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Em 1999, no início da adolescência, o tenista Rafael Nadal disputava o campeonato

mundial para a faixa dos doze aos catorze anos. Saiu arrasado da semifinal, ao ser
desclassificado por um francês de mesma idade e estatura, Richard Gasquet, um prodígio
que desde os 9 anos era apontado como a grande promessa do esporte na França. Hoje
com 31, Nadal virou o jogo. Gasquet se tornou um ótimo jogador, mas não passou da
sétima posição no ranking da ATP nem conquistou um Grand Slam. O espanhol, por sua
vez, tem doze títulos em Grand Slams, que é quando um jogador vence os quatro maiores
torneios da Federação Internacional de Tênis em um mesmo ano, e é o atual número 1 do
mundo. A história abre As Virtudes do Fracasso (Estação Liberdade), livro do filósofo
francês Charles Pépin que se tornou best-seller na França, com 65.000 exemplares
vendidos, e chega agora ao país, como forma de mostrar que um fiasco, em vez de
condenado, deve ser abraçado. Ao perder para Gasquet, Nadal, sob orientação do tio
treinador, passou a estudar o jogo do adversário, e aprendeu com ele: hoje surpreende os
rivais com um estilo agressivo que os pega desprevenidos, exatamente o que Gasquet fez
com ele. Pépin, um professor que se tornou célebre como autor de livros, colaborador de
programas de TV e colunista de revistas, faz uso de casos como esse para escrever um
livro acessível, quase didático, mas costurado com os conceitos e citações de pensadores
de primeiro time como Espinosa, Sartre, Nietzsche, Lacan. Foi por notar que nenhum dos
filósofos que lê e admira dedicou um livro ao fracasso que Pépin decidiu fazer o primeiro.

