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SOCIOLÓGICOS E
ANTROPOLÓGICOS
DA EDUCAÇÃO
Graduação
Unicesumar
Reitor
Wilson de Matos Silva
Vice-Reitor
Wilson de Matos Silva Filho
Pró-Reitor de Administração
Wilson de Matos Silva Filho
Pró-Reitor de EAD
Willian Victor Kendrick de Matos Silva
Presidente da Mantenedora
Cláudio Ferdinandi
FUNDAMENTOS SOCIOLÓGICOS E
ANTROPOLÓGICOS DA EDUCAÇÃO
Seja bem-vindo!
Prezado(a) acadêmico(a), apresento a você o resultado de um trabalho que nunca esta-
rá completo, mas intenta atender a necessidade de dar aos nossos alunos uma análise
crítica da sociedade que estamos vivendo. Uma sociedade em que o educador tem um
papel primordial. Ele está no centro da discussão do papel que a ciência exerce na so-
ciedade atual e o quanto ela foi fundamental para construirmos a civilização que temos.
Como professor da disciplina de Teoria das Ciências Sociais, no curso de Direito do Ce-
sumar, há mais de 20 anos, minha preocupação foi entender as mudanças da sociedade
atual e o quanto elas atingem nossas vidas. Nunca fui um defensor das teses e análises
que se distanciam do homem comum, de cada um de nós. A educação está no centro
desta discussão.
Tive a oportunidade de trabalhar durante três anos com alunos do curso presencial de
Pedagogia e desde 2011 ministro esta disciplina para os alunos do EAD do Cesumar. A
educação e o educador são necessários, nunca duvide da importância das instituições
de ensino na vida social. Mas o que nós não podemos menosprezar é o papel que a
ciência exerce e a condição do que ela permite. A sociedade que gerou a eficiência do
conhecimento precisa ser conhecida cientificamente e sofrer intervenções lógicas para
sua melhora.
A sociedade necessita ser conhecida para ser transformada, e a ciência é o nosso maior
instrumento para que isso ocorra. O educador é o propagador da ciência, é ele quem
instrumentaliza o ser humano para uma ação consciente e eficaz na vida social. Mas para
que isso ocorra e gere resultado é necessário entender em que sociedade os educadores
estão inseridos.
Vivemos o tempo do dia a dia, em que as preocupações com o imediato dominam nos-
sos interesses. Isto me parece pequeno para quem tem uma função de construir um ser
humano para uma vida toda. A sociedade que vivemos é uma construção que iniciou
sua jornada há mais de 500 anos. Somos o resultado de inúmeras transformações que
nos permitiu a construção de uma rede econômica complexa. Ela está a nossa volta, por
todos os lugares, temos que compreendê-la. Este é o objetivo deste trabalho.
Para isso dedico uma primeira parte para a análise da formação da sociedade atual,
como chegamos até aqui, o porquê nesta jornada a sociedade enfrentou contradições e
como as suas crises foram interpretadas pelos seus principais teóricos, o que chamo de
Clássicos. Inclusive, a eles, dedico duas unidades (II e III). Considero fundamental enten-
der os métodos que orientam ainda hoje o olhar dos cientistas sociais e devem orientar
o olhar dos educadores. Considero que a formação do educador é acompanhada de
um posicionamento diante da sociedade, temos uma busca e ela deve ser consciente,
independente da postura metodológica que se tome.
Vamos tratar ao longo deste trabalho das teses positivistas, do estruturalismo, do mate-
rialismo histórico e do funcionalismo histórico cultural. Vamos passar pela a análise dos
comportamentos sociais que preocupam a sociedade contemporânea. O elevado grau
Apresentação
sumário
UNIDADE I
13 Introdução
43 Considerações Finais
UNIDADE II
49 Introdução
74 Considerações Finais
UNIDADE III
PENSADORES CLÁSSICOS I
83 Introdução
88 Augusto Comte
sumário
UNIDADE IV
PENSADORES CLÁSSICOS II
117 Introdução
UNIDADE V
OS DILEMAS DA ATUALIDADE
151 Introdução
187 Conclusão
189 Referências
Professor Me. Gilson Aguiar
A COMPLEXA SOCIEDADE
I
UNIDADE
CONTEMPORÂNEA
Objetivos de Aprendizagem
■■ Conhecer o processo de formação da sociedade atual e as condições
nas quais ela se desenvolveu.
■■ Estabelecer a relação entre a crise de identificação do homem com a
sociedade na atualidade e sua rede de produção mundial.
■■ Compreender a importância da ciência e da tecnologia no
desenvolvimento da civilização ocidental.
Plano de Estudo
A seguir, apresentam-se os tópicos que você estudará nesta unidade:
■■ Os problemas da atualidade
■■ A formação da civilização ocidental
■■ O desenvolvimento da ciência e da tecnologia
■■ A cultura da ocidentalização
12 - 13
Introdução
mos estas ligações ou não as analisamos com o cuidado que devemos. Por isso,
buscamos aqui posicionar o leitor diante da vida em sociedade.
Em um segundo momento, analisamos as origens da sociedade ocidental,
como ela se constituiu e pode chegar até nossos dias. Como ela se organiza e o
histórico do que levou a esta organização. Uma verdadeira recapitulação da his-
tória de formação da conquista planetária ocidental, como retratamos.
Partimos das grandes navegações e avançamos sobre a forma de estabele-
cimento da economia mundial antes e depois da Revolução Industrial (1750).
Detivemo-nos sobre a análise da rede de produção econômica que foi gerada
no mundo a partir da Europa ocidental. Seu crescimento e aprimoramento, o
que chamamos de divisão internacional do trabalho e, depois, de nova divisão
internacional do trabalho.
Atemos-nos aqui a importância que a ciência e a tecnologia representaram
para o domínio do ocidente sobre o planeta. A construção de um império eco-
nômico que dominou diversas partes do mundo e ainda hoje demonstra sua
influência. É impossível descartar a capacidade de renovação do processo de
dominação ocidental. A renovação do controle e das condições de dominação
do ocidente. A ciência e a tecnologia têm um papel central neste processo.
Valorizamos o entendimento da dominação da civilização ocidental sobre
os demais povos. Como o controle de regiões distantes foi efetuada por tropas,
a submissão militar, mas também a imposição cultural. O eurocentrismo con-
tou como peça-chave na lógica de mundo implantada pelo ocidente.
Toda esta jornada de análise vai culminar com a formação da sociedade capi-
talista atual, o que já é objeto de análise de nossa segunda unidade. Nela a busca
pelo entendimento do homem ocidental se aprofunda.
Introdução
I
Reprodução proibida. Art. 184 do Código Penal e Lei 9.610 de 19 de fevereiro de 1998.
móveis, esses objetos estão ligados a uma relação de produção da qual fazemos
parte, mas não sabemos qual desta parte nos diz diretamente respeito. Se refletir
por alguns instantes no computador que estou utilizando neste momento para
produzir este livro, a sua construção é fruto de tecnologia, insumos (matéria
-prima), e mão de obra dos mais diferentes lugares. Cada um dos estágios que
produziu este computador pode estar afastado a milhares de quilômetros um do
outro. Contudo, enquanto um bem acabado está aqui e estou me relacionando
com ele a cada palavra que digito. Uma em tantas línguas que o computador
traz como escolha.
Se parto da lógica de que tudo com o qual me relaciono sou um elemento
ligado a sua existência, há uma condição que me une às pessoas que produzem
tudo o que necessito para viver, então estaria envolvido também a todas as outras
coisas que direta ou indiretamente me afetam. A violência, por exemplo, seria
uma destas produções a qual estou ligado. Posso não praticá-la, mas ela está
ligada diretamente à sociedade onde estou inserido e, de alguma forma, pode-
rei ser vítima dela, presenciá-la ou praticá-la. Ao pensar que existe um número
imenso de práticas de violência, haverá uma dessas práticas próximas a mim e
©shutterstock
Por mais que a violência dentro da escola sempre existiu, o que preocupa
é a peculiaridade que ela ganha na atualidade. Os elementos que a envolvem,
o planejamento da agressão e os elementos usados nela. O exibicionismo que
ela permite com uma parafernália imensa de meios de divulgar os insultos, o
espancamento, a depredação. A violência na escola estaria inspirada nos inú-
meros shows de agressão e depredação que assistimos nas salas de cinema, em
frente aos televisores, nos jogos de videogame, nos computadores ligados à inter-
net, nas histórias que recheiam as páginas dos jornais e revistas. Não podemos
negar que uma das formas de construir a fama é postar no “youtube” um vídeo
de milhões de acessos, os de agressão estão entre os mais vistos. Assim, e muito
mais que isto, o ambiente é propício para exaltar a violência e gerar uma propa-
gação de “socos” e “pontapés” no qual deveria reinar a boa educação.
Podemos fazer o mesmo exercício das relações que produzem fatos como
a violência para entendermos os produtos, seja ele associado ao bem ou o mal.
Um breve resgate do açúcar, o produto que adoça as nossas vidas, mas está na
lista dos que mais provocam o aumento de peso. Um dos vilões da obesidade
contemporânea foi o motivo pela ocupação e integração do território que viria
a ser o Brasil a uma economia mundial. A produção de açúcar foi fator decisivo
para a fundação do processo colonial português na América a mais de 500 anos.
Mas de onde vem o açúcar? O açúcar no Brasil é derivado da cana-de-açúcar,
mas pode ser extraído de outros produtos. Por exemplo, os ingleses o extraíam da
beterraba. Mas voltando a cana-de-açúcar, ela é uma planta originária da China1
1 Isto porque, se pensarmos qual o papel que os chineses desempenham em nossas vidas hoje, concluiría-
mos que eles são o nosso principal parceiro econômico. Compram commodities e fornecem produtos
industrializados. A China mudou, nós mudamos, o mundo mudou. Estamos mais perto dos chineses do
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Até aqui, o que procurei instigar em você, caro(a) aluno(a), é a necessidade
de entender o mundo por este olhar de busca pela origem dos elementos que nos
cercam. Entender o que está por trás de todo este mar de objetos que usamos
ou nos relacionamos cotidianamente. Esta procura pode nos dar a dimensão de
como estamos sujeitos a uma rede cada vez maior de meios de produção e pes-
soas que integram a geração da nossa existência em larga escala. Mas não é só a
geladeira, o automóvel, o computador, a roupa, os bens materiais de uma forma
geral, é também o produto cultural. O filme, a música, os eventos esportivos,
os livros, as revistas, os jornais, os sites, as páginas sociais na internet e os brin-
quedos e as brincadeiras oferecidas nas lojas especializadas são fruto, em grande
parte, de uma rede mundial de produção.
Para “apimentar” um pouco mais nossas indagações sobre os bens que nos
cercam e entender o que nos faz existir, podemos estabelecer a relação de sim-
bologia dos objetos, um dos temas que iremos tratar na terceira unidade com
mais intensidade. Quase todos os produtos que consumimos tem uma marca
que lhe dá significado, um símbolo que o coloca em uma escala de importância
que estávamos há 500 anos quando eles eram a “terra natal” da cana-de-açúcar. Podemos considerar que o
nosso contato com os chineses é mais intenso em nossos dias, mas também mais complexo. Nossa relação
de dependência econômica nos gera possibilidades e cria uma complexa rede de relações econômicas que
não se apresentam claramente em nossas vidas. Vale lembrar que os produtos desejados da Apple, como
os tablets, são fabricados por uma empresa chinesa, a Foxcom. O lançamento dos produtos da empresa
que continua com sua marca ligada aos Estados Unidos, foi mundial. O prazer de se ter um produto como
este é a busca de muitos, mas não se tem a ideia de que a produção de vários de seus componentes se dá
em condição análoga à escravidão.
2 Uma das curiosidades da integração do mundo comercial que levou a formação do Brasil está, também,
na composição da nossa sociedade. Além da chegada dos europeus e seu encontro com os nativos, os
negros africanos também vieram como mão de obra escrava para servirem à produção de açúcar estabe-
lecida pelos portugueses. Se a economia mundial integrou produtos, também pessoas. Plasmou culturas
e recriou novas formas de interpretação do homem. Tudo isto será revisto com mais detalhes na última
parte deste trabalho, na quinta unidade deste livro.
socialmente como um tênis nos pés. O mais ignorante dos seres sabe onde está
o valor da existência, na marca do calçado e não em quem está calçando.
O que estamos colocando aqui, para iniciar nossa discussão sobre o estudo
das sociedades humanas, é uma forma de alertar para a complexidade das rela-
ções sociais na atualidade. Não é tarefa simples compreender as condições em
que o homem atual tem produzido sua vida e seus principais problemas. A
necessidade de ciências como a Sociologia e a Antropologia é anterior ao que
estamos vivendo. Contudo, mais do que nunca, estas ciências são necessárias
para termos uma visão mais consciente dos problemas que afetam a nossa exis-
tência na atualidade.
Na atualidade, o dia a dia tem sido carregado de simplificações perigosas
sobre as condições sociais e econômicas que nos cercam. As mensagens publicitá-
rias, os noticiários, os produtos da chamada industrial cultural3 tem generalizado
por demais a lógica dos fatores que determinam a existência dos seres humanos.
Nos discursos que se encontram nas propagandas e noticiários a vida se resume
3 Quando falamos em indústria cultural estamos nos referindo à produção em série de obras como a músi-
ca, os filmes e símbolos. Também estamos falando dos personagens que passaram a dominar o cotidiano
de nossas vidas, heróis de histórias em quadrinhos, filmes de aventura, romances, os grandes cantores e
compositores, a mulher que é o símbolo sexual. Não escapou desta indústria de valores o esporte e seus
heróis. Hoje os grandes eventos esportivos, os grandes espetáculos teatrais, o lançamento dos filmes, as
premiações dos artistas, atletas. Boa parte desta gama de elementos de valor cultural que são produzidos
em larga escala chega a nossas casas mediante às campanhas publicitárias que recheiam os filmes, telejor-
nais, séries e shows. Tudo é produzido para atingir um público em uma quantidade internacional. Com
o advento da internet estes elementos se multiplicaram, agora estão nas mãos de cada um de nós ligado
pessoalmente a uma rede mundial de computadores que nos permite acessar democraticamente uma
gama infinita de produtos massificados. Fazemos, também, este exercício nas prateleiras dos mercados.
Nunca antes, na história do consumo, os produtos dialogaram tanto com o consumidor. Caixas de leite,
sabão em pó, detergente, fraldas, roupas, sapatos, blusas, perfumes e tudo o que está à venda, conversa
sobre os temas mais diversos por meio da mídia. Hoje, no Twitter ou no Facebook podemos acompanhar
o que pensa a Coca-Cola, o McDonald’s, a Ford e a Microsoft. A indústria cultural nunca vendeu tanto,
como agora, objetos e ideias juntas, em forma de produtos.
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para que estejamos ligados à sociedade por uma vontade controlada a partir de
nossos interesses pessoais. Mudar é uma decisão que cabe a cada um e não há a
necessidade dos outros para que algo se realize. Se levarmos em consideração a
quantidade de livros de autoajuda que dominam os espaços nas livrarias, quase
sempre os de maior vendagem, nós estamos à procura de uma receita de felici-
dade fundada na particularidade, o que é racionalmente impossível.
As campanhas publicitárias dos cartões de crédito talvez seja as que mais
denunciam nossa simplificação da vida. Elas expressam o quanto o valor do que
adquirimos ou podemos adquirir orienta para o sentido da vida. Também reve-
lam o quanto viver é um dia atrás do outro. Frases de efeito ganharam destaque
e se descolaram de seu verdadeiro significado. Uma das que mais se deturpou na
atualidade é a afirmação do imediatismo na expressão: “viva hoje como se fosse
o último dia de sua vida”. Na sequência da negação do futuro vem a propaganda
do cartão de crédito e reafirma: “porque a vida é agora”. O que se expressa aqui
é: dane-se o antes e o depois, tudo se encerra em mim.
Este imediatismo na análise da vida social se constitui em uma ameaça a uma
sociedade que necessita superar seus problemas com racionalidade. A simplifi-
cação da vida social coloca o homem diante de opiniões limitadas e calcadas em
simplismo embalado em papel de presente do brilhantismo. Se voltarmos a falar
da violência esta afirmação fica mais clara. Nas mensagens sobre os crimes que
se propagam, principalmente os homicídios, como uma ameaça a todos nós, os
números sobre estes atos de violência poderiam ser reveladores.
Hoje, 80% dos crimes de homicídio estão ligados direta ou indiretamente
ao tráfico de drogas. Pessoas morrem ou matam por acertos de conta, overdose,
produtos em locais onde eles jamais estariam a 15 anos atrás, agora eles são ofe-
recidos sem culpa. A bebida alcoólica frequenta os postos de combustível, assim
como, a cocaína pode se encontrada na escola.
A iniciação ao consumo de bebidas alcoólicas se dá ainda na infância ou pré-
-adolescência dentro do ambiente familiar4. As drogas, também, são oferecidas
por pessoas do nosso círculo de amizade. Os mais próximos se tornaram os mais
perigosos. Os que deveriam nos proteger se traduzem hoje no canal de ligação
entre nós e nossos problemas. Este é outro tema que iremos desenvolver durante
este livro, a relação entre a individualidade exaltada como lógica e as condições
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que estamos organizando a coletividade de forma real. A família, por exemplo,
é uma instituição em mudança, um reflexo das novas relações econômicas,
principalmente da mulher no mercado de trabalho. Outra questão
que podemos refletir está ligada à sexualidade, presente e intensa
em diversos cantos da vida social, perigosamente exaltada pela
lógica instintiva do que civilizadora5.
A contradição maior, que queremos revelar com nossa expo-
sição até este momento, é que ao mesmo tempo em que o homem
se percebe senhor de seu próprio destino pelas mensagens que
recebe em todos os cantos, principalmente nas mensagens publi-
citárias de consumo, ele depende de uma rede cada vez mais
ampla e, em determinados momentos, mundial de produção da
sua vida. Somos o fruto de uma coletividade integrada pelo traba-
lho e nos percebemos como uma unidade autônoma que se liga
aos demais por iniciativa própria, o que é uma fantasia perigosa,
©Shutterstock
4 O que muitas vezes não fazemos, e deveríamos como educadores, é procurar dados que possam elucidar
temas que são tão complexos e tratados de forma simplificada por alguns meios de comunicação. O
Ministério da Saúde, assim como o IBGE (Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística) tem apresentado
dados importantes para o entendimento do consumo de drogas lícitas e ilícitas. Temos que desmistificar a
ideia de que a ameaça as nossas vidas vem de um elemento externo. Este perigo pode existir, mas dentro
do nosso ambiente doméstico há ameaças que tem de ser consideradas. Nosso círculo de amizade está,
assim como nós, dentro de uma relação social cada vez mais voltada ao desejo imediato de realizações
pessoais. Considerou-se em nossas relações que o caminho mais curto é o certo para se chegar onde se
quer, mesmo que contrariando a lógica de respeito e integridade, estamos transformando em regra a
violência generalizada.
5 Temas como família, sexualidade, violência e preconceito serão tratados ao longo deste trabalho, princi-
palmente em sua quarta unidade. Hoje, na preocupação expressa nos fatos que preocupam a vida social
eles ganham destaque. Por isso, quando organizamos este trabalho procuramos selecionar questões que
possam nos dar um olhar mais atento e qualitativo como educadores. A sociologia e a antropologia como
ciências que auxiliam a função da escola podem nos dar uma análise mais adequada a temas que estão
dentro do cotidiano educacional. Muitos destes temas são simplificados, alguns deturpados, o que leva a
condutas incorretas pelas autoridades e profissionais ligados à educação.
mas tida como uma verdade absoluta. Não estaríamos pagando um preço ele-
vado por esta contradição?
Considero que se faz necessário retomarmos a origem da sociedade capitalista
ocidental que determinou esta integração que estamos vivendo. Uma integra-
ção planetária de produção de bens, de comercialização de objetos mundiais.
Também, de uma propagação da cultura industrializada associada ao consumo.
Em toda a história nunca consumimos tanto em tão pouco tempo tantos produ-
tos. A maioria destes bens tem uma validade curta. Nossa vida tem se resumido a
ver objetos que adquirimos passarem pela nossa frente em uma quantidade cada
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vez maior. Nossos lixos se acumulam como uma comprovação dos nossos exces-
sos como consumidores. Não é por acaso que a finalidade dos resíduos é um dos
grandes desafios da sociedade humana de nosso tempo em relação ao futuro.
Ao buscar a origem desta sociedade industrial não estamos afirmando que
ela é uma continuidade. Não queremos considerar que a história da civilização
ocidental nada mais é do que uma sequência de fatos que se desdobraram até
chegar a nós. Como uma relação causa-efeito contínua em que é possível enten-
der as consequências pela intenção dos agentes sociais. Fazendo desta lógica uma
verdade, afirmaríamos um determinismo, o que não pretendemos aqui.
Nossa intenção é compreender que as condições em que as relações sociais
se estabeleceram na Europa levaram à formação da economia de mercado que
gerou o capitalismo e sua posterior mundialização. Esta condição de internaciona-
lização é que permitiu os desdobramentos destas relações mundiais de produção
até nossos dias. Ou seja, nossa sociedade é um desdobramento da expansão que
a economia europeia viveu, em especial com a expansão marítima (Séculos XV
a XVI) e, posteriormente, com a Revolução Industrial (Séculos XVIII e XIX).
O que passaremos agora a tentar resgatar é exatamente esta condição pla-
netária. A construção de uma civilização que após 500 anos de sua aventura
planetária continua a se impor como civilização dominante. Não podemos
negar que a Civilização Ocidental foi bem-sucedida em sua disputa pela lide-
rança mundial.
Nós somos uma civilização planetária mais que em qualquer outra época da
história humana. Estamos ligados a toda à humanidade por uma condição de
produção que gera nossas vidas em uma complexa rede de divisão de produção
em escala mundial. Estamos ligados por uma rede produtiva racional fundada em
uma lógica científica e técnica voltada à concentração de riqueza. Os empreen-
dimentos mundiais têm sua organização centrada em investimentos gerenciados
por centros financeiros que aplicam recursos em setores produtivos. O mundo
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parece ter se transformado em um cálculo voltado determinantemente ao lucro.
A vida vale na capacidade que tem de produzir riqueza ou consumir bens.
Seria uma generalização tola colocar nesta condição toda a humanidade,
mas a maioria dela com certeza. Pois, se há grupos humanos isolados, vivendo
distantes das condições que a economia mundial determina, são poucos, é exce-
ção e não regra. Esses grupos humanos isolados se encontram em uma condição
remota de existência, em uma lacuna que a economia mundial tende a preencher
ou desprezar pelo pouco interesse de integração financeira. Se não há retorno
destes elementos a opção de abandono é mais uma condenação do que um res-
peito à sobrevivência6.
Em sua maioria a sociedade mundial se integra, sente os efeitos desta integra-
ção das mais diferentes formas. As diversidades originárias deste encontro entre
o homem ocidental e as culturas nativas ainda está se processando. Mudanças
estão correndo nos conceitos que civilizações milenares construíram de sua pró-
pria origem. Algumas destas culturas nativas, ao se encontrarem com os modelos
ocidentais de racionalidade economia e, mesmo, de valor cultural, se reconsti-
tuem ou ganham um novo significado para o mundo.
Um exemplo destas mudanças culturais que marcam civilizações tradicionais,
6 Os elementos indígenas, por exemplo, que habitam as matas tropicais da América do Sul vivem em um
estágio de sobrevivência próximo às condições em que estavam quando os europeus chegaram. Se ainda
preservam sua cultura é por lutas constantes pela demarcação de terras e por meios de sobrevivência
que os afastam da convivência com o homem ocidental. Quanto tempo poderá permanecer assim? Esta
pergunta não é difícil de ser respondida, não por muito tempo. Eles poderão manter sua identidade tribal
e preservá-la por um período mais longo. Possivelmente manterão sua relação com a natureza, em alguns
aspectos, como seus ancestrais, mas sua sobrevivência será mais um souvenir do ocidente do que uma sól-
ida forma de organização social. Considero que, no primeiro encontro que se estabelece entre as culturas
nativas e o homem ocidental o efeito é devastador. Há uma mudança no conceito de existência de “si” ao
saber da existência do “outro”. Quando as relações se mantêm, este efeito é ainda pior.
algumas milenares, é o que ocorre com o Japão e a Índia. Duas culturas que se
posicionam como um contraponto ao mundo ocidental. Os personagens desta
cultura, nipônica e indiana, são hoje propagados em embalagens de produtos
a venda no mercado mundial. O exótico se descobre atraente. Mas o persona-
gem indiano que chega até nós está desprendido de sua originalidade. Não seria
reconhecido pelo nativo que nós queremos indicar com a imagem massificada
da identidade cultura milenar. O indiano retratado na novela, no filme, ou na
música, raramente lembra ao nativo sua própria cultura. O habitante tradicional
da índia não se identificaria no personagem expresso mundialmente como um
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“cartão postal” de seu país. Construímos assim uma visão distorcida das civili-
zações não ocidentais, assim como, dos produtos que consumimos.
Temos que considerar que a expansão promovida pelo ocidente, a mais de
500 anos, foi devastadora para muitas culturas, alterou a própria cultura oci-
dental. A Europa ocidental colocou os povos dominados na condição de escala
de valor e os julgou inferiores, seja pelo primitivismo perigoso da selvageria ou
pela infantilidade de suas condutas diante de um europeu que se autointitulava
“racional” e “maduro”. Este encontro classificador e de imposição é relatado pelo
antropólogo francês Edgar Morin em sua obra “Terra Pátria”:
A mundialização se opera também no domínio das idéias. As religiões
universais, e seu princípio mesmo, já se abririam a todos os homens da
Terra. Desde os começos da era planetária os temas do “bom selva-
gem” e do “homem natural” foram antídotos, muito fracos, é verdade,
à arrogância e ao desprezo dos bárbaros civilizados. No século XVIII,
o humanismo das Luzes atribui a todo ser humano um espírito apto á
razão e lhe confere uma igualdade de direito. As idéias da Revolução
Francesa, ao se generalizarem, internacionalizam os princípios dos di-
reitos do homem e do direito dos povos. [...]
Reprodução proibida. Art. 184 do Código Penal e Lei 9.610 de 19 de fevereiro de 1998.
ocidental bem-sucedida é marcada pelo encontro e desencontro de interesses,
encontro na ciência e nas técnicas que dela derivaram meios fundamentais para
estabelecer a dominação. Das armas de fogo, a medicina, botânica, máquinas
agrícolas, engenharia de construção e produção, enfim, uma gama de meios
racionais para garantir a permanência e produtividade da ordem capitalista inte-
gradora. Mesmo os povos que resistiram a esta dominação, o fizeram usando os
meios que o ocidente gerou7.
