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ACÓRDÃO DO MANDADO DE SEGURANÇA Nº 191153659

MANDADO DE SEGURANÇA. IMÓVEL LOCADO A TERCEIROS E INCIDÊNCIA


DA LEI N° 8.009/90.

Demonstrado que o direito à habitação depende da continuidade do domínio sobre o


imóvel originalmente destinado à residência da família, enquadra-se também nas
disposições protetivas da Lei n. 8.009/90 o proprietário que, em circunstâncias justificáveis,
alugou-o para, com o produto da locação, a sua vez locar outro mais conveniente para a
entidade familiar.

INTERPRETAÇÃO LITERAL E INTERPRETAÇÃO TELEOLÓGICA DA LEI.

A máxima "in cIaris cessat interpretatio" é vista com reservas pela hermenêutica
jurídica, vez que, obscuro ou claro, ambíguo ou incontroverso, há de se submeter todo texto
jurídico à consciente interpretação do julgador. Aí avulta o método teleológico, para o qual a
norma que contém conteúdo protetivo de certa situação em face de determinadas
circunstâncias econômicas e sociais deverá ser interpretada de modo a que assegure
plenamente a tutela do interesse por ela resguardado.

DIREITO INTERTEMPORAL: APLICABILIDADE IMEDIATA DA LEI N° 8.009/90


SOBRE OS PROCESSOS PENDENTES.

Não esgotado o iter executório com a expedição da carta de arrematação, aplica-se


de imediato sobre a execução pendente a Lei n. 8009/90, não se configurando aí ofensa ao
direito adquirido e ao ato jurídico perfeito. Segurança concedida.

Mandado de Segurança n° 191153659 -4. Câmara Cível - São Sepé.

Ayra Cora Dutra Lopes, requerente - Exmo. Sr. Dr. Juiz de Direito da Comarca de
São Sepé, coator -Daltro Dante de Freitas, interessado.

ACORDÃO

"Os Juízes da 4. Câmara Cível do Tribunal de Alçada do Estado, por unanimidade,


acordam em conceder a ordem.
Custas ex lege.
Participam do julgamento, além do signatário, os eminentes Juízes de Alçada Sérgio
Müller e Armando Mário Bianchi.
Porto Alegre, 19 de dezembro de 1991.
Jauro Duarte Gehlen, Presidente e Relator.

RELATÓRIO

Dr. Jauro Duarte Gehlen- Ayra Cora Dutra Lopes impetrou o presente writ contra ato
do Exmo. Sr. Dr. Juiz de Direito da Comarca de São Sepé, que determinou fossa praceada,
na ação de execução por titulo extrajudicial que lhe moveu Claudionor Aires dos Santos, a
única residência familiar da qual é proprietária, a qual, a luz da Lei n. 8.009/90, é
impenhorável. Aludiu que a autoridade dita coatora indeferiu os embargos à penhora que
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opôs sem examinar a possibilidade da aplicação da norma suso citada, querendo, via o
mandado vertente, fosse suspenso o leilão aprazado para a venda do imóvel, postulando
fosse concedida in limine a ordem.
Examinando os autos, tomei por bem em conceder a liminar pleiteada; comunicado o
juízo a quo, este prestou as informações solicitadas.
Com vistas ao custos legis que junto a esta Câmara atua, este opinou, em
seu parecer, em prol da concessão da segurança.
Veio aos autos Claudionor Aires dos Santos impugnando a pretensão vertida neste
mandamus, sustentando da inaplicabilidade da invocada lei, eis que encontra-se locada a
residência a terceiros, não protegida, pois, pela impenhorabilidade. Ademais o título
exeqüendo originou-se antes da referida norma legal, rechaçando, após, as demais
alegações da ex adversa.
Vieram-me conclusos os atos. Taí a história relevante do mandamus.

VOTO

Dr. Jauro Duarte Gehlen - Neste processo se versa sobre eloqüente exemplo da
necessidade de ter o juízo permanentemente, o farol do art. 5° da Lei de Introdução ao CC a
iluminar-lhe a trilha da exegese legal, para que responda a norma incidente ao imperativo de
justiça, sempre exigível na conformidade dos contornos específicos do caso concreto em
julgamento.
A impetrante é divorciada, mãe de 5 filhos, que sustenta com a venda de produtos de
beleza... Necessitou mudar a sua residência de Caçapava para a região metropolitana, em
função de estar um deles cursando nesta a Universidade. E o aluguel que aqui paga é o
produto da locação do único imóvel familiar que possui na cidade de origem - para onde
pretende retomar quando concluído o curso superior do filho em Caçapava do Sul.

