Se adotarmos como premissa a assertiva de Aristóteles, onde ele afirma que: “é
evidente que o Estado é uma criação da natureza e que o homem é, por natureza, um animal político”. (ARISTÓTELES, p. 146), podemos inferir, através da lógica proposicional, que o fazer musical praticado pelo homem, também têm caráter político. Portanto, da apropriação de um determinado tipo de música para um rito religioso tribal específico, até a escolha das músicas e artistas que promoverão o entretenimento da população de baixa renda, estamos num campo que envolve decisões, privilégios, preferências e lutas de classe, portanto no campo político. Neste sentido estamos atuando no campo das questões sociais, e sobre a importância da música na formação das pessoas, a pesquisadora brasileira Júlia Maria Hummes elegeu dez principais funções sociais da música, tais como: Função de expressão emocional; Função do prazer estético; Função de divertimento, entretenimento; Função de comunicação; Função de representação simbólica; Função de reação física; Função de impor conformidade às normas sociais; Função de validação das instituições sociais e dos rituais religiosos; Função de contribuição para a continuidade e estabilidade da cultura; Função de contribuição para a integração da sociedade. (HUMMES, 2014, p. 18 e 19) Dentre as supracitadas funções sociais da música é possível identificar várias classificações que se relacionem à política. Por exemplo, como função de impor conformidade às normas sociais podemos citar as experiências musicais revolucionárias, que são designadas como canções de música popular compostas com o objetivo de chamar a atenção do ouvinte a um determinado problema, seja ele de origem social, política ou econômica. O pesquisador Alberto Ikeda (1999) no seu artigo Música política: alguns casos latino-americanos, pontua que, em quase todos países existiram música com apelo político e o nome que se deu a esse tipo de música variou de acordo com o ideal a que lutavam. No Brasil foram denominadas de música de protesto, nos países de colonização espanhola designou-se como canción militante, canti socialisti e comunista na Itália e proletarische Balladen na Alemanha. É importante explicitar que a música política, não necessariamente é uma resposta unívoca da prole retratando as mazelas sociais em direção aos homens do poder. Podemos ter o caminho contrário, onde governos instituídos disseminam pensamentos que visam à aceitação de políticas públicas impopulares. Por exemplo, a missa da coroação executada na posse de Napoleão Bonaparte, tem caráter político-ideológico evidente. Neste caso, a música é praticada como instrumento de confirmação hegemônica na forma e no estilo operístico, que visa alcançar efeitos de exaltação hiperbolísticos. Como um outro exemplo, posso citar a minha pesquisa pessoal sobre composição intertextual, que é aquela concebida como o diálogo entre os textos, sejam eles verbais ou não verbais, encontrei um possível exemplo de conotação política na obra 1812 Overture de Pyotr Ilyich Tchaikovsky. Nesta obra orquestral que comemora o fracasso da invasão francesa à Rússia em 1812, há uma sugestiva intenção política, na citação de fragmentos do hino francês, La Marseillaise. No entanto, há uma problemática, em se tratando de intertextualidade, há casos onde é possível afirmar impreterivelmente, que o texto citado é proveniente de outro, seja pelo tipo da composição, como por exemplo, variações sobre um tema. Por outro lado, há situações onde o pesquisador é capaz apenas de inferir possíveis relações entre os textos. Entretanto, esta lacuna de incerteza pode ser preenchida com a teoria proposta pelo pesquisador norte americano Martin Stokes, em seu artigo: music and the global order, onde ele defende uma teoria sobre a globalização da música. Esta pesquisa contextualiza aqueles gêneros, estilos e práticas que circularam além das fronteiras culturais em locais e histórias específicas. Ou seja, há uma explicação de como a música de um povo se manifesta em outras regiões do globo. Por exemplo, esta teoria pretende responder parcialmente questões do tipo: Como e por que o bel canto italiano, as formas de dança latina, a improvisação modal (maqam) no Oriente Médio e a polirritmia africana atravessaram tantas fronteiras culturais com tanta veemência? Uma resposta parcial pode ser dada se considerarmos alguns dos vetores óbvios de circulação: mídia, relações metrópole-colônia, diásporas e práticas musicais associadas à religiosidade. Por exemplo, no período do Império, onde o Brasil era colônia de Portugal, a metrópole trouxe consigo a modinha, e este gênero ficou enraizado no país, servindo como modelo e substrato para a criação de novos estilos. Por fim, em detrimento à afirmação inicial supracitada de Aristóteles, segundo a autora Hannah Arendt, através de estudos analíticos acerca do homem e sua história, percebe-se um processo de despolitização do homem moderno. Talvez por isso, a música de protesto não seja tão forte hoje como fora outrora. Em continuidade, Arendt discorre em sua pesquisa sobre três atividades humanas básicas, uma delas enunciada como “ação”. Esta atividade é entendida como: a única atividade a ter lugar diretamente entre os homens sem a mediação das coisas ou da matéria, correspondente à condição humana da pluralidade, ao fato de que são os homens, e não o Homem, que vivem na Terra e habitam o mundo. Embora todos os aspectos da condição humana estejam de alguma forma relacionados à política, tal pluralidade é especificamente a condição – não apenas a conditio sine qua non, mas também a conditio per quam – de toda vida política. REIS (2010, p.18). Haja vista a dimensão desta definição, podemos conjecturar de uma forma otimista, que há a possibilidade da ação política. Nesse sentido, a manutenção de todas as funções da música, o crescimento da oferta de música com conteúdo, a elevação na qualidade poética das letras, o controle positivo da mídia de massa e tantas outras iniciativas, somente obterão êxito, tanto quanto mais ação política tivermos. Se por um lado temos as políticas culturais que são formulações desenvolvidas pela administração pública, organizações não-governamentais e empresas privadas, com o objetivo de promover intervenções na sociedade através da cultura, por outro lado, precisa-se de uma classe de músicos esclarecidos politicamente. Este conhecimento será útil na concepção de interpretações musicais historicamente orientadas, na análise de intertextualidade entre textos musicais, no entendimento da música política dos períodos revolucionários e na compreensão de como a música cruza fronteiras tal como o fenômeno social de globalização. REFERÊNCIAS
ARISTÓTELES. (2000) Política. Trad. Therezinha Monteiro Deutsch e Baby Abrão.
São Paulo:Ed. Nova Cultural. HANNAH A. (1958) The Human Condition, Chicago, The University of Chicago Press, 1958 (9a impressão 1975); e Hannah Arendt, Between Past and Future: Eight Exercises in Political Thought, Nova Iorque, Viking Press, 1968 (tradução brasileira, Entre o Passado e o Futuro, São Paulo, Perspectiva. HUMMES, J. M. (2004)Por que é importante o ensino de música? Considerações sobre as funções da música na sociedade e na escola. 2004. Disponível em: http://www.abemeducacaomusical.org.br/Masters/revista11/revista11 _artigo2.pdf. Acesso: 01 maio. 2018. IKEDA, Alberto T. (1999) “Música política: alguns casos latinoamericanos”. In: Musica Popular em America Latina: Actas del II Congreso Latinoamericano IASPM – International Association for the Study of Popular Music. Santiago: Fondart.
REIS, FW. (2010) Política e racionalidade: problemas de teoria e método de uma
sociologia crítica da política [online]. Rio de Janeiro: Centro Edelstein de Pesquisas Sociais, 2010, 175 p. ISBN: 978-85- 7982-028-1.
STOKES, M. (2004) Music and the Global Order, Annual Review of Anthropology, 33: 47-72.