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1º - Tu m’, de Marcel Duchamp, eé tido, por Rosalind Krauss, como uma espeé cie de auto-retrato
do artista - uma auto-biografia do autor, obtida mediante a representaçaã o de uma seé rie de obras
suasi:
Je sous-entendais que la question poseé e par Tu m’ deé passe celle des multiples
niveaux ouù l’indice apparaîît dans l’oeuvre, pour atteindre celle du statut particu-
lier du tableau comme autobiographie, comme autoportrait. Pour que ce lien fasse
sens, il est neé cessaire de reé fleé chire sur un autre aspect des embrayeurs. Ces
signes, en ce qu’ils eé tablissent une relaxion axiale dans le processus de la reé feé ren-
ce, indiquent, au fils du discours, l’action du point de vue. (KRAUSS, Rosalind,
«Marcel Duchamp ou le champ imaginaire», Le photographique – pour une
théorie des écarts, trad. de Marc Bloch e Jean Kempf, Paris, Macula, 1990, p.
81; sublinhado meu)
Essa representaçaã o de trabalhos seus far-se-ia, por um lado, por projecçaã o «em sombra»
e fixaçaã o, sobre alguma emulsão sensível (disposta sobre a tela, o que lhe conferiria uma
natureza hîébrida, de superfîécie de inscriçaã o foto-quîémica e, ao mesmo tempo, pictoé rica), no caso
dos espectros dos ready-mades ali presentes: «On y trouve, un peu partout sur la surface du
tableau, une seé quence dindices ou de traces constitueé e par la fixation sur la toile d’ombres
projecteé es par un certain nombre des objets entreé s dans l’orbite de la carrieù re de Duchamp
pour avoir eé teé selectionneé s comme Readymades. [ali se encontram, um pouco por toda a parte
na superfîécie do quadro, uma sequeî ncia de îéndices ou de rastos constituîéda pela fixaçaã o sobre a
tela de sombras projectadas de um certo nué mero de objectos que entraram na oé rbita da carreira
de Duchamp por terem sido selecionados como Readymades] (ibidem).
Por outro lado, atraveé s do uso do stêncil ou do pochoir, no caso das trois stoppages
étalons transpostas do lado esquerdo para o lado direito do quadro e replicadas, do lado direito
da tela, em trompe l’oeil. Estas ué ltimas enquanto elementos que jaé de si mesmos teriam sido
obtidos, na sua ondulaçaã o ou sinuosidade, pela inscriçaã o da força de atrito do ar, durante a sua
Mestrado de Comunicação, Cultura e Artes.
Discplina: P. R. A. - Problemas de Recepçaã o da Arte
Docente: Prof. Dr. Joseé Paulo Pereira.
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queda (cf. a literatura sobre esse trabalho de Duchamp). Em qualquer dos casos – projecçaã o em
sombra e fixaçaã o ou replicaçaã o por decalque – rastos. E, a acompanharmos a leitura de Rosalind
Krauss, rastos de rastos porque, tanto os ready-made quanto as trois stoppages seriam jaé , origi-
nariamente rastos (seria aqui interessante, a partir desta noçaã o de rasto originaé rio, retomar a
noçaã o derridiana de «arqui-rasto», ou de uma différance originaé ria, o que seria o mesmo que
dizer sem origem exterior a si). A primeira passagem em que os ready-mades saã o lidos como
rasto eé , no texto de Krauss, a seguinte:
[A proé pria noçaã o de Readymade – artigo banal da cultura mercantil que Duchamp
valorizava assinando-o como sua proé pria obra de arte – eé -nos tambeé m apresen-
tada numa ué ltima nota acerca do Grand Verre como um outro disfarce da fotogra-
fia. O tîétulo da nota era «Determinaçaã o de um readymade»:]
[A projectar para um momento a vir (tal dia, tal data, tal minuto),
«inscrever um readymade». O readymade pode em seguida ser
procurado (com todos os atrasos). O importante eé portanto esse
relogismo, esses instantaî neo, como um discurso pronunciado por
ocasiaã o de naã o importa o queî mas a tal hora. EÉ uma espeé cie de
encontro.]
Le Readymade conçu comme instantaneé devient ainsi la trace d’un eé veé nement
particulier, et cet événement du passé de l’artiste apparaît à la surface de Tu m’
sous la forme de la trace d’une trace.
