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R,,...Q.4J.69Jc( Data.. é..~_L:tL/.!2 ~
CAPíTULO I
V·,·- .__ Ex._~ f
Ali, naquele ambiente sombrio, onde as luzes ofus-
avam como lampiões querendo se apagar em noites de
raroa : ali, on de sufocava a fumaça de cigarros e o cheiro
FU-OOQ ,J~6<:;2_ 5
le álcool, o vozer ío viciado de homens e mulheres a dís ..
.utírem problemas íntimos, uma mulher de aspecto' aín-
Ia muito jovem, mantinha-se distante, fitando absorta
"!
rm copo de bebida prêso entre dedos finos que o
"
i: ~ontornavam como se quisessem estrangulá-Io.

o ar impregnado pelo odor da luxúria, parecia ter


)rovocadQ nela uma reação de morbidez pecaminosa. Os
,<. ábios estendidos, soltos, traduziam com mais sensualidade
• L expressão bestífícada da sua face .

li I
As pupilas amortecidas pareciam ter sido hípnotí-
•.. 1 :adas pela magnificência de um olhar. O desalinho dos
,1 :abelos traduziam a passagem de dedos cariciosos, práticos
-rn tecer desej os.

Um homem idoso, mal firmando-se nas pernas, en-


ontecido pela bebida que ingerira, ao passar perto dela
~e demorou um instante a fitá-Ia. Como se por lapso de
iegundos a lucidez lhe voltasse para que êle entendesse um
)OUCO do seu drama, sussurrou penalizado e curioso:
6 CASSANDRA RIOS E'UDEMONIA 7

Por que sofrerá? E' tão criança ainda! ... Alguém jamais esperado havia chegado.
Alguém respondeu num sussurro: Das cinzas de um inferno surgia uma mulher.
- Você não a reconhece? Ela é a dona do aparta- No rastro dos seus passos se marcava uma história.
mento. .. e é aquela que ...
O drama de uma vida tão cheia de mistérios, de uma
- Oh!. .. mulher com tão provocantes formas que tornaria uma len-
Aquêle murmúrio abafado de admiração se prolongou da o encanto com que ela fôsse descrita.
com os cochichos das vozes dos curiosos que se aglo- Satânica e altiva, como se trouxesse no olhar um
meravam.

Ela nem sequer se moveu. Já estava acostumada a


! poder místico de coisas hediondas e no porte tôda uma
atração que se excedia para excitar todos os que a pren-
dessem sôbre o olhar eubiçoso.
perseguição dos comentários que os indiscretos não se
fartavam de fazer, apontando-a como se ela fôsse algo de "

I
Somente aquela jovem continuou imóvel diante da-
sobrena tural. quela aparição. Porém, percebia-se no estremecimento
de seus cílios e no vacilar da bebida dentro do copo, que
Alguém, mais compreensivo, levou-os para um canto a outra provocara nela uma estranha e poderosa reação.
e se encarregou de mudar o assunto.
Eudemônia caminhou, imponente como uma estátua.
Sem saber a quem, ela agradeceu mentalmente. possuída de vida por um assôpro de magia.

Abriu-se uma porta. Seu olha.r .fixou-se direta e demoradamente, na jo-


vem que ainda se mantinha alheia. Um rubor que trans-
Expressões diversas se desenharam em cada face, en- pareceu como que provocado por incontida raiva, su-
quanto os olhos semicerravam-se desacostumados diante biu-lhe às faces, diante da exclamação geral que se des-
da claridade que invadiu a sala. prendia do momento silencioso de tensão:
f:
A porta fechou novamente e a obscuridade voltou,
continuando também os sussurros abafados. - Eudemônia!

Passos ecoaram no estreito corredor. A surprêsa, com tôdas suas interpretações, tonalí-
zava aquelas vozes.
Um vulto desenhou-se no saguão. 't Sem se voltar para responder e sem demonstrar se-
Novamente se fêz silêncio pela expectativa curiosa. quer um simples abalo diante da indignada acolhida da-
8 CASSANDRA RIOS EUDEMÔNIA 9

quela jovem, ela caminhou em sua direção, decidida, Eudemônía confirmou seu aspecto vingativo e ran-
sem alterar a expressão da fisionomia. coroso. Suas mãos estenderam-se, como garras afiladas,
e como se nada fôsse o corpo de Mila, ergueu-a pelos om-
Quando sentiu o perfume, que denunciava a presença bros, depois agarrou-a pela cintura e pelas pernas. Mila
de Eudemônia avançar cada vez mais forte pelas suas mordeu-a. Como se precisasse despender um tremendo es-
narinas adentro êomo se quisesse envenená-Ia, diante da- fôrço, empurrou-a, caindo para trás ao mesmo tempo que
quela aproximação que quase lhe dava a perceber o há- a outra. As duas atracaram-se numa desenfreada luta.
lito a bater-lhe no rosto, nem assim a jovem se moveu.
Parecia não querer abrir os olhos, como se temesse de- Ninguém se movia. Um silêncio temeroso pesava na
frontar-se com um fantasma. atmosfera viciada.

Eudemônia chamou-a baixinho. Mila continuou lutando, como um filhote de tigre


enraivecido. Eudemônía ergueu o braço, cerrou o punho
Só então, na tonalidade trêmula da voz, percebeu-se e desceu-e com fôrça contra o rosto aterrorizado de Mila.
que ela também estava nervosa. Tornou a repetir seu nome
com carinho vacilante e depois, diante do silêncio ator- Esta, contraíu a face ferida, enquanto que o sangue
jorrava de seu nariz. Abriu a bôca para falar alguma
doante da outra, quase gritou histericamente:
coisa e se estendeu imóvel sob os olhos de Eudemônia,
- Mila! que a fitavam arregalados e vítreos, como os de uma louca.

