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EDUCAÇÃO MUSICAL: TERRITÓRIO PARA A PRODUÇÃO MUSICAL

INFANTIL, por Teca Alencar de Brito — Document Transcript


 1. EDUCAÇÃO MUSICAL: TERRITÓRIO PARA A PRODUÇÃO MUSICAL
INFANTIL Teca Alencar de Brito Resumo Integradas com o ambiente e a
cultura, as crianças interagem com sons e músicas,escutando, reproduzindo e
criando. A produção musical infantil é, além de forma de expressão e
comunicação, um jogo essencial à construção do ser que revela - e transforma-
a percepção e a consciência, em cada etapa. Em que medida a “educação
musical” escuta,respeita e estimula a produção musical das crianças?
Introdução O ser humano interage com sons, silêncios e com a música em
sintonia com seu modo de perceber, pensar, sentir, conhecer..., enfim, em
consonância com sua maneira de ser e estar no mundo. Como uma das
manifestações da consciência, a realização musical –jogo de sistemas sonoros
simbólicos - reafirma a condição de integração entre o ser humano e o
ambiente, bem como, entre a natureza e a cultura. Definições e análises que,
ao longo do tempo, procuram explicar a presença da música, quer por suas
características estruturais, quer pelos fins a que se destina ou os efeitos que
provoca, falam de música como arte, como jogo (Molino,1986; Delalande,
1984)como ritual e magia ( Blacking, 1974), como linguagem (Sloboda, 1985,
Koellreutter, 1997),forma de expressão e comunicação, como conteúdo do
espírito ou da matéria, como meio para o desenvolvimento integral do ser
humano ou para a organização social ( Beyer,1993),entre outras questões.
Ainda que a produção musical, em sua diversidade, apresente estruturas
organizadas a partir de sistemas assimilados, reconhecidos e reproduzidos
pela maioria dos sujeitos envolvidos nos sistemas sociais, é importante atentar
para o fato de que o grau de estabilidade adquirido por um ou outro sistema de
criação musical não deve (nem pode) ser confundido com a música, ela
mesma. Entendemos que os processos de ação/cognição, que se tornam mais
e mais complexos no curso do desenvolvimento humano, determinam,
também, transformações contínuas e dinâmicas no que se refere à interação
dos seres humanos com sons e músicas; dessa feita, coexistem diferentes
modos de produção/reflexão musicais, próprios a cada pessoa em cada
estágio, em cada ambiente característico. Se a formação especializada na área
amplia as possibilidades de escuta, produção e análise musicais, o fazer
musical 1 não é, como sabemos, privilégio dos músicos, realizando-se de
maneiras e por motivos diversos, com diferentes níveis de
competências,conhecimentos, possibilidades e recursos. Desse modo, o que
varia é o grau de complexidade. Este se revela por meio de um conjunto de
aspectos que podem incluir: a atitude para escutar, relacionar e estruturar sons
e silêncios; o domínio técnico para produzi-los com qualidades diversas e em
diferentes meios; a mestria para construir instrumentos musicais; a
possibilidade de codificar e decodificar os produtos musicais; a capacidade de
conhecer, analisar e interagir com os sistemas de produção musical vigentes
na cultura; a capacidade de superar e transformar tais sistemas e – aspecto de
grande importância – a maneira de entender e significar a atividade musical
dentre as ferramentas de expressão, comunicação e representação domundo.1
Entendemos por fazer musical, , “o contato entre a realização acústica de um
enunciado musical e seu receptor, seja este alguém que cante, componha,
dance ou simplesmente ouça”, segundo os compositor Silvio Ferraz.
 2. O que se mantém, para músicos ou não-músicos, é a essência que caracteriza
e gera formas musicais: sons e silêncios, no continuum tempo-espaço,
revestidos de sentidos e significados conferidos por aquele que produz e/ou
escuta. .A produção musical da criança Pesquisas e teorias indicam que o
relacionamento com o sonoro tem início na etapa da vida intra-uterina, com os
sons provocados pelo corpo da mãe e também com estímulos vindos do
ambiente externo. E o bebê ouve e produz sons e silêncios, realizando, à sua
maneira, um jogo que parece apontar para a gênese do fazer musical. O que
muda - comparando as experiências realizadas por um bebê com a voz ou com
um pequeno tambor, à improvisação ou interpretação de um músico - é, sem
dúvida, o grau de complexidade, como já apontamos anteriormente.