O seu objeto parcial mais espectacular eé sem nenhuma dué vida a Fontaine, essa
reorientaçaã o estranha de um banal urinol que funciona de maneira a sugerir
simultaneamente a imagem de um receptaé culo uterino e a imagem do baixo ventre e do
falo do pequeno rapaz. [...] Pela sua ambivaleî ncia sexual que decompoã e a percepçaã o do
sujeito, ou do Eu, num campo que oscila entre conteué do e continente, entre macho e
feî mea, no domîénio da pura imediatez, o que equivale a dizer que a Fontaine se
transformou de urinol em imagem, de mué ltiplo em particular. Esse objeto saiu, portanto
do campo mais vasto da coé pia e da substituiçaã o para ser isolado na especificidade fîésica
do îéndice. No plano da realizaçaã o, a Fontaine proveé m de uma classe de objetos
manufaturados dos quais cada um eé reé plica do outro, e todos saã o concretizaçoã es dessa
classe, ou tipo, chamado «urinol». Todo o representante de um grupo de objetos
produzidos em seé rie eé ideî ntico aos seus semelhantes. Enquanto significante material
pode-se substituîé-lo por qualquer outro objeto da mesma classe, que ele pode tambeé m
substituir. Na medida em que estaé implicado nesta possibilidade de substituiçaã o, o
representante naã o-ué nico de uma classe eé , por sua estrutura, comparaé vel aos elementos
da lîéngua na qual as ocorreî ncias individuais de uma palavra particular se sustentam
sobre o estatuto abstrato dessa palavra, o facto de ela naã o ser mais que um elemento que
se pode usar e pronunciar indefinidamente. Mas ao produzir a Fontaine, e invocando a
estrateé gia do Readymade, Duchamp converte o urinol do seu estatuto de representante
de uma classe numa condiçaã o de quididade, que eé exclusiva deste objeto. Daîé em diante ele
naã o eé jaé o significante atraveé s do qual uma classe se exprime mas antes uma declaraçaã o
de unicidade que depende do eixo fîésico de um elo, a ligaçaã o entre esse objeto preciso e a
sua base, que eé em ué ltima instaî ncia, a ligaçaã o entre esse objeto especîéfico e o seu espaço
de exposiçaã o. Ele faz-nos lembrar que Duchamp chamou a esse processo, a essa
imediatez, o «efeito de instantaî neo», concebendo-o portanto uma vez mais como uma
funçaã o do fotograé fico, como pertencente ao domîénio do îéndice. Enfim, eé preciso
lembrarmo-nos do facto de que ele compara o efeito de instantaneidade a um outro
fenoé meno que eé o do descarrilamento do discurso ou a disfunçaã o no domîénio da
linguagem. Porque Duchamp diz que o efeito de instantaneidade eé «como um discurso
pronunciado por ocasiaã o de naã o importa o queî mas a tal hora». A imediatez do
Readymade liga-se logicamente naã o apenas ao desmoronamento das convenieî ncias
linguîésticas (ou parece implicaé -lo) mas ainda ao abandono desta ideia segundo a qual a
linguagem teria um sentido que lhe seria proé prio e que existiria independentemente da
vontade de um dado locutor. (ibidem, pp. 85-86)
2º - Antes de se considerar, com mais detalhe, os elementos caraterîésticos destas duas formas de
reenvio que acabaé mos de mencionar – ambas de «conexaã o fîésica»: por sensibilização de emulsão
e por decalque... – ter-se-ia, ainda, de mencionar a seé rie alinhada e oblîéqua do que parecem ser
uma espeé cie de eé craã s, de telas coloridas que veî m do canto superior esquerdo do quadro Tu m’.
Despojados, na extensaã o da sua superfîécie, de qualquer integrante formal – assim como de
qualquer variaçaã o tonal ou disposiçaã o configuracional interna - esses «quadros» (quadro vem
do latim quadrum, vocaé bulo de que procede o verbo quadrare, de onde proveé m «quadrado»,
por um lado, e de onde se pode derivar «enquadrar», por outro lado; ora, ambos – quadrum e
quadrare - derivam de quattuor, com o sentido de «quatro» - lados, aî ngulos, etc; cf. A. Meillet;
A. Ernout, Dictionnaire étymologique de la langue latine – histoire des mots, 4ième ed.,
Paris, Klincksieck, 1967, pp. 553-554: «quattuor invar.: ‘quatre’. Quattuor se deé clinait aù
l’origine. [...] Les autres composeé s et deé riveù s de quattuor ont des formes en quadr- au lieu de
quatr- qu’on attendait; [...] quadrus, -a, -um: ‘carreé ’ [...]; de laù quadratus; subst. n. quadratum
‘carreé ’») avançam em direçaã o aù sua zona central-frontal, e ao inîécio da metade direita da tela.