Alguém acercou-se como se temesse um ataque brutal Eudemônia sentiu nos braços a leveza do corpo dela,
que desfalecia.
de Eudemônia, que, inclinando-se, sacudiu-a pelos ombros
ao não obter resposta. Olhou para o rosto que pendia em seu colo e sorriu
sarcàsticamente, como se estivesse a vangloriar-se por
Míla descerrou as pálpebras vagarosamente e num ter-se vingado de alguma coisa.
gesto moroso afastou dela aquelas mãos, contraindo a
face como se tivesse sido assaltada por inexplicável mêdo : Ela olhou para os lados com aquela expressão esga-
sacudiu a saia que ainda não absorvera completamente zeada e sorriu diabõlicamente quando todos recuaram,
a bebida que Eudemônia havia derramado sôbre ela com atemorizados pelo seu olhar.
o seu gesto intempestivo, O olhar de uma louca, diriam de si para si.
A voz de Mila ecoou entre dentes: Sentiu uma repulsa de asco e de indignação, diante
- Suma-se! Você me provoca asco. da passividade daquela gente que a observava sem rea-
10 CASSANDRA RIOS E'UDEMôNIA 11

giro E pensou que poderia ter matado Míla, sem que nin- demônia concluiu dos cochichos e das expressões atemo-
guém a impedisse de fazê-Io. rizadas de Mila.
Uma lágrima permanecia suspensa nos cílíos de Mila, A sala ficou vazia. Mila continuou em pé perto da
que não se moveu, nem mesmo quando ela a depositou es- porta que acabara de fechar.
tendida num sofá.
o silêncio revelava um receio mútuo entre as duas,
Eudemônía limpou o sangue que escorria ainda, po- que agora se fitavam com uma expressão diferente, ín-
rém, em menos quantidade. Embebeu um lenço com o decifrável, como se acabassem de se conhecer e sofressem
resto da bebida que ficara no fundo do copo e passou-o
pelo rosto dela.
, a impressão de que já se haviam visto antes.
- Vem aqui. - Ordenou Eudemônia.

Mila abriu os olhos amortecidos e fitou-a ~ôda trê- Mila estendeu a mão para a maçanêta da porta, como
mula. se pretendesse abri-Ia para fugir.
t
I

Eudemônia ajoelhou-se ao seu lado e sussurrou uma ' Eudemônía, mais rápida, abrutamente puxou-a.
ordem: - Como você veio aqui? - Perguntou Mila, cujos
olhos faiscavam. Que aconteceu? O que quer de mim?
- Mande-os que se retirem.
- Você está realmente embriagada, meu bem? Será
Mila movimentou os lábios, como se quisesse protes- que se esqueceu de minha promessa?
tar. Leu nos olhos de Eudemônia a verdade que somente - Não me "lembro de nada. Você foi como um tu-
ela sabia. E compreendeu que ainda poderia confiar. fão que solapou tudo da minha vida. Por que vem ator-
mentar-me novamente?
- Você sabe que eu não sou louca, não lhe farei
nada.. mande-os embora. - Disse-lhe de novo enquanto - Por que você me pertence! Comprei-a como se
a fitava com aquela expressão dominadora. compram móveis usados em leilão . Porque precisa pa-
gar o que me fêz l Não, não tenha mêdo, não vou matá-
Mila sentou-se no sofá, passou as mãos pelos cabelos, Ia, vim apenas para dizer-lhe o quanto a desprezo ...
ergueu-se, caminhou até o meio da sala e executou a or- ah , .. por que disse que eu provoco asco? Por que _me
dem de Eudemônia. Um dos homens perguntou-lhe bai- recebeu daquele jeito? - Respondeu com a mesma frie-
xinho alguma coisa ao que ela respondeu que não, sa- za e indiferença que fazia duvidar dela, antigamente.
cudindo a cabeça, fazendo-o prometer que nada faria. Por Como se tê-Ia para si fôsse uma coisa tão natural, que
certo êle propusera chamar a polícia. Foi o que EQ' seria desnecessário explicações ou provas.
CASSANDRA RIOS E'UDEMONIA. 13
12

Não sabe que esfôrço precisei empregar para falar- _ Não. .. não fale sôbre isso, Eudemônia, não me
lhe naquele tom ... não compreende que era necessário faça sofrer mais ... não me obrigue a lembrar. . . eu que-
fingir perante tanta gente? Oh ... Você não muda nunca, ro esquecer. .. preciso esquecer ...
Eudemônia? _ Você não pode... nem eu ... 'tenho que falar,
Mila, e você vai ouvir ...
- É você que não se acostuma. - Ponderou cinica-
mente enquanto a levava pelo braço para o sofá. - Mas Eudemônia ergueu-a do chão e as duas sentaram-se
se observar com atenção notará, em mim, muita coisa no sofá.
diferente ...
_ Mila, às vêzes eu fico pensando que tudo isso acon-
- Sim. Vooê cortou os cabelos. .. e ... teceu para que algo se explicasse em minha vida. O que
eu sentia por você, não era amor. .. era alucinação. N a-
- Cortaram, interrompeu ela traduzindo na inflexão queles tempos sim, eu estava louca, todos os choques que
da voz que ela fôra vítima de uma interferência alheia sofri depois de meu último acesso de loucura, assim jus-
à sua vontade. - E. .. o que mais você notou? tifico o meu ciúme, com o medo de que você morresse,
com os tormentos de aturar advogados e... depois ...
- Ficou melhor assim ... justifica, positivamente, éom a morte de papai, que agonizou um mês enquanto eu
o seu caráter, o cabelo à "Ia garçonne". Outra coisa, você permaneci detida ... meu cérebro libertou-se das nuvens
agora é a milionária e não a filha do milionário "doutor que o aprisionavam e eu comecei a ver tudo claramen-
Forbes". te .. , Agora... que vejo o quanto sofri por estar louca
e não saber, agora que sei e tenho certeza de que es-
- Não mencione isso! Nunca, entendeu! Respeite- tou curada, tenho que passar por louca. Sou obrigada a
o. .. você não é digna de tocar no nome de meu pai ...
submeter-me aos tratamentos a que teria sido obrigada
É minha cúmplice em sua morte... Sim. Não arregale
antigamente e não hoje. Talvez seja uma pilhéria do
os olhos com tanta indignação. Papai morreu de um co-
destino fazer-me passar duas vêzes pelo que não sou.
lapso cardíaco, depois de um mês em estado de coma,
Normal quando estava louca e louca agora que estou
provocado pelo desgôsto que eu lhe dei. .. não fui assas-
sã. A minha loucura, Mila, era apenas ciúme ... ciúme
sina de você. .. você está viva, Mila... porque a morte
doentio que você cultivava com suas atitudes, proposi-
o levou em seu lugar ...
tadamente. .. Não... não me interrompa, sei que a fiz
Mila correu para ela e ajoelhou-se aos seus pés agar- sofrer também, porém, você foi longe demais. Sabia que
rando-lhe as mãos e beíj ando-as com um frenesi quase eu não agüentaria vê-Ia nos braços de um homem ... sa-
histérico ... bia qUI eu •..
14 CASSANDRA RIOS EUDEMÕNIA. 15

