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ISSN: 0103-1104
revista@saudeemdebate.org.br
Centro Brasileiro de Estudos de Saúde
Brasil
RESUMO O presente trabalho tem por objetivo examinar práticas feministas e femininas, em
especial, aquelas presentes em uma pedagogia voltada para o processo de empoderamento
político das mulheres, a Linha da Vida, largamente utilizada nas lutas dos anos de 1980 por
direitos reprodutivos e, mais especificamente, pela instituição do Programa de Assistência
Integral à Saúde da Mulher. Essa pedagogia, propagada no Brasil, marca a segunda onda fe-
minista, estimulando o protagonismo das mulheres, favorecendo a tomada de consciência e
definindo orientações de lutas pelas transformações desejadas. Para tanto, este trabalho apre-
senta um estudo tomado da experiência do Centro de Saúde Santa Rosa, em Niterói (RJ), a
partir de 1984.
ABSTRACT The present work aims to examine feminist and feminine practices, special, those
present in a education focusing on the process of political empowerment of women, the Life Line,
widely used in the fighting of the eighty´s for reproductive rights and, more specifically, for the
institution of the Integral Assistance Program to Women’s Health. This practice, propagated in
Brazil, sets the second feminist wave, stimulating the feminine prominence, fostering the aware-
ness and stablishing fighting orientations for the desired changes. Therefore, this work presents a
study based on the Santa Rosa Health Center, in Niterói (RJ), since 1984.
1 Universidade Federal
Fluminense (UFF) – Niterói
(RJ), Brasil.
elainefranca_loc@yahoo.
com.br
DOI: 10.1590/0103-1104201510600030027 SAÚDE DEBATE | RIO DE JANEIRO, V. 39, N. 106, P. 893-903, JUL-SET 2015
894 SILVA, E. F.
governo Brizola, nos termos definidos pela regras de atendimento em geral e no nascente
Comissão Legislativa (COSTA, 2007A). A Linha PAISM, depois espraiadas para outras unida-
da Vida, como pedagogia emancipatória, foi des de saúde do município e do Estado. (COSTA,
empregada e propagada por alunos e profis- 2010, P. 2).
sionais do Centro de Saúde, e engendrou um
efeito multiplicador de muitas iniciativas, Naquele instante, novos atores somaram
tendo sido totalmente abraçada por César forças, fazendo circular, tanto no ambiente
Macedo, diretor da unidade à época. acadêmico quanto no das práticas cotidia-
O profissional responsável por buscar nas de saúde, novas perspectivas para a
novos rumos para a saúde do município de tomada de consciência política, de autoco-
Niterói (RJ), em especial, no período em que nhecimento e de ações focadas em deman-
esteve à frente do Centro de Saúde Santa das sociais reconhecíveis. Com o encontro
Rosa, na década de 1980, possibilitou que de muitos mundos, até então, distintos, as
uma série de atividades de cunho feminista questões postas no dia-a-dia dos profissio-
ocorresse na unidade. Médico sanitarista, nais e usuários eram percebidas como ques-
Dr. César Roberto Braga Macedo objetivou a tões que também estavam presentes nos
desconstrução de toda e qualquer forma ins- debates e nas pautas de luta travadas pelos
titucionalizada e ‘engessada’ de fazer saúde. movimentos de mulheres.
Além de colaborar para o desenvolvimento
de novas práticas reflexivas entre usuários Lembro-me [...] de muitas tensões vividas
e profissionais da área, foi um dos primeiros por mulheres, profissionais de saúde que, ao
homens, na unidade, a estar em um ambiente contrário desse médico, negaram-se a par-
ocupado por mulheres, estimulando iniciati- ticipar, por exemplo, de dinâmicas de grupo
vas e sucessivos eventos com o uso da Linha [...] centradas na linha da vida de cada um.
da Vida. Também a seu convite, Martha (COSTA, 2010, P. 3).
Zanetti, a organizadora de um texto de sis-
tematização da Linha da Vida ao Centro de Ainda segundo Suely Gomes Costa, muitos
Saúde, fez um debate sobre essa metodologia profissionais se negariam a participar das
para um auditório lotado por quadros dessa oficinas, alegando não terem sido treinados
unidade e de outras, tornando públicas as a falar de si, apenas a ouvir e falar do outro.