A proé pria perspectiva, o crescendo inscrito na repetiçaã o em seé rie associado aù progressaã o tonal
do escuro para o claro ajudam aîé aù sugestaã o de um certo movimento de progressaã o, uma certa
aproximaçaã o ao espectador presente. Este tipo de ordenamento constituiu, como eé sabido,
durante muito tempo, uma maneira de figurar espacialmente a orientaçaã o vectorial do tempo
dito «histoé rico» como tempo do progresso, da origem e do desenvolvimento. Tempo «teoloé gi-
co» tambeé m: preé -determinado, teleologicamente orientado para um fim, para um certo desfe-
cho narrativo. Tempo narrativo, sem dué vida. Mas o que haé de verdadeiramente singular nesses
elementos quadrados naã o eé tanto o seu caraé cter abstrato (as sombras dos ready-mades, assim
como as linhas das trois stoppages étalons, saã o igualmente «abstratos») mas antes a circunstaî n-
cia de essa sua seé rie se interromper, a dada altura, por um espaçamento marcado, quer pela
presença de um rasgão e uma sutura da tela maior em que se inscrevem, quer pela inserçaã o de
um pequeno sîémbolo: o de uma pequena mão de indicador estendido, que ali figura, quase no
centro do quadro, emergindo por detraé s da sombra de um dos ready-mades – o saca-rolhas cuja
sombra, no seu alinhamento em relaçaã o ao eixo da roda de bicicleta, tambeé m ela em sombra,
Thierry de Duve, no seu Kant after Duchamp (Cambridge / Massachusets / London, MIT
Press, 1996, p. 398).
Index (in exact logic). A sign, or representation, which refers to its object not so much
because of any similarity or analogy with it, nor because it is associated with general
characters which that object happens to possess, as because it is in dynamical (including
spatial) connection both with the individual object, on the one hand, and with the senses or
memory of the person for whom it serves as a sign, on the other hand. [—] Indices may be
distinguished from other signs, or representations, by three characteristic marks: first, that
they have no significant resemblance to their objects; second, that they refer to individuals,
single units, single collections of units, or single continua; third, that they direct the
attention to their objects by blind compulsion. But it would be difficult if not impossible,
to instance an absolutely pure index, or to find any sign absolutely devoid of the
indexical quality. Psychologically, the action of indices depends upon association by
contiguity, and not upon association by resemblance or upon intellectual operations. (ibidem,
1901, «Index (in exact logic)», DPP1, 531-2; CP 2.305; sublinhados meus)
Símbolo: «… I had observed that the most frequently useful division of signs is by trichotomy
into firstly Likenesses, or, as I prefer to say, Icons, which serve to represent their objects only
in so far as they resemble them in themselves; secondly, Indices, which represent their objects
independently of any resemblance to them, only by virtue of real connections with them, and
thirdly Symbols, which represent their objects, independently alike of any resemblance or any
real connection, because dispositions or factitious habits of their interpreters insure their being
so understood» (ibidem, 1909, A Sketch of Logical Critics, EP 2:460-461)
5º - Essa maã o eé mais «executada» que desenhada, esquematicamente fixada, reé plica de um
modelo preé -existente. Ela fornece-nos um sîémbolo do que, no processo da indicação, na relaçaã o
de conexaã o fîésica que o îéndice pressupoã e, se naã o reduz nem ao sîémbolo nem aù convençaã o. A maã o
eé , portanto, sîémbolo do que passa pelo mutismo da correlação indicativa, no que ela supoã e de
sileî ncio, de «relaçaã o ininterrupta com o real» em jogo nessa conexaã o fîésica (visual, sensîével)
implicada no apontar. O que, assim, figura aproximadamente no centro do quadro de Duchamp eé
jaé aquilo que vem de fora do campo de uma arte – um certo letrismo, por exemplo, uma certa
praé tica de exploraçaã o graé fica de letras de imprensa foi tambeé m um procedimento Dada... Essa
exterioridade eé tambeé m o que se verifica no caso dos ready-made em geral.... – ainda concebida
como «autónoma». Mas eé tambeé m o que vem de fora da linguagem, e transgride a sua
organizaçaã o simboé lica interna, no sentido da inscriçaã o da dimensaã o da indicialidade...