- Não, Eudemônia... eu não acreditava, eu não - Eu sofr! tanto ...


compreendia o que se passava com você, quando me Eudemônia voltou-se para ela e estendeu a mão sô-
pedia que não a provocasse, que seu instinto era ... bre seu peito. Seus dedos desabotoaram a blusa de Mila
- Perigoso... sim... eu sentia ímpetos de matá- que segurou-lhe a mão, num gesto para impedi-Ia de pros-
Ia. " foi num momento de alucinação que levei aquela seguir.
arma para casa... premeditei o crime, na noite em que _ Quero ver... quero apenas ver o ferimento ...
você me ameaçou que iria mudar: .. que iria somente per- cicatrizou bem? .. Explicou Eudemônia, que puxou com
tencer aos homens ... fôrça a blusa, fazendo saltar o resto dos botões. O for-
- Foi para irritá-Ia ... para vingar-me do seu flêrte mato dos seios túmidos enchiam o soutien. A pele .isa
com aquela mulher ... e rósea parecia nunca ter sido tocada. Mila estendeu os
braços para ela e puxou-a apertando-lhe a cabeça con-
- Depois. .. - Eudemônia, continuou como se ela tra o peito enquanto murmurava exasperada, vítima de
não a tivesse interrompido, - atormentada pelo ciúme e um súbito descontrôle passional:
pela dúvida, resolvi vingar-se de outra maneira. " e fui
- Eudemônia ... Eudemônia, querida... por que
falar com aquela mulher que na realidade nenhum ínte-
você veio aqui. .. por que? Vá-se embora.deixe-me ...
rêsse me despertara... Mas você... você foi longe de-
perdoe-me. .. perdoe o que lhe provoquei por amá-Ia
mais ...
tanto.
Os olhos de Eudemônia esgazearam-se e ela segurou
Eudemônia libertou-se dos seus braços e estendeu-a
as mãos de Mila com fôrça. Sorriu e assegurou-a: - Não
sôbre o sofá. Suas mãos ávidas arrancaram a blusa fora
tenha mêdo ... não lhe baterei por ciúme, como o fazia
e puxou-lhe a alça do soutien, arrebentando-a. Imobili-
em outros tempos, o passado não influencia mais ... Quan-
zou-se e seus olhos fixaram-se paralisados, naquela pe-
doeu pretendi matá-Ia e acreditei que você morrera, o
quena cicatriz. Houve um remoinho em sua mente e por
que eu havia feito na realidade fôra expulsar de dentro
um instante ela reviveu tão trágica noite.
de mim êsse monstro: O ciúme ... Nunca mais Mila ...
nunca mais sentirei ciúme de ninguém ... eu estou cura-
da ... livre dêsse demônio que vem morar dentro da gente
quando nos distraímos um pouco do nosso caráter e per-
sonalidade. ..
~
Elas ficaram em silêncio por um momento. Müa mur-
murou absorta:

~Atl~ ~,1l
,
CAPíTULO II

Premeditadamente, Eudemônia deixou o carro pa-


rado distante do palacete onde morava. Atravessou a
avenida e dirigiu-se apressada para a outra esquina. Cru-
zou o quarteirão quase correndo. Diminuiu os passos
quando se aproximou. Empurrou o grande portão de ferro
negro e atravessou o jardim, sem fazer ruído. A porta
estava aberta; bastou descer o trinco e empurrá-Ia. En-
trou na sala e olhou ao redor. Ficou gelada quando não
viu ninguém. Olhou para as escadas de mármore e er-
gueu a cabeça, acompanhando com um movimento- lente
a direção do olhar que perscrutava o corredor, ladeado
pelo corrimão. Parou o olhar. Parecia querer atravessar
a madeira daquela porta lá em cima. Ela ofegava e trans-
pirava, sentindo ondas de frio e de calor. O coração pare-
cia querer arrebentar. O suor corria-lhe pela testa, escor-
ria pela face. Tôda ela tremia e vacilava, sofrendo ton-
turas de desvario.
Um riso abafado veio de lá de cima, por trás daquela
porta.

Eudemônia apertou as mãos uma contra a outra. O


sangue fugiu-lhe do rosto, deixando-a branca, como o
mármore daquela escada.
18 CASSANDRA RIOS EUDEMÕNI.A. ~9
Num impulso incontrolável, ela atravessou a sala,
tempo ficara naquela posição, olhando para o corpo de
entrou na oiouoteca, correu para a escrrvanmna e anriu
Mila, sem mover-se, sem pensar em fugir, sem procurar
a gaveta onde guardara aquele pedaço ue rerro negro, na
socorrê-Ia. Completamente dominada por uma imobili-
UOIS meses atrás.
dade intensa e poderosa, que a impedia de pensar. Ela
Olhou a arma estendida sôbre o monte de papel e estava morta por dentro, insensível e vazia.
ficou imóvel como se tivesse sido atacada de uma doença
estranha que a impedia de fazer um só gesto. Ouviu quando o médico disse:

