You are on page 1of 101

ÍNDICE

around us people are smiling who´s there smiling


Arte Experimental - Todd Lambert - E.U.A Em Dircurso Directo com:
Conceito - The artist Survival Kit - E.U.A Rui Plee - Ilustração
Humor - Flight Of The Conchords - Nova Zelândia Carlos Neves - Escultura em casca de ovo
Curta-metragem - Koki Tanaka - Japão Hugo Costa - Moda
Documentário - How To Explain to My Parents - Alemanha
Conceito - Improv Everywhere - E.U.A fashion smiles
Shortcuts
design smiles Cool
Cook Your Dress
Shortcuts
My Wall Is Your Wall (inclui entrevista com Kurt
Wenner) photography smiles
Stick Your Heart Shortcuts
Fine Art
music smiles
Shortcuts literature smiles
Playlists Shortcuts
Canções para o coração ( inclui entrevistas com A Escrita Erótica: Discursos e Sensualidades
Legendary Tigerman e Gomo) Desassossegados
Entrevista - Sébastien Perrier - França O Diálogo e o Papel no Texto Literário
Musicodependência
FICHA TÉCNICA Direcção:
Carlos Lopes
carlos@ext-minds.com
Marlita Deodata
marlitadeodata@ext-minds.com
Ricardo Tsou
ricardotsou@ext-minds.com

Editora:
Selma Pereira
selmapereira@ext-minds.com

Comunicação:
Alberto Mendonça
media@ext-minds.com

Colaboradores:
Ana Sá
André Santos
Bruno Balegas
Gualter Franco
João Lamares
Isabel Mendes
Micael Santos
Miguel Silva
Mónia Camacho
Paula Lamares
Rafael Costa
Ricardo Branco
Rui Guimarães
Sandra Figueiredo
EDITORIAL

Somos a favor da partilha, da garra em lutar pelos nossos


objectivos e acreditamos no futuro. Somos pró-activos e adoramos
saber tudo sobre tudo. E queremos conhecer pessoas, muitas
pessoas, lugares e boas ideias. Queremos ser um veículo de
partilha com todos que se queiram juntar a este movimento em prol
da criatividade, da informação e boa disposição.

Somos uma publicação digital portuguesa que pretende criar uma


ligação interactiva entre os criativos, os leitores e as diferentes
culturas existentes no mundo. Procuraremos sempre transmitir
uma identidade e linguagem próprias. Uma forma de estar que se
traduz em duas palavras: New Optimism.
VESTE A
NOSSA
Bem vindos. CAMISOLA
Sintam-se em casa. Demorem-se.

Marlita Deodata

Criamos duas t-shirts optimistas para oferecer a dois optimistas


(um homem e uma mulher).
Queres uma?

Convence-nos que és o maior optimista à face da terra, enviando


um e-mail para new.optimism.magazine@ext-minds.com que
comprove esse facto.
AROUND US PEOPLE ARE SMILING
Documentários
09 Uma série de documentários em que
artistas plásticos explicam aos seus
próprios pais em que consiste o seu
Arte Experimental trabalho.
Notas urbanas deixadas ao acaso assinadas por LINK
um personagem chamado Chris. Em Nova
Iorque as lamúrias de Chris já são conhecidas
por toda a cidade.
LINK
HOW TO EXPLAIN MY PARENTS
LERNERT & SANDLER
TODD LAMB ALEMANHA
E.U.A.

Kit Criativo
“For the really bad days, for the days
when you want to quit, when you feel THE ARTIST´S
SURVIVAL KIT
like everything you do is shit..” E.U.A
LINK

http://www.ciac.pt/
POSSO APAGAR A LUZ SE
NÃO FIZER DIFERENÇA!?
PORTUGAL

VIDEO Conceito
Neste blogue podem ver várias es tórias acom-
panhadas por uma f orte ilustração. Estórias e
ilustrações criadas por diver sas pessoas que
vão par ticipando nes te espaço. O objectivo
final será a edição das 1 00 melhores es tórias
e respectivas ilus trações.
KOKI TANAKA LINK
JAPÃO

Curta-metragem 1000 AWSOME THINGS Contagem


E.U.A. Um site dedicado a contar
How to draw a line on the road 1.000 coisas fantásticas
LINK que podemos fazer.
_____________ LINK
FLIGHT OF THE CONCHORDS
Humor
NOVA ZELÂNDIA Duo de comediantes que
usa uma combinação en-
tre letras humorísticas e
música. LINK
BUSINESS TIME

VIDEO
Em Grupo IMPROV EVERYWHERE
“Improv Everywhere E.U.A.
causes scenes of
chaos and joy in
public places.”
Descobre algumas
das missões deles.
LINK
DESIGN 15
ERIKA IRIS SIMMONS
Escultura - E.U.A
SHORTCUTS LINK

JENNIFER MAESTRE Obras exclusivas criadas a partir da fita das velhas cassetes de
música. Que melhor meio para representar fielmente os músicos?
Escultura - África do Sul
LINK

Jennifer Maestre consegue criar esculturas com centenas de lápis


de cor, apresentando um trabalho colorido único.
17
BEN HEINE
Ilustração - Bélgica
LINK

A Ilustração ainda pode surpreender. Ben Heine consegue ter


uma linguagem própria ao usar o desenho como um
complemento da fotografia.
DESIGN
MY WALL IS YOUR WALL
19 Mónia Camacho

Trânsito parado. Os olhos, cansados de fixar o sinal vermelho,


vagueiam pela paisagem urbana, atraídos pelas cores de uma
amálgama de letras a querer saltar da parede. O mesmo
quarteirão está coberto de imagens, a lembrar um cenário Pop Art,
mas numa mensagem menos ligeira. Graffiti. Arte urbana por
excelência, mantém a sua aura de marginal e rebelde.
Apesar da evolução da mentalidade social, o graffiti tem vindo a
ser mais aceite, em grande parte devido ao reconhecimento da A irreverência está ligada à ausência de permissão. Banksy
qualidade de alguns artistas, como é o caso do americano Jean- (www.banksy.co.uk), artista britânico dono de uma sensibilidade
-Michel Basquiat, neo-expressionista do final do séc. XX (ligado a notável, capaz da maior subtileza na provocação usando graffiti,
nomes como Madonna e Andy Warhol), que inscreveu os seus chegou mesmo a pintar o muro de segregação que divide a
pensamentos em forma de crítica poética em paredes, portas e até Palestina de Israel. E se calhar não pediu a ninguém…
em capacetes.

O Graffiti faz, inequivocamente parte,


da comunicação urbana. Não apenas
relativamente à mensagem contida
numa parede, mas na sua relação com o
meio envolvente. Os seus executantes,
chamados “writers”, não são consensu-
ais quanto à utilização dos espaços de
forma legal. Para alguns, a autorização
desvirtua a arte, retira-lhe a sua
componente crítica, domestica-a.

Jean Michel Basquiat


Humor Bansky
Mónia Camacho MY WALL IS YOUR WALL

Muitos precisam de uma certa clandestinidade para se sentirem Embora seja ainda, como em tantas outras, uma coisa de homens,
“writers”. Andar nos limites, viver com a adrenalina a percorrer os as mulheres também têm deixado a sua marca. São bons
sentidos e pertencer a algo “underground”. O ambiente de um exemplos, LADY PINK e CLAW (www.infamythemovie.com). A
certo secretismo torna-os especiais. Claro que também existem reputação enquanto mulheres, os locais e horas a que
aqueles que o fazem pela arte em si, pela necessidade de criar normalmente se escreve, o facto de nem sempre serem aceites
imagens em espaços públicos. De ter uma montra gigante para dar pelas “crew” (grupos de “writers”) e o facto de, à partida, não
vida à sua sensibilidade criadora. Ser visto por todos e não apenas serem levadas a sério na realização da arte em si, são alguns dos
deixar uma mensagem, a qual só possa ser lida por outro “writer”. principais motivos que dissuadem os elementos femininos de
Porém, verdade seja dita, a maior parte não pensa nisto enquanto intervir e alterar a paisagem através dos graffiti.
cria. Naquele momento, são apenas eles, a parede e um mundo de
cor prestes a ser libertado.

Claw

21

Pink Lady
Mónia Camacho MY WALL IS YOUR WALL

Em Portugal existe também uma cultura graffiti bastante visível. Sendo uma realidade global, o graffiti, enquanto forma de expres-
Não faltam artistas talentosos e activos a produzir com qualidade. são, encontra cidades tolerantes e outras que mantêm a firme
São os casos de Odeith (www.odeith.com) e de MrDheo (www.mr- determinação de eliminá-los das ruas (Nova Iorque possui até
dheo.com), entre os muitos que preenchem as nossas paredes uma “Anti-Graffiti Task Force”). Estas duas reacções da sociedade
com inspiração e capacidade técnica, criando cenários e abrindo civil e das respectivas instituições geram dois fenómenos interes-
novos caminhos na arte. santes:

1- A própria cidade é um livro que pode ser lido em qualquer


sentido. Essa consciência levou até à criação de um mapa que
contém indicações sobre todos os locais que possuem um mural,
ou uma inscrição com a informação do autor segundo a respectiva
assinatura (“tag”), sempre que esta é identificável e com a
fotografia da peça. O criador desta útil e interessante ferramenta,
o brasileiro Rogério Oliveira (www.typograff.com), incita todos
aqueles que queiram colaborar com a iniciativa, a enviar uma
fotografia com o endereço onde se encontram os graffitis. Este
fenómeno já ultrapassou as fronteiras do Brasil: estão a ser
Odeith recebidas fotografias de diversos países.

23

Exemplo de um
mapa dos locais
onde se encontram
graffitis
Mónia Camacho MY WALL IS YOUR WALL

2- O facto de os graffitis serem removidos logo que são detectados


faz, de certa forma, com que o seu valor aumente, como acontece
com tantas outras coisas efémeras. Parece uma arte mágica: um
dia está ali, vibrante e a desafiar quem passa; no dia seguinte
desapareceu.
Longe de demover os “writers”, esta obsessão da comunidade em
manter as paredes imaculadas, aumenta o fascínio da actividade.
Os apreciadores das imagens criadas sentem necessidade de as
eternizar e proteger. Assim, a fotografia vem dar o suporte e a
Internet a possibilidade de partilhar e armazenar arte. Neste
contexto surgem comunidades e projectos como “art crimes”
(www.graffiti.org), que se dedicam a documentar os graffitis e a
garantir a sua sobrevivência. São os guardiões desta forma de
expressão. Muitas vezes desaparecem os suportes físicos, mas
virtualmente a imagem perdura.

Estes documentos dão um contributo para a história do graffiti e


fazem-nos pensar na pertinência de criar um “Museu Graffiti”, o
qual possa receber paredes cujo destino seria a demolição e,
34
25 também, que possua espaços onde os artistas possam mostrar a
sua lata,fazendo uso das plataformas virtuais, para mostrar o que
foi sendo feito ao longo dos tempos e o que se escreve pelo mundo.
Este é um desafio às instituições.
Na verdade, os graffitis fizeram já a sua entrada nos museus, com
aceitação por parte do público.
Mónia Camacho MY WALL IS YOUR WALL

A Tate Modern, sempre na vanguarda, mostrou a sua fachada Este conceito mostra, entre outras
coberta por graffitis de artistas geniais como “BLUBLU” funcionalidades, como é possível
(www.blublu.org) que consegue uma admirável conjugação do seu criar graffitis no vazio, (sem o
imaginário com as estruturas urbanas, na mesma linha de outros suporte de uma parede) através da
artistas como “NUNCA” (www.lost.art.br) e “ERICAILCANE” captação, por três câmaras, dos
(www.ericailcane.org). movimentos do artista, tratados
por um software que os converte
em linhas e manchas de cor,
exibidos, então, nos óculos vídeo,
via bluetooth, em tempo real.

Next Wall
O autor dos graffitis pode determinar as cores, as espessuras e as
Ericailcane Blublu texturas, controlando toda a parte criativa do trabalho, através de
um comando. O resultado será um desenho 3D que pode ser
Outros museus mostraram interesse pelo Graffiti. São exemplos o gravado como ficheiro digital. Entramos assim na era da “lata
Museu de Arte Contemporânea de São Paulo, no Brasil, que virtual”. E por falar em latas e em novidades, a marca Graffomat
incorporou no seu acervo este tipo de arte e o Museu de Arte criou a “Graffiti vending machine” que permitirá a qualquer
Moderna de Lille, em França, que convidou Mirko Reisser, artista “writer”- a quem falte a cor a meio da noite - resolver o seu
27 conhecido por “DAIM” para “fazer” uma parede. “DAIM” problema de expressão.
desempenhou um papel importante na criação da terceira
dimensão nos graffitis. (www.daimgallery.com). Uniu a tecnologia
à realização desta arte, com o projecto “tagged in motion” criando
a sua “next wall” (www.nextwall.net).

Graffiti Vending Machine


Mónia Camacho MY WALL IS YOUR WALL

Para ambientes interiores e para Os artistas do Graffiti começam já a criar “merchandising”, sendo
aqueles que acham os aerossóis possível adquirir t-shirts e outros itens com a estampagem das
agressivos, existe a possibilidade de suas obras. As letras intricadas e de cores plenas, entram assim
recorrer a “marker pens”. Estas também no nosso quotidiano. Podemos por exemplo vestir
oferecem resultados igualmente “DAIM” (DAIMartwear), artista que inclusivamente se aliou à
apelativos em termos visuais, como Levi's na criação de algumas peças de roupa, com sucesso.
se pode ver neste mapa de “Anorak”.

Anorak Contemporary Art


A vertente comercial dos graffitis começa também a ser explorada
em iniciativas empresariais sérias, em que os artistas se propõem
pintar espaços domésticos, bares, garagens e outros locais priva-
dos (www.hire-a-graffiti-artist.co.uk). Os graffitis podem ser um
negócio, embora, para alguns, essa realidade seja contraditória
em relação ao espírito da própria arte.
Graffi Kings DAIMartwear
Muitos outros artistas têm trabalhado com marcas de prestígio,
que começam a reconhecer o potencial nestas parcerias, já que os
graffitis representam a juventude, inovação artística, audácia e
29 outras características que se encontram numa relação de
identificação com os seus produtos.
Mónia Camacho MY WALL IS YOUR WALL

Existirão sempre múltiplas sensibilidades face a esta arte. Os que


acham que é vandalismo ou sabotagem das estruturas urbanas e
os que lhe apreciam o carácter artístico. Porém, os graffitis
mostram já várias décadas de existência e têm evoluído
favoravelmente enquanto meio de expressar criatividade. Neste
sentido, foi criado um festival que acolhe “writers” de todo o
mundo, em eventos que pretendem promover a actividade e os
laços, quer entre os diversos criadores, quer entre a comunidade
em geral. O “International meeting of Styles” ou apenas MOS, é já
um sucesso e conta com inúmeras edições (http://wallstreetme-
eting.de/).

A mais recente ocorreu nos dias 29 e 30 de Maio, em França.


