direito  de  ter 
condições  adequadas  para  o  exercício  da  maternagem e do afeto, pelo direito a 
um  parto  com  dignidade,  pelo  direito  ao  aborto  seguro,  pelo  direito  a  uma 
sexualidade  livre,  direito  ao orgasmo, pelo direito ao corpo, pelo fim da violência 
sexista  e  racista,  pelo  direito  de  decidir  sobre  sua  própria  vida  e  sobre  as 

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questões  sociais  e  políticas,  pelo  fim  do  racismo,  pelo  fim  da  ditadura,  da 
repressão  e  do  autoritarismo,  pela  desmilitarização  da sociedade para garantir a 
paz,  pelo  respeito  à  dignidade  e  à  cidadania  da  população  em  geral,  com 
destaque  especial  para  as  crianças  e  demais  segmentos  da  população  que 
precisam  de  cuidados  especiais,  pela  democratização  e  politização  da  vida 
privada  e  das  relações  sociais,  considerando  que  o  pessoal  é  político,  pela 
despatriarcalização  da  sociedade  e  do  Estado,  pela  conquista  dos  direitos 
políticos,  a  garantia  à  plena  liberdade  de  expressão,  pela  erradicação  do 
racismo  e  da  xenofobia,  da  tortura,  pelos  direitos  humanos,  as  mulheres 
estiveram  e  estão  na  linha  de  frente,  ainda  que  a  elas  tenham  sido  negados 
direitos e espaços políticos históricos de decisão. 
Ainda  que  nem  todas  as  mulheres  estejam  engajadas  nestas  lutas  e  que 
muitas  são  manipuladas  pelo  sistema  patriarcal/capitalista,  houve  e  há  as  que 
estiveram  à  frente  das  lutas  antifascistas, participaram de lutas armadas contra a 
opressão  e  as  ditaduras.  Foram  e  ainda  são  tratadas  com  discriminação, 
desvalorização  e  a  elas  são  reservados  os  lugares  mais  menosprezados,  mais 
humilhantes,  de  subalternidade,  exploração  e  opressão.  Recebem  menores 
salários  que  os  homens  quando  exercem  a  mesma  função.  São  vítimas  de 
estupro  coletivo  e quando são lésbicas, de “estupro corretivo”, são assassinadas 
por  serem  mulheres,  as  negras  proporcionalmente  são  mais  assassinadas,  e  a 
maior  parte  do  trabalho  não  remunerado e (invisível) é realizado por elas. São as 
próprias  mulheres  que  mostram  os  seus  rostos  oprimidos  e  explorados,  negros, 
envelhecidos  ou  ainda  muito  jovens,  indicando  sua  presença  e  sua  disposição 
de  transgredir  as  barreiras  que  lhes  impõe  a  sociedade  patriarcal.  São  as 
próprias  mulheres  que  oportunizam  um  espaço  de  fala  pública  às  camponesas, 
indígenas,  operárias,  jovens,  velhas,  periféricas,  prostitutas,  pescadoras, 
ribeirinhas,  lésbicas,  transexuais,  prisioneiras,  artistas,  compositoras  e  cantoras, 
dançarinas  para  que  suas  vozes  se  façam  ouvir,  uma  vez  que  ainda  são 
historicamente  silenciadas.  Foram  consideradas  subversivas  e  ainda  o  são 
quando vão contra a ordem patriarcal, capitalista, racista e sexista. 

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8
Nos  anos  1970,  historiadoras  feministas  como  Michelle  Perrot   trouxeram 
ao  cenário  político  a  história  das  mulheres,  ignorada  até  então.  Como  nos  falou 
9
Simone  de  Beauvoir ,  a  história  das  mulheres  foi  escrita  pelos  homens.  E, 
portanto,  a  participação  de  mulheres,  quando  chegou  a  ser  registrada,  foi  feita 
de  modo distorcido e androcêntrico. Pode-se acrescentar que tal história traz um 
10
conteúdo sob suspeição .  
 
Quando  não  há  como  deixar  de  registrar  a  participação  das 
mulheres,  o  fazem  como se estas agissem individualmente, como 
loucas, prostitutas, enfim, desajustadas (Teles, 2017, p. 23). 
 
Para  que  as  mulheres  chegassem  ao  século  XXI  na  condição  de 
protagonistas  de  suas  lutas  e  se  fazendo  visíveis  e  públicas,  as  lutas  feministas 
tiveram  e  ainda  têm  que  transgredir  e  subverter  a  ordem  patriarcal  vigente. 
Vejam  o Brasil, arrancaram de forma arbitrária e desrespeitosa a primeira e única 
mulher  eleita  e  reeleita  para  Presidência da República, Dilma Rousseff, em 2016, 
para  colocarem  em  seu  lugar  homens  brancos,  ricos,  de  idoneidade  moral 
duvidosa,  segundo  as  próprias  denúncias  oficiais  que  com  frequência  são 
apresentadas pela mídia.   
Torna-se  imprescindível  falar  de  gênero,  a  construção  social  dos  sexos, 
para  entender  as  contradições,  as  tensões  e  conflitos  que  se  dão  devido  à 
obrigatoriedade  de  desempenhar  papéis  sociais  conforme  a  genitália,  o  que 
reforça  o  determinismo  biológico  em  vez  de  possibilitar  a  criação  de 
perspectivas  democráticas  que  consolidem  a  igualdade  de  condições, 
oportunidades  e  direitos  entre  as  pessoas  humanas  independentemente  de 
seus  sexos.  O  sistema  patriarcal,  racista  e  sexista  promove  desigualdades 
sociais  e  econômicas  e  define  como  paradigma  da  sociedade o homem branco, 

8
Michelle Perrot nasceu em 1928 na França, é historiadora e professora emérita da Universidade 
de Paris VII. É feminista e destaca em seu trabalho a necessidade de reconhecer a história das 
mulheres. 
9
Simone de Beauvoir (1908-1986), escritora, filósofa, ativista e feminista. Com o seu livro “O 
Segundo Sexo”, lançado em 1949, ela contribuiu decisivamente para criar as premissas teóricas 
para os feminismos dos anos de 1960 a 1970. 
10
Teles, 2017. 

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proprietário  que  sufoca  e  explora  os  demais  setores  sociais,  nos  quais  as 
mulheres  têm  sido  as  mais  oprimidas.  O  patriarcado  transforma  as  diferenças 
sexuais  em  profundas  desigualdades  econômicas,  sociais  e  políticas.  É  preciso 
entender  a  distinção  entre  diferenças  e  desigualdades.  As  diferenças  são  de 
natureza  biológica  ou  cultural  e  não  significam  superioridade  de  algumas 
pessoas  sobre  as  outras.  As  desigualdades  são  o  resultado  de  estratégias 
previamente  planejadas  de  exploração  e  opressão.  Pautam-se na arbitrariedade 
e  nas  injustiças  sociais,  dividindo  a  sociedade em ricos e pobres, classes sociais 
11
(exploradas e exploradores), discriminação de sexo e raça .  
Ao  tratar  das  desigualdades  e  hierarquias  de  gênero,  questiona-se  o 
lugar  subalterno onde as mulheres deveriam ocupar conforme a configuração da 
ordem  social  do  patriarcado,  determinada  pela  supremacia  do  masculino. 
Quando Simone de Beauvoir (1949) afirmou que “não se nasce mulher, torna-se”, 
mostrou  o  quanto não é natural ser caracterizada como frágil, incapaz, submissa, 
inferiorizada.  As  categorias  sociais  mulher  e  homem  são  construídas 
historicamente  e  assim  estabelecem  as  relações  desiguais  de  poder  entre  os 
sexos.  
Com  o  uso  da  categoria  gênero,  evidencia-se  a  violência  a  que  as 
mulheres  são  submetidas,  dentro  e  fora  de  casa,  pelo  simples  fato  de  serem 
mulheres.  As  denúncias  são  frequentes:  violência  doméstica  e  sexual,  física  e 
psicológica,  verbal  e  patrimonial.  É  a  violência  praticada  contra  as  mulheres  por 
serem  simplesmente  mulheres.  Há  uma  misoginia  (ódio  às  mulheres)  milenar, 
imbricada nas instituições públicas e privadas. O que cria obstáculos para que as 
mulheres  se  transformem  em  sujeitas  históricas  e  protagonistas  de  suas  vidas e 
de  seu  trabalho,  com  suas  reivindicações,  expressando seus desejos e exigindo 
sua cidadania.  
Precisamos  do  emprego  de  gênero  na  educação  e  em  todas as áreas do 
conhecimento  para  que  sejam  feitas  interpretações  e  intervenções  mais 
profundas  e  abrangentes  na  sociedade.  Desta  forma,  libera-se  a  potencialidade 

11
Teles (2006, p. 23). 

29 
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de  vários  setores  da  população,  o  que  se  traduz  em  ações  inovadoras  e 
transformadoras.  Evidentemente  gênero  deve ser usado e articulado com outras 
categorias  como  as  desigualdades  entre  as  classes  sociais  e  econômicas  (luta 
de  classes),  como  a  opressão  contra  os  segmentos  populares  devido  a  sua 
raça/etnia,  cor,  tipo  de  cabelo  (racismo), idade (geracional) e outras intersecções 
(como orientação sexual e etc.).  
Essas  diversas  formas  de  dominação  (classe,  gênero,  sexualidade, 
raça/etnia,  geracional)  ocorrem  simultaneamente  e  não  há  como  separá-las  na 
vida  das  pessoas,  nas  suas  relações  sociais  e  na  sua  inserção  na  escola,  no 
mercado  de  trabalho,  nas  igrejas  e  demais  instituições,  no  campo  e  na  cidade. 
Daí a expressão feminismos interseccionais. 
12
Kimberlé Crenshaw , feminista negra dos Estados Unidos, nos ensina que 
há  necessidade de  se  compreender  que  outros  fatores  relevantes  de 
discriminação,  como  raça/etnia,  classe  social,  sexualidade  e  orientação  sexual, 
agem  num  só  tempo  em  relação  a  uma  pessoa  ou  a  um  grupo  de  pessoas. 
13
Adriana  Piscitelli   destaca  a  importância  de  se  estudar  classe,  gênero  e  raça 
14
juntos.  Avtar  Brah   adiciona  que  é  importante  estudar  os  diferentes  fatores 
juntos  por  causa  da  relação  que  cada  um  estabelece com  o  outro.  “Não  podem 
ser  tratadas  como  ‘variáveis  independentes’  porque  a  opressão  de  cada  uma 
está  inscrita  dentro  da  outra  –  é  constituída  pela  outra  e  é  constituída  dela”. 
15
Heleieth  Saffioti   nomeia  as  interseccionalidades  como  a  “teoria  do  nó”,  sendo 
que  a  articulação  das  categorias, classe social, gênero e raça e etnia que devem 
ser tratadas sempre em conjunto. 

12
  Kimberlé  Crenshaw  nasceu  em  1959,  nos  Estados  Unidos.  É  professora  de  Direito  na  UCLA e 
na  Universidade  de  Columbia  e  usou  pela  primeira  vez  a  teoria  da  interseccionalidade  em  1991 
para  chamar  a  atenção  dos  Tribunais  que  aplicavam  a  lei  antidiscriminação  entendendo  como 
totalmente separados gênero e racismo. 
13
  Adriana  Piscitelli  é  pesquisadora  e  professora  plena  do  Departamento  de  Antropologia  Social 
da  Unicamp  —  Universidade  Estadual  de  Campinas.  Integra  o  Núcleo  de  Estudos  de  Gênero  — 
PAGU. 
14
  Avtar  Brah,  professora  de  sociologia  aposentada  e  membro  da  Academia  de  Estudos 
Especializados  para  as  Ciências  Sociais e da Associação Sociológica Britânica. É especialista em 
questões de raça, gênero e identidade étnica. 
15
Heleieth Saffioti (1934-2010) foi uma das primeiras feministas acadêmicas nos anos 1960. 
Brasileira, Heleieth defendeu na Universidade de São Paulo a tese pioneira no feminismo: “A 
mulher na Sociedade de Classe”. 

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No  Brasil,  tem  sido  longa  e  tortuosa  a  caminhada  por  conquistas  de 
direitos  tanto  por  parte  das  mulheres  como  também  pelos  setores  populares 
explorados e oprimidos.  
Vivemos  um  momento  de  inflexão.  Direitos  que  se  apresentavam  como 
consolidados  foram  cancelados  ou  estão  na  iminência  de  serem  excluídos. 
Encontram-se  sob graves ameaças. Ora sob o pretexto de que estão onerando o 
Estado,  são  sequestrados,  ora  porque  são  “imorais”  e  “ofensivos”  aos  bons 
costumes  e  à  “sagrada  família”.  Não  querem  que  sejam  utilizadas  categorias 
como gênero e racismo.   
Há  momentos  que  nos  fazem  pensar  que  vivemos  em  séculos  passados, 
quando  iniciava-se  o  sistema  capitalista  e  que  a  exploração  se  alastrava  sem 
nenhuma  lei  que  colocasse  freios  na  sua  ganância  de  obter  só  lucros  e  mais 
lucros.  Massacrava  a  grande  maioria  do  povo,  inclusive  as  crianças  proletárias 
que  eram  enviadas  às  fábricas  e  trabalhavam  dia e noite. A histórica greve geral 
de  1917,  iniciada  pelas mulheres operárias em 10 de junho, na Fábrica Crespi, em 
São  Paulo,  significou  um  momento  de  denúncia  e  revolta  contra  as  péssimas 
condições  da  classe  trabalhadora.  Esta  greve  foi  o  estopim  para  a  greve  geral 
que  parou  São  Paulo  e  foi  vitoriosa,  pois  conseguiram  o fim do trabalho noturno 
para  mulheres  e  crianças.  Esta  greve  denuncia  a  utilização  do  trabalho  infantil 
dentro das fábricas.  
Os  movimentos  sociais  e  populares  acumularam,  nas  últimas  décadas, 
experiências  e  forças  políticas  que  se  manifestam  nas  diversas  formas  de 
resistência e de protestos.  
Mais  uma  vez,  as  mulheres  têm  sido  protagonistas  de  lutas  pioneiras,  ao 
colocarem  de  forma  pública  e  explícita  as  necessidades  e  reivindicações 
populares  feministas,  antirracistas,  antilesbofóbicas  e  em  defesa  da  dignidade 
humana,  nos fóruns de articulação de manifestações e lutas contra o golpismo, o 
que  contribui  para  a  resistência  aos  desmandos  de  um  governo  golpista  e 
impopular  e  ao  enfrentamento  da  recessão,  do  desemprego  e  da  violência  do 
Estado e por liberdades democráticas. 