Novamente o mesmo riso ressoou pela casa, dessa _ O ferimento é grave, perto do coração, porém, ela
vez reforçado por um outro mais rouco. ainda está viva .••

O riso malicioso de um homem! ... Talvez que Eudemônia tivesse perdido os sentidos
quando a levaram, pois não se lembrava de nada.
Eudemônia correu escada acima. Empurrou a porta
e viu-os. Homens estranhos fizeram-lhe perguntas uma após
Dois vultos estendidos sôbre a cama. Aquela cama outra, porém não obtiveram respostas. Eudemônia per-
onde ela costumava dormir, com aquela mulher que ali manecia num mutismo insano. Seus olhos esgazeavam-se
estava, fitando-a recurvada sôbre o espaldar. Ao abrir como se não suportassem o pêso do sono. Apenas uma frase
a porta os dois vultos haviam se separado. se repetia, fugindo de seus lábios, era um gemido que
brotava do seu coração:
Mila apoiara-se no encôsto da cama e olhava para
- Mila ... eu a amava tanto ... amava ... Silva-
ela com os olhos em chispas. No escuro, Eudemônia viu
na. .. titio - Mila, eu a amava tanto ...
aquêle brilho diabólico.
Foi então que o médico surgiu para fazer seu diag-
Num tempo só ao grito de Mila, quando a viu levan-
nóstico e exigir perante o Juiz, que a levassem para o
tar o braço e apontar para ela, o revólver disparou. hospital de psicopatas.
Aquêle vulto de homem ergueu-se, agarrou a capa
Tratava-se de uma doente mental, não poderiam le-
jogada sôbre a banqueta e passou como um relâmpago, vá-Ia para a prisão.
empurrando-a contra a porta. Ao mesmo tempo que Mila
tombava desfaleci da para o chão. Assim foi no hospital, que teve a notícia de que Mila
não morrera e que o processo prosseguia com a probabi-
Pouco depois a polícia chegava sem que ela soubesse
se explicar quem a havia avisado. E como e por quanto
.
lidade de ser impronunciada , devido a seu estado psí-
qUICO.
20 CASSANDRA RIOS EUDEMóNIA 21

Eudemônia compreendeu, muito embora não o ti- escondiam ao.seu conhecimento, devido ao.seu estado, Eu-
vesse visto uma só vez, que seu pai agira por trás de dônía recebeu um tão terrível choque que realmente caiu
tudo, arrumando advogado e naturalmente também " de cama, passando. por difíceis momentos.
médico.
Um mês se passou desde então. e ela alimentava a
Sem que ela comparecesse ao tribunal a sentença se- idéia de que fôra a causadora da morte do único ser que
ria lida. Mesmo depois de ouvirem Mila, também, afir- considerara no mundo. Prêsa, naquele quarto, onde se su-
mar que ela era uma doente mental, provàvermente ins- jeitava a tomar injeções e receber as visitas do médico,
truida pelo advogado. ela acreditava que iria realmente acabar ficando louca.

Mila negara-se o tempo todo, a confessar o nome do Fôra algumas vêzes para o.jardim acompanhada por
homem que estava com ela naquela noite. E um mistério aquela enfermeira horrorosa, que não. a largava nunca.
se fêz em tôrno da única testemunha ocular daquele crime. Passou a evitar de ir para lá novamente, pois os passean-
I
tes impressionavam-na com seus aspectos lunáticos e pas-
Eudemônia, durante êsse período, sofreu ataques de sivos, como se tivessem deixado de ser humanos, para se
nervos que foram aplacados com anestésicos e perante tornarem autômatos, comandados pelos seus guias: _as
uma junta médica de psiquiatras respondeu às pergun- enfermeiras,
tas como o faria um autômato.
Tinha então ímpetos de gritar que não estava louca,
~ra ela, uma.Jésbíca.c Uma homossexual com-sél:iQ[ que não era necessária a electrodermia, que deveria es-
distúrbios mentais. tar ali, que não precisava tomar injeções, que não a obri-
gassem a contar aquela cena tantas e tantas vêzes, que
E diante de todos os diagnósticos apresentados, ela parassem com as perguntas que se repetiam após inter-
continuava sendo uma criminosa que deveria cumprir sua valos curtos em que ela ficava só, a remoer seus pensa-
sentença. mentos. E não fôra capaz de explicar o que se passara,
seus pensamentos perdiam-se numa lacuna sombria que
A atenuante permanecia em dúvida. Após tanto tempo se fizera em sua mente.
no hospital, viria agora outra prisão, mais humilhante
Queriam curá-Ia e traziam-lhe a doença do passado
ainda, pois que ela sabia perfeitamente não estar louca. para o. presente. Iriam contaminá-Ia, pois cada vez que
Estivera sim, alucinada pelo ciúme.
se via na contingência de falar sôbre Mila, minuciando
Quando.soube por intermédio de uma enfermeira, que cenas e explicando certas familiaridades das duas, revi via
casualmente manifestou-lhe o seu pesar pelo falecimento. a sensação que sellBra naquelesmomentos. E então. ela
do pai, pensando que já lhe houvessem dado a notícia, que duvidava se seria capaz de enfrentar a vida sem ela.
2~ CASSANDRA RIOS EUDEMÕNIA 23

Q.u~ri~ explicar-lhe que estava sã, que não era real- Eudemônia, uma mulher lutando contra o mundo
mente uma anormalidade gostar de mulher em vez de todo, deixando que discutissem sôbre sua vida e que a
h'õniem;.porém se lembraya de que iria para a p~isão onde julgassem louca, quando ela se sentia tão mentalmente
estavam alojadas tantas criminosas e estiemeci:a::aê- pa- perfeita, quanto qualquer criatura que vivia livre, escon-
vor e calava.' -- dendo seus pecados atrás de um sorriso disfarçado. Sim,
também louca, o tanto quanto qualquer outra criatura
Ele pertencia à Justiça. Não era mais dona de si.
apaixonada, sofrendo por ciúme. 4. diferença, sendo tão
Teria que ir para onde êles a levassem. Não adiantaria
grande, para ela não tinha muita importância. Amava
reclamar. Enfim, pensou, que o hospital poderia ser me-
a alguém que não devia, porque não reproduziria a es-
lhor do que a outra prisão e regozijou-se querendo ame-
Pécie a união das duas, s-omente por isso, pois o aspecto
nizar a revolta, pois que afinal de contas, não estava
de todos difere um de outro, porque também não amar o
em um hospício. Aquêleedifício enorme, onde ela esta-
homem e o próprio sexo, conforme a atração sofrida, ou
va tinha um letreiro bem grande no portão, que dizia:
melhor, conforme o instinto?
"Hospital Psicopatológíco Hilman"!

