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Ensaio

O paradigma da textualidade nas interfaces contemporâneas


Ian Castro de Souza1
www.intermidias.com.br

Qual é o grande diferencial da interface de linha de comando para a


interface gráfica?
Talvez a sua resposta, proveniente do primeiro estímulo, seria a mais
óbvia o possível: a acessibilidade das linguagens visuais. Em primeira instância,
podemos considerar esta resposta como adequada. Desde que Douglas
Engelbart nos apresentou as graphical user interfaces (GUIs, ou, em bom
português, interfaces gráficas de usuário), em 1968, este é o principal
argumento em seu favor. É irrefutável que a espacialidade e tangibilidade que
as GUIs trazem à informação (e a sua organização, em geral) dotam os
sistemas operacionais de uma intuitividade incrível.
Porém, devemos pensar um pouco mais nesta resposta tão simplória. O
que realmente faz com que a interface gráfica de usuário seja um trunfo na
história dos computadores não é o mero fato de dotar a informação de forma
ou torná-la mais tangível para o usuário, mas a metaforização visual do
ambiente computacional e a projeção do usuário dentro da máquina – como
nos apontam vários autores da área, a exemplo de Stephen Johnson, de forma
bastante inteligível, em A Cultura das Interfaces. A pequena seta do mouse,
presente na tela, trouxe ao usuário a possibilidade de, efetivamente, realizar
uma tarefa, e não mais pedir que o computador o fizesse em seu lugar. Ao
digitar “dir C:\” o usuário está fazendo um pedido ao computador, similar a:
“por favor, liste todos os arquivos que estão na raiz do disco C”. Já o mouse é o
próprio usuário, é sua mão, movendo e excluindo arquivos – e não mais
pedindo, encarecidamente, ao computador que realize estas ações. E assim as
solicitações, grandes e complexas linhas de comandos, deram lugar às ações,
seqüências de cliques. Entretanto, no final de tudo, as interfaces gráficas são
apenas meios para visualizar informações, “os dados por trás de determinado
documento estão na verdade dispersos a esmo pela superfície magnética de um
disco rígido” (JOHNSON, 2001, p. 124). Os ícones, janelas e ambientes são
apenas ilusões, construídas para nos ajudar a manipular e navegar por entre
estas informações.
Fazendo uma válida analogia entre a internet e nossos computadores, Aza
Raskin, especialista em ambientes digitais de interação, considera a internet
como um espaço caótico, no qual existem muitos serviços e informações
coexistindo sem qualquer relação entre elas – concepção certamente herdada
de teóricos como Manovich (2006), que define a internet como um aglomerado

1
Ian Castro de Souza é planner / redator de mídias digitais da agência Idéia 3 e graduando em Comunicação na
Universidade Federal da Bahia. O blog Intermídias (http://www.intermidias.com.br) é o reflexo da sua prática
profissional com comunicação digital e mídias sociais, além dos estudos que desenvolve sobre as possibilidades que o
ambiente digital traz a prática publicitária.
de dados em suspensão, disponíveis para download (não necessariamente via
browser, é válido ressaltar). Em suas elucubrações, Raskin constata um fato
que muitas vezes nos passa despercebido: algumas das tarefas que
desempenhamos na internet podem vir a exigir muito mais cliques, muito mais
esforço, do que a digitação de alguns comandos o faria. Foi exatamente esta
constatação que fez Raskin iniciar o desenvolvimento do Ubiquity, um
complemento para o navegador web Mozilla Firefox que, quase
nostalgicamente, retoma a idéia dos comandos escritos – mas, desta vez, a
partir de uma abordagem diferenciada: a semântica.
Para compreender porque a proposta de Raskin não é retrocesso, mas um
avanço na usabilidade das interfaces de usuário, devemos pensar nas interfaces
de linha de comando e seu principal problema: a limitação do repertório de
comandos. Quando digitamos um comando em um terminal, o sistema
operacional não o interpreta, apenas o reconhece. É isso que o computador se
resume a fazer: reconhecer os comandos escritos, a partir da comparação com
um banco de comandos pré-estabelecidos, e executá-los. Contudo, sabemos
perfeitamente que a linguagem escrita, como os humanos a utilizam, não se
baseia só na equivalência – pelo contrário, nos deparamos freqüentemente com
significados sem uma expressão definida ou várias expressões que possuem um
mesmo significado. Em resumo: as línguas (sim, qualquer uma delas) são
regidas pela semântica, não pela sintaxe.
Com o Ubiquity, Raskin propõe uma substituição deste modo de
manipulação sintático por um modelo semântico, no qual que possamos “dar
sentido” ao caos informacional que é a web – a articulando e operando da
mesma forma que fazemos com nossas idéias e nossa linguagem. É uma
interface que não exige de nós a memorização de uma lista interminável de
comandos, mas que entenda nossas solicitações, da forma que, de fato, as
fazemos. O complemento permite que o usuário ative uma série de serviços
(previamente integrados) a partir da entrada de pequenos comandos escritos
diretamente no navegador.
No vídeo de apresentação do projeto (abaixo), Raskin ratifica a utilidade
de sua criação com uma situação bastante comum: o envio de um e-mail com
um mapa – apesar do Wave, lançado bastante tempo depois do anúncio do
Ubiquity, propor outra solução (gráfica) para esta mesma situação, o exemplo
continua perfeitamente cabível. Para realizar esta tarefa, o usuário faria uma
série de tarefas simultâneas ao processo de composição da mensagem em si:
1. abrir o e-mail; 2. abrir o Google Maps; 3. buscar a localização desejada e 4.
Colar o link do mapa no e-mail. Todo o processo exigiria, além de bastante
tempo, vários cliques e resultaria em um e-mail com um link e não um mapa –
o que faz bastante diferença para o destinatário. O Ubiquity altera radicalmente
esta dinâmica; com ele tudo que o usuário precisa fazer é digitar “map” seguido
do endereço desejado e o mapa é inserido no e-mail.
O Ubiquity, sem dúvidas, torna mais ágeis atividades corriqueiras pela
sintetização de suas ações em comandos escritos, porém ele ainda não pode
ser caracterizado como uma espécie de modelo semântico de interface de
usuário. O complemento funciona, assim como as antigas linhas de comando, a
partir de um repertório pré-estabelecido de comandos (e serviços). Atualmente,
ele conta com aproximadamente 80 comandos, relativos a atividades
comumente realizadas na web (busca, tradução, envio de mensagens,
localização de lugares, entre outros) - ou seja, pela simplicidade e abrangência
dos comandos ele simula uma interface semântica, mas não é. Ainda assim, o
Mozilla Ubiquity traz uma diferença que o torna bastante significativo: o fato
dele ser um software livre, um projeto open-source com o qual qualquer
indivíduo pode colaborar construindo e compartilhando comandos com a
comunidade a partir da API do complemento – escrita em Javascript, linguagem
de programação extremamente popular na internet.
É bom ver que, enquanto o novo orgasmo do mundo da tecnologia são
projetos de interfaces gráficas manipuladas pelo toque (e a supressão, cada vez
maior, dos inputs de texto), ainda existem pessoas que pensam diferente.

Bibliografia

JOHNSON, S. Cultura da Interface: como o computador transforma nossa


maneira de criar e comunicar. Tradução: Maria Luíza X. de A. Borges. Rio de
Janeiro: Jorge Zahar Editor, 2001.

MANOVICH, Lev. Post-Meida Aesthetics, 2006. Disponível em:


http://www.manovich.net/IA/. Acessado em: 3 dez. 2009.

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