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Não  é  por  acaso  que  os  ataques  contra  o  governo  da  Presidenta  eleita, 
Dilma  Rousseff  —  primeira  e  única  mulher  a  ocupar  o  cargo  máximo  da 
Presidência  da  República,  pelo  voto  popular  —  que  culminaram  com  a  perda de 
seu  mandato,  apresentaram  motivações  misóginas  que  tiveram  efeitos 
político-institucionais  imediatos.  Formou-se  uma  opinião  pública  midiática 
contrária  a  ela,  tratando-a  como  “histérica”,  sem  “habilidades  políticas”, 
“emocionalmente  desequilibrada”,  “sem  condições  de  governar  o  país”.  Em 
seguida,  forçaram  e  conseguiram  a  retirada das expressões gênero, “identidade 
de  gênero”  e  “orientação  sexual”  nos  planos  de  educação  e  na  base  curricular 
nacional  de  ensino.  Ao  retirar  gênero,  pretendem  educar  a  sociedade  para  a 
submissão  e  também  sufocar  os  movimentos  feministas  e  de  mulheres,  os 
movimentos  antirracistas e LGBTs, reduzindo assim o potencial de resistência de 
um  povo,  o  que  interessa  aos  capitalistas  para  manter a população dominada e 
alienada. 
O  atual  governo  brasileiro  reduziu  drasticamente  o  papel  de  políticas 
públicas  para  enfrentar  a  discriminação  étnico-racial  e  de  gênero  ao  desmontar 
a  estrutura  da  Secretaria  Especial  de  Políticas  para  Mulheres  (SPM)  e  da 
Secretaria  para  a  Igualdade  Racial  (SEPIR),  o  que  afeta  gravemente a maioria da 
população que são as mulheres e a população negra e indígena.   
 
Discutir  gênero  é  abordar  um  conjunto  de  problemas  estruturais 
do  país,  como  a  violência  contra  a mulher, a cultura do estupro, a 
desigualdade  salarial  entre  homens  e  mulheres,  os  assassinatos 
de  travestis  e  transgêneros  (o  Brasil  é  o  país que mais mata essa 
população  no  mundo),  o  modelo  predominante  de  estética  que 
desqualifica,  por  exemplo,  as  mulheres negras. Ao não discutir as 
desigualdades  de  gênero  nas  escolas,  quem  perde  com  isso  é  a 
sociedade,  como  um  todo  (Denise  Carrera,  coordenadora  da 
Ação Educativa). 

Estima-se  que,  no  Brasil,  cinco  mulheres  são  espancadas  a  cada  dois 
minutos,  segundo  dados  da  pesquisa  Mulheres  Brasileiras  nos  Espaços  Público 
e  Privado  (FPA/Sesc,  2010).  Em 2014, foram registrados 47.643 casos de estupro 

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em  todo  o  país,  segundo  o  9º  Anuário  Brasileiro  de  Segurança  Pública  (Fórum 
Brasileiro  de  Segurança  Pública,  2015),  o  que  significa  que  uma  mulher  é 
estuprada  a  cada  11  minutos.  Segundo  o  Mapa da Violência de 2016, são mortas 
13 mulheres por dia no Brasil, vítimas, em sua maioria, da violência de gênero. 
Visibilizar  essas  e  outras  violências  contra  as mulheres, como feminicídio, 
a  lesbofobia,  a  transfobia  e  o  racismo  historicamente  presentes  em  nossa 
sociedade  é  garantir  o  espaço  e  o  debate  público,  é  defender  uma  convivência 
democrática  e  plural.  Mas  tem  ficado  cada  vez  mais  evidente  que  esta  agenda 
tem  sido  alvo  dos  ataques  dos  conservadores  e  fascistas  que  temem  libertar  o 
potencial  criativo,  inovador  e  transformador  que  contém  estes  segmentos 
organizados da população. 
Por  outro  lado,  os  segmentos  oprimidos  insistem,  por  meio  de 
manifestações  públicas,  em  praticar  o  exercício  de  direitos,  ao  adquirirem 
consciência  política,  e  assim forjam sua capacidade de sobrevivência e não mais 
aceitam  essa  realidade  desigual  e  injusta.  Passam  a  ser  mais  inovadores  e 
criativos  e  reinventam  novas  formas  de  viver  e  conviver,  concretizando  o  verso 
da  poeta  Cecília  Meireles:  ​A  vida  só  é  possível  se  reinventada.  Resistem  a 
perder  direitos  que  sabem  o  quanto  lhes  custou  e  o  quanto  vale  a  pena  se 
apropriar deles fazendo seu uso diário. 
O  Estado  brasileiro  está  andando  na  contra  mão  da  história.  A 
interferência  do  governo  atual  nos  planos  de  educação  e  no  próprio  sistema 
educacional,  como  forma  de  controlar  parcelas  significativas  da  população, 
impedindo-as  de  acessar  e  aprofundar  conhecimentos  necessários  para  a 
construção  democrática,  abalou  a  opinião  pública  internacional.  A  própria 
16
Unesco   se  incomodou  com  os  retrocessos  no  Brasil  em  relação  ao  campo 
educacional.  E  faz  um  alerta  ao  governo  brasileiro sobre os efeitos negativos de 
uma  educação  tão  restritiva  e  limitada,  que  não  se  pauta  sob  a  perspectiva  de 
gênero e de diversidade sexual e social. 

16
UNESCO é a organização da ONU (Organização das Nações Unidas) para educação, ciência e 
cultura. 

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As  mulheres  reagem  de  diversas  formas,  nas  manifestações  de  rua,  nas 
ocupações  nas  escolas,  nos  espaços  de  moradia,  na  busca  de  serviços  e 
políticas públicas para enfrentar as desigualdades e a negação de direitos.  
São  as  mulheres  que  têm  aberto  caminhos  para as mudanças. Participam 
da  luta  contra  a  ditadura, entraram nas guerrilhas urbanas e rurais.  Lutaram pela 
anistia  política,  contra  a  alta  do  custo  de  vida,  por  creches,  por  salários,  por 
melhorias  nas  periferias.  Denunciaram  a  violência  contra  seus  filhos  e  contra  si 
próprias.   
E  para  finalizar,  em  1917,  na  Rússia,  foram  as  mulheres,  as  primeiras  a 
saírem  em  passeatas  reivindicando  pão  e  salários,  o  que  criou  condições  para 
desencadear a revolução socialista, que neste momento completa 100 anos. 
Líderes  revolucionários  atentos  já  declararam  que  sem  as  mulheres  não 
há  revolução  e  nós,  feministas,  em  várias  oportunidades,  temos  dito:  sem  o 
feminismo não há justiça e igualdade social. 
 
Referências: 
 
TELES, Maria Amélia de Almeida (2017). ​Breve História do Feminismo no Brasil e Outros Ensaios​. 
Alameda Editorial, São Paulo. 
 
TELES, Maria Amélia de Almeida (2006). ​O que são os direitos humanos das mulheres? ​São 
Paulo. Editora Brasiliense. 
 
Agência Patrícia Galvão (2017). ​A sociedade perde ao não discutir gênero na escola. Disponível 
em: 
www.agenciapatriciagalvao.org.br/mulheres-de-olho-2/sociedade-perde-ao-nao-discutir-genero-
na-escola/​. Último acesso: 17 jan. 2018. 
 
 
 
 
 
 
 

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A LATA D’ÁGUA MAIS PESADA: mulheres do campo e a luta 


contra o golpe 
17 18
Kelli Cristine de Oliveira Mafort e Ana Terra Reis  

 
Resumo 
Este  é  um  texto  feito  por  muitas  mãos,  essencialmente,  das  mãos  das 
mulheres que vivem do seu trabalho quase sempre no campo, como assentadas, 
acampadas  e/ou  assalariadas  e  também,  no  meio  urbano,  como  empregadas 
domésticas,  terceirizadas,  ou  no  mercado  de  trabalho  informal.  É  um  texto  que 
parte  de  reflexões  coletivas  e  que  pretende  contar  um  pouco  dos  impactos 
sofridos  diante  do  golpe  de  Estado  e  dos  golpes  protagonizados  pelos  homens 
do  Estado  sobre  aquelas  que  buscam  a  emancipação  da  classe,  com  igualdade 
de gênero. 
Construímos  a  narrativa  a  partir  da  vivência  de  Nivalda,  mulher  negra  e 
assentada,  que  na  luta  pela  terra  no  estado  de  São Paulo encontrou e construiu 
um  caminho  coletivo  de  lutas  e  conquistas.  Com  Nivalda,  compreendemos  a 
essência  do  Estado:  lutamos,  acessamos  as  políticas  públicas,  sofremos  os 
retrocessos  do  golpe  e  reafirmamos  a  necessidade  de  lutar  com  ainda  mais 
força pela construção da Reforma Agrária Popular. 
 
Tiraram a trouxa e a lata d’água da cabeça 
Quebraram preconceitos e rótulos 
Deixaram para traz a servidão costumaz! 
(Lana Alpino, Mulheres Nordestinas) 
 
Discursaram que as mulheres são frágeis 
Eu não tive tempo de exercitar fragilidades 
(Jenyffer Nascimento, Antítese). 
 

17
  Coordenação  Nacional  do  MST  e  doutoranda  pelo  Programa  de  Pós-graduação  em  Ciências 
Sociais da Unesp/Araraquara. 
18
  Militante  do  MST  e  Doutora  pelo  Programa  de  Pós-graduação  em  Geografia  da 
Unesp/Presidente Prudente. 

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Nivalda,  mulher  negra  assentada  no  estado  de  São  Paulo,  8  filhos, 
separada  (ou  liberta  como  costuma  dizer)  recentemente  de  seu  marido,  ao  qual 
ela  sempre se referia por “coroné”, nos ajudou a fazer este texto. Não com o seu 
próprio  punho,  mas  com  sua  história  e  suas  angústias  recentes.  Nossa  mulher 
guerreira  em  2013  tornou-se  presidente  da  Cooperativa  Agroecológica Mãos da 
Terra,  comandada  por  mulheres,  que  também  admitem a participação de alguns 
homens.  
A  sede  da  cooperativa  foi  erguida  através  da  vontade  coletiva  pela 
construção  de  uma  padaria  (era  o  que  diziam  aquelas  mulheres  animadas, 
reunidas  debaixo  de  um  flamboyant),  mas  logo  perceberam  que,  para  fazerem 
seus  pães  e  doces,  tinham que enfrentar muitas barreiras. Elas haviam acessado 
19 20
o  Fomento  Mulher   através  de  projetos  elaborados  pela  equipe  de  ATER   e 
estavam  prontas  para  executar  seus  projetos  individuais  nos  lotes  familiares  e 
também neste sonho coletivo da padaria, com vistas à geração de renda.  
Mas  havia  algumas  pedras  no  caminho:  a maioria dos seus companheiros 
não  gostou  da  ideia  e  argumentava  que  o  tempo  das  mulheres  em  casa  ia 
diminuir  com  essa  tal  padaria,  e  não  sobraria  tempo  pra  elas  fazerem  suas 
obrigações;  para  fazer  uma  padaria,  precisa  de  muita  reunião  e  não  queriam 
suas  mulheres  metidas  nisso,  pois  no  acampamento até “engoliam”, mas depois 
da  terra  ganha,  não  teria necessidade de tanta conversa; ou ainda, incentivavam 
que  as  mulheres  pegassem  o  recurso  do  projeto  e  investissem  na  casa,  num 
carro  velho  ou  empregassem  na  grande  produção  do  lote,  que  essa  sim  dava 
resultados, segundo eles. 
  Pedras  chutadas, padaria erguida! Assim foi! Enfrentaram as contradições 
da decisão coletiva que tomaram, e algumas chegaram a sofrer violência, mas se 
ajudaram  e  superaram  as  dificuldades.  Foram  se  organizando  e,  entre  os  anos 
21
de  2014  a  2016,  entregaram  cerca  de  200  toneladas  de  alimentos para o PAA , 

19
  Crédito  de  R$  3.000,00  destinados  à  implantação  de  projetos  produtivos  sob  a 
responsabilidade  das  titulares  dos  lotes  de  reforma  agrária 
(http://www.incra.gov.br/novo_credito_instalacao). 
20
ATER — Programa de Assistência Técnica e Extensão Rural, instituído pela Lei 12.188/2010. 
21
  O  Programa  de  Aquisição  de  Alimentos  (PAA)  foi  instituído  em  2003  pela  Lei  10.696,  como 
parte do Programa Fome Zero. 

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22
acessaram  o  PNAE ;  em  2014  aprovaram um projeto junto à Secretaria Estadual 
23
do  Meio  Ambiente/PDRS ,  fizeram  mutirões  e  implantaram  sistemas 
agroflorestais;  desenvolveram  muitas  parcerias  para  capacitação  através  da 
24 25
ATER  e  outras  com  Sebrae ,  Senar ,  etc; protocolaram projeto de habitação no 
26 27
PNHR (aguardando  liberação  dos  recursos);  buscaram  apoio  junto  ao  INSS   e 
garantiram  o  talão  da  produtora  rural  para  as  cooperadas,  possibilitando  o 
acesso  ao  salário  maternidade,  auxílio  doença  e  aposentadoria  rural  para 
aquelas com mais de 55 anos de idade e muitos de labuta na agricultura.  
28
Recentemente  conquistaram  espaço  na  Feira  do  Produtor  da  cidade   e 
estão  apostando  na  comercialização  direta  de  alimentos  saudáveis.  Em  meio  a 
essa  história  de  muitas  conquistas,  elas  ainda  trancaram  rodovias,  distribuíram 
alimentos,  ocuparam  órgãos  públicos  e  bancos,  marcharam,  discursaram  em 
atos  públicos,  fizeram  negociações na capital do estado e em Brasília, ocuparam 
terra  com  as  famílias  acampadas,  doaram  alimentos  aos  acampamentos, 
choraram  pelos  assassinatos  no  campo  e  se  lançaram nas lutas feministas do “8 
de  março”  contra  a  violência,  o  agronegócio,  as  empresas  transnacionais,  os 
agrotóxicos,  os  transgênicos  e  seguiram  construindo  a  Reforma  Agrária  Popular
29
.  
Mas por que lutavam essas mulheres? Por solidariedade sem terra, que só 
entende  quem  esteve  noites  e  noites  num  barraco  de  lona  ou  nas  guaritas 
improvisadas,  cuidando  da  segurança  coletiva.  Pelo  acesso  e  massificação  das 
políticas  públicas  para  todas  as  mulheres.  Pela  garantia  de  que  o assentamento 

22
  O  Programa  Nacional  de  Alimentação  Escolar  (PNAE)  foi  instituído  pela  Lei  n.  11.497  de  16  de 
junho de 2009. 
23
  PDRS  –  Projeto de Desenvolvimento Rural e Sustentável  ligado ao Governo do Estado de São 
Paulo. 
24
SEBRAE – ​Serviço Brasileiro de Apoio às Micro e Pequenas Empresas. 
25
SENAR – ​Serviço Nacional de Aprendizagem Rural. 
26
PNHR – Programa Nacional de Habitação Rural. 
27
INSS – Instituto Nacional de Seguridade Social. 
28
  Feira  do  Produtor  da  cidade  de  Ribeirão  Preto  /  SP 
(http://www.ribeiraopreto.sp.gov.br/J332/noticia/37904;jsessionid=fa57b26adeafdfc9c77214f892
b8). 
29
  Reforma  Agrária  Popular  é  o  programa  do  MST,  difundido  a  partir  do  seu  VI  Congresso 
realizado  em  fevereiro  de  2014,  em  Brasília 
(http://www.mst.org.br/2014/12/11/video-oficial-sobre-o-6-congresso-nacional-do-mst.html). 