Ela proferiu seu nome baixinho - "Eudemônía" ... Eudemônia sorriu ao passar as mãos pelos cabelos.
Era agora um nome conhecido por milhares de criaturas. Curtos como estavam agora, deveria parecer realmente
Durante meses êle se repetira nos cabeçalhos dos jor- uma figura estranha. Já pensara uma vez em cortá-los
nais, contando sua história, deturpada por mil maneiras. assim, porém, desistira, acreditando que desgostaria o
pai que admirava tanto as suas madeixas louras e sedo-
Era ~_lésbi~a, filha de um milionário. sas que se debruçavam sôbre seus ombros como fios de
ouro. Os cabelos haviam sido sempre um problema em
Como isso se propagara ninguém sabia; o fato foi
sua vida. Desde criança, nos momentos de nervosismo,
que os repórteres haviam tentado invadir 01 hospital com
puxava-os furiosamente enchendo as mãos de punhados
intenções de fotografá-Ia. Ela, a mulher que tentara matar
dêles. Sua mãe advertia-a de que um dia acabaria fican-
a amante, porque a traíra com um homem. Um homem des-
do careca, porém hábito ou mania ela cresceu com essa
conhecido, cujo nome Mila não queria revelar.
particularidade que punha em função, nos momentos de
Relembrando-ss dessas passagens, Eudemônia con- contrariedade, preocupando quem a observasse.
siderou que realmente teria que viver escondida, ela era
o ser estranho querendo habitar entre tanta gente dife- Mila, ria-se dela. Achava divertida a estranha ma-
rente. Não havia lugar para ela no mundo dos que se neira de demonstrar sua revolta. E também um dia pro-
julgam sãos só porque conseguem esconder seus instintos metera que cortaria seus cabelos, quando ela estivesse
e refrear seus impulsos. dormindo, para evitar que algo de muito pior acontecesse.
EUDEMôNIA 2'5
CASSANDRA RIOS
24
que terrível que o levara ao túmulo. A tempestade chega-
Ou que ela acabasse por arrancar a cabeça juntamente
ra de súbito, depois de tantos anos de felizes primaveras.
quando os puxasse ou que acabasse careca ... Surgira como um tufão, nas sombras do ciúme, para des-
N o hospital prometeram-lhe uma vez que tomariam truir o mundo de uma vida.
essa providência se ela não conseguisse aprender a re- Monstro! O terror dos olhos verdes, de garras feitas
frear tal impulso. E, finalmente, um dia, tiveram que Ia- das labaredas do inferno - O ciúme. Não fôra isso, tudo
zê-lo. Cortaram-no bem rente das orelhas e até passa- teria continuado como uma lenda fantástica, pois nin-
ram-lhe a gilete na nuca para raspar a penugem que guém acreditaria que Eudemônia, aquela mulher conside-
sobrara. rada belíssima, a rainha dos saraus da sociedade. A mu-
N o primeiro dia estranhou a falta dos cabelos, sen- lher que paralisava olhares e imobilizava expressões de ad-
tindo um friozinho no pescoço, depois acostumou-se. En- miração, que provocava e excitava com o timbre miste-
fim, quando quisesse, bastaria abrir a gavêta da cômoda rioso de sua voz profunda e rouca. Aquela maviosidade
e tirar de lá a trança que a enfermeira fizera antes de enervante que ela bem sabia usar para conquistar, sem
os corrtarem. Consentiram que ela a guardasse, pois na nunca precisar realmente a intenção. Sim, porque suas
realidade seus desejos eram todos satisfeitos. Respeita- conquistas não se consumavam e ela desprezava seus ad-
vam-na mesmo sendo louca, porque ela era uma mu- míradores, como se êles não existissem. Agora deveriam
lher milionária, única herdeira de uma fabulosa fortuna saber de suas verdadeiras conquistas. Os únicos flêrtes
deixada por seu pai, dono exclusivo de uma vastíssima que haviam significado algo para ela. Os olhares ocultos
área, onde haviam descoberto petróleo. Com essa desco- e simulados que ela havia trocado com outras mulheres.
berta, sua fortuna já considerável tomara vulto incal-
Deveriam também começar a relembrar das festas
culável, multiplicando-se muitas vêzes. Um homem só, qua-
.em que só compareciam mulheres que ela escolhia com
se dono de uma cidade, que não pensava em casar, pois
cuidado. E então tirariam suas acertadas conclusões, des-
tinha uma filha a quem adorava; porém não deixava de
cobrindo o que deveriam ser as reuniões femininas na
ser um dos homens mais farristas e conquistadores, de
mansão dos Forbes.
quem se falava nas colunas sociais. Descoberta maior,
mais fenomenal, fôra a última. A única promessa da ge- Nunca até então, ninguém havia desconfiado da sua
ração dos Forbes se desmoronara diante daquela sen- particular preferência por Mila. Ninguém comentara por
vê-Ias sempre juntas. Ninguém reparara quando Mila
tença.
se mudara para a casa de Eudemônia. De súbito a reve-
E~_demônia Forbes, uma lésbica! lação que deveria ter 'surpreendido todos, principalmente
Não fôra por pouco que aquêle homem de aspecto Oscortejadores de Eudemônia :
alegre e franco consumira tôdas suas energias num eho-
26 CASSANDRA RIOS EUDEMóNIA 27

"Amantes". ta. A voz sumindo num gemido rouco, pelos lábios aden-
tro, como se viesse do coração aquela súplica:
Com qual dos seus admiradores Mila a teria traído?
- Mila... Mila... conta-me ...
Quem seria o homem daquela noite fatal?

