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A Revolta de Joquebede

Daniel Santos / 14 de setembro de 2016

Joquebede é a mãe do personagem bíblico Moisés, cujo nascimento é relatado no segundo livro da
Bíblia, o Livro de Êxodo. Nesse relato, o caráter de Joquebede refletido nos planos de salvar a vida
de seu filho salta aos olhos do leitor. À primeira vista, sua tentativa de resolver o problema do choro
do menino causa-nos grande ansiedade por causa da quantidade de situações que podem fugir do
seu controle e agravar irremediavelmente o destino do seu filho. Um egípcio poderia achá-lo e
arremessá-lo no meio do rio como faraó mandou. Um animal selvagem poderia devorá-lo em
poucos minutos enquanto permanecia às margens do rio. O próprio bebê poderia tentar sair do cesto,
desequilibrar e cair no rio. A filha de faraó poderia não ter compaixão do menino e fazer o que os
egípcios foram instruídos a fazer, ela poderia ainda não aceitar a oferta de Miriã de trazer uma
pessoa para amamentar o menino. Moisés poderia ser criado num lar totalmente secular e nunca
mais se interessar pela sorte do seu povo. Por que ela acreditou que seu plano poderia dar certo? O
que poderíamos aprender deste plano que ela arquitetou? Observando mais atentamente, há diversas
lições importantes que podemos e devemos aprender com sua atitude. Eis algumas que tenho
aprendido.

1. Coragem de desobedecer
A primeira grande lição que tiro da atitude de Joquebede tem a ver com a sua coragem de
desobedecer as leis de seu país, aquelas que foram decretadas com o propósito de resolver o
problema de uma minoria dominante (os egípcios tentando conter o crescimento dos hebreus), mas
que custava e confiscava a vida da minoria que trabalhava para construir o país. Desde muito tempo
o Egito se mostrou na vanguarda em questões de infraestrutura e planejamento, graças à disposição
de alguns faraós em assimilar mão de obra estrangeira qualificada para executar seus projetos. A
chegada de José no Egito nos dias que antecederam a grande fome é um bom exemplo de como um
faraó poderia solucionar e até prevenir situações graves de abastecimento por meio de uma
administração terceirizada. Diferente do que aconteceu nos dias de Joquebede, o faraó que confiou a
José a administração do abastecimento do país não o fez às custas da opressão e extermínio de
gerações futuras. Pelo contrário, a solução encontrada por José beneficiava a todos indistintamente,
exigindo esforços dos servos e seus governantes, ao ponto de alguns egípcios terem que se oferecer
como escravos em troca de alimento (Gn 47.18-20). José não estava disposto a manter o pão na
mesa do egípcio (apenas porque era egípcio) e deixar padecer de fome o órfão, a viúva e o
estrangeiro. Alimento é uma necessidade básica do ser humano, todos precisam e devem se
alimentar. Seria desumano e cruel escolher alimentar alguns e deixar padecer outros. A solução de
José buscava um bem comum para toda a humanidade naqueles dias. Sua estratégia envolvia
“conservar com vida muita gente” (Gn 50.20) e não simplesmente salvar a minoria dominante que
lhe havia contratado como administrador naqueles dias. É este o exemplo de leis justas que visam a
preservação da vida independente de raça, idade ou status social.

Por que, então, quando a situação é inversa, os egípcios precisam agir com crueldade contra seus
escravos para resolver o problema demográfico? Por que o crescimento populacional dos hebreus se
constituía numa ameaça para o poder político do faraó? Segundo as palavras do próprio faraó, o
temor era de que os hebreus se aliassem com os inimigos dos egípcios no caso de uma guerra (Êx
1.10). Ora, se o temor é com respeito a lealdade do povo hebreu, então os egípcios sabiam que o
tratamento que vinham dando aos hebreus não era digno da lealdade que eles precisariam algum dia.
Isto com certeza não aconteceria nos dias de José, quando até os egípcios que foram escravizados
por José confessavam com alegria: “a vida nos tens dado! Achamos mercê perante meu senhor” (Gn
50.25). Assim, a lealdade do povo hebreu à faraó nos dias de Joquebede tinha sido corroída por
décadas de gestão pública desqualificada e cruel; uma gestão que não conheceu e, pelo jeito, não
fazia questão de conhecer a respeito do que José foi e fez para o Egito (cf. Êx 1.8). É óbvio que a
incompetência administrativa e a crueldade de faraó naqueles dias recebeu a roupagem de um
benefício social de controle populacional para o bem de todos. Mas Joquebede conseguia ver por
trás daquela roupagem a nudez da tirania e da crueldade daquele decreto.