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de  Reforma  Agrária  se  efetivasse  e  deixasse  de  ser  tão  precário,  sem  acesso  à 
água  em  alguns  períodos  do  ano. Para denunciar o quanto estão insatisfeitas de 
tantos  privilégios  e  incentivos  ao  agronegócio,  que  jorra  veneno  com  as 
pulverizações  aéreas  nos  canaviais  e  atingem  o  entorno.  Para  dar  uns  gritos 
contra  a  violência  cotidiana  que  as  mulheres  enfrentam,  seja  na  forma  de 
agressão  explícita  ou  na  trouxa  suja  de  roupa que, necessariamente, devem dar 
conta,  junto  com  todos  os  outros  trabalhos  da  roça,  da  casa,  da  família  e  de 
quem mais aparecer pelo caminho.  
Para  estas  mulheres,  lutar  faz  parte  do  próprio  caminhar.  Mas,  em agosto 
de  2016,  sentiram  um  golpe  mais  profundo,  que  exigiu  delas  a  construção  da 
luta  num  outro  patamar. Num ritmo assustador, foram percebendo os golpes nos 
direitos  conquistados,  não  só  para  as  mulheres  do  campo, mas para toda classe 
trabalhadora.  Além  disso,  uma  regressão  violenta  tomou  conta  da  sociedade  e 
muitos  temas  conservadores  foram  disseminados,  atingindo  em  cheio  estas 
mulheres  –  estatuto  do  nascituro,  retrocesso  no  entendimento  do  aborto  como 
uma  questão  de  saúde  pública,  estatuto  da  família  padronizada,  excluindo  a 
diversidade  sexual,  combate  à  chamada  “ideologia  de  gênero”,  uma 
exacerbação  da  cultura  do  estupro,  projeto  Escola  Sem  Partido,  entre  outras 
pautas  conservadoras.  Quando  rasgaram  a  Constituição  do  Brasil  em  2016,  já 
era  possível  imaginar  que  os  parlamentares  mais  conservadores  da  história  da 
democracia  brasileira iam picotar cada um de seus artigos, até que não sobrasse 
nada.  
 
Direitos conquistados e os retrocessos consolidados 
 
A  constituição  de  relações  opressivas  de  trabalho  remonta  aos  tempos 
coloniais.  Impossível  pensar  o  trabalho  feminino  no  Brasil  sem  reconhecer  a 
opressão  vivida  pelas  mulheres  negras  escravizadas,  que  foram  subsumidas  à 
lógica  da  superexploração  do  trabalho  e  que  não  obtiveram  no  processo  de 
industrialização  e  urbanização  no  Brasil  condições  de  livrarem-se  da 
necessidade  de  vender  sua  força  de  trabalho  no  meio  doméstico, reproduzindo 

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o  que  há  de  mais  arcaico  das  senzalas  nas  casas  da  burguesia  brasileira  até  a 
atualidade  e  as  mulheres  assentadas  e  acampadas  não  estão  isentas  a 
empregar sua força de trabalho nesta realidade degradante. 
O  direito  à  aposentadoria  foi  uma  conquista  dos  anos  de  1930,  mas  foi 
somente  nos  anos  de  1960  que  as  diferenciações  de  gênero  começaram  a  ser 
implementadas,  no  sentido  de  corrigir  as  menores  oportunidades  destinadas  a 
mulheres  no  mercado  de  trabalho,  as  duplas  jornadas  e  a  condição  de  mães. 
Somente  em  2013  foi  possibilitado  legalmente  às  trabalhadoras  domésticas 
exigir  direitos  quanto  à  jornada  de  trabalho  de  8  horas  diárias  e  44  horas 
30
semanais,  horas  extras,  horário  de  almoço  e  acesso  à  multa  de  40%  do  FGTS  
em caso de demissão.  
Na  contramão  das  poucas  conquistas  em  séculos  de  lutas  e  no  contexto 
do  avanço  da  agenda  neoliberal  proposta  pela  direita  conservadora  e  golpista, 
contra  os  direitos  dos  trabalhadores,  as  mulheres  também  foram  afetadas  pela 
terceirização:  elas  são  a  maioria  em  empresas  terceirizadas  de limpeza e asseio 
31
e cerca de 1,2 milhão de mulheres (PNAD , 2013) são submetidas ao trabalho em 
domicílio  (confecções,  por  exemplo),  vivendo  condições  cada  vez  mais 
precarizadas  e  menos  dignas,  com  jornadas  extenuantes,  sem  direitos 
trabalhistas, reproduzindo relações de trabalho análogas à escravidão.  
Além  do  golpe no que se refere à terceirização, vivemos no dia 11 de julho 
de  2017  a  aprovação  da  reforma  trabalhista,  que  permitirá  a  divisão  das  férias 
em  até  três  períodos,  com  jornadas  de  trabalho de até 12 horas sem computar o 
tempo  de  deslocamento  de  casa  ao  local  de  trabalho,  com  as  trabalhadoras 
tendo  de  arcar  com  as  despesas,  caso  percam  um  processo  contra  a  empresa, 
sem  obrigatoriedade  de  contribuição  sindical,  com  rescisão  do  contrato 
negociada  na  própria  empresa,  com  permissão  para  a  exposição  de  grávidas  e 
lactantes à ambientes insalubres. 
Importante  destacar  também  aquilo  que  denunciamos  durante  a  Jornada 
de  Lutas  de  8  de  março  de  2017:  a  reforma  da  previdência  a  ser  votada  pelos 

30
FGTS – Fundo de Garantia do Tempo de Serviço.  
31
PNAD - ​Pesquisa Nacional por Amostra de Domicílio. 

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golpistas  deve  prejudicar  mais  as  mulheres,  pobres  e  negros.  No  caso  dos 
trabalhadores  do  meio  urbano, a proposta de aumentar o tempo de contribuição 
(que  passará  a  no  mínimo  25  anos) e as idades (que passarão, provavelmente, a 
65  anos  para  homens  e  62  anos  para  mulheres)  ignora  que  as  mulheres 
trabalham  em  média  11  horas  a  mais,  semanalmente,  do  que  os  homens,  e  que 
quase 6 milhões de mulheres são empregadas domésticas.  
A  proposta  inicial,  apresentada  pelo  governo  e  combatida  pelos 
movimentos  sociais,  previa  a  equiparação  da  aposentadoria  para  trabalhadores 
urbanos  e  rurais.  Depois  das  lutas  e  mobilizações  em  19  de  abril  de  2017, 
apresentou-se  um  novo  texto  em  relação  aos  trabalhadores  do  campo,  no  qual 
propõe-se  que  homens  devem  se  aposentar  aos  60  anos  e as mulheres aos 57, 
com  a  necessidade  de  contribuição  previdenciária  por  15  anos.  O  direito  dos 
trabalhadores  do  campo  a  se  aposentar com 5 anos a menos foi conquistado na 
Constituição  de  1988  e  deve-se  às  condições  mais  penosas  do  trabalho  no 
campo,  sendo  garantida  a  aposentadoria  aos  60  anos  para  homens  e  aos  55 
anos para as mulheres. 
A  nova  proposta  de  reforma  da  previdência  ainda  desconsidera  que  no 
32
campo,  segundo  o  DIEESE ,  as  mulheres  dedicam  28  horas  semanais  aos 
trabalhos  domésticos  e  desde  muito  cedo  começam  a  trabalhar  na  produção 
familiar.  Com  a  proposta  do  governo  golpista,  evidencia-se  que  o  desejo  é 
equiparar  o  tempo  de  aposentadoria  à  expectativa  de  vida,  obrigando  àquelas 
que  vivem  de  seu  trabalho  a  serem  exploradas por toda a vida. Além disso, com 
a  reforma da previdência, as/os produtores rurais perdem o direito de segurados 
especiais,  ou  seja,  15  anos  de  contribuição  é  muito  diferente  de  15  anos  de 
segurado,  pois  neste  último  caso  isso  se  refere  à  toda  família  que  se  ocupa  do 
trabalho  agrícola;  se  passar  a  nova  regra,  cada  membro  da família rural terá que 
contribuir,  e  com  isso  serão  feitas  escolhas  de  quem  será  o  “contribuinte”, 
devido  à  baixa  renda  no  campo,  e  provavelmente isso ocasionará uma exclusão 
de mulheres e jovens.  

32
DIEESE — ​Departamento Intersindical de Estatística e Estudos Socioeconômicos.  

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Ao  tratarmos  das  conquistas  e  retrocessos  no  que  se  refere  às  políticas 
públicas  é  preciso  observar  o  avanço  do  capital  no  campo  travestindo  o 
33
latifúndio  em  agronegócio  moderno,  com  intensiva  exposição aos agrotóxicos , 
condições  degradantes  de  trabalho,  destruição  do  meio  ambiente  e  da 
biodiversidade,  gerando  concentração  de  terras  e  de  renda  na  produção  de 
mercadorias primárias para a exportação.  
Os  números  não  são  animadores:  entre  2002  e  2013  foram  assentadas 
apenas  4.363  famílias  e  mais  de  85%  do  crédito  foi  destinado  ao  agronegócio, 
abandonando a política de aquisição de terras para fins de reforma agrária. 
Entre  as  principais  conquistas  que  tivemos  antes  do  golpe  está  o 
reconhecimento  das  mulheres  camponesas  enquanto  público  prioritário  das 
ações  governamentais  no âmbito dos programas sociais. Desde 2003, tornou-se 
obrigatória  a  titularidade  conjunta  dos  lotes  de  reforma  agrária,  ou seja, quando 
a  família  conquista  a  terra,  a  Concessão  de  Uso  é  em  nome  da  mulher  e  do 
homem  (e  preferencialmente  da  mulher),  independente  do  estado  civil, 
assegurando  o  direito  da  mulher  à  terra  em  caso  de  divórcio,  desde  que  ela 
detenha  a  guarda  dos  filhos.  Tratou-se  de  um  reconhecimento  de  que  a  mulher 
também  é  protagonista  da  produção  familiar,  propiciando  ainda  que  ela 
comprove  a  atividade  rural  para  fins  de  acesso  aos  benefícios  previdenciários, 
como salário-maternidade e aposentadoria. 
As  mulheres  também  foram  beneficiadas  por  programas  como  o 
Programa  de  Aquisição  de  Alimentos,  criado  em  2003  no  âmbito  do  Programa 
Fome  Zero.  Por  meio  deste  programa,  as  famílias  assentadas  poderiam 
comercializar  através  de  suas  organizações,  cooperativas  ou  associações,  até 
R$  8  mil  por  ano,  destinando  os  alimentos  produzidos  às  populações  que  se 
encontravam  em  situação  de  insegurança  alimentar.  Era  a  possibilidade  de  as 
mulheres  comercializarem  os  alimentos  produzidos  em  quintais;  o  que  antes 

33
Segundo o INCA – Instituto Nacional do Câncer, no ano de 2016 foram registrados 600 mil 
novos casos de câncer, sendo a exposição à agrotóxicos ou alimentos envenenados fatores 
preponderantes, já que 85% dos casos de câncer tem motivação do ambiente, contra apenas 
15% de origem genética. Disponível em: 
http://www.redebrasilatual.com.br/saude/2017/06/estudo-relaciona-o-uso-de-agrotoxicos-com-o-
cancer-no-sangue. 

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garantia  o  autossustento  das  famílias  passa  a  ser  produzido  também  para 


alimentar  trabalhadoras  e  trabalhadores  do  meio  urbano,  passa  a  ter  valor 
monetário  visibilizado  e  garante,  ainda  que  de  forma  inicial,  acesso  à  renda  às 
mulheres.  O  PAA  chegou  a  ser  acessado  por  40  mil  mulheres  em  2012  e  foi 
sendo  esvaziado  pela  ausência  de  recursos  do  governo  federal  desde  então, 
chegando  à  vergonhosa  proposta  de  atender  apenas  200  famílias  em  todo  o 
Brasil  no  ano  de  2017.  Por  não  ter  se  convertido  em  uma  política  pública  com 
orçamento  obrigatório  anual,  o  PAA  fragilizou-se  e  foi  um  dos  principais  cortes 
que  afetou  o  cotidiano  de  mais  de  41  mil  famílias  que  vinham  acessando  o 
programa anualmente.  
Na  comercialização  institucional,  em  2009  houve  também  a conquista do 
PNAE,  o  Programa  Nacional  de  Alimentação  Escolar,  que  determina  às 
prefeituras  a  obrigatoriedade  de  compra  da  agricultura  familiar  de  30%  dos 
alimentos  destinados  às  escolas.  Neste  caso,  cada  família  pode  entregar até R$ 
20  mil  por  ano,  por  prefeitura,  em  um  total  de  até  R$  360  mil  por  ano.  É  a 
possibilidade  de  proporcionar  o  acesso  a  alimentos  sadios,  diretamente  das 
famílias  produtoras  e  de  estruturar  as  cooperativas  com  a  garantia  de 
comercialização  dos  alimentos  produzidos.  Neste  caso,  o  retrocesso  acontece 
desde  as  eleições  municipais  de  2016,  quando  a  direita  brasileira  assume 
importantes  prefeituras  e  deixa  de  cumprir  a  lei.  O  governo  federal,  por  seu 
turno,  deixa  de  fiscalizar  e  punir  as  prefeituras  e  a  execução  do  PNAE  fica 
comprometida.  Fato  que  explicita  o  posicionamento  dos  líderes  de  partidos  da 
direita  neoliberal  é  o  posicionamento  da  prefeitura  de  São  Paulo  em  fornecer  a 
34
Farinata ,  ou  uma  espécie  de  ração  humana  nas  escolas  municipais  da  maior 
cidade brasileira. 
Cabe  destacar,  ainda,  os  avanços  do  início  deste  século no que se refere 
às  políticas  de  redistribuição  de  renda,  como  o  Bolsa  Família, implementado em 
nome  da  mulher  e que chegou a beneficiar 14 milhões de famílias brasileiras (em 

34
FARINATA: farinha processada com sobras de alimentos próximos da data de vencimento para 
suplemento alimentar. Projeto da prefeitura municipal de São Paulo/SP. Disponível em: 
http://agenciabrasil.ebc.com.br/direitos-humanos/noticia/2017-10/prefeitura-de-sao-paulo-deve-in
corporar-farinata-na-merenda-escolar. 