Portugal recebeu o festival em 2003, na cidade das Caldas da Wall Street Meeting
Rainha, a mesma que se encontra documentada no site do
festival. A filosofia de vida portuguesa e a maneira de estar face A pintura de pavimentos é uma outra forma de arte de rua,
aos graffitis foi apreciada, tal como se pode ver pela história que é extremamente poderosa. Os seus artistas possuem grande
contada sobre uns polícias que, tendo detido dois “writers”, capacidade técnica dando aos seus trabalhos beleza, perfeição e
deixaram-nos ir em liberdade depois de lhes pedirem para detalhe, espantando quem passa. A terceira dimensão é
escrever o próprio nome na parede. Afinal também pode haver explorada através de técnicas como a anamorfose (em que a
31 apreciadores de graffitis na polícia. Os mentores do evento e da imagem revela-se vista de determinado ângulo). Assim, em
página Web aconselham os “writers” em tom de desafio, dizendo- qualquer metrópole, podemos olhar o precipício criado com uma
-lhes que se eduquem, sejam críticos, elevem a sua mente e súbita catarata, que se abre ante os nossos pés ou mesmo uma
resistam ao sistema. A ideia é obter uma comunidade de “writers” cena que parece retirada de um pedaço da Bíblia.
que seja culta, educada e de mente afiada.
Mónia Camacho MY WALL IS YOUR WALL

E acreditem, os sentimentos de vertigem ou receio quanto às O maior inimigo destas imagens é a chuva. Pois é…Basta chover
cenas percepcionadas são bem reais. A sensação de podermos ser um pouco e as coisas complicam-se. Como diz Edgar Mueller: “se
engolidos pela terra a qualquer momento passa-nos pela cabeça. chover vou-me embora e pinto outra imagem amanhã”, já que
A trilogia Edgar Mueller (www.metanamorph.com), Julian Beever e umas meras gotas de água podem arruinar um trabalho de dias.
Kurt Wenner (www.kurtwenner.com) é incontornável quando se
fala de arte em pavimento em 3D. Estes são os mestres da
actualidade. E a história da pintura no chão irá sempre dividir-se,
em antes e depois destes artistas. É uma arte que permite uma
interacção notável com o observador, o qual passa a ser, também,
uma peça do puzzle, ao contribuir com as suas reacções. Kurt
Wenner defende uma arte que possa ser vivida. Conjuga o passado
com o presente numa reinvenção constante. As suas imagens
renascentistas moldam-se a conceitos da actualidade, numa
força capaz de perturbar o observador. Kurt Wenner cria visões.
Quando a arte é capaz de provocar sensações tão fortes, temos a Julien Beever Edgar Mueller
certeza de que o seu autor é especial. É extraordinária a forma
como apreende as percepções que lhe vão sendo comunicadas
pelo público e investe na criação, tendo em mente também esse
“feedback”.

33 (Veja a entrevista com Kurt Wenner já a seguir a este artigo.)

Kurt Wenner

Kurt Wenner
Mónia Camacho MY WALL IS YOUR WALL

A pintura de pavimentos constitui, também, uma forma peculiar


mas poderosa de publicitar um produto ou um evento. Por isso,
estes artistas aceitam muitas vezes projectos de divulgação, ao
colocar a sua arte ao serviço de entidades económicas ou
culturais. As imagens que criam dão um retorno em termos de
interesse e de curiosidade por parte dos destinatários.

Talvez mesmo a "New Optimism" possa um dia ser vista num


pavimento algures por aí...

35
DESIGN
ENTREVISTA A KURT WENNER
37

Kurt Wenner acedeu dar à New Optimism uma entrevista a partir de


Kaohsiung em Taiwan, onde se encontrava a realizar uma
apresentação do seu projecto.
Do chão, ondulante, ergue-se um Dragão que olha o público com
ar de quem se pergunta como se atrevem os humanos a perturbar o
gigante. Se cuspisse fogo, os presentes quase sentiriam o cheiro a
enxofre, tal é a realidade da imagem criada.
O dragão de Wenner estava a ser visitado por 800 pessoas por
hora, existindo uma fila de 500 metros para entrar no recinto.
Esperavam-se 200.000 visitantes até ao final da exibição. A cada
mortal eram dados 15 minutos para admirar a obra. E nesse tempo
tudo poderia acontecer, já que os dragões são conhecidos por
serem criaturas de humor instável.
ENTREVISTA A KURT WENNER

New Optimism - Gostaria de pintar o tecto de uma Capela Sistina


dos nossos tempos?
Kurt Wenner - Já tive a experiência de pintar tectos de igreja, por
isso estou ciente do que está envolvido. Ainda gosto de realizar
esses trabalhos de larga escala, mas cheguei à conclusão de que,
no futuro, eles serão feitos digitalmente em detrimento da pintura
directa. Isto por causa da natureza dos edifícios em termos de
estrutura e dos materiais utilizados pelos artistas. Eu já possuo a
capacidade técnica para realizar o trabalho desta forma. Assim, é
apenas uma questão de ser convidado por uma igreja.

NO - Pensa que a ausência de detalhe, em muita da arte que se


produz hoje, pode conduzir à inabilidade para utilizar certas
técnicas?

KW - A tradição clássica europeia nas artes visuais acompanhou a


decoração e conjugou a arquitectura com a pintura de forma muito
efectiva. A arte contemporânea concentrou-se fortemente em
trabalhos de galeria, cujo valor de mercado estabelece pela sua
39 compra e venda. Assim, estes trabalhos, quando colocados em
edifícios públicos, não transformam o meio ambiente da mesma
forma porque funcionam independentemente dele.
ENTREVISTA A KURT WENNER

NO - A paciência é um requisito nesta forma de arte?

KW - A paciência é, provavelmente, um requisito de qualquer


forma de arte, mas o meu trabalho requer longas horas. Estou
continuamente concentrado nos desenhos 8 a 15 horas por dia,
por vezes 7 dias por semana.

NO - Tem um lado espiritual ou é tudo uma questão de óptica?

KW - O meu trabalho começou como expressão espiritual. Hoje, a


forma de arte que eu crio é mais solicitada pelas suas qualidades
ilusionistas e interactivas. Os diferentes “feedbacks” permitem-
-me experimentar novas ideias e técnicas. E, no futuro, espero usar
isso nas minhas próprias expressões (mais pessoais).

NO - Depois de concluído, quanto tempo dura um trabalho de giz


sob pavimento?

41
KW - O giz sob pavimento começa a desaparecer imediatamente,
mesmo durante o processo de criação. Em algumas circunstân-
cias, os resíduos esbatidos do trabalho perduram imenso tempo,
por vezes até um ano. Tudo depende do meio ambiente.
ENTREVISTA A KURT WENNER

NO - Como convive com essa natureza efémera?

KW - Há mais de 30 anos que eu tenho vindo a observar os


trabalhos a serem lavados e a desaparecer. Por isso, não tenho
ilusões quanto à sua permanência. Nos últimos anos, tornou-se
possível fazer ficheiros digitais muito fiéis aos desenhos e
reproduzi-los em materiais duráveis, como a cerâmica. E assim
talvez eu possa, afinal, criar alguns trabalhos que possam ficar
para a posteridade. Tenho vindo a trabalhar nesta tecnologia há já
alguns anos. Está quase pronta.

NO -O que acha das tecnologias digitais aplicadas a esta arte?


43
KW - A técnica do pastel, tal como é utilizada em grandes
trabalhos, presta-se particularmente bem a ser captada digital-
mente. Porque o público aprecia interagir com os trabalhos, é fan-
tástico que estes possam ser transformados em material que seja
não só permanente e durável como até substituível. Penso que
este é o futuro da arte.
ENTREVISTA A KURT WENNER

NO - Há algo de aleatório na sua arte ou tudo é previsto em detalhe NO - Cria ilusões. Essas ilusões alguma vez lhe saem da cabeça?
antes de começar?
KW - Porque esta forma de arte é tão nova, as possibilidades para
KW - No princípio, improvisava os trabalhos directamente na a sua criação são infinitas. Estou constantemente a pensar em
estrada. Agora trabalho quase sempre com apresentações. Isto projectos novos. E neste sentido, o trabalho não me sai da cabeça.
requer a criação de um desenho antes de o executar. Os desenhos
tonais que crio para os projectos são a minha expressão artística
favorita, por isso não me importo com este aspecto. Ainda assim, NO - Quais as cidades que melhor aceitaram a sua arte?
eu acrescento elementos no local que não estavam no desenho.
KW - Já trabalhei por todo o mundo. Penso que a característica
mais interessante da arte 3D em pavimento é que possui um apelo
universal. Não consigo lembrar-me de um único país que não me
tenha enviado um pedido para um trabalho.

45

Para saber mais acerca de


Kurt Wenner
DESIGN
STICK YOUR HEART
47 Mónia Camacho

O tempo das paredes brancas e imaculadas passou. O tempo,


agora, é de liberdade. Um simples autocolante, colocado no sítio
certo, pode transformar uma sala e está ao alcance de todos: mais
uma revolução nos conceitos estéticos onde é possível dar vida a
espaços que antes nos cansavam e nos pareciam inexistentes.
Casa D´Art Magenta

Está resolvido o problema dos


electrodomésticos que herda-
mos da avó ou da tia, cheios de
ferrugem e com aspecto duvido-
so: um simples autocolante irá
torná-los apelativos, podendo,
estes, conviver pacificamente
com o resto do mobiliário de sala.
Por isso, boas notícias para as
Magenta criaturas que vivem em estúdios
As possibilidades são imensas, quase infinitas, se considerarmos ou possuem aquela coisa muito
que é viável a personalização do autocolante. Em vez de comprar moderna chamada kitchenette.
um móvel caríssimo de design irrepreensível, que apenas vai
encher mais o espaço, limitamo-nos a povoar a parede. Genial,
não? Magenta
Mónia Camacho STICK YOUR HEART

As louças da sua casa de banho não


são exactamente o que sonhou?
Invente. O design pode chegar em de lhe
sem ter que
forma de autocolante. Repare: um lustre facto
E que tal cristais? É um nada é
s
limpar os ve tilintar, ma
não o ou o é?
, nã
perfeito

Art Mango

Por 6 euros pode comprar uma borboleta (talvez apenas uma


unidade não faça a Primavera, mas é o princípio). Disponível em
doze cores e de fácil aplicação, provavelmente em função da sua
dimensão (10x10), pode ser encomendada à Casa d' art (www.ca-
sadart.com) e recebida comodamente pelo correio.
Art Mango

E se o tempo parasse? Era bom,


não era? Pois é, não pára… Mas
49 podemos fingir! Afinal, as ima-
gens têm poder. Colamos na pa-
rede um belíssimo relógio que não
faz “tic-tac” (deixando-nos
dormir) e… “voilá”: eis que a feli-
felicidade nos chega, mera-
mente da contemplação!
Casa D´Art Casa D´Art
Mónia Camacho STICK YOUR HEART

Uma vez criado o conceito, este torna-se multiplicável, Para aqueles que apreciam citações e frases profundas, Fernando
transformando, através de autocolantes, a imagem de variados Pessoa, um dos nossos mais interessantes poetas, pode invadir o
objectos quotidianos: se o seu portátil está riscado e o aspecto já seu espaço e segredar-lhe ao ouvido: “O melhor tempo que
não é o do primeiro dia, experimente dar-lhe uma nova cara. E gastamos é o que investimos nas pessoas”.
porque não cara de gato? Com esta 'brincadeira' gastará apenas
14 euros.

Casa D´Art

Nada como as coisas simples para nos


motivar. Serão fáceis de aplicar? Sim. O
autocolante vem com uma camada de
transferência, que pode ser utilizada
inúmeras vezes. Essa camada é colocada
Casa D´Art sob o autocolante aderindo e ajudando a
51
removê-lo do papel onde se encontra. E as
bolhas? Não se preocupe, serão apenas
temporárias. Aplique o desenho junta-
mente com a camada de transferência no
local desejado e retire, posteriormente,
essa mesma camada. E pronto, já está.
Simples.
Mónia Camacho STICK YOUR HEART

Ter um Fórmula 1 na garagem por 169 euros é o que propõe a A publicidade, vanguardista nestas
empresa “Style your garage”. Pensava que o paraíso não tinha coisas das imagens apelativas,
preço? Pois tem: 146 euros (mais barato que a Fórmula 1, quem recorre também ao autocolante co-
diria…). Adeus às portas deprimentes! (Esperando que esta mo forma de promoção dos produ-
magnífica intervenção não seja considerada uma alteração de tos oriundos dos seus clientes,
fachada e não venha o condomínio dar-lhe cabo da ideia…) Bom captando a atenção do público de
mesmo é morar no campo, não é? Dê uma olhadela em www.style- uma forma simples e económi-
your-garage.com. ca,contribuindo até para decorar a
paisagem urbana.

Publicidade

Às veze
53 o mun s bast a um
a
cliché do. Pelo m ideia para
, mas
faz sent enos o seu. mudar
ido. É um

Style Your Garage


Convida um grupo de amigos e sê a imagem deste movimento de
novo optimismo. Para participares tens apenas de enviar uma
fotografia do teu grupo de amigos reflectindo os valores que
defendemos e que partilham connosco: positivismo, confiança,
alegria e dinamismo. Coloca-te na linha da frente para um futuro
optimista.
E-mail:new.mag.optimism@ext-minds.com
MUSIC 57
SHORTCUTS

WHERE TO FIND
GOOD MUSIC

Indie Shuffle
“We shuffle through piles of independent
music — old and new — so you don't have
to.”

Luxury Waffers Daytrotter


“In-Studio Performances.” “Bringing you free music from the
finest Independent bands.”
PLAYLIST 6.JEANETTE LINDSTROM » RIVER
SUÉCIA

7.ALINA ORLOVA » NESVARBU


Can sex be more than a sexy thing? LITUÂNIA

O meu corpo desiquilibrado do teu. Em harmonia.


Presos nos detalhes. Desagregados do tempo.
Num movimento em que a ausência soa pesada.
E onde me sinto constantemente em suspenso de ti.
PLAYER
1.DANGER MOUSE AND SPARKLEHOUSE » REVENGE
E.U.A.

2.LUCKY FONZ III » JANE ON THE ROOF


HOLANDA

3.AARON » LILI
FRANÇA 8.SCOUT NIBLETT » KISS
INGLATERRA

4.BROOKE WAGGONER » HEAL FOR THE HONEY


E.U.A 9.LIBBIE LINTON » I AM A STONE
E.U.A.

5.BRONWEN EXTER » RESTING HOUSE


E.U.A. 10.ALI MILNER » I CAN´T WAIT FOREVER
CANADÁ
MUSIC
CANÇÕES PARA O CORAÇÃO
61 André Santos

Há quem ache que a arte e a música, em particular, têm que estar


repletas de marcas sentimentais. Outros há que apenas querem
“curtir” e viajar pelos caminhos que o som (calmo ou agressivo,
com muito ou pouco volume, clássico ou pós-moderno) lhes
proporciona. Mas estarão as emoções e a música numa
irremediável relação de “felizes para sempre”?