Naã o apenas literalmente de fora da tela, portanto, como no caso do piaçaba ou escovaã o que
atravessa o seu rasgaã o, mas tambeé m de fora do registo iconograé fico tradicional de organizaçaã o
simboé lica que a pintura consagrou, se nessa maã o ou simbolizaçaã o do îéndice se vir uma alusaã o
negativa, uma espeé cie de acusaçaã o aù pretensa autonomia da «pintura-pintura», como Krauss
começa por salientar. A pequena maã o inscreve ali, pois, no seu funcionamento simboé lico, em
primeiro lugar, uma certa transgressaã o da fronteira esteé tica e soé cio-simboé lica entre o objeto
artîéstico e o artefacto. Em segundo lugar, uma mordaz chamada de atençaã o para a indicialidade
que deve interpelar essa mesma arte autoé noma – essa «pintura-pintura», a que Duchamp quis
contrapor, como nos diz o Otaé vio Paz citado por Rosalind Krauss, uma certa maneira de «pintu-
ra-ideia».
7º - O que ali se poã e em jogo? Talvez, precisamente, a dimensaã o do indicial no interior de uma
praé tica que, tal como na pintura-pintura, se quis ainda simbolicamente regida pela sua própria
organização formal interna. O que a maã ozinha-sîémbolo ali assinala eé , portanto, na sua pretensa e
contrastante literalidade, a dimensaã o irredutîével de uma indicialidade que deveria tornar a
«pintura-pintura» ciente da sua proé pria relaçaã o de conexaã o fîésica com o real, chamaé -la aù razaã o
da relaçaã o que faz dela, sem que ela o saiba ou assuma, aos olhos de Duchamp, uma praé tica
simultaneamente «olfativa» e «retiniana». Gesto de denué ncia, de interpelaçaã o e de inscriçaã o da
irredutibilidade da relaçaã o de conexaã o com o real - cuja margem de inominaé vel se manteé m na
irrestituibilidade do sentido pleno do rasto. Gesto ali transposto pelo uso inequîévoco de um
sîémbolo ou de um signo convencional destinado a ser lido aù maneira de uma espeé cie de tabuleta
indicativa, de inscriçaã o de um princîépio de leitura, uma recomendaçaã o, uma instruçaã o de leitura.
Essa maã o naã o eé , todavia, apenas um «sîémbolo». Ela eé , tambeé m, portanto, simultanea-mente, um
embreador, um shifter: tambeé m um «signo vazio», pelo qual se faz, no quadro, a articulaçaã o
concreta da posiçaã o enunciativa do sujeito leitor, no discurso que ele profere...
8º - Pois se, por um lado, eé certo que a maã o eé um «sîémbolo» (cujo conteué do diz o funcionamento
indicial inscrito numa relaçaã o que interrompe a seé rie das telas que ali se alonga), por outro, ela
fornece o ponto a partir do qual se entra no quadro para o ler de uma determinada maneira. O
que ela faz eé , pois, interrogar a distinção estrita entre «signo vazio» e signo pleno. O contraste da
forma e do registo formal dessa maã o-sîémbolo, em relaçaã o aos restantes elementos do quadro
confere-lhe, de resto, uma posiçaã o de destaque e de eminente visibilidade. Ela diz visivelmente:
«isto» e visa, na sua orientaçaã o digital, a pequena tela que surge, entaã o, significativamente
«vazia», em branco, aù sua frente. A ué ltima «tela-eé craã » dessa seé rie. O que o seu dedo estendido
repete, simbolicamente (representativamente), eé precisamente o valor performativo, naã o
apenas do rasgão (e da sustentaçaã o precaé ria da tela por sutura) – que abre a tela ao seu
trespassamento pelo real – mas tambeé m o seu atravessamento pelo piaçaba ou escovaã o que,
perpendicularmente, avança, na direçaã o do espectador, no espaço em que se situa tambeé m o seu
horizonte de significaçaã o.