Entendemos que a construção do significado da música por cada sujeito (a “re-
invenção da música” ) se dá pela interação interno/externo ( “eu-meio-
construção de relações sonoro-musicais”), sempre em consonância com a
percepção e consciência. Dessa feita, é muito importante observar e respeitar o
modo como as crianças assimilam e internalizam a “ idéia da música”,
sintonizando o fazer musical à sua maneira de ser e estar,em dinâmica e
permanente transformação. Especialmente, é importante reconhecer que as
crianças são produtores musicais. Compreender e respeitar a produção
musical infantil, no entanto, implica em reconsiderar a concepção de música,
entendendo-a em sua condição de sistema aberto edinâmico, conforme
propusemos. Quando nos referimos à relação da criança com sons e músicas,
consideramosaspectos que dizem respeito à escuta, ao gesto, às condutas de
produção (priorizando acriação) e – especialmente – à idéia de música que ela
tem, ou seja, o que pensa sobre,como lida com os conceitos envolvidos e,
principalmente, que significados ela confere aofazer musical. A interação entre
a construção pessoal e os modelos tradicionais de estruturaçãomusicais
vigentes e/ou dominantes no meio social em questão, que ocorre seja qual for
ograu de complexidade da realização musical, fortalece os modelos tradicionais
ao mesmotempo em que provoca transformações. Em se tratando da produção
musical das crianças,parece se estabelecer um jogo dialogal entre o fazer que
emerge de suas estruturasinternas e os sistemas musicais que apreendem do
meio externo, acompanhados de todosos comportamentos relacionados à
expressão musical (como, por exemplo, o caráter deshow e espetáculo
fortemente veiculado pela mídia nas sociedades contemporâneas). Fazendo
música as crianças não apenas representam simbolicamente suaspercepções,
pensamentos, sentimentos.... como reproduzem, num “faz-de-conta”,
osmodelos que observam e assimilam.2 Com freqüência escutamos crianças
inventando canções, imitando gestos e toquesde instrumentos musicais (com
ou sem materiais à mão) ou explorando possibilidades ecriando livremente
quando em contato efetivo com instrumentos musicais. E estas atitudesnão são
restritas às crianças que têm aulas de música, já que atendem às
necessidades deexpressar e brincar que são próprias ao universo infantil. O
brincar musical da criança, sua forma de experienciar, de desenvolver recursos
ede construir conhecimento nessa área, encaminha as experiências para níveis
maiselaborados, num processo que se enriquece e assume maior significado
quando overdadeiro e efetivo fazer musical infantil está presente no espaço
escolar.Educação musical como território de produções musicais das crianças2
Haja visto o fascínio exercido pelo microfone, pelo palco, pela imitação dos
ídolos do rádio e TV.
 3. A música convive com sistemas de transmissão e renovação que, se apontam
para atradição oral ou para um saber intuitivo, também indicam a presença de
métodos de ensino-aprendizagem, quer com o objetivo de formar músicos,
quer como parte da formação geraldos indivíduos. Estes métodos, em sua
maioria, ainda se apóiam em concepções queparecem não compreender o fato
musical como sistema emergente e dinâmico, focandoquase que unicamente
sua característica de estabilidade e manutenção de características. A música
costuma ser entendida (e transmitida) como linguagem a priori, que “já
vempronta”, com estruturas e modelos que, a despeito de sua condição de
produtos culturais,são tratados quase como dados naturais Outrossim, tem
importância considerável o fatode que nossa educação musical ainda traz
marcas do modelo europeu que se instalou noséculo XIX e que dissociou a
formação de intérpretes e compositores, pela ênfase naformação dos virtuoses.
Convivemos com sistemas de ensino musical que pouco ou nenhum
espaçocostumam reservar às atividades de criação, considerando que a “aula
de música” é oespaço para a transmissão de conceitos, de repertórios
tradicionais e de realização deatividades seqüenciadas, com fins específicos.