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2017,  foram  beneficiadas  13,6 milhões de famílias), de acesso à universidade (3,4 


milhões  de  mulheres  acessaram a universidade entre 2005 e 2015), de acesso à 
moradia  (80%  das  4,2  milhões  de  casas  construídas  eram  em  nome  de 
mulheres).  Em  que  pesem  os  números  expressivos e a considerável melhoria da 
qualidade  de  vida  do  povo,  há  ainda  muito  que  se  refletir  e  desafiar  na 
construção  da  autonomia  e  da  emancipação  feminina,  o  que  tem  sido 
especialmente  difícil  em  tempos  de  reorganização  produtiva  do  capital  e  de 
avanço das políticas de caráter neoliberal. 
O  estreito leque de conquistas também está em jogo diante da aprovação 
da  Medida  Provisória  nº  759,  convertida  na  Lei  13.465  de  11/07/2017,  que  busca 
conceder  o  título  de  propriedade  privada  da  terra às famílias assentadas. Com o 
título  definitivo  (título  de  domínio)  as  famílias  assentadas  poderão  colocar  seus 
lotes  como  garantia  em  operações  bancárias  (que  podem  ser  requeridas  em 
caso  de  não  pagamento  da  dívida),  ou  mesmo  vender  a  terra,  o  que  antes  era 
proibido  por  lei.  Pra  se  ter  uma  ideia  do  quanto  isso  atinge  as  mulheres,  a 
recente  aprovação  da  lei  já  está  gerando  manifestações  por  parte  dos  homens 
assentados  que  se  separaram  de  suas  companheiras  e  deixaram,  por 
consciência  ou  força  da  lei,  o  lote  para  mulher  e  filhos,  pois  reivindicam  que  o 
lote  seja  então  titulado  e  vendido,  e  que  se  divida  em  partes  iguais o resultante 
de  tal  venda.  O  preocupante  é  que,  com  a  ausência  das  políticas  públicas 
destinadas  à  pequena  agricultura  por  um  lado,  e  por  outro  lado  a  inviabilidade 
de  produção  e  reprodução  social  para  a  agricultura  camponesa  nos  moldes  do 
modelo  do  agronegócio,  pode-se  prever  um  processo  ainda  maior  de 
reconcentração  de  terras  e  de  renda  sob  controle  da  burguesia.  Movimentos 
35
sociais  como  o  MST   defendem  a  Concessão  de  Direito  Real  de  Uso  –  CDRU 
para  as  famílias  assentadas  da  Reforma  Agrária,  isto  é,  o  direito  de  viver  e 
trabalhar  na  terra  com  a  segurança  e  o  direito  de  uso,  de  geração  em  geração. 
Com  a  medida  o  governo  golpista  quer  acabar  com  as  responsabilidades  do 

35
MST — Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem Terra 
(http://www.mst.org.br/2017/07/11/mst-condena-nova-legislacao-fundiaria-aprovada-hoje-pelos-go
lpistas.html). 

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Estado  sobre  os  assentamentos  e,  portanto,  destruir  a  Reforma  Agrária.  Ainda 
são  atingidos  por  esta  lei,  comunidades  indígenas  e  quilombolas,  que  sofrem 
com  os  retrocessos  nos  processos  de  demarcação  de  terras  e  reconhecimento 
dos seus territórios.  
Outro  aspecto  nefasto  da  lei  13.465/2007  é  o  incentivo  ao  crime  da 
grilagem  de  terras  (ato  de  falsificação  de  documentos  para  justificar  a  invasão 
sobre terras públicas), flexibilizando regras para regularização fundiária em áreas 
de  até  2.500  hectares. Com isso, o governo presenteia criminosos e inviabiliza a 
arrecadação  de  terras  públicas  para  a  Reforma  Agrária,  como  prevê  a 
Constituição  brasileira.  Na  prática,  tal  medida  bloqueia  uma  das  importantes 
formas  de  obtenção  de  terras  para  os  futuros  assentamentos  —  no  Brasil, 
existem  cerca  de  120  mil  famílias  acampadas,  na  sua  maioria,  mulheres  e 
crianças;  acampamentos  que  em  média  têm  7  anos  de  existência,  e  em  alguns 
casos, até 15 anos de luta na lona preta.  
São  muitas  as  medidas  dos  golpistas  que  atingem  as  trabalhadoras  do 
campo.  Central  destacar que o golpe tem um forte protagonismo dos ruralistas – 
do  agronegócio  e  da  mineração,  contando  com  a  maior  bancada  no  Congresso 
Nacional.  Citemos  mais  alguns  exemplos:  o  projeto  de  lei  —  PL  6299/2002  do 
Veneno  (em  tramitação),  que  flexibiliza  a  legislação  e  controle  atual;  o  bloqueio 
ao  PL  6670/2016,  que  institui  a  PNARA  –  Política  Nacional  de  Redução  de 
Agrotóxicos  (em  tramitação);  mudanças  no  código  da  mineração;  renegociação 
das  dívidas  do  Funrural  (cerca  de  R$  50  bilhões  de  Reais);  o PL 4059/2012, que 
permite  aquisição  ilimitada  de  terras  por  estrangeiros  (em  tramitação);  decreto 
de  outubro  de  2017,  que  isenta  os  ruralistas  em  60%  do  pagamento  de  multas 
ambientais  (R$  4,6  bilhões);  prorrogação  do  prazo  para  adesão  ao  Refis, 
refinanciamento  com  descontos  de  até  99%  aos  ruralistas  que  devem  cerca  de 
R$ 135 milhões para a União.  
O  golpe  é  resultante  de  uma  disputa  intracapital,  articulado  com  a 
geopolítica,  e  que  pretende  impor,  num  ritmo  acelerado,  medidas  que 
subordinem  o  Brasil  aos  ditames  neoliberais.  Os  governos  anteriores  –  Dilma  e 
Lula  –  adotaram  uma  política  de  conciliação  de classes, na qual a prioridade era 

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o  capital,  mas  com  concessões  importantes  às/aos  trabalhadoras/es.  Na  conta 


do  golpe,  não  cabe  tais concessões à política social, ao contrário, é fundamental 
retirar direitos adquiridos em nome de sanear a economia e garantir os contratos 
de  pagamento  de  juros  da  dívida.  O  ritmo  e  a  intensidade  do  golpe  no  Brasil 
revelam  a  tarefa  que  países  periféricos  devem  cumprir  em  tempos  de  crise 
acentuada do capital.  
36
A  crise  do  capital  tem  caráter  estrutural  e atinge a totalidade do sistema 
sócio  metabólico  do  capital,  ativando  seus  limites  absolutos,  principalmente  em 
relação  ao  trabalho  –  gerando  um  desemprego  estrutural  constante  e  em 
relação  ao  meio  ambiente  –  num  uso  incontrolável  dos  bens  naturais, 
transformando tudo em mercadoria.  
Na  crise,  o  capital  também  se  reorganiza  e  promove  golpes  onde  for 
necessário,  criando  uma  instabilidade  permanente  na  qual  tudo  se  justifica,  até 
mesmo  retrocessos  brutais  como  vistos  na  portaria  do  Ministério  do  Trabalho 
1129/2017  que  qualifica  como  trabalhador  em  situação  análoga  à  escravidão 
somente aquele que estiver preso (só faltou escrever: acorrentado).  
37
A  crise  do  capital  aumenta  a  desigualdade  social   e  consequente 
38
processos  de  violência,  em  que  as  mulheres,  os  LGBTs ,  as/os  negras/os  e  a 
juventude  são  os  mais  atingidos.  E  no  campo  brasileiro,  estão  os  mais  altos 
índices de concentração de pobreza extrema. 
O  momento  político  que  vivemos  nos  convoca  a  reafirmar  nossos 
compromissos  da  construção  socialista  e  feminista.  Resistir no campo é também 
uma  luta  cotidiana  pela  construção  de  uma  nova  sociabilidade,  com  novas 
relações  de  trabalho,  com  uma  nova  matriz  produtiva  baseada  na  soberania 
alimentar e na agroecologia, como propõe a Reforma Agrária Popular. 

36
Mészáros, István (2002). ​Para além do capital​. São Paulo: Boitempo. 
37
Segundo relatório da Oxfam, 6 brasileiros concentram a mesma riqueza que a metade da 
população mais pobre. 5% dos ricos detêm a mesma fatia de renda que outros 95%. O Brasil está 
entre os 10 países mais desiguais do mundo. Mulheres receberão os mesmo salários que os 
homens branco em 2047, e os negros em 2089, em ritmo progressivo ( 
https://www.cartacapital.com.br/economia/seis-brasileiros-tem-a-mesma-riqueza-que-os-100-milh
oes-mais-pobres). 
38
LGBTs – Lésbicas, Gays, Bissexuais, Transsexuais, Travestis e Transgêneros. 

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A  sociabilidade  pretendida  está  intimamente  ligada  ao  rompimento  com 


os  pilares  patriarcais;  está  na  necessidade  de  projeção  das  pautas  feministas  à 
luz  da  emancipação  das  mulheres  no  âmbito  público e privado, ou seja, está em 
reafirmar  nossa  atuação,  enquanto  mulher  do  campo,  militante  e  dirigente, 
ocupando espaços, conquistando e resistindo nos territórios. 
 
Referências: 
 
AGÊNCIA BRASIL. ​Prefeitura de São Paulo deve incorporar farinata na merenda escolar​. 
Disponível em: 
http://agenciabrasil.ebc.com.br/direitos-humanos/noticia/2017-10/prefeitura-de-sao-paulo-deve-in
corporar-farinata-na-merenda-escola​. Último acesso: 05 nov. 2017. 
 
BRASIL DE FATO. ​Ruralistas da bancada do Refis devem 135 milhões de dólares à União​. 
Disponível em: 
https://www.brasildefato.com.br/2017/09/04/ruralistas-da-bancada-do-refis-devem-rdollar-135-mil
hoes-a-uniao/​. Último acesso: 04 nov. 2017. 
 
CARTA CAPITAL. ​Seis brasileiros têm a mesma riqueza que os 100 milhões mais pobres​. 
Disponível em: 
https://www.cartacapital.com.br/economia/seis-brasileiros-tem-a-mesma-riqueza-que-os-100-milh
oes-mais-pobres. Último acesso: 03 nov. /2017​.  
 
JORNAL DA USP. ​Decreto sobre multa ambiental pode incentivar crimes no futuro​. Disponível 
em: 
http://webdev.jornal.usp.br/atualidades/decreto-sobre-multa-ambiental-pode-incentivar-crimes-no
-futuro/​. Acessado em 04/11/2017. 
 
MÉSZÁROS, István (2002). ​Para além do capital​. São Paulo: Boitempo. 

MST. ​Vídeo oficial sobre o 6º Congresso Nacional do MST​. Disponível em: 


http://www.mst.org.br/2014/12/11/video-oficial-sobre-o-6-congresso-nacional-do-mst.html​. Último 
acesso: 02 nov. 2017. 
 
___________. ​MST condena nova legislação fundiária aprovada pelos golpistas​. Disponível em: 
http://www.mst.org.br/2017/07/11/mst-condena-nova-legislacao-fundiaria-aprovada-hoje-pelos-gol
pistas.html​. Último acesso: 05 nov. 2017. 
 
REDE BRASIL ATUAL. ​Estudo relaciona o uso de agrotóxicos com o câncer no sangue​. 
Disponível em: 
http://www.redebrasilatual.com.br/saude/2017/06/estudo-relaciona-o-uso-de-agrotoxicos-com-o-
cancer-no-sangue. Último acesso: 05 nov. 2017​. 
 
___________. ​Portaria do trabalho escravo é desumana e retrocesso, diz CNBB​. Disponível em: 
http://www.redebrasilatual.com.br/cidadania/2017/10/portaria-do-trabalho-escravo-e-desumana-e-
retrocesso-diz-cnbb. Último acesso: 06 nov. 2017​. 
 

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39
NÃO HÁ SAÍDA SEM A REVERSÃO DA FINANCEIRIZAÇÃO  
40
Leda Maria Paulani  

 
Introdução 
 
Neste  momento  da  história  brasileira,  falar  de  saídas  para  a  crise 
econômica  implica  considerar  duas  ordens  de  fatores  que  se  colocam  como 
pressupostos,  a  primeira  de  ordem  mais  geral,  e  a  segunda  mais  atinente  à 
questão  econômica  ou  socioeconômica  propriamente  dita.  Farei  rápida  menção 
à  primeira  nesta  introdução  e,  na  sequência,  tratarei  de  modo  mais  acurado, 
ainda que brevemente, da segunda. 
A  consumação do golpe de Estado que destituiu a presidenta eleita Dilma 
Rousseff  em  agosto  de  2016  agregou  à  crise  econômica  e  social  já  em  curso 
uma  crise  político-institucional  de  largas  proporções,  com  seguidos  conflitos  e 
bate-cabeças  entre  os  poderes  constituídos.  Àquelas  alturas,  já  estávamos  com 
o  sexto  trimestre  seguido  de  queda  no  PIB,  com o desemprego se elevando em 
velocidade  escalar  e  com  tensões  sociais  crescentes  decorrentes  não  só  da 
insegurança  de  renda,  que  passa  a  atingir  parcela  substantiva  da  população, 
mas  também  das  dificuldades  orçamentárias  de  estados  e  municípios,  com 
salários de servidores em atraso e colapso dos serviços públicos. 
A  destituição  da  presidenta  sem  efetivo  crime  de  responsabilidade,  vista 
como  golpe  por  boa  parte  do  mundo,  inclusive  pela  imprensa  internacional 
conservadora,  explicitou  a  ilegitimidade  dos  novos  donos  do  poder,  de  pronto 
associada  às  seguidas  e  reiteradas  denúncias  de  corrupção  envolvendo  não  só 
o mandatário mor, como praticamente todo o primeiro escalão do governo. 
Diante  esse  quadro,  a  tese  de que o impeachment seria a varinha mágica 
capaz  de  restaurar  expectativas,  recuperar  o  investimento  e  fazer  renascer  o 

39
Texto originalmente publicado na Revista de Estudos Avançados (USP), vol. 31, n. 89, 2017. 
40
Professora titular do Departamento de Economia da Faculdade de Economia, Administração e 
Contabilidade da USP e da pós-graduação em Economia do Instituto de Pesquisas Econômicas 
(FEA-USP). 