É bem provável que nem todas as mães hebreias tiveram a mesma chance ou sorte de esconder seus
filhos do modo como Joquebede teve. Isso significa que, além dos egípcios que procuravam matar
seu filho, ela tinha também que enfrentar o constrangimento de conviver com as mães hebreias
cujos filhos foram pegos, as quais poderiam se constituir em obstáculos ao seu plano. Joquebede
poderia ter optado por um gesto nobre de solidariedade para com as demais famílias, cujos filhos
tinham sido mortos, entregando também Moisés para morrer como mártir.

Além disso, Joquebede poderia ter tirado como lição desta chacina a necessidade de não
desobedecer as autoridades. O autor da epístola aos Hebreus acrescenta um aspecto importante de
que os pais de Moisés “não ficaram amedrontados com o decreto do rei” (Hb 11.23). É
precisamente este princípio que me fascina – a coragem de Joquebede. Ela não se sentiu intimidada.
O decreto de faraó, neste sentido, assemelha-se ao decreto das autoridades por Deus instituídas nos
dias da igreja primitiva, proibindo a pregação do evangelho. Quando este era o caso, até mesmo o
apóstolo Paulo teve a coragem de desobedecer abertamente as autoridades (e pagar o preço de tal
desobediência) diante dos tribunais em que compareceu. Para o autor da epístola aos Hebreus, então,
a coragem de Joquebede, ainda que não tenha sido o único motivo, foi um motivo determinante em
sua atitude. Pela fé, Joquebede poderia ter adotado muitas alternativas. Mas quando o autor aos
Hebreus nos diz que pela fé ela não teve medo do decreto do rei, a conclusão a que chego é de que a
sua coragem não era o resultado de uma certeza de que seus planos funcionariam, mas sim
a causa do seu desejo de agir mesmo não tendo certeza que seus planos funcionariam.
A aplicação prática dessa atitude de Joquebede pode ser vista em muitas decisões que os pais de
hoje precisam tomar em prol do futuro de seus filhos, decisões estas que lhes custam muita coragem
para desobedecer leis injustas do seu país e pagar o preço que os nossos governantes não querem
pagar pela sobrevivência das gerações vindouras. Nosso país está construído sobre a estrutura de
algumas leis injustas que indiretamente promovem e protegem a perversão, a corrupção e a morte
de nossos filhos. Não temos como esconder nossos filhos para sempre, precisamos ter a coragem de
desobedecer estas leis injustas e idealizar meios que lhes possibilitem a sobrevivência moral e
espiritual. A desobediência de Joquebede não deve ser vista como um ato leviano de sabotagem da
liderança por Deus instituída, mas sim como um ato de alguém que não tinha como comparecer
diante de faraó e questionar a legitimidade daquela exigência. Seu gesto era um protesto de alguém
cujo direito de proteger a vida de sua descendência havia sido roubado. Promover a sobrevivência
de Moisés significava promover e participar do cumprimento das promessas feitas a Abraão de
multiplicar as sua descendência como as estrelas no céu.

2. Fé nas Escrituras
A coragem de Joquebede estava firmada em sua fé nas promessas feitas a Abraão de que os seus
descendentes seriam como o número das estrelas. Quando esta promessa foi feita a Abraão pela
segunda vez (Gn 15.12-16), o Senhor deixou bem claro que o seu cumprimento não aconteceria
antes da quarta geração dos filhos de Israel no Egito se completasse. Como uma conhecedora das
Escrituras até então disponíveis ao povo de Deus, Joquebede percebeu que o momento de ver aquilo
acontecer era chegado. Ela poderia não saber exatamente se naquele dia em que ela colocou o cesto
no rio seria o dia em que o Senhor libertaria o seu povo, mas ela sabia e cria que Deus podia usar
seu gesto de fé para abençoar o seu povo. Nunca em toda a história do povo hebreu a taxa de
natalidade foi tão alta – miraculosamente alta! Somado a isso havia a consciência de aquela ser a
quarta geração que o Senhor disse a Abraão que libertaria o seu povo do julgo do Egito.

Conforme lemos em At 7.17, alguns dentre os hebreus aguardavam naqueles dias o cumprimento
das promessas feitas ao patriarca Abraão. Joquebede era uma destas pessoas cuja fé nas promessas
contidas nas Escrituras lhe desafiara neste grande gesto de coragem. O autor de Hebreus enfatiza o
elemento da sua convicção quando diz que “pela fé, Moisés, apenas nascido, foi ocultado por seus
pais por três meses” (Hb 11.23). Seus planos não eram apenas movidos por um ato de coragem, mas
foi a sua fé de que as promessas feitas ao patriarca Abraão valiam para os seus dias. Ao colocar o
menino Moisés na face das águas, ela cria na coisa certa, agia no momento certo e contava com a
misericórdia da pessoa certa. Estes três elementos constituem o centro do sucesso daquilo que
Joquebede planejou.