Não sendo uma temática virgem, já muitos tentaram descobrir o MÚSICA COM VERDADE
cupido deste enamoramento. Filósofos, psicólogos, musicólogos,
biólogos, sociólogos, antropólogos e muitos “ólogos” mais debru- “Não, não acho isso de todo. Há muit as canções sobre emoções
çaram-se sobre ele mas pouco descobriram. A única conclusão a que me parecem muito vazias de conteúdo... Acho que tem muito a
que todos chegaram foi a de que esta é uma ligação complexa mas ver com o intérprete/autor conseguir fazer passar alguma
muito, muito cúmplice. Mas será a música sentimental mais verdade, de acreditares nas coisas que estás a ouvir”. A resposta é
verdadeira do que outra que aborde uma temática divergente? de Paulo Furtado, o senhor que, em Portugal, se move no rock e
nos blues como ninguém, mais conhecido por Legendar y
Tigerman. Habituado a compor sobre sentimentos, admite ser
raro lançar-se sobre um tema “específico ou mais racional”, e
justifica: “talvez funcione como uma válvula de escape”. Com
maior ou menor verdade, é sabido que muitos ouvintes e
apreciadores procuram espelhar-se na letra de uma canção,
quase que num acto de egoísmo, como se esta fosse endereçada a
si e mais, tivesse sido escrita propositadamente para retratar o
que lhe vai na alma. Intencional ou não, este é um comportamento
que pouca gente se pode gabar de não ter tido.
André Santos CANÇÕES PARA O CORAÇÃO

No entanto, a música pode também servir como despertador de Numa entrevista recente ao “Ípsi-
emoções, independentemente do seu conteúdo. Liliana Nunes lon”, suplemento semanal do jor-
tem 21 anos, é estudante de contabilidade, e canta nas horas nal Público, o ex-Toranja Tiago
vagas com um amigo Dj. Para ela “é uma prioridade na escolha das Bettencourt foi claro: “ Nos meus
músicas [que ouve], o despertar de sentimentos. Algumas delas afectos musicais tudo remete para
basta a melodia para nos transmitir qualquer coisa” revela que emoções”. Influenciado pelo que
não considera as canções “não sentimentais” mais vazias, mas ouve, e pelos artistas cujo trabalho
que se sente mais tentada pelas que apelam ao coração. admira, acaba por ver repercutir-se
na sua música a propensão emo-
Ora, a música pode ser uma forma de expressão, mais metafórica cional. O seu trabalho, com ou sem
está claro, que é levada a cabo pelo seu criador, pelo intérprete, e Toranja, conta com letras que,
pelo público, que depois a usa para também ele transmitir as suas ainda que não sejam todas reais,
emoções. Mas não será cobardia da nossa parte, que mais ganham vida nos seus discos e são
facilmente consigamos transmitir o que sentimos através da capazes de tocar o coração do mais
música, do que por palavras, frontalmente? Liliana nega, céptico ouvinte. Quem as ouve,
convictamente: “cobardia seria se não o disséssemos. Chame- facilmente se identifica com as
mos-lhe uma forma mais suave de sermos verdadeiros”. Do outro histórias que contam, e a possibi-
lado da muralha, Tigerman concorda. Além disso, confessa que lidade de não prestar atenção às
primeiro compõe para si, como forma de respeito pelo seu palavras que vão sendo cantadas é
trabalho e pelo público que (tão religiosamente) o segue, muito remota. O cantor deixou
63 ignorando se é pelo caminho do apelo e do uso de sentimen- também escapar que, aliado a todo
talismo que se obtêm mais fãs: “não faço a mínima ideia”, este sentimentalismo, o seu objec-
assume. tivo é evidente: “vou fazer música,
vou fazer bem às pessoas, vou fazê-
-las todas felizes”.
André Santos CANÇÕES PARA O CORAÇÃO

HINOS E SENTIMENTOS Mas se hoje, o mais usual é vermos o nosso rádio (ou o ipod nos
Na história das grandes músicas, daquelas que se tornam hinos de casos mais evoluídos e modernos) inundados de canções que
gerações, e que ficam gravadas para sempre na memória dos escorrem comoção a cada verso, se regressarmos poucas décadas
ouvintes, é recorrente que existam canções com letras tão atrás, apercebemo-nos que a realidade não é assim tão
emotivas, que passam a ser uma espécie de lema de vida dos que semelhante.
as ouvem. Olhemos, por exemplo, para o tema ”Creep” dos OUTROS TEMPOS, OUTRAS MÚSICAS
Radiohead, que na década de 90 se tornou um hit indissociável de
qualquer adolescente da época, e foi alvo de versões de artistas Noutros tempos, a música era uma arma e as canções de inter-
como Prince ou Jeff Buckley. Supostamente inspirada numa venção, tão “socialmente activas”, eram uma moda urgente e
rapariga por quem Tom York (vocalista da banda) se apaixonara, o muito necessária. Muitas delas, ainda que repletas de disfarces e
tema colou-se à pele de ouvintes do mundo inteiro, que a recursos estilísticos, procuravam denunciar injustiças e promover
aproveitaram para espelhar o seu amor. novos caminhos; outras, mais cruas e destemidas queriam
demonstrar descontentamento e opor-se a normas vigentes. A
Mas este não é um fenómeno apenas mundial. Usando alguns dos música não era só um divertimento, era também uma necessidade
muitos exemplos que podemos encontrar na música nacional, e um recurso. Com a chegada da liberdade, e o fim da urgência de
“Circo de Feras” (1987), do álbum homónimo dos Xutos e disfarçar seja o que for, ou usar eufemismos para evitar
Pontapés, ou “Amor” (1982) dos Heróis do Mar perduram até hoje represálias, não há mais o “aperto” de outros tempos, e a canção
como emblemas do amor, capazes de unir qualquer casal de acabou por perder o condão interventivo, tempestuoso e activista,
pombinhos em plena fase de paixão. E quantas vezes o verso e deu lugar a um caminho de crescente expressão sensitiva.
“Quero-te tanto” terá sido usado em modo de declaração entre um
65 qualquer casal enfeitiçado pelo amor… Mas terão estes temas
icónicos que deixar arrepiados quem os ouve, por conter tanta
emotividade? Para Paulo Furtado “talvez não no conteúdo, mas de
certeza na entrega”.
André Santos CANÇÕES PARA O CORAÇÃO

Mas estando eles tão presentes na música, será que sobram ENTREVISTA COM GOMO
sentimentos para o nosso dia-a-dia, para a vida real? A Humani-
dade precisa deles, a avaliar pelo gosto de quem faz e consome
música… E ela continua, e há-de continuar a alimentar os cora-
ções. Até porque, usando as sábias palavras do Tigerman, “Se não
tiveres emoção na tua vida dificilmente a poderás ter na tua arte.”

67
MUSIC
ENTREVISTA GOMO NO - Chega-se mais facilmente ao público através deste caminho?
69
G - Eu acho que, acima de tudo, as pessoas tendem a rever-se nas
músicas que ouvem. Procuram nas letras ou em algumas
NEW OPTIMISM - É mais fácil cantar/compor temas que falem de sonoridades, algo que as faça sentir que também elas passaram
emoções? por algo semelhante. É mais rápida a ligação de um artista com o
seu público, se ele lhes transmitir algo que seja facilmente
GOMO - Para mim, como compositor, não cantar emoções é como reconhecível, em termos emocionais, por parte dos outros. Se te
não sentir o que canto ou componho. São elas que me movem. Não revês numa música, terás sempre tendência a achar que, de
é por acaso que costumo dizer que não vale a pena compor se, na alguma forma, a pessoa que a compôs, sentia, na altura, o mesmo
altura, o que sinto não é algo de extraordinário. A monotonia, para que tu e isso cria uma ligação, uma proximidade, muito maior
mim, é inimiga da composição. As emoções têm de estar no seu entre o ouvinte e o compositor. Mas, atenção, se estas emoções
auge, para que possa sentir a música que componho de uma forma não forem verdadeiras, rapidamente tudo pode ter um resultado
excepcional. Fazer música é como amar. Ou sofremos, ou negativo, porque o público pode ser desatento, mas não é parvo. E
"rebentamos" de alegria, e isso é que valoriza a nossa música e se não sentir que as emoções são verdadeiras, rapidamente parte
faz com que as pessoas se revejam nas nossas composições. para outra. Essa é a parte negativa de quem escreve com a
Afinal de contas, essas emoções são comuns a todos nós e é intenção de angariar fãs, através de músicas que falam de
nessas alturas que nos revemos nas músicas e composições dos emoções reais, mas que não são sinceras.
outros.

NO - Serão mais vazias as canções que não o façam? NO - Uma grande canção, daquelas que acabam por se tornar
hinos/símbolos de uma geração, tem sempre de ter emoções no
G - Não sei se serão mais vazias, mas se não cantamos o que seu conteúdo?
sentimos, que significado podem ter as músicas que compomos?
Que mensagens pretendemos transmitir, senão as nossas? É G- Como respondi anteriormente, para mim, todas têm de ter. Se
difícil para mim falar sobre isso, porque nunca compus nada que não sentir uma proximidade com as emoções que me são
não sentisse fervorosamente, mas talvez isso seja possível. Eu, transmitidas, então a música não me diz nada. Mas isto é a minha
não sei como fazê-lo...
André Santos CANÇÕES PARA O CORAÇÃO/ GOMO

NO - É difícil falar-se de emoções em temas menos calmos, que NO - Por lidar tanto com este mundo emocional, enquanto músico
não sejam baladas? e intérprete, sente-se mais conhecedor dos sentimentos dos
outros? Ajuda-o na sua vida emocional?
G - Não me parece. Falo por mim, quando compus o "Feeling
Alive" que acredito ser uma música menos calma, aquilo que G - Não me sinto mais conhecedor dos sentimentos dos outros
sentia tinha a mesma força que o "I Wonder" que era um tema quando componho, mas acho que entendo melhor outros compo-
mais calmo. As emoções eram igualmente verdadeiras e a sitores, quando ouço as suas músicas. O facto de falares do que
mensagem igualmente forte, mas a composição reflectia, acima sentes, nas tuas músicas, não expõe mais os sentimentos dos
de tudo, a diferença de emoções. Uma, reflectia a alegria que outros, mas, sem dúvida, expõe-te mais a ti e ajuda os outros a
sentia na altura e a outra um enorme desespero, reflexo de uma conhecerem-te bem melhor.
fase menos boa.

NO - Vê como um acto de cobardia que as canções transmitam NO - Faltarão emoções no nosso dia-a-dia? Existirão elas apenas
aquilo que podemos não conseguir dizer a alguém cara a cara? na arte?

G - Não diria cobardia, que me parece demasiado forte, mas é G - Acredito que as pessoas estão cada vez mais desligadas do seu
desigual, sem dúvida. Afinal de contas, existem pessoas que não mundo interior, mas não acho que faltem emoções no nosso dia-a-
têm a oportunidade, ou capacidade, de captar a atenção de tantas -dia. Quem não sente, esse sim, é cobarde. Sentir, é assumir a sua
pessoas, para dizer o que sentem, em relação a determinadas própria existência. Nós não somos robôs, somos seres inteli-
pessoas. E isso é, no mínimo injusto e digo isto com a maior das gentes, que sentem e transmitem emoções, quem não o faz não
71 sinceridades, porque já o fiz, com temas como o "I Wonder". Não merece existir e muito menos compor. E não me parece que, para
que pretendesse dizer algo que nunca consegui dizer cara a cara, transmitir emoções, seja necessário ser artista. Para transmitir
mas porque fala de emoções que senti e que expõem outras
pessoas, sem que lhes tenha pedido autorização para o fazer, e
realmente, não me parece justo.
MUSIC
MORPHEY - SÉBASTIEN PERRIER
73
34 MO
RP
HE
Y

PLAY IT
ENTREVISTA - MORPHEY - SÉBASTIEN PERRIER

New Optimism - Qual é a história dos Morphey? Como se


formaram?

Sébastien Perrier - Os Morphey formaram-se no final de 2006.


Arrendei um apartamento com um amigo em Marselha. Ele
costumava ouvir a música que eu criava no meu computador e, um
dia, disse-me “Sei de alguém que gostaria muito da tua música”.
Falou-me da Delia, começámos a compor e ocorreu-me convidar o
DJ PHONKHEAD (Juan), um tipo muito funky que conheci na
universidade. Um DJ pode dar muito jeito.
Delia Séb/Sébastien Perrier Juan/DJ Ponkhead
NO - Os vossos dois álbuns são muito diferentes. O que vos fez
mudar de estilo?

SP - Oh… o primeiro álbum é espontâneo, melancólico, é um


álbum de lançamento. Provavelmente, sentia-me triste nessa
altura para criar aquele tipo de música. Eu próprio criei a música e,
depois, com a Delia, chegámos às letras. Foi muito porreiro. O
“Rise and Shine” é diferente, reflecte mais o nosso trio de raízes
musicais opostas, eu gosto de funk e rock, Juan gosta de electro e
75 a Delia da mistura de todos estes estilos. Decidimos criar um
álbum para fazer as pessoas dançar, porque a dança é união.
Dream Catcher - 2007 Rise and Shine - 2010 Quando as pessoas dançam (ou quando vão a um concerto),
esquecem as suas diferenças e só a celebração importa.

DEEZER MYSPACE FACEBOOK


ENTREVISTA - MORPHEY - SÉBASTIEN PERRIER

NO - O “Dream Catcher” é a banda sonora perfeita para que


momentos?

SP - Não faço ideia. Depende do estado de espírito. Às vezes,


adormeço com um pouco de Rage Against the Machine nos
ouvidos. Se me sinto triste, pode ser James Brown ou uma treta
funky qualquer que me ajude a arranjar a energia para continuar.
Acho que toda a gente tem a sua própria maneira de pensar e
precisa de estilos de música diferentes. Não há regras, o que é
bom. Por isso, oiçam o “Dream Catcher” até quando estiverem a
tomar banho!

NO - E o “Rise and Shine” ?

SP - Acho que o “Rise and Shine” é bom para acordar, para


festejar. Para nós, seria positivo e emocionante ouvir faixas do
“Rise and Shine” a tocar em festas, ao serão… ver as pessoas
dançar ao som delas.

77
ENTREVISTA - MORPHEY - SÉBASTIEN PERRIER

NO - Quando poderemos ver os Morphey?

SP - A Delia está na Austrália, por isso, começaremos a tocar ao


vivo em Setembro de 2010. Esperamos visitar a Europa e dar bons
concertos onde quer que as pessoas estejam prontas para dançar
e abanar o capacete. Começaremos certamente perto de
Marselha.

NO - Como te sentes quando fazes música?

SP - Como se fosse uma criança de 10 anos a jogar à bola e a


divertir-se à grande.

NO - Consideras-te uma pessoa dependente da música?

SP - Sim. A música liberta-me, como o ar que respiro. Para mim, a


música é uma enorme fonte de estabilidade.
NO - Tendes a associar música a momentos da tua vida privada?
NO - Preferes tocar num concerto para uma multidão ou em casa,
sozinho? SP - Claro. Associo músicas a pessoas que conheço, raparigas que
conheci, aos meus amigos e família.
79
SP - Tocar para uma audiência é uma das mais belas invenções do
Homem. NO - A música é mais importante nos momentos tristes ou nos
momentos felizes?
NO - Acreditas que a música pode mudar as pessoas?
SP - A música pode até ser importante enquanto lavo as minhas
SP - É inegável que a música nos fala ao coração, à carne. Pode mãos, porque influencia a minha imaginação a mexer os dedos de
dar-te amor e ódio, tal como uma pessoa. várias maneiras, fosse punk, reggae, rock, etc. Acho que não sou
um bom exemplo…
ENTREVISTA - MORPHEY - SÉBASTIEN PERRIER

NO - Ter um trabalho criativo implica que “vivas” num mundo


diferente?

SP - Pode significar que, interiormente, ainda és uma criança! E


que continuas a divertir-te com coisas pequenas. A minha
imaginação de criança ajudou-me a criar coisas muito originais.
Acho que toda a gente tem uma visão diferente deste mundo. Às
vezes, pensar como uma criança poderia ajudar a mantermo-nos
felizes; ajuda-nos a encontrar o lado bom da vida.

NO - A vida de um músico é um desafio. Achas que estás a superar


esse desafio?

SP - Superei-o quando tinha 14 anos e comecei a tocar guitarra


com um amigo numa quinta com galinhas e feno.

NO - Observas ou fazes?

SP - Ambas. Referes-te à minha personalidade sexual??

81 NO - O que te faz sorrir?

SP - As piadas e os disparates dos meus amigos e família podem


ser espantosos. Também sou um grande fã de humor francês.
Gostava de poder fazer rir 1.000 pessoas ao mesmo tempo.
ENTREVISTA - MORPHEY - SÉBASTIEN PERRIER

NO - O que é mais importante na tua vida?

SP - Partilhar bons momentos com quem amo, ajudar as pessoas a


fazer coisas boas, cerveja também…

NO - Imagina que todas as pessoas do mundo te estão a ouvir; o


que lhes dirias?