Muitos dos que tentaram a resistência pelas suas próprias armas foram exter-
minados. Foi o caso dos Astecas e Incas, também dos chineses nas Guerras do
Ópio (1839 a 1842/1856 a 1860). As armas utilizadas pelo homem ocidental foram
as mais variadas possíveis. Desde as armas de fogo, o cavalo e a armadura que
encantaram e estimularam as crenças astecas e incas, à gripe que dizimou indíge-
nas na América do Sul8. Esta prática de uso do saber em forma de instrumento
7 Nos filmes de cowboy, nos anos de 1940 a 1970, a expressão mais viva da aculturação do ocidente entre os
povos nativos da América do Norte está no uso do cavalo e das armas como meio de conter o chamado
“homem branco”. A produção cultural dos ocidentais propagou aos quatro cantos do mundo os heróis
do extermínio dos indígenas como “selvagens” que necessitavam ser eliminados em nome da “civilização
moderna”. Nos últimos 20 anos resolvemos mudar o curso e abraçar a causa do homem que preserva
o “bom selvagem”. Retomamos as teses de Rousseau e do naturalismo em evidência. Agora temos que
aprender com os povos que destruímos, como se o Ocidente pedisse desculpas a todos os povos que ex-
terminou sem entendê-los em sua “rica cultural”. Vivemos um período em que o “bom ocidental” é aquele
que preserva e impede o extermínio, é aquele que mantém a cultura do “outro”. Na história mais recente
deste gênero cinematográfico, dois filmes merecem destaque: “Dança com Lobos”, dirigido por Kevin
Costner e estrelado por ele mesmo, resgata a mudança de comportamento de um soldado norte-ameri-
cano, durante a Guerra Civil, nos Estados Unidos, onde ao conviver com a cultura dos índios Sioux ele
sofre uma aculturação as avessas, acaba indo conviver com os indígenas e se torna um de seus líderes;
“O Último Samurai” é também uma história de aculturação as avessas, onde o ocidental que se acultura
se torna o melhor entre os povos que antes combatia. O Filme é estrelado por Tom Cruise, dirigido por
Edward Zwick, conta a história da resistência dos samurais no Japão a perda dos valores nipônicos diante
da presença de forças ocidentais no país. Cruise, que faz o papel um militar norte-americano, é capturado
e, posteriormente, é aceito pelos guerreiros samurais, se tornando um dos mais destacados defensores da
tradição japonesa.
8 Um dos episódios de destruição mais conhecidos na história brasileira foi a guerra travada entre os
quilombolas de Palmares, reduto de escravos fugidos e indígenas, em Alagoas, e os bandeirantes liderados
que estamos praticando aqui, mas que construir em seu exercício prático o que
nossa civilização usufrui hoje. Esta construção de um conhecimento por vezes
contraditório entre o que desejaríamos ser e o que executamos para existir da
forma que somos.
Um exemplo típico de como somos contraditórios em nossa idealização e as
condições que fomos construídos, é a forma como abordamos o processo de con-
quista da América pelos europeus. Sempre consideramos a violência praticada
nas guerras de dominação dos territórios nativos como uma prática abominá-
vel. As guerras que os europeus travaram para a conquista e colonização dos
povos americanos, o número de seres humanos que foram exterminados, são
demonstrações de uma violência condenável. Professores de história, geografia
e literatura são os que mais exercitam a condenação do extermínio dos indíge-
nas. Mas não foi exatamente este extermínio que gerou o que somos? Não foram
estas práticas abomináveis que viabilizaram a construção de uma civilização que
hoje se faz planetária? Se há a condenação ela não deve estar com os olhos volta-
dos para o passado, mas sim para as possibilidades de uma sociedade que rompa
com este extermínio no presente e no futuro.
Se hoje percorremos os corredores dos mercados e suas prateleiras rechea-
das de produtos, se nos deliciamos com sabores que demonstram o encontro de
inúmeros lugares, se nos encantamos com as curiosidades culinárias que falam
sobre alimentos originários de diversas partes do Planeta, esta possibilidade está
diretamente ligada à ocidentalização. Foi ela, a economia capitalista fundada na
por Domingos Jorge Velho (1694). O uso de roupas e homens contaminados com gripe serviu para o
extermínio dos afroindígenas.
Europa e propagada pelo Mundo que fez circular e reorganizar a produção dos
alimentos. O mercado mundial fez, também, surgir e aprimorar a produção de
bens que atendem as necessidades básicas para parte considerável da espécie
humana, como também os nossos desejos mais fúteis9.
Quando iniciada, a mais de quinhentos anos, a conquista planetária iniciou
a circulação de produtos e seres humanos. Aquilo que era comum e típico de
determinados lugares se transformou íntimo de muitas pessoas em diversas par-
tes do Mundo. Ao mesmo tempo em que os produtos circulavam por diversas
partes, levavam consigo conceitos, formas de serem incorporados, se associa-
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vam a outros produtos e promoviam identificações diversas.
Se considerar que os engenhos de açúcar no Brasil, durante o Período Colonial
(1530-1808) foi uma empresa voltada ao mercado externo, uma unidade produ-
tiva para atender o mercado mundial, promoveram dentro do Brasil encontros
e reinterpretações de produtos e pessoas. Os escravos, em sua maioria africana,
reelaboraram seus hábitos alimentares, colaboraram para a construção de uma
cultura que se não sua exclusivamente, só pode ser feita no encontro com outros
elementos, no caso do Brasil com o português e o indígena. Podemos considerar
que as unidades de produção do açúcar geraram a possibilidade do surgimento
de uma nova identidade enquanto nação, o brasileiro. Em quantos lugares esta
possibilidade não se deu? Talvez não com a mesma intensidade e com os mes-
mos elementos. Contudo, foi uma condição que a expansão ocidental gerou.
Quando falamos do açúcar, anteriormente, poderíamos também falar das
especiarias, dos artigos vindos da Ásia, da África, das Américas e da Oceania.
Todos os cantos puderam ser reinventados na proporção em que o comércio
mundial centrado na Europa avançou sobre as mais remotas regiões do Planeta.
Também, quando a condição de produção desta gama de produtos voltados ao
comércio mundial foi alterada e intensificada em sua originalidade. A produção
de seda na China e de tecidos de algodão na Índia.
9 A comunicação talvez seja o meio que sofreu a maior revolução dentro das que o mundo integrado pelo
capitalismo promoveu. A relação do ser humano com espaço e tempo foi intensamente modificado. O que
antes era longe ficou perto. Com uma telefonia móvel que muda a geração de aparelhos celulares em uma
velocidade assustadora, nos comunicamos por fala, texto imagem, editamos páginas na internet, construí-
mos conceitos, multiplicamos conteúdos banais e significantes. Misturamos o necessário com o fútil. A
tecnologia de ponta se disponibiliza para salvar seres humanos em condições de risco, mas também pode
servir para planejar sua morte. Com um computador ligado a rede mundial eu posso me informar sobre o
tempo, fazer investimentos, complementar estudos para uma carreira profissional, agendar meu trabalho.
Contudo, também, planejar a morte de indivíduos, usurpar sexualmente de crianças, promover a discór-
dia, destruir imagens, propagar banalidades.
10 A Itália que conhecemos hoje como um país unificado, um Estado Nacional, surgiu em 1870. Antes
disso, o território passou por inúmeras invasões estrangeiras e foi centro de controle da Igreja Católica.
Dividida em principados e cidades-estado, a Itália foi o centro do comércio na Europa antes da expansão
marítima promovida pelos países ibéricos (Portugal e Espanha), a partir do Século XV. Com a expansão
marítima o eixo comercial ao qual a Europa dependia para o fornecimento e comercialização de produtos
se transferiu do Mediterrâneo para o Atlântico.
obras arquitetônicas com literárias, o território italiano tinha contato, por meio do
Mediterrâneo, com povos do Oriente Médio, bizantinos e muçulmanos, os quais
preservaram e promoveram a cultura grega. Com o desenvolvimento do comér-
cio no interior da Europa a dinâmica cultural italiana também se intensificou.
A produção literária retomou o legado grego e romano como princípio para
repensar o ser humano em transformação na Europa. A liberdade de pensamento
é exaltada pela circulação de bens, serviços e pessoas. As ideias costumam seguir
o destino das trocas. Onde o desenvolvimento do mercado, troca de produtos, o
movimento de pessoas e ideias floresce. É difícil conter o pensamento quando a
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liberdade acompanha a circulação dos produtos. Contudo, esta liberdade não era
para todos, não atingia a maioria da população. A cultura e a reflexão, assim como
a mercadoria, tinham um limitador que era a capacidade de aquisição. Por isso,
os mestres, artistas e intelectuais da renascença foram sustentados por mecenas11,
que de uma forma geral transformaram a arte em mercadoria e o conhecimento
em algo restrito aos que podiam adquiri-lo ou saboreá-lo pelo consumo.
Assim, se com a arte o valor monetário lhe permitia o acesso, nos demais
produtos disponíveis no mercado europeu a regra de aquisição se fazia valer mais
intensamente. Conforme o fruto do trabalho se mercantilizava, a necessidade
de expandir a produção com o crescimento do consumo levaria a expansão dos
domínios europeus para outras regiões do Mundo. A Europa que dependia de
uma rota limitada pelo controle italiano e centrada no Mar Mediterrâneo supe-
rou esta condição com as navegações de Portugal e Espanha.
O pioneirismo ibérico foi fruto de uma condição inovadora na Europa, a
formação do Estado nacional absolutista. A centralização do poder nas mãos do
monarca seria uma tendência nos países da Europa ocidental. Um processo que
durou cerca de trezentos anos e só foi possível com a inversão de forças políti-
cas a favor do monarca e da demarcação do território nacional. A unidade do
território por meio da administração do monarca que usa de sua capacidade de
11 O financiamento da arte durante o período da renascença foi o primórdio do que conhecemos como a
condição em que a expressão cultura e intelectual está determinada ainda hoje. Por mais que procuramos
propagar a arte e o conhecimento como algo de todos e para todos, mesmo com o poder público investin-
do na cultura para as classes populares, na multiplicação de escolas públicas, o saber fazer e o produto
do que se faz se restringe na dimensão de sua importância a quem tem a condição de adquiri-lo. O que
pretendo discutir com isso é o discurso da educação para todos. Podemos ensinar o conhecimento funda-
mental para uma grande maioria dos indivíduos, mas o que resultará deste conhecimento ao se aprimorar
vai depender das condições que encontrará para o aperfeiçoamento do seu saber, a qual está diretamente a
sua capacidade de gerar riqueza.
12 O que se desvenda no início da economia mercantil na Europa Moderna é o papel que o estado exerce
no crescimento da economia de mercado. Se hoje se questiona o peso do Estado na vida da economia por
meio de sua carga tributária, na formação do capitalismo comercial, e depois com o advento da indústria,
seu papel é inquestionável como agente de crescimento e organizador dos meios pelo qual o capitalismo
se desenvolveu. Contudo, é sempre bom lembrar, o Estado é o resultado das forças que a sociedade lhe
empenha. A economia capitalista não se relaciona com o poder estatal da mesma forma ao longo da
expansão ocidental.
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O Capitalismo, o Cristianismo e a Razão
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mensalmente, uma quantia pelo nosso trabalho, o qual tem sua participação em
uma condição de produção de um bem determinado para vida social. E quando
este bem é vendido no mercado, nele se computa o custo de nosso trabalho13.
Se a economia capitalista tem na mercadoria seu germe de existência, ela
tomou muitas formas ao longo da história, mas também sua existência depen-
deu de condições de produção que se transformaram ao longo dela. Se voltarmos
a produção do açúcar no Brasil Colônia, quando o trabalho escravo predomi-
nou na confecção dos produtos que eram voltados ao mercado europeu, a vida
de cada trabalhador compulsório era calculada e se fazia presente nas cargas de
cacau, açúcar, algodão e tabaco que cruzaram o Atlântico.
Assim, a mercadoria e o trabalho humano se encontram no valor do pro-
duto, assim as vidas das pessoas passam a ser computadas nos bens que circulam
no mercado local e mundial. A racionalidade da produção passa a ter um papel
fundamental na busca de ampliar o capital e o número de consumidores de
mercadoria. Transformar toda a necessidade humana em um bem de compra e
venda é fundamental.
O aprimoramento dos meios produtivos, das rotas comerciais, as descober-
tas de novos produtos para o mercado, toda a logística que permitisse reduzir
custos e ampliar lucros disponibilizar para a compra um número cada vez maior
de produtos foram necessidades constantes para a manutenção da economia
13 Na história da análise do capitalismo não há dois autores que souberam de forma magistral marcar
o estudo das relações capitalistas como Adam Smith e Karl Marx. Duas visões distintas da produção
da mercadoria, mas que se complementam no desmembramento da lógica do capital. Enquanto Smith
busca na lei de mercado entender o desenvolvimento da produção industrial, o que relaciona a divisão de
trabalho e maquinofatura, Marx faz da mercadoria a porta de entrada para as entranhas do capitalismo e
desvenda o sentido da quantificação da vida material e intelectual.
14 O colbertismo foi a política do ministro Colbert na França monárquica de Luís XIV. O estado francês
detinha a maior extensão de terras cultiváveis da Europa. A saída para enfrentar o desenvolvimento
mercantil dos estados rivais e permitir a participação no comércio internacional era vender produtos
manufaturados e agrícolas para as nações vizinhas. A Espanha foi a maior cliente francesa. Incentivando
as exportações de produtos manufaturados de luxo, o governo francês tabelou o preço dos produtos e os
empresários que poderiam produzir e vender. As taxas para o comércio interno foram elevadas e para
o mercado externo reduzidas como forma de incentivo as exportações. A população francesa viveu a
miséria e a exploração ao mesmo tempo. O trabalho foi tabelado e reduzido as mínimas condições de
sobrevivência. Os produtos para a população ficaram caros (inflação quinhentista), propagando a fome.
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Mas se até aqui a economia e a ciência mostraram sua afinidade para que
possamos entender o desenvolvimento do capitalismo e a expansão da civiliza-
ção ocidental, tendo o Estado como agente de integração entre as duas forças.
A cultura ocidental também teve um papel importante na submissão das civi-
lizações em todo o mundo. A identificação da cultura cristã como elemento de
unidade e direcionamento da dominação também deve ser considerada. O olhar
que se estabelece sobre o mundo e qual nosso papel diante dele pode parecer
uma retórica existencialista, mas em determinado momento se faz fundamen-
tal para entender o comportamento de uma civilização.
15 A Lei de Cercamento e Lei dos Miseráveis conjugaram dois interesses na economia britânica. A vitória
da empresa comercial e financeira sobre a permanência dos privilégios feudais dentro do território inglês
e a transformação do Estado em uma extensão da política burguesa disposta a ampliar a participação
da sociedade nas relações capitalistas. As decisões que a monarquia inglesa tomou desapropriando os
senhores feudais dos privilégios em relação às propriedades rurais, transformando-as em bem imóveis
passíveis de compra, venda e desapropriação por dívidas, forçou a transformação da terra em uma
propriedade capitalista, voltada a produção de bens para o mercado. Estas mudanças levaram a Lei dos
Miseráveis, visto a quantidade de trabalhadores rurais que foram expulsos da propriedade agrícola,
da condição de servidão para se transformarem em trabalhadores assalariados nas fábricas e minas de
carvão, sejam nas cidades ou nas áreas rurais, alimentando de trabalhadores assalariados as empresas em
desenvolvimento. A industrialização inglesa afetou não só as terras britânicas e suas colônias, mas todo
o mundo. De uma forma direta ou indireta, de imediato ou ao longo do desenvolvimento da economia
mundial. A sociedade industrial que foi inaugurada em terras britânicas está espalhada por diversos can-
tos do mundo, com suas diferenças regionais, mas interligada por uma economia mundial.
quando falarmos das teses de Max Weber em nosso segundo módulo, é que há
uma construção de sentidos na prática de uma ação pessoal ou coletiva. Todos
os indivíduos quando se encontram em uma relação social determinada busca
dar a si uma orientação, um posicionamento dentro da vida em sociedade.
Ao tentarmos entender o que fez os ocidentais promoverem uma navegação
que levou a conquista planetária, temos que considerar que o ímpeto de domi-
nar e estabelecer a cultura cristã sobre as demais civilizações foi fundamental.
Esta busca de se impor, de considerar que se está com a verdade universal e que
os opositores devem se submeter é construído em lógica cultural que valoriza o
direito universal a conquista. Aqui, a religiosidade cristã foi fundamental.
O cristianismo ocidental europeu se transformou em um elemento de uni-
dade durante a decadência romana e se consolidou no Período Medieval. O
feudalismo (Séculos V a XVIII) estabeleceu na Europa a consolidação do poder
da Igreja Católica associada à vida cotidiana. O poder dos senhores feudais, o
sentido da existência dos fenômenos naturais, a construção de uma identificação
com o passado e o sentido da vida futura, entre outros tantos elementos, passa-
ram a ser encharcados pelo sentido religioso.
Não podemos esquecer que o cristianismo tem como princípio a onipotên-
cia e onipresença divina, a criação universal, o determinismo da existência do
homem, o compromisso em defender a “verdade” religiosa. Os cristãos trans-
formam qualquer lugar em que estejam como uma extensão da “Terra Santa”,
uma conquista territorial não era o resultado dos investimentos econômicos e
resultado do conhecimento científico e da capacidade técnica, era a propagação
da religiosidade que deveria ser propagada e converter ou eliminar o descrente,
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que o europeu estava realizando no “além-mar”.
O Estado monárquico nacional era justificado pelo poder divino, obedecer
ao rei era obedecer a Deus. Por isso, quando falamos da importância do modelo
religioso que o cristianismo implantou na Europa não estamos nos referindo
exclusivamente ao entendimento do sentido da vida de cada um, mas da própria
existência do Estado. A obediência ao poder que determina uma função além da
vida racional em sociedade, mas do princípio moral a ser obedecido e seguido.
Para retomarmos uma das discussões mais comuns ao falarmos da forma-
ção do Brasil, sua ocupação e colonização, o papel dos jesuítas podem nos servir
como referência da importância da religiosidade como fator de conquista. Os
padres da Companhia de Jesus se deslocaram para o interior do território colo-
nial e se dispuseram a converter nos nativos à religiosidade cristã estabelecendo
uma lógica de conversão e educação. Seria impossível entender o empenho que o
jesuíta dava a sua empresa se não considerarmos a dimensão de sua fé. A empresa
racional jesuíta e toda a capacidade que ela demonstrou de dominação foi pos-
sível dentro de um sentido religioso da obra de colonização17.
16 O cristianismo foi um desdobramento do judaísmo. O monoteísmo cristão tem as bases na divindade
judaica e rompe com ela na figura de Cristo, o “filho de Deus”, o “Salvador”, que os judeus consideram não
ter vindo. Outro elemento importante e fundamental para entender a justificativa de imposição cristã,
está na universalização dos homens, todos os povos são os filhos de Deus. Para os judeus, eles são o povo
escolhido. Por mais que os demais povos reconheçam a existência Divina, são os hebreus que detêm a
preferência do elemento determinante. Por isso, a “Terra Santa” para o hebreu é a Palestina, para o cristão
é todo o território onde ele leva a “palavra” de Deus. Os Ocidentais europeus se colocam na condição de
propagadores da fé, da verdade religiosa. Os discursos religiosos passam a expressar o interesse do homem
europeu. Uma unidade fundamental entre a busca da riqueza, os aparatos técnicos e conhecimento
científico e a cultura cristão justificando a ação do homem europeu. O que vale relembrar é o papel do
Estado como ordenador desta unidade.
17 Se formos considerar o quanto a conversão foi um exercício de confronto e risco para os padres jesuítas,
podemos entender a dificuldade do empreendimento de propagação da religiosidade. O padre José de
Anchieta que foi um dos primeiros jesuítas no território colonial brasileiro se deixou capturar pelos
tupinambás para poder convertê-los. Muitos jesuítas não tiveram sucesso com Anchieta e foram mortos
interesse de quem o possui. Nossos interesses são estabelecidos por uma escala
de valores que os modelos culturais constituem.
Um dos exemplos que Weber dá é sobre o conceito de trabalho para o pro-
testante calvinista e o católico. Enquanto para o primeiro o trabalho enobrece e
eleva o homem no conceito divino, para o segundo o trabalho está associado ao
sofrimento e denuncia o pagamento dos pecados. Logo, o ímpeto do trabalho
para o protestante, a acumulação de riqueza, o sucesso material estavam associa-
dos ao prestígio religioso. Já, para o católico, a riqueza era um pecado, o trabalho
um sacrifício que o pecador deveria pagar.
A mentalidade cristã que orientou o processo de conquista ocidental manteve-
se e, de certa forma, se mantém ao longo da história de conquista estabelecida
sobre o mundo, que denominamos aqui, por influência da termologia de Edgar
Morin, de “era planetária”. Não com os mesmos princípios, não mais fundada
na religiosidade cristã que endossava a imposição da civilização ocidental, mas
em uma nova forma de conceber a superioridade por meio da racionalidade e
mesmo da ciência.
Não teve área de conhecimento que exerceu melhor esta tendência do que
a Antropologia. O seu nascimento teve como objeto de estudo “o homem não
europeu”. Ela debruçou-se sobre o comportamento de civilizações encontradas
pela expansão europeia e sua dominação nas mais diferentes partes do mundo.
Comparações, classificações, escalonamento mediante valores que o homem
pelos nativos. As técnicas de conversão eram obtidas com o uso de uma técnica de tradução da língua na-
tiva e estabelecimento de contato mediante a música. Depois de aceito pelos nativos, os padres inacianos
promoviam um eficiente método de organização dos nativos. Uma ação constante que envolvia paciência
e determinação. Quando o Estado português rompeu com o projeto catequético jesuítico este já tinha
aliciado mais de 150 mil nativos.
ocidental impunha aos demais povos. Esta escala serviu para estabelecer a “linha
evolutiva” que tinha a “Europa civilizada”, como afirma Augusto Comte, no topo.
O pensador francês, fundador das teses positivistas, estabelecia no princípio da
evolução civilizadora as sociedades próximas ao comportamento dos primatas.
Tarde, Morgan e, mesmo, Hegel seguiram por caminhos diferentes o mesmo cri-
tério de colocar os ocidentais na cadeia evolutiva18.
Charles Darwin é o autor de maior lembrança quando falamos de “evolu-
ção”, por mais que suas colocações são interpretadas de forma equivocada como
uma justificativa de superioridade natural do homem europeu. O antropólogo
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francês considera que a lei do melhor adaptado reside mais na capacidade de
assimilação do ser vivo ao meio do que de sua competência mental para garan-
tir a permanência. Ou seja, nada garante que formas mais complexas de espécies
não podem ser eliminadas se determinadas mudanças no meio for de tal monta
que seja impossível assimilá-las19.
A literatura também foi uma expressão da superioridade ocidental. Romances
e aventuras fortaleceram o ideal do vitorioso “homem branco”. Nas páginas dos
livros que se transformaram em clássicos durante os séculos XIX e XX, os per-
sonagens vitoriosos eram os exemplares fiéis do corpo social do ocidente. Talvez,
nenhum romance de aventura expressou com maior intensidade esta ideia do
que a “Lenda de Tarzan” 20.
O homem branco está fadado, segundo a produção científica e literária
produzida pelo ocidente, que nos referimos, à conquista, à superioridade, à
18 As teses desenvolvidas a partir do Século XVIII foram formadas em bases eurocêntricas, mesmo aquelas
que tentaram uma conciliação entre o universalismo iluminista e o poder estabelecido pelo Ocidente
sobre o Planeta. Se para alguns teóricos como Voltaire a desigualdade se justifica pela capacidade racional
do homem bem-sucedido, para outros pensadores como Montesquieu, era preciso refletir sobre o relevo, a
geografia, os hábitos culturais. Já para Morgan, existe um elemento classificatório que permite enquadrar
as civilizações humanas em estágios. Grupos primários e desenvolvidos dentro de uma constituição que
leva em conta os aspectos biológicos e de racionalidade.
19 Vale a lembrança do que estamos vivendo. Hoje, promovemos um processo crescente de degradação
do meio ambiente. Não estou aqui afirmando que meio ambiente é a condição natural que o homem
encontra. A floresta intacta não é por si um meio de sobrevivência. Mas a destruição das condições de
produtividade do solo é. Vale lembrar que um elemento não está ligado diretamente ao outro. Nossa es-
pécie soube transformar a natureza para atender aos seus interesses. O que nos resta saber é o quanto esta
transformação foi além da manutenção das condições vitais para a manutenção da vida humana.
20 Escrito pelo norte-americano Edgar Rice Burroughs, a obra relata a aventura de Tarzan (pele clara para
os Gorilas), filho de pesquisadores e exploradores ingleses que morrem na África, deixando o recém-na-
scido. Este é criado por um gorila. Vivendo em meio aos macacos, o filho do homem branco, mesmo
assim, se tornará o “rei das selvas”. Uma forma de comprovar a lógica de que o branco vencerá, mesmo
criado em um ambiente inóspito, desfavorável ao intelecto. A natureza se encarregará de comprovar a
superioridade natural da espécie.
parte do Mundo seja uma extensão de seus interesses permitiu às nações euro-
peias estabelecerem uma rede mundial integrada de produtos.
Podemos então considerar que as conquistas do ocidente integraram elemen-
tos importantes. Relembrando o que já discutimos aqui: a economia ocidental, o
desenvolvimento científico e tecnológico e a cultura predadora do homem oci-
dental foram fundamentais para conduzir a história planetária ao que estamos
assistindo aos nossos dias. Estes elementos se integraram em um projeto desen-
volvido pelas nações europeias. Elas redesenharam toda a cartografia mundial,
refizeram as fronteiras de praticamente todas as demais civilizações do mundo.
Se considerarmos toda a expansão e os tratados que as nações europeias esta-
beleceram entre si e com outras nações do mundo, eles redefiniram as fronteiras,
colocaram novos nomes nas terras subordinadas e classificaram suas faunas e
floras. Quanto aos povos que habitavam as terras conquistadas, eles também pas-
sariam, em sua maioria, a serem identificados pelos nomes dados pelo ocidental21.
Em uma das fases determinantes do poder ocidental sobre o mundo está
o neocolonialismo. Estabelecido após o desenvolvimento industrial europeu,
marcado pela fase considerada imperialista das potências ocidentais. Tendo
seu apogeu entre 1870 a 1918, o imperialismo acabou por resultar em uma dis-
puta pelo domínio da economia mundial entre as potências. Principalmente
Inglaterra, Alemanha, França, Itália, Rússia, Bélgica, Estados Unidos e Japão
21 Desde o início da expansão marítima europeia a assinatura de tratados que dividiram os territórios em
todo o mundo foi uma demonstração da ambição e da forma como o ocidente passou a tratar suas con-
quistas. Entre as primeiras divisões estabelecidas sobre o mundo, nós podemos considerar o Tratado de
Tordesilhas (1494) assinado entre Portugal e Espanha. Ele estabeleceu os domínios dos países ibéricos no
Atlântico. No século XV, duas nações periféricas no contexto mundial definem por uma linha imaginária
uma fronteira, dividem povos e determinam seu futuro. O que o tratado definiu acabou por se tornar uma
realidade ao longo do tempo e promover novas expansões e o surgimento de novos limites e fronteiras.
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Para estabelecer este domínio os países europeus já tinham feito anteriormente
inúmeras pesquisas, conhecido os detalhes da ocupação do território pelas
populações nativas, muitas delas já tinham sofrido o confronto com as nações
ocidentais e se encontravam subordinadas deste o início da expansão marítima
(Séculos XV e XVI)22.