Defendo e desenvolvo um projeto de educação musical que considera a
músicacomo sistema dinâmico de interações e relações entre sons e silêncios
no espaço-tempo e oprocesso de musicalização como processo de construção
de vínculos com essa linguagem.Para tanto, é preciso permitir que a
experiência musical no plano da educação seja territóriopara o jogo do
perceber, do intuir, do sentir, do refletir, do criar, do
transformar...entendendoque não existe dissociação entre corpo e mente. As
atividades de criação – que incluem jogos de improvisação,
composições,arranjos, formas de registro e grafia - fazem parte do cotidiano
musical dos alunos daescola, em cada fase, com base na tradição e também
na pesquisa de novas possibilidades,realizando-se em contextos de
intersecção com os conteúdos trabalhados e também com asdemais formas de
realização musical. Analisando as criações das crianças, constatamos que as
mesmas refletemcaracterísticas próprias às diferentes fases do
desenvolvimento (não só musical), revelandoníveis de percepção e
consciência, expressando seu modo de ser pelo jogo simbólico desons,
silêncios, palavras, formas... Se criam canções, suas letras falam de
brinquedos, datroca de dentes, dos conflitos com a família, do mundo do faz-
de-conta etc, trazendo para ocantar sua maneira de se relacionar consigo

 mesmas, com o outro, com a família, com asociedade, com valores,


símbolos etc. As criações instrumentais evidenciam o tratamentoque é
dado aos materiais sonoros e suas características, ao silêncio, aos
elementos dalinguagem musical em suas estruturações e formas. Intuição
e conhecimento específico,liberdade e domínio de regras, exploração,
invenção e imitação, convivem em criações queenfatizam um ou mais
aspectos, dependendo da vivência e da maturidade dos alunos, ouseja, de
sua experiência. Produzindo, as crianças exercitam sua relação com o
mundo e assim crescem,vivenciando um processo pedagógico-musical
significativo. O sentido e o prazer que o fazermusical confere aos que
experimentam, ousam, criam, e, principalmente, tem seusprodutos
musicais reconhecidos e valorizados em seu meio, seja ele qual for,
temimportância fundamental. Quando as crianças percebem que são
autoras de sua própriahistória, todo o percurso se transforma. Não restam
dúvidas acerca da necessidade e importância da produção musical
(dequalidade!) que os adultos ofertam às crianças; é certo, também, que
devemos garantir aelas o acesso à produção musical da cultura, em sua
diversidade e riqueza. Mas éfundamental reconhece, respeitar e valorizar o
fazer musical das crianças (superandopreconceitos e valores pré-
estabelecidos), um dos caminhos para a formação de sereshumanos
sensíveis, criativos e reflexivos. “O humano como objetivo da educação
musical”,como disse Koellreutter.Bibliografia:
 4. AKOSCHKY, Judith – La musica en el nivel inicial – Diseño curricular
para la educacióninicial. Buenos Aires: GCA-BA, Secretaria da Educação,
1996/2000.BEYER, Esther (Org.) – Idéias em educação musical. Porto
Alegre: Mediação, 1999.BLACKING, John – How musical is man? 2ed.
Washington: University of Washington Press,1974.BRITO, Teca Alencar de
– Koellreutter educador: o humano como objetivo da educaçãomusical.São
Paulo: Editora da Fundação Peirópolis, 2001.____________________
Música na educação infantil: propostas para a formação integralda criança.
São Paulo: Editora da Fundação Peirópolis, 2003.CAGE, John – De
segunda a um ano, São Paulo: Hucitec, 1985.DELALANDE, François – La
musique est un jeu d’enfants . Paris: Éditions Buchet/Chastel,1984.
DELEUZE, Gilles, GUATTARI, Félix – Mil platôs vol5, tradução de Peter Pál
Pelbart eJanice Caiafa, São Paulo: Editora 34, 1997FERRAZ, Silvio -
“Elementos para uma análise do dinamismo musical”, in Cadernos
deEstudo/ Análise Musical, n. 6/7, São Paulo, Atravez, 1994, p.