SP - Diria “Sortez vous les doigts du cul!" que significa “São todos
tão bonitos!” : )

NO - Escolhe as músicas que associas às palavras:


Apaixonar-se
Umas quantas músicas de Gainsbourg: “Je t'aime moi non plus”,
“L'eau à la bouche”, “La chanson de prévert”, etc.
Morte
Epá… a música é vida, por isso o que posso dizer… “Mad World”
dos Tears for Fears
Passear numa praia
"Je te survivrai", uma das minhas músicas de praia preferidas.
83 Uma conversa entre amigos
“Sunday morning” dos Velvet Underground, “Love street” dos The
Doors.
H EY
RP
O
M
MUSIC
MUSICODEPENDÊNCIA
Micael Santos
85

DEPENDÊNCIA
Substantivo Feminino: necessidade física ou
psicológica de algo.

Há quem seja dependente da internet, televisão, jogos, drogas


leves, pesadas e...de música. Ao contrário de muitas outras, esta
dependência não tem efeitos adversos, pode ser consumida
sempre que se queira e na quantidade desejada, sem provocar
ressacas nem “bad-trips”, é legal, o stock está em constante
renovação e é diversificado, é saudável e, caso a menina dance,
até mantêm a linha. Devido ao crescente número de consumidores
houve também um aumento massivo das “salas de chuto”,
sobretudo no verão. Há para todos os gostos e estão disponíveis de
norte a sul do país e, mesmo que não existissem, a música podia
ser “consumida” individualmente, em qualquer lado e para isso
bastam uns phones e um leitor de mp3, discman ou até mesmo um
Walkman (vale tudo!).
Micael Santos MUSICODEPENDÊNCIA

O facto de ouvirmos música de que gostamos estimula a produção


de neurotransmissores (dopamina, noradrenalina,
serotonina) que desempenham um papel importante em
relação ao nosso bem-estar, estando, no entanto, intimamente
ligados à dependência por algo.

A dopamina tem como função estimular o sistema nervoso


central. Está por detrás da dependência do jogo, do sexo, do álcool
e de psicotrópicos.

A noradrenalina, também chamada Noraepinefrina, é uma


das monoaminas que mais influencia o humor, ansiedade, sono e
alimentação.

A serotonina é um neurotransmissor, uma molécula envolvida


na comunicação entre as células do cérebro (neurónios). Esta
comunicação é fundamental para a percepção e avaliação do
meio que rodeia o ser humano e para a capacidade de resposta
aos estímulos ambientais. Apesar de serem poucos os neurónios
no nosso cérebro com capacidade para produzir e libertar
87 serotonina, existe um grande número de células que detectam
esse neurotransmissor. Desse modo, a serotonina desempenha
um importante papel no funcionamento do nosso sistema
nervoso.

Diversos fármacos que controlam a acção da serotonina enquanto


neurotransmissor são actualmente utilizados, ou estão a ser
testados em patologias como a ansiedade, depressão, obesidade
e esquizofrenia, entre outras.
Micael Santos MUSICODEPENDÊNCIA

Drogas como o “ecstasy” e o LSD simulam alguns dos efeitos da Agora é a altura em que se pergunta se também é dependente da
serotonina. Outras acções como o sexo, apanhar sol e ouvir música música e até que nível o é. É daquelas pessoas que passa duas ou
fazem libertar serotonina. Ouvimos música no metro, autocarro, três noites a bolachas de água e sal em frente às bilheteiras para
comboio, avião, carro e até mesmo quando andamos a pé. conseguir ingressos? E depois ainda passa mais duas noites às
Ouvimos música quando o telemóvel toca e enquanto esperamos portas do recinto para conseguir ficar no melhor lugar possível?
que atendam lá do outro lado. Ouvimos música para esquecer o Ou é daqueles que não lava o braço por ter o autógrafo do seu
pior e recordar o melhor. artista favorito? Ou é como Roger Tullgren? Passo a explicar:
segundo o jornal espanhol El Mundo, este sueco de 42 anos
Faz-nos companhia na monotonia e nem pergunta porquê. conseguiu uma pensão de 400€ por alegar dependência do estilo
Ouvimos música porque gostamos e porque podemos. Porque musical heavy metal. O juíz considerou Roger incapaz de
apreciamos o seu ritmo, melodia, voz, letra ou simplesmente desempenhar o seu trabalho sem intensivas sessões de metal, o
porque soa orgasmicamente bem aos nossos ouvidos. Se não que o impede de realizar as tarefas que lhe são encomendadas.
ouvimos música cantamos, cantarolamos, trauteamos ou porque Em 2006,o cidadão sueco assistiu a mais de 300 concertos heavy
estamos alegres, no duche ou simplesmente por que quem canta e foi despedido pelo patrão por faltar demasiado ao emprego. E
seus males espanta. agora eu pergunto...E clínicas? E o grupo dos Músicodependentes
Anónimos, não? É que assim também vou reclamar a minha
pensão.

Nietzsche dizia que sem música a vida seria um erro e até o pároco
da minha freguesia diz que cantar é rezar duas vezes.
89 E quem sou eu para duvidar?! Sou apenas mais um músicode-
pendente...

E tu, também és?

Escrito ao som de AIR, Moon Safari.


WHO´S THERE SMILING
EM DISCURSO DIRECTO
91

Rui Plee
Actividade: ilustração
Idade: 34 anos
Localização: Vila Nova de Gaia
http://rui-plee.deviantart.com/gallery/
Rui Plee WHO´S THERE SMILING

Durante a entrevista foi proposto ao Rui Plee que fizesse


esquissos rápidos relacionados com algumas palavras.
Esses desenhos estão expostos nas páginas seguintes.

New Optimism - É a tua mente que domina a tua mão ou é a tua


mão que domina a tua mente?

Rui Plee - Acho que a minha mão tem vida própria...é estranho...Já
pensei muito nisso, mas cheguei a poucas conclusões. Por vezes
não acredito que fui eu que fiz determinadas coisas. Quando estou
por exemplo num café e distraidamente estou a rabiscar e a
pensar que no que vou jantar à noite, quando dou por mim acabei
de desenhar uma personagem interessante. É como se fosse um AUTO-RETRATO
portal de personagens que existe algures numa outra dimensão e
saltam pela folha fora.
NO - Tens ideia de quantos rascunhos fazes por dia?
NO - Tu já te inspiraste em pessoas reais para criar personagens?
RP - Não, mas posso dizer que todos os dias crio algo, só se estiver
RP - Sim já, muitas vezes uso fotografias de pessoas em revistas, doente, de cama, é que não o faço.
93 algo que dê inspiração.
NO - São um vício, portanto...

RP - Doentio...
Rui Plee WHO´S THERE SMILING

Percurso Profissional
Pintura de motos e capacetes personalizados.
Pintura de quadros artísticos a óleo.
Restauração de antiguidades. Especialidade em talha dourada.
Design gráfico.
Colaboração com a empresa Farol de Ideias (RTP), fazendo
Grafismo 2D nos programas Biosfera (RTP2) e Radar de
Negócios (RTPN).
Freelancer nas áreas de webdesign e ilustração.

RP - Não sei...deve ter algo bem vincado em tudo isso, mas tam-
bém há muita coisa de mim que não vejo nas minhas criações…
ÓDIO
NO - O teu sonho desde criança foi a ilustração ou foi algo que
nasceu mais tarde?
NO - Preferes ver o que crias sob a forma de rascunho ou desenho
já concluído? RP - Em criança não tinha bem consciência do que queria: polícia,
bombeiro e astronauta eram as minhas ambições. Mas desde
95 RP - Em rascunho, isto porque o rascunho tem uma essência bruta. cedo, desde que me lembro tive necessidade de rabiscar o que
Consigo através dele visualizar como ele ficará quando estiver observava. Via um filme na TV de Índios e Cowboys e lá ía eu
concluído. desenhar com um marcador num jornal velho…

NO - Achas que aquilo que crias/desenhas mostra quem tu és?


Rui Plee WHO´S THERE SMILING

NO - E com que idade tomaste a decisão “vou ser ilustrador”?


AMOR
RP - Foi no secundário que os meus professores me orientaram
nesse sentido, pois em artes visuais eu destacava-me. Era um
aluno razoável nas outras disciplinas, mas em desenho tinha
sempre a nota máxima. E essa ideia foi ficando na minha cabeça.

NO - O que colocas acima de tudo na tua vida?

RP - A possibilidade de sonhar sem limites e barreiras...

MENTIRA NO - O que precisas para ser feliz?

RP - Não sei...acho que já sou feliz. A maior parte das pessoas


relaciona a felicidade a objectivos e metas que atingem na vida,
97 mas o ser feliz para mim é ter saúde e um tecto por causa do frio. E
isso eu já tenho.

NO - Acreditas em ti?

RP - Claro...
Rui Plee WHO´S THERE SMILING

NO - E nos outros?

RP - Também.

NO - Tens algum guru na área?

RP - Gosto de vários, mas particularmente do Alan Lee.

NO - Tens tiques enquanto desenhas?

RP - Sim, volta e meia estou a serrar os dentes, mas agora menos,


quando era mais novo era pior. Já tentei pesquisar o porquê. Acho
que é como tocar guitarra, quando uma parte do cérebro está
estimulada ao máximo a boca mexe. PORTUGAL

NO - Qual foi o projecto a nível profissional mais aliciante que já


fizeste?

RP - Já fiz vários trabalhos desde personalizar um barco de NO - Além da ilustração, a tua criatividade estende-se a mais
Fórmula 1 até fazer grafismo 2d para programas de televisão, mas áreas?
99 acho que o mais enriquecedor é participar em concursos e fóruns
onde se podem trocar ideias e dicas com outros artistas. Isso sim, RP - A música e a escultura. Acho que tenho alguma sensibilidade
é o que entendo por aliciante. nestas áreas.
Rui Plee WHO´S THERE SMILING

NO - Preferias estar/viver/trabalhar noutro país?

RP - Sim, aqui em Portugal há poucas áreas artísticas justamente


reconhecidas
Conheces alguém próximo de ti com talento?
NO - O que te reserva o dia de hoje? Recomenda-o.

A New Optimism pode ser a sua rampa de lançamento.

E-mail:novostalentos@ext-minds.com

101

SM
IMI
FIM PT IN
W O TA
NE OUN
M
WHO´S THERE SMILING
EM DISCURSO DIRECTO
103

NO - Nasceu em Angola e passou uma fase importante da sua


adolescência na Rodésia onde aprendeu a fazer escultura em ovo.
Quem o ensinou e como foi essa aproximação a esta arte?
Carlos Neves Carlos Neves - Nasci em Angola mas saí de lá ainda bebé, nada
Actividade: escultura em ovo e pirogravura
conheço de Angola. A minha passagem por África resume-se à
Idade: 47 anos
Rodésia onde passei toda a minha infância e parte da juventude.
Localização: Viana do Castelo
Na altura tinha uma vizinha que esculpia os ovos de avestruz com
http://ovoseven.blogspot.com
um bisturi. Depois das aulas, aos fins-de-semana e em férias lá
http://sevenovo.blogspot.com
estava eu a esculpir ovos ou a cortar as mãos. Com o passar do
tempo estava mais na casa dessa Srª. Inglesa, Mrs.Pike, do que
na minha. E foi assim que aprendi esta técnica.
Carlos Neves WHO´S THERE SMILING

NO - Porquê o fascínio pela casca de ovo e não por outro material?

CN - Pelo grande simbolismo que o ovo tem, tanto a nível histórico


como cultural. São poucas as pessoas que sabem realmente qual
o simbolismo do ovo. Só para terem uma ideia, foi descoberto
recentemente na África do Sul gravuras em casca de ovos de
avestruz que datam antes das pinturas rupestres existentes em
todo mundo. Na Europa onde não existiam avestruzes, mas cujo os
ovos vinham do Continente Africano, os reis e a igreja usavam-nos
para fazer cálices com um simbolismo muito especial. Pode dizer-
-se que o ovo esculpido é uma arte milenar que eu tenho o
privilégio de exercer.

NO - Qual é o tipo de ovo que prefere para trabalhar e porquê?

CN -Em todo o mundo há quem tenha essas preferências por causa


da abundância de determinado tipo de ovo. Posso dizer que
gostava de trabalhar mais em ovos de Ema, devido às diferentes
tonalidades da sua casca conforme a vamos esculpindo. Esta ave,
105 também chamada de Nandu, pertence à América do Sul e
Austrália, mas mesmo lá, os seus ovos são difíceis de adquirir.
Carlos Neves WHO´S THERE SMILING

NO - Acha que as técnicas de pirogravura e escultura no ovo são


suficientemente conhecidas e valorizadas pelos portugueses?

CN - A pirogravura foi reintroduzida, a nível mundial, pelo Mestre


José Gavino nos ovos de avestruz há algum tempo. A pirogravura
em casca de ovo também é uma arte muito antiga. Só ele o poderá
dizer se é reconhecida e valorizada pelos portugueses. Quanto à
pirogravura em casca de ovo de carriça em que eu executo uma
técnica a imitar a pintura chinesa, pincel de aguarela, é total-
mente nova em todo mundo. Os franceses adoram, os portugueses
nada ligam ou então passa despercebido. Os americanos e os
australianos também gostam, mas não são tão fãs como os
franceses.
A escultura em casca de ovo é recente em Portugal. Os portugue-
ses ainda olham com espanto.
Embora reconheça que existem cerca de 100 mestres a esculpir
casca de ovo em todo mundo, e se repartirmos esses 100 nos
diversos tipos de ovos maior é a diluição desta arte. Mesmo em
todo mundo esta arte milenar é pouco conhecida.

107 NO - Tem apoio a nível nacional na divulgação e venda do seu


trabalho?

CN - Até à presente data nunca tive qualquer tipo de apoio seja na


divulgação como venda dos meus trabalhos. Os únicos apoios têm
vindo da própria família.
Carlos Neves WHO´S THERE SMILING

Já procurei essa ajuda mas até à data penso que seja uma carta
fora do baralho. Tem surgido mais apoio vindo do estrangeiro a
nível da divulgação do que do nosso próprio país. Tenho recebido
convites para ir ao estrangeiro expor mas neste momento não me é
possível devido a não ter esse apoio. Talvez um dia.

NO - Qual é a parte mais complexa do seu trabalho?

CN - O mais complexo de se fazer é o “descascar da casca” . É o


supremo na arte de esculpir um ovo.
Se for em casca de ovo de galinha basta um sopro para ele se
partir. Deixa-se de ter pontos de apoio. Chega-se a uma fase onde
nem os dedos conseguem segurar o ovo. A mão só guia a broca, o
corte é feito quase sem pressão sobre o ovo.
Quando se consegue fazer este tipo de trabalho técnico o resto
vem por acréscimo.

NO - Quantas horas passa por dia em volta do seu trabalho?

CN - Neste tipo de trabalho não há horas, mas momentos.


109

NO - Em média quanto tempo demora até o ovo estar preparado


para ser trabalhado e por que etapas passa?

CN - Um ovo de piriquito só com uns cortes, 10 minutos, já um ovo


de avestruz ou outro do género (ema ou nandu) pode levar vários
Carlos Neves WHO´S THERE SMILING

Não consigo fazer tudo de uma vez. Por vezes largo um trabalho e
pego noutro ou então vou começar outro que veio à ideia. Não há
tempo matemático. Por vezes pedem para fazer uma imagem e
querem um orçamento mas é muito difícil dar esse mesmo orça-
mento. Porque por vezes é complicado parar até eu achar que a
peça esteja pronta e isso passa largamente o orçamento dado.
Saio sempre a perder no tempo.

NO - Como tem sido a aceitação do seu trabalho no mercado


nacional?

CN - A aceitação tem sido muito boa a nível nacional embora como


se sabe a situação financeira das famílias seja muito má. Mas não
perdem a oportunidade para me felicitar na minha arte. De norte a
sul de Portugal adoram o meu trabalho. Desde as crianças às
menos crianças todos ficam fascinados com esta arte.