A princípio, os domínios que as nações europeias estabeleceram sobre o
território africano foi no litoral, não conheciam demasiadamente bem o inte-
rior para fazerem incursões de permanência, assim como, não tinham aparato
técnico capaz de estabelecer um enfrentamento eficiente aos povos nativos.
Contudo, com o passar do tempo, o conhecimento ocidental foi sendo cons-
truído. Expedições de cientistas ocidentais financiadas pelos governos ou por
empresas determinaram uma ação na busca de construir um conhecimento efi-
ciente, mesmo ciências nasceram desta busca como falamos anteriormente, que
permitisse uma ação precisa sobre o território.
A antropologia é a ciência, como já citamos anteriormente, que mais expressa
esta dominação. Ela foi sendo desenvolvida e ampliada com as informações que
eram trazidas das expedições. Inúmeras obras de viajantes foram publicadas retra-
tando estas viagens e suas descobertas. Os chamados “diários de viajantes” eram
experiências que traziam a aventura do homem ocidental em terras inóspitas e
recheado de descrições, muitas vezes mistificado, dos homens “não ocidentais”.
22 A expansão marítima portuguesa e espanhola se desdobrou sobre o território africano e fez dele um dos
principais objetos de interesse. No princípio da expansão lusitana, a conquista de Ceuta no Norte da Áfri-
ca foi fundamental para desencadear uma série de expedições direcionadas ao litoral do continente. Os
domínios sobre Guiné, Príncipe, São Tomé, Angola e, posteriormente, Moçambique, geraram um império
colonial português que seria cobiçado por outras nações europeias, além da Espanha. Inglaterra, Holanda
e França também se lançaram sobre o território africano a procura de seu “quinhão” de riqueza.
povos afros têm que lidar nos dias atuais. Muitas destas nações vivem guerras
civis entre grupos tribais que reivindicam autonomia nas terras partilhadas pelos
europeus sem respeitar o povoamento nativo. Dividir territórios nunca levou
em conta os interesses de quem os habitava para as potências imperialistas da
Europa. Muitos povos nativos rivais ficaram sobre o mesmo comando quando
a África se viu dividida.
A exploração europeia sobre diversas partes dos continentes se estabeleceu
sobre bases das mais distintas. Desde a dominação pura e simples, impondo à
força o domínio sobre um determinado território, como pelas relações comer-
ciais que, aos poucos, vão subordinando os nativos das diversas regiões do
mundo. Foi assim, na própria África, quando do litoral, os portugueses, espa-
nhóis, ingleses e holandeses obtinham escravos por meio do escambo feito com
outros povos. Eles vendiam os inimigos para os europeus, no início, depois pas-
saram a caçá-los para atender as trocas e, ao final, acabaram se transformando
na própria caça dos “homens brancos”. A necessidade de escravos parecia não
ter fim para os ocidentais.
A persuasão sobre os nativos se deu por meio das trocas também, elas foram
elementos fundamentais para subordinar nações inteiras. Atender as necessida-
des dos povos que ocupavam os territórios em troca de algum interesse. Contudo,
essas trocas eram controladas pelos europeus e serviam de mecanismos para
manipular os nativos23. Levá-los a se submeterem pela necessidade dos produtos
23 Apenas como ilustração da prática de trocas estabelecida pelos homens europeus com os povos nativos,
uma delas foi efetuada pelos portugueses no litoral brasileiro. Denominado de escambo, a troca de
produtos com os indígenas, a prática em nosso litoral teve como interesse extrair o pau-brasil no litoral
brasileiro. Os portugueses fizeram contatos com os nativos e passaram a trocar bugigangas (bijuterias,
tecidos, espelhos, machados e serrotes). Com esta prática se estabeleceu uma dependência entre o nativo
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Esse rifle podia ser recarregado num cavalo a galope. Abandonei para
sempre o meu arco. Alguns dos mais velhos, no entanto, continuaram
usando a sua arma familiar. Compreendia sua atitude antes da chegada
do rifle de cápsulas, mas agora o arco me parecia apenas um brinquedo.
e o ocidental. Enquanto o primeiro passava a ter contato com objetos que não sabia produzir, estranhos a
sua natureza, os europeus se apoderavam de uma madeira que conheciam bem, sabia de seu potencial de
exploração. Este detalhe foi fundamental para decretar o destino dos nativos.
O que Turner trabalha de forma magistral são os meios pelos quais o homem
branco se impôs pelas trocas, pelas dependências, pela manipulação das neces-
sidades criadas junto aos nativos. Esta também será uma forma de dominação
eficiente, marcada por uma dependência tecnológica cruel que representa uma
das muitas etapas da conquista ocidental sobre mundo.
A exploração se intensificou à medida que o conhecimento sobre os demais
povos também avançou. Não podemos desassociar conhecimento científico e
tecnológico da capacidade de dominação estabelecida pelo ocidente. Como já
afirmamos anteriormente, ciência e tecnologia foram elementos importantes para
Reprodução proibida. Art. 184 do Código Penal e Lei 9.610 de 19 de fevereiro de 1998.
Mas se o olhar de Vespúcio é sobre a riqueza e lhe encanta a natureza traduzindo para
o ocidental seus interesses de cobiça e a existência de um mundo diferente. O olhar da
cultura cristão, da religiosidade, capturou outra forma de ver o estranho, não tanto a
natureza, mas os seres humanos.
O capuchino francês Claude d’Abbeville esteve no Maranhão, em 1612, e retratou desta
forma os indígenas guarani:
Não há nação, por mais bárbara que seja, que não tenha procurado, em
dado momento, cobrir o corpo com vestimentas ou enfeites, a fim de
esconder a nudez. Pois os tupinambás, por mais estranho que pareçam,
andam sempre nus, como ao saírem do ventre materno, e não demons-
tram em absoluto a menor vergonha ou pudor.
Considerações Finais
O que temos que ressaltar nesta primeira unidade é a relação entre a formação
do ocidente enquanto civilização e sua conquista mundial. O quanto elemen-
tos como a ciência e a tecnologia permitiram ao homem ocidental a capacidade
de se impor. Esta imposição levou a integração de uma economia mundial que
se faz hoje cada vez mais eficiente. Ela está vinculada as nossas vidas e promove
nossa condição de existência onde cada um de nós estivermos.
O desenvolvimento da civilização ocidental passou por diversos estágios
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Considerações Finais
1. Um desafio para se fazer sobre a vida ocidental é uma prática simples,
aparentemente estranha. Veja uma lista de produtos que você tem
a sua volta, produtos mundiais, busque suas origens. Vá à internet e
reconstrua a trajetória do produto que está em sua sala o televisor, na
cozinha a geladeira e o computador no escritório. Analise o quanto o
mundo da globalização chega a nós.
2. Estabeleça a relação da ciência e da tecnologia no desenvolvimento de
nossa sociedade. Onde a ciência e a tecnologia estão? Como o conhe-
cimento nos permite o acesso às mínimas coisas e não as percebemos?
44 - 45
Material Complementar
Aqui está um documentário sobre a globalização vista sobre a ótica dos que são chamados
de excluídos. Milton Santos, um dos maiores intelectuais das ciências humanas, um geógrafo
brasileiro, analisa o processo conquistador do ocidente. Vale a pena assistir!
<http://www.youtube.com/watch?v=-UUB5DW_mnM>.
Material Complementar
Professor Me. Gilson Aguiar
AS NOVAS SOCIEDADES E
II
UNIDADE
SEUS DILEMAS
Objetivos de Aprendizagem
■■ Descrever a formação da sociedade industrial e o seu
desenvolvimento. Principalmente o crescimento da sociedade
urbana.
■■ Estabelecer a integração entre a produção industrial desenvolvida
na Europa e a integração da economia mundial, destaque para a
formação da economia por meio de uma divisão internacional do
trabalho.
■■ Estudar as mudanças na produção mundial com o advento da Guerra
Fria (1945-1989) e o desaparecimento.
Plano de Estudo
A seguir, apresentam-se os tópicos que você estudará nesta unidade:
■■ Formação da sociedade industrial urbana
■■ Crescimento do capital e a economia mundial
■■ Guerra Fria e mundialização do capital
48 - 49
Introdução
que teve nos espaços urbanos sua organização típica. Esta organização nem sem-
pre foi planejada. O que levou a organização de núcleos de tensão motivados
por diversos fatores associados à condição de miséria em que viveu as primei-
ras levas de trabalhadores.
Mas sociedade urbana que se iniciou na Europa se expandiu para outros paí-
ses. Algumas cidades com aspectos modernos nasceram em regiões tipicamente
agrícolas ou distantes dos centros das potências econômicas capitalistas. Com
o passar do tempo estes centros passariam a receber também indústrias e a se
integrar com a rede de produção mundial que estreitou seus laços.
A integração da economia mundial ocorreu ao longo de 500 anos, como fala-
mos anteriormente. Neste período ocorreu o deslocamento humano para diversas
partes do Planeta, assim como, de produtos. O afluxo de uma grande quantidade
de capital para a Europa levou a formação de um grupo de empresários que uti-
lizaram dos estados nacionais europeus para garantirem seus interesses fora da
Europa. O colonialismo que a Europa impôs sobre o mundo se multiplicou e
se refaz sobre novos moldes, o que se convencionou chamar de imperialismo.
Em conjunto com o imperialismo o discurso eurocêntrico também se esta-
beleceu. Isto fez emergir as ciências humanas que tiveram com objeto de estudo
o homem, a sociologia e a antropologia. No ambiente de superioridade ociden-
tal estas áreas de conhecimento se impuseram como necessidades, mas também
como formas de legitimar o poder ocidental.
Duas guerras foram travadas pelas potências ocidentais e movimentaram a
rede de produção mundial. Elas alteraram as condições de produção dos bens
industriais e levaram a uma nova organização do domínio do ocidente sobre o
Introdução
II
Reprodução proibida. Art. 184 do Código Penal e Lei 9.610 de 19 de fevereiro de 1998.
Com o desenvolvimento da indústria e da capacidade produtiva integrada a
uma cadeia mundial de produção, como falamos na primeira unidade, há uma
mudança nas condições de vida dos seres humanos. Esta mudança se fez sentir,
primeiramente, na Europa após a Revolução Industrial, e depois se propagou
para diversas regiões do Planeta.
A indústria sediada na Europa necessitou cada vez mais de matéria-prima
vinda de diversas partes do mundo, assim como o mundo passou a consumir em
uma escala crescente os produtos industriais. Nesta cadeia produtiva, nas áreas
industriais, centros econômicos nesta fase do capitalismo, ocorrem um cresci-
mento da população urbana. Uma realidade que trará impasses e incertezas no
decorrer dos Séculos XIX e XX. Levará um número crescente de pensadores
sociais à busca de entender qual será o futuro da sociedade diante de uma con-
centração populacional nunca vista na história humana. A cidade se tornou um
ambiente de tensão que exigiu preocupação por parte dos cientistas europeus.
Se a ciência foi um instrumento de dominação para a conquista de novos ter-
ritórios, para a expansão do capitalismo ocidental fundado na empresa mercantil
e, posteriormente, industrial, agora ela deveria atender a ordem social institu-
ída na própria Europa. Entender as relações sociais constituídas no ocidente se
tornou uma prioridade. Buscar uma ação para sua transformação será o objeto
de preocupação das forças políticas e também dos cientistas.
O crescimento urbano deste período pode ser medido pela vida em Londres,
a primeira grande cidade industrial do mundo, no centro de uma economia que
já foi por quatro séculos a maior do mundo, a inglesa. Londres praticamente tri-
plicou a sua população entre os séculos XVIII e XIX. A massa populacional que
passou a migrar para a cidade, o chamado êxodo rural, fez crescer uma cidade
desconexa, desordenada.
Os operários se concentraram em torno das fábricas ou em cortiços. Sem
vias planejadas, as cidades concentravam problemas de ocupação. As moradias
mal ventiladas, muitas delas tinham apenas um cômodo onde se ajeitava toda
uma família de operários, falta de saneamento, exposição a um ambiente úmido
e insalubre que provocava doenças como tifo, cólera, varíola e escarlatina. Estas
epidemias passaram a preocupar o Estado. A busca de um saneamento básico
levará, entre outras atitudes, a promover o zoneamento urbano e as políticas de
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saúde pública1.
A desigualdade de condições ficou expressa também na vida das classes mais
abastadas que tinham acesso aos benefícios dos produtos que a economia mun-
dial permitia. A elite londrina, por exemplo, consumia produtos de luxo vindos
das mais diversas partes e, também, aqueles que eram produzidos na indústria
do seu país. As classes populares, em sua grande maioria formada de operários,
não tinham acesso a estes bens.
Outros problemas também surgiram com a formação dos núcleos urbanos
industriais, com a concentração populacional. O alcoolismo, crescimento dos
homicídios, latrocínios e prostituição são alguns deles. Até mesmo os mani-
cômios começaram a se propagar como uma alternativa para o tratamento de
pessoas que demonstravam desequilíbrio de comportamento. O que não é difícil
de apresentar diante de uma condição de vida do operariado que trabalhava em
torno de 15 horas por dia, sem descanso. Até mesmo crianças de 10 anos eram
encontradas nas fábricas sujeitas a jornadas como os adultos.
A massa humana que veio do campo, onde trabalhava subordinada ao regime
feudal fundado na subsistência, agora se via em uma condição oposta. Inserida
em um regime frenético de trabalho em que nada lembrava as relações que
1 Limpeza pública, planejamento urbano, vacinação, enfim, toda a política de combate às doenças que
poderiam afetar a população passaram a serem práticas dos governos municipais. No Brasil, durante o II
Reinado (1840-1889) e a Primeira República (1889-1930) foram tomadas medidas para tentar reduzir os
casos de varíola no Rio de Janeiro, então capital do país. Uma das mais conhecidas foi a política de sanea-
mento de Oswaldo Cruz que ficou conhecida pelos seus desdobramentos, a “Revolta da Vacina” (1904).
Nela, a população urbana reagiu com revolta às medidas de vacinação. Uma guerra urbana marcada pela
ignorância da população em relação à vacinação, mas, também, uma ação agressiva do poder público in-
teressado em destruir cortiços para a construção de um espaço nobre para o mercado do Rio de Janeiro. A
especulação imobiliária será uma fonte de acumulação de riqueza com a crescente ocupação e valorização
dos espaços urbanos.
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em um alto grau de qualificação como temos hoje. A sobrevivência passa a cus-
tar a sujeição a uma condição desumana de trabalho.
As condições de trabalho da classe operária durante a Revolução Industrial
e sua propagação pela Europa foi tema de análise de Eric Hobsbawm em sua
obra a “Era das Revoluções”. O historiador inglês estabelece uma relação direta
entre a quantidade de mão de obra ofertada para a produção, o nível de qualifi-
cação e as condições de trabalho:
Conseguir um número suficiente de trabalhadores era uma coisa; outra
coisa era conseguir um número suficiente de trabalhadores com as ne-
cessárias qualificações e habilidades. A experiência do século XX tem
demonstrado que este problema é tão crucial e mais difícil de resolver
do que o outro. Em primeiro lugar, todo operário tinha que aprender
a trabalhar de uma maneira adequada à indústria, ou seja, num ritmo
regular de trabalho diário ininterrupto, o que é inteiramente diferen-
te dos altos e baixos provocados pelas diferentes estações no trabalho
agrícola ou da intermitência autocontrolada do artesão independente.
A mão-de-obra tinha que aprender a responder aos incentivos monetá-
rios. Os empregadores britânicos daquela época, como os sul-africanos
de hoje em dia, constantemente reclamavam da “preguiça” do operário
ou de sua tendência para trabalhar até que tivesse ganhado um salário
tradicional de subsistência semanal, e então parar. A resposta foi encon-
trada numa draconiana disciplina da mão-de-obra (multas, um código
de “senhor e escravo” que mobilizava as leis em favor do empregador
etc.), mas acima de tudo, na prática, sempre que possível, de se pagar tão
pouco ao operário que ele tivesse que trabalhar incansavelmente duran-
te toda a semana para obter uma renda mínima [...]. Nas fábricas onde
a disciplina do operário era mais urgente, descobriu-se que era mais
conveniente empregar as dóceis (e mais baratas) mulheres e crianças:
de todos os trabalhadores nos engenhos de algodão ingleses em 1834-
2 Hoje temos muitas empresas que optam por terceirizar a produção. Esta forma de organização se dá na
grande indústria capitalista, na maioria das vezes. Uma forma de baratear o custo de produção não tendo
que arcar com a arregimentação de trabalhadores de baixo grau de qualificação. Também as tensões das
relações de trabalho com este perfil de operário pode ser desgastante para a grande empresa. Por isso, boa
parte da produção de componentes primários para a produção, ou mesmo, a base material da produção
em larga escala fica por conta da empresa terceirizada. Se observarmos empresas com Apple ou Nike, gi-
gantes dos setores de informática e artigos esportivos respectivamente, elas já tem esta forma de produção
com um grau de sofisticação elevado em sua rede de produção mundial.
ordem nos espaços urbanos. Policiamento ostensivo nas ruas, instituições para
o aprisionamento e tratamento daqueles que não se adaptavam à vida urbana.
As escolas voltadas às classes populares e mantidas pelo poder público teriam
esta característica, retirar os ociosos do mundo urbano e preparar os cidadãos
para o trabalho. A educação, que sempre existiu como forma de organização da
vida social e preparação das futuras gerações para a necessidade coletiva, agora
deveria exercer esta função visando o mundo da empresa capitalista que se gene-
ralizava. Entre os movimentos operários que surgiram na Europa, alfabetizar os
filhos era uma garantia de não reproduzir a relação que os pais estavam sujei-
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tos para os filhos.
Outra forma em que se procurou enfrentar a violência que o mundo urbano
apresentava foi a da classe operária. Ela se organizou em associações e sindica-
tos. Enfrentou o ambiente de trabalho imposto pelas empresas e os empresários
capitalistas e se deu início aos confrontos em forma de “quebra de máquinas” e
paralisação de trabalhadores. As greves ocasionadas pela luta por melhores con-
dições de trabalho, como o Movimento Cartista3 na Inglaterra do século XIX.
Os problemas sociais urbanos chegaram a um determinado grau que até
mesmo as forças sociais e políticas opostas de trabalhadores e patrões passa-
ram a ter uma luta contra problemas comuns e se associar em campanhas para
romper comportamentos que se mostravam nocivas à sociedade. Um destes “ini-
migos comuns” foi o consumo de bebidas alcoólicas. Como afirma Hobsbawm:
Por outro lado, havia muito mais pobres que, diante da catástrofe social
que não conseguiam compreender, empobrecidos, explorados, jogados
em cortiços onde se misturavam o frio e a imundice, ou nos extensos
complexos de aldeias industriais de pequena escola, mergulhavam em
total desmoralização. Destituídos das tradicionais instituições e pa-
drões de comportamento, como poderiam muitos deles deixar de cair
no abismo dos recursos de sobrevivência, em que as famílias penhora-
vam a cada semana seus cobertores até o dia do pagamento, e em que
o álcool era “a maneira mais rápida para se sair de Manchester” (ou
de Lille ou de Borinage). O alcoolismo em massa, companheiro quase
invariável de uma industrialização e de uma urbanização brusca e in-
controláveis, disseminou “uma peste de embriaguez” em toda a Europa.
3 O Cartismo vem do documento produzido pelo movimento de associações e sindicatos de trabalhadores
ingleses, denominado “Carta do Povo”. Surgido em meados do século XIX, o movimento organizou
uma pauta de reivindicações que foram apresentadas ao governo britânico. Entre as reivindicações dos
trabalhadores estava a participação política dos operários no parlamento, eleições, voto secreto, igualdade
entre eleitores e o sufrágio eleitoral masculino.
Podemos considerar, então, que diante deste ambiente que trazia condições de
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degradação para parte considerável dos trabalhadores e que, muitas destas con-
dições também ameaçavam a classe média e o patronato, a ação pública deveria
ser ao mesmo tempo em que pontual estar dentro de uma política geral de gover-
nabilidade da vida social urbana. O que queremos dizer com isto? Era preciso
uma ação dos governos municipais das cidades industrializadas. Eles necessi-
tavam ter a capacidade de colocar, diante dos conflitos que se intensificam e de
práticas que denegriam as forças sociais, mecanismos eficientes de ação.
Se a necessidade de racionalizar a vida social era uma emergência para o
poder público, ela estaria na pauta de discussão do mundo científico. As cor-
rentes de pensadores que se debruçaram sobre os problemas da vida urbana e
das condições humanas na sociedade industrial são sensíveis a partir do século
XVIII. Contudo, foi no século seguinte que esta preocupação se intensificou.
Das correntes liberais ao socialismo, as teses políticas emergiram a procura
de dar resposta ao contexto tenso que o mundo industrial urbano apresentava. Os
valores que orientavam o homem europeu tinha se alterado e seria um modelo
para as demais formas de compreensão que surgiram em diversas partes do
mundo. Se o movimento liberal e socialista surgiu na Europa, sua propagação
pela América, Ásia e África foi corrente. A influência da intelectualidade euro-
peia se demonstrou com o surgimento dos Estados nacionais em áreas antes
colonizadas pelos europeus.
Paralelo a estas correntes, e muitas vezes sendo um contraponto a elas, os
movimentos herdados das correntes naturais também emergiram. É o caso do
positivismo inaugurado por Comte na França. As teses do pensador francês
viriam a inspirar aqueles que consideravam que a análise da vida social deveria
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tação do homem em sociedade.
Tanto para Marx como para Durkheim, por exemplo, a análise da vida social
e a forma de compreender sua dinâmica e superação da crise estão nas relações
de produção e trabalho. O que de certa forma desapareceu da análise de mui-
tos pensadores da atualidade. Um engano que não podemos aceitar. O trabalho
como principal fator de organização da vida social ainda existe e é necessário o
seu entendimento. É por isso que iniciamos esta unidade dando relativa impor-
tância à compreensão da vida econômica da sociedade ocidental, a forma como
ela se organizou ao longo da sua trajetória de conquista planetária por meio de
uma divisão internacional do trabalho.
A Internacionalização da Produção e do
Trabalho
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Brasil há o exemplo das estradas de ferro instaladas ao longo do século XIX e pri-
meiras décadas do século XX. Alguns destes projetos ferroviários expressaram
a violência no confronto de interesses entre as populações nativas, o ambiente
inóspito e as empresas transnacionais.
A borracha na Amazônia foi um empreendimento que se valorizou e intensifi-
cou com o interesse das empresas industriais sediadas na Europa e, principalmente,
nos Estados Unidos. Os norte-americanos, na figura de Henry Ford, se aventu-
raram em um projeto de produção do látex para a produção de pneumáticos.
Uma empresa que exigiu ferrovias, hidrovias e unidades de tratamento da bor-
racha em plena floresta tropical5.
A empresa Brazil Railway Company, fundada em solo brasileiro em 1904,
foi a maior empresa ferroviária do país no início do século passado. Ela chegou
a controlar 47% das linhas férreas instaladas no país e ter parte considerável
do controle de produtos vitais da economia integrados ao mercado internacio-
nal como o Café e Algodão. Também foi ela que se aventurou na construção da
Ferrovia Madeira-Momoré no interior da floresta amazônica. O interesse era a
extração e comercialização da borracha. A construção deste trecho foi marcada
5 O que se convencionou chamar de Fordilândia e Belterra foram núcleos criados para abrigar empresas de
tratamento de látex para a produção de pneumáticos. A necessidade desta produção, para o fundador da
Ford, era o sucesso de seu invento automotivo, o veículo Ford T, um carro que bateu o recorde de venda
na história automobilística, só perdendo mais tarde este título para o fusca. A produção de automóveis
exigia uma quantidade significativa de peças de borracha, incluindo os pneus. Na época, a matéria-prima
era vegetal, vinda dos seringais. A maior produção era inglesa, na Ásia, e a busca de alternativa para fugir
do monopólio britânico sobre o produto fez com que Henry Ford se enfiasse na aventura mais desastrosa
da sua empresa, funda núcleos de produção de látex no Pará, as margens do Rio Tapajós. As unidades
foram instaladas e marcadas por fracassos. Desde o gerenciamento dos investimentos, problemas com a
plantação de seringueiras e revolta dos trabalhadores por causa do ritmo de trabalho estabelecido pela
empresa norte-americana. Uma das revoltas, por sinal a mais violenta, se deu pela alimentação oferecida
pela Ford, espinafre. Os caboclos contratados pela empresa queriam peixe e farofa.
adequada por parte do poder público seja ele qual fosse e onde estivesse.
Estas disputas por áreas de exploração sejam como colônias, protetorados ou
influência, dividiram as potências industriais e acirrou uma rivalidade entre elas,
como já citamos antes. Desta rivalidade as guerras mundiais foram o resultado.
Uma polarização iniciada pela Inglaterra e Alemanha levou ao conflito mundial
que se desenrolou principalmente na Europa. Guerras modernas, marcada pela
destruição de cidades, pelo número significativo de civis mortos6.
Com final das guerras, a Europa, que até então era o centro econômico do
mundo, viu sua supremacia ser deslocada para os Estados Unidos. A Bolsa de
Valores de Nova York passou a concentrar a maior parte dos investimentos mun-
diais e das empresas capitalistas. O mercado de ações investiu em um ambiente
seguro para fugir da instabilidade provocada pela guerra. Junto com a trans-
ferência de capital, também se transferiram para a América o capital humano.
Empresários, cientistas, técnicos, artistas e intelectuais se retiraram de uma
Europa insegura e sem condições de crescimento de empreendimentos para uma
América do Norte promissora.
A diplomacia norte-americana durante o conflito foi fundamental para o
sucesso de sua economia. No início das duas guerras os Estados Unidos se man-
teve neutro e procurou não se envolver diretamente. Forneceu mantimentos e
equipamentos para a Inglaterra e seus aliados. Quando a guerra se encontrava
6 Na Primeira Guerra Mundial (1914-1918) o número de mortos chegou a 19 milhões de pessoas. O
desenvolvimento dos armamentos bélicos foram um dos fatores para o número de vítimas feitas pela
guerra. Mas, durante a Segunda Guerra Mundial (1939-1945) o número de mortos se elevou em 60%, nela
40 milhões perderam a vida. O número também se elevou no segundo confronto mundial. Nessas guerras,
o mundo sentiu e ressentiu os resultados do confronto. A economia mundial se reorganizou sobre novos
moldes e demonstrou a capacidade de se refazer utilizando a cadeia mundial de produção aliada ao desen-
volvimento científico e tecnológico.
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dutiva que permitiu o crescimento acelerado da economia. Esta medida faz com
que se potencialize a utilização do dólar como moeda mundial,
o que se concretizou durante a Segunda Guerra
Mundial, o Tratado de Bretton Woolds7.
Outro aspecto que deve ser mencionado no mundo pós-guerra, foi a emergên-
cia da URSS (União das Repúblicas Socialistas Soviéticas), hoje a maior parte
deste território corresponde à Rússia. O regime socialista foi implantado no Leste
Europeu durante a Primeira Guerra Mundial como resultado do agravamento
da situação da Rússia, mergulhada em problemas econômicos e sociais, assim
como, desempenhando um papel secundário na corrida imperialista.