3. Conhecimento
Sua atitude revela conhecimento do seu mundo, do seu povo e dos seus governantes. Dentre tantas
possíveis soluções para livrar a vida de seu filho, por que o cesto? De onde Joquebede tirou esta
ideia? Não há como saber ao certo o que passava em sua cabeça, mas é impossível não associar seu
plano com a narrativa lendária do nascimento e infância de Sargão, rei de Acade. Ainda assim,
mesmo que este seja o caso, Joquebede precisaria ter um conhecimento muito amplo de seu mundo
para poder adequar a história de Sargão para a situação de Moisés. Ela precisava saber dos meios
alternativos de impermeabilização que valeriam para o contexto do Egito, pois a formula da mãe de
Sargão não podia ser aplicada no caso de Moisés. Ela precisava saber detalhes sobre a rotina da
filha de faraó, de seus costumes e planos de banhar-se naquela região naquele dia. Ela precisava
saber o momento certo de expor seu filho diante dos olhos dos egípcios, contando apenas com um
gesto de misericórdia da parte de quem o achasse, ou um milagre da parte de Deus para que o
guardasse. É muito pouco provável que o resultado positivo do seu plano tenha sido somente obra
do acaso pelo simples fato dela ter deixado a filha mais velha para vigiar o que aconteceria. Os
preparativos de Joquebede revelam que ela tinha uma expectativa. Do mesmo modo, a reação
imediata de Miriã, sabendo exatamente quem procurar, o que falar e o que oferecer não me parecem
obra do acaso; Joquebede planejou isso e planejou muito bem.
4. Abnegação
Finalmente, sua atitude revela abnegação. Ainda que Joquebede tivesse planejado bem aquilo que
ela estava fazendo, a proposta da filha de faraó deve ter sido uma grande surpresa: “leve este
menino e crie-o para mim”. A ideia não era apenas amamenta-lo, pois o texto nos diz que ela
devolveu o menino “quando já era grande”. A abnegação a que me refiro tem a ver com sua visão de
criar o menino sabendo que ele retornaria ao palácio para viver ali pelo resto de sua vida adulta.
Salvar a vida de Moisés implicaria agora num desafio ainda maior, pois sua primeira estratégia
trilhava num caminho sem volta. Ou ela aceitava a proposta da filha de faraó de criar o menino para
o Egito ou recusava a proposta e perdia a chance de cria-lo até mesmo para o Senhor. Depois de
doze anos, Joquebede teve que aceitar o inevitável momento quando Moisés finalmente foi entregue
no palácio e foi feito filho da princesa do Egito.
Acho pertinente pensarmos neste tipo de abnegação demonstrado por Joquebede. Isto nos desafia a
pensar “para quem estamos criando nossos filhos?” Não podemos criar nossos filhos para viver
somente no contexto do nosso lar, da nossa igreja, da nossa cidade ou pais. Não sabemos o futuro
nos reserva. Não sabemos o que o Senhor fará com ou por meio dos nossos filhos. O que sabemos é
que a escolha entre criar para o Egito e criar para o Senhor não pode ser vista como excludente. No
caso de Joquebede, ela entendia que criar seu filho para ser um egípcio era cria-lo para o Senhor.
É provável que a abnegação de Joquebede tenha envolvido aspectos práticos como não circuncidá-
lo, forçá-lo a aprender mais a língua dos egípcios do que a sua língua materna, treiná-lo a amar a
sociedade dos egípcios sem se esquecer da sua origem e, acima de tudo, treina-lo numa visão de
mundo firmada nas promessas e escritos dos patriarcas (era tudo o que ela tinha naquele momento)
que não fosse diluída pela tradição religiosa milenar do Egito. Em outras palavras, ela estava
criando um menino para ser um cidadão de um mundo que ainda não existia, a saber, um mundo
livre da escravidão no Egito – livre para adorar o Deus da aliança.

Aquilo que Deus fez com Moisés a partir da libertação do Egito ia muito além do que Joquebede
poderia sonhar e contribuir. Sua pequena participação, contudo, foi um gesto de coragem, fé,
conhecimento e abnegação que garantiu a sobrevivência do seu filho. O que Deus fará com e por
meio dos nossos filhos é algo que nunca saberemos completamente, mas preservá-los vivos, fortes,
conhecendo a Deus e o mundo no qual vivem é um privilégio que visa a nos preparar para assistir a
entrada deles no mundo porvir.
Daniel Santos

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