Em segundo lugar, o que na traduçaã o brasileira figura entre pareî ntesis eé uma precisaã o
que se encontra, tambeé m, em alguns dicionaé rios de franceî s, com a respetiva abonaçaã o. Um
10º - Ora, o texto de Rosalind Krauss não contém nenhuma destas indicações ou sugestões, dadas na
tradução brasileira, como resulta claro do cotejo com a versão francesa e com outros textos de
Rosalind Krauss. Mesmo que seguindo uma prática bastante comum em Duchamp – que seria a de ler
as letras pela palavra que as designa: /tu m’/ = /tu ème/ = > /tu aimes/… – o que daria uma leitura
dupla do título: Tu m’… : 1) tu m’[emmerdes]; 2) tu aimes (/tu ème/) – há, entre as duas leituras,
ainda a considerar uma mesma presença-ausência do verbo que nunca aí se enuncia como tal. Porque
não seria outro, então, o verbo? Como podemos sabê-lo, uma vez elidido? Será possível? Porque não?
Ora, o que o título de Duchamp consagra, independentemente de qualquer leitura de omissão, é
precisamente a ausência do verbo: a Tu m’ falta o verbo que articularia o sujeito – «Tu» – ao
complemento indireto – «m’». É precisamente essa ausência do verbo que nos parece necessário
ponderar para ler a proposta que nos faz Rosalind Krauss. Que nos diz ela, mais concretamente?
Vejamos, primeiro, a tradução brasileira:
Ora, em Tu m’..., Duchamp naã o diz ‘eu’. Ele diz ‘tu, para mim’. O fato de ele
identificar aqui uma perspectiva mutante [shifting] eé ainda mais acentuado pelas
propriedades visuais dos objetos que compoã em o quadro, por seu alongamento e
dilataçaã o extremos, sugerindo que o mundo a que pertencem naã o eé controlado
pelo sistema da perspectiva monocular e sim de anamorfose, um sistema de
perspectiva dupla em que dois pontos de vista concorrenciais, um de frente e
outro de lado, representam reciprocamente a tela. «Tu m’...» designa portanto
uma experieî ncia do embreante e do indicial no momento em que a expressaã o
unîévoca do Eu se veî novamente questionada por uma espeé cie de duplicaçaã o, um
tipo de indecisaã o quanto aù localizaçaã o do sujeito. Tu m’... assinala uma disfunçaã o
no modo de operaçaã o dos embreantes, que encontramos correntemente em
determinados estados patoloé gicos da linguagem, como a afasia e o autismo
(pensamos aqui na apresentaçaã o feita por Bruno Bettelheim, de Joey pedindo aù
sua enfermeira: «quero srta. M. te balançar»), ou quando a aquisiçaã o da lingua-
gem na criança normal ainda naã o se completou e o manejo dos embreantes ainda
naã o foi completamente dominado. [...]
O proé prio estatuto da imagem fotograé fica (ou do îéndice) eé algo que Duchamp
entende como preé -simboé lico e que, enquanto tal, define para ele um tipo muito
particular de organizaçaã o do eu. Este Eu, bloqueado em estado preé -simboé lico ou
naã o simboé lico, se expressa e vive de maneira assombrosamente similar ao que
Jacques Lacan define como campo preé -edipiano e preé -verbal do Imaginaé rio.
Investido de uma imediatez corporal muito forte, o sujeito se projecta ao mesmo
tempo no exterior, em imagens especulares. Entretanto, essas imagens, que saã o
distintas do corpo e existem fora dele em um espaço visual, permanecem
identificadas com ele apesar de tudo. Por causa desta confusaã o, o habitante do
imaginaé rio naã o tem ‘identidade’ unîévoca ou orientada em torno de um ponto focal
ué nico, pois sua identidade se constitui simultaneamente dele mesmo e do outro.