Tais fatos foram argüidos na instância de origem e lá não mereceram impugnação


específica do exeqüente, limitando-se esta à interpretação literal do art. 1° da invocada Lei
n. 8.009/90.

Diz este com efeito: "O imóvel residencial próprio do casal, ou de entidade familiar, é
impenhorável e não responderá por qualquer tipo de dívida civil, comercial, fiscal,
previdenciária ou de outra natureza, contraída pelos pais ou filhos que sejam seus
proprietários e nele residam, salvo nas hipóteses previstas nesta lei...” Coloca o legislador,
pois, agregada à condição de dominus, a de residirem os executados no imóvel conscrito,
resultando daí dupla exigência para a aplicabilidade da exceção à regra geral do art. 591 do
CPC ("O devedor responde, para o cumprimento de suas obrigações, com todos os seus
bens presentes e futuros, salvo as restrições estabelecidas em lei").

Isto, repito, desde que feita a leitura literal do dispositivo.

Porém, como adverte Maximiliano, "a palavra é um mau veículo do pensamento; por
isso, embora de aparência translúcida a forma, não revela todo o conteúdo da lei, resta
sempre margem para conceitos e dúvidas; a própria letra nem sempre indica se deve ser
entendida à risca, ou aplicada extensivamente; enfim, até mesmo a clareza exterior ilude;
sob um só invólucro verbal se aconchegam e escondem várias idéias, valores mais amplos
e profundos dos que os do texto (...). os apologistas do in claris cessat interpretatio
confundem a essência da interpretação com a dificuldade ou amplitude da mesma; "nas
disposições claras o trabalho é menor; mas existe sempre". É ele que dá vida ao texto
morto, ilumina a fórmula rígida. Quem adota a máxima escolástica reduz o Código a strictum
jus, lex barbarorum, destina a fixar casos explicitamente contidos nas suas disposições e
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mais nada.(Hermenêutica e Aplicação do Direito, Carlos Maximiliano, Ed. Forense, 1980, n.


41 e 43, p. 36 e 37).

Entre os vários prismas pelos quais se pode enfocar a interpretação legal, tenho que
na espécie se ajusta melhor o da "perquirição do sentido teleológico da norma”. O Direito,
segundo Wurzel, é considerado como uma ciência primariamente normativa ou finalística,
pelo que, adianta Maximiliano, a hermenêutica terá sempre em vista o fim da lei, o resultado
que a mesma precisa atingir em sua atuação prática (op. cit. p. 152). A norma enfeixa um
conjunto de providências protetoras, "julgadas necessárias para satisfazer certas exigências
econômicas e sociais; será interpretada àquela finalidade e assegure plenamente a tutela de
interesse para a qual foi regida" (id. Ib.).

A "exigência econômica e social" (para usar a expressão do jurisconsulto citado)


determinante da edição da Lei n. 8.009/90 foi, evidentemente, a de se tentar preservar, tanto
quanto possível, não especificamente o "direito de propriedade do devedor" sobre o seu
imóvel residencial, mas sim o direito de ter a "entidade familiar"(sic, art. 1°, cit) um lugar
onde morar, vale dizer, o de "continuar morando embora o ajuizamento do processo de
execução por dívida de qualquer natureza”. A essa resultante se chega também pela
disposição contida no parágrafo único do art. 2º da mesma Lei 8.009/90, assim redigido: "No
caso de imóvel locado, a impenhorabilidade aplica-se aos bens móveis quitados que
guarneçam a residência e que sejam de propriedade do locatário”. Daí se infere que ao
inquilino se assegura o minimum minimorum de manter consigo os móveis da residência,
ainda que executados por dívida proveniente da própria locação, subseqüente e eventual
despejo. Com isso poderá "guarnecer" outro imóvel que venha a ocupar, facilitando-lhe a lei
em tela o "direito de morar", de ter um teto, portanto.