NO - Exporta as suas peças para fora? Se sim, os seus clientes


situam-se maioritariamente em que países?
NO - Também se encontra disponível para realizar workshops, já
111 CN - Sim, exporto para vários países: França, Itália, Espanha, teve interessados?
Bélgica, Holanda e Alemanha. Conforme o meu blog se espalha
pela Internet assim vão aparecendo os pedidos de peças. Esta é CN - Por incrível que pareça ainda não surgiram pessoas a
uma arte pouco conhecida a nível mundial e também são muito quererem aprender esta técnica. Existem dois tipos de arte em
poucos a dominar esta técnica, portanto o caminho ainda é longo casca de ovos: a escultura e a decoração de ovos.
para a sua divulgação
Carlos Neves WHO´S THERE SMILING

Nem todos, após as aulas, conseguem escul-pir ovos e então


passam para a decoração de ovos. Onde também se vêm
verdadeiras obras de arte. Mas penso que as pessoas acham que
um escultor de ovos se faz num dia.

NO - Já realizou exposições?

CN - Fui convidado para uma exposição. O I Congresso em


Homenagem a Fabergé na Universidade Fernando Pessoa no
Porto. Tenho contactos para outras exposições, logo se verá.
.
NO - Quais são os novos desafios que procura vencer?

CN - Criar um espaço de reconhecimento para a arte em casca de


ovo a nível nacional.

NO - Actualmente sente-se realizado a nível profissional?

CN - Pode-se dizer que sim, adoro o que faço, pois é a minha


paixão.
113

FIM
WHO´S THERE SMILING
EM DISCURSO DIRECTO
115 COLECÇÃO INVERNO 2010

Hugo Costa
Actividade: designer de moda
Idade: 27 anos Fotografia:
Localização: São João da Madeira Ricardo Mateus
http://hugocworks.blogspot.com/
Hugo Costa WHO´S THERE SMILING

New Optimism - Podes descrever-nos o teu processo criativo? NO - E a tua relação com a indústria? Fala-nos dela.

Hugo Costa - Quando projecto algo, visualizo sempre o objecto HC - Como designer, a minha formação preparou-me para dar
final, ou colecção, terminado e vestido em alguém que faça parte resposta às necessidades de um cliente. Como criador de moda
do projecto. isso cria um certo conflito uma vez que, ao trabalhar com indústria,
Mas, normalmente, tudo começa com pesquisa e desenho, muito sentimo-nos limitados e temos necessidade de dar uma resposta
desenho. A partir de algo que surge do nada ou das formas de rápida. Muitas vezes não é o design ou a criação o factor impor-
inspiração que falei atrás, desenho silhuetas que, depois, são tante do projecto.
complementadas com pormenores obtidos da investigação sobre
os temas/conceitos. Depois vem a fase mais complicada:
escolher peças ou coordenados e sincronizar todos os elementos
com os materiais mais adequados, que façam sentido na HUGO COSTA
colecção. NO - Qual o teu criador favorito?
Posteriormente, temos a parte técnica da modelagem e da
confecção. É nesta fase que todos os erros, desde a escolha de HC - Criador…Yves Saint Laurent,
materiais e pormenores das peças à modelagem, se manifestam. quer pela sua história, quer pela
Precisamos de estar mais atentos e de ter tempo para refazer, de forma como o seu legado ainda
forma a que a peça fique mais valorizada e que faça mais sentido influencia a moda contemporânea.
na colecção. Ilustrador... sem dúvida Russ Mills:
A preparação dos acessórios é muito importante para mim, tanta expressão, tanto under-
117 principalmente os sapatos. É algo que me dá um gozo enorme ver a ground, tanta pesquisa de rua! E
nascer... tudo reunido numa ilustração...

Fotografia:
Carmo Amorim
Hugo Costa WHO´S THERE SMILING

NO - Descreve-nos um pouco o teu trabalho como ilustrador de NO - Fala-nos da tua paixão por sapatos.Que importância adquire
moda. o calçado na construção de coordenados?

HC - Neste momento, dedico-me à ilustração digital, tendo como HC - Os sapatos são a única ligação com a indústria que quero
suporte uma mesa digital, mas também ao desenho manual, de manter a longo prazo.
forma a que as minhas ilustrações possuam as expressões típicas É uma paixão de infância uma vez que, praticamente, nasci no
de um desenho em papel, embora realizadas com um detalhe que calçado. Já fiz muita coisa dentro de uma fábrica, desde o corte ao
só com resoluções elevadas (do meio digital) conseguimos obter. acabamento.
Penso que em todas as minhas ilustrações se consegue retirar um Tudo me fascina desde o processo de criação e desenvolvimento,
contraste entre a austeridade das expressões faciais e dos movi- até à articulação da produção.
mentos e a expressividade e valorização do vestuário. Como criador... são complemento da imagem. Não me imagino a
fazer uma colecção e expor com algo que não seja criação minha,
principalmente sapatos que, para mim, são tão importantes como
qualquer outra peça da colecção.
Hugo At Janela Urbana Live PS Playground

SPRING SUMMER SHOES


Fotografia:
Carmo Amorim
119

Homem Mulher
Hugo Costa WHO´S THERE SMILING

NO - Tens bloqueios criativos? COLECÇÃO BLACK ORCHID


HC - Bloqueios criativos em algum momento todos temos ou
teremos.
O segredo é continuar a trabalhar, mudando de ambiente,
pesquisando coisas novas, observando as pessoas na rua...

NO - Qual a tua maior aprendizagem?

HC - Não consigo definir como grau de importância as etapas da


minha aprendizagem porque todos os momentos influenciaram o
que sou hoje e continuarão a influenciar ao longo de toda a minha
vida.
Não posso dizer que a formação académica foi mais importante do
que o meu trabalho na indústria... até o facto de conhecermos uma
única pessoa pode ser mais importante para o nosso percurso, Fotografia: Carmo Amorim
como designer de moda, do que qualquer outro ensinamento.
Prémio Acrobactic 2010
NO - Fala-nos dos próximos projectos. Com que sonhas para o Melhor Coordenado Masculino
futuro ? Melhor Colecção
121
HC - Algo que passa por desenvolver colecções de calçado e
acessórios de moda para homem.
E, claro, continuar o trabalho como criador de moda e atingir
alguns objectivos que defini para mim como muito importantes
Sonhos?! Sonho com um país em que se possa sobreviver a fazer FIM
moda, quer como ilustrador, quer como criador.
Este é um trabalho criativo que comprova, mais uma vez, que tudo
depende da forma como olhamos para aquilo que nos rodeia e a
FASHION 123
interpretação que poderemos fazer de determinados objectos
recriando-os. Esta é uma colecção de colares que recorre a algo tão
SHORTCUTS simples como cordas.

KATE CUSACK
Zipper Jewllery - EUA
LINK

JACLYN MAYER
Orly Gender - EUA
LINK

Kate Cusack é uma designer versátil que consegue transformar com


requinte e complexidade comuns fechos em Joalheria Contempo-
rânea.
125
BENOÎT MISSOLIN
Bandoletes - França
LINK

TINA KALIVAS
Collection 2010 - Grécia
LINK

Tina Kalivas, ex-estagiária de Alexander McQueen, começa a dar


cartas na moda. Com um trabalho único que mistura estampados a
elementos geométricos, criando vestidos cheios de sensualidade e
movimento.
FASHION
DITADURA DO COOL Ser cool é ao mesmo tempo um estado exclusivo e um conceito
Paula Lamares popular, mas também um não-conceito e até o nonsense pode ser
127
considerado cool. Assim, perguntamo-nos: de facto existe isso de
“ser cool”? Ou é, pelo contrário, mais uma abstracção indefinível
que inventámos, uma meta inatingível ou só atingível por uns
Nunca, como agora, a nossa socieda- quantos eleitos? Estaremos nós a perseguir uma ideia vaga, um
de (ocidental) teve tanta liberdade fantasma? Viveremos obcecados por uma coisa que realmente
para se expressar e nunca o ser huma- não existe?
no foi tão valorizado e os seus direitos
tão extensamente protegidos. A par O conceito de cool é algo completa-
desta sobrevalorização do indivíduo, mente subjectivo e em constante
foram sendo cristalizados certos mudança, algo que se deseja e que
mitos que nos perseguem e que nós se quer ter. Um facto é que todos
perseguimos, incansavelmente, perseguem o factor cool, desde indi-
como se disso dependesse a nossa víduos a marcas, anunciantes, di-
felicidade. Para citarmos só dois rectores de marketing, editores de
exemplos, temos o mito da eterna revistas, jornalistas, pivôs de televi-
juventude e a ditadura do cool, os são, entertainers, comentadores e
quais nos tiranizam e condicionam até políticos…a todos convém
como coletes-de-força psicológicos. passar essa ideia de cool e influen-
ciar os outros com o nosso conceito.

Deixando a obsessão da eterna juventude para outras incursões,


debrucemo-nos sobre a ditadura do cool: toda a gente aspira a ser
considerado cool. As marcas querem, à viva força, passar a ideia
de que possuir os produtos com a sua chancela é a forma mais
fácil de ser considerado cool.
Paula Lamares DITADURA DO COOL

Será o cool um pouco como a moda? Os “fashionistas” decidem e Definitivamente, qualquer semelhança entre uma pessoa cool e
escolhem, por eles próprios, o que consideram estar na moda, de um verdadeiro “fashionista” é perfeita coincidência. Cool é muito
acordo com o grupo a que pertencem, a sua cultura, a sua faixa mais que não seguir as normas: é ser diferente e único, é usar
etária e o seu nível sócio-económico. Contudo, alguém, em algum aquilo que não é acessível a toda a gente e de uma maneira
lugar, deu o mote inicial a partir do qual se decide o que está in ou pessoal e intransmissível. Uma pessoa cool não segue as
out. A publicidade e o marketing, assim como os media, veiculam tendências, faz as tendências e, geralmente, tem uma legião de
a toda a hora qual o tipo de ténis, a marca de jeans ou de mala que seguidores, seja na sua rua, no seu local de trabalho, no grupo a
está na moda, fazendo parecer que a escolha é de cada um, a qual, que pertence ou, a um nível mais geral, tem fãs e seguidores a uma
na verdade, não é: tudo é decidido de acordo com estudos de mer- escala planetária.
cado e, mais recentemente, pelas dicas dos “trend hunters”
(caçadores de tendências), profissão que se tornou muito rentá-
vel. As celebridades do mundo do cinema, música e televisão são
também veículos apropriados para promoveram o que é consi-
derado tendência, estimulando o desejo de o comum dos mortais
ser como eles, só pelo facto de usar o mesmo par de jeans ou
sapatos da mesma marca. Mas será que seguir a moda é uma
atitude cool?

129
Paula Lamares DITADURA DO COOL

Uma marca para ser considerada cool tem que estimular o desejo
de exclusividade: os seus produtos não podem ser acessíveis a
todos, pois, caso contrário, o mercado fica saturado com os
mesmos e, logo, deixa de ser cool. Ocasionalmente, uma marca
consegue manter-se cool por muito tempo e acaba por se tornar
um clássico: Apple, Absolut Vodka, os óculos Rayban ou o carro
Mini são alguns dos exemplos. Uma das características comuns
destes clássicos é que, mantendo as suas características iniciais,
estão em permanente evolução e modernização para acompanhar
as inovações tecnológicas, nunca perdendo a identidade como
marca e a originalidade ou exclusividade que as definem como
cool, estendendo esse mesmo factor (cool) a quem as usa. Assim,
uma coisa cool pode ser fashion ou não e, inclusive, ser démodé
ou vintage, um clássico, …
O que parece certo é que, actualmente, as revistas, a televisão ou a
publicidade não podem mais controlar o que é ser cool. Os
técnicos de marketing já não detêm a exclusividade de decidir o
que é cool, o que é tendência ou o que está dentro ou fora de moda
(in/out). Hoje há uma incontrolável explosão de mensagens,
opiniões e informações para a qual a Internet (com os seus sites
131
sociais e blogues) muito contribui e cuja rede se estende
globalmente. Os consumidores estão fartos de marketing massi-
ficado e do facto de todas as marcas apresentarem produtos
semelhantes. O novo consumidor está cada vez mais exigente:
quer ser constantemente surpreendido e deliciado por algo
autêntico, diferente e fora do mainstream. É aí que o factor cool
entra e impera.
Paula Lamares DITADURA DO COOL

É o caso das marcas de luxo que, para serem consideradas cool,


têm que manter a exclusividade e a capacidade de fabricar sonhos
e objectos de desejo, acessíveis somente a uma “tribo” muito
exclusiva, o que acaba por estimular, no consumidor, uma certa
devoção e desejo de pertença a essa elite através do uso da marca
X ou Y. Esta é a explicação para os preços exorbitantes a que
vendem os seus produtos (pelo que o mínimo que é exigido a essas
marcas elitistas é que mantenham, ano após ano, a sua vocação
para serem exclusivas e únicas e a sua capacidade de surpreender
o consumidor com produtos, ideias, conceitos - causas verdadei-
ramente cool).

Algumas delas, entretanto, já soçobraram aos novos tempos e


faliram porque não souberam interpretar o que foi cool no seu
tempo. Por outro lado, existem marcas que, não renunciando ao
que as distingue das demais e ao carácter especial dos seus
O problema é que as marcas de luxo produtos, abriram-se para outros nichos de mercado,
estão, cada vez mais, a perder a sua conseguindo, assim, vingar: souberam interpretar e aplicar o que
identidade e a criar produtos simila- em cada época opera ou não como cool, embora os seus produtos
res entre si, na tentativa de sobrevi- atinjam preços realmente obscenos e tenham listas de espera que
133
vem à crise financeira mundial e à atingem anos. Claro que esses produtos beneficiam de
cada vez maior exigência do público. campanhas publicitárias fantásticas e verdadeiramente cool, com
Esta homogeneidade de tendências modelos e celebridades in a usar os seus produtos, fotografados
há-de ser a morte lenta de certas por super-fotógrafos também eles cheios de coolness. É também
marcas. verdade que, algumas vezes, as marcas vendem produtos que
nada têm de cool, mas cujas campanhas publicitárias são
inegavelmente extraordinárias, transmitindo, por sua vez, o factor
X aos produtos que anunciam, sejam simples iogurtes ou carros.
Paula Lamares DITADURA DO COOL

Em resumo, a definição de cool é o perfeito exemplo daquilo que Afinal, isto de ser cool tem muito mais a ver com atitude do
ninguém consegue definir e, ao mesmo tempo, todos podem e que com modas descartáveis a cada estação. Hoje em dia,
gostam de definir. Estaremos nós a perseguir uma imagem estéril ser cool pode muito bem passar mais por ter uma atitude
no deserto de novas ideias ou conceitos? Será o factor cool algo ecológica, ser optimista e contra-corrente, defender causas
que já pertence ao passado? Terá já sido inserido na categoria de humanitárias e ser solidário do que por vestir a marca X ou ter
out of fashion? Ou, pelo contrário, será um verdadeiro clássico o carro Z.
categorizado como estilo e alheio às modas?

Uma coisa é evidente: o que é ou não é cool deixou de ser


monopolizado por super marcas, campanhas de marketing,
criadores ou designers. Quanto muito os novos ditadores do cool
são cada vez mais os editores de moda, stylists, bloggers, trend
hunters e todas essas pessoas que passaram dos bastidores para
as luzes da ribalta e se sentam nas primeiras filas com os seus
Macs e iphones, nos desfiles dos maiores criadores e das marcas
mais exclusivas. Também, e em última análise, os consumidores
que nas redes sociais e nos blogues emitem opiniões e acabam
por influenciar milhões de outros consumidores, condicionando-
-os à ditadura do cool, fazem parte deste grupo de ditadores.