Diante de uma condição de exploração intensa dos trabalhadores agríco-
las, da revolta dos militares com a política do Império Russo com a guerra, e em
menor intensidade, a organização dos operários, o movimento social liderado
por Lênin e Trotsky foi bem-sucedido. O estado socialista se implantou em 1917
e passou a ser a primeira nação a ter uma revolução comunista bem-sucedida e
que se consolidava no comando do Estado.
7 Resultado da Conferência de Bretton Woolds que ocorreu nos Estados Unidos, ainda durante a Segunda
Guerra Mundial (1944), o encontro entre representantes de 44 nações estabeleceram regras monetárias e
financeiras para a reconstrução do capitalismo após a guerra. O sistema financeiro norte-americano teve
um papel central neste acordo e o dólar passou a ser a moeda internacional determinando o parâmetro
monetário para a recomposição dos investimentos mundiais. Também, nesta conferência, foram dadas as
bases para a criação do Banco Mundial e o Fundo Monetário Internacional (FMI).
à morte é hoje aceita pelo governo norte-americano como um erro. Muitos des-
tes foram tomados durante o Macarthismo9 que entre as décadas de 1950 e 1960
inspirou uma política de perseguição aos comunistas.
Os estados nacionais passaram a ter um papel determinante no contexto
destas políticas influenciadas pela Guerra Fria. Tanto nas diretrizes econômicas
como nas políticas nacionais, havia a necessidade do controle, da interferência
pública para garantir a organização e o controle dos movimentos sociais. A cen-
sura, as políticas sociais intensas de interferência dos serviços públicos na vida
social, o poder dos meios de comunicação, foram características do mundo da
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Guerra Fria.
Um dos grandes avanços da comunicação que influenciou a vida de milhões
de pessoas no mundo foi o advento da televisão como meio de comunicação de
massa. Principalmente com as transmissões via satélite que permitiram uma inte-
gração maior das diversas regiões do mundo, mas filtradas pela força de empresa
televisiva. A imagem passou a falar mais que as palavras. O mundo iniciou sua
jornada na intimidade dos domicílios. Até hoje a televisão é considerada uma
ameaça aos interesses de homens públicos e de governos. O controle atual da
China e de países com ditaduras que se dizem socialistas, como Cuba, sobre os
meios de comunicação é intenso.
O período de polarização ideológica entre o Bloco Capitalista e Socialista
também foi marcado pelas economias planificadas e pelas políticas de cresci-
mento com o estabelecimento de metas. Seja para se alcançar uma recuperação da
economia ou para desenvolver o país. A reconstrução das nações desenvolvidas
mediante medidas econômicas estabelecidas pelo Estado serviu de inspiração para
os demais países do denominado “Terceiro Mundo”10. Carregados de problemas
9 A política macarthista está relacionada a Joseph McCarthy, senador norte-americano que estabeleceu a
política de combate ao comunismo por meio da perseguição de líderes políticos, intelectuais, artistas e
atores, ou seja, toda e qualquer personagem que se associasse ao comunismo. Era preciso destruir a infil-
tração do socialismo dentro da sociedade norte-americana. Outras nações, sob a influência norte-amer-
icana adotaram políticas parecidas. O Brasil, como veremos na unidade IV, também adotou esta política
que durou por décadas.
10 O que se convencionou chamar de “Terceiro Mundo” eram os países periféricos da economia mundial.
Aqueles que recebiam os efeitos de decisões dos centros econômicos desenvolvidos e sedes das grandes
empresas que tinham seus braços por todo o mundo. Os países pobres estavam marcados por uma
desigualdade endêmica herdada ou de suas origens coloniais ou de uma estrutura econômica perniciosa
mantida por grupos econômicos privilegiados que se aliaram a economia mundial. O Brasil fez parte das
nações do Terceiro Mundo. O empobrecimento do país ao longo de sua história contracenou com áreas
ricas que se estabeleceram integradas a economia mundial. Foi nesta desigualdade que o país viveu e
ainda vive que se denominava de Belíndia a realidade social e econômica brasileira. Algumas regiões com
a carga de impostos e a riqueza dos países europeus (Bélgica) e a pobreza semelhante a da Índia. O termo
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O fim da Guerra Fria – a perda ideológica – e o nascimento
da sociedade de consumo
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movimento, em escala monumental, pondo em causa cartográficas ge-
opolíticas, blocos e alianças, polarizações ideológicas e interpretações
científicas (IANNI, 1999, p. 10).
Ianni vai mais longe em sua análise e complementa a questão sobre as mudan-
ças no mundo após a Guerra Fria. O desaparecimento de fronteiras, das alianças
e da lógica:
As noções de colonialismo, imperialismo, dependência e interdepen-
dência, assim como as de projeto nacional e outras, envelhecem, mu-
dam de significado, exigem novas formulações. Na medida em que se
desfazem as hegemonias construídas durante a Guerra Fria, declinam
as superpotências mundiais, envelhecem ou apagam-se as alianças e
acomodações estratégicas e táticas sob as quais desenhava-se o mapa do
mundo até 1989, quando caiu o Muro de Berlim, o emblema do mundo
biporalizado (IANNI, 1999, p. 12).
Estas mudanças é a que estamos vivendo, esta nova relação com as fronteiras que
agora se desfaz da relação ideológica e passa a se estabelecer com novos valores.
Um destes é o de acesso aos bens materiais oferecidos no mercado mundial e
os produtos que marcam as novas identidades. O que antes era considerado um
símbolo de um determinado país, ou uma identidade de um determinado povo
agora está acessível nas prateleiras no mercado mundial.
A nova forma de organização das empresas, dos produtos e da rede de produ-
ção internacional irá nos dar uma ideia das condições em que os seres humanos
estão sujeitos na sociedade atual. A produção regional, por exemplo, que muitas
vezes parece manter características típicas do localismo, mas é um engano, ela
está cada vez mais determinada pela economia mundial e pela tecnologia con-
trolada por grandes corporações. O caso da agricultura é emblemático. Ainda
existem os pequenos produtores, alguns até com seu trabalho familiar, mas
eles estão cada vez mais subordinados a uma cadeia produtiva mundial. Roger
Burbach e Patrícia Flynn nos dão uma ideia desta dependência:
A moderna invernada, por exemplo, nenhuma semelhança tem com
os pastos antigos. A produção já não depende da terra e da natureza.
Quando os bezerros são levados para a invernada, para serem engorda-
dos, jamais vêem pastos verdes. Milhares de cabeças de gado são amon-
toadas nuns poucos metros quadrados, onde são alimentadas nuns pou-
cos metros quadrados, onde são alimentadas com rações programadas
por computadores. Para estimular a engorda e eliminar doenças, doses
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Esta cadeia de produção é a que nos alimenta hoje. Mas na paisagem de países
agrícolas como o Brasil esta realidade é evidente. O desenvolvimento da enge-
nharia genética, a capacidade dos insumos em alterar o destino da produção que
deixa de depender exclusivamente de fatores climáticos. Tudo se altera em uma
cadeia de produção que abastece de alimentos uma proporção cada vez maior de
habitantes em todo o mundo. Na prateleira dos mercados as embalagens colo-
ridas, com personagens de desenho animado como “garotos-propaganda” não
denunciam o que é o produto e de onde ele vem. Compramos a aparência, mas
a essência que determina a existência dos alimentos é complexa e foge a nossa
compreensão. A forma de apresentação destes produtos com suas mensagens e
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países e continentes, assim como nas mais diferentes atividades agrí-
colas, são numerosos ou mesmo inúmeros os pequenos produtores.
Trabalham a terra com a família e em certos casos assalariando alguns
trabalhadores em épocas de preparo da terra, plantio ou colheita. São
pequenos produtores autônomos, situados em posição especial, em face
do assalariado agrícola permanente ou temporário, e em face do grande
empresário. A pequena produção continua a ser importante no conjun-
to da vida socioeconômica no mundo agrário.
Reprodução proibida. Art. 184 do Código Penal e Lei 9.610 de 19 de fevereiro de 1998.
com os demais elementos da sociedade. Construímos, durante a Guerra Fria,
por exemplo, uma forte identificação com o Estado de Bem-Estar. Ele era o ele-
mento que integraria o indivíduo à coletividade mediante suas ações traduzidas
em políticas sociais e econômicas. A cidadania era a condição, fictícia ou não,
para o ingresso do homem na coletividade. Hoje, quem nos integra e o consumo,
o mercado, o pertencimento a um mundo de universalidade de símbolos terri-
torializados e desterritorializados.
Quando falamos de territorializar e desterritorializar por meio dos símbolos
e dos bens de consumo associados a eles, percebemos o quanto a identidade dos
produtos se flexiona ao prazer do mercado ou dos consumidores que se interessa
seduzir. Um aparelho da Apple é fruto de uma produção planetária que envolve
centros de inteligência e controle de produção e um parque industrial. Estes
elementos estão desmembrados. Enquanto o controle de produção, o desenvol-
vimento técnico está concentrado nos Estados Unidos, onde técnicos das mais
diversas nacionalidades geram a inteligência do produto, sua confecção (fábrica)
está na China, a Foxcom. As condições de produção dos produtos da Apple são
opostas a humanização do produto, à forma como ele é apresentado no mercado.
Ao comprar um celular, um tablet, um notebook, uma filmadora digital, um
televisor de plasma, sua apresentação para o consumo esconde a vida material
e humana que o produz. Da mesma forma, o produto, resultado de uma cadeia
complexa de produção, está livre de suas condições de origem para se apresen-
tar da forma que melhor lhe convier. A magia quase sempre é a porta de entrada
da necessidade do consumo em nossas vidas. Não é por acaso que a ciência e a
tecnologia ligada ao estudo do comportamento social e individual relacionadas
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vamente por este imediatismo do consumo. O entendimento da vida mediante
à ciência, o que é uma das ações fundamentais da escola, tem se perdido. Ela
está isolada da condição de instrumento de compreensão e crítica da vida social.
Mesmo quando se trata das ciências exatas ou naturais, o conhecimento cientí-
fico se empobrece e não consegue desvendar as condições de materialidade que
existe nos produtos disponíveis no mercado12. Não podemos empobrecer a ciên-
cia e lhe dar apenas um papel decorativo ou de ritual sem sentido na vida do ser
humano, esteja ele em qualquer nível da educação que estiver.
Temos que considerar que a ciência é o instrumento fundamental para a
compreensão e superação dos dilemas humanos. Foi por meio do conhecimento
científico que a sociedade ocidental se fez e conseguiu atingir o grau de comple-
xidade que se apresenta em nossos dias. Estamos propagando a ideia de que o
conhecimento chegou até nós por “magia”, que tudo do que usufruímos é uma
mera contribuição de “gênios” e não de uma possibilidade humana, a escola, a
academia, tem que ser um instrumento de luta contra estes conceitos. Cabe a
nós, educadores, ou os que têm lucidez, romper com esta superficialidade que
domina os discursos sobre a vida social.
Foi dentro da construção de uma economia racional, fundada no poder do
estado e nas práticas de desenvolvimento do conhecimento científico para atender
necessidades humanas que o conhecimento que temos sobre a nossa existência
12Tornou-se distante de professores, e por consequência, dos alunos a relação entre bens materiais e
as áreas de Química, Física e Biologia. A matemática e sua lógica para as condições de existência mal
povoam os exercícios com suas exemplificações desconexas. Na literatura desumanizamos os autores e
descontextualizamos sua obra. Pior, não conseguimos transportar a lógica do texto para a vida contem-
porânea. O passado morreu no passado e o sentido de estudá-lo, o presente, ficou ausente de qualquer
tipo de questionamento, dúvida, revisão e crítica. Esta crítica vale para o professor de história e para o de
geografia.
se fez. Não podemos desprezar séculos de história que colocou a produção cien-
tífica no centro das necessidades humanas como o principal instrumento da
superação de nossas dificuldades e na condição vital para a superação de nos-
sas necessidades.
Avançar neste sentido requer um comprometimento do educador em se posi-
cionar diante do mundo, ter uma análise sobre as condições em que vivemos
e agir no sentido de crítica. Mesmo que seja em defesa, mas de forma racional
sobre as relações sociais, econômicas e materiais. Não é só o profissional formado
nas ciências humanas, ou socioeconômicas que deve ter este posicionamento.
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Ele passa por todo e qualquer produtor do conhecimento, por qualquer indiví-
duo que tenha como profissão o uso da ciência. Indo mais longe, de qualquer ser
humano que necessite superar sua condição de homem em sociedade. A ciência é
uma necessidade de todos, não é por acaso que a educação deve estar próxima de
todas as pessoas e se tornou um instrumento fundamental da vida humana. Ela,
a ciência, está por todos os lados e nós temos que perceber e despertarmos isto.
Desta forma, encerramos esta unidade para, na sequência trabalharmos
com os autores clássicos. Em nossa próxima unidade você vai conhecer as prin-
cipais correntes do pensamento social, as principais bases metodológicas da
sociologia e antropologia. Vamos fazer uma reflexão sobre os autores conside-
rados clássicos e o quanto suas teses ainda são válidas para o entendimento do
homem contemporâneo.
Muitos consideram desnecessário retomar uma produção científica quase
toda produzida no século XIX. Há sempre o questionamento que estes conheci-
mentos estão superados e seu entendimento não terá validade para quem quer
compreender os dilemas da sociedade atual. Mas é um engano este tipo de posicio-
namento. Necessitamos compreender a tendência dos pensadores da atualidade,
o que iremos fazer na terceira unidade deste livro, mas ainda é nos pensadores
clássicos que os contemporâneos buscam a sustentação de suas teses, se não na
totalidade, nas bases principais de sua lógica.
Outro fator que nos fazem considerar importante o estudo dos “clássicos”
das ciências sociais é o preparo que nos dá para a leitura de outros teóricos da
atualidade. Uma formação fundada no trabalho dos primeiros grandes cientistas
sociais e suas análises de uma sociedade que continua baseada nos elementos da
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Considerações Finais
Considerações Finais
FÁBRICA DE SUICÍDIOS: CONTRATO DE TRABALHO DA FOXCONN TEM
ITENS POLÊMICOS E INACREDITÁVEIS
Em 2010, quatorze funcionários da fábrica da Foxconn cometeram suicídio. Para a Apple,
é um lugar bem agradável
Na carta de admissão, felicitações “por fazer parte da família Foxconn”. Mas entre o ca-
beçalho e a assinatura do contrato exigida de cada operário chinês da gigante fábrica de
montagem de iPhones e iPads, entre outros aparelhos, há ainda itens (inacreditáveis) a
destacar, que não foram modificados desde 2010, quando ocorreram numerosos casos
de suicídio nas instalações da Foxconn.
O segundo item: “Se eu tiver maiores dificuldades ou frustrações, procurarei meus fami-
liares ou o diretor da empresa [...]”. E ainda: “Não farei mal nem a mim mesmo nem aos
outros; a fim de permitir que a empresa proteja a mim mesmo e aos demais, confirmo
que posso ser mandado ao hospital caso venha a ter problemas físicos ou mentais”.
No mesmo tom, no item 3, a Foxconn compromete os próprios funcionários a algo mais:
“Em caso de infortúnios não acidentais (entre os quais suicídio e ferimentos autoprovo-
cados etc.), confirmo que a empresa seguiu as leis e regulamentos e me comprometo a
não processá-la, a não fazer exigências excessivas e não empreender ações drásticas que
possam prejudicar a reputação da companhia ou causar problemas à operação cotidia-
na”. A carta integral pode ser encontrada no site Shangailist (<www. shanghailist.com>).
As condições de trabalho na Foxconn sempre geraram muita da polêmica. Em 2010, 14
funcionários se suicidaram. A empresa, dirigida pelo empresário Terry Gou, aumentou
os salários e até a Apple se pronunciou sobre os suicídios. “Estamos em contato direto
com os diretores da Foxconn e acreditamos que esta questão esteja sendo levada a sé-
rio”.
O próprio Steve Jobs, polêmico cofundador da Apple, afirmou, em julho de 2010: “Che-
gando lá você encontra uma fábrica, mas também restaurantes, cinemas, hospitais e
piscinas. Para uma fábrica, é até um lugar bem agradável”. A companhia, que emprega
cerca de 600 mil pessoas e tem sua sede em Taipei, Taiwan, instalou redes de proteção
ao redor de suas instalações, como divulgado pela BBC. Também se comprometeu a
rever as horas de trabalho, os salários e as horas extras dos funcionários. Compromissos
estes que, segundo a Sacom (Students and Scholars Against Corporate Misbehavior),
não foram cumpridos.
A Sacom – fundada em Hong Kong em 2005 – é uma organização sem fins lucrativos
formada por estudantes, que trata de melhorar as condições gerais de trabalho.
O relatório mais recente da Sacom descreve essa situação nos três campi (assim defi-
nidos) da Foxconn: Shenzhen, Chengdu e Chongquing, que prestam serviços para a
Apple, HP, Nokia, Dell e outras empresas.
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Material Complementar
Material Complementar
Professor Me. Gilson Aguiar
III
UNIDADE
PENSADORES CLÁSSICOS I
Objetivos de Aprendizagem
■■ Reconhecer o contexto do nascimento da antropologia e da
sociologia como ciência.
■■ Dominar a formação das teses positivistas e suas críticas ao
liberalismo e socialismo.
■■ Estudar a formação do estruturalismo como método de análise social.
Plano de Estudo
A seguir, apresentam-se os tópicos que você estudará nesta unidade:
■■ Nascimento da sociologia
■■ Positivismo com método
■■ Estruturalismo como uma herança da análise objetiva dos fatos
sociais
82 - 83
Introdução
Introdução
III
A análise da vida social foi preocupação para vários cientistas sociais. Em sua
maioria, a busca era de estabelecer princípios de moralidade e uma idealização de
conduta necessária. Buscar orientar a ação na vida social com elementos de ética
e moral que pudesse superar os atritos da vida coletiva. As instituições religio-
sas se dedicaram a compreender os males sociais como se fosse orientado pelas
tendências malignas que atentavam a vida humana. Enquanto que os homens
da racionalidade valorizavam a razão como forma de compreensão e ação, mas
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sem o entendimento do fenômeno social. Partia-se do princípio de que o homem
deveria se orientar diante dos “outros”. E eram exatamente estes “outros” que se
colocavam desconhecidos da compreensão da ciência.
Um dos momentos de maior tensão social e que emergiu a necessidade de
uma compreensão científica da sociedade foi a industrialização e o crescimento
das cidades de forma desordenada. A vida urbana produziu fenômenos de ins-
tabilidade social em uma proporção nunca vista. O alcoolismo, por exemplo,
prostituição, homicídio, suicídio e latrocínio. Sem contar os distúrbios provo-
cados por manifestações coletivas que eram encarados por muitos intelectuais
e homens de Estado como um “problema”.
Nos séculos XVIII e XIX emergiu grandes cidades e seus bairros formados
sem planejamento, em muitos casos uma concentração desordenada de indivíduos.
Nestes ambientes periféricos, urbanos, se confrontavam as regras estabeleci-
das da vida rural, a qual não se podia mais reproduzir na cidade, e, ao mesmo
tempo, as condições de sobrevivência no mundo urbano que se mostravam vio-
lentas. Revoltas populares contra as máquinas no século XVIII, na Inglaterra, foi
uma expressão desta contradição. Os operários consideravam que os maus-tra-
tos impostos a eles era consequência da existência das máquinas e se elas fossem
destruídas a relação com a classe patronal seria mais humana. Ao longo da his-
tória, a luta contra o desenvolvimento tecnológico se mostrou em vão1.
Outras tendências se colocavam em oposição ao caos social resgatando as
1 No século XIX, os socialistas chamados de “utópicos”, destaque para Charles Fourier, acreditavam que o
desenvolvimento técnico na produção se traduzia em um mal. Se fazia necessário limitar o aprimoramen-
to das máquinas sob pena de gerar uma massa de trabalhadores rejeitados pela produção e colocados à
margem da sociedade. Uma das formas de harmonizar as relações de trabalho seria garantir aspectos do
trabalho artesanal no mundo industrial.
PENSADORES CLÁSSICOS I
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©shutterstock
ada por muitos pensadores. Podemos considerar que mesmo
entre os liberais havia a busca de estabelecer uma relação entre
a particularidade das sociedades e os problemas que elas atra-
vessavam, sejam eles comuns ou não2. A distinção de valores entre uma nação e
outra, afinal sempre foi perceptível ao homem que o comportamento de deter-
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minadas sociedades diante de problemas idênticos não era o mesmo. Mas seria
possível estabelecer um critério comum na análise de sociedades distintas?
A instalação do liberalismo na Europa gerou uma euforia nos países onde
ele foi instalado. Na França e Inglaterra, onde as ideias liberais se consolida-
ram, na primeira em forma de revolução e na segunda como reorganização do
poder, o liberalismo promoveu o expansionismo da empresa econômica asso-
ciada à ação militar.
Entre os ingleses, o desenvolvimento de uma indústria fundada na maquino-
fatura gerou a busca por novos mercados e a necessidade do Estado intervir na
vida social para adaptar a sociedade à empresa capitalista emergente. Não é por
acaso que os interesses do parlamento inglês estava voltado, ao mesmo tempo,
em criar um ambiente que facilitasse o desenvolvimento dos meios industriais
por meio de capitais que eram obtidos externamente para serem aplicados no
território britânico, como, por outro, também forçou a abertura de mercados em
todo o mundo para a compra de produtos ingleses, utilizando de todo o aparato
bélico, naval principalmente, necessário para este intento.
A contradição se estabeleceu no território britânico que passou a ter acesso
a uma quantidade imensa de produtos, uma quantidade de capitais nunca vis-
tos antes na história britânica migraram para o seu território, ao mesmo tempo
em que parte considerável da população de trabalhadores ingleses vivia em
2 Um dos pensadores que trabalhou com a relação comparativa das sociedades foi Montesquieu. O
pensador liberal, em sua obra “O espírito das leis”, tenta organizar a lógica da relação entre as condições
da natureza humana e da natureza que cerca o homem. Nesta relação, ele procura associar até mesmo o
ambiente natural em que cada sociedade está disposta para reconhecer em cada uma delas uma condição
distinta de desenvolvimento. Esta busca do pensador francês o coloca em uma condição de precursor
da sociologia. Contudo, a especulação de Montesquieu não lhe delegou nenhuma compreensão dos
fenômenos de forma sistemática, como no caso de Comte.
PENSADORES CLÁSSICOS I
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3 Beethoven admirou as ideias da Revolução francesa, que para ele eram a expressão de uma liberdade que
se instalaria por toda a Europa e promoveria uma nova era, até mesmo para a humanidade. Para celebrar
a liberdade que Napoleão representava, o compositor criou “Eroica”, a Sinfonia número 3. Muitos consid-
eram um marco da passagem para o Romantismo. Contudo, ao ver Bonaparte ascender na França como
imperador em 1804 e, posteriormente, promover a invasão da Áustria onde as tropas francesas promov-
eram atrocidades com a população, Beethoven tirou o nome de Bonaparte da partitura.
Augusto Comte
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rais para a análise da vida social.
Em 1814, já na decadência do Império Napoleônico, Comte ingressa na
Escola Politécnica de Paris. Um centro de formação de cadetes voltada ao desen-
volvimento do corpo intelectual do estado francês4. Uma carreira que Comte
pretendia manter. Contudo, foi levado a ingressar no movimento socialista fran-
cês, liderado por Saint-Simon, na busca de desenvolver um modelo ideológico
que influenciasse a administração francesa na busca de atender as melhorias da
vida da população. Uma ilusão que Comte em pouco tempo rompeu.
O rompimento entre Comte com Saint-Simon ocorreu por diversos fatores,
o mais conhecido foi a mania do mestre do socialismo utópico roubar as ideias
de seus discípulos. Simon não costumava ser muito original em suas ideias, mas
também por discordância teórica, já que os dois apresentavam análises opostas.
Enquanto Comte acreditava em uma interferência neutra do Estado, Saint-Simon
tendia a um acordo político de tendência pequeno burguesa. Comte chegou a
acusá-lo de se aproximar de empresários franceses e favorecê-los manipulando
os movimentos sociais franceses. Outra crítica foi a de intelectualizar o movi-
mento político e gerar uma casta intelectual beneficiária da liderança social.
Traçando um caminho próprio, Comte busca então uma análise mais obje-
tiva dos fenômenos sociais e passa a considerar o método das ciências naturais
como um instrumento fundamental na construção de princípios para entender
4 Criada dentro do processo revolucionário liberal, o interesse era trazer para dentro do corpo diplomático
um número de jovens que viessem a ser qualificados para alimentar a falta de profissionais de engenharia
e especialistas que pudessem atuar dentro da máquina pública francesa. Preparar tecnicamente para a
direção do Estado. Este modelo de educação inspirou Comte. Daí vem sua busca de construir um homem
público mediante uma compreensão da ciência com instrumento vital para a administração da máquina
pública.
PENSADORES CLÁSSICOS I
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Entendo por Física Social a ciência que tem por objeto próprio o estu-
do dos fenômenos sociais, considerados com o mesmo espírito que os
fenômenos astronômicos, físicos, químicos e fisiológicos, isto é, como
submetidos a leis naturais invariáveis, cuja descoberta é o objetivo es-
pecial de suas pesquisas. Propõe-se, assim, a explicar diretamente, com
a maior precisão possível, o grande fenômeno do desenvolvimento da
espécie humana, considerado em todas as suas partes essenciais; isto é,
a descobrir o encadeamento necessário de transformações sucessivas
pelo qual o gênero humano, partindo de um estado apenas superior ao
das sociedades dos grandes macacos, foi conduzido gradualmente ao
ponto em que se encontra hoje na Europa civilizada. O espírito desta
ciência consiste, sobretudo, em ver, no estudo aprofundado do passado,
a verdadeira explicação do presente e a manifestação geral do futuro
(COMTE, 1989, p.53).
Augusto Comte
III
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A época em que as ciências começaram a tornar-se verdadeiramente
positivas deve ser reportada a Bacon, que deu o primeiro sinal dessa
grande revolução; a Galileu, seu contemporâneo, que lhe deu o pri-
meiro exemplo, e, por fim, a Descartes, que destruiu irrevogavelmente
nos espíritos o jugo da autoridade em matéria científica. Foi então que
a filosofia natural nasceu e que a capacidade científica encontrou seu
verdadeiro caráter, como elemento espiritual de um novo sistema social.
Nesta citação fica claro o papel das ciências naturais como também da ruptura
que pensadores como Bacon, Galileu e Descartes fizeram com a filosofia huma-
nista. Não podemos esquecer que o conhecimento científico que foi promovido
partindo da lógica da ciência moderna acabou por romper com a tradição filo-
sófica da racionalidade científica. Pensar o homem era pré-requisito para pensar
as “coisas”, em especial os elementos da natureza. O que Comte propõe é a razão
inversa, nós somos elementos dentro de uma lógica universal, obedecemos a leis
naturais dentro da vida social, assim como a astronomia e a física já demonstraram
PENSADORES CLÁSSICOS I
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Augusto Comte
III
Por isso, para Comte, a eficiência deveria ser o determinante no trato das
questões sociais e na superação dos problemas que a vida em sociedade gera. A
eficiência da ciência que se fundamenta na objetividade não está só em detec-
tar os conflitos, os impasses para o desenvolvimento, mas também preveni-los
e gerar a capacidade de antecipar crises. Para isso, se faz necessário a adminis-
tração tecnocrata, ou seja, especialistas nas áreas de governança. Para as mais
diferentes especialidades que o Estado atua deve haver um técnico, ou um cien-
tista, para conduzi-la.