18.KOELLREUTTER, Hans-Joachim – Terminologia de uma nova estética
da música. PortoAlegre: Movimento,
1990.__________________________“Por uma nova teoria da música, por
um novo ensino dateoria musical”. In: Educação musical: Cadernos de
Estudo nº6, organização de CarlosKater, Belo Horizonte:
Atravez/EMU/FMG/FEA/FAPEMIG, 1997, pp.45-52.MOLINO, Jean – “Facto
musical e semiologia da música”, In: Semiologia da música ,Nattiez, J.J,
Eco, U., Ruwer, N., Lisboa: Vega, Universidade, s/dPIAGET, Jean – Para
onde vai a educação?, tradução de Ivete Braga- 15ed., Rio deJaneiro: José
Olympio, 2000.SLOBODA, John – The musical mind. Oxford: University
Press, Oxford, 1985.Teca Alencar de Brito é pianista e educadora musical.
Coordena, há 19 anos, as atividadesda TECA-Oficina de Música, em São
Paulo. Publicou Koellreutter educador: o humano comoobjetivo da
educação musical (Ed.Peirópolis, SP,2001) e Música na educação
infantil(Ed.Peirópolis, SP, 2003).
A MúSica E O Desenvolvimento Da Mente No IníCio Da Vid1 — Document
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 1. A Música e o Desenvolvimento da Mente no Início da Vida: investigação, fatos
e mitos Beatriz Ilari (UFPR) Resumo: O objetivo deste artigo é discutir os
efeitos de transferência cognitiva entre a música e outros contextos e áreas do
conhecimento. Especificamente, o artigo trata de quatro relações de causa e
efeito que envolvem a música (inteligência, matemática, linguagem e leitura) e
discute suas implicações para a educação musical brasileira e para o
desenvolvimento musical como um todo. O interesse pelo desenvolvimento
cognitivo-musical tem crescido substancialmente nos últimos tempos.
Descobertas recentes da neurociência, psicobiologia, psicologia do
desenvolvimento, educação e psicologia da música vêm fomentando um
interesse crescente acerca do desenvolvimento cognitivo-musical do ser
humano. Pesquisas recentes sugerem que John Locke (1632-1704) estava
mesmo equivocado quando sugeriu que o ser humano vem ao mundo com a
tabula rasa, e há inúmeras demonstrações empíricas das competências
cognitivas do recém-nascido (veja Eliot, 1999). Durante a infância, o cérebro
humano é mais maleável e os efeitos da aprendizagem são maiores que em
qualquer outra fase da vida (Flohr, Miller & Deebus, 2000). Isso também parece
ser o caso do desenvolvimento auditivo. Como exemplo, sabe-se hoje que é no
período entre o nascimento e o décimo aniversário que as distinções entre
alturas, timbres e intensidades se desenvolvem e se tornam mais refinadas
(Werner & Vandenbos, 1993). É também nesta época que as crianças
desenvolvem suas preferências e memórias musicais (veja Ilari & Polka, no
prelo; Trainor, 1996; Trehub & Schellenberg, 1995). O desenvolvimento
cognitivo-musical nesta época ocorre através de processos como impregnação
e imitação (Ilari & Majlis, 2002), e está normalmente associado a diversas
funções psico- sociais como a comunicação, inclusive de emoção, entre
crianças e adultos, o endosso de normas culturais e étnicas, e o entretenimento
(Gregory, 1998; Huron, 1999; Ilari, no prelo; Trainor, 1996; Trehub &
Schellenberg, 1995; Trevarthen, 2001). Como sugerem diversos estudiosos, as
práticas musicais das crianças e dos adultos são relevantes porque auxiliam no
desenvolvimento auditivo, motor, cognitivo e social, além de ajudar a fortalecer
as ligações afetivas nas famílias. Talvez esses fatores expliquem sua
ubiqüidade. Nos últimos anos, tenho me dedicado ao estudo dos mecanismos
e processos mentais envolvidos no desenvolvimento da mente musical
humana; sobretudo no que tange à percepção e produção musicais de bebês e
crianças. Minhas pesquisas procuram compreender como, por exemplo, a
criança faz a transição entre os sons que aprendeu ainda no útero materno
(exemplo sonoro 1), as experiências sonoro-imitativas desenvolvidas através
de jogos e brincadeiras e que denotam possíveis sobreposições entre a música
e a linguagem na infância, criando muita polêmica entre estudiosos da música