135
FASHION
COOK YOUR DRESS A relação com a comida foi sofrendo alterações à medida que a
Miguel Silva sociedade foi evoluindo: remonta aos primórdios essa ligação do
137 ser humano com a alimentação, a qual se foi desenvolvendo,
acabando por oscilar entre o nutrir e o saborear. Desde a simples
sobrevivência, até ao mundo dos grandes críticos de culinária,
fomos apurando um sentido inerente a ambas as áreas: o gosto;
The Brooklyn Bal e The New Museum Gala: uma festa nova-iorqui- assim encontramos citado no site da “Revista Espresso”. O
na badalada pelas estrelas, designers de moda e... Mario Batali, o mesmo refere, ainda, que esta interligação está de tal forma
famoso chef que deixou a advocacia por amor ao prazer da vigorosamente borbulhante que surgiu um novo conceito, o qual
cozinha. Apresenta, por exemplo, uma série de aperitivos e pratos activa o prazer dos sentidos que funcionam em ambos os mundos:
rústicos empilhados de modo bruto, com perús e frangos, entre o food design.
outros, e uma enorme cabeça suspensa construída com queijos
Fontina.
É neste cruzamento, entre áreas diferenciadas, que especialistas
da área como chefs, cozinheiros, designers e cientistas inter-
Que relação poderá existir entre a culinária e a moda e, até mesmo, sectam as suas experiências e tentam elevar ao clímax das sensa-
entre o design em geral? Como designer, nunca pensei numa ções a noção de alimento e alimentação, dissecando estes
simbiose real, nem sequer profunda, entre ambas as coisas. No conceitos e satisfazendo as novas exigências aromáticas ou,
fundo, quando se pensa em passar horas a cozinhar em frente ao simplesmente, reescrevendo as tradicionais. Actualmente fala-se
fogão, quem pode imaginar vestidos enquanto descama peixe ou muito, também, de pôr em conexão a ideia da dependência
faz bagna càuda? No entanto, a minha recente neurose demencial afectiva pela comida caseira com a alimentação industrializada,
quer por cozinhar, quer por comida, flambeada pela influência através das propostas que o design nos pode oferecer.
inspiradora da chef autodidacta Nigella Lawson, foi o mote de
arranque para perceber que estes dois pólos estavam mais coesos
do que eu poderia imaginar.
Miguel Silva COOK YOUR DRESS

O food design tornou-se de tal modo numa magnum opus da Pensei, seriamente, estar perante uma perturbação obsessiva por
vida moderna, que já existem diversos eventos que celebram e culinária quando fui capaz de chegar à confecção da escola e dizer
apresentam as novidades desta área. Um dos mais conhecidos a uma colega que o trabalho dela, no manequim “sabia a
denomina-se mesmo “FoodDesign” e realiza-se anualmente na framboesa acabada de regar com calda de açúcar”. No entanto,
cidade de Turim (Itália), desde há cinco anos. Na última edição, esta inspiração há muito que saltou dos pratos e dos menus para o
foram seccionadas categorias a partir do conceito (food design) vestuário, pois assistimos a um número cada vez maior de
e foi neste ponto que me ocorreram as possibilidades da aliança referências a fast food, bolinhos e outro tipo de alimentos nos
da moda com a culinária. Uma das categorias dá-se pelo nome de trabalhos dos designers de moda.
food couture. "A moda reinterpretada de forma gulosa", assim
se encontra referido no mesmo site da “Revista Espresso”.

139

The Italian Food Collection


Miguel Silva COOK YOUR DRESS

Para a estação estival em que já nos encontramos, Nicolas Quem sabe se, associando o prazer da fast food à alegoria relativa
Ghésquiére serve-nos “Balenciaga High-Tech”, onde embalagens a gorduras - logo, aumento de peso associado - não foi assim que
de comida e biscoitos fazem parte do ADN dos 36 coordenados o designer Joy Kampia O´Shell produziu o seu “vestido - hambur-
apresentados. Vestidos com desenhos perfurados à máquina. Na ger” em croché, “feito para caber através da sua flexibilidade”,
colecção, são aquilo a que Ghésquiére chamou de “biscoitos como cita o blogue Walyou. Podemos então começar a ver, de
franceses”. Impressionante e inimaginável, se pensarmos no novo, a moda como um dos epicentros da crítica aos hábitos
núcleo futurista e tecnológico das linhas de Balenciaga, mas não alimentares? Segundo Karl Lagerfield, é errado, pelas piores
impossível. razões, pensar que esta relação entre indústria da moda e cozinha
pode ser discutível. Frequentemente contestada pelos sacrifícios
que obriga muitas mulheres a fazer, de modo gritante, para caber
dentro de um 38 ou 36, Lagerfield contrapõe, afirmando que “a
moda é a mais saudável motivação para se perder peso.”

Apesar de incongruente, a verdade é que o must have do


momento é parar num balcão da MacDonald´s, em torno da
Fashion Week de Nova Yorque, e pedir “um hamburguer Burberry
ou Gucci, com Hermés fritas e um Sundae Paul Smith”. O site
“TrendHunter” lança, ainda, a questão pertinente: “No momento
em que se colocar uma etiqueta num pano, o preço sobe.
141 Pergunto-me quanto custará, no negócio da restauração, um
pedaço de carne embalada em Burberry...”

Hamburguer dress - Joy Kampia O'Shell 2009


Miguel Silva COOK YOUR DRESS

Tal como os outros sentidos trabalham com a comida, primeira-


mente através da visão (e/ou olfacto), que é uma das principais
ferramentas, senão a mais importante no processo do design,
creio que pode estar interligado dessa forma. Ultimamen-
te,“saboreio” tecidos. Consigo ter a noção das minhas pupilas
gustativas segregarem e sentir como se estivesse a comer
cobertura de chocolate, natas espessas ou molho de alho quando
toco numa peça de roupa ou num determinado tecido.

O site “The Pop Couture” brinca e utiliza esta ideia para mostrar a
clutch em forma de feijão, da marca Emilio Pucci, com
acabamentos metálicos para “dar confiança e não desconforto
gastrointestinal”. Talvez tenha sido nessa linha de pensamento
que Jeremy Scott presenteou os convidados com um desfile
repleto de pizzas, cachorros-quentes, hamburgers, batatas fritas
e sorvetes: um desfile calórico capaz de fazer tonturas às pessoas
mais sensíveis.
Mc Fancy Hermes's Frites 2010
Esta relação, entre moda e culinária, deixou de ser exclusiva de um
ou outro acontecimento, evento ou trabalho de designer e, devido
143 ao espaço que actualmente existe na blogosfera dedicado à
moda, a cozinha passou a ser descrita e discutida, combinando os
dois mundos com crescente interesse. De facto, não me espanta.
Penso que a culinária mudou a minha visão enquanto pessoa e
enquanto designer, mas não de uma forma nítida. Julgo que se
trata de ter alterado a minha experiência na moda num nível
transcendente. Subjectivo. Espiritual. Costumo associar que uma
coisa é outra e vice-versa como se fosse uma metáfora.
Miguel Silva COOK YOUR DRESS

Este fenómeno repetiu-se de passerelle em passerelle: vimos Aga- O blogue “Capturing the Sun” revela trabalhos do fotógrafo Fulvio
tha Ruiz de la Prada com as suas baguetes e ovos estrelados e, Bonavia, onde as malas estão cravadas com framboesas,
novamente, uma colecção humorística sobre alimentação de sardinhas que se alinham como encaixes de pulseiras, um cinto de
Bernhard Willhelm, entre outros. tagliatelle e um saco de bróculos. “Eu acho que se fosse fazer
compras todos os dias, e se tenho fome, uma dentada numa mala
não seria mau de todo, certo?”, refere-se no blogue.

Fulvio Bonavia

Desde o tempo de Maria Antonieta, onde os acessórios para a


cabeça transformavam os cabelos das duquesas em hortas de
repolhos e couves, como cita Caroline Weber no romance histórico
145 Agatha Ruiz de La Prada Outono Inverno 2009
"A roupa que Maria Antonieta usou para a revolução", que não se
É válido considerar-se que esta conexão pode originar uma assistia a tão grande imaginação na moda. É o “boom” da
discussão legítima entre moda, culinária e cuidados de culinária na moda.
alimentação, para além do design algo surreal que pode suscitar. Tudo é possível neste momento. Cozinhe a sua roupa como (e com
No entanto, uma coisa está consumada: fashion met food. o que) quiser. Como disse Nigella Lawson num dos seus progra-
mas de cozinha, "Estes são queques Versace!".
FACES
PHOTOGRAPHY 147
SHORTCUTS

FRANÇOIS ROBERT
Stop/Faces- Suiça
LINK

STOP DE VIOLENCE
149
ELEANOR HARDWICK
Secret Places - Inglaterra
LINK

Com apenas 16 anos, esta fotógrafa tem surpreendido pela


sua capacidade criativa e técnica. Tendo já participado em
revistas de relevo com o seu trabalho.
PHOTOGRAPHY
FINE ART É complicado, e pode até parecer pretensioso, definir “Fine Arts” ou
João Lamares “Fine Arts Photography”. Originalmente, o termo referia-se não à
151 qualidade do elemento artístico, mas à pureza do método. Segundo esta
referência, o termo “Fine Arts” deixava de fora práticas como o
artesanato ou expressões artísticas que tivessem por base a
composição de diferentes elementos, sendo, também, usado de forma
figurativa para descrever um desempenho de elevado nível. A sociedade
artística não parece encontrar um acordo no que respeita à inclusão das
artes performativas no grupo das “Fine Arts”. Mais recentemente surgiu
um outro termo, “Visual Arts”, o qual pretendeu ser mais inclusivo.
“Fine art describes an art form developed primarily for Independentemente do termo utilizado, o conjunto de obras artísticas
aesthetics and/or concept rather than practical ao qual associamos o termo “Fine Arts”, tem como característica comum
application. Today, the fine arts commonly include visual a excelência do produto final, entendendo-se, por este, o objecto final
and performing art forms, such as painting, sculpture, composto pela obra, pelo suporte e pela técnica de aplicação do
suporte. No caso da fotografia, eu não diria que uma fotografia por si só
installation, Calligraphy, music, dance, theatre, architec- será “Fine Art”, mas sim o conjunto da imagem impressa no papel.
ture, photography and printmaking. However, in some
institutes of learning or in museums fine art, and frequen-
tly the term fine arts (pl.) as well, are associated
exclusively with the visual art forms. Art is often a synonym
for fine art in this sense, as employed in the term "art
gallery".[1] Historically, the fine arts were limited to
painting, sculpture, architecture and engraving.[2]”

(in Wikipedia, the free encyclopedia, Fine art)

Jean Loup Sieff Jean Loup Sieff


Jeune Suédoise de dos. Paris - 1992 Derrière Anglais. Paris - 1969
João Lamares FINE ART

Historicamente, a fotografia “Fine Art” surge como uma forma distinta, Enquanto fotógrafo não tenho dúvidas de que a fotograf ia é uma forma
quer da fotografia comercial, quer da fotojornalística: tem o papel de de arte tão legítima quanto a pintura ou escultura. As regras que segui-
criar um espaço para a visão artística do fotógrafo e é, muitas vezes, mos para compor ou decompor uma imagem são, basicamente, as
utilizada com uma função importante na defesa de algumas causas mesmas que os grandes pintores seguiram, as técnicas e os meios é que
(entre outros, podemos aqui referir o trabalho de Sebastião Salgado em diferem. Todos sabemos (enquanto fotógrafos) que uma fotografia não
prol do “Movimento dos Sem-Terra”, no Brasil). Nos Estados Unidos, está terminada no acto de carregar no disparador. Esse será, quando
podemos mencionar os fotógrafos Alfred Stieglitz, Edward Weston, John muito, o momento em que ela nasce fisicamente, pois, muitas vezes, ela
Szarkowski, Edward Steichen e F. Holland Day como grandes defensores já existe na mente do fotógrafo. Após esse momento, a imagem que
da fotografia como “Fine Art”. captamos ainda tem um longo caminho a percorrer, o qual passa pela
revelação (digital ou analógica - há sempre um processo de revelação),
Inicialmente, este tipo de fotografia teve uma linha que se veio a pós-produção e finalização (que, em meu entender, na “Fine Art”,
denominar de 'pictórica', onde se procurava imitar os estilos da pintura corresponde ao processo de impressão). Raramente, para não dizer
e que usava frequentemente o “soft focus”, no intuito de criar ambientes nunca, a imagem final corresponde à original, captada no momento do
mais românticos. Mais tarde, e pela objectiva de Edward Weston e Ansel disparo.
Adams, entre outros, formou-se o grupo conhecido como F/64, o qual
advogava que a fotografia valia por si própria e não como imitação de
qualquer outra forma de expressão. Nesta corrente, a fotografia surgia
como perfeitamente focada e com longas profundidades de campo (daí
o nome). Na verdade, a fotografia como “Fine Art” ainda gera alguma
discussão em certos círculos artísticos que a vêem como uma forma
mecânica de reprodução de uma imagem.

153

Ansel Adams
Cathedral Peak And Lake - 1938

Ansel Adams
Moon And Half Dome - 1960
Lanny Da Costa
BW Study
João Lamares FINE ART

Mas o que é que distingue uma fotografia “Fine Art” de uma fotografia Se R. Barthes defende que o punctum de uma imagem é algo de pessoal
não “Fine Art”? Clive Bell defende que apenas uma 'significant form' que ela transmite ao observador e lhe desperta uma reacção emotiva, a
pode distinguir a arte da não arte. Há uma certa característica que, 'significant form' de Clive Bell tem de despertar uma emoção estética.
sendo diferente de obra de arte para obra de arte, é compartilhada por Se o fazemos através de um nu como Lany da Costa, através de uma
um Cézane, Picasso, Michelangelo, Rodin ou Paula Rêgo. A 'significant paisagem como Ansel Adams, através da cor ou apenas do preto e
form' será uma espécie de 'punctum artístico' ou 'estético' que nos branco ou se se recorre ao surrealismo ou ao realismo de uma fotografia
prende a uma imagem. de rua, pouco importa. O resultado final tem que ser concebido na mira
de uma 'significant form' que desperte uma emoção estética no
espectador.
Termino este artigo com a minha própria interpretação, em fotografia, de
Fine Art:

155

Jean Loup Sieff Bruno Bisang


Le Tapis Voulant. Normandie - 1988 Youma Milan - 1998

João Lamares João Lamares


Dressed Face - 2010 Misterious Sea - 2010
LITERATURE 157 I WROTE THIS FOR YOU

SHORTCUTS
LINK

“Photographs of the rooms where authors have created their


famous works.”
Descobre-os.

WRITTER´S ROOMS

LINK

Num blogue, alguém escreve unicamente para um outro alguém durante


anos. O autor desse mesmo blogue decide pedir aos seus leitores que lhe
escrevam como se fossem esse alguém para quem ele escreve.
O autor quer muito uma resposta desse alguém, ainda que forjada.
159
We Used To Have a Heart Condition

À PROCURA DE BLOGUES BEM ESCRITOS


Loose Lips Sink Ships
Staring At The Ceiling Can Be Dangerous

“só podíamos sangrar ao tentar repartir o que sabíamos


não poder partir em dois. uma operação de coração aberto
e nas tuas mãos uma tesoura de aço para cortar uma
e depois outra e outra artéria soltando-as da avaria
detectada – um órgão tremendo-me irregularmente
no peito. estando o teu tão calmo. dividir a insolência
ao meio pareceu-nos acertado até à primeira incisão mas
bastou um corte para a falha cardíaca cessar erradamente.
“isolamo-nos sempre mais
e tudo porque alguns desacertos não se emprestam.”
do que nos isolam.
e esquecemo-nos de que
se trancarmos a dor
a dor tranca-nos por dentro.”
LITERATURE
A ESCRITA ERÓTICA
161 Sandra Figueiredo

DISCURSOS E SENSUALIDADES

A escrita erótica é a arte de contar episódios de sensualidade e


volúpia do ser humano, provocando os sentidos e a imaginação.
Homens e mulheres surgem nos textos de uma forma especial-
mente lírica, inspirando os impulsos da líbido, sendo que a
ausência de limites de interpretação (a imaginação do leitor
mistura-se com a imaginação do autor e não há limites de
nenhuma das partes - processo que pode resultar numa espécie
de acordo tácito) é o aspecto mais atractivo da sua análise.