Novamente um remoinho de perguntas e lembran- Os olhos fitos no seu rosto congestionado, como se
ças atordoantes, anuviou o cérebro de Eudemônia. a loucura a impossibilitasse de cometer o gesto que a en-
furecia.
Ela cerrou os dentes, seus olhos perceberam de novo
aquela cicatriz pequena, perto do seio de Mila, onde a Mila meio desfaleci da, esperando que ela tivesse C0-
bala a atingira. ragem, Coragem para que? Sentia os dedos dela convul-
sos, deslizando-mais e mais, apertando e se contraindo.
Eudemônia agarrou-a pelos braços e perguntou, co-
Viu-lhe os lábios úmidos, entreabertos, resfolegando, lou-
lérica, querendo saber:
cos suspiros. A respiração ofegante estufando-lhe o peito.
- Quem era aquêle homem que estava com você na- As faces vermelhas. Tôda ela tremia possuída de uma
quela noite? sensação perigosa que se revelava com mais ímpeto nas
suas pupilas negras. A penumbra e aquela expressão dia-
A expressão de Mila, que a observara todo o tempo em bólica de Eudemônía transbordou o ápice da sua resis-
que ela se perdera, relembrando o passado, desfêz-se em tência. Mila acercou-se mais, desesperada, como uma ne-
traços de pavor, como se aquela pergunta a tivesse sen- vrótica no momento de desabafo e como borbulhões de
tenciado para a morte. Estremeceu e sacudiu a cabeça cascatas as lágrimas rolaram de seus olhos, ensopando-lhe
negando. Não lhe saía som de voz. Seus olhos arrega- todo o rosto que reluziu amorenado e liso como uma lasca
laram-se e as lágrimas correram tumultuosas enquanto de porcelana chinesa.
ela se contorcia num ataque histérico.
- Mata-me Eudemônia ... Mata-me, por Deus ...
Eudemônia sacudiu-a exasperada, segurando-a pelos
ombros. No auge da alucinação as mãos afiladas e longas
deslizaram desenfreadas pelos ombros de Mila. Puxou-a
Aquela aproximação súbita foi como se uma labareda
pela cintura e no contato enfebrecido envolveu-a como
tivesse sido lançada, destruidoramente, pela cratera de
1Ie quisesse enterrá-Ia dentro do próprio corpo. O rosto
um vulcão adormecido.
desceu ávido à procura. Os lábios estenderam-se entrea-
Foi um caos de torturas que se ausentavam. Desli- bertos e a língua apontou por entre êles como uma seta.
zou as mãos frias pelas carnes nuas de seus ombros, con- Bôca contra bôca sugaram o beijo estertorante da sau-
tornou o pescoço. e retezadas, apertando-lhe a gargan- dade, do ódio, da dúvida e do desejo.
28 CASSANDRA RIOS EUDEMÓNIÁ 29
Um beijo misto de sentimentos que se desencontra- Eudemônia não podia conter por mais tempo o cru-
vam provocando um tremor de loucura. Não queria ter- ciante desespêro que lhe estraçalhava a alma. :::;entiu de-
minar nunca e naquele beijo e naquele abraço ficaram as sejos de gritar, grrtar loucamente até Cair exangue, sem
duas suspensas num desfalecimento total da razão. Como vida, para não sentir tanto. Aquela mulher perversa que-
se o único motivo do mal que as havia torturado fôsse a ria dominá-Ia sabendo da atração que exercia sôbre si, e
lembrança da sensação que lhes provocava o contato se- ela perdia as fôrças diante do desej o, desfalecendo de
dento de suas bôcas apaixonadas. horror e de loucura, prêsa daquele abraço tão dolorido.
A pressão dos braços continuou forte quando aque- --Você se esqueceu, Mila?
la bôca rubra foi afastando a pouco a pouco, como se fôs-
se difícil descolar-se uma da outra. - O que, meu bem '!

Um silêncio de cansaço botejou lágrimas entre elas. Não eram vozes que quebravam o silêncio, apenas
sussurros que despedaçavam corações.
_ Eudemônia, meu amor ...
O que me fêz?
A voz de Mila parecia outra, naquela maviosidade
angustiante, suplicando respostas de expressões, pro- . Não falemos nisso por Deus. Eu lhe explicarei.
curando vestígios de amor naqueles olhos nublados, que- Você terá que compreender. Mila era o próprio desfale-
rendo sentir o desejo estremecendo naquele corpo que cimento espargindo suspiros. Seu olhar lânguido, os
apertava, querendo ouvir daqueles lábios empolgados braços pendidos num abandono convidativo, entreabrin-
ainda pelo beijo, a confissão do sentimento que só a ela do os lábios provocadoramente, passando por êles a lín-
deveria pertencer . gua umedecendo-os com uma sensualidade estudada. Es-
tendeu o braço para uma mesinha perto do sofá e a luz
Eudemônia permanecia imóvel, fria, sem esboçar pa- fraca de um abajur tornou aquela penumbrá azulada.
lavra, como se aquêle beijo tivesse provocado o torpor de Num gesto suave e delicado, ela passou a mão pelo rosto
um anestésico. de Eudemônía, roçou os dedos pelos seus lábios que se
Estava em seus braços num langor de estarrecimeri- cerravam numa decisão fria, e depois deixou-a cair es-
to, buscando talvez refrear os ímpetos que haviam lhe palmada sôbre o peito.
destruído a vida. ,:/!:ssemovimento levou o olhar de Eudemônia, que se
Mila beijou-lhe o rosto todo, procurou sussurrar aos fixou naqueles seios que pareciam querer saltar fora do
seus ouvidos as palavras de amor que nunca dantes pro- soutien.
ferira. - Vem ... Vem ... Eudemônia ... eu quero você ...
30 CASSANDRA RIOS EUDEMóNIA 31