orientações em marcha. César Macedo se Mesmo assim, a pedagogia foi capaz
apropriou de tal pedagogia, reconhecendo- de formar grandes grupos de reflexão em
-a como um importante instrumento de torno de assuntos que outrora eram man-
sensibilização para mudanças de práticas tidos em segredo pelas mulheres, como
médicas e divulgando-a entre os mais diver- ainda é o caso do aborto. Tivemos ainda,
sos sujeitos. discussões que, infelizmente, pouco avan-
A pesquisadora Suely Gomes Costa defen- çaram em matéria de ações concretas, como
dia a importância de valorizar a experiência também é o caso da cultura da reprodução
ocorrida no Centro de Saúde através dos enquanto ‘assunto de mulher’, o que reite-
olhos do médico, em especial. Segundo ela, radamente colabora para o afastamento dos
o nome de César Macedo deve ser lembra- homens das responsabilidades reproduti-
do como de extrema relevância na condução vas. “A ausência masculina nos assuntos da
das ações ali desencadeadas (COSTA, 2010). reprodução e o quanto isso é familiar aos
Suely Gomes Costa informa: profissionais de saúde, nos reporta a noção
de estranhamento nos assuntos da reprodu-
Compúnhamos uma equipe que, então intro- ção” (SANTOS, 2006, P. 33). Isso tem se movido
duzia, nessa unidade, inovações cruciais nas lentamente ao longo das décadas, mas o
quanto dessa cultura persiste? Os atuais sem legitimidade, que nada sabem sobre a
Programas de Planejamento Familiar têm sociedade e as violências, sempre fracas de-
se caracterizado como ‘espaço de mulheres’ mais, sem agência.
e comprovado a quase inevitável feminiliza-
ção do PAISM. Mulheres são sempre vítimas? Terrenos
Não há como contestar que todas essas pouco explorados indicam relações entre
experiências ocasionariam redefinições no mulheres desiguais. Logo, atento para a com-
limite do privado e do público; elas acabaram plexidade dos sistemas de poder e subordi-
por moldar novas relações sociais, inclusive nação que perpassam relações de classes,
e principalmente, no interior das famílias. étnicas e geracionais, entre tantas outras, em
Ao perceberem-se sujeitos de uma ‘opressão’ suas muitas interseções. No que diz respeito
específica, as mulheres passaram a refletir às desigualdades entre as mulheres, isso é
sobre seus papéis sociais, verificando que patente (COSTA, 2004).
um enorme volume de trabalho era realizado Em princípio, a romantização construída
gratuitamente por elas, trabalho socialmente em torno da igualdade, conceito em que as
desvalorizado, invisibilizado cotidianamente mulheres se percebem como ‘irmãs’, ofusca-
(HIRATA; KERGOAT, 2007). Logo, o trabalho domés- va as tensões nas relações, que estavam longe
tico e, com ele, o papel materno, passaram a de serem equacionadas. A Linha da Vida,
ser questionados. muito embora tenha sido uma pedagogia ino-
Para uma mudança dessa magnitude, vadora para a época, reunia as mulheres ao
admite-se, teria ocorrido um importante redor dessa suposição de irmandade, reafir-
acúmulo de saberes e de experiências. Ele mando características biológicas (COSTA, 2009).
se expressou, com maior nitidez, nos anos Ao defender que mulheres são iguais porque
1980, quando, então, buscou-se evidenciar e menstruam, porque engravidam, a Linha da
debater a forma pela qual as mulheres viven- Vida acabava por invisibilizar problemas que
ciavam, no isolamento de seus lares, muitas perpassavam os debates de gênero, como a
das suas questões existenciais. Sobretudo, pouca participação de usuários homens nas
muitas vezes, sofrendo distintas formas de oficinas e as homossexualidades.
violência de gênero, violência doméstica, Ainda assim, essas experiências peda-
intrafamiliar. gógicas foram um importante passo, re-
Heleieth Saffioti (2002), pioneira na sultado de movimentações públicas das
análise da condição da mulher sob uma mulheres, momento em que produziram
perspectiva de classes, me faz atentar para cultura, através de peças, jornais, revistas e
a complexidade dessas relações violentas congressos. Aqueles foram tempos de orga-
entre homens e mulheres, relações envoltas nização de diversos grupos autônomos de
em uma realidade multifacetada, ideologi- mulheres em torno de questões específicas.
camente sustentada. Percebo, ainda, que Um exemplo e ‘produto’ dessa movimenta-
mulheres também oprimem e, no âmbito ção política foi a construção do PAISM, no
das relações privadas, aceitam o papel de início da década de 1980, tempos de ‘rebel-
‘rainhas-do-lar’ porque ganham compensa- dia’ e contestação.
ções com a fragilidade, como também resis- Assim, em 1983, surge o PAISM, em res-
tem e transgridem (COSTA, 2004). posta à Comissão Parlamentar de Inquérito
Segundo Andrade (2014), a sobre problemas populacionais, a pedido
do Presidente João Baptista de Oliveira
história da mulher sempre vítima e jamais Figueiredo (COSTA, 2004). Naqueles anos,
motor de qualquer opressão trata as mulhe- as questões sobre o crescimento popula-
res todas como se fossem seres sem vontade, cional já afloravam no mundo, e o tema
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Recebido para publicação em janeiro de 2015
ro transversal. Caderno Saúde Pública, Rio de Janeiro, v. Versão final em março de 2015
Conflito de interesse: inexistente
18, p. 103-112, 2002.
Suporte financeiro: não houve