O erotismo literário, enquanto género reconhecido, expressa-se


através de uma função muito específica: em matéria de relações
humanas, ele elogia as manifestações amorosas mais físicas, as
quais despertam maior interesse nos leitores. Sem os traços da
pornografia, a intimidade é exposta de uma forma por si só
bastante desafiadora, o que leva a mente humana a julgar actos e
gestos descritos ou narrados, constantemente observando-se e
avaliando-se. Ler e escrever sobre “Eros” (Deus do Amor e
Sensualidade na Mitologia Grega) implica um confronto mútuo
delicioso, mas que nos deixa, frequentemente, numa indecisão de
julgamento moral. Ler e escrever sobre erotismo acaba por se
tornar numa espécie de confessionário, mas em que quase tudo se
admite e pouco se penaliza. Aqui não há actos de contrição!
Sandra Figueiredo ESCRITA ERÓTICA

A dificuldade em aceitar moralmente a expressão (num grau me- Desde a época clássica a escrita erótica perpassa a literatura,
nos licencioso) dos comportamentos sexuais, aliados às paixões especialmente em formato poético. Os autores clássicos, aliás,
menos platónicas, motivou, na Idade Média, que vários escritores ascendiam mais virtuosamente neste tipo de escrita, ao
de quem hoje não se tem memória, fossem, de um modo tipica- desvendar sabores e prazeres e ao deixar uma deliciosa sinestesia
mente inquisidor, encarcerados e executados. Na verdade, a Épo- aos seus leitores. Por outro lado, as sátiras clássicas não
ca Medieval constituiu o interregno temporal onde se assistiram conheceram sucessores de qualidade. É, de facto, nessa época
às condutas sociais mais severas em várias áreas, numa análise remota, mas sublime e erudita, que encontramos as sátiras e os
comparativa às práticas observadas nas épocas Clássica e escárnios mais subtis possíveis em relação à sexualidade
Moderna nas quais, com maior ênfase na Modernidade, o aspecto masculina e feminina, onde as obscenidades abundam.
mais repressor apenas era liderado pela maledicência e pela
censura.

A Idade Média encontrou nos escritos eróticos uma forma de


conspiração contra os bons costumes e uma ameaça à ideologia Ainda hoje os trabalhos antigos são
(na ciência e no senso comum) heliocêntrica, não considerando o uma referência escondida dos
Homem na sua plenitude de funções (o homem subestimado grandes letrados da área: Anaïs Nin
enquanto entidade física e psíquica) e géneros (os papéis e (1903), um dos nomes mais popula-
desejos do homem e da mulher). Contudo, ao longo do tempo, a res na escrita erótica (com ascensão
expressão sexual e as declarações enganosamente colocadas em em 1940 e com uma propagação
janelas platónicas de donzelas não variaram muito. O que se actual e premente entre o público),
alterava era a forma de documentar essas expressões e a forma de teve clara inspiração na mitologia e
163
as receber pelo público. tradição clássicas, tendo-se pro-
gressivamente evidenciado na
“Corte” parisiense pelos escritos e
também pela reputação.
Sandra Figueiredo ESCRITA ERÓTICA

Efectivamente, os grandes escritores da No século XIX, na obra “Minha Vida Secreta”, Henry Spencer
antiguidade (Safo, por exemplo, poetisa Ashbee, um comerciante britânico burguês, viajante e conhecedor
grega da ilha de Lesbos, conhecida pela de vários continentes, apresenta um relato, em forma de crónica
sua arte literária mas também pelas de costumes, sobre as suas experiências sexuais com mais de
suas práticas homossexuais conside- 2500 mulheres, de vários cantos do mundo. E, repare-se, assim,
radas lascivas) não se livravam da sua confrontados com este tipo de legados, de que nem sempre temos
vida privada sob um escrutínio quase conhecimento enquanto leitores, insurge-se o desejo de lermos
devasso e perturbador. este e outros livros semelhantes.

O erotismo literário tem este efeito mediático no ser humano, pois


ler sobre erotismo implica aprender a cada palavra que se
desenha no corpo do texto. O leitor percorre avidamente o
enunciado para se entender com aquele outro que tem os mesmos
apetites sexuais, encontrando resoluções ou mesmo conflitos
psicossociais.

E hoje, será que os nossos escritores, na área em questão, É muito interessante observar, por exemplo, as leitoras num salão
combatem a maledicência? A pergunta instaura-se quase de de cabeleireiro que às escondidas lêem, com imensa atenção,
forma retórica. Prejudicando a expressão e a interpretação, aquela história erótica que surge numa ou noutra revista cor-de-
165
muitas vezes leviana, que se faz de um escrito de pureza erótica, -rosa. É um tipo de leitura que ainda hoje conforta as ansiedades
castra a estética que este tipo de textos pretende divulgar. do leitor mas perturba o seu à-vontade social, o que faz com que
Frequentemente a liberdade de expressão não é problema, vire a página como se não manifestasse interesse por aquele tipo
sobretudo no caso de escrita erótica, mas a liberdade de de textos.
“recepção” e de resposta literária torna-se impiedosa nos tempos
actuais. Esta “resposta” advém quer da falta de letramento, quer
da falta de experiência cívica em relação a este tipo de género.
Sandra Figueiredo ESCRITA ERÓTICA

A sexualidade constitui-se como uma prática discursiva por A literatura erótica constata-se frequente-
excelência do homem e da mulher, daí que ler sobre práticas de mente em diversos tipos de textos e, embora
cariz erótico é descobrir-se a si mesmo e perceber-se enquanto ser nem autores, nem leitores o admitam, a verda-
social e privado. O Kama Sutra, por exemplo, escrito por de é que se expande sem fronteira genológica.
Vatsyayana (Índia, século IV D.C.), é considerado um manual
consensual e “devoto” do erotismo, embora no seu aspecto mais Porém, no mercado nacional, a aposta na
licencioso, pois apresenta-se explícito nas imagens e nos textos produção e venda de literatura erótica não é
que exibe, controlado, no entanto, por um estilo de “didactismo”. promissora. A indústria do audiovisual impera,
mas apenas no domínio da pornografia, com
A escrita erótica, sob forma mais frequente de carta ou conto, é uma adesão inquestionável. Em querela conti-
concebida para todo o público jovem e adulto, sem elitismos, pois nua a recepção de livros de teor erótico que
não há medidas sociais para ouvir falar, literariamente, do prazer e nem sempre são bem compreendidos por
mesmo de actos de luxúria, no seu sentido mais puro. As pessoas, vendedores e compradores, pois a fronteira
por vezes, tornam alvo de chacota o tipo de textos aqui referidos entre livro pornográfico e erótico é muito ténue
mas, na verdade, acolhem-nos como cartilhas sábias que e, por isso, compromete o valor social do ero-
expõem, sem grande pudor, as receitas da sensualidade. tismo literário.

Este tipo de escrita encontra-se subtilmente em vários outros


géneros literários, pois quase nenhum autor consegue fazer uma
mimética do comportamento humano sem elucidar o leitor acerca
167 da sexualidade das suas personagens. A sexualidade é uma das
formas mais reveladoras da conduta do ser humano, nos níveis
consciente e inconsciente.
Sandra Figueiredo ESCRITA ERÓTICA

Hoje em dia já não se organizam serões nas cortes elitistas, onde Por outro lado, os autores têm de procurar que o erotismo evite a
trovadores ou aspirantes a poetas exibiam os seus textos de cunho ridicularização de si próprio, assim como o excesso de similari-
verdadeiramente erótico, assaltando a libido socialmente bem dade com o pornográfico. O problema está, consideravelmente,
comportada dos senhores e senhoras que perdiam a distinção de no tipo de apelo feito (a começar pelo nosso limitado léxico na
idade na imaginação flutuante. No entanto, a imprensa mais área do erotismo) e mesmo na experiência que autores e leitores
“comercial” insere sempre este tipo de textos (embora imperem as possam ter em relação à sua intimidade e ao tipo de resolução que
imagens que se bastam a si mesmas) nos seus conteúdos gerais. mantêm com o seu id. Outro tipo de dificuldade prende-se na
nossa própria cultura.
Cada vez mais a escrita erótica opta por se exprimir em platafor-
mas Web (os blogues) e, daqui, emergem diferentes géneros
mesmo dentro do tipo de erotismo literário, até porque o “literário”
esfuma-se na necessidade íntima e social de se exprimir, em arte e
em humanidade. O suporte “livro” cada vez menos se torna um
recurso, não só pelo apelo das novas tecnologias, mas também
pela limitação de expressão que o livro apresenta, quando são
muito mais os “utilizadores” do que os “leitores”.

169

BLOGUES ERÓTICOS NACIONAIS:


http://www.contossecretos.com/
http://www.amacadeeva.blogspot.com/
http://colunas.epoca.globo.com/sexpedia/
http://sex-utopia.blogspot.com/
http://lasciviablog.wordpress.com/
Sandra Figueiredo ESCRITA ERÓTICA

No contexto internacional, são abundantes os livros que surgem A escrita erótica depende seriamente da sensibilidade do escritor
nas prateleiras, com títulos simples ("Contos Suavemente que, para se distanciar da pornografia, deve fazer uma escolha
Eróticos" de Tito Ryff e "Contos de Fadas Eróticos" de Nancy atenta de vocabulário, apelando às suas experiências pessoais.
Madore) e repetidos em diferentes autores, sendo as descrições Sem as suas moratórias, de que modo o autor de escrita erótica
breves e suficientes. enalteceria o amor e o sexo?

É interessante, também, observar que começam a proliferar Daqui deriva uma questão: o erotismo admite que se aborde a
manuais de sexo (”The Multi-Orgasmic Man: Sexual Secrets Every sexualidade sem os sentimentos? De facto, na minha opinião, é
Man Should Know” ou “Taoist Secrets of Love: Cultivating Male um dos principais baluartes distintivos da escrita erótica e da
Sexual Energy”, entre outros de Mantak Chia et al.) sobretudo pornográfica. Quando refiro sentimentos, não os limito ao amor no
como compra recomendada via Internet, para evitar os seu sentido mais “aceitável”, mas a todos os impulsos humanos
constrangimentos da venda directa ao público. Um best-seller que aproximam as pessoas e justificam a sua união, sem que esta
encontra-se num livro de Sonia Florens (2004), “The Mammoth se reduza à busca de uma satisfação quase individual de pulsões
Book of Women's Erotic Fantasies”,que aborda a sensualidade da latentes. O erotismo é um hino às sensações e partilha de
mulher do século XXI, numa distância sôfrega desde as práticas e emoções, físicas e psicológicas, travadas pelos seres humanos,
fantasias da mulher dos anos 60. não definindo números nem géneros.

Com uma sabedoria que lhe é (re)conhecida, a cultura oriental


assume contornos mais permissivos mas também mais didácticos
na matéria de erotismo. A sexualidade tem diferentes
171 perspectivas para etnias orientais que abordam de forma sempre
sábia e apaixonante as “técnicas” da paixão e do desejo, sem
incorrer nas concepções mais lascivas.
Sandra Figueiredo ESCRITA ERÓTICA

A nossa cultura necessitaria de uma aprendizagem sobretudo na Para explorar:


linguagem escrita para traduzir, por sua vez, a linguagem corporal. “Novos Contos Eróticos do Novo Testamento”
Já não estamos nos tempos dionisíacos (festas em honra de Deana Barroqueiro
Dionísio, o Deus excêntrico do Vinho) em que apenas se
teatralizava os gestos de homens e mulheres no seu mais profundo
inconsciente, exaltando fantasias e medos. A Psicologia do século “Novo Kamasutra Ilustrado”
XIX começou por analisar essas manifestações e fechou-as numa Alicia Gallotti
caixa de Pandora. Hoje todos têm medo de a descontrolar na sua
abertura. Mas todos a cobiçam. “Diário de uma Ninfomaníaca”
Valérie Tasso
Considerando a lufada de ar fresco que a escrita erótica pode
trazer à sociedade, percebendo que a sua expressão não é
“Jenifer - Iniciação erótica de uma rapariga”
abundante na nossa cultura pelo seu carácter menos liberado e, Paola Milano
portanto, menos comercial, estará condenada nesta sociedade
capitalista? É caso para colocar num jornal: “Admitem-se escrito- Uma revista erótica para cegos
res eróticos. Entrada imediata!”.

173
LITERATURE
DESASSOSSEGADOS
175 Gualter Franco

“Tristeza não tem fim


Felicidade sim.”
Vinícius de Morais

Na MITOLOGIA romana, Saturno, equivalente ao grego Cronos, Quem não conhece a letra e a sua canção? Que estado é este tão
está ligado a este “humor sombrio”. É ele que, mórbido e sem fim? Onde nasce esse sentimento? No cérebro? No coração?
desesperado, castra o seu pai (Urano) e devora os seus filhos a
No livro, Luto e melancolia, Freud aproxima o termo “luto” ao
pedido da mãe (Geia, a Terra). Os melancólicos eram, então,
“pesar por alguma coisa perdida”. Nele refere que, durante o luto,
designados de “saturninos”, mas a caracterização da sua doença
o sujeito desliga-se lentamente do “objecto perdido”, ao passo
foi variando consoante a época.
que, na melancolia, sente-se de alguma forma culpado por essa
morte, ao mesmo tempo que a nega e se sente possuído de forma
doente, num desespero infinito. Esse “temperamento
ETIMOLOGICAMENTE, vem do “fígado”, pois do grego, melancólico”, sem fim à vista, assume, nos místicos, a ameaça de
melacholia , forma-se de melas (negro) e kholé (bílis), ou seja se afastarem de Deus; nos revolucionários, a procura de um ideal
“bílis negra”, uma forma de loucura, que pode ser “pesada”, que se escapa e, nos criadores, a procura da auto-superação.
“sombria”, “nostálgica”, “insuportável”, “agonizante”,
“decadente”, “abatida” e, ainda, “extinguindo o desejo e a fala”.
Gualter Franco DESASSOSSEGADOS

Também, na psicanálise, o mecanismo de “sublimação” permite


ao indivíduo libertar-se de certas tendências socialmente
indesejáveis e de impulsos primitivos, como a perversão, as
neuroses e as anomalias psíquicas. Através deste mecanismo
encontra uma saída positiva e um modo “normal” de o expressar
com atitudes que são reconhecidas pela sociedade, a partir do
trabalho que desenvolve (cultural, científico, religioso…).
Na verdade, é a “depressão” a designação da doença da melanco-
lia, caracterizada pela falta de vontade de viver, sentimentos
negativos, perda do sentido da vida, desconsolo, aflição e falta de
energia.