Se esse é o escopo da Lei n° 8.009/90, segue-se que a aplicação literal do disposto


no seu art. 1° pode levar à neutralização desse intuito protetivo, em hipótese consimili à
destes autos. Aqui, reprisa-se, a impetrante sequer abdicou voluntariamente do direito de
morar em seu próprio imóvel. As circunstâncias socioeconômicas a forçaram a transferir
residência para Canoas, em função da universidade cursada por um dos seus filhos. E aqui
paga, repito, com que recebe da locação em Caçapava do Sul, o aluguel devido ao seu
senhorio.

Por outras palavras: se perder a casa de Caçapava na execução, perde o teto que
tem em Porto Alegre. Isso é não apenas intuitivo, como se revela concreto no mandamus.

Destarte a interpretação literal desse texto redundará, na hipótese dos autos, na


inoperância do dispositivo, sobre entrar em rota de colisão com seu conteúdo teleológico. E
aí convém recordar-se que já no Digesto Juliano advertia, no liv. 34, tit. 5, Frag. 12, que
comodissimum est. Id accipi, quo res de qua agitur magis vaieat quam pereat, ou, em
vernáculo: "prefira-se a inteligência dos textos que toma viável o seu objetivo, ao invés da
que os reduz a inutilidade".

Nos autos estampa-se a verdade do aforismo. O mesmo ocorreria se algum


proprietário premido pela dificuldade financeira aluga-se um imóvel residencial para, com o
produto da locação, assegurar a subsistência inclusive alimentar de sua família. Em tal caso
permitir-se o praceamento do bem vocando-se o fato de nele não residir seu dono, para este
implicaria não apenas retirar-Ihe condições para alugar outro de menor valor como cortar-
Ihe o acesso ao alimento.

Desde que demonstrado, pois, que o direito à habitação resulta da manutenção do


domínio sobre o imóvel originalmente destinado à residência familiar enquadra-se nas
disposições protetoras da Lei n° 8009/90 também o proprietário que, em circunstâncias
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justificáveis alugou-o para, com o produto da locação, à sua vez, locar outro para a entidade
familiar.

Abordo agora outro tema focado na intervenção do exeqüente nos autos deste
mandado de segurança, qual de ser a execução anterior à Lei n. 8.009/90. Ocorre que a
penhora, pelo que se vê das informações de fl.20 foi posterior a ela. Ainda que assim não
fosse, tem esta Câmara mantido o entendimento da imediata aplicação da lei questionada,
mesmo quando já efetivada a penhora. Reporto-me ao voto que exarei no Agravo de
Instrumento n. 191141837, transcrevendo parte da sua fundamentação. Não se pode perder
de vista que a penhora em si nada mais é do que o passo inicial do iter executório
propriamente dito, que inicia com ela (a constrição de determinado bem em segurança do
juízo) e finaliza com a expedição da carta de arrematação para o adquirente da coisa em
hasta pública. Assim enquanto não esgotado esse iter, tem-se como imediata a incidência
da Lei n. 8.009/90, protetiva do patrimônio familiar, neutralizando a penhora efetuada. Não
fora isso, e ter-se-ia de admitir a possibilidade de vender-se em praça pública bem que,
quando da realização desta, não é penhorável.

Inexiste na hipótese algum facta praeterita, mas mero facta pendentia, isto é, ainda
não constituído e muito menos consumado. Não se pode cindir o iter executório em atos
isolados. Evidente que a penhora se liga à avaliação, esta à praça e a praça à arrematação,
de maneira indissociável. Sabe-se que três são os sistemas criados pela doutrina para
enfocar o problema da retroatividade da lei nova sobre o processo civil: o da "unidade
processual", que preconiza a incindibilidade do processo, que como um todo deve ser
regrado ou pela lei nova ou pela lei antiga; o das "fases processuais autônomas", pelo qual
cada uma destas seria in totum regulada por uma lei única, a nova, desde que esgotada não
tenha sido, e a da “unidade independente de cada ato do processo", pelo qual até uma
intimação feita sob a forma da lei velha seria considerada intangível pela nova, ainda que
objetivasse cientificar a parte para realizar determinado ato que a lei nova estaria regulando.

Ora, embora correntes doutrinárias se inclinem para este último sistema no que
concerne ao processo civil brasileiro, não se pode deixar de constatar que: a) o segundo é
bem mais lógico, por implicar uma visão sistêmica do processo, que é a soma das diversas
fases autônomas com o que se acaba preservando a noção de conjunto e se respeitando a
interligação umbilical dos atos que o compõe; b) que o legislador pode optar, entre três
sistemas teóricos, pelo que entender mais conveniente, não se precisando filiar,
necessariamente, à corrente que eventualmente seja repositório no maior número de
adesões.