Muitos governos se instituíram como voltados a este propósito. Na histó-
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ria brasileira, o princípio do positivismo inspirou principalmente os militares,
em especial do Exército. Crentes em um governo fundado na eficiência e na
meritocracia, os militares tomaram o poder diversas vezes na defesa de uma
modernização do Brasil por meio das teses positivas. Mesmo a Proclamação da
República (1889), feita pelos militares, foi inspirada na purificação do regime,
na moralização do Estado e na eficiência da máquina pública, ou seja, nas teses
positivistas. O lema expresso na bandeira brasileira é inspirado nas teses de
Comte: “Ordem e Progresso”. A ordem científica promove o progresso humano.
O método defendido por Comte sustenta-se nos mesmos critérios das ciên-
cias naturais. Para ele, o pesquisador dos fenômenos sociais deve se postar diante
de seu objeto da mesma forma que o físico, químico ou biólogo. Deve-se ater
aos fatos observáveis, mensuráveis e que necessitam ser comparados e classifica-
dos. A objetividade é um critério fundamental para o cientista social positivista.
Outro aspecto importante do método positivo e, costumeiramente, gera
polêmica, é sobre a neutralidade científica. Ou seja, que o pesquisador não
pode se deixar envolver pelos valores subjetivos, teológicos ou abstratos, que
deturpem a análise do fenômeno ou que lhe imponha um julgamento prévio. A
objetividade está aí ligada diretamente à neutralidade. Se ativer exclusivamente
aos fatos observáveis, passíveis de mensuração, de proporcionalidade e de cor-
relação objetiva com outros fenômenos a ele relacionados pela ligação direta e
objetiva, o pesquisador atingirá a verdade. Um exemplo a ser considerado aqui é
a prática do homicídio, por mais que haja repulsa moral a sua prática, ele existe
ao longo da história. Uma constante social. Segundo Enzensberger (1995), “os
animais lutam, mas não fazem guerra. O homem é o único primata que planeja
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Augusto Comte
III
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Um dos princípios fundamentais defendidos por Comte é a “lei dos três está-
gios”. Nela, o autor busca a compreensão do desenvolvimento social mediante
a presença do conhecimento científico na vida social. Como a ciência está pre-
sente nas relações entre o homem e as instituições que servem de orientação para
a ordem social. Também podemos considerar a própria explicação do homem
sobre a natureza e os elementos que atingem diretamente sua relação com as
leis naturais.
Por isso que, anteriormente, as leis naturais desvendadas nas teses de Galileu
e Bacon são elogiadas por Comte como uma conquista importante na busca de
compreender as leis universais e orientar o homem para o conhecimento cientí-
fico moderno, separando a ciência da filosofia. Esta maturidade do pensamento,
para ele, atingiu outros campos de conhecimento e hoje já estaria em seu grau
satisfatório para ser usada na análise do desenvolvimento social humano.
Mas quais seriam estes estágios de desenvolvimento? O primeiro é o estado
teológico, aquele em que os fenômenos naturais só podem ser compreendidos
com a crença em um elemento divino que oriente a vida dos homens e lhe pro-
mova as condições nas quais ele está inserido. Logo, o conhecimento que temos
da vida e das coisas que nos cercam é considerado, neste estágio de desen-
volvimento, como superficiais. Permite ao homem uma verdade carregada de
princípios sustentáveis apenas se admitirmos a existência de uma entidade que
estaria acima da capacidade de compreensão humana. Esta entidade seria o ver-
dadeiro condutor da vida.
O segundo estágio é o da abstração. Este, para Comte, desempenha o papel
PENSADORES CLÁSSICOS I
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de passagem do estágio teológico para o físico, que veremos logo mais. Nele o
homem rompe com as explicações teológicas e estabelece uma relação racional
com o mundo. Tenta entendê-lo dentro de categorias lógicas e, de certa forma,
capaz de ser analisada pela cadeia de fenômenos observáveis, mas apenas de
forma superficial, ainda sem uma comprovação empírica e que siga a leis pre-
viamente estabelecidas pela observação.
O pensamento abstrato é resultado, ao mesmo tempo, das condições de
desenvolvimento da racionalidade científica fundada em leis naturais. Os dados
observáveis vêm daquilo que existe enquanto fenômeno, mas a compreensão de
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sua essência ainda não é entendida desta forma pelo pensamento abstrato. As
regras do conhecimento não estão estabelecidas a partir das leis observáveis e nela
se sustentam. Há leis naturais que regem os fenômenos para Comte, elas devem
ser os elementos que conduzem a observação. Contudo, as leis naturais resultam
da pesquisa constante de comprovação de sua existência, como as leis da Física
e da Química. Um avanço neste sentido só foi possível na sociedade atual. Nela,
o pensador considera que a maturidade atingida pela ciência já permite utili-
zar os métodos das ciências naturais para compreender os fenômenos sociais.
Por isso a compreensão sobre os fenômenos físicos, fundamentais para con-
solidar o desenvolvimento da ciência. Ele já atingiu todos os níveis necessários
nos demais campos dos conhecimentos, segundo Comte. Já se alcançou a matu-
ridade do pensamento na Astronomia, Física, Química e Biologia (nas ciências
naturais de uma forma geral), agora, o próximo passo, será o amadurecimento
dos demais campos do conhecimento. Logo, para ele, não só a Sociologia seria
o resultado do avanço das ciências naturais, mas também a economia, política
e, até mesmo, a ética poderiam ser conduzidas pelos mesmos critérios das ciên-
cias naturais.
Diante desta maturidade do pensamento físico, da possibilidade de um
estágio superior da organização da vida social, a sociedade poderia atingir um
progresso nunca visto antes. Este progresso resultaria de uma harmonia esta-
belecida entre os diferentes órgãos (funções) sociais. Integrados e na busca de
um mesmo sentido de ação, os organismos sociais resultariam então em uma
submissão ao órgão maior, o corpo social. Quem seria o condutor no sentido
de integrar e dar eficiência a sociedade seria o Estado. Este, administrado por
Augusto Comte
III
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sador francês. Mas não se pode negar a importância que tiveram as primeiras
bases de análise de Comte. Elas permitiram uma busca de delimitar um campo de
atuação para uma ciência que tivesse como foco a vida social e seus fenômenos.
6 Nascido em Épinal, na Lorena, território na fronteira com a Alemanha e que será objeto de discórdia entre
franceses e germânicos, no século XIX e que levou a Primeira Guerra Mundial, Durkheim chegou a viver
na Alemanha durante sua juventude, mas foi na França que desenvolveu suas teses. Ele é considerado o
fundador da “escola francesa de sociologia”. Uma contradição na vida do pensador é sua relação com a
religiosidade, um dos seus objetos de pesquisa. Vindo de uma família de religiosidade judaica, Durkheim
não seguiu os princípios religiosos e submeteu à instituição a condição de fenômeno social e por ela
influenciada. Sua vida acadêmica foi na Escola Superior Normal, lá teve contato com as obras de Augusto
Comte e Hebert Spencer. Foi desta influência que vem o caráter geral de suas teses, sempre associando
a sociologia aos métodos das ciências naturais. Entre suas principais obras está a “Divisão do Trabalho
Social”; “O Suicídio”; “As regras do método sociológico” e “Educação e Sociologia”. Em 15 de novembro de
1917 o pensador francês morreu. Sua morte também está associada à depressão com a morte de um dos
filhos no campo de batalha, durante a Primeira Guerra Mundial (1914 a 1918).
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uma observação objetiva dos fenômenos sociais, podemos compreender os ele-
mentos que influenciam a sua condição. Para Dukheim, os fenômenos sociais
são uma condição coletiva que leva em consideração a coação e coesão social
dentro da condição solidária em que se realiza.
O que é importante definir neste momento é o que se define por “solidarie-
dade”. Ela é a condição em que os fenômenos ocorrem, ou seja, a cumplicidade
entre os agentes que proporcionam a existência dos fenômenos. O que não quer
aqui dizer que aqueles que contribuem para a realização destes fenômenos estão
conscientes do ato que praticam. Se pensarmos a educação, os elementos que
contribuem para que ela ocorra, nem todos têm a dimensão de que sua ação vai
se refletir na condição de educar.
As condições que se realizam a educação está nos fatos que interligados,
de alguma forma, vão gerar os fatores que permitem a educação ocorrer. Logo,
o ambiente de educar e os condicionantes da educação não são apenas os seus
agentes diretos (alunos, escola, professores, funcionários, currículo escolar etc.).
Muito mais que isso, a educação é resultado de uma complexidade social mais
intensa e ampla. Uma relação que vai além dos muros da escola, envolve a cons-
trução “solidária” de todos os elementos em que ela participa. Os seres humanos
que convivem dentro do ambiente escolar são resultado de outros fenômenos
que os produzem além do dia a dia de sala de aula.
Um aluno é filho ou pai, é jovem ou idoso, é casado ou solteiro, trabalha ou
não, se locomove mediante os meios de transportes dos mais variados. Todos
estes fatores, e muito o mais, os quais seriam impossíveis relacioná-los aqui, con-
tribui para o entendimento da educação como um fenômeno social. Podemos
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As formas de solidariedade
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tividade. Podemos considerar que a sociedade constrói e determina a condição
individual. O homem é uma concessão social.
Durkheim procura esclarecer que há uma diferença fundamental entre o
objeto de estudo da sociologia que é o fato social e a psicologia, esta voltada a
entender o comportamento individual. Durkheim estabelece um parâmetro para
diferenciar os dois campos de conhecimento:
A proposição que se apresenta os fenômenos sociais como exteriores
aos indivíduos não foi menos vivamente discutida do que a precedente.
Já nos concedem hoje, com assaz boa vontade, a existência de certo grau
de heterogeneidade entre os fatos da vida individual e os da vida cole-
tiva; pode-se mesmo dizer que um acordo, se não unânime, pelo menos
muito geral, está nesse ponto em vias de se conseguir. Não existem
mais quase sociólogos que neguem à Sociologia toda e qualquer espe-
cificidade. Mas, porque a sociedade é composta de indivíduos, parece
ao senso comum que a vida social não pode ter outro substrato senão a
consciência individual; caso contrário, como que ficaria no ar, planando
no vácuo.
PENSADORES CLÁSSICOS I
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2) A sociedade não é vista sob o mesmo aspecto nos dois casos. No pri-
meiro, o que chamamos por esse nome é um conjunto mais ou menos
organizado de crenças e sentimentos comuns a todos os membros do
grupo: o tipo coletivo. No segundo caso, ao contrário, a sociedade na
qual somos solidários é um sistema de funções diferentes e especiais,
que unem relações definidas. Essas duas sociedades são apenas uma.
São duas faces de uma única e mesma realidade, mas nem por isso têm
menos necessidade de ser distinguidos (DURKHEIM, 2002, p.27).
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a todas as outras condições e instituições que a sociedade estabelece. A simpli-
cidade das relações condiciona o homem para uma vida particular em sintonia
constante com o interesse coletivo. O que uma mulher faz em uma coletividade
primitiva todas as outras fazem. Assim também os homens.
Nestas sociedades o pai é o chefe de família, também o líder religioso, o
orientador para a vida do trabalho, para a vida moral e sexual. Há uma repro-
dução constante das atividades que se simplificam em uma conduta única. Um
homem e uma mulher reproduzem em sua vida praticamente todas as funções
coletivas em sua vida privada. Se compararmos com nossa sociedade, nós não
produzimos em nossas vidas as funções vitais de nossa coletividade. Seria impos-
sível ser, ao mesmo tempo, o professor, o médico, o educador, o líder religioso,
o juiz, o policial, ser pai, o soldado etc.
Em nossa sociedade as atividades que nos sustentam estão divididas e não
reproduzimos em nossa vida os papéis necessários de nossa própria existência.
Não seria capaz de quantificar os indivíduos que participaram da produção do
computador que uso agora para poder produzir este livro. Talvez um número bem
maior que uma cidade de média proporção. Se pensar as condições que o fazem
ser usado neste momento, a energia elétrica, a mesa e cadeira que me servem
de suporte para este trabalho, os livros, a lâmpada, canetas, papel, a impressora,
enfim, uma imensidão de elementos que produzem diariamente a existência de
outros tantos. Por isso, nossa sociedade é orgânica, diferente das sociedades pri-
mitivas onde predomina a solidariedade mecânica.
Mas a esta dinâmica das sociedades, solidárias mecânicas e orgânicas tem
outros ingredientes a acrescentar, a coesão e coação. Unidade e condicionamento.
PENSADORES CLÁSSICOS I
102 - 103
Uma relação vital na formação do indivíduo dentro do corpo social para que
as funções necessárias à vida coletiva sejam produzidas. Nela se estabelece a
necessidade do todo e a de cada um. Em condições diferentes e, muitas vezes,
aparentemente antagônicas.
Para que você possa entender melhor como estes elementos se dão e o que
eles significam a coesão e a coação, podemos esclarecer que a coesão implica na
unidade de ação de diversos agentes em um mesmo sentido. Imagine o quanto
uma mesa tem uma matéria densa, o quanto é difícil romper sua unidade. Quebrar
uma mesa requer um grau elevado de força. Logo, se formos pensar o porquê
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escalonados moralmente e devem ser estimulados para todos os componentes
da sociedade. Estes comportamentos, valores, são passíveis de transformação e
podem mudar seu sentido. Mas há valores que devem ser preservados sob pena
de colocar a sociedade em risco. O trabalho, como falamos, é um deles.
Em nossa quarta unidade iremos discutir alguns temas polêmicos na socie-
dade atual. Um deles é a família. O quanto ela está sendo transformada pela
organização social. Transformações no trabalho, na emancipação da mulher, no
desenvolvimento da comunicação e nos
meios de relacionamento entre os indi-
víduos, o desenvolvimento tecnológico,
enfim, um número imenso de mudan-
ças que atingem a ordem familiar. Nós
iremos discutir sobre as transformações
que ela passa e perceber que está surgindo
diversos modelos de composição familiar
além da chamada família tradicional. Esta
mudança pode ser entendida, pela ótica
©photos
PENSADORES CLÁSSICOS I
104 - 105
Anomia e patologia
Logo, o que temos que levar em conta neste momento, sobre anomia e a
patologia é a condição em que os dois elementos se dão em uma determinada
sociedade. Determinados fenômenos são naturais a determinados momen-
tos e tendem a se acomodar ao longo do tempo e desaparecer dentro da ordem
social ou estabelecer um novo comportamento, a este se chama de anomia. Ela
pode ser um fenômeno de transição ou só existir na condição de passagem para
outro estágio da vida social. Se pensarmos que certas condições tendem a pro-
mover um ambiente favorável a um comportamento anormal, temos então uma
patologia, um fator de desordem temporário. Um exemplo são mães que tem
depressão pós-parto e muitas vezes cometem o infanticídio, ou seja, matam os
próprios filhos. Esta é uma anomia, uma condição temporária que foge ao con-
trole da própria mãe.
Em momentos de revolução uma sociedade apresenta comportamentos que
fogem à normalidade. A desordem se estabelece pela falta de uma regulagem den-
tro da ordem social onde as diferentes funções que a sociedade necessita para sua
existência. As condições sociais neste ambiente de transição acabam por propi-
ciar, por exemplo, ações de violência ou de degradação moral. Não é por acaso
que se desenvolveu o alcoolismo e o homicídio durante a Revolução Industrial.
Logo, a anomia não é em si um problema a ser resolvido como uma ameaça
à sociedade, mas uma condição de sua reordenação seja de todo o corpo social
ou em alguma de suas partes. As mudanças são constantes e quando ela ocorre
em determinados pontos da sociedade pode promover uma acomodação que
envolva uma grande parte do corpo social. Logo, vai se estender para diversas
instituições até se estabilizar.
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lecida, com normas organizadas e que atendem a determinada condição social,
mas que apresente comportamento fora da normalidade. Este é um problema a
ser considerado como nocivo à sociedade. Se propagado em determinada dimen-
são pode desestabilizar a ordem e promover uma série de outros fenômenos
gerando, em cadeia, um grave problema social.
Se for considerar em nossos dias a violência promovida pelo tráfico de dro-
gas, o crime organizado, e sua capacidade de interferência na vida social, podem
considerar que ele gera uma série de patologias. Uma delas ocorreu em novembro
de 2012, quando uma série ações ligadas ao crime organizado começou a vingar
traficantes mortos, matando policiais, civis e promovendo ações de depredação
em transportes coletivos principalmente. Estas ações alteram, em cadeia, toda
a ordem social. Um bairro deixa de abrir as portas do comércio por causa de
um tiroteio, trabalhadores não chegam por causa de um incêndio no transporte
coletivo. Em cadeia os comportamentos nocivos coagem outros e desestabiliza
o funcionamento da ordem social.
Muitas vezes, confundimos a anomia com a patologia por apresentarem o
mesmo comportamento, mas elas têm funções distintas dentro do corpo social.
Um dos comportamentos que é considerado tanto uma anomia ou patologia
é o suicídio. Ele pode significar o reforço de um comportamento necessário,
uma falta de acomodação de um determinado segmento ou, até mesmo, subs-
trato social7. Já, em outros momentos, e em determinadas sociedades o suicídio
7 O substrato social é elemento importante dentro do corpo social. Podem ser considerados substratos os
comportamentos vitais para o funcionamento da sociedade e do qual se organizam as partes determi-
nantes da sociedade. Se considerarmos o trabalho e toda a cadeia econômica estamos falando do substrato
social. A importância de um fato social está na sua ação de coação sobre os demais fenômenos e a coesão
que ele promove.
PENSADORES CLÁSSICOS I
106 - 107
A consolidação de Durkheim
Com o pensador francês, fundador da escola francesa de sociologia, a análise
da sociedade como um objeto de estudo da ciência acadêmica foi reconhe-
cido. A capacidade de compreensão do mecanismo social e a influência que isto
8 Um exemplo que pode nos ajudar a entender o suicídio dentro de um contexto de estímulo a ordem social
é o Japão. Após reprovarem nas provas do que seria o vestibular, o que só pode ser feito uma única vez,
jovens não suportam a pressão e cometem suicídio. Esta prática é, em uma análise sociológica, um dos
fatores que estimula a educação e a dedicação dos jovens para passarem no vestibular. Também demonstra
a importância do estudo, da educação, para se garantir o futuro social. Lembrando sempre que por mais
que haja uma condenação moral do fato, o que estamos analisando aqui é a sua função dentro da ordem,
de forma objetiva, sem qualquer valor que possa deturpar a função dos fatos dentro do corpo social.
Reprodução proibida. Art. 184 do Código Penal e Lei 9.610 de 19 de fevereiro de 1998.
ção da sociedade naquilo que ela tem de mais elementar, a divisão do trabalho
social. Para ele, se a divisão de funções separou o homem da relação direta com
a sociedade, a dependência que se construiu entre as diversas partes do corpo
social deve ser fator de aproximação consciente e de preservação da unidade por
meio do respeito as mais variadas profissões.
Considerações Finais
PENSADORES CLÁSSICOS I
108 - 109
Considerações Finais
O suicídio foi um dos objetos de estudo de Émilie Durkheim. O pensador francês consi-
derava que o fenômeno era um sinal de desagregação dos elementos que se autoexter-
minavam em relação ao corpo social. Para ele existiam diversas formas de suicídio. Aqui,
a reportagem da Agência Brasil apresenta a preocupação com um grande número de
suicídios, principalmente em idosos. Uma questão para se refletir é: “Qual é o fator que
leva ao suicídio no caso apresentado nesta reportagem?”.
que antes traziam prazer, estado emocional to-socorro ele vai pra casa. Nada é feito”,
instável e conversas sobre a morte podem explica.
ser sinais de que algo está errado e de que
a pessoa com esses sinais pode, num futuro O Ministério da Saúde foi procurado
próximo, cometer suicídio. De acordo a psi- pela Agência Brasil em duas oportunida-
quiatra, diante dessas evidências, pessoas des para comentar o tema, mas a assessoria
mais próximas devem procurar profissio- de imprensa não tinha informação sobre o
nais especializados no assunto. desenvolvimento de ações previstas pelas
Diretrizes Nacionais para Prevenção do
Outra atitude a ser tomada na prevenção Suicídio de 2006. De acordo com a porta-
do suicídio, de acordo com Alexandrina, ria que estabelece as diretrizes, a Secretaria
seriam programas de treinamento das pes- de Atenção à Saúde do Ministério da Saúde
soas que trabalham nas emergências e nos teria atribuição de regulamentar o docu-
serviços de qualidade mental, compostos mento em 120 dias.
por psicólogos, psiquiatras e terapeutas
de família. Entre as determinações do documento, está
a de desenvolver estratégicas de informa-
”Quando há uma tentativa [de suicídio], a ção, de comunicação e de sensibilização da
pessoa vai para um serviço de emergência. sociedade “de que o suicídio é um problema
Nele, não há pessoas qualificadas para o de saúde pública que pode ser prevenido”.
tratamento. O primeiro tratamento médico- Página da Estratégia Nacional de Prevenção
cirúrgico é feito como se fosse um trauma do Suicídio do Ministério da Saúde prevê
qualquer. Mas, dali, o paciente precisaria a elaboração do Plano Nacional para Pre-
de um encaminhamento para internação, venção do Suicídio e do Plano Plurianual
para um psiquiatra ou psicólogo. Do pron- 2008-2011.
Edição: Davi Oliveira//Matéria alterada para correção de informação no primeiro parágrafo –
a psiquiatra Alexandrina Meleiro não é integrante do Centro de Valorização da Vida (CVV).
1. Há uma relação direta entre o pensamento de Comte e Durkheim. Os
dois pensadores franceses sustentam as bases de seu pensamento nas
ciências naturais. Para Comte as ciências naturais deram as bases para
o aparecimento da sociologia, chamada de “físico-social”. Para ele, há
uma maturidade social que permite o aparecimento da sociologia na
sociedade ocidental. Em uma escala da evolução do pensamento ele
faz uma linha evolutiva. Qual é esta linha evolutiva?
2. Durkheim considera que a sociedade se estabelece em torno de uma
relação solidária. Esta solidariedade tem uma relação direta com a
organização da vida, com a produção social. Para ele, dois tipos de
solidariedade se encontram dentro do corpo social. Uma é típica das
sociedades primitivas, a outra é fruto de sociedades mais complexas.
Defina as duas formas de solidariedade e estabeleça as diferenças
entre elas.
112 - 113
Material Complementar
Aqui Gabriel Cohn dá uma apresentação das teses de Durkheim. O papel da educação
e o que os fenômenos sociais apresentam. Neste trabalho uma discussão sobre os
valores que se elevam à sociedade.
<http://www.youtube.com/watch?v=LJENpHfaS_k>.
Material Complementar
Professor Me. Gilson Aguiar
IV
UNIDADE
PENSADORES CLÁSSICOS II
Objetivos de Aprendizagem
■■ Entender a crítica ao capitalismo feita pelo materialismo histórico e
dialético.
■■ Estabelecer a relação entre a classe dominante e o Estado para o
materialismo histórico.
■■ Entender a lógica dos modelos de ação social em Weber e as
categorias destes modelos.
■■ Compreender o desenvolvimento da economia em relação à ética
religiosa em Max Weber.
Plano de Estudo
A seguir, apresentam-se os tópicos que você estudará nesta unidade:
■■ O materialismo histórico e dialético
■■ A questão da mercadoria
■■ A construção dos modelos de ação social
■■ Os modelos ideais de ação
116 - 117
Introdução
A crítica ao capitalismo teve nas teses de Karl Marx a sua principal expressão.
Construída ao longo do século XIX, quando o processo revolucionário capita-
lista ainda se encontrava em fase de consolidação, Marx desenvolveu uma análise
da política econômica burguesa. Por meio dela analisou as relações sociais vin-
culadas à economia capitalista e que desenvolvia a teoria socialista.
O pensador alemão foi um marco na defesa da implantação do socialismo
científico, o qual considerava que se realizaria a partir do momento em que a
Reprodução proibida. Art. 184 do Código Penal e Lei 9.610 de 19 de fevereiro de 1998.
Introdução
IV
mas também pelo sentido ético que os indivíduos atribuem às atividades pro-
dutivas. O conceito de trabalho, sua associação com a religiosidade cristã, são
alguns dos elementos que permitem a Weber darem um enfoque significativo
na busca de entender o fenômeno social.
Reprodução proibida. Art. 184 do Código Penal e Lei 9.610 de 19 de fevereiro de 1998.
A crítica ao capitalismo é a característica mais forte
do alemão Karl Marx. Ele foi um herdeiro da escola
idealista que teve em Hegel sua maior expressão.
Marx não poupou a sociedade capitalista de sua
forma irônica de tratar temas caros ao interesse do
liberalismo. Em outros momentos ele enfatizou
as contradições que a sociedade industrial apre-
sentou em seu tempo e ainda hoje expressa. De
suas teses, e por ele mesmo, nasceu a defesa do
socialismo científico e a idealização da sociedade ©wikipedia
PENSADORES CLÁSSICOS II
118 - 119
Reprodução proibida. Art. 184 do Código Penal e Lei 9.610 de 19 de fevereiro de 1998.
reram na Europa com o advento das práticas mercantis. Neste contexto, a classe
burguesa organizou o seu projeto de sociedade e estabeleceu o seu poder sobre a
economia e o Estado. A burguesia se constituiu como classe dominante na socie-
dade capitalista após tomar o poder e destituir o sistema feudal. As teses liberais,
para Marx, seriam a expressão ideológica da burguesia, seu instrumento de expli-
cação do mundo. Esta ideologia foi imposta aos demais membros da sociedade
e serve para legitimar os interesses da dominação.
O proletário deve se libertar desta dominação ideológica, mas para isto, deve
compreender cientificamente como a sociedade capitalista se sustenta. Quais são
as condições em que o capitalismo constrói a vida humana, as formas de domi-
nação e, principalmente, de exploração que isto implica. Por isso, a necessidade
de entender o modo de produção da vida material no capitalismo e desvendar
as condições em que se dá o acesso dos seres humanos as suas necessidades. É
aqui que se destaca o papel da mercadoria, a condição única em que se adqui-
rem as necessidades humanas. Tudo o que necessitamos só pode chegar até nós
em forma de mercadoria na sociedade capitalista.
Em sua maior obra, “O Capital”, Marx faz uma crítica à economia política e
desvenda as condições em que a sociedade capitalista se organiza. Ele parte da
mercadoria para entender a relação dos homens com a natureza, a transforma-
ção desta nos bens necessários para a produção de outros bens ou para atender
as necessidades humanas. De um alimento a uma máquina industrial, a mer-
cadoria é a condição em que os dois objetos se transformam e cumprem o seu
destino de atender a vida material e imaterial1 do homem.