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crescimento  econômico,  tese  em  si  bastante  discutível,  foi  rapidamente 


desmentida,  em  meio  a  um  cenário  de  elevada  rotatividade  dos  mais  altos 
quadros  governamentais,  desobediência  a  ordens  judiciais  e  disputas  sobre 
quem  legisla,  quem  manda  e  quem  julga.  Não  é  preciso  grande  esforço  para 
perceber  que,  nesse  cenário  de  degradação,  com  o  grau  de  incerteza  que 
arrasta  consigo,  o  investimento  privado  não  retomaria  de  imediato  por  força  da 
mera  substituição  da  chefe  do  executivo  (substituição,  de  resto,  apoiada 
indistintamente  por  todas  as  elites  do  país,  incluindo-se  aí  a  elite  econômica, 
41
produtiva e/ou rentista ). 
Instalado  o  caos,  a  crise  política  passa  a  contar  como  elemento adicional 
de  deterioração  do  quadro  econômico,  que,  por  sua  vez,  agrava  ainda  mais  a 
tensão  e  a  desordem  político-institucional,  num  círculo  vicioso  digno  do  inferno 
de  Dante.  Isso  posto,  parece  evidente  que uma “resolução” da crise econômica, 
qualquer  que  ela seja, passa inexoravelmente pela necessidade de desatar esse 
nó.  Mantidas  as  atuais  condições,  ainda  que  alguma  recuperação  aconteça  por 
42
força  da  natureza  cíclica  da  economia  capitalista ,  ela  não  passará  de  um 
resultado medíocre e insustentável. 
 
A financeirização da economia brasileira e a crise atual 
 
O  capitalismo  vive,  desde  o  último  quartel  do  século  passado,  uma  fase 
rentista  em  que  os  imperativos  do  capital  como  propriedade  se  sobrepõem  aos 
imperativos  do  capital  como  elemento  funcionante  na  produção  de  bens  e 
serviços  (Paulani,  2016a).  A  assim  chamada  financeirização  é  a  faceta  mais 
conhecida  e  seguramente  a  mais discutida dessa história. A economia brasileira, 
evidentemente,  faz  parte  dela,  inicialmente  de  forma  passiva,  quando  foi  vítima 

41
A demora na melhora dos principais parâmetros econômicos, mesmo tendo sido bem sucedido 
o impeachment, não pode, portanto, ser tomada como evidência de que esteja equivocada a 
sugestiva tese de que a deterioração econômica a partir de 2013 deveu-se também a uma 
espécie de greve branca do capital – que teria deixado de investir para conseguir tirar da frente 
uma presidenta de poucos bofes e demasiado intervencionista (Rugitsky, 2015). 
42
Milan (2016) faz apropriada análise, do ponto de vista da economia política marxista, da 
interconexão entre fatores estruturais, cíclicos e conjunturais na produção daquilo que ele 
denomina “crises gêmeas” (política e econômica) e das possibilidades de seus desdobramentos. 

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da  chamada  “crise  da  dívida  externa”  nos  anos  1980,  depois  de  forma  ativa, 
quando  tomou  as  providências,  a  partir  de  meados  dos  anos  1990,  para  seu 
ingresso  na  era  da  financeirização  como  “potência  financeira  emergente”  ou, 
nos  nossos  termos,  como  “plataforma  internacional  de  valorização  financeira” 
(Paulani, 2008a; 2012; Paulani; Pato, 2005). 
Todo  o  arcabouço  institucional  que  emoldura  hoje  o  funcionamento  do 
capitalismo  brasileiro  foi  construído  a  partir  do  princípio  maior  de  atender  com 
presteza  e  precisão  os  interesses  da  riqueza  financeira,  em  particular  dos 
credores  e  investidores  externos.  Esse  traço  permanece  praticamente  intocado 
ao  longo  dos  governos  de  FHC  e  de  Lula/Dilma,  a  despeito  das  diferenças  que 
os  separam.  É  dessa  forma  que  se  explicam  a  enorme  abertura  financeira,  com 
ausência  de  qualquer  controle  sobre  os  fluxos  internacionais  de  capital,  a 
internacionalização  do  mercado  brasileiro  de  bônus,  as  concessões tributárias a 
proprietários  de  ações  e  a  ganhos  financeiros  de  não  residentes,  as  alterações 
legais  para  dar  maior  garantia  aos  credores  do  Estado (Lei da Responsabilidade 
Fiscal)  e  do  setor  privado  (reforma  da  Lei  de  Falências), as alterações no regime 
43
geral  previdenciário  (INSS)  e  nos  regimes  próprios  de  servidores  públicos   e, 
last  but  not  least​,  a  adoção  de  um  receituário  macroeconômico agressivamente 
voltado  para  o  benefício  da  riqueza  financeira,  baseado  na  austeridade  fiscal  e 
em  taxas  reais de juros absurdamente elevadas, frequentemente as campeãs do 
mundo. 
Utilizando  a  distinção  proposta  por  Chesnais (2016) entre finança (finance 
capital)  e  capital  financeiro  (financial  capital),  podemos  falar  da  existência  no 
Brasil,  pelo  menos  desde  os  anos  1990,  de  uma  hegemonia da finança e de sua 
forma  predominante  de  funcionamento,  o  capital  financeiro  e  o  setor 

43
Para além da questão previdenciária em si, o objetivo maior dessas alterações é a criação de 
um substantivo mercado privado nessa área. Com um regime previdenciário de repartição, como 
nosso regime geral, obrigatório, universal e suficientemente abrangente, o mercado para esse 
tipo de produto, uma espécie de filet mignon do sistema financeiro, ficaria, no Brasil, sempre 
constrangido. Daí a necessidade de reduzir o espaço do regime geral (mais sobre isso em 
Paulani, 2008b). Essa novela, como se sabe, ainda não terminou. Estamos vivenciando, talvez, 
seu derradeiro capítulo. A agressividade e a crueldade da proposta enviada por Temer ao 
Congresso – que condena a morrer trabalhando boa parte da população brasileira – evidencia a 
força do setor bancário-financeiro e dos interesses rentistas hoje no país. 

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bancário-financeiro.  Bruno  e  Caffé  (2015)  vão  na  mesma  direção,  e  enfatizam  o 


caráter  gramsciniano  dessa  hegemonia,  na  medida  em  que  estruturas 
institucionais  permissivas  garantem  sua  efetivação  e  constante  reprodução  no 
plano  da  formatação  da  política  econômica,  com  permanente  aval  do  Estado, 
independentemente  do  matiz  ideológico  do  partido  que  está  à  frente  do 
executivo federal. 
Alguns  poucos  dados  e  indicadores  mostram  a  força  do  processo  de 
financeirização  da  economia  brasileira,  bem  como  de  seu  traço  distintivo,  a 
permanência  de  elevadíssimas  taxas  reais  de  juros.  O  primeiro  diz  respeito  ao 
indicador  (M4  -  M1)/PIB,  que  mais  do  que  dobrou  em  menos  de  20  anos, 
passando  de  0,3  em 1995, para 0,8 em 2014. O segundo trata da relação entre a 
riqueza  financeira  (depósitos  bancários,  títulos  de  dívida  privados  e  públicos, 
44 45
ações  e  debêntures)   e  o  PIB,  que  passa  de  0,8 em 1994, para 2,1 em 2010.  O 
terceiro  fala  da  relação  entre  o  estoque  de  ativos  financeiros  (tal  como  já 
definido)  e  o  estoque  de  ativos  reais (máquinas, equipamentos etc. empregados 
na  produção  de  bens  e  serviços).  Os  dados  mostram  que,  enquanto  o  valor  do 
primeiro  multiplicou-se  por  7,7  entre  1991  e  2009,  o  valor  do  segundo 
multiplicou-se  por  apenas  1,4  no  mesmo  período  (cf.  Bruno;  Caffé,  2015).  A 
explosão  da  riqueza  financeira  frente  ao  tímido  crescimento  da  riqueza  real 
encontra  boa  parte  de  sua  explicação  na  evolução  da  taxa  Selic,  que  permitiu 
uma acumulação de ativos de 6,5 vezes no período em questão. 
Como  demonstrado,  um  dos  preços-chave  do  funcionamento  da 
acumulação  de  capital,  a  taxa  básica  de  juros,  vem  se  comportando  de  modo 
completamente  avesso  à  expansão  da  produção  e  do  crescimento  da  riqueza 
reais.  Esse  comportamento  produz  um  comportamento  também  arisco  à 
produção  de  outra  variável-chave, a taxa de câmbio, uma vez que a absorção de 
crescentes  volumes  de  poupança  externa  produzida  pela  permanência  de  uma 
taxa  real  de  juros  elevada  provoca  uma  contínua  valorização  do  câmbio, que só 

44
Não inclui derivativos. 
45
Tanto no primeiro quanto no segundo indicadores, as estimativas foram elaboradas pela 
autora a partir de fontes oficiais como IBGE, Banco Central e IPEA, dentre outros. 

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reverte  da  pior  forma  possível,  ou  seja,  nos  momentos  de  crise .  Ademais,  no 
quadro  de  um  regime  de  acumulação  financeirizado,  o  próprio  funcionamento 
dos  expedientes  de  valorização reforça esse movimento de sobrevalorização do 
câmbio:  considerando  a  existência  no  Brasil  de  um  robusto  mercado  de 
derivativos  e  a  ausência  de  controle  sobre  os  fluxos  internacionais  de  capital,  a 
taxa  de  câmbio  passa  a  integrar  a  carteira  dos  investidores  financeiros,  que 
procuram  por  rápidas  valorizações  especulativas  de  suas  aplicações  (Bruno; 
Caffé, 2015, p.56). 
Ora, é evidente que com tais tendências operando continuamente, não só 
a  economia  deixa  de  ter  o  dinamismo  que  poderia  ter,  dadas  as  condições  de 
recursos  naturais  e  de  mercado  potencial  do país, como o Estado vê minguar os 
graus  de  liberdade  para  a  elaboração  de  uma  política  econômica  efetivamente 
benfazeja  ao  investimento,  à  produção  e  ao  emprego.  Resta-lhe  o  papel  de 
assegurar  e  avalizar  as  condições  necessárias  à  continuidade  da  valorização 
financeira, abertura financeira irrestrita aí incluída. 
O  diferencial  dos  governos  de  Lula/Dilma  em  relação  aos  governos 
abertamente  neoliberais  que  o  precederam  é  que,  a  despeito  da  permanência 
dessas  tendências  e  de  sua  pouca  disposição  de  bulir  com  elas,  eles  lograram, 
graças  às  boas  condições  internacionais  do  período  e,  em  seu início, ao espaço 
aberto  pelo  elevado  nível  de  desvalorização  do  câmbio  provocado  pela  própria 
eleição  de  Lula,  implementar um modelo conciliatório, em que os ganhos dos de 
cima,  em  particular  da  elite  financeirizada,  puderam  conviver  com  políticas 
sociais  de  alto  impacto  e  ganhos  aos  de  baixo.  Quando  as  condições 
internacionais  pioraram  e  o  modelo  interno  baseado  na  elevação  do  consumo 
sustentada  pela  expansão  do  crédito  começou  a  bater  em  seu  limite,  a 
conciliação  foi se tornando mais e mais difícil, a disputa pelos fundos públicos foi 
se  acirrando  e, por tabela, foi crescendo também a indisposição das elites com a 

46
Com propriedade, Bresser-Pereira (2009) fala, por isso, de uma tendência à sobrevalorização 
cíclica da taxa de câmbio. Vide também, a esse respeito, Paulani (2013). 

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permanência  do  alvará  político  concedido  a  um  partido  em  princípio  de 
esquerda, comandado por um líder operário. 
A  leitura  errada  feita  pelo  primeiro  mandato  de  Dilma  com  relação  ao 
status  quo  da  crise  internacional  e  sua  aposta  no  investimento  privado  ao  invés 
de  no  investimento  público  como  variável  capaz de reverter a desaceleração do 
crescimento  fizeram  explodir  a  crise  (Paulani,  2016b),  não  só  do  ponto  de  vista 
econômico,  mas  também  político,  dada  a  piora  das  contas  públicas,  cláusula 
pétrea  do  cânon  ortodoxo-liberal  que  regula  a  política  econômica 
pró-valorização  financeira.  Isso  posto,  de  pouco  adiantou  a  vitória da presidenta 
no  pleito  de  2014.  A  necessidade  de  retirá-la  à  força  da  cadeira  presidencial 
produziu  o  caos  político-institucional  em que ora nos encontramos e ao qual nos 
referimos na introdução desta contribuição. 
O  governo  que  se  instalou  ilegitimamente  no  palácio  do  planalto,  para 
além  de  possibilitar  que  seus  integrantes  tentem  escapar  dos  braços  longos  da 
Operação  Lava  Jato  (expectativa  que,  tudo  indica,  parece  ter  sido  uma  razão 
importante  para  a  consumação  do  golpe),  vai  ter  como  tarefa  retomar  o modelo 
neoliberal  puro, purgando-o dos arroubos sociais dos governos petistas (Paulani, 
2016c). 
 