e da lingüística (exemplo sonoro 2), e, algum tempo mais tarde, suas
produções musicais, realizadas através do canto, do movimento corporal e/ou
da execução instrumental (exemplo sonoro 3). Não ignorando as diferenças
individuais, eu e meus colegas de área temos procurado compreender e
modelar os processos mentais envolvidos nas atividades musicais da infância
(para exemplos consulte Gardner, 1997; Hargreaves, 1985). No entanto, ao
realizar pesquisas nesta área, um dos problemas que tenho encontrado refere-
se à existência de diversos mitos, alguns dos quais estabelecidos há muito
tempo, e que vêm sendo disseminados pela mídia, e transmitidos (ou
retransmitidos) em conversas, informais e acadêmicas (para exemplos consulte
Schellenberg, 2004; Schoenstein, 2002; Almeida et al 2003). Estes mitos
afetam (e muito) as práticas musicais realizadas em conservatórios e escolas
de música de todo o país, bem como afastam muitos indivíduos daquilo que
chamo de motivações ‘reais’ para o ensino e para o aprendizado musical (veja
Ilari, 2003). A minha fala hoje trata das relações causais; dos efeitos da
aprendizagem musical em outras áreas do conhecimento - também conhecidos
como efeitos de transferência entre contextos e áreas do conhecimento (para
uma discussão consulte Schellenberg, 2004). Para a fala de hoje, escolhi
quatro relações de causa e efeito que envolvem a música. Primeira relação: O
aprendizado musical e o desenvolvimento da inteligência humana Nos últimos
anos, frases como ‘a música deixa o ser humano mais inteligente’ ou ‘ela
estuda música e por isso é muito boa de raciocínio’ podem ser ouvidas em
diversos ambientes – em conversas informais entre amigos, em círculos
familiares, na televisão e até mesmo em contextos educacionais. Geralmente,
quando estas frases são pronunciadas, há uma tendência natural em
associarmos o aprendizado musical a atributos ou rendimentos em outras
áreas do conhecimento. Um exemplo disso foi o chamado ‘Efeito Mozart’, que
causou (e ainda causa) muita polêmica.

 2. Há cerca de uma década, a disseminação prematura pela mídia dos resultados


de uma investigação científica preliminar deu origem ao famigerado ‘Efeito
Mozart’, nome atribuído a uma pequena melhoria em um sub-teste (habilidades
espaciais) do famoso teste Stanford Binet de inteligência ocorrida logo após a
audição de uma determinada obra musical de W.A. Mozart. Seus
pesquisadores (veja Rauscher, Shaw & Ky, 1993; 1995), compararam a
performance de ratos de laboratório e de estudantes universitários em
condições sonoras variadas, como no silêncio e na presença de peças de
Mozart e Phillip Glass, e concluíram que a audição da música de Mozart
causava um progresso temporário nas habilidades espaciais de seus
participantes. O ‘Efeito Mozart’, que hoje é marca registrada, deu origem a uma
verdadeira febre de consumo da música de Mozart e de programas ‘mágicos’
de educação musical, que prometiam desenvolver bebês mais inteligentes e
mais aptos a obterem um lugar em universidades famosas como a renomada
Universidade de Yale (Schoenstein, 2002). Outro caso interessante e também
relativo ao tal efeito foi a distribuição de CDs intitulados ‘Construa o cérebro de
seu bebê através da música de Mozart’ em todas as maternidades do estado
da Geórgia (EUA) no ano de 1998, a mando do então governador Zell Milner.
Segundo o político, a distribuição do CD supostamente ‘garantiria’ o
desenvolvimento da inteligência dos bebês e, portanto, de um estado com
indivíduos mais inteligentes que a média. Como não poderia deixar de ser, o
‘Efeito Mozart’ não causou polêmica apenas junto à população, mas gerou
grandes disputas nas grandes rodas científicas. Diversas experiências foram
realizadas com o intuito de replicar ou refutar os resultados encontrados pelo
time de Rauscher. Contudo, até o presente momento não foram encontradas
réplicas do efeito, que, além de tudo, era significativo porém muito pequeno
estatisticamente (veja Nantais & Schellenberg, 1999; Schellenberg, 2004).