Daé -se assim livre curso a esta perspectiva dupla muito particular que eé o transiti-
vismo, quer dizer uma localizaçaã o incerta do «eu», que poderîéamos chamar de
anamorfose de quem olha. Esse jogo de perspectivas eé precisamente o que chega
para nos impedir de falar do «Eu» no campo Imaginaé rio. (ibidem, pp. 86; 88-89)
De uma forma resumida, o título do quadro supõe, por um lado, para Krauss, uma
espécie de inversão ou reversão. Em «Notes on the Index» (uma espeé cie de versaã o alternativa
do mesmo texto que acabaé mos de citar, mas integrada em The Originality of the Avant-Garde
and Other Modernist Myths), Krauss refere-se de novo, explicitamente, a Bruno Bettelheim,
dele citando a seguinte passagem, sobre os pronomes: «Describing the case of Joey, one of the
patients in his Chicago clinic, Bruno Bettelheim writes: ‘He used personal pronouns in
reverse, as do most autistic children. He refered to himself as you and to the adult he was
speaking as I. A year later he called this therapist by name, though still not addressing
her as “you”, but saying “Want Miss M. to swing you”’» (KRAUSS, The Originality of the
Avant-Garde and Other Modernist Myths, Cambridge / Massachusetts / London, 1986, p.
199). O que supoã e que a relaçaã o aqui pressuposta assenta naquilo a que outros autores
chamariam transitivismo infantil. O exemplo tradicionalmente referido eé o apresentado por
Charlotte Buü hler. Diz-nos Lacan, referindo-se ao imaginaé rio e, nele, aù relaçaã o pressuposta pelo
transitivismo:
This moment in which the mirror-stage comes to an end inaugurates, by the identifi-
cation with the imago of the counterpart and the drama of primordial jealousy (so well
brought out by the school of Charlotte Buü hler in the phenomenon of infantile transiti-
vism), the dialectic that will henceforth link the I to socially elaborated situations.
(LACAN, Jacques, «The Mirror Stage As Formative of the Function of the I as
Revealed in Psychoanalytic Experience», Écrits – a Selection, trad. de Alan Sheridan,
London / New York, Routledge, 1977, p. 4)
During the whole of this period, one will record the emotional reactions and the
articulated evidences of a normal transitivism. The child who strikes another says that he
has been struck; the child who sees another fall, cries. Similarly, it is by means of an
identification with the other than he sees the whole gamut of reactions of bearing and
display, whose structural ambivalence is clearly revealed in his behaviour, the slave being
identified with the despot, the actor with the spectator, the seduced with the seducer.
(LACAN, Jacques, «Agressivity in Psychoanalysis», op. cit., p. 15)
Para seguirmos os proé prios termos de Rosalind Krauss, acerca da experieî ncia daquele
«habitante do Imaginaé rio» a que se assemelha a experieî ncia pressuposta pelo tîétulo do quadro,
dirîéamos entaã o que «investido de uma imediatez corporal muito forte, o sujeito se projeta ao
mesmo tempo no exterior, em imagens especulares», tal como acontece com Joey, segundo a
descriçaã o de Bruno Bettelheim, em relaçaã o a «Miss M». Transpondo esta observaçaã o para a
leitura do tîétulo terîéamos entaã o que Tu – no tîétulo do quadro – se deveria já dar como espaço de
m’, na medida em que este ué ltimo corresponde aù instaî ncia de um eu cuja alteridade o desloca da
possibilidade da sua univocidade, e o faz precisamente numa projecçaã o especular: «o habitante
do Imaginaé rio naã o tem ‘identidade’ unîévoca ou orientada em torno de um ponto focal ué nico, pois
sua identidade se constitui simultaneamente dele mesmo e do outro», acrescenta Rosalind
Krauss, no seu desdobramento da teoria lacaniana. Ora: a ausência do verbo no título é
consistente com este dado – o da despossessão de uma identidade unívoca, que aqui se refere aù
relação imaginária. Naã o se trata de uma omissaã o «por deceî ncia», portanto, como para o caso de
Flaubert se leî , no dicionaé rio. E naã o se trata, portanto, apenas de uma alusaã o velada ao verbo
emmerder. De facto, em se tratando de uma perspectiva dupla – uma vez que nos referimos aù
experieî ncia de uma «anamorfose do olhar», que implica a incerteza posicional do sujeito, como
condiçaã o correspondente aù sua relaçaã o de transitividade / alteridade – essa ausência do verbo
obriga-nos a uma certa leitura do quadro que nos deveria levar a repensar a possibilidade da
proé pria distinçaã o entre actividade e passividade.