Não há regra ou princípio expresso que proíba isso ao legislador, repito. Ao adotar o
sistema das "fases processuais autônomas", continua, evidentemente, fiel ao principio da
irretroatividade da lei e aos da preservação do ato jurídico perfeito e dos direitos adquiridos.

Veja-se que, por ocasião da arrematação, se ensejariam novos embargos, nos


termos do art. 746 do C PC, por nulidade da execução, aí compreendida a penhora de bem
impenhorável. Para evitar isso, entendem os defensores da última corrente das três antes
citadas que os efeitos da lei velha se projetariam para o futuro, regulando os atos vinculados
àquele que sob égide se realizou. Ora, há ai evidente incongruência comcessa
venia maxima. Se a lei nova não pode retroagir, tampouco pode a velha regrar fatos que
lhe são posteriores. Regular, pois, a arrematação, pela lei vigente à época da penhora
representa maior violação aos princípios do Direito intertemporal, do que sustentar-se deva
a lei nova incidir penalmente desde que não esgotados todos os atos interligados de uma
determinada fase processual.

Argumenta-se que o art. 2º do CPP expressa princípio geral de Direito processual


intertemporal aplicável ao CPC, ao dispor que a lei processual penal aplicar-se-á desde
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logo, sem prejuízo da validade dos atos realizados sob a vigência da lei anterior" (sic). Ora,
aí não se está preconizando que os efeitos da lei velha se projetarão no mundo sobre os
atos ligados àqueles que sob seu pálio foi praticado. Nem muito menos se está vedando a
aplicação do sistema das "fases processuais autônomas". Aliás, este é o que mais
se coaduna com a regra do art. 1.211 do CPC vigente, que determinou a incidência plena de
suas disposições - "desde logo aos processos pendentes" - (sic). Só assim, repiso, é que se
evitará a situação extremamente constrangedora de deixar-se ir ao martelo do leiloeiro, em
público pregão, a residência de uma família, quando lei existe protegendo-a com a
impenhorabilidade. Esse aliás, foi o intuito expresso do legislador pátrio.

Observe-se que a Medida Provisória 143, de 08.03.90, que dispõe sobre


a impenhorabilidade do imóvel residencial da entidade familiar, foi bastante clara no seu art.
6°: "Esta medIda provisória entra em vigor na data da sua publicação e suspende as
execuções em andamento, cancelando-as somente depois de transformada em lei (verbis).
E a lei n. 8.009/90, de 29.03.90, no seu art. 6°, completou: "São canceladas as execuções
suspensas pela Medida Provisória n. 143, de 08.03.90, que deu origem a esta lei" (verbis).

Evidente que o legislador "suspendeu" e "cancelou" as execuções, no sentido de


livrar o imóvel constrito que se enquadrasse na proteção legal sub oculis. Adotou, pois, a
teoria das "fases processuais autônomas", compreendendo a penhora como o primeiro ato
da fase executória propriamente dita. Não há ali nenhuma inconstitucionalidade. O princípio
do respeito ao ato jurídico perfeito e ao direito adquirido está preservado. Não
houve irretroatividade. Esta só ocorreria se expedida a carta de arrematação se fizesse
incidir a lei nova para anular a execução. Por isso repete-se suspendeu-se e cancelou-se
(na Medida Provisória e na Lei n. 8.009/90, respectivamente) a execução. Esta existe
enquanto a carta de arrematação não for expedida. Encerrado o iter executório, não há mais
execução em andamento. E só aqui, se estivesse andando, é que poderia ser suspensa e
cancelada, obviamente. Apenas quando esgotado este iter da capo al fine, mais uma vez
insisto, é que se poderia alegar a ocorrência de efeito retroativo violador do ato jurídico
perfeito ou do direito adquirido.

Tem a impetrante, pois, direito líquido e certo de ver excluído da penhora o imóvel
apontado, razão pela qual, incorporando ao voto também os fundamentos do parecer do
ilustrador procurador de justiça, concedo-Ihe a segurança pleiteada para tornar definitiva a
liminar suspensiva do praceamento daquele bem devendo o exeqüente, pois, indicar outros
à constrição judicial.

É o voto.

Os Drs. Sérgio Müller e Armando Mário Bianchi - De acordo.

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