Por que a filosofia tem esnobado o erro? É algo surpreendente, ainda mais que a
questão de uma “vida bem-sucedida” ou “aprazível” é tema central da filosofia moral. É
possível encontrar um esboço do assunto entre os estoicos, em Nietzsche, Bachelard ou
Sartre, mas nenhum chegou a utilizá-lo como tema de livro. Uma das razões é que os
filósofos não têm manifestado suficiente interesse pela existência concreta, na qual o
fracasso é uma realidade incontornável. Na tradição ocidental, os filósofos são idealistas
ou essencialistas demais, deixando de ser suficientemente empíricos ou existencialistas.
No entanto, como afirmou Jacques Lacan, “o real é aquilo contra o qual esbarramos." A
ausência do tema do fracasso é menos evidente entre os sábios orientais: Lao-Tsé, por
exemplo, diz que “o fracasso é alicerce para o sucesso”.
Há pessoas que passam pela vida sem fracassar? Com certeza, mas talvez a vida
delas fosse mais bem-sucedida se tivessem experimentado o fiasco. É na experiência
contundente do real propiciada pelo fracasso que emerge o “por quê?”, o questionamento
do seu desejo mais profundo. Esse momento permite maior autoconhecimento e nos deixa
mais preparados para obter o sucesso. Ter êxito na vida é encontrar sua trajetória singular.
Se errar é normal, por que dói tanto? O fracasso nos machuca porque carecemos de
uma filosofia sobre o tema. Com frequência, confundimos “ter fracassado” com “ser um
fracassado”, identificando-nos com o fracasso. Ou os outros nos veem dessa forma. É útil
pensar o fracasso como uma experiência e não como evento que revela um dado sobre a
sua essência. O fracasso não é somos nós, mas o de um encontro que não se realizou
entre um de nossos projetos e um determinado ambiente.
Em que medida fracassar nos torna humanos? O fracasso contribui para nos
humanizar pelo fato de nos curar da onipotência infantil e ensinar a humildade. Pelo
fracasso, somos levados a nos descobrir mais empáticos, mais predispostos a ouvir os
outros.
A descrição que o senhor faz do sistema educacional francês poderia ser usada
para o sistema brasileiro: aulas explanativas, conteudismo, punição ao erro. Em que
medida essa configuração prejudica os estudantes e o país? Esse sistema é perigoso
por reprimir a criatividade e até mesmo a inteligência das crianças. Ele não ensina a ter
ousadia e imaginação, mas a submeter-se às normas e instruções. Formam-se estudantes
semelhantes. Já o sistema finlandês, famoso por sua excelência, valoriza a singularidade
ao permitir o desenvolvimento dos talentos de cada um. Não à toa, o país é recordista no
registro de patentes. No mundo de mudanças ultrarrápidas de hoje, precisamos ser
criativos e audaciosos, em vez de indivíduos dóceis e obedientes. As neurociências
mostram que, em caso de engano, o nosso cérebro prevê o erro antes de cometê-lo; é
nesse momento que vislumbra outros caminhos e raciocínios. A criatividade e a
inteligência estão estreitamente associadas ao erro.
De que modo os professores deveriam tratar os alunos que erram? Primeiro, o
professor deve se perguntar se é um erro promissor, capaz de ajudar o aluno a avançar no
seu talento singular. O aluno que erra sem fazer uma tentativa original acaba sendo vítima,
de fato, de um duplo fracasso: ele fracassa, e por preguiça ou falta de audácia. Mas outros
cometem erros de maneira original, por exemplo, ao se empolgar com a tarefa e fazer uma
exposição “fora do tema”. O professor não deve punir os erros promissores. E deve
perguntar ao estudante o que ele aprendeu com o erro, valorizando a aprendizagem
possível no processo.
Há erros inaceitáveis? De modo algum. Mas alguns são, naturalmente, menos benéficos:
aqueles que cometemos por conformismo, aqueles a que não damos atenção por nos
recusarmos a reconhecê-los, aqueles que atribuímos aos outros sem assumir
responsabilidade.
Como conciliar a visão existencialista ou do devir, pela qual se pode pensar o
fracasso como oportunidade, com a visão psicanalítica, pela qual o fiasco pode ser
um ato falho que revela algo sobre os nossos desejos? Realmente, não é possível
conciliar as duas visões. O existencialismo, que pressupõe uma enorme liberdade
humana, considera que somos livres para nos reinventar e o fracasso é percebido como
um convite para vislumbrar outras possibilidades de existência. “Quanto mais penoso for
meu fracasso, mais profunda será minha sensação de existir”, parece dizer Sartre. A visão
psicanalítica, por sua vez, tem pressuposto inverso: não somos livres, mas herdeiros de
uma história que nos talhou. O nosso desejo mais profundo é, com efeito, um legado, não
resultado da nossa escolha. O fracasso é um convite a tomar consciência do nosso
desejo. Cabe a cada um saber se é, de preferência, sartriano ou freudiano, se acredita
mais na liberdade total ou no determinismo do desejo. Mas Nietzsche, com a ideia do
“Torna-te o que tu és”, pode permitir uma superação dessa oposição. “Torna-te” pode ser
lido como “não se deixe enclausurar pelo fracasso”, ao passo que “o que tu és” se vincula
ao desejo verdadeiro.
A visão positiva do fracasso, por parte dos americanos, tem impacto na economia
dos Estados Unidos? A América foi descoberta por engano: já é um bom começo. O
pioneirismo é acompanhado pelo direito de cometer erros. Uma nação jovem não tem o
problema de um velho país, como a França: os franceses são constantemente tentados a
referir-se ao passado e à tradição, dos quais, aliás, se vangloriam. Aqui, o erro é
considerado uma infração à norma, um desvio lamentável do modelo. O impacto para os
Estados Unidos é evidente: maior grau de audácia e de espírito empreendedor, uma
valorização da ação. Mas há o outro lado: aqueles que não conseguem se recuperar
recebem ajuda menor e são menos protegidos do que os cidadãos de um velho país,
como a França.
O senhor advoga a favor das start-ups e das failcons. De que maneira a economia
virtual se vale dos erros? Na velha economia, os produtos eram lançados quando,
supostamente, haviam atingido o grau da perfeição. Ali, o erro nada tinha de positivo:
indicava defeito. Na nova economia, prevalece a lógica do “test and learn”. É habitual
lançar produtos ou serviços em fase de desenvolvimento para verificar como são
recebidos, corrigi-los se for o caso ou conceber outros a partir do erro detectado. De dez
produtos ou serviços lançados pelo Google, nove serão “fracassos” a que, de fato, convém
atribuir outro nome porque eles participam do sucesso de um novo produto. No entanto,
discordo da ideia, presente em muitas “failcons”, segundo a qual todas as falhas são
benéficas. Não se deve “positivar” o fracasso a todo custo, mas mostrar as condições sob
as quais uma falha pode ser bem-vinda. Não se deve também ser ansioso demais para
conseguir uma recuperação: à força de buscá-la sem medir esforços, ela não é bem-
sucedida. O fracasso não deixa de ser algo penoso e você precisa suportar essa
dificuldade durante algum tempo para, ao superá-la, aprender com ela.
Um dos caminhos para a audácia, o senhor diz no livro, é admirar e seguir um
modelo. Em que medida a era das celebridades, com a “consagração” de personalidades
sem lastro intelectual, ameaça esse caminho para a audácia? Hoje, é possível tornar-se
famoso sem desenvolver qualidades realmente admiráveis. Algumas décadas de reality
show já nos habituaram a assistir a seres humanos medíocres. É um fenômeno inédito na
história da humanidade: nenhuma época havia apresentado um tão grande número de
indivíduos sem qualidade. É evidentemente algo muito perigoso. Os modelos atuais estão
longe de ser fonte de inspiração, e a inspiração é menos convincente para ter a audácia de
nos tornarmos nós mesmos. Felizmente, ainda é possível encontrar modelos para admirar
pela singularidade. Não para imitá-los.
Em que medida o sucesso pode ameaçar o desenvolvimento de uma pessoa? Na
falta da experiência de fracasso, podemos ficar sempre na mesma via. Então, morreremos
sem ter explorado todas as possibilidades da vida. Outro risco relacionado ao sucesso é
se identificar com ele e se tornar arrogante, deixar de se questionar e perder a criatividade.
É preciso aprender a gerenciar os sucessos, assim como os fracassos. Diante do sucesso,
temos de formular a mesma questão que se deve lançar perante o fracasso: “O que posso
fazer com ele?”

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