1 Quando falamos de vida imaterial estamos nos referindo as coisas que temos como serviços e habilidades
PENSADORES CLÁSSICOS II
120 - 121
necessárias para tender a necessidades específicas de nossas vidas. A educação, por exemplo, é um serviço
prestado tendo como mercadoria a imaterialidade muitas vezes. Não podemos comprar o conhecimento
em forma material. O saber não é um produto que se adquire na prateleira de mercado, são habilidades
que se constroem em relações específicas, desenvolvidas em nossa sociedade por meio da instituciona-
lização da escola. Os centros de educação, estes materializados, só tem sentido cumprindo a função de
educar. Assim, educar é imaterial, mas a condição que para isto se realize necessita de uma materialidade
gerada dentro dos interesses estabelecidos pela burguesia, a escola e a mercadoria que produz e possibilita
o consumo.
Reprodução proibida. Art. 184 do Código Penal e Lei 9.610 de 19 de fevereiro de 1998.
destina a satisfazer necessidades humanas, com suas propriedades, quer
sob o ângulo de que só adquire essas propriedades em consequência
do trabalho humano. É evidente que o ser humano, por sua atividade,
modifica do modo que lhe é útil a forma dos elementos naturais. Mo-
difica, por exemplo, a forma da madeira, quando dela faz uma mesa.
Não obstante a mesa ainda é madeira, coisa prosaica, material. Mas,
logo que se revela mercadoria, transforma-se em algo ao mesmo tempo
perceptível e impalpável. Além de estar com os pés no chão, firma sua
posição perante outras mercadorias e expandem as idéias fixas de sua
cabeça de madeira, fenômeno mais fantástico do que se dançasse por
iniciativa própria (MARX, 2002, pp. 46 e 56-7).
Esta forma como a mercadoria que Marx expõe é o fetiche. Ele se constitui como
o valor estabelecido pela burguesia para o produto, onde a mercadoria encobre
a condição material, real, de produção e passa a ser propagada como fruto de
uma idealização do homem. A vida se justifica da imagem fantástica dos objetos
produzidos pela sociedade industrial. Este preenchimento que a mesa produz
com seu encantamento em forma de mercadoria, um objeto que só falta “dançar
por conta própria”, preenche o vazio entre as condições de produção e a consci-
ência do homem. Um ser humano que perdeu a compreensão das relações que
produzem sua vida.
Se considerarmos as condições em que vivemos na sociedade atual, levando-
se em consideração as teses de Marx, o fetiche está propagado. Nossa relação
com os objetos de consumo são marcadas por um mundo de fantasias, mais
irreal que um “conto de fadas”. Tudo porque a divisão do trabalho se ampliou e se
transformou em uma cadeia mundial de produção. O bem de consumo pronto,
ao alcance de nossas mãos, melhor, de nosso bolso, próximo fisicamente, está
PENSADORES CLÁSSICOS II
122 - 123
Reprodução proibida. Art. 184 do Código Penal e Lei 9.610 de 19 de fevereiro de 1998.
Se a mercadoria atende as necessidades da vida humana, então podemos
medir o valor da existência de um indivíduo por meio da mercadoria e da sua
capacidade de adquiri-la. Como isto pode ocorrer? É só entendermos que para
adquirirmos as condições necessárias para suprir as nossas necessidades temos
que consumir mercadorias, logo, o nosso salário é a proporção de vida que pode-
mos adquirir. O salário é, então, a proporção mensal que a existência humana
pode merecer.
Mas é bom fundamentar que o salário nada mais é que a quantia paga pela
venda de nosso trabalho. Se vendemos o nosso trabalho por um determinado
valor, o que determina o quanto vale o trabalho? Se formos entender o mercado de
trabalho, ele vale a proporção de riqueza que é capaz de produzir e a quantidade
de pessoas habilitadas para realizá-lo. Quanto mais indivíduos aptos à realização
de uma determinada tarefa, mais baixo será o salário – lei da oferta e procura.
Para poder obter uma maior produtividade sem depender da força de tra-
balho, a classe burguesa desenvolve tecnicamente os meios de produção. Desta
forma, aprimorando o maquinário industrial, a burguesia reduz a necessidade
de trabalhadores e, por consequência, o número de operários dos quais depende.
Os que são menos necessários como força de trabalho tendem a ganhar cada vez
menos, ou serem excluídos da condição de força produtiva3.
Mas o cálculo do salário do trabalhador também deve ser considerado no
valor da mercadoria. O preço do produto tem nele a quantia de trabalho exercida
PENSADORES CLÁSSICOS II
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Reprodução proibida. Art. 184 do Código Penal e Lei 9.610 de 19 de fevereiro de 1998.
estes que receberam o financiamento burguês de campanha, passam a defender
a busca de lucro das empresas patrocinadoras da sua campanha4.
Na educação esta dependência ocorre da mesma forma, segundo as teses de
Marx, em qualquer instituição pública a finalidade é a manutenção da ordem
social e a garantia de sua permanência. Para que isto ocorra, atendendo aos inte-
resses da classe dominante, o Estado promove práticas que legitimem as relações
de mercado, ou seja, o consumo da mercadoria, a preparação da mão de obra
para se submeter à economia burguesa, mas também à idolatria, ao sucesso dos
personagens que a burguesia se espelha. Os ídolos da história, os grandes cien-
tistas, o importante literário, todos são fruto de sua competência e nunca do
meio onde vivem e das condições sociais que os geraram. Para Marx, a burgue-
sia esconde por trás da idolatria ao líder, ao personagem de destaque, todas as
relações sociais de produção que o geraram. Fantasiosamente, tudo se resume
na competência de um homem só.
Esta lógica que estabelecemos anteriormente serve também para entendermos
a cultura propagada pela burguesia. Ela defende a competência particular acima
da coletividade. As condições humanas que são geradas por toda uma relação de
produção em que se apresenta a desigualdade entre os homens é encoberta pela
personificação, pela idolatria a particularidade, pelo heroísmo egocêntrico e auto-
nomista estabelecido nas obras típicas do capitalismo, segundo as teses de Marx.
A ciência deve fazer a crítica
4 Vale lembrar que no Brasil um dos setores que apoia por meio de financiamento de campanha com mais
peso de “investimento” são as empreiteiras, ou seja, as construtoras. O poder público é o maior consum-
idor da construção civil. Obras de grande envergadura são hoje disputadas por empresas da construção
civil. Contratos de longa duração que permitem uma arrecadação constante de lucratividade gerando uma
dependência do Estado à empresa capitalista.
PENSADORES CLÁSSICOS II
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Reprodução proibida. Art. 184 do Código Penal e Lei 9.610 de 19 de fevereiro de 1998.
Homem de uma influência política de respeito na Alemanha de sua épo-
ca, Weber tentou a carreira política e um cargo no alto escalão do gover-
no alemão, mas suas posturas de crítica ao Kaiser Guilherme II acabaram
por condenar suas intenções. Contudo, após a Primeira Guerra Mundial ele
foi convidado a ser um dos representantes alemães no Congresso de Viena
(1919) que selou a paz na Europa após o conflito. Ele também foi responsá-
vel pela elaboração da Constituição de Weimar, instalada na Alemanha após
a Primeira Guerra Mundial.
Quando estava fazendo estudos sobre as religiões em diversas civilizações
não europeias, ele acabou falecendo de gripe espanhola, com apenas 56
anos. Para quem era filho de uma família abastada e tinha uma boa condi-
ção econômica, morreu cedo.
De todos os teóricos que vimos até agora, Max Weber é o que ocasiona um sen-
tido importante de reflexão sobre as contradições humanas. Ele coloca uma
questão vital em sua obra: “Seria o homem um ser puramente racional e capaz
de direcionar sua vida pela razão?” Este é um tema central no trabalho do pensa-
dor alemão e um dos precursores do existencialismo. Weber representa o resgate
da individualidade não como conceito filosófico, mas como condição de aná-
lise social. Não significa que todos os indivíduos são um objeto de estudo da
sociologia, mas em cada um há o sentido que uma coletividade apresenta sobre
a vida social. Em cada um de nós há elementos que nos colocam na condição de
civilização e que se expressa em nossas ações. Somos ocidentais, e isso significa
PENSADORES CLÁSSICOS II
128 - 129
da história pode ser determinante para dar sentido a uma ação social. Um dos
exemplos que podemos estabelecer sobre este tema coloca Weber na crítica às
teses de Marx, da capacidade da consciência de si e para si.
Quando observamos o comportamento da classe operária alemão entre 1870
a 1914, período que vai da unificação do Estado nacional alemão a Primeira
Guerra Mundial, percebemos que foi também o momento em que Marx cons-
truiu suas teses e elas foram propagadas para a classe operária na Alemanha. Se
havia um operário que tinha tido contato com as teses marxistas era o trabalha-
dor germânico. Considerado por muitos adeptos do socialismo científico o mais
preparado para um posicionamento de crítica ao Estado capitalista e, por con-
sequência, engajado na proposta de uma sociedade comunista. Mas este mesmo
operário acabou sendo seduzido pelo nacionalismo que formou a Alemanha,
lutou pela sua formação em 1871.
Depois, quando o estado alemão iniciou sua política imperialista e procurou
estabelecer colônias e iniciar uma corrida armamentista na Europa, desafiando
o poder inglês, o operário alemão apoiou e se alistou. Ele foi a Primeira Guerra
Mundial (1914-1918). Ele perdeu o conflito e se engajou novamente em mais
uma guerra, a Segunda Guerra Mundial (1939-1945). Ou seja, por mais que a
guerra era considerada uma expressão do imperialismo capitalista, uma ação de
interesse da burguesia alemã, o proletário é mais germânico do que socialista.
Ele preferiu morrer pela Alemanha.
Por isso, diante deste exemplo, podemos começar a entender as teses de
Weber. Para ele, a racionalidade não significa uma ação consciente. Não existe
na ação social que promovemos um sentido lógico e objetivo exclusivamente.
Não quer dizer que todo o comportamento é irracional, não. Há uma intenção
racional de quem pratica determinado ato, mas nunca esta razão será pura para
quem pratica a ação. As relações que os homens estabelecem em sociedade têm
uma gama de intenções subjetivas, que são construídas em grau de importância
diferente para cada indivíduo, assim também, para cada coletividade.
Um indiano está mais apto a certos comportamentos por ter uma cultura
que o predispõe a isto. Há uma herança cultural que permite que certos tipos de
ação se potencializem em determinadas sociedades mais que outras. Usamos aqui
os indianos como exemplo, mas poderíamos nos referir a outros povos. Porém,
Reprodução proibida. Art. 184 do Código Penal e Lei 9.610 de 19 de fevereiro de 1998.
voltando à questão da Índia, se observar a paciência que os indianos têm em
ficarem horas na fila para assistirem uma sessão de cinema, podemos conside-
rar seu gosto pelos filmes, o que é óbvio, mas ao mesmo tempo o quanto eles se
sujeitam a esperar horas para assisti-los, o que só pode ser entendido pela sua
cultura contemplativa. Diante do desejo, a paciência para buscá-lo5. Não quer
dizer que eles sejam passivos, mas que para determinados fins é possível ter par-
cimônia, o que em determinadas sociedades seria impossível. Mesmo naquelas
que se gosta de uma produção cinematográfica.
Por isso, temos que considerar que para Weber não seria possível ter uma
análise puramente racional de um determinado fenômeno pela análise objetiva
dos fatos (Durkheim) ou pela consciência das relações racionais da economia,
da história da produção da vida material dominada por uma determinada classe
(Marx). Ao mesmo tempo em que não se podem desprezar os fatos sociais, eles
devem ser entendidos pelo sentido que os sujeitos, agentes da ação, dão a ela.
Este sentido não é de quem observa, do cientista, mas sim de quem é observado,
daquele que pratica o comportamento.
Se considerarmos a própria vida de Marx sob o olhar de Weber, o pensa-
dor socialista viveu a crítica à sociedade capitalista, passou por diversos países,
sua família viveu todas as consequências de ter que fugir e não ter condições
A independência da Índia é talvez um exemplo significativo na busca de entender as teses de Max Weber.
5
Liderada por Gandhi e Neru, o movimento de independência indiano se caracterizou por uma luta
pacífica, sem violência por parte da população indiana. Enquanto as tropas inglesas tentavam minar o
movimento de independência com ações de violência, o líder, Gandhi, pregava a “resistência pacífica”, não
reagir, mas, também, não obedecer. O movimento obteve sucesso, Gandhi se transformou em um ícone
mundial. Seu rosto aparece em camisetas e livros de autoajuda. Contudo, Gandhi só teve eficiência em
suas ideias porque é indiano e estava na Índia. Seria impossível reproduzir o mesmo movimento em outra
civilização e em outro momento. Talvez, a Índia de hoje não faria a mesma coisa.
PENSADORES CLÁSSICOS II
130 - 131
econômicas para se sustentar. Contudo, Marx fazia questão que suas filhas tives-
sem aulas de canto, poesia, piano como toda a jovem a aristocracia ou da burguesia
emergente. Marx era conservador em relação à vida amorosa de suas filhas, con-
trolava seus relacionamentos e influenciava a escolha de seus maridos. Marx é
um homem como pensador e outro como um ser que age dentro das relações
sociais. O que ele preservava em suas relações domésticas não serve para legiti-
mar seu pensamento. Não podemos desprezar as teses do materialismo histórico
e dialético, mas não podemos considerar que nelas está expresso o ser humano
Marx. É sobre esta condição humana que Max Weber se debruça em seus estudos.
Reprodução proibida. Art. 184 do Código Penal e Lei 9.610 de 19 de fevereiro de 1998.
Nas teses de Weber se destaca a teoria dos modelos de ação. Onde ele busca
uma compreensão dos sentidos das ações sociais pelos agentes que a praticam. Para
isso, ele considera que os modelos, valores subjetivos dados ao comportamento
social, são carregados de uma escala de valor. Uma cadeia de entendimentos e de
interesses que se elaboram subjetivamente e se expressa no comportamento. Por
isso, para ele, nem todo o comportamento praticado pelos indivíduos é social.
Só o é quando está direcionada a outra pessoa, envolve o interesse de reação de
outro ou busca uma resposta em outra pessoa. Esta pessoa com quem se rela-
ciona pode ser um conhecido, imediato, ou um ser construído, fictício, ou mesmo
um princípio a que se obedece, uma regra moral religiosa que se traduz em um
comportamento “ético” esperado.
Se não quero pecar não pratico “tal ato” por que temos as consequências no
“juízo final”. Este comportamento pode não ser ilegal, não ter qualquer tipo de
restrição jurídica e nem provocar uma reação social que o condene, mas mui-
tas pessoas não o praticam temendo uma suposta punição em uma “existência
pós-morte”. Este é um exemplo de um fato social inspirado em modelo. Nela, a
ética religiosa determina uma ação.
Os modelos, para Weber, são construídos nas relações sociais. Nelas somos
orientados pelas tradições das relações sociais que nos antecederam, as heran-
ças passadas. Onde os comportamentos e valores que nos identificam foram
construídos ao longo do tempo e passados pelas gerações. Esta herança se dá
nos ensinamentos religiosos, nas práticas do folclore, na educação de história,
nos valores passados no ambiente doméstico em que nossos pais reforçam valo-
res morais.
Reprodução proibida. Art. 184 do Código Penal e Lei 9.610 de 19 de fevereiro de 1998.
estabelece o sentido por meio do interesse de um resultado que virá depois da
ação praticada. Uma ação preventiva é, também, uma ação fundada no modelo
futuro. Um pai preocupado com seu filho pode abrir uma caderneta de poupança,
este é um exemplo de uma ação futura. Em algumas civilizações, já que falamos
do ato de poupar, a preocupação em prevenir uma possibilidade de crise pode
ter uma consequência direta em uma política econômica. Os japoneses têm, por
tradição, poupar. Logo, em alguns casos, aquecer a economia nipônica dá um
relativo trabalho, fazer os japoneses irem às compras não é uma tarefa fácil, já
que eles têm a tradição de economizar. No Brasil, pelo resultado do endivida-
mento das famílias brasileiras pelo crédito fácil, o modelo econômico é oposto.
Estes modelos se interagem dentro dos indivíduos, ao longo do tempo e
podem ganhar interpretações novas com as mudanças das condições presen-
tes. O que é uma tradição ligada a um ritual moral de responsabilidade pode
se associar apenas a comercialização de uma festa, um momento de êxtase sem
compromisso futuro. Se usarmos o casamento como um fenômeno social, sua
permanência com ritual de associação a união conjugal está perdendo importân-
cia. Hoje, mais de 50% dos casais, segundo dados do IBGE, do Censo de 2010,
não se casaram no civil ou religioso. Ou seja, a maioria dos casais não adota o
ritual do casamento, a cerimônia. Porém, as festas de casamento são cada vez
mais um espetáculo. Sua idolatria está na aparência requintada da cerimônia e
não na permanência da união. Se casar é uma festa, o casamento, para alguns,
é uma prisão.
Logo, muitos dos comportamentos que temos em nossa sociedade têm um
sentido diferente do que há décadas. O que antes poderia ser associado a um
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Reprodução proibida. Art. 184 do Código Penal e Lei 9.610 de 19 de fevereiro de 1998.
ação poderíamos deduzir a intenção de quem a pratica. Em uma sociedade
capitalista, na qual a economia exerce um papel fundamental em nossas vidas,
nosso comportamento com o dinheiro deveria ser racional lógico. Ele é apenas
um meio, o dinheiro, de atender as nossas necessidades. E se tenho necessidades
vitais para me manter e garantir a minha sobrevivência, eu devo fazer com que
o dinheiro cumpra esta função. Logo, deveria investir em atividades de qualifi-
cação ou aplicar em bens que me permitiram obter mais dinheiro para minha
segurança futura e melhora da minha qualidade de vida. Se não tenho qualifica-
ção e necessito melhorar minha condição de vida, posso investir em um curso
técnico ou superior e jamais utilizar de meu dinheiro para comprar um auto-
móvel diante desta necessidade racional e lógica.
Uma das preocupações que as famílias devem ter com o futuro de seus filhos
é a educação. Logo, o investimento em uma boa escola é uma ação racional
lógica. A consequência de investimento em educação não ocorre de imediato,
mas ao longo do tempo demonstra eficiência e gera resultados seguros. Segundo
dados na CNC (Confederação Nacional do Comércio), de 2006, as famílias que
são chamadas de emergentes (classe C) não tinham como preocupação vital a
educação dos filhos. Já, segundo o Ministério do Trabalho, em conjunto com a
Previdência e Educação, levantou que um em cada cinco jovens, entre 19 e 29
anos, não estão nem trabalhando ou estudando, é os chamados “nem-nem”. Em
um futuro próximo isto pode se transformar em um problema.
Se pensarmos no programa governamental Bolsa Família, um dos crité-
rios para receber o benefício é ter os filhos matriculados nas escolas e com a
vacinação em dia. Veja, eu tenho que associar um ato que deveria ser racional
PENSADORES CLÁSSICOS II
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lógico dos pais, cuidarem da saúde e educação dos filhos, a um valor econômico
para poder ter a ação necessária atendida. A racionalidade lógica não seria um
determinante neste caso. Contudo, o governo, quando associa a atitude de res-
ponsabilidade com a educação e saúde ao recebimento de recursos financeiros,
está agindo de forma racional lógica, quem executa a conduta, as famílias que
recebem o benefício, não. O Estado e as famílias se relacionam, mas com mode-
los de ação diferentes, um racional e o outro não.
A economia, por exemplo, é em sua essência racional lógica a fins. Como
falamos anteriormente, a aquisição de um determinado bem implica na obten-
Reprodução proibida. Art. 184 do Código Penal e Lei 9.610 de 19 de fevereiro de 1998.
Uma crença, um valor moral, um sentido emocional que exija um ritual asso-
ciado a um comportamento esperado. A racionalidade é uma exigência aparente
da forma como avaliamos o comportamento do outro, mas o valor a ela associado
pode ser um determinante para o comportamento que nossa busca de raciona-
lizar não consegue compreender de imediato, a não ser quando analisamos com
mais cuidado. Por isso, há uma associação de um determinado valor a um com-
portamento que se pratica. Uma necessidade de se cumprir um ritual para atingir
um benefício que nem sempre está denunciado diretamente ao comportamento.
Pelo senso comum, afirmamos que os alemães são orgulhosos, assim como
os japoneses. Comentamos do nacionalismo norte-americano e do bom humor
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com os japoneses quando aconteceu o tsunami em 2011. Assolado, o país preci-
sou agir rápido e teve que se organizar para superar problemas ocasionados pela
catástrofe. A procura de sobreviventes, a restauração da rede de energia, recu-
peração de estradas, tratamento de doentes e abastecimento de água e alimento
para a população, entre outras tantas necessidades. O mundo assistiu a orga-
nização da sociedade no dia a dia, sua capacidade de cooperar em momentos
críticos, esperar na fila para obter água, alimento, pegar um transporte coletivo,
abastecer um veículo, usar um telefone. Esta prática coletiva está além da racio-
nalidade, está ligada ao valor moral que atinge o conjunto social.
Esta condição que se estende por um número de indivíduos e que os iden-
tifica por um comportamento comum é que chamamos de valor associado. Os
japoneses foram racionais ao se comportarem de forma organizada, mas tam-
bém tinha um sentido comum de valor ao considerarem que esta prática levaria
ao restabelecimento de seu país, de sua nacionalidade que lhe é tão cara. A honra
é para algumas comunidades algo “caro”, que deve ser preservado e estar pre-
sente diante de situações em que aquilo que se deseja preservar está
ameaçado. Colocamos no início desta exposição sobre os
indianos e sua organização, o quanto eles se com-
portam em determinado momento associados
a um valor que não existiria em outra civi-
lização, é disto que estamos falando aqui,
neste parágrafo.
A economia tem em seu desenvol-
vimento inúmeros casos que podem nos
©shutterstock
PENSADORES CLÁSSICOS II
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durante sua vida de que o trabalho não é sinônimo de dignidade, este alguém é o
ex-escravo. Seus filhos puderam herdar este sentido e sofrer suas consequências,
na atualidade, se há uma herança é a da memória e da superficialidade da relação
da cor com o trabalho. Afinal, estamos vivendo a sociedade que nega a existência
do trabalho como condição para a obtenção de qualquer necessidade material6.
Logo, o trabalho é uma atividade racional, mas a dedicação a ele, ou a valo-
rização social de sua prática deve ser considerada em relação ao valor que ele
estabelece. Em um de seus trabalhos, “a ética protestante e o espírito capitalista”,
Max Weber analisa o trabalho de operárias protestantes, pietista que se concen-
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tram de forma singular em relação ao trabalho, quase não cometem acidentes,
se igualando às operárias conservadoras:
Uma imagem retrógrada da forma tradicional do trabalho é atualmente
apresentada muitas vezes por operárias, especialmente pelas que não
são casadas. [...] O contrário se dá geralmente e este não é um ponto
insignificante de acordo com a nossa visão, apenas com moças com uma
formação especificamente religiosa, em especial a pietista. Ouve-se fre-
quentemente, e confirma-o a investigação estatística, que de longe, as
melhores oportunidades de uma educação econômica são inegavel-
mente encontradas neste grupo. A capacidade de concentração mental,
tanto quanto o sentimento de obrigação absolutamente essencial para
com o próprio trabalho, estão aqui combinados com uma economia
estrita que calcula a possibilidade de altos vencimentos, um autocon-
trole e uma frugalidade que enormemente aumentam a capacidade de
produção (WEBER, 1980, p. 193).
PENSADORES CLÁSSICOS II
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Emocional
Reprodução proibida. Art. 184 do Código Penal e Lei 9.610 de 19 de fevereiro de 1998.
entre as duas guerras mundiais. Mas há a emotividade que pode levar a depres-
são e descrença na unidade. Em alguns países o sentimento de depressão gerou
comportamentos preocupantes. Se pensarmos na grande crise econômica durante
a quebra da Bolsa de Nova Iorque, em 1929, o número de suicídios cresceu
significativamente. Não podemos negar o sentimento de desespero que levou
uma parte dos suicidas a colocarem fim em suas vidas por terem perdido todo
o seu patrimônio. Em outros países, a falência não traria este desespero, prin-
cipalmente naqueles em que a oportunidade econômica não é vista com uma
condição para todos.
No extremo oposto da emotividade que leva ao suicídio vale descrever os
kamikazes na Segunda Guerra Mundial (1939-1945). Eles morriam pela pátria
em um sentimento de nacionalidade. A vida pela glória do japonês. No Brasil,
vale ressaltar, imigrantes japoneses não aceitaram a derrota na Segunda Guerra
Mundial e considerava uma desonra quem a admitisse. Uma série de ações de
vingança e luta entre os membros da comunidade nipônica demonstra o senti-
mento patriótico mesmo não vivendo no Japão.
Nas relações individuais, o modelo emotivo é facilmente percebido. Quantas
vezes não praticamos o sentimento de vingança ou por paixão promovemos
ações irracionais. Em diversos momentos é a emotividade que, junto com outros
7 O sentimento germanista acompanha a história alemã em diversos momentos. Entre eles o da unifi-
cação em 1871, chamado de II Reich. O orgulho germânico foi também o que levou a Primeira Guerra
Mundial (1914-1918) quando os germânicos consideravam que estava realizando o apogeu de sua glória, a
supremacia sobre o mundo. Contudo, a derrota na guerra levou ao extremo da indignação e humilhação.
Principalmente, se levarmos em consideração o acordo feito entre a Alemanha e as nações vencedoras no
Tratado de Versalhes. A Alemanha foi obrigada a passar recursos financeiros, territórios e ser desarmada,
além de ter sido considerada a única culpada pela guerra. O sentimento de revanche se propagou entre os
germânicos e acabou por gerar um ambiente favorável para a ascensão do nazismo.
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Tradição
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ria exportadora durante a primeira república, e o mando do proprietário de terra
remonte o período colonial, as oligarquias agrárias ainda continuam tendo uma
forte influência sobre o poder no país.
A tradição deve ser entendida como uma condição importante para que cer-
tos comportamentos se realizem e acabem por valorizar a prática necessária em
uma sociedade. Hábitos repetidos ao longo do tempo e que demonstram civili-
dade, acabam por valorizar uma relação estável. A preservação da democracia
como um ambiente político é uma racionalidade, mas também pode ser uma
expressão de tradição ao longo do tempo.
Considerações Finais
PENSADORES CLÁSSICOS II
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Considerações Finais
As piadas envolvendo afrodescendentes podem ser consideradas um ato de preconcei-
to? Para pesquisadores que levantaram o conteúdo de piadas que envolvem os negros
(pretos e mulatos) elas são uma expressão do preconceito, de uma desvalorização do
descendente afro. A questão do preconceito está ligada diretamente a discussão sobre
as cotas raciais, como ela pode superar o preconceito. Leia:
Isabela Vieira
“Quando a gente pensa em um negro bru- e tenham mais dificuldade para aprender.
tamonte, está associando o negro a um
tarado, a um cavalo, a um touro, ou seja, Em relação à personagem Adelaide, a Cen-
voltamos para a questão da animalização”, tral Globo de Comunicação informou que o
ressaltou. “Do outro lado, quando se remete humorístico “é notadamente uma obra de
à mulher negra, há ideia de lascividade, ficção, cuja criação artística está amparada
de promiscuidade. Tudo vinculado ao pro- na liberdade de expressão”. A nota acres-
cesso colonial, em que o dono do corpo era centa ainda que a personagem foi inspirada
quem escravizava”, acrescenta. na avó de seu intérprete e criador, o ator
Rodrigo Sant’anna.