11º - A segunda consideraçaã o importante, quanto ao tîétulo do quadro, tem ainda que ver com a
traduçaã o brasileira, por comparaçaã o com a sua correspondente francesa. A versaã o francesa naã o
diz «tu, para mim». Diz «Tu, à moi» - o que significa jaé , em certa medida, «tu, a/em mim». E a
diferença entre para e a/em eé a que vai do (juîézo acerca de algueé m) exterior aù impossibilidade
do juîézo acerca de quem estaé jaé (junto a/) em nós, algueé m cujo contacto nos afecta e jaé
franqueou, assim, o limite separador do nosso «interior», em relaçaã o ao mundo que nos cerca.
«Tu, à moi» implica, pois, a ideia do fluxo ininterrupto de um real que me afecta antes que eu
possa pensar-me (imaginar-me, poî r-me na imagem una que consagraria a minha diferença
estanque, impossîével no campo do imaginaé rio) exclusivamente no seu exterior. Um fluxo
ininterrupto do real – que me condiciona no proé prio acto pelo qual eu me distingo, me separo
dele para o designar, apontando – corre assim jaé por dentro de mim. Ora, eé precisamente este
«tu, à moi» - este tu em mim; este tu comigo... - que marca a singularidade do «habitante do
imaginaé rio», no sentido lacaniano de que Rosalind Krauss aqui nos fala. E eé tambeé m esta a ideia
que corresponde aù descriçaã o peirceana de îéndice como signo de conexão física, como se viu. Se
procurarmos agora projectar isto na leitura auto-biograé fica do quadro tentada por Krauss
teremos de acompanhar determinadas relaçoã es e procurar articular-lhes o sentido.
12º - A interrupção da seé rie dessas «telas-eé craã s» vazias-coloridas, mediante o uso do sîémbolo
graé fico da maã o, entra, assim, em correspondeî ncia com o rasgão da tela «Tu m’...», sobre a qual
elas se inscrevem como que en abîme. Tal como o dedo estendido da maã o-que-aponta entra em
correlaçaã o de isotopia formal e funcional com o piaçaba ou o escovaã o que vara, atraveé s desse
rasgaã o, a espessura do tecido da tela de um lado ao outro, como outro dedo apontado que
14º - Como ler entaã o o quadro naquela sua dimensaã o auto-biograé fica, tal como nos propoã e
Rosalind Krauss? Entre as duas seé ries distintas que no quadro se inscrevem, da esquerda para a
direita, a das projeçoã es em sombra dos ready-mades e a das telas coloridas dir-se-ia que haé , num
movimento de extensaã o e progressaã o em direçaã o a esse espaço «descosido», aberto e conflitivo,
simultaneamente de indiciaçaã o e de convocaçaã o – espaço de ruptura do simboé lico pelo indicial,
por um indicial que ali vem interromper a seé rie dos «quadros» que, no entanto, se daã o jaé como
espaços de um certo vazio... - seria entaã o preciso estabelecer uma correlaçaã o. Se do lado da seé rie
dos quadros eé a proé pria perspectiva a figurar a linha do tempo histoé rico, na das projeçoã es em
sombra dos ready-mades eé a asserçaã o iroé nica da circularidade (na roda de bicicleta posta sobre
o banco que lhe serve de pedestal) e a torçaã o espiralada do saca-rolhas (signo de uma extracçaã o
forçada do que permanece inserido na origem) que ali se conjugam, na afirmaçaã o de um certo
sentido de uma Histoé ria que, a partir de certo momento, se interrompe e diverge. Histoé ria da
arte do Ocidente e naã o apenas histoé ria auto-biograé fica da arte de Duchamp, cujo gesto eé hoje
tido como ponto de ruptura ou de viragem que a abriraé aù arte contemporaî nea. Aquilo para que o
dedo estendido daquela pequena maã o aponta eé jaé um «quadro vazio», nisso semelhante ao
modo de operaçaã o dos pronomes, cujo funcionamento de embreantes supoã e, como nos diz
Rosalind Krauss, naã o apenas a articulaçaã o do sistema transpessoal dos signos da lîéngua com o
real concreto da situaçaã o de enunciaçaã o, mas tambeé m o aparecimento do ponto de vista do
sujeito enunciador. E a questaã o do ponto de vista seraé aîé preponderante, como se poderia
constatar pelo que Rosalind Krauss nos diz, por exemplo, em «Uma visaã o do modernismo»,
numa passagem em que a escultura de Richard Serra eé abordada em paralelo com os