Além disso, uma das principais contestações da comunidade científica referiu-
se ao equívoco dos defensores do efeito ao tomarem as habilidades espaciais
como se elas fossem sinônimos da inteligência humana. Sabe-se hoje em dia
que a inteligência humana é multifacetada e que as habilidades especiais
constituem apenas parte do conjunto de habilidades que constituem a
inteligência humana (Gardner, 1983). Outras experiências sobre os efeitos da
música no desenvolvimento da inteligência humana também foram realizadas.
Costa-Giomi (1999), por exemplo, estudou os efeitos de três anos de
aprendizado do piano ao desenvolvimento cognitivo de crianças canadenses.
As crianças participantes do experimento e que tinham entre 6 e 9 anos de
idade, receberam um piano em suas casas e tiveram aulas semanais gratuitas
por três anos consecutivos. A cada ano as crianças passavam por uma bateria
de testes de inteligência e tinham suas pontuações comparadas àquelas de um
grupo controle. As pontuações obtidas pelas crianças musicalizadas foram
melhores que as obtidos pelas crianças do grupo controle nos dois primeiros
anos, porém foram equivalentes entre os grupos, ao término do terceiro ano do
projeto. Resultados semelhantes foram encontrados por Schellenberg (2004),
que comparou o desempenho de crianças de 6 anos de idade que cursaram
uma entre três modalidades artísticas: (1) aulas de piano, (2) aulas de canto
coral através do Método Kodály e (3) aulas de teatro, com um grupo controle
em testes de Q.I.. Após um ano de instrução, as crianças musicalizadas
tiveram um desempenho melhor nos testes de Q.I., seguidas pelas crianças
oriundas do curso de teatro, e por último, as crianças do grupo controle. No
entanto, conforme ocorreu no estudo de Costa-Giomi (1999) e nos estudos do
‘Efeito Mozart’, embora os resultados tenham sido significativos, o efeito foi
estatisticamente pequeno, o que sugere um efeito mínimo. Comentando os
resultados de seu estudo, Schellenberg (2004) apontou para a necessidade de
realização de outros estudos uma vez que a possibilidade de haver uma
relação, ainda que pequena, entre a educação musical e o desenvolvimento da
inteligência, parece ser real. Entretanto, é importante notar que estudos com
relações causais sólidas e apresentando um grande efeito estatístico entre a
música e o desenvolvimento do intelecto humano não são encontrados na
literatura científica, possivelmente porque tais estudos são difíceis de serem
realizados já que são longitudinais e envolvem uma série de questões sociais,
econômicas, culturais e étnicas. É possível que estudos futuros revelem o
potencial da música no desenvolvimento da inteligência. Porém, até o presente
momento, é necessária muita cautela no assunto, já que, como ficou dito,
relações causais sólidas entre o aprendizado musical e a inteligência ainda não
foram encontradas. Segunda relação: O aprendizado musical e o raciocínio
lógico-matemático A discussão acerca da existência de uma relação causal
entre a música e a matemática é bastante antiga. A própria história da música
fornece uma possível explicação para tamanho interesse nesta relação. Na
Antigüidade, por exemplo, tanto a música quanto a matemática faziam parte
dos conhecimentos dos indivíduos ilustrados e respeitados socialmente por
suas capacidades intelectuais. Além disso, há muitas relações matemáticas
contidas na própria estrutura musical, o que torna bastante próxima a relação
entre as duas áreas. Cutietta (1996b) revisou a literatura sobre o assunto e
concluiu que há alguma relação estreita entre a música e a matemática.
Contudo, sua revisão de

 3. literatura não encontrou nenhuma relação causal entre a aprendizagem


musical e as habilidades matemáticas. Em outras palavras, Cutietta não
encontrou estudos que versassem sobre o aprendizado musical como
elemento de ‘melhoria’ ou aperfeiçoamento das habilidades matemáticas. O
que o pesquisador encontrou foram estudos em que os alunos que eram bons
em música eram também bons alunos de matemática, e de outras disciplinas.