Para o professor, por trás das piadas racistas
há uma intenção de buscar a “padroni- Disponível em: <http://agenciabrasil.ebc.
zação” do corpo, da beleza, por meio da com.br/noticia/2012-11-20/pesquisador-
valorização de um “ideal branco”, o que tem da-unesp-diz-que-piadas-racistas-refor-
impactos negativos, especialmente, entre cam-padrao-colonialista-e-estereotipos>.
as crianças negras. A tendência, explica o Acesso em: 10 dez. 2012.
pesquisador, é que elas se sintam inferiores
No Exame Nacional do Ensino Médio (ENEM), mais da metade dos inscritos se declara-
ram afrodescendentes. Uma demonstração de que a consciência afra está crescendo ou
a condição está sendo usada para uma entrada mais fácil nas universidades públicas.
Leia a reportagem abaixo e reflita:
Carolina Gonçalves
Brasília – Dos mais de 5,7 milhões de par- Nacional de Estudos e Pesquisas Educa-
ticipantes da edição deste ano do Exame cionais Anísio Teixeira (Inep), órgão do
Nacional do Ensino Médio (Enem), 2,4 Ministério da Educação (MEC) responsá-
milhões se declararam pardos; 694 mil, pre- vel pelo exame.
tos e 35 mil, indígenas. Os dados fazem
parte de balanço divulgado pelo Instituto A distribuição por raças é um dos recor-
tes previstos na Lei de Cotas, publicada há A receita de quem já foi beneficiado pelo
duas semanas. Os novos critérios terão de exame parece coincidir com as impressões
ser incluídos nas regras de seleção para de quem vai enfrentar a prova pela primeira
universidades públicas por meio do Enem. vez. Aluna do último ano do ensino médio
no Colégio Setor Oeste, escola pública de
A nova lei obriga instituições federais de Brasília, Hyasmin Stephanye Leite se pre-
ensino superior a destinar progressiva- para para a prova desde janeiro. “Busco
mente uma parte das vagas para estudantes métodos na internet, em apostilas. Tenho
que frequentaram todo o ensino médio em estudado três horas por dia. Poderia ser
escolas públicas. O objetivo do governo é mais, mas tenho inglês à tarde”, contou.
atingir o índice de 50% das vagas em quatro
anos. Um dos fatores a serem considerados Para Hyasmin, o colégio oferece a estru-
é a raça declarada pelo candidato. tura de que ela precisa. “Depende mais do
aluno do que da escola. Não podemos nos
As provas do Enem serão realizadas em 1,6 comparar a alunos de escolas particulares,
mil municípios de todo o país no próximo temos que nos comparar a nossa dedica-
fim de semana (3 e 4 de novembro). ção. Se você estuda, não é a escola que faz
diferença, é o aluno que faz”.
A estudante Fernanda Brito Félix, 19 anos,
conseguiu, no Enem de 2011, a vaga que Os números do Inep também revelam
buscava na Universidade de Brasília (UnB). que a maioria dos participantes do Enem
Mas o curso possível não era o sonhado. 2012, que tem recorde de inscrições e
Com o primeiro semestre de pedagogia participações confirmadas, é composta
garantido, a aluna decidiu participar, nova- por mulheres. As brasileiras respondem
mente, do Enem este ano, para tentar a por 59% das inscrições, com 3,4 milhões,
transferência para o curso de direito. enquanto os homens somam 2,3 milhões
(41%).
“Só estudei em escola pública e as esco-
las públicas não têm capacidade alguma O estado de São Paulo tem o maior número
de preparar um aluno para um vestibular de inscritos, com 932,4 mil, seguido de
de [universidade] federal”, disse Fernanda. Minas Gerais (653.074), da Bahia (421.731)
Para ela, o Enem “acaba sendo uma chance”, e do Rio de Janeiro (408.902).
mas há dificuldades como a falta de pre-
paro dos alunos no ensino médio. “A prova Do total de inscritos, 4 milhões foram isen-
é cansativa e o aluno não tem essa prepa- tos da taxa de R$ 35 por serem alunos de
ração na escola ou conteúdo. O segredo é escolas públicas ou pertencerem a famílias
estudar muito”. de baixa renda.
PENSADORES CLÁSSICOS II
Professor Me. Gilson Aguiar
OS DILEMAS DA
V
UNIDADE
ATUALIDADE
Objetivos de Aprendizagem
■■ Permitir a noção da organização da sociedade atual estabelecendo
a relação entre a nova ordem da produção mundial e as condições
estabelecidas pela sociedade de consumo.
■■ Demonstrar a tendência dos fenômenos sociais em serem tratados
pela particularidade. O quanto estamos perdendo a noção das
condições que geram a vida social.
■■ Detectar e analisar os discursos de infantilização do homem
contemporâneo, a perda da compreensão lógica e a propagação de
conflitos sem ideologia.
Plano de Estudo
A seguir, apresentam-se os tópicos que você estudará nesta unidade:
■■ Sociedade de consumo e a lógica dos ambientes voltados à aquisição
dos objetos
■■ Perda de ideologia e os conflitos sociais propagados
■■ A decadência da liberdade e a lógica da individualidade
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Introdução
Introdução
V
Um Mundo em Crise
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efervescente com a busca de uma realização imediata. Queremos
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tudo o que desejamos e não temos a menor noção do que somos.
Queremos nos fazer por meio de uma coleção de imagens asso-
ciadas aos bens de consumo. Imagens que estão por todos os cantos e sempre
disponibilizando a venda de algum produto.
Por isso, vamos começar esta unidade retratando uma imagem disponível em
diversos magazines, shoppings, enfim lojas de roupas nas mais diversas cidades
do mundo. Che Guevara, o líder revolucionário argentino, conhecido por sua
atuação na Revolução Cubana (1959)1, um ícone do século XX, estampado em
uma camiseta a venda em uma loja de grife internacional. Este produto comum,
que muitos que estão lendo este texto já devem ter visto, pode estar sendo ofere-
cido ao lado de uma loja de bebidas com um emblema da Coca-Cola estampado
na entrada. Pode-se ver um jovem em uma das lanchonetes do McDonald’s ves-
tindo esta camiseta e saboreando um lanche, um BigMac, por exemplo. Claro
que Coca-Cola, McDonald’s, Che Guevara e BigMac são tão populares quanto
Adidas, Nike, Hering, Apple, Microsoft e Pepsi, estas são apenas algumas das
marcas mundiais que dominam nosso dia a dia. Estampadas por todos os luga-
res são símbolos. O que aconteceu com Che Guevara que passou a povoar o
mundo dos produtos e das grifes?
O revolucionário, crítico da sociedade capitalista, se perdeu no mundo do
1 Seduzido pelo projeto revolucionário defendido por Fidel Castro, o jovem médico argentino se encontrou
com o advogado cubano no México, onde traçou os planos para a ação revolucionária em Cuba. O movi-
mento bem-sucedido implantou o regime socialista na ilha do Caribe, por mais que não tenha sido esta a
intenção inicial dos revolucionários. O movimento nacionalista, inicialmente, acabou por adotar o regime
socialista, o qual persiste até hoje no território cubano. Ernesto Che Guevara se tornou um dos líderes da
revolução, entre suas maiores defesas estava a resistência ao americanismo e a luta contra a influência dos
Estados Unidos na América Latina. Na luta contra a influência norte-americana e desejando propagar
o movimento para outros países, passou a liderar uma guerrilha na Bolívia. Acabou morto por tropas
bolivianas em 1967.
OS DILEMAS DA ATUALIDADE
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Um Mundo em Crise
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produzimos os delinquentes e os corruptos exterminados em uma proporção tão
intensa. Por mais que se eliminem, eles voltam cada vez mais fortes e armados.
A indústria do crime só apresenta o criminoso, ele como uma alma condenada
pela natureza do crime ou por um drama particular. Reportagens que tratam
da violência e tentam entendê-la nos bastidores costumam ter conclusões tolas.
O bandido é fruto de um ambiente nocivo ou da falta de oportunidades. Um
drama particular explica a dedicação à violência e sempre se tem uma desculpa
imediata para o mal praticado. Como afirma Enzensberger (1995), construí-
mos a inocência:
[...] A idéia de que o homem seja naturalmente bom encontra seu úl-
timo reduto na assistência social. Estranhamente, motivos pastorais
misturam-se a envelhecidas teorias da sociedade e a uma desnaturada
versão da psicanálise. Em sua bondade ilimitada, esses tutores isentam
os confusos militantes de qualquer responsabilidade sobre suas atitudes.
A culpa jamais recai sobre o criminoso, e sim sobre o meio em que vive:
família, a sociedade, o consumo, a mídia, os maus modelos. De certa
maneira, a cada assassino estende-se um questionário de múltiplas al-
ternativas, que ele pode preencher como melhor lhe aprouver:
“Por isso não restou outra opção senão cometer um atentado/ um rou-
bo/ um assassinato/ dar início a um incêndio” (pp. 27 e 28).
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deveria ser um resultado de uma análise mais ampla?
A Sociedade de Consumo
OS DILEMAS DA ATUALIDADE
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vezes, mais do que o lugar onde vivemos e as pessoas com quem convivemos.
Nosso círculo virtual de amigos nos permitem sentimentos empolgantes de per-
tencimento que não encontramos em nossa vizinhança. Mentir e ser enganado
na rede mundial de computadores é um ritual estimulante para os internautas.
Nela podemos ser o que queremos sem ter que assumir o peso de uma escolha
que a vida real exige.
Vivemos duas vidas e nos sentimos um único ser. Posso ter que me incomo-
dar com o meu trabalho, com as atividades reais que exerço para sobreviver, mas
também posso construir um círculo de amizades que me desloquem para uma
condição oposta a minha vida do trabalho. Meu laço de amizade, de convívio
social pode gerar um agrupamento com rituais próprios e vestimentas especí-
ficas. Tribalizamos o mundo urbano e constituímos identificações que a moda
fornece os objetos sagrados. Emo, dark, skinhead, se quiser reeditar o movi-
mento hippie também é possível.
Toda uma identidade está à venda no mercado, como a estampa do Che
Guevara que falamos no começo desta unidade. Os ecologistas estão se transfor-
mando também em uma tribo, o engajamento nas questões ambientais ganha,
muitas vezes, o aspecto de uma marca de um bem de consumo. Fica mais fácil
de propagar quando a campanha publicitária é a linguagem de comunicação. A
camiseta com o símbolo da campanha de combate ao câncer é mais conhecida
do que a causa, já virou grife. O que acontecerá se um dia a causa pela qual se
luta atingir seu objetivo e o inimigo a ser combatido for vencido? Teremos que
gerar uma nova luta para manter o símbolo vivo, ele é o elemento mais impor-
tante. O que se tem não é uma defesa racional de uma causa necessária, mas sim
A Sociedade de Consumo
V
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promovem3.
Estamos nos rodeando dos bens de consumo, eles estão por todos os luga-
res e é com eles que construímos uma convivência íntima. Eles nos identificam
e nos colocam no centro de um mundo aparente de movimento. Tudo a nossa
volta parece se movimentar, parece estar agindo com uma dinâmica que nos
agrada, pois estamos no comando com nossos “controles remotos” e botões digi-
tais dando movimento e parando uma parafernália eletrônica que se movimenta
ao nosso prazer. Mas se formos entender as condições em que este convívio
ocorre, vamos perceber que estamos parados, estáticos, enquanto as coisas se
movimentam a nossa volta. Nossos filhos falam do cansaço do dia marcado por
horas a frente do computador, navegando na internet, conversando pelo celular
mediante mensagens que não tem fim. Estamos exaustos de não fazer nada e de
dialogar com “coisas” e não com pessoas.
Jean Baudrillard, cientista social francês, filósofo e fotógrafo, têm como um
dos seus principais temas a “sociedade de consumo”. Ele considera que esta-
mos vivendo a vida dos objetos, estamos cada vez mais rodeados destes bens
eletrônicos:
À nossa volta, existe hoje uma espécie de evidência fantástica do consu-
mo e da abundância, criada pela multiplicação dos objetos, dos serviços,
dos bens materiais, originando como que uma categoria de mutação
fundamental da ecologia da espécie humana. Para falar com proprieda-
3 Quando assisti pela primeira vez ao filme “O homem invisível”, personagem de literatura de Hebert Wells,
que foi eternizado nas telas da televisão por David McCallun, encarnando o personagem David, um médi-
co que após uma experiência bem-sucedida se transforma em um homem invisível. O seriado foi exibido
em 1976 no Brasil, pela Rede Globo. Em diversas cenas o médico tirava a roupa e a máscara, suas luvas de
cor da nele e desapareceria. Hoje, alguns dos consumidores ávidos por produtos de grife e que propagam
valores associados aos produtos, se os tirassem se separasse deles, com certeza, desapareceriam, afinal está
estabelecida a regra de que, “um homem sem os objetos que lhe dão vida não existe”.
OS DILEMAS DA ATUALIDADE
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A Sociedade de Consumo
V
Esta falsa busca de igualdade pelo consumo encanta até mesmo nas políticas gover-
namentais. Se formos considerar o interesse do Estado em promover o acesso
da população a bens por meio de crédito nos permite concluir que se transfor-
mou em programa social a inclusão da cidadania na condição de consumidor.
Se considerarmos os programas sociais que ganham destaque na sociedade atual,
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entre eles o Programa Bolsa Família, o Estado está remunerando pais para leva-
rem seus filhos à escola e ao posto de saúde. O que é obrigação da cidadania
agora exige remuneração. Quando falamos da moradia como qualidade de vida,
estimulamos o crédito com financiamentos de 30 anos e uma campanha pública
de propaganda fantasiosa com o título “Minha Casa Minha Vida”. Nada do que
é pago nos pertence. O financiamento de um imóvel nada mais é do que pegar
dinheiro a empréstimo. Enquanto não se paga a dívida nada se tem.
Neste mesmo sentido se exalta os programas de inclusão digital que pro-
move à informatização das escolas e o acesso dos alunos à internet. Como se o
objeto propagado pudesse dar habilidade ao usuário apenas por existir. Estamos
distantes de uma alfabetização adequada, já não conseguimos estabelecer uma
relação lógica entre a mensagem e seus interlocutores em sala de aula, agora con-
sideramos que a presença do computador realizará a competência de quem o
manipula. Isto não irá ocorrer. Mas não é difícil perceber de onde surge a ideia
de eficiência com a aquisição. Parte considerável dos celulares que estão nas mãos
dos cidadãos não estão executando a função de comunicar, mas estão promo-
vendo atividades para preencher a ociosidade4. A aula passa mais rápido com
um computador ou celular nas mãos.
OS DILEMAS DA ATUALIDADE
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Contudo, o que expomos até agora não é fruto do acaso. O que assistimos na atu-
alidade é a eficiência de uma gama de elementos integrados a favor da sedução
para o consumo. Estamos vivendo a proliferação de campos de conhecimento
voltados ao estímulo do desejo da aquisição. Este estímulo está sendo promo-
vido pelo mercado para ampliar as vendas de bens em larga escala e propagar a
imagem de inclusão social.
Áreas de conhecimento surgiram nos últimos trinta anos com a especiali-
dade de entender e manipular o comportamento humano a favor do consumo.
Do marketing, publicidade, designer, estética, arquitetura, logística, artes visuais,
Reprodução proibida. Art. 184 do Código Penal e Lei 9.610 de 19 de fevereiro de 1998.
A Sociedade de Consumo
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Algumas valorizam o ambiente, geram sensações de grandeza, colocam alunos
diante de uma realização para quem se quer começou a vida escolar. Tanto ins-
tituições de ensino fundamental ao nível superior propagam o ambiente como
um argumento maior na educação. Ele fala mais que a proposta educacional. A
beleza do lugar, o parquinho de diversões, os laboratórios, o conforto das salas,
a estética dos prédios, as festas de teatro, coral, formatura, Dias dos Pais, das
Mães, das Crianças, o Natal e o Final do ano, eventos para se comemorar a con-
cretização do que não existe de real, a escola. As formaturas são intermináveis,
são celebradas uma a uma. Nas escolas sempre está se fechando um ciclo, pode
ser um passo, mas deve se sentir como se fosse uma longa jornada5.
Hoje, as instituições de ensino, fundamental principalmente, estão preocu-
padas em convencerem os pais de que há aprendizado. Para isso, se releva o mau
desempenho ou se manipula as avaliações. Busca-se de alguma forma enquadrar
o mau comportamento como um desvio de conduta temporário, uma fase, uma
questão pontual. Não se pode colocar na família consumidora a responsabili-
dade que lhe cabe na formação dos filhos. Para isso, as escolas estão assumindo
funções do ambiente familiar. Ela está inocentando a todos os consumidores da
educação, pais e filhos (alunos) e sobrecarregando, principalmente, os professo-
res que devem deixar atraente o ambiente escolar, eles devem ser uma extensão
OS DILEMAS DA ATUALIDADE
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A Sociedade de Consumo
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à idolatria do poder ser tudo sem perder nada e nada escolher definitivamente.
Nos centros de consumo se atingiu o que a democracia jamais conseguiu em
sua prática política, superar os confrontos que as diferenças geram quando se faz
escolhas ou se privilegia uns em detrimentos de outros. Na democracia do con-
sumo o todo é possível por se tratar de uma igualdade acessível pela escolha de
adquirir e não pelo compromisso de construir. Não é preciso ser um executivo
ou um intelectual para adquirir os objetos que me associam a eles. Da mesma
forma que vendo o terno, possibilito o livro e os óculos que identificam a inte-
ligência. Também estão disponíveis no mercado o carro, o relógio, a pasta e os
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trejeitos aprendidos nos filmes disponíveis na sala de cinema. A sensação não
precisa de comprovação, não podemos esquecer que o consumidor não pode
ser frustrado, jogado à realidade.
Nas salas de aulas das universidades está uma parte considerável dos alu-
nos buscando a sensação de fazerem um curso superior. Parte considerável deles
não tem qualquer comprometimento ou esforço para o aprendizado. Se formos
racionais e avaliarmos de uma forma fria e objetiva, seus destinos estão traça-
dos, o fracasso. Mas quem pode contrariá-los? Eles são consumidores de uma
sensação, de um sentimento que não pode ser rompido ou frustrado. Aos inú-
teis se vende a utilidade, assim como os celulares ocupam o tempo dos que não
tem com quem se comunicar. Por isso, estamos dispostos a consumir uma vida
em vez de vivê-la.
Toda esta construção inteligente da ambientação do consumo é o que move
a economia contemporânea. Ela é que determina o enriquecimento de empresas
mundiais que acumulam o capital com a comercialização desmedida de produ-
tos. O consumidor destes bens é um ser humano ávido de se completar pelo valor
simbólico das coisas. A busca de existir no mundo em que os objetos têm vida.
O que necessitamos compreender é a cadeia econômica e social que esta
sociedade de consumo movimenta. Os recursos gastos com a multiplicação da
aquisição de bens que atendem a interesses particulares e, muitos, superficiais
recaem nas contas do poder público. Se considerarmos o excesso de automóveis
que ingressam no trânsito das grandes cidades diariamente podemos perceber
que o crescimento da violência no trânsito é proporcional. Além do que a polui-
ção ambiental também se agrava, o lixo se acumula, assim como os gastos dos
OS DILEMAS DA ATUALIDADE
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nais, ainda mais quando ele recai sob o poder público. Contudo, não se percebe
que os gastos são repassados para o mercado e para os produtos.
Na inteligência da ambientação está também a ausência desta consciência
que estabelecemos anteriormente. Ou seja, não percebemos que as ações indivi-
duais geram um efeito na vida coletiva. O comportamento voltado ao consumo
atinge em larga escala uma porção significativa da vida social. Hoje, o que vive-
mos como os principais dilemas coletivos são fruto do ambiente de consumo no
qual estamos inseridos. Este ambiente gera efeitos desastrosos no sentido que os
seres humanos dão para as instituições nas quais participam em sua vida coti-
diana. Estamos tentando e tentados a transformar todos os lugares que vivemos
em uma extensão da lógica do consumo.
Um dos exemplos do poder da ambientação mágica do consumo está expresso
em alguns templos religiosos. O conforto, a climatização, as poltronas almofa-
dadas, os telões e o desempenho do líder religioso devem dar a sensação de um
grande espetáculo. A emoção do pertencimento se confunde com o ato de fé.
Não se sabe se a religiosidade é uma expressão da crença ou se o ambiente é a
prova miraculosa da força mágica dos objetos sobre o ser humano. Contudo, e
por precaução, não se separa o conforto do templo do sentimento do fiel, sob
a pena de ver revelado o verdadeiro sentido de algumas instituições religiosas.
Logo, em todos estes lugares que se frequenta e se depara com o estímulo ao
desejo imediato de ter e se confunde com o sentido de ser, o homem contempo-
râneo está desenvolvendo uma doença social que se expressa em dois sentidos,
a vitimização e a infantilização, as quais nós vamos tratar a seguir.
A Sociedade de Consumo
V
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Uma contradição que se percebe em diversos lugares está na mudança dos
papéis sociais ou mesmo a sua violação. Um exemplo são os pais que colocam
seus filhos, ainda na primeira infância ou na pré-adolescência, a participarem
de concursos de beleza ou a trajarem a estética do adulto. Eles transformam
crianças em pequenos adultos, reeditam uma forma de tratamento que se tinha
na Europa, entre os séculos VII a XIV, onde as crianças serviam aos adultos em
atos de sexualidade e de mutilações do corpo para atender aos desejos bizar-
ros. Agora, nós introduzimos as crianças ao mundo do adulto e lhe damos uma
imensa quantidade de acessórios de beleza. Introduzimos a sedução no mundo
infantil. Contudo, diferente do mundo medieval, condenamos o abuso sexual,
mas criamos um ambiente propício para isso. Queremos o prazer, mas não dese-
jamos a culpa.
A contradição está na outra ponta da relação com as crianças. Hoje criamos
estatutos e defendemos a infância da ação perniciosa dos adultos. Geramos um
Estatuto da Criança e do Adolescente para defender a infância que idealizamos
como merecedora de respeito. Valorizamos a pureza e inocência que lutamos
para romper. Ao final, o que gostaríamos era de ser tratados como crianças tam-
bém. Cobramos nossa dose de infantilidade. A infância nos cai bem diante do
desejo de termos tudo e não respondermos por nada. Como adultos, buscamos
uma solução simples para a vida que é não questioná-la e não ser obrigado a se
responsabilizar ou ser punido pelos atos. Abusamos de todos e não colocamos
em ninguém a culpa.
Uma discussão no mínimo irônica, e que já nos referimos anteriormente, é
sobre a prática do aborto no Brasil. Quem o faz, na maioria dos casos, é a mãe
OS DILEMAS DA ATUALIDADE
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que já tem filhos. Quem é marcada por fazer é a mulher, menor de idade e sol-
teira. Consideramos que a gravidez indesejada é uma prática de quem não tem
maturidade. Agimos como os bandidos do crime organizado que para fugir da
punição colocam a culpa do homicídio sempre em um menor. Somos idênticos
aos que combatemos. Ficamos livres para praticar o ato que nós mesmos con-
denamos e transferimos a “culpa” para aquele que juramos proteger.
Mas se tentarmos entender a infantilização do homem com mais intensidade,
promovida pelo mundo do consumo, podemos considerar o mercado da beleza e
a indústria da estética. O ser “belo” é uma busca que todos se empenham em ter
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A Sociedade de Consumo
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e indispensável condicioná-lo à responsabilidade, oferecendo-lhe ta-
refas ao seu alcance, dando-lhe domínio gradual de esferas cada vez
mais amplas. (E não pedindo-lhe que parodie os adultos, por exemplo,
e se reúna em conclave para imitar a vida parlamentar ou se fantasie
de jornalista para entrevistar uma personalidade. Nossa época prestigia
uma única relação entra as idades: o pastiche recíproco. Nós imitamos
nossas crianças, que nos copiam) (BRUCKNER, 1997, pp. 93 e 94).
OS DILEMAS DA ATUALIDADE
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agora virou uma indústria de jovens talentos. Pais desejosos de fazerem seus
filhos se transformarem em uma estrela investem na apresentação do bebê can-
tor, da criança mágica, do precoce violinista, do humorista da primeira idade e,
até mesmo, do pastor de berçário, há líderes religiosos de frauda.
De outro lado estamos infantilizando a vida dos adultos e transformando
a realidade que deve ser encarada com maturidade como uma prática da ino-
cência. Comentamos anteriormente das leis que agora regem a vida privada, a
escolha particular. Limitamos os horários dos bares abrirem, das doses de bebi-
das alcoólicas e dos refrigerantes. Queremos proibir as tatuagens para menores
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A perda ideológica
O resultado do mundo de fantasia não pode ser outro, as relações que esta-
belecemos agora perderam seu sentido lógico. Não há a necessidade de uma
compreensão organizada do mundo, no mosaico que falamos anteriormente,
cada um constrói seu próprio desenho do mundo, a sua ordem simbólica. Não
há o compromisso com uma racionalidade coletiva que exija de cada um de
nós o cumprimento de uma tarefa necessária para o conjunto social. Não temos
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que sua singularidade exige, por sinal nunca produzimos e reproduzimos tanto
o discurso da identidade única. Há uma necessidade premente de que todos se
sintam especiais. Ninguém pode ser colocado na condição de comum. Sempre
haverá um diferencial que permite ao indivíduo fugir da vulgaridade e se esta-
belecer com um ser especial. A mesma lógica que se produz nos ambientes de
consumo deve estar divulgado em todos os lugares da vida. Valorizar a particu-
laridade é um direito de cada um.
Nas escolas esta prática é visível. Ninguém pode estar sujeito a regras que
massificam a existência. Professores são instruídos a tratarem seus alunos pela
“singularidade” a que tem “direito”. Por isso, na conversa com os pais quando é
feita a avaliação do desempenho do filho na escola é sempre lembrado ao pro-
fessor que ele comece com um elogio, fale de uma faceta “positiva” do aluno.
Mas se ele não tiver? Invente. Ninguém pode ser contrariado. Em algumas esco-
las se instrui os professores a não corrigirem as avaliações com caneta vermelha,
isto agride. O vermelho da caneta pode traumatizar, mas as imagens de violên-
cia saboreada nas telas do televisor ou no cinema não.
Todo o esforço da sociedade é para garantir a sensação de realização que não
ocorre, não existe e não está sendo feito. Uma estética de bem-estar que se torna
uma imposição para todos e em qualquer lugar. A aparência se transformou em
essência. Caprichamos na estética das relações, na cordialidade dos movimentos,
a perfeição do corpo exposto. Valorizamos todos os meios possíveis para que o
impacto do pertencimento não questione a qualidade essencial do envolvimento.
Estar em um determinado local não exige a capacidade de exercer as funções
que ele exige. Não será cobrado o comportamento do aluno na sala e não será
OS DILEMAS DA ATUALIDADE
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os alvos mais comuns das gangs, elas destroem exatamente o que permite a sua
possibilidade de existir, os meios que dariam uma saída para a miséria que tanto
reclamam como motivo de sua destruição.