A crise e as portas de saída 
 
Não  é  preciso  falar  muito  sobre  a  inviabilidade  de  se  resgatar  um  cresci- 
mento  minimamente  razoável,  em  conjunto  com  a  redução  do  desemprego  e  a 
recuperação  dos  salários,  na  permanência  do  modelo  atual.  O  resultado  do  PIB 
em  2016,  recentemente  divulgado,  superou  as  piores  expectativas,  fechando 
com  uma  regressão  de  3,6%  em  relação  ao  já  minguado  PIB  de  2015,  que 
encolhera 3,8% em relação ao alcançado em 2014. 
Proliferam,  com  isso,  à  esquerda,  propostas  para  sair  da  crise,  da 
elevação  da  renda  dos  mais  pobres,  salário  mínimo  incluído,  ao  recobro  da 
capacidade  de  investimento  do  Estado,  da  redução  da  taxa  real  de  juros  ao 
estabelecimento  de  um  target  para  o  câmbio  que  garanta  a  competitividade  do 

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país,  do  resgate  do  papel  público  dos  bancos  estatais  à  utilização  de  parte  do 
compulsório  bancário  para  reduzir  a  dívida  das  empresas,  da  redução  dos 
spreads  bancários  via  atuação  dos  bancos  públicos  à  redução  do  custo  do 
crédito  para capital de giro e investimento, de uma reforma tributária progressiva 
com  elevação  dos  tributos  diretos  ao  término  das  isenções  tributárias  aos 
ganhos  financeiros  e  de  não  residentes,  do  restabelecimento  da  CPMF  e fim da 
DRU  à  securitização  da  dívida  ativa  da  união,  da  determinação  de  meta  fiscal 
para  o crescimento econômico à reversão do caráter pró-cíclico da política fiscal, 
da  ampliação  do  período  para  o  cumprimento  de  metas  de  inflação  ao  seu 
estabelecimento  apenas  para  o  núcleo  dos  preços,  da  utilização  dos  recursos 
em  caixa  do  BNDES  na  criação  de  fundos  destinados  à  ampliação  de 
infraestrutura  à retomada de obras paradas por todo o país, da redução do custo 
da  energia  elétrica  à  utilização  de  parte  das  reservas  para reerguer a Petrobras, 
e por aí vai… 
Todas  essas  são propostas meritórias e cada uma delas tem sua razão de 
ser  em  se  tratando  de  reverter  a  atual  situação.  Mas  o  problema  do  país  hoje  é 
de  fundo,  é de esgotamento, e crise de um modelo rentista e financeirizado, que 
já  causou  muitos  prejuízos  ao  Brasil  e  aos  brasileiros,  em  particular  aos  de mais 
baixa  renda.  Qualquer  delas  que  se  adote,  sem  que  se  toque  no  arranjo 
institucional  que  têm  permitido,  há  quase  três  décadas,  o  protagonismo  da 
riqueza  financeira  e  dos  imperativos  de  sua  valorização  estará  fadada  ao 
fracasso.  A  adoção  de  uma  política  que  não  padeça desse fracionamento passa 
pela  necessidade  de  desatar  o  nó  político-institucional  a  que  nos  referimos  no 
início,  mas  desatá-lo  no  sentido  do  estabelecimento  de um projeto nacional que 
liberte o país da armadilha da financeirização. 
Ser  bem-sucedido  nessa  difícil  tarefa  terá  como  resultado  também  o 
resgate  da  soberania  do  país  na  condução  de  seus  destinos,  soberania  que  é 
impossível  com  a  continuidade  de  um  modelo  que  vicia  o  país  na  poupança 
externa  e  o  obriga,  como  num  moto  contínuo,  a repetir sempre os mesmo erros. 
Propostas  existem  de  modelos  alternativos  e  soberanos  –  cito  um,  o  de 
Bielschowsky  (2012)  e  seus  três  motores;  o  que  não  se  sabe  se  existe  é 

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disposição  das  elites  em  abraçá-las.  Nossa  história,  infelizmente,  não  parece 
oferecer muitos motivos para um pensamento otimista a esse respeito. 
 
Referências: 
 
BIELSCHOWSKY, R (2012). ​Estratégia de desenvolvimento e as três frentes de expansão no 
Brasil:​ ​um desenho conceitual​. Economia e Sociedade, v.21, n. esp., dez. 
 
BRESSER-PEREIRA, L. C (2009). ​Globalização e competição – Por que alguns países emergentes 
têm sucesso e outros não​. Rio de Janeiro: Campus Elsevier. 
 
BRUNO, M.; CAFFÉ, R (2015). ​Indicadores macroeconômicos de financeirização: Metodologia de 
construção e aplicação ao caso do Brasil​. In: BRUNO, M. (Org.) População, espaço e 
sustentabilidade: contribuições para o desenvolvimento. Rio de Janeiro: IBGE. 
 
CHESNAIS, F (2016). ​Finance Capital Today – Corporations and Banks in the Lasting Global 
Slump​. Leiden; Boston: Brill, Historical Materialism, Book Series. 
 
MILAN, M (2016). ​Oligarchical Restoration and Full Neoliberalism Reloaded: An Essay on the 
Roots of the Twin Crises and the 2016 Coup D’Etat in Brazil​. Austral: Brazilian Journal of Strategy 
& International Relations, v.5, n.9. 
 
PAULANI, L. M (2008a). ​Brasil Delivery​. São Paulo: Boitempo. 
 
_______ (2008b). ​Seguridade social, regimes previdenciários e padrão de acumulação: uma 
nota teórica e uma reflexão sobre o Brasil​. In: FAGNANI, E. et al. (Org.) Previdência social: como 
incluir os excluídos? São Paulo: LTR. 
 
_______ (2012). ​A inserção da economia brasileira no cenário mundial: uma reflexão sobre a 
situação atual à luz da história​. Boletim de Economia e Política Internacional (IPEA), v.3, n.10. 
 
_______ (2013). ​Acumulação sistêmica, poupança externa e rentismo: observações sobre o 
caso brasileiro​. Estudos Avançados, São Paulo, v.77. 
 
_______ (2016a). ​Acumulação e rentismo: resgatando a teoria da renda de Marx para pensar o 
capitalismo contemporâneo​. Revista de Economia Política, v.36, n.3. 
 
_______ (2016b). ​Capitalismo e Estado no Brasil: a saga dos investimentos públicos​. Politika,v.1, 
n.3. 
 
_______ (2016c). ​Ponte para o Abismo​. In: JINKINGS, I. et al. (Org.) Por que gritamos golpe? Para 
entender o impeachment e a crise política no Brasil. São Paulo: Boitempo. 
 
PAULANI, L. M.; PATO, C. G. G (2005). ​Investimentos e servidão financeira: o Brasil no último 
quarto de século​. In: PAULA, J. A. (Org.) Adeus ao desenvolvimento: a opção do governo Lula. 
Belo Horizonte: Autêntica. 
 
 
 
 

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GLOBALIZAÇÃO EM XEQUE 
47
Tatiana Berringer e Diego Azzi  

 
Importantes  acontecimentos  na  cena  internacional  têm  apontado  que  a 
globalização  neoliberal  pode  estar em xeque. Com efeito, desde 1989 e o fim da 
Guerra  Fria,  os  defensores  do  (neo)liberalismo  celebravam  a  vitória  do 
livre-mercado  sobre  a  centralidade  do  Estado  no  planejamento  econômico  — 
seja  o  planejamento  socialista  da  URSS;  aquele  capitalista  dos  Estados  de 
bem-estar  social  ou,  ainda,  do  desenvolvimentismo  latino-americano.  Dizia-se 
então  que  o  mundo  era  uma  “aldeia  global”  livre de fronteiras, de barreiras e de 
protecionismos.  Na  era  da informação a criação de redes e a comunicação entre 
os  povos  deixaria  tudo  mais  conectado,  trazendo  uma  nova  concepção  de 
sociedade  em  um  mundo  comum.  Seria  o  fim  dos nacionalismos e, sobretudo, o 
fim  da  luta  de  classes  —  donde  se  poderia  vislumbrar  até  mesmo  “o  fim  da 
história”.  
Passados  menos  de  30  anos, a decisão de Grã-Bretanha de sair da União 
Europeia  e  a  eleição  de  Donald  Trump  nos  Estados  Unidos  no  ano  passado 
seriam  uma  demonstração  de  que  entramos  em  um  momento  de  guinada  na 
política  internacional?  Nacionalismo,  xenofobia  e  protecionismo  voltaram  a  ser 
mobilizados  nas  arenas  política  e  econômica.  O  que  explica  tamanha  guinada? 
Estará  emergindo  uma  nova  ordem  internacional,  de  um  tom  conservador 
extremo? A globalização está de fato em xeque?  
Esses  são  alguns  dos  questionamentos  que  estão  no  contexto  de  fundo 
48
da  realização  da  III  Semana  de  Relações  Internacionais  da  UFABC-UNIFESP , 
que  aconteceu  nos  dias  3,  4  e  5  de  outubro  de  2017  em  São  Bernardo  do 
Campo.  A  Semana teve a honra de receber o prof. Vijay Prashad (Trinity College, 
EUA)  e  a  profa.  Dzodzi  Tsikata  (Ghana  University,  Gana),  além  de  professoras  e 

47 ​
Professores do Bacharelado em Relações Internacionais da Universidade Federal do ABC 
(UFABC). Contato: berringer.tatiana@ufabc.edu.br; diego.azzi@ufabc.edu.br. 
48
www.semanari2017.blogspot.com  

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professores especialistas nesses temas atuando no Brasil.  


Quase  uma  década  depois  da  gravíssima  crise  financeira  de  2008  — 
causada  entre  outros  fatores  pelos  empréstimos  predatórios  para  famílias  com 
hipotecas  imobiliárias  sabidamente  ​subprime  e  pela  especulação  financeira 
altamente  alavancada  em  derivativos  lastreados  nestas  mesmas  hipotecas 
tóxicas  —  as  finanças  continuam  no  centro  da  dinâmica  e  dos  problemas  do 
sistema capitalista.  
O  neoliberalismo  passa  por  duas  crises:  a  econômico-financeira,  e  a 
político-social,  que  decorre  da  primeira  e  tem  resultado  na  emergência 
radicalizada  de  novos  nacionalismos,  sendo  vários  de  viés  autoritário.  O 
casamento  entre  a  democracia  representativa,  limitada  pela  competição 
eleitoral, e o neoliberalismo parece ter se esgotado (Saad, 2016). O abandono da 
defesa  do  emprego,  o  aumento  da  flexibilização  e  da  precarização  fizeram  com 
que  a  classe  trabalhadora  que  sofreu  com  os  efeitos  do  neoliberalismo  e  da 
internacionalização  produtiva  das  corporações  (The  Economist,  2017)  tenha  se 
tornado  a  base  do  novo  nacionalismo  nos  Estados  Unidos  e  na  Europa.  O 
tradicional  discurso  neoliberal  de  elogio ao empreendedorismo individual na era 
da globalização cedeu espaço à narrativa defensiva, xenófoba e autoritária.  
Estamos,  na  verdade,  em  um  momento de uma contraofensiva neoliberal, 
em  que  as  políticas  dos  governos  sequer  questionam  o  papel  do  capital 
financeiro,  as  consequências  da  internacionalização  produtiva  e  os  impactos 
sociais  da  privatização  dos  bens  e  serviços  públicos.  Ao  contrário,  tais  políticas 
implicam  a  redução  dos  custos  do  capital,  através  do  desmonte  das  políticas 
sociais  rumo  a  um  “Estado  mínimo”  e  da  retirada  dos  direitos  trabalhistas  em 
nome de um ganho de competitividade “do país”. 
Enquanto  processo  histórico,  pode-se  observar  ao  menos  três  fases  no 
neoliberalismo,  que  se  apresentam  de  forma  heterogênea  segundo  cada 
localidade  geográfica  (Harvey,  2008)  e  se  complementam  na  produção  do 
momento  atual:  a  primeira  fase,  entre  1970  e  1990,  representa  o  período  de 
implantação  ideológica  e  de  forte  ofensiva contra os trabalhadores organizados; 
a  segunda  fase,  dos  anos  1990  até  2008,  é  aquela  na  qual  as  terceiras  vias  ou 

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os extremos centros (Ali, 2015) — Partido Trabalhista na Inglaterra com Tony Blair 
e  Partido  Democrata  nos  Estados  Unidos  com  Bill  Clinton  —  acabaram 
exercendo  um  papel  importante,  assumindo  governos  e  aplicando  políticas 
contraditórias  para  a  sua  tradição  político  partidária e para a sua base social; e a 
terceira,  de  2008  até  o  momento  atual,  em  que há uma contraofensiva, pautada 
na  tentativa  de  garantir  acordos  plurilaterais  de  livre-comércio  por  fora  do 
multilateralismo  da  Organização  Mundial  do  Comércio  (OMC);  nas  ofertas  de 
privatização  dos  ativos  e  serviços  públicos;  nos  acordos  de  garantia  da 
propriedade  intelectual  e  dos  investimentos  externos,  trazendo  um  impacto 
negativo  sobre  as  soberanias  nacionais e sobre os direitos sociais, trabalhistas e 
ambientais. 
Essa  dupla  crise  do  neoliberalismo  tem  relação  também  com  o 
surgimento  recente  de  novos  polos  de  poder  que  apresentam  maiores desafios 
para  a  manutenção  da  hegemonia  dos  Estados  Unidos  e  do  tradicional  ​status 
quo  centro-periferia.  A  ascensão  da  China,  o  reposicionamento  da  Rússia  e  o 
fortalecimento  de  potências  regionais  como  Índia  e  Turquia  abrem 
possibilidades  para  um  novo  equilíbrio  de  poder  internacional,  agora  mais 
instável  e  conflituoso  do  que  no  momento  da  hegemonia  unipolar  dos  Estados 
Unidos entre 1990 e o ínicio dos anos 2000.  
O  novo  papel  do  Estado  chinês  na  política  internacional  está  ligado  ao 
seu  forte  crescimento  econômico  nas  últimas  décadas, que gradualmente vai se 
traduzindo  em  poder  político  no  sistema  financeiro  internacional,  como 
evidencia  a  recente  inclusão  do  Renminbi  na  cesta  de  moedas  dos  Direitos 
Especiais  de  Saque  do  FMI  (Eichengreen,  2017).  A  China  soube  tirar proveito da 
globalização  comercial  combinando  uma  política  que  visa  o  alcance  de  um 
patamar  elevado  de  ciência,  tecnologia  e  educação,  com  elevados 
investimentos  externos  em  infra-estrutura,  por  exemplo  através  da  ​Belt  and 
Road  Initiative  (BRI)  e  do  ​Asian  Infrastructure  Investment  Bank  (AIIB),  além  de 
canalizar  investimentos  através  dos  seus  cinco  bancos  nacionais  de 
desenvolvimento  (Cintra  et  alli,  2013).  Soma-se  a  isso  que  o  Estado  chinês  tem 
buscado  investir  mais  na  sua  capacidade  militar,  especialmente  nas  forças 

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navais,  o  que  está  ligado  ao  conflito  crescente  por  recursos  naturais  e  pelo 
controle estratégico dos mares do sul e do leste da China.   
As  relações  entre  Estados  Unidos  e  China  são  comumente  consideradas 
como  “siamesas”,  pois  pautadas  pela  complementariedade, pela dependência e 
por  conflitos  que  vinculam  profundamente  os  dois  países  (Pinto,  2011).  Não 
bastasse  o  dado  de  a  China  ser  a  principal  detentora  dos  títulos  do  Tesouro 
americano,  desde  2008  tem  havido  um  aumento  das  trocas  comerciais,  os 
investimentos externos diretos são muito altos e pautados na construção de ​joint 
ventures  e  de  cadeias  produtivas,  sobretudo  regionais  no  sudeste  asiático.  Isto 
tudo  faz  com  que  um  conflito  direto  entre  esses  dois  Estados  não  seja  uma 
opção  fácil  e  nem  próxima.  Apesar  disso,  e  de  sabermos  que  nunca  houve  na 
história  a  consolidação  de  uma  potência  sem  conflitos  armados,  até  o  presente 
momento  não  se  pode  afirmar  que  a  China  aja  como  um  Estado  imperialista, 
dado  que  não  tem  uma  prática  política  intervencionista  sobre  outros  Estados  e 
não utiliza de bases militares para manter em segurança os seus investimentos.  
Os  BRICS  foram  muito  importantes  para  trazer  um  novo  equilíbrio  de 
poder  internacional,  e  cumpriram  um  papel  de  destaque  na  crítica  ao  déficit 
democrático  em  organizações  internacionais  como  o  FMI,  o G7 e o Conselho de 
Segurança  da  ONU.  O  Novo  Banco  de  Desenvolvimento  (NDB)  e  o  Arranjo 
Contingente  de  Reservas  (CRA)  são  instrumentos  fundamentais  como 
alternativas  de  financiamento  e  de  práticas  políticas  distintas  nas  relações 
financeiras  internacionais.  A  despeito  da  aparente  mudança  de  perfil  e  ênfase 
que  a  política  externa  brasileira  parece  estar  conferindo  ao  bloco  após  o 
controverso  ​impeachment  da  Presidente  Dilma  Rousseff,  nos  parece  evidente 
que  os  BRICS  deveriam  continuar  a  ser  uma  coalizão  fundamental  para  os 
interesses e as relações internacionais do Brasil.   
Neste  contexto  tão  complexo  e  conflitivo  que  tem  colocado  a 
globalização  em  xeque,  a  política  externa  de  um  país  emergente  como  o  Brasil 
deveria  estar  à  altura  de  enfrentar  o  desafio  de  projetar  ao  nosso  modo  os 
valores  da  solidariedade,  da  cooperação  e  da  justiça  social,  com  o  objetivo  de 
contribuir  para  a  construção  de  um  mundo  de  paz,  integração  e 

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desenvolvimento compartilhado. 
 