Segundo a interpretação de Cutietta, é possível que não exista
necessariamente uma relação causal sólida entre a música e a matemática,
mas que os alunos matriculados em cursos e aulas de música sejam alunos
mais aplicados que a média, sendo, portanto, bons alunos também na
matemática. Considerando que os estudos revisados por Cutietta foram
conduzidos principalmente na América do Norte e na Europa, onde há
programas fortes de educação musical na escola, é preciso muita cautela na
interpretação dos resultados das pesquisas acima mencionadas, bem como de
seus métodos de investigação. Além disso, é importante considerar que,
embora a música e a matemática tenham uma relação estreita, é preciso muito
cuidado com as generalizações já que não há nenhuma garantia de que ao
aprender uma disciplina o aluno terá sucesso na outra. Terceira relação: O
aprendizado musical e o aprendizado da linguagem Diversos estudos da
neurociência sustentam o argumento de que a música e a linguagem são duas
formas de comunicação humana através de sons que possuem tanto
diferenças quanto semelhanças de processamento e de localização espacial no
cérebro (veja Marin & Perry, 1999). Do ponto de vista da psicologia do
desenvolvimento, há sugestões de que a música e a linguagem estão muito
próximas e são igualmente importantes na infância (Trainor, 1996; Trevarthen,
2001). A fala dirigida aos bebês, por exemplo, possui muitas características
musicais (Ilari, no prelo; Trainor, 1996), e alguns estudiosos chegaram a sugerir
que a melodia (e não o conteúdo semântico das palavras) é a mensagem
principal que os bebês captam (Fernald, 1989). Além disso, a criança pré-
verbal está atenta e responde igualmente aos contornos melódicos da fala e do
canto dirigido a ela (Trainor, 1996; Trehub, 2003). A música e a linguagem, que
freqüentemente se confundem no início da vida, tornam-se mais independentes
no decorrer do desenvolvimento infantil e praticamente se dissociam quando as
crianças aprendem a diferenciar o canto da fala. Entretanto, a música e a
linguagem compartilham algumas propriedades acústicas como altura, ritmo e
timbre, que podem ser traçadas no decorrer de toda a vida. Alguns estudos
investigaram as relações causais entre o aprendizado da música e o
aprendizado da linguagem. Cutietta (1996a) revisou a literatura e encontrou
uma relação estreita entre o aprendizado das duas formas de comunicação
humana por sons. Nos estudos revisados, os alunos musicalizados mostraram
um desempenho superior ao de seus colegas não-musicalizados em tarefas de
percepção e de articulação da fala. Um outro estudo (Thompson, Schellenberg
& Husain, 2003) sugeriu que os músicos possuem uma habilidade superior aos
não-músicos na percepção da prosódia na fala tanto em frases faladas como
em frases musicais análogas. Segundo os pesquisadores, tal habilidade se
estende à interpretação do conteúdo emocional, que é transmitido através da
prosódia contida tanto na fala quanto na música. Além disso, Cutietta (1996a)
sugere que há uma possível relação entre a aprendizagem musical e o
aprendizado de línguas estrangeiras. No entanto, apesar de a música e a
linguagem aparentarem ter relações muito próximas, todo cuidado é pouco no
estabelecimento de relações causais entre elas já que não há garantias de que
haverá, necessariamente, transferência cognitiva de uma área para a outra.
Quarta relação: O aprendizado musical e a leitura O interesse pelos efeitos da
música no desenvolvimento cognitivo nos últimos anos, trouxe à tona a questão
dos efeitos da educação musical em uma área fundamental: a alfabetização.