Enzensberger trata destes conflitos generalizados como uma “guerra civil”
que se processa em diversos lugares, e ao mesmo tempo. Parecem estar desco-
nectados de um motivador geral. Os conflitos estão sempre associados a uma
lógica superficial. No fundo, os que promovem a destruição tem o desejo de des-
truir o que funciona pelo prazer de ver virem abaixo todas as possibilidades, é
a busca da igualdade pela propagação da miséria, da mediocridade. Os violen-
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tos grupos armados que promovem a violência urbana são em regra covardes:
Os protagonistas são quase exclusivamente jovens. Seu comportamento
mostra a força do processo de degradação do patriciado. Entre suas
tradições estavam as confrarias masculinas. Elas tinham a tarefa de ca-
nalizar mediante rituais de iniciação a concentração de energia própria
à juventude, originada pelo excesso de testosterona, e sua sede de crime
e sangue. Exigia-se do macho emergente provas de coragem e exibição
de força física. Um código de honra era mantido estritamente. A regra
fundamental era de que o desafiante, fosse ele samurai ou mocinho de
faroeste, bandido ou rebelde, se medisse com alguém forte e perigoso,
no mínimo, em relação de igualdade. Essa concepção é desconheci-
da dos criminosos de hoje. Revela-se um novo tipo de masculinida-
de. Poder-se-ia chamar sua honra de covardia, embora isso seja uma
superestimação. A mera distinção entre a coragem e covardia já lhes
é incompreensível – um sinal de autismo e perda de convicção (EN-
ZENSBERGER, 1995, p.17).
OS DILEMAS DA ATUALIDADE
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liza suas forças para atender ao interesse do tráfico internacional de drogas que
jurou combater, pior, explora os camponeses e os extermina, os mesmos que se
propuseram a defender em sua tese original.
O preço em que as comunidades das periferias urbanas subordinadas ao
tráfico pagam é o mesmo que os camponeses pagam a guerrilha. Os comandos
organizados nas áreas periféricas das grandes cidades controlam a vida cotidiana
utilizando todo o aparato de repressão sobre a comunidade local. O poder para-
lelo constituído em periferias de cidades brasileiras e que tem mostrado eficiência
na luta contra o aparato de segurança do Estado, tem em suas comunidades um
refúgio dominado que se submete pelo medo.
Não há quem queira viver sob o signo do medo. Todos os que se veem forçado
a aceitar o poder do ditador imediato se subordina as suas regras que atendem ao
seu humor pessoal. A defesa de leis universais, que sejam para todos, que esta-
beleça uma relação de respeito entre os membros de uma comunidade e garante
um objetivo comum de convivência pacífica é cada vez mais raro nos espaços
em que o Estado está ausente ou limitado.
Nas periferias urbanas, o que estamos assistindo diariamente, é a prevalência
de um poder paralelo que se impõe e garante os interesses de um micropoder,
contudo integrado a uma rede até mesmo internacional de relações ligadas ao
crime organizado. O comando na favela tem seus interesses imediatos e esta-
belece regras próprias sobre a comunidade que governa. Mas também substitui
serviços que o Estado não consegue estabelecer. Cada elemento subordinado à
condição de submissão na periferia urbana se vê obrigado a compactuar com a
violência exercida para poder ter o mínimo de condições de convivência atendido.
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mesmo às civis, e os que se dedicam às guerras hoje. Por mais que os combaten-
tes do passado eram “animais instintivos”, saboreavam a violência por considerar
que ela lhes dava prazer, eles estavam subordinados a um comando lógico que
utilizada de seus atos raivosos para um fim maior. Os combatentes de hoje são
um espelho de seus governantes, quando não, muitas vezes são governantes de
si mesmo. Em muitos combates em andamento não há civilidade, há apenas o
prazer do extermínio.
Em muitas escolas a destruição da estrutura que atende aos alunos, carteira,
porta, quadro-negro, iluminação, a biblioteca, o banheiro, as janelas e as pare-
des são promovidas pelos próprios usuários. Eles destroem com uma riqueza de
atos e detalhes sem deixar nada intacto. Se perguntados do por que promove a
destruição, a resposta é o ódio que tem pelo lugar. Eles não veem ali uma pos-
sibilidade, apenas considera que suas vidas se ambientam mais em cultuar um
problema e nivelar o todo pela propagação da desgraça. São inimigos de si mes-
mos e isto lhes basta, isto lhes dá o motivo para existir. Um ideal maior lhes
exigiria esforço que sua dignidade não comporta. Ninguém em uma comuni-
dade cultuada pela violência foi feito para durar. O futuro é obscuro e distante,
mesmo que seja a semana que vem.
Perdemos a perspectiva do que virá como uma condição construída hoje. A
possibilidade de um futuro e a construção de uma condição melhor não nos atinge
como necessidade. Hoje temos a idolatria do imediato, o prazer pelo que esta-
mos vivendo com o sabor da chegada a um paraíso tão desejado. Toda a emoção
está em celebrar as pequenas coisas por mais medíocres que elas sejam no con-
texto de toda uma vida. Estamos sempre sendo convidados a uma homenagem
OS DILEMAS DA ATUALIDADE
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ao óbvio, a divulgar como conquista o que é apenas uma etapa da vida. Como
falamos anteriormente, não é por acaso que as escolas estão cheia de festas em
seus calendários e formaturas em suas séries. A competição se perde diante da
festa que será a entrega dos troféus, onde todos serão premiados, até mesmo os
derrotados7.
A particularização dos problemas sociais e a transformação do drama par-
ticular em um problema social
Após a Guerra Fria (1945-1989) o mundo viveu a derrotada do socialismo
e uma sobrevivência do capitalismo sobre novos moldes. Nasceu a individuali-
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zação das questões sociais. O que foi no passado uma busca de construir uma
proposta de sociedade mediante uma base ideológica, hoje se traduz no projeto
pessoal de felicidade ou na discussão de questões relevantes a todos dentro de
uma dramatização pessoal.
A literatura sempre teve esta capacidade de colocar uma trajetória de vida
dentro de um contexto de dificuldades. Romances, aventuras ou ficção, inúmeras
obras foram produzidas tendo como principal foco o cotidiano de um persona-
gem ligado a uma problemática coletiva. O personagem deveria lidar com sua
individualidade em uma lógica de muitos outros. Mas o romance clássico nunca
traiu o contexto em benefício do indivíduo. Mesmo que fosse uma obra de fic-
ção, sem qualquer compromisso com uma condição coletiva, a relação entre
indivíduo e contexto era lógica. Nossos livros de hoje favorecem o personagem
e submetem todos a sua volta à realização dos seus desejos.
O mundo só pode ser compreendido nas obras atuais a partir do particular.
Mas isto não está só nos livros, está no filme, está no discurso político, está nos
programas “sociais” de ajuda. Sempre o drama particular deve ser o princípio
para raciocinar toda a questão social. Não se pode afastar o indivíduo do centro
do universo a que se propõe entender. Em uma reportagem sobre os problemas
ocasionados sobre a guerra civil na África, toda a lógica do combate recai sobre
7 Não há momento que denuncia o que é o resultado de um ciclo educacional do que as formaturas do ensi-
no superior. Na massa de alunos que festejam o final da formação está em uma estética de igualdade o alu-
no que se esforçou para construir sua qualificação e, logo ao lado, o que apenas esteve presente. Existem
inúmeros alunos que se formam sem qualquer merecimento. Ele já está acostumado a “ser levado em
frente”. Por isso, não há com que se preocupar. Ao olharmos na arquibancada, onde as famílias festejam,
são as do descomprometido formando levado pela correnteza dos anos e do acaso os que mais comemo-
ram. A faixa diz: “Parabéns pela sua conquista!”. A lógica é simples, uma festa é uma festa, independente
do que se comemore, de nosso sonho não queremos acordar e é possível, agora, sonhar uma vida inteira.
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o drama de uma família que sofre com os combates. Os fatores que levam a vio-
lência não serão discutidos, o que é apresentado é apenas a particularização da
dor. Livrar aquela família do caos não significa acabar com a guerra, mas para
os milhões de espectadores é a única coisa a fazer.
Os programas de televisão tem nos dado uma lição da particularização dos
problemas sociais. A falta de moradia, o afastamento dos membros familiares,
a degradação do corpo e a falta de um relacionamento. Tudo pode ser resolvido
diante dos olhos de milhões. Os indivíduos que sofrem de males de sua par-
ticularidade, ou que tem um problema que atinge uma multidão, agora serão
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atendidos e nós resolveremos esteticamente o “todo” pela “parte”.
O homem esteticamente desarranjado é concertado diante das câmeras. Em
uma expectativa trabalhada dentro de um show os familiares esperam ansiosos
para ver a transformação do ser humano que foi entregue a uma produção em
condições de abandono e é entregue com um novo visual. O espanto do que se
vê diante do que se viu é geral. Filhos, esposa, mãe, amigos, e o próprio trans-
formado choram de emoção. As primeiras palavras ditas pelo que foi reciclado
esteticamente é: “sou um novo homem”. Quem pode duvidar? O sentimento de
pertencimento o atinge profundamente. Sua inclusão social é algo incontestável
diante do espetáculo que denuncia a transformação do sentimento dos outros
em relação a ele, da rejeição a sedução, o sonho se realiza8.
Pode-se considerar que a busca pelo reconhecimento faz parte dos rituais
da vida em sociedade. Já está entre nós há muito tempo esta meta. Mas ela vinha
acompanhada de merecimento, do cumprimento do dever, da ação que represen-
tava um valor maior. Todos que tinham direito a uma premiação era um exemplo
a ser seguido. O herói traduzia em seus atos o que se espera do homem comum,
dignidade. A luta por uma causa maior faz com que reconhecemos o valor de
determinadas pessoas e as premiamos para que todos não se esqueçam dos que
merecem valor. O grande problema da atualidade é quem estamos premiando.
8 Uma dica de leitura para entender a busca de ser desejado é o romance de Patrick Süskind, “O Perfume”.
Ele conta a história de um jovem abandonado pela mãe após ter o corpo impregnado pelo mau cheiro
das vísceras dos peixes que o deixaram sem odor, Grenouille, o protagonista, cresce sob a desconfiança de
todos. Devido a sua natureza sem cheiro, ele passa despercebido por todos. Seu grande dom é a capaci-
dade de sentir cheiros e de gravá-los. Acaba por se transformar em um grande perfumista, mas sempre a
procura de um cheiro que viesse a ser irresistível. Para atingir a perfeição ele mata jovens que tem cheiros
sedutores, 26 ao todo. Ele consegue e, ao final, é literalmente comido. Seu sonho, simbolicamente, é o
de muitos: ser notado, ser desejado ao máximo e ser (simbolicamente de alguma forma) saboreado até a
exaustão.
OS DILEMAS DA ATUALIDADE
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O que fizeram para merecer? Nas propagandas está uma afirmação no mínimo
ilógica: “Compre, porque você merece!”.
Este indivíduo colocado no centro da coletividade acredita que sua existên-
cia é especial e que ele merece o que jamais fez por merecer. Ele foi convencido
pelos inúmeros lugares por onde passou de que o seu destino é ser a preocupação
de todos, e se isso não ocorrer ele fará, de alguma forma, uma ação na busca do
que considera “seu de direito”. Das frases publicitárias, as reportagens, aos seria-
dos na televisão, as obras literárias, as mensagens na internet em suas páginas
pessoais, tudo indica que ele é “o escolhido”, se não for tratado como merece fará
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todos a sua volta sentir sua ira de rejeição. Nunca construímos uma multidão de
mimados e tantos adultos que reivindicam um tratamento infantil. Aprendemos
na psicologia que as crianças têm sua fase egocêntrica, mas que ela deve passar.
Em alguns ela permanece e deve acompanhá-lo até a morte.
Todas as personalidades parecem querer o reconhecimento, querem ser
astro, nem que por um dia. Esforçamos-nos para não propagar o sentimento
de frustração e para divulgar a particularidade. Seja nas campanhas publicitá-
rias, nos cursos de vendas, nas lógicas de marketing e nas propostas pedagógicas
que agora se multiplicam, o pequeno rei egocêntrico se transformou no centro
das atenções. Nas escolas se defende que há qualidade em todos, que devemos
despertar a competência nata de cada um9. Trata-se o medíocre e o eficiente, o
qualitativo e o desprezível, com o mesmo valor. A escola já não valoriza o his-
tórico do bom desempenho e tenta desesperadamente aproximar o rejeito da
essência. Tudo para não fazer despertar a frustração tão necessária à educação
do homem. A vida é feita de não e sim. Carregar a existência de “sim” não é esti-
mular, é criar um conto de fadas para gerar no futuro um bruto adulto bebê, um
ser que se nega a amadurecer.
Estamos construindo diariamente os “adultos infantilizados”. Eles se mul-
tiplicam por todos os lados por não termos valorizado uma discussão lógica e
ideológica sobre a vida em sociedade. Falhamos por não submeter nossas ações a
um projeto mais amplo de vida, onde cada um desempenha um papel vinculado a
9 É como se retomássemos Sócrates, o filósofo grego, com propriedade, o que não é verdade. Tudo pela sua
frase de que o papel da filosofia é fazer parir ideias, promover o questionamento e despertar a sabedoria.
Mas nem todos têm esta competência em um mundo que não é uma expressão dos valores da Grécia An-
tiga. Desconectamos o pensador grego de seu tempo, usamos suas frases recortadas e consideramos estar
falando a verdade.
A Sociedade de Consumo
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Estamos ludibriados por um mundo que expressa os excessos e nos gera a
falsa imagem de abundância. Estamos considerando que a vida já é feita de uma
produção em larga escala de tudo o que o homem necessita. Nossas metas se
transformaram em coisas materiais que desejamos para cumprir uma vida de
colecionador de objetos. Eles vão desfilar em nossa frente, vão nascer e mor-
rer sem que nós deixemos algum legado para as gerações que virão. A data de
validade dos produtos é cada vez mais curta, mas nossa vida se alonga. Nossa
longevidade é, infelizmente, conduzida por pequenas conquistas, imediatas, de
detalhes buscados em metas que percorrem toda uma existência sem deixar ras-
tro. Nosso olhar é sempre para frente. Nada resume mais nossa vida atual do que
o sentimento de abundância e de confusão que os excessos de um ambiente de
consumo nos apresentam, como descreve Bruckner:
Entremos num supermercado, no shopping, percorramos as ruas co-
merciais de uma cidade: logo compreendemos que estamos entrando
no Jardim das Delícias, no Paraíso Terrestre. Todos os sonhos da Idade
de Ouro, outrora acalentado pelos homens, estão aqui agrupados. A
imensidão dos locais, a extraordinária variedade de produtos expos-
tos, a luz que jorra, os quilômetros de corredores, a engenhosidade das
vitrines são os de uma utopia viva. Se alguma profecia tivesse de ser
realizada, seria esta [...]. Esses templos do mercado cantam a vitória da
sociedade capitalista moderna sobre a carência. [...]
OS DILEMAS DA ATUALIDADE
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Para muitos, este sonho louco seria capaz de se realizar. Ele é palpável e pode ser
considerado uma condição que está disponível a todos. Temos a falsa ideia de que
a abundância nos centros de consumo é uma condição natural e que se estende
por toda a humanidade. É neste momento que a vida real vira ficção para mui-
tos. Uma ilusão que terá um preço alto a ser pago. Estamos produzindo um ser
banhado por fantasia aparente que não consegue desvendar as verdadeiras con-
dições que produzem sua vida. Ele está concentrado demais neste mar de delícias
que deseja e considera como seu. Ele apenas não percebe que os problemas mais
importantes de sua vida não estão fundados na sua existência imediata, mas em
uma condição que envolve uma parte considerável da sociedade. Na educação
necessitamos acordar este ser humano do sonho e lhe dar um sentido mais pro-
fundo, racional e concreto de sua existência.
Aqui vamos fechar esta unidade com uma relação entre o Estado e o indivíduo,
por fim a coletividade, de forma preocupante. A resolução dos problemas sociais
com saídas particulares que são oferecidas no mundo da mercadoria, pela socie-
dade de consumo.
São muitas as questões apresentadas ao homem comum, em seu dia a dia,
como uma necessidade de todos. Contudo, a forma de ter este problema resol-
vido se coloca na atitude de cada um. Estamos buscando saídas pessoais para
questões que envolvem um grande número de indivíduos e cuja lógica para a
A Sociedade de Consumo
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sua solução deveria passar por uma política pública. A venda da água mineral
é a denúncia de que não confiamos na água que chega até nós pela torneira. O
saneamento público é inconfiável e a nossa resposta é gerar em nosso ambiente
particular uma solução.
Fazemos do automóvel o nosso principal meio de transporte e abandonamos
a estratégia de ver implantar um transporte coletivo. Desobrigamos-nos de cobrar
um meio de deslocamento menos poluente e que não coloque em risco parte
considerável da população. Pior do que isso, nós ocupamos as cidades com um
número imenso de veículos que não cabem ao mesmo tempo nas vias públicas.
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Não é por acaso que criamos um ambiente propício para o surgimento dos flane-
linhas, dos assaltantes, da especulação dos postos de combustíveis e da venda de
autopeças. Criamos problemas que consideramos de cunho social, o flanelinha,
por exemplo, mas que são apenas sintomas de nossa incapacidade de entender
o verdadeiro fator que nos leva a uma vida agressiva nos espaços urbanos.
Mobilizamo-nos para resolver a vida de um dia e, por consequência, acu-
mulamos problemas para uma vida toda. Nossos números preocupantes de
homicídios, de dependência química, alcoolismo, saneamento básico, nunca são
pensados com coerência de uma sociedade integral, vinculada por uma economia
que envolve a humanidade em uma lógica de dependência em massa. Queremos
resolver o que nos cabe se entender que o que diz respeito a nós está dentro de
uma condição coletiva de vida.
Na prática educativa temos que estar dispostos a desvendarmos esta socie-
dade, a trabalharmos estas relações e procurarmos denunciar os vínculos entre
a particularidade e a coletividade. Não existe um ser isolado, mas um homem
livre e responsável pelos seus atos. A ciência ainda é a nossa maior resposta, é
ela que nos apontou ao longo da trajetória ocidental o caminho para a superação
de inúmeros problemas. Mas esta ciência tem que ser acompanhada da consci-
ência, da capacidade de discernimento. O sobrevivente do caos será aquele que
entender os fatores que o determinam e souber se posicionar para transformá-lo.
OS DILEMAS DA ATUALIDADE
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Considerações Finais
Considerações Finais
Comentamos de como a substituição do de marcar 9,2% em julho daquele ano. Os
dinheiro de papel pelo cartão de crédito mais ou menos endividados em julho deste
ou débito estimula o consumo e levam ao ano somam 18,8% e os poucos endivida-
endividamento das famílias. Leia este texto dos, 18%.
e pense nisso:
Segundo a presidenta do Ipea, Vanessa
Levantamento divulgado nesta sex- Petrelli Corrêa, a série mostra uma virada
ta-feira pelo Instituto de Pesquisa da situação econômica das famílias, com
Econômica e Aplicada (Ipea) indica que dívidas caindo e aumento da capacidade
o nível de endividamento das famílias bra- de pagamento. Segundo ela, os números
sileiras vem caindo no país. Entre junho e refletem “estabilidade no emprego e o fato
julho, a pesquisa mostra que passou de de que famílias estão pagando um ciclo
46,6% para 43,9% o percentual de entre- de endividamento”. Vanessa acrescenta,
vistados com dívidas. Em julho de 2011, o porém, que só uma trajetória mais longa
índice de endividados era 47,9% das famí- pode comprovar a guinada.
lias.
O levantamento mostra ainda aumento
Os dados compõem o Índice de Expecta- de 14,5% para 17,9% das famílias que afir-
tiva das Famílias, que mede a percepção mam ter condições de pagar totalmente
dos brasileiros sobre a economia e caiu de suas dívidas, entre junho e julho, e queda
68,5 pontos, em junho, para 68,2 pontos, do percentual das que dizem poder pagar
em julho. Os indicadores foram apurados somente parte das dívidas (de 51,2% para
em pesquisa mensal do Ipea com 3,8 mil 46,8%). O número das que não têm condi-
domicílios em 200 municípios do país. ções de pagar o saldo de débitos, por outro
lado, subiu de 33% para 33,3% no período.
O levantamento também aponta mudan-
ças no perfil de endividados no país com Na comparação do endividamento entre as
a diminuição do percentual de famílias regiões, famílias com menos dívidas são do
muito endividadas, de 9,1% para 7,1%, Centro-Oeste (92,6%) seguida pelo Sudeste
entre junho e julho. O índice tinha che- (61%) e pelo Sul (59,8%). Já no Nordeste, o
gado a 9,7% em agosto de 2011, depois índice cai para 39,9% e para 26% no Norte
- que tem o maior percentual de famílias
muito endividadas, 9%. Por faixa de renda,
as famílias “muito endividadas” recebem até
um salário mínimo (10,2%).
quisa disse não ter dívidas (55,8%) e, entre índice tenha diminuído em relação a junho
aquelas com saldo de débitos, 17,9% dis- (60,2%).
seram que têm condições de quitá-los
completamente, embora uma em cada três Em relação ao futuro, as famílias brasileiras
famílias entrevistadas não tenham condi- são otimistas. Para 2013, 65% esperam que
ções de fazer o mesmo. a situação econômica melhore, enquanto
21,3% “esperam piores momentos”. Nas
Com relação ao emprego, 80,8% das famí- regiões Centro-Oeste e Sudeste as esti-
lias se sentem seguras com a ocupação do mativas são as mais elevadas, de 83,5% e
responsável pela casa e 41,1% acreditam na 67,5%, respectivamente.
melhoria profissional dos chefes de famí-
lias. A expectativa é mais alta entre aquelas As taxas são quase as mesmas em relação as
com renda de um a quatro salários mínimos expectativas para os próximos cinco anos.
e com mais de dez salários.
Para a presidenta do IPEA, mesmo que as
Na avaliação da maioria (77%), segundo famílias brasileiras estejam mais cautelosas
o Ipea, a situação financeira em 2012 é no momento atual, elas confiam na estabi-
melhor que a de 2011. Boa parte (58,3%) lidade do emprego e acreditam que mais
considera o momento bom para com- para frente será possível retomar as com-
prar bens de consumo duráveis, embora o pras.
Edição: Fábio Massalli
1. Na economia mundial há um apelo ao consumo. Ele está em todos
os lugares. A busca de atrair o consumidor e estimular necessida-
des das mais variadas e supérfluas destrói a lógica da relação entre o
homem e os bens de aquisição, a mercadoria. No apelo ao consumo
foi abandonada a lógica entre a função dos bens e sua necessidade.
Na educação perdemos a relação entre a ciência e os fenômenos que
nos cercam. Se resgatássemos o conhecimento científico, podería-
mos ter uma compreensão lógica das relações que estabelecemos.
Determine a relação entre a perda da lógica na publicidade na socie-
dade atual e os valores que os bens de consumo adquiriram e estabeleça
uma explicação científica para este fenômeno.
2. As marcas se transformaram em valores que estão acima, muitas vezes,
dos produtos com os quais estão relacionados. Elas se transformaram
em bens a parte. O valor de uma marca pode ser incalculável. Muitos
são os símbolos que percorrem o mundo e estão associados à sofis-
ticação, inteligência e beleza. Nesta reportagem, se fala do valor de
uma marca, por isso convido você a lê-la e ao final dela responder o
que estou propondo como discussão.
OS DILEMAS DA ATUALIDADE
186 - 187
Conclusão
Prezado(a) aluno(a), chegamos ao final do nosso livro. Nele vimos que autores como
Pascal Brukner demonstra a condição em que o homem contemporâneo está se
deteriorando e permitindo a sua infantilização. Esta condição está se transforman-
do em prerrogativa para se viver no mundo contemporâneo e passamos a evitar o
embate com a própria existência e seu peso.
Esta luta constante que estamos travando tem se encontrado em dilemas cada vez
maiores em quase todas as instituições que frequentamos ou estamos inseridos, é o
nosso grande desafio contemporâneo. Seria a falência de uma consciência racional
do que somos?
Contudo, a liberdade e a individualidade que deveria nos dar um grau imenso de
comprometimento com nossos atos estão desviadas para os sentimentos delirantes
de particularidades dramáticas e que só fazem sentido na lógica do “cada um”. Seria
impossível recorrer à liberdade em todo o seu projeto que o Estado liberal criou ao
longo do tempo. Falimos na vida e vamos continuar falindo na existência particular
até nos isolarmos de forma absoluta na maximização do particular angustiante e do
individualismo sedutor.
O contraditório é que, no mundo de ser eu mesmo nos cansamos de nós. No mundo
da indústria cultural e da cultura de massas onde a industrial elevou a produção do
bem a massa humana, mas rebaixou grande parte da humanidade à condição de
massa homogênea. Eis nosso desespero, suportar a mesmice de nós mesmos.
Desta forma, estamos ressuscitando o romantismo do consumo e da falsa poesia
dos objetos que nada tem de humano. Criamos sobre nós uma falsa ideia que os
produtos permitem, mas nós mesmos não temos consciência. É esta consciência
que precisamos resgatar.
O consumo destruiu a lógica e nos permitiu o autismo social e idiotizado como a
sensação de intensidade dos bens que adquirimos e sua pouca durabilidade. Reno-
vamos a nós mesmos na compra das coisas a nossa volta. Ficamos a mercê do ciclo
curto do uso dos bens e na eternidade que se desmancha como resto. Nesta socie-
dade estamos perdendo a noção de que a vida é o risco que se corre, perdemos a
capacidade de promover a nossa vida em um sentido lógico que exija uma ação
para construir o que virá depois. Não podemos considerar que tudo o que somos é
fruto de um imediatismo sem finalidade. Não podemos viver um dia atrás do outro.
O desafio é este, o de construir um projeto de futuro fundado na racionalidade. Se
quisermos acreditar em algo, temos que construir um projeto de futuro, sem ele,
não há nada no que acreditar.
Espero que ao chegar aqui você tenha compreendido nosso propósito para a disci-
plina de Fundamentos Sociológicos e Antropológicos da Educação. Muito sucesso!
Professor Gilson Aguiar
188 - 189
Referências
Sérgio Lessa. São Paulo: Tempo Editoral; Campinas: Editora da Unicamp, 2002.
MORIN, Edgar & KERN, Anne Brigitte. Terra Pátria. Tradução de Paulo Azevedo Ne-
ves da Silva. Porto Alegre: Sulina, 2002.
TURNER, Frederick W. O espírito ocidental contra a natureza: mito, história e as
terras selvagens. Tradução de José Augusto Drummond. Rio de Janeiro: Campus,
1990.
WEBER, Max. A ética protestante e o espírito do capitalismo. In: WEBER, M. 1864-
1920. Textos selecionados. (Coleção Os Pensadores). Seleção e tradução de Mauri-
cio Tragtenberg. São Paulo: Abril Cultural, 1980.
. Metodologia das ciências sociais, parte 1. Tradução de Agustin Wernet.
São Paulo: Cortez; Campinas SP: Editora da Universidade de Campinas, 2001.