Referências: 
ALI, Tariq (2015). ​Extreme centre: a warning​. Verso: UK. 

CINTRA, Marcos et alli (2013). ​As transformações do Sistema Monetário Internacional​. ​O papel 
do dólar e do RENMINBI no sistema monetário internacional​. IPEA, Brasília. 

DOWBOR, Ladislau (2017). ​A era do capital improdutivo — a nova arquitetura do poder​. São 
Paulo: Ed. Outras Palavras/Autonomia Literária. 

EINCHENGREEN, Barry (2017). ​The RENMINBI goes global — the meaning of China’s money​. In: 
Foreign Affairs, 13 February. 

FINANCIAL TIMES (2017). ​Globalization in retreat — capital flows decline since crisis​. London, 
Thursday, 24 August. 

HARVEY, David (2008). ​O neoliberalismo — história e implicações​. São Paulo: Ed. Loyola. 

PINTO, Eduardo Costa (2011). O eixo sino-americano e as transformações do sistema mundial: 


tensões e complementaridades comerciais, produtivas e financeiras. IN:LEÃO, Rodrigo Pimentel 
Ferreira Leão; PINTO, Eduardo Costa & ACIOLY, Luciana. ​A China na nova configuração global: 
impactos políticos e econômicos​. Brasília, IPEA. pp. 19-77. 

SAAD, Alfredo (2016). The end of the road: the global crises and the desintegration of 
neoliberalism. ​Open Democracy​,​ 06 de dezembro de 2016. Disponível em: 
https://www.opendemocracy.net/alfredo-saad-filho/end-of-road-global-crisis-and-disintegration-of
-neoliberalism​.  

THE ECONOMIST (2017). ​In retreat - global companies in the era of protectionism​. London, 
January 28th.. 

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BR CIDADES — UM PROJETO PARA AS CIDADES DO BRASIL 


(GT de Cidades do Projeto Brasil) 

Ermínia Maricato49 e Carina Serra50 

O  mundo  mudou, a sociedade brasileira mudou, a economia brasileira mudou, 
a ocupação do território mudou e o processo de urbanização também 
  
Diversos  autores  concordam  que  o  Brasil  vive  o  fim  de  um  ciclo.  O  país 
cresceu  economicamente  a  altas  taxas  (PIB  de  mais  de  7%  a.a.),  entre  1940  e 
1980,  quando  o  país  se  industrializou  e  se  urbanizou.  Esse  período  foi  seguido 
pelas  chamadas  décadas  perdidas  (1980  e  1990),  marcadas pelo fim da ditadura 
(1964-85)  e  depois  pelos  anos  conhecidos  pelo  fenômeno  do  lulismo  (Singer, 
2012):  crescimento  econômico  com  alguma  distribuição  de  renda  seguido  de 
crise. 
No  contexto  internacional,  durante  os  anos  1970,  vivemos  a  transição 
entre  o  capitalismo  do  Estado-providência  e  a  globalização  neoliberal,  com  a 
flexibilização  do  grande  acordo  entre  Estado,  Sindicatos  e  Capitais  sob  a 
crescente  hegemonia  do  capital  financeiro.  A desigualdade e a informalidade se 
aprofundaram. Direitos foram flexibilizados. 
Nas  cidades  do  mundo,  a  globalização  neoliberal  escreveu  vários 
capítulos:  o  planejamento  estratégico,  o  “urbanismo  do  espetáculo”,  o 
urbanismo  dos  megaeventos,  a  cidade  global  ou  cidade  mercadoria  (que  se 
vende  e  compete  com  outras para atrair capitais), ​smart cities [conferir glossário] 
e  finalmente  a  financeirização  que  levou  às  bolhas  imobiliárias  [conferir 
glossário]  mais  evidentes  nos  EUA  e  na  Espanha  (Arantes,  2000;  Vainer,  2011; 
Fix,  2011).  Esses  capítulos  também  puderam  ser  lidos  nas  cidades  brasileiras 
(com  as  especificidades  decorrentes  da  condição  capitalista  periférica)  com 
algumas  variações  proporcionadas  pelos  movimentos  democráticos 
pós-ditadura de 1964. 

49
​Ermínia Maricato​ ​é​ ​p​rofessora universitária (USP), pesquisadora acadêmica, ativista política, 
ocupou cargos públicos na Prefeitura da Cidade de São Paulo e no Governo Federal.
50
​Carina Serra é coordenadora nacional BR Cidades.

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As  mudanças  vividas  pelo  capitalismo  global  –  hegemonia  do  capital 


financeiro  e  conglomerados  internacionais,  internacionalização  da  produção  e 
do  consumo,  mudanças  na  tecnologia  e  organização  da  produção  –  impactou a 
indústria  brasileira,  fortemente,  reduzindo  sua  expressão  e  ampliando  sua 
internacionalização,  em  três  momentos  principais:  (1) governo Collor, (2) governo 
FHC  e,  mais  recentemente,  (3)  no  governo  Temer,  após  impedimento  da 
presidenta  Dilma  Roussef  marcando  o  fim  de  um  breve  período  democrático  e 
distributivo.  O  peso  da  indústria  no  PIB  brasileiro  recuou,  em  2015,  às 
proporções de 1910 (Pochmann, 2017). 
Paralelamente,  enquanto  o  país  retorna  à  condição  primordial  de 
exportador  agrário  (​commodities​:  grãos,  carnes,  celulose,  minérios),  há  uma 
profunda  mudança  na  ocupação  do  território  com  a  interiorização  do 
agronegócio  e  também  do  crescimento  urbano.  Crescem  mais  as  cidades 
médias  (em  PIB  e  em  população)  do  que  as  metrópoles,  de  um  modo  geral,  a 
partir dos anos 1980, e crescem mais as cidades do norte e centro-oeste. 
Durante  o  período  do  lulismo  todas  as  regiões  do  país  cresceram  mais, 
economicamente,  do  que  o  sudeste,  que,  entretanto,  continua  a  concentrar 
maior poder econômico (Araújo, 2000; Diniz, 2001). 
 
Industrialização e urbanização dos baixos salários 
 
O  processo  de  industrialização  tardia  se  deu  paralelamente  ao  processo 
de  urbanização,  de  forma  concentrada,   com  migrantes  rurais  atraídos  pelas 
metrópoles  (e  expulsos  do  campo),  principalmente  da  região  sudeste.  Essa 
“industrialização  com  baixos  salários”  correspondeu  a  uma  “urbanização  dos 
baixos  salários”,  isto  é,  a  maior  parte  da  classe  trabalhadora  migrante  resolveu 
os  problemas  do  seu  assentamento  nas  cidades  com  seus  parcos  recursos, 
construindo  suas  próprias  casas,  sem  a  atenção  das  políticas  públicas.  Além  de 
contribuir  com  o  processo  de  acumulação,  de  base  industrial,  essa  força  de 
trabalho  barata  não  disputou  os  investimentos  públicos  urbanos  (habitação, 
saneamento,  mobilidade  etc.)  que  se  concentraram  na  cidade  priorizada  pelo 

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mercado  imobiliário,  legal,  capitalista.  Especulação  rentista  imobiliária  [conferir 


glossário] de um lado é o contraponto da escassez habitacional (Maricato, 2015). 
 
A luta contra a ditadura, movimentos sociais e reforma urbana 
 
O  processo  de  urbanização/industrialização  com  concentração  de  renda 
e  repressão  política  gerou  cidades  muito  desiguais  e  problemáticas.  Nos  anos 
70,  nas  fábricas  e  bairros,  surgiram  novos  personagens  (Sader,  1988)  que  se 
organizaram  em  sindicatos  e  movimentos  sociais  para  conquistar  melhores 
salários  e  condições  de  trabalho,  e  melhores  condições  de  vida  urbana. 
 Estimulados  pelas  CEBs  –  Comunidades  Eclesiais  de  Base  da  Igreja  Católica  e 
remanescentes  de  esquerda,  da  luta  contra  a  ditadura,  os  movimentos  sociais, 
que  lutavam  por  moradia,  transportes,  água  encanada,  creches,  postos  de 
saúde,  escolas  e iluminação pública recuperaram a proposta de Reforma Urbana 
do  período  pré-1964  e  passaram  a  discutir  uma  plataforma de cidade inclusiva e 
democrática.  Esse  processo,  somado  à  ascensão  do  movimento  operário, 
camponês  (MST)  e  de  artistas,  logrou  criar  novas  instituições  (CUT,  CMP,  CGT), 
novos  partidos  (PT,  PDT,  PSB  e  PCB  e  PCdoB  que  saíram  da  clandestinidade), 
que  levaram  à  conquista  de  uma  nova  Constituição  Federal em 1988. A Emenda 
Popular  Constitucional  de  Reforma  Urbana  não  foi  aprovada  como  queriam  os 
movimentos  sociais,  mas  elevou  o  direito  à moradia à condição de direito social, 
e  inspirou  os  artigos  182  e  183  da  Constituição  Federal  de  1988  consagrando  a 
Função Social da Propriedade e a Função Social da Cidade. 
 
Prefeituras  democráticas  e  populares  e  a  democracia  direta  na  discussão  do 
orçamento público 
 
Faziam  parte  das  lutas  pela  Reforma  Urbana  profissionais  (arquitetos, 
engenheiros,  assistentes  sociais,  geógrafos,  advogados),  ONGs,  sindicatos  e 
movimentos  sociais  urbanos.  Enquanto  a  eleição  direta  para  presidente, 
governador  e  prefeitos  das  capitais  era  proibida,  os  movimentos  ligados  à 
proposta  de  Reforma  Urbana  conquistaram  prefeituras de municípios menores e 

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passaram  a  desenvolver  experiências  de  administração  pública  inovadoras.  Os 


bairros  de  moradia  dos  trabalhadores,  antes  ignorados  pelas  gestões 
municipais,  tornaram-se  foco  dos  investimentos  sob  a  bandeira  da  “Inversão  de 
prioridades”.  Levar  cidade  –  água,  esgoto,  drenagem,  coleta  de  lixo,  iluminação 
pública,  equipamentos  sociais  –  às  periferias  e  favelas  passou  a  ser  prioridade 
de  governo.  Recife,  Belo  Horizonte,  Rio  de  Janeiro  e  Salvador  iniciaram  essas 
práticas. 
Outro  programa  importante  que  nasce  dessas  práticas  é  hoje 
denominado  Assistência  Técnica  à  Habitação  de  Interesse  Social.  Arquitetos  e 
engenheiros  projetando  moradias  populares  com  participação  social  têm 
permitido  a  construção  de  moradias  de  boa  qualidade  arquitetônica  e 
construtiva  com  baixo  custo.  Esse  programa,  que  se  consolidou  na  gestão  de 
Luiza  Erundina  em  São  Paulo  (quando  a  eleição  direta  nas  capitais  já  era 
admitida),  inspirou  a  Lei  federal de Assistência Técnica que, como muitas outras, 
espera condições favoráveis à sua aplicação.   
Para  driblar  o  alto  custo  dos  metrôs,  as  prefeituras  implementaram 
corredores  de  ônibus  e  integração  modal  [conferir  glossário],  replicando  uma 
proposta  iniciada  em  Curitiba.  A  criação  do  SUS (EC n. 29) trouxe novas práticas 
para  a  área  de  saúde.  Segurança  alimentar se tornou tema de políticas públicas, 
junto com o cultivo de alimentos saudáveis. 
Tendo  como  referência  a  proposta  dos  Centro  Integrado  de  Educação 
Popular  —  CIEPs, concebida por Darcy Ribeiro para o governo de Leonel Brizola, 
no  Rio  de  Janeiro,  surge  renovada  a  proposta  de  educação  em  tempo  integral 
com  alimentação,  práticas  artísticas,  esportivas  e  culturais  além  do  ensino 
fundamental, nas periferias das cidades. 
Conselhos  participativos  se  multiplicaram  orientando  a  formalização  de 
políticas  públicas:  criança  e  adolescente,  idoso,  educação,  saúde,  segurança 
alimentar,  habitação,  desenvolvimento urbano, mulheres, igualdade racial, LGBT, 
entre outros. 
Mas  é  o  orçamento  participativo  o  programa  mais  bem  sucedido.  Na 
experiência  de  Porto  Alegre,  implantou-se  a  democracia  direta na orientação do 

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orçamento  público,  denominado  “orçamento  participativo”.  A  repercussão 


internacional  e  a  disseminação  pelo  Banco  Mundial  levaram  à  distorções  da 
proposta  original.  A  referência  permanece  mostrando  que a gestão democrática 
e participativa é possível. 
Um importante, moderno e avançado conjunto de leis, dirigido às cidades, 
teve  início  com  a  CF  88.  Faz  parte  dele:  O  Estatuto  da  Cidade  (Lei  federal 
10.257/2001),  a  lei  do  Fundo  Nacional  de Habitação de Interesse Social, a Lei de 
Consórcios  Públicos  (2005),  a  Lei  do  Saneamento  Básico  (2007),  a  Lei  dos 
Resíduos  Sólidos,  a  Lei  da  Mobilidade  Urbana,  O  Estatuto  da  Metrópole  (2015) 
entre  outras.  Leis  avançadas  para  uma  realidade  arcaica:  permanecem 
desconhecidas  pelo  Judiciário,  Ministério  Público, mas também por executivos e 
legislativos bem como pela maioria da sociedade. 
 