- Não. Não pOSSo! Não quero. migo ninguém para levá-Ia à fôrça. Espero que me aten-
Nunca, Eudemônia se debruçara assim em prantos e
da e volte comigo. ,I
tão horrorizada diante da expressão de desejo estampa-
da no rosto de Mila. Um prazer cheio de dor, uma tris-
teza cheia de vingança, escorreu pela sua alma, como lá-
grimas de orvalho escorrendo na vidraça pela madru-
gada.
Mila que se levantara e já se recompusera ali mesmo
sob os olhares indiferentes dos dois, só então, preocupada
com a presença de Eudemônia que deveria àquelas horas
estar no hospital, provavelmente muito bem vigiada. Só
então, liberta da primeira sensação por tê-Ia visto nova-
I
mente é que ela pensou nisso e indagou aflita:
Mila ofereceu-se mais, aproximando-se com movi-
mentos provocadores, - Como foi que você fugiu Eudemônía ? Como con-
seguiu localizar-me?
Não podia se deixar vencer. Eudemônia empurrou-a.
Mila retevê-a com os lábios muito perto dos seus, passan- Eudemonia caminhou altiva em direção do médico e
do os braços ao redor de seu pescoço, disse:
- Vem Eudemônia ... dá-me a sua bôca ... bei- - Dr. Jasper, o senhor sabe perfeitamente que eu
ja-me ... não estou louca. Pode mandar-me para a prisão. É lá
Ela agarrou-a pela cintura com uma fôrça estranha, que éu devo estar. Sou uma criminosa, não sou? Além de
que não combinava com seu tipo. As mãos percorreram tudo vim aqui para certificar-me que Mila estava viva ...
o corpo dela desenfreadamente, como a procura da chave mas. .. o que provei diretor, foi um gôsto horrível de
que faria estremecer O' desejo. coisa morta ... parece-me que beijei o cadáver da mulher
que eu quis matar ...
Foi nessa atitude que as surpreenderam. Elas não
haviam percebido quando a porta se abrira e aquêle ho- Olhou para Míla com aquêle olhar de poder que so-
mem de avental branco entrara, acompanhado por uma mente ela sabia expressar. Um olhar que revelava des-
jovem, também de avental branco, prêzo e indiferença. Míla percebeu o estremecimento dela
ese acercou querendo comovê-Ia:
l:le tossira parachamar-lhes a atenção.
- Eudemônia. .. não me olhe assim, por favor ...
Eudemônia voltou-se paralisada de pavor diante da-
quele flagrante e ficou a olhâ-los à espera de que alguém - Vamos, Dr. Jasper, Tenho que cumprir um ano
disesse alguma coisa. de prisão por ter atentado contra a vida desta mulher que
_ Senhorita Eudemônia, não sei como conseguiu es- considero morta. Pode levar-me para a outra prisão. Falta
apenas a sua palavra.
eapar, não chamei a polícia e também não trouxe co-
32 ~UDEMÔNIA 33
CASSANDRA }tIOS
Não. precisa explicar-me o. que tenho, às vêzes,
A senhorita está enganada. Vai voltar para o hos-
pital. Executado o mandado do Tribunal de Justiça e a or- doutor. Eu sei perfeitamente o. que tenho. sempre. Suas
taorías não. valem para nada assim como também de nada
demconsiste em que a senhorita esteja em constante ob-
servação. médica. serviram as teorias e os estudos de tantos outros aman-
tes da psicología . V2cês ~iveram cobaias em observação?
- O senhor sabe que não. So.U lo.uca... ah!... se Digo, criaturas assim como eu? Onde estão. elas? ftpren-
tem mêdo que eu vá perverter as presidiárias pode ficar
~- -
deram a amar ao. ho.mem e a desprezar a fragilidade, a
tranqüilo. ... são elas que me conquistarão. ... - Eudemô- meiguice e um belo. corpo. de mulher L_
nia soltou aquela gargalhada sarcástica que Mila sempre - -- -
_ Senhorita Eudemônia, todos aquêles que quis e-
gostara de ouvir. Uma gargalhada que desafiava todo
iberlar-se do instint;" pervertido, for!lEl ~e~ suce-
mundo. e que a fazia realmente uma mulher superior.
didos em nossas clínicas. Tornaram-se criaturas normais
~
Dr. Jasper se manteve na mesma atitude calma, en- ~ muitos desde hoje têm seu lar e até filhos. Entre tan-
quanto. a levava pelo. braço. Corno um cavalheiro. prof'e- tos a senhorita é apenas um número. que se destacou por-
riu amistosamente: que tem as cifras na frente, por ser uma das mulheres
- Não. seja sarcástica, sei que você compreende per- mais belas da nossa cidade, e finalmente pelo. desfecho
feitamente a sua situação. Você é uma mulher culta e que teve a sua desenfreada paixão por aquela mulher.
inteligente. Isso. tudo. despertou a atenção, mas na realidade não.
existe diferença nenhuma entre a senhorita e uma outra
Eudemônía soltou-se do. braço. dêle e parou à sua lésbica qualquer. Os nossos clientes são. tratados de acôr-
frente dando. outra vez aquela gargalhada de deboche. E do. com a educação. que tiveram, porém todos com as mes-
proferiu exagerando. muita indignação. mas atenções. Meu dever, como. médico, perante uma
criatura na sua situação é o de tê-Ia em observação,
- Mas, Dr., como pode o senhor cometer tamanho.
cumpro. com o que a lei exige e com o. que seu pai
deslize?! Uma louca compreensiva, culta e inteligente"!
me pediu, antes de agravar-se o seu estado. Êl.e-IDorreu
Corno pode dizer semelhante absurdo?
!!lfeliz_illlx .pensar .Jlue a geração. dos Forbes iria ter-
A enfermeira também se riu, porém, logo ficou séria, minar em suas mãos. A última, de uma família tradí-
quando. êle a olhou rancoroso, cíonal , . . ----