Os SINTOMAS podem ser FÍSICOS (dores de cabeça, mal-estar


corporal generalizado, dor no peito) e PSICOLÓGICOS (falta de
ânimo, dificuldade do ser humano em se projectar no futuro,
pensamentos negativos, sentimentos de culpa e de conduta - falta
de reacção, ataques de choro; cognitivos - ideias e pensamentos A “catarse” é um termo essencialmente literário e, segundo
sombrios, deformando a realidade, que faz virar o indivíduo contra Aristóteles, a representação da tragédia grega poderia provocar a
ele próprio; e sociais - perda de habilidades sociais, sendo que as “purgação” ou “a purificação das paixões”, através da
177 relações interpessoais diminuem de qualidade, tornando-se mais identificação por parte do espectador. Nesta actividade, grandes
débeis, curtas e distantes). festas de multidão, tumultuosas e ébrias conduziam a situações
de descontrolo e excesso, entregando-se, o ser humano, às
“paixões violentas”, consumindo a perturbação de uma vida
agitada, de pulsões excessivas, conturbadas ou brutais.
Gualter Franco DESASSOSSEGADOS

Platão recusa a ideia de que estes espectáculos podiam formar o


cidadão e vê a “catarse” com uma acção curativa, capaz de
conduzir à libertação das afecções doentias psicológicas. Assim,
através da reflexão, os cidadãos podiam libertar-se do excesso de
violência e dos comportamentos irracionais. Poderia ter um efeito
individual ou social e ajudar na construção da identidade moral e
ética.
A literatura, tal como as restantes artes, têm-se debruçado sobre
este “mal de vivre”. Na sua lírica, Camões torna-se um exemplo
pela forma como descreve os seus sentimentos amorosos, tantas
vezes frustrados, e imprime neles uma beleza tão rara:

“Os erros e a fortuna sobejaram Outro gigante da nossa língua é Fernando Pessoa, que se auto-
Que para mim bastava o amor somente” -intitulou um “drama em gente”. O seu “Livro do Desassossego” é
uma obra que compreende uma profunda “catarse”: é depressivo,
Ou descritivo, circular, desconstrutivo, sensível, de auto-ajuda e onde
descarrega a dor em fragmentos. Nele diz: “A solidão desola-
“Com que voz chorarei este meu triste fado me; a companhia oprime-me.”, “A minha vida é como
[…] se me batessem com ela”, “A minha alegria é tão
De tanto mal a causa é amor puro”. dolorosa como a minha dor.”…
179

Mas, transversalmente, a obra de Pessoa atravessa, em muito,


este mal-estar geral, quer no seu ortónimo (“Se estou só,
quero não estar, / Se não estou, quero estar só,”)
quer nos seus heterónimo, como por exemplo, Álvaro de Campos
(“Fui como ervas, e não me arrancaram”).
Gualter Franco DESASSOSSEGADOS

O século XIX foi atravessado por uma atmosfera psicológica e


moral de declínio, desde o romântico “mal du siècle”, à tomada de
consciência da vacuidade da vida (”ennui”), perda da alegria de
viver (”spleen”), até ao decandentismo (”Fin de siècle”).

Baudelaire é um dos autores fundamentais para se compreender


o “tédio”, o “niilismo”,a “náusea”, a“inércia” e o “mal-estar
perante a morte”. Nas “Flores do Mal” refere que “Nada iguala
a extensão dos longos dias mancos / Quando o
tédio, esse fruto da incuriosidade, / Sob os
pesados flocos da neve dos anos, / Atinge as
proporções da imortalidade.” (trad. de Fernando Pinto do
Amaral).

É muito comum ligar a criatividade à doença mental. A criatividade


pode ser difícil de explicar, isolar ou quantif icar. Alguns
especialistas acreditam que as pessoas criativas possuem uma
“inibição latente” inferior ao indivíduo comum. Os mesmos
descrevem a inibição latente como “a capacidade inconsciente de
ignorar estímulos sem importância” e julgam que as pessoas
181
criativas estão mais atentas ao mundo em seu redor e/ou
ignoram-no em menor grau. Pensa-se, então, que este grupo é
mais vulnerável a doenças mentais.
Gualter Franco DESASSOSSEGADOS

A doença bipolar tem a característica de apresentar episódios de Já a esquizofrenia é apresentada como um transtorno psíquico
euforia e depressão. As pessoas que sofrem estes transtornos têm que pode ter como sintomas: alterações de pensamento,
uma vida mais agitada, temperamental e intensa, o que os pode alucinações, delírio e perda de contacto com a realidade. Esses
predispor para variadas manifestações artísticas, pois essas traços podem provocar uma maior abertura a novas possibili-
variações de humor podem ser canalizadas para a arte, de forma a dades: pensamentos divergentes, ideias estranhas e respostas
reparar esse equilíbrio perdido. Estas variações têm repercussões indesejáveis socialmente, sobressaindo as suas habilidades
nas sensações, emoções, ideias e no seu comportamento. Virginia artísticas. Está ligada à excentricidade, experiências incomuns,
Wolf, Ernest Hemingway e Antero de Quental são alguns dos génios pensamentos intuitivos e mágicos, descobrindo novas
literários associados a esta doença. perspectivas. Associados a esta doença, temos Tolstoy e Lord
Byron.

No entanto, os cientistas, ao tentarem estabelecer a criatividade


com a depressão, a doença bipolar, a esquizofrenia e o álcool,
revelaram que esta comparação não é evidente, mas existiram
casos em que se estabeleceu uma relação positiva. Os estudiosos
alertam que é negativo fazer a ligação entre estas duas situações,
o que poderá desvalorizar e diminuir o valor dos mesmos artistas e
da sua criatividade, romantizando a doença mental e trivializando
a associação entre as duas.

183
Gualter Franco DESASSOSSEGADOS

Contudo, existiram diversos escritores que se suicidaram como


Sylvia Plath, Virginia Wolf ou mesmo os portugueses Mário de Sá-
-Carneiro (que se descrevia como um “labirinto” e que não conse-
guia permanecer “aquém”) e Florbela Espanca (que, num soneto,
revelou que era “revoltada, trágica, sombria”).
Muita tinta tem corrido sobre esta ligação entre doenças afectivas
e criatividade. É comum aparecerem novos estudos e livros sobre
este tema. Mas o importante é o legado, a sabedoria, a escrita fiel
ao seu interior. A forma “exacta” de escrever o subjectivo, a riqueza
triste mas majestosa e tantas vezes lúcida na descrição profunda,
penetrante e fecunda do seu sentir.

“A melancolia é a felicidade de se ser triste.”


Victor Hugo

185
LITERATURE
O DIÁLOGO E O SEU PAPEL NO TEXTO LITERÁRIO
187 Ricardo Branco

- Gostei bastante dos diálogos!


- Os diálogos eram tão reais que nem pareciam ficção.

Quantos comentários a um livro começaram por uma destas


expressões. Sem dúvida nenhuma que todos nós gostamos de
ouvir falar, conversar e de saber o que os outros têm para dizer.

E, sendo assim, o diálogo não pode deixar de ter um papel


preponderante no texto literário tornando-se até, a seguir à
narrativa, na segunda ferramenta mais importante à disposição
de um escritor. Deve ainda usar-se uma pontuação correcta, pois sem ela o
diálogo torna-se confuso; usar primordialmente o “ele/a disse”,
Porém, escrever um diálogo realista não é fácil e, mal concreti- não distraindo a atenção do leitor com os outros sinónimos; não
zado, pode desmotivar a leitura. Para tal, existem várias técnicas e utilizá-lo como uma ruptura na narrativa, nem quebrado pela
regras que um escritor pode seguir para aperfeiçoar a sua escrita, mesma; e, deve ser económico e condensado como no seguinte
tais como, prestar mais atenção às expressões usadas pelas exemplo onde o autor omite os primeiros minutos da conversa:
pessoas no quotidiano e não transcrever exactamente uma
conversa como na vida real. Hitchcok dizia que era como “uma boa Falávamos sobre a casa, filhos e trabalho quando ela,
história de vida sem as partes chatas”. subitamente, disse. “Estou a ter um caso.” Parei de respirar.
Não queria acreditar.
Ricardo Branco O DIÁLOGO

Um dos erros que surge com frequência nos escritores No entanto, este diálogo poderia ser de outra forma:
inexperientes é o facto de colocarem as suas personagens a
repetirem aquilo que ambas já sabem: Elisabete aproximou-se, pesadamente.
-Então, o que se passa desta vez?
-Qual é o problema?, pergunta a Elisabete. -Não te via tão Pedro entreolhou-a. Claro que ele no último ano, sem o pai,
deprimido desde o ano passado, altura em que o pai foi-se não foi o Sr. Felicidade mas Elisabete agiu como a sua
embora a meio da noite e tivemos que descobrir uma atitude fosse um amuar passageiro de uma criança.
maneira de sobrevivermos com o pouco rendimento da -Nada.
mãe. -A sério? disse ela. -Isto não tem nada a ver com a nódoa
-Sim, disse o Pedro pensativo enquanto ia relembrando negra no teu queixo, pois não?
esses penosos dias questionando a razão da partida do pai. Pedro colocou as mãos na cara.
O pai dele nunca gostou do seu interesse por livros e -Nota-se muito? A mãe vai-se passar.
desenho em detrimento do desporto. -Quando a mãe chegar ela vai estar muito cansada para
-Mas isto é ainda pior. Há na escola um colega meu que reparar, quanto mais para se passar.
anda a meter-se comigo. Tu sabes como eu sou mais Talvez, mas o Pedro não quer correr o risco.
pequeno do que todos os outros rapazes e que não consigo
ganhar peso por mais que coma. A mãe diz que sou tão Neste exemplo o diálogo cobre a maior parte do assunto do
magricelas como uma galinha depenada. Como é que eu anterior mas de uma forma mais subtil e natural deixando espaço
lido com um gajo com o dobro do tamanho? ao leitor para as suas interpretações.
189
Mas, a mais importante de todas as regras é mesmo não dar ao
leitor todas as pistas colocando-o numa posição em que possa ler
nas entrelinhas. É aí que está o verdadeiro prazer da leitura.
Tomemos este exemplo do conto “As Colinas como Elefantes
Brancos” de Ernest Hemingway:

-A cerveja é agradável e fresca, disse o homem.


-É fabulosa, disse a rapariga.
Ricardo Branco O DIÁLOGO

-É uma operação muito simples Jig, disse o homem. - Na DIÁLOGO EM CONJUGAÇÃO COM A NARRATIVA E ACÇÃO
realidade nem é bem uma operação.
A rapariga olhou em direcção às pernas da mesa e De acordo com Gloria Kempton no seu livro “Dialogue: Techniques
descansou. and Exercises for Crafting Effective Dialogue” há escritores com
-Eu sei que não te vais importar de o fazer, Jig. Não é nada. É medo de escrever diálogos ao ponto das personagens soarem de
só deixar o ar entrar. forma irreal ou, até, de criarem textos sem qualquer tipo de
A rapariga não disse nada. diálogo. Toda a ficção precisa de diálogo - refere - bem balanceado
-Eu vou contigo e estarei o tempo todo contigo. É só deixar o com a narrativa e acção para obter-se a natureza das personagens
ar entrar e depois é tudo perfeitamente natural. e da história. “O diálogo deve captar a essência da realidade”,
-E depois, o que vamos fazer? Dean Koontz.
-Nós vamos ficar bem, como já estávamos antes.
Assim, tal como o diálogo traz a história e as personagens para a
-O que te faz pensar assim?
página, a acção cria o movimento e a narrativa dá a profundidade e
-Isso é a única coisa que nos está a incomodar. É a única coisa
a substância. Com estes três elementos, refere Gloria Kempton, o
nos faz infelizes. escritor provoca uma sensação de três dimensões ao leitor.
Percebe-se neste diálogo que o assunto é o abor to e que, apesar Qual dos três deve ter mais preponderância? Não existe uma
de não ser mencionado abertamente, sente-se o desconforto que resposta evidente para a questão. Devem estar, sobretudo,
causa nas personagens. Um escritor menos capacitado não seria entrelaçados e surgir de forma natural e instintiva. Existem
capaz de confiar no leitor e transcreveria a conversa de uma forma excelentes obras baseadas apenas na narrativa ignorando quase
191
mais explícita. por completo os outros dois elementos, como também existe o
contrário.
Ricardo Branco O DIÁLOGO

Em “O Amor nos Tempos de Cólera”, de Gabriel Garcia Márquez, A venda realçou-lhe a pureza dos lábios entre a barba
podemos encontrar um exemplo onde diálogo, narrativa e acção redonda e negra e os bigodes de pontas afiadas, e ela sentiu-
conjugam na perfeição. -se sacudida por uma chicotada de pânico. Olhou para
Fermina e, desta vez, não a viu furiosa mas aterrorizada com
- Nada mais fácil, disse o doutor Urbino. - Vamos lá ver a ideia de que ela fosse capaz de tirar a saia. Hildebanda
quem acaba primeiro. pôs-se séria e perguntou-lhe em letras feitas com as mãos:
Começou a desatar os atacadores das botas e Hildebranda -Que fazemos?
aceitou o desafio. Não lhe foi fácil porque aquele estorvo do Fermina Daza respondeu-lhe no mesmo código que se não
corpete de varetas não a deixava inclinar-se, mas o doutor fossem directamente para casa se atiraria da carruagem em
Urbino demorou-se propositadamente até ela tirar os botins andamento.
debaixo das saias como uma gargalhada de triunfo, como se -Estou à espera, disse o médico.
acabasse de os pescar num tanque. Olharam então os dois -Já pode olhar, disse Hildebranda.
para Fermina e viram-lhe o magnífico perfil de verdilhão
mais aprumado do que nunca de encontro ao incêndio do Entretanto, há alturas no texto literário em que temos mais de um
entardecer. Estava três vezes furiosa: pela situação elemento do que de outro, principalmente quando é necessário
imerecida em que se encontrava, pela conduta libertina de relevar uma determinada situação como neste excerto da obra de
Hildebranda, e pela certeza de que o carro dava voltas sem W. Somerset Maugham, “Servidão Humana”, onde praticamente
sentido para retardar a chegada. Mas Hildebranda estava só utiliza o diálogo:
sem freio.
- Agora me dou conta que o que me estorvava não eram os -Sinto muitíssimo. Amanhã estou comprometido.
193
sapatos mas esta gaiola de arame. Sabia que isto ía provocar uma cena que daria tudo para
O doutor Urbino compreendeu que se referia às anquinhas e evitar. A cor das faces de Norah avivou-se.
respondeu à letra. “Nada mais fácil”, disse. “Tire-a.” Com um -Mas convidei os Gordon para almoçar (era um casal de
movimento rápido de prestidigitador tirou o lenço do bolso e actores que andava em tournée pelas províncias e passaria
vendou os olhos. o domingo em Londres).
- Eu não olho, disse. -Preveni-te a semana passada.
Ricardo Branco O DIÁLOGO

-Desculpa, esqueci-me…- Philip hesitou. -Temo que não me Em suma, uma relação harmoniosa entre diálogo, narrativa e
seja possível vir. Não há mais alguém que possas convidar? acção dependerá sempre da habilidade e técnica do escritor e do
-Que vais fazer amanhã, então? objectivo e público-alvo da sua obra.
-Preferia que não me submetesses a um interrogatório.
-Não queres dizer-me? Provavelmente, nos dias que correm, numa sociedade com cada
-Não tem a mínima importância, mas é um pouco vez mais apetência por informação rápida, fácil e concisa, os livros
desagradável ser forçado a dar conta de tudo quanto faço… sustentados pelo diálogo, na generalidade, têm mais sucesso que
Norah mudou de repente. Conseguiu dominar a cólera e veio os restantes, sobretudo em detrimento dos clássicos. Páginas
tomar as mãos do rapaz. com bastantes espaços em branco sempre são mais apelativas do
-Não me desapontes amanhã, Philip. Contava passar o dia que longos blocos de texto.
junto de ti. Os Gordon querem conhecer-te e vamos divertir-
A qualidade de um livro obviamente - vale pelo seu todo e o uso do
-nos tanto…
diálogo representa apenas uma parte não devendo, por isso, ser
-Se pudesse, viria da melhor vontade.
sobrevalorizado nem subvalorizado, ficando o critério e a exigên-
-Não sou muito exigente. Nem te peço muitas vezes que cia ao encargo de cada um.
faças uma coisa que te desagrade. Não poderás faltar a esse
teu compromisso… só uma vez? Mas, parafraseando Stephen King, em “On Writing”, “Escrever
-Sinto muito, não vejo maneira… replicou, carrancuda- (Ler) é mágico, é como a água para a vida como em qualquer outra
mente. arte criativa. A água é grátis. Por isso bebam. Bebam e encham-
-Diz-me o que é, pediu ela. se.”
195
smiling everywhere...

You might also like