A crise urbana escancarada: junho de 2013 
 
Os  acontecimentos  de  junho  de  2013  —  quando  milhares  de  pessoas 
foram  às  ruas  protestar  contra,  inicialmente,  o  aumento  da  tarifa  dos  ônibus 
urbanos  —  exigem  um  maior  aprofundamento  da  análise.  Marcam  o  início  da 
perda  da  hegemonia  do  Partido  dos  Trabalhadores  e  entidades  tradicionais  de 
esquerda  nas  manifestações  de  rua,  e  novos  movimentos  e  coletivos  se  fazem 
presentes. Certamente os movimentos de direita, pagos por grupos empresariais 
e  mesmo  por  milionários  americanos,  já  tinham  seus  ideários  ali.  Mas  o  que  as 
manifestações  acentuam  é  que  se  torna  impossível  esconder  a  piora  nas 
condições  de  vida  urbana.  Basta  olhar  os  dados  do  tempo  crescente  perdido 
nas  viagens urbanas (ANTP), os crescentes congestionamentos provocados pelo 
aumento  da  circulação  de  automóveis,  o  crescente  número  de  mortos  ou 
acidentados  no  trânsito,  a  crescente  poluição  do  ar  e,  o  que  é  pior,  o  aumento 
das tarifas por um transporte coletivo de má qualidade (Maricato, 2013). 
Muitos  recursos  foram  dispendidos  em  mega  obras  para  receber  a  Copa 
do  Mundo  no  Brasil.  Depois  foi  a  vez  de  o  Rio  de  Janeiro ser preparado para as 
Olimpíadas,  seguindo  uma  gigantesca  operação  imobiliária  –  marcada  pelo 

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“urbanismo  do  espetáculo”  –  que  expulsou  para  as  periferias  mais  de  40.000 
pessoas pobres (Faulhaber e Azevedo, 2015; Vainer et al, 2016). 
Além  do  ​boom  ​automobilístico,  as  cidades  viveram  um  ​boom  ​imobiliário 
[conferir  glossário]  que  fez  o  metro  quadrado  dos  imóveis  atingir  patamares 
entre  os  mais  altos  do  mundo  (Revista  Exame,  2011).  As  cidades  médias 
passaram  por  um  forte processo de espraiamento com a disseminação, por todo 
território  nacional,  do  loteamento  fechado.  O  produto  do  mercado  imobiliário 
que  é  mais  lucrativo  e  mais  se  dissemina,  estendendo  horizontalmente  a 
ocupação  urbana,  contraria  a  lei  federal  6766/79  que  regula  o  parcelamento do 
solo.  O  Programa  Minha  Casa  Minha  Vida,  lançado  em  2009  pelo  governo 
federal,  retomou  de  forma  espetacular  o  investimento  em  moradia,  com 
subsídios  nunca  antes  praticados  para  a  população  de  baixa  renda,  mas 
esqueceu-se  das  lições  da  Plataforma  da  Reforma  Urbana:  é  preciso controlar o 
acesso  à  terra  ou  conter  a especulação imobiliária desenfreada. E isso, segundo 
a CF-1988, é tarefa dos governos municipais. 
Os  programas  habitacionais  do  ciclo  virtuoso  das  “prefeituras 
democráticas  e  populares”,  a  produção  da  habitação  com  assistência  técnica  e 
participação social ficaram com apenas 2% do orçamento do PMCMV. O restante 
foi  orientado  pelos  setores  de  construção  e  do  mercado  imobiliário.  A  máquina 
do  crescimento  tomou  conta  das  cidades  em  simbiose  com  os  financiamentos 
das campanhas eleitorais. 
Sobra  uma  constatação:  no  período  das  vacas  magras,  quando  havia 
poucos  recursos  para  as  políticas  públicas  havia  espaço  para  a  democracia 
direta  nas  definições  da  política  urbana.  Quando  os recursos apareceram, como 
parte  de  um projeto desenvolvimentista para fazer frente à crise internacional de 
2008,  a  democracia  direta  desapareceu.  Nem  a  criação  do  Ministério  das 
Cidades,  com  seu  Conselho  Nacional  que  inclui  a  participação  de  entidades  da 
sociedade  civil,  nem  as  Conferências  municipais,  estaduais  e  federal 
participativas,  nem,  finalmente,  o  arcabouço legal avançado conseguiram resistir 
à  mudança  na  correlação  de  forças  que  engoliu  a  política  de coalizão (Maricato, 
2011). 

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Retomar um projeto para as cidades 


 
Um  novo  projeto  para  as  cidades  no  Brasil  deve  ser  antecedido  da 
reflexão crítica sobre a experiência recente aqui apenas esboçada. 
Quais  as  causas  do  declínio  do  “ciclo  virtuoso”  da  política  urbana 
implementada  por  prefeituras  municipais  a partir dos anos 1980? Qual o peso da 
conjuntura internacional nesse cenário? E da conjuntura nacional? 
Por  que  os  “Planos  Diretores  Participativos”,  obrigatório  nas  cidades com 
mais  de  20.000  habitantes,  segundo  o  Estatuto  da  Cidade,  não  garantiu 
mudança significativa da desigualdade urbana? 
        Por  que  a  Plataforma  da  Reforma  Urbana,  que  tinha  a  questão  fundiária 
como  central,  foi  derrotada,  em  que  pese  a  conquista  do  arcabouço  legal 
avançado? 
Por  que  a  ampliação  dos  espaços  participativos  institucionais  foi 
acompanhada  do  enfraquecimento  da  capacidade  transformadora  dos 
movimentos sociais? 
Por  que  a  “máquina  do  crescimento”  (articulação  entre  capitais  ligados  à 
produção  do  espaço  construído,   mercado  imobiliário,  capitais  financeiros  e 
proprietários  fundiários)  tomou  o  controle  das  cidades  no  período  do  lulismo 
quando muitas políticas sociais foram implementadas?   
Por  que  num  período  de  políticas  distributivas  –  aumento  do  salário 
mínimo,  Bolsa  Família,  Luz  para  todos,  Prouni,  Fies,  PAA,  Pronaf,  subsídios  do 
Programa  Minha  Casa  Minha  Vida  (PMCMV)  —  as  condições  de  vida  pioraram 
nas  cidades  (tempo  de  viagem/mobilidade,  preço  da  tarifa  do  transporte 
coletivo,  epidemias  de  dengue,  zika,  chikungunya,  aumento  estratosférico  do 
preço  dos  imóveis,  aumento  exagerado  da  dispersão  urbana,  desgoverno 
metropolitano)? 
  
Algumas sugestões de propostas 
 
Há  todo  um  capítulo  que  deve  ser  dedicado  à  aplicação  da  legislação 
urbanística  recentemente  conquistada  e  ignorada:  prioridade  aos  transportes 

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não  motorizados  e  coletivos;  aplicação  da  função  social  da  propriedade  e  da 
cidade;  universalização  do  saneamento;  respeitar  a  participação  social  no 
planejamento  e  gestão  urbanos,  entre  outras.  Que  fazer  para  implementar  o 
arcabouço  legal  que amplia direitos? Por exemplo, que fazer para que o Estatuto 
da  Metrópole  seja  implementado  garantindo  racionalidade  e  articulação  entre 
governos nas metrópoles hoje desgovernadas? 
Mesmo  se  considerarmos  que  a  conquista  dessa  legislação  não  garantiu 
direitos  e  que  colocá-la  como  prioridade  foi  um  equívoco  dos  movimentos 
ligados  à  Reforma  Urbana,  cabe  lutar  por  novas  leis?  Cabe  manter a concepção 
descentralizadora  da  CF-1988,  que  dá  tanta  autonomia  aos  municípios?   É 
necessário definir melhor o que se entende por função social da propriedade? 
Sobre  a  questão  ambiental:  o  ciclo  que  se  encerra  não  viveu  a  urgência 
de  fatos  como  o  aquecimento  do  planeta,  a  crise  hídrica,  a  ameaça  dos 
agrotóxicos  e  transgênicos.  Novos  paradigmas  devem  ser  introduzidos  em  um 
projeto  para  as  cidades  como:  a  diminuição  da  viagem  dos  alimentos;  a 
agricultura  urbana;  a  segurança  alimentar;  a  proteção  das  reservas  hídricas; 
proteção  efetiva  de  APPs  –  Áreas  de  Preservação  Permanente,  APMs  –  Áreas 
de  Preservação  de  Mananciais,  mangues  e  dunas;  a  proteção  efetiva  e 
despoluição  de  cursos  de  água;  a  despoluição  do  ar  com  a  priorização  do 
transporte  coletivo;  a  cidade  de  uso  misto  e  compacta  com  garantia  de 
habitação  social  (esta  é  atingível  apenas  com  o  controle  efetivo  sobre  o uso e a 
ocupação do solo). 
Engajar  o  ensino  fundamental  na  vida  da  cidade  combatendo  o 
analfabetismo  urbanístico  e  implementar  a  política  de  extensão  universitária 
poderia  ser  uma  contribuição  essencial  para  combater  a  alienação  e  a 
representação da classe dominante sobre as cidades. 
Muitas  das  propostas  do  ciclo  virtuoso  da  política  urbana  merecem 
retornar  à  cena:  assistência  Técnica  à  HIS  para  reformas  e  novas  moradias, 
urbanização  de  favelas  e  áreas  precárias,  construção  de  CEUs  e  CIEPs, entre 
outras,   mas  em  especial  o  controle  dos  recursos  públicos  por  meio  do 
Orçamento Participativo, merecem ser replicado. 

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O  grande  tema  da política urbana ainda é levar cidade à periferia, ou seja, 


colocar  a  periferia  no  centro:  urbanizá-la,  saneá-la,  regularizá-la,  propiciar 
mobilidade  e  quebrar  com  a  escandalosa  desigualdade  e  segregação  que  tem 
no preço do solo sua lógica. 
Há  evidências  de  novos  personagens  em  cena:  mulheres,  negrxs,  lgbts, 
movimentos  ligados  à  cultura  e  à  arte,  movimentos  ambientalistas,  mobilidade 
urbana.  Há  novidades  na  apropriação  dos  espaços  públicos  urbanos  em 
consonância  com  a  mudança  nas  comunicações.  Há  a  emergência  de 
movimentos  de  jovens  que  ocupam  escolas  revelando  o  rompimento  com  a 
tradicional  uma  relação  alienada  dos  jovens  com a educação. Essa tendência se 
soma  à  mudança  da  classe  trabalhadora  que  construiu  o  ciclo  que  ora  se 
encerra  exigindo  mudança  estratégica  da  esquerda.   A  desindustrialização,  as 
flexibilizações,  as  terceirizações,  o  empreendedorismo  sobre  os  quais  não 
podemos ter uma visão catastrofista.   
  
GLOSSÁRIO 
 
Smart  Cities  ​—  ou  Cidades  Inteligentes,  se  refere  à  aplicação  dos  instrumentos 
de Tecnologia da Informação, especialmente aplicativos em celulares, na gestão, 
no  funcionamento  e  no  uso  das  cidades.  Esses  instrumentos  podem 
efetivamente  facilitar,  baratear  e  desburocratizar  a  relação  do  cidadão  com  a 
cidade  bem  como  tornar  sua  gestão  mais  transparente,  mas  também  podem  se 
prestar  à  histórica  dominação  exercida,  na  periferia  do  capitalismo,  por 
empresas que detêm a tecnologia e cobram por seu uso.    
Bolha  Imobiliária  ​—  Aumento  rápido  na  produção  e  preço  de  imóveis  durante 
um  certo  período  seguido  de  queda  também  rápida  com  impacto  no  preços  de 
ações,  imóveis  construídos,  terrenos  e  aluguéis.  Nas  bolhas  americanas  e 
espanhola  (2008),  caracterizadas  por  especulação  financeira  com  papéis 
lastreados  (inicialmente)  em  imóveis,   houve  forte  impacto  também  nas 
condições  de  moradia  devido  aos  despejos  motivados  pelo  não  pagamento  de 
dívidas. 

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Boom  imobiliário  ​—  aumento  rápido  na  produção  e  preço  dos  imóveis  durante 
certo  período  seguido  de  queda  brusca.  O  aumento  da  produção  é  sempre, 
necessariamente,  garantido  pela  injeção  de  investimentos  públicos  ou  privados 
para  o  financiamento.   Em  mercados  imobiliários  não  regulados,  acarreta  o 
aumento  do preço da terra e de imóveis podendo, em vez de diminuir a carência 
de  moradia,  aumentá-la.  Há  uma  disputa  entre  capitais  —  de  construção,  de 
incorporação,  financeiro  —  e  proprietário  da  terra  —  pelos  juros, lucros e rendas 
gerados nessa produção e comercialização. 
Especulação  rentista  imobiliária  —  a  produção  de  edifícios  e  infraestrutura 
urbana,  bem  como  a  legislação  urbanística, gera  valorização  sobre  terrenos  e 
imóveis  aumentando  seu  preço.  Há  uma  disputa,  na  sociedade,  pelos 
investimentos  públicos  e  legislação  que  vai  permitir  ganhos  rentistas  pelos 
proprietários  de  imóveis  ou  de  papéis  lastreados  nesses imóveis. A retenção de 
terras  ou  imóveis  vazios  aguardando  valorização  é  a  forma  mais  comum  de 
especulação  rentista  imobiliária  nas  cidades  brasileiras  e  ela  contrasta  com  a 
grande carência de moradias. 
Integração  modal  —  integração  em  rede  das  diferentes  formas  ou  modos  de 
viagem:  a  pé,  de  bicicleta,  de  transporte  coletivo  (trilhos  ou pneu), de transporte 
motorizado  individual  (automóvel  e  moto).  A mobilidade deve ser pensada como 
rede integrada assim como o bilhete pago pelos transportes coletivos. 
 
Referências: 
 
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Editora Vozes. 
 
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Janeiro: Revan/Fase, 2000. 
 
DINIZ, C (2001). ​A questão regional e as políticas governamentais no Brasil​. Texto para 
discussão n. 159. Belo Horizonte: CEDEPLAR/FACE/UFMG. 
 
FAULHABER, L.; AZEVEDO, L (2015). SMH 2016. ​Remoções no Rio de Janeiro olímpico. Rio de 
Janeiro: Mórula. 
 

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_________ (2011). ​O Impasse da Política Urbana no Brasil. Petrópolis: Editora Vozes. 
 
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Revista Exame (2011). A maior alta de imóveis do mundo (por Giuliana Napolitano). ​Revista Exame 
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VAINER, C. et al (org.) (2016). ​Os megaeventos e a cidade: perspectivas críticas​. Rio de Janeiro: 
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_________ (2011). Megaeventos, Cidade de Exceção e Democracia Direta do Capital: Reflexões 
a partir do Rio de Janeiro. In: ​Anais do XIV Encontro Nacional da ANPUR​. Rio de Janeiro: ANPUR. 
 

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