15º - Aqui, no quadro de Duchamp, tudo se passa como se essa inter(ir)rupção da Histoé ria (da
arte), de que a sua obra eé protagonista ou parte activa, fosse de par com uma ruptura em
relaçaã o, quer aù noçaã o de «pintura-pintura», quer aù noçaã o de diferença específica, aplicada a
cada uma das artes em particular. A ruptura instaurada na praé tica do simboé lico pelo
reconhecimento da dimensaã o irredutîével da indicialidade deve afectar todas as artes
particulares. Aquilo com que se rompe naã o eé apenas a organizaçaã o configuracional interna do
quadro, formal e iconograficamente regida pelos criteé rios de um certo simboé lico, mas a
exclusividade do uso dos suportes e dos materiais inerentes a essas praé ticas artîésticas, anterior-
mente consagradas pela divisaã o corporativa entre as artes. Como nos diria Rosalind Krauss, em
Under Blue Cup:
It was the medieval system of the guilds that presided over the arts as so many
separate crafts: carvers in charge of stone or wood; casters respponsible for
bronze, either statues or doors; painters at work on stained glass wooden panel
or plaster wall; weavers on grand ceremonial tapestries. Separate skills were also
maintained by the Schools of Fine Arts begun in France under Colbert. Ateliers
divided painters from sculptors as students learned by copying the virtuosity of
their masters. [...] In prompting the question «what makes this thing (urinal,
bottle rack, coat hanger, curry comb) art?», the readyade has thus shifted
from the specific to the general. In a quest for the basis of art-as-a-whole, it
has ditched the medium along with the recursive structures that make
possible to state «who you are» (KRAUSS, Rosalind, «Chessboard – The
medium is the support»; «Joust – Art after the medium», Under Blue Cup, MIT
Press, 2011, pp. 3; 32)
[Foi o sistema medieval das guildas [corporaçoã es de artesaã os] que presidiram aù s
artes como a outros tantos ofîécios separados: os entalhadores, encarregues de
pedra e madeira; os que moldavam [metal fundido] responsaé veis pelo bronze,
quer estaé tuas ou portas; pintores a trabalhar em vitral, painel de madeira ou
parede de estuque; os teceloã es em grandes tapeçarias cerimoniais. Competeî ncias
distintas, tambeé m mantidas nas Escolas de Belas Artes, começaram em França
sob o regime de Colbert. Os ateliers separavam pintores de escultores, enquanto
os estudantes aprendiam copiando a virtuosidade dos seus mestres. [...]
Colocando a questão «o que converte esta coisa (urinol, secador de garrafas,
Mestrado de Comunicação, Cultura e Artes.
Discplina: P. R. A. - Problemas de Recepçaã o da Arte
Docente: Prof. Dr. Joseé Paulo Pereira.
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Em Tu m’ o olhar anamoé rfico do sujeito que habita o «campo imaginaé rio» supoã e, assim, por um
lado, a transitividade entre as artes (esteé ticas e de oficina) e, por outro lado, o reenvio a uma
alteridade que permanece irredutîével, mesmo se outrora tendencialmente ocultada pelo que
cada sistema simboé lico pressupoã e de regulador. Seria, pois, um quadro prenunciador – em 1918
– tanto prenunciador quanto a sua (auto-)biografia (e quanto a relaçaã o que nela se marca naã o
apenas com a fotografia, estritamente, mas sobretudo com «o fotograé fico», noçaã o bem mais
abrangente, no livro de Rosalind Krauss, que atravessa, por exemplo, como se viu, a proé pria
concepçaã o do ready-made) em relaçaã o ao que viria depois, na histoé ria da expressaã o da subjetivi-
dade (a teoria do lacaniana do Imaginaé rio eé de formulaçaã o posterior, embora os termos em que
ela assenta fossem jaé rastreaé veis de observaçoã es antecedentes; sobretudo quanto ao que diz
respeito ao trabalho, quer dos psicoé logos do desenvolvimento, quer aos trabalhos de Roger
Caillois, sobre O Mimetismo Animal e a Psicastenia Lendária, onde se falava jaé de uma certa
teleplastia, a propoé sito desse mimetismo e das suas formas disfuncionais de relaçaã o e
localizaçaã o espacial, nos quais Lacan explicitamente se inspira...), bem como na histoé ria cultu-
ral e artîéstica do Ocidente...