Embora existam poucos estudos, os resultados apresentados até o momento
são bastante sólidos. Um estudo recente conduzido por Anvari e colegas
(2002) sugeriu que a percepção musical tem uma relação estreita com o
desenvolvimento da leitura e com a consciência fonológica (isto é, a habilidade
que o ouvinte tem de segmentar a fala em unidades menores e ainda assim
reconhece-las independentemente de variações em altura, tempo, timbre e
contexto). Outros estudos revisados anteriormente por Cutietta (1995) sugerem
uma forte correlação entre a educação musical e o rendimento de leitura em
alunos com idade variável entre 5 e 19 anos. Em conjunto, estes estudos
sugerem que o aprendizado musical pode ser útil para o desenvolvimento da
leitura. Porém, é importante frisar novamente que, até o presente, não foram
encontradas relações causais entre os dois aprendizados. Os estudos
resenhados sugerem que as crianças musicalizadas podem aprender a ler
mais depressa, mas novos estudos ainda são necessários para determinarmos
se há, de fato, uma transferência cognitiva generalizada, de uma área de
conhecimento para a outra. Considerações Finais

 4. Apesar dos avanços científicos recentes, as investigações acerca dos efeitos


da música no desenvolvimento intelectual ainda estão em fase preliminar e há
poucos fatos comprovados e muitos mitos (veja Ilari, 2003). Como foi dito
anteriormente, é importante questionarmos as relações causais entre a música
e as outras áreas do conhecimento porque elas influenciam nossas motivações
e atitudes diante do desenvolvimento infantil, do ensino e da aprendizagem
musicais. É necessário indagarmos sobre os métodos de investigação, as
amostras e os contextos, avaliarmos os resultados, e também buscarmos
informações nas entrelinhas, nas possíveis omissões de dados (como ocorreu
no caso ‘Efeito Mozart’), que influenciam diretamente a validade e
aplicabilidade dos estudos. Além disso, como sugere Schellenberg (2004), é
importante que sejam consideradas as distinções entre os diversos tipos de
transferência (distante e próxima) no exame dos estudos sobre os efeitos de
transferência entre contextos e áreas de conhecimento. É também
imprescindível questionarmos até que ponto há importância em
estabelecermos relações causais entre a música e outras áreas. Estas relações
são interessantes e possuem algum valor se tomarmos um ponto de vista
exclusivamente científico-teórico. No entanto, isso raramente ocorre e diversos
problemas decorrem da aplicação das relações causais entre a música e outros
contextos ou áreas, e no caso específico da educação musical, impondo
razões educacionais, sociais, políticas e econômicas que freqüentemente
transcendem à própria razão de ensinarmos música. Sem falar que, muitas
vezes, a aplicação dos estudos de transferência entre a música e outras áreas
acaba estabelecendo relações completamente estapafúrdias. Como exemplo,
raramente ouvimos alguém dizer ‘ele estuda física para ser bom em culinária’
ou ‘ela faz teatro para aprender a nadar’. Como sugere Schoenstein (2002),
muitos estudos das relações de transferência cognitiva entre as áreas servem
razões muito mais econômicas que propriamente psicológicas ou educacionais.
Se por um lado os estudos sobre os prováveis benefícios extra-musicais da
música parecem fomentar argumentos promissores para a educação musical,
sobretudo em um país como o nosso que luta pela inserção da música como
disciplina obrigatória na educação básica, os mesmos estudos transformam a
música em um meio e não em um fim em si. A música tem valor próprio e há
muitas razões que justificam sua inserção na escola. Em primeiro lugar, a
música constitui uma importante forma de comunicação e expressão humana e
praticamente todos os povos do mundo possuem algum tipo de música (Ilari &
Majlis, 2002; Trehub & Schellenberg, 1995). Em segundo lugar, a música
carrega traços de história, cultura, e identidade social, que são transmitidos e
desenvolvidos através da educação musical. Em terceiro lugar, o fazer musical
da aula de música envolve diversas formas de aprendizagem contidas em
atividades como audição, canto, representação, reprodução, criação,
composição, improvisação, movimento, dança e execução instrumental entre
outras. Todas estas atividades auxiliam no desenvolvimento da inteligência
musical (veja Gardner, 1983). Além disso, no exercício dessas formas de
aprendizagem os alunos podem ter uma sensação de realização pessoal, de
bem estar e de prazer que resulte naquilo que Csikszentmihalyi (1990) chamou
de fluxo. È possível que as pesquisas futuras apresentem evidências que
apontem para enormes efeitos e benefícios da educação musical no
desenvolvimento cognitivo. Enquanto evidências sólidas e convincentes não
são apontadas, ao meu ver, os maiores efeitos da música são aqueles contidos
nas experiências que ocorrem diariamente em todas as partes do mundo,
quando crianças, de diversas etnias, culturas e classes sociais cantam,
dançam, criam e brincam com a música simplesmente porque é natural (e
muito divertido) fazê-lo. São as experiências musicais de qualidade, realizadas
dentro e fora da escola, que fomentam e garantem o desenvolvimento cognitivo
musical das crianças. Este artigo é dedicado a Francis Corpataux. Referências:
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