- Vo.cê tem às vêzes ... - Que se extinguiu pelo egoísmo. - Interrom-


peu ela fitando-o revoltada. Pouco importa que seja
.:f':leia explicar-lhe a respeito de seu mal, ela o. im-
assim. Nem todos têm o. poder de saber que serão. o.
pediu de falar caminhando. à sua frente, desconcertando-o
último. de uma família que se foi reduzindo. de doze a
com o. seu sarcasmo:
S4 CASSANDRA RIOS
EUDEMôNIA 35
meia-dúzia e de meia-duzia a apenas uma. Sabe por
que? Para que a fortuna dos Forbes não caísse em mãos jarei para longe, onde ninguém me conheça. Mudarei de
estranhas, casaram-se primos com primas, tios com so- nome ... por favor, doutor Jasper ...
brinhas e finalmente... meu pai com minha mãe, pri-
mos também. Durante tôda minha vida me diverti indo Já então a voz de Eudemônía perdera todo sarcasmo
ao funeral dos meus limitados parentes. Cresci na expec- suplicava como uma criança, pela liberdade. Os olhos
tativa de que um dia ficaria só. E eis o final;....Sou uma marejaram-se de lágrimas e ela avançou para êle to-
lésbica com uma fo,rtunaque não poderei aproveitar mando-lhe as mãos entre as suas. Os olhos o fitaram ín-
nunca, poi~ qu~ "vejo "jamáis sairei daquel~- hospí- quiridores e suplicantes. Mila que os observava em si-
fal. " O senhor naõ compreende que eu jamais serei uma lêncio, sem-ânimo para falar, também acercou-se, espe-
rando a resPQsta.
inüÍher para o homem? Que eu não quero libertar-me
do meu instinto, que não quero pensar nisso, pois teria
Também a enfermeira parecia ansiosa pela decisão
que reconstruir tôda minha vida, esquecer passagens
do Dr. Jasper que se mantinha calado, de cabeça incli-
emotivas que poderiam influenciar-me sobremaneira, po-
nada, olhando para o chão.
rém nunca capazes de convencer-me de que não sou nor-

I
mal e que sim haveriam de provocar confusões em meu
- Eudemônia. .. preciso de tempo. Prometi a seu
cérebro durante anos e mais anos ...
pai. que você não iria para a prisão. Você não pode ir
para lá de jeito nenhum, prometi tamIlém qlle--.furia..-de
Tenho vinte e oito anos, doutor Jasper. Se pretende
"YQQ.ê~uma ,!llUlher igJl8"làs outras ... - compreenda, Eude-
realmente sugestionar-me, ou persuadir-me, asseguro-o
mônia que eu somente quero-ã:;udá-Ia? Não pense que
de que não o conseguirá, se pretende hipnotizar-me fa-
tudo terminou, o advogado vai fazer petição ao Juiz do
zendo-me crer que sou uma mulher influenciada pelas con-
Supremo Tribunal. Talvez revoguem a pena. Até Mila
venções sociais relativas ao sexo, tenha certeza que não o
contribuirá para isso, tenho certeza. " e então .. , quan-
conseguirá e que a terapêutica electrotérmica e a psica-
do não há salvação para o doente, quando não há mais
nalítica redundarão em uma tragédia. Se espera que eu
nada fazer, temos que cruzar as mãos, rezar e esperar
mude por vontade própria, morrerei naquele quarto de
que aconteça um milagre. " compreende o que eu quero
onde fugi hoje, velha e sem ter vivido, esta vida que po- dizer?
deria ser a mais bela das quimeras. Vamos doutor, não i
se preocupe mais comigo. O senhor leva para o hospital
Um suspiro profundo empolgou o peito de Eudemô-
um corpo sem-alma. Está em suas mãos a minha sen-
nia, percebera naquelas palavras :a promessa de liber-
tença. Assine o diagnóstico e eu irei para o presídio, po-
dade. Ela olhou para Milae sorriu satisfeita. Despediu-
rém, dentro de um ano estarei completamente livre. Via-
se sem-rancor, confiante no que o Dr. J asper lhe pro-
metia.
36 CASSANDRA RIOS

Ao entrar no elevador, voltou-se para Míla, e avisou-


a. Lembre-se desta promessa. .. Voltarei para descobrir
quem era aquêle homem ...
Milacorreu e gritou para que ela a ouvisse:
CAPíTULO III
_ Não me esqueça, Eudemônia... não deixe que
êles a façam esquecer-me. .. eu a amo. .. E a revelação
saiu dos lábios trêmulos de Mila : Aquêle homem era ... Eudemônia explicara como conseguira sair do hos-
era Vitor... Petran ... ,1. pital sem ser vis-ta.
Um soluço ressoou pelo corredor enchendo os ouvi-
Soube naquela tarde que logo mais à noite haveria
dos 'de Eudemônia que ergeu as mãos para tapá-elos, não
uma reunião geral de médicos e enfermeiras-assistentes,
querendo ouvir Mila chorando tão-desesperadamente, re-
~ para festejarem a chegada da diretora e prestando-lhe
voltada com aquela revelação que ela bem sabia ser uma
homenagem por ter sido ela consagrada a mais compe-
terrível e proposital mentira. tente e uma das primeiras entre os psiquiatras formados.

Teve então a idéia de sair para ir ver Mila. Não pre-


cisou vencer obstáculo algum para executar o plano. Per-
maneceu como sempre. Silenciosa e calma. Fingiu inger ir'
o soporífero que a enfermeira lhe deu e assim que ela se
retirou do quarto, vestiu-se novamente e parando aqui e
ali atravessou o corredor, saiu calmamente para o jar-
dim, atravessou o pátio como se estivesse passeando e

j foi distanciando-se até alcançar o portão. Como se fôsse


uma visitante saiu e ainda ousou cumprimentar o por-
teiro que a perscrutou tôda gananciosamente.
Eudemôruia depois de alguns telefonemas, conse-
guiu localizar Mila que se havia mudado para um aparta-
mento situado no centro da cidade. Nenhum dos que a
atenderam ao telefone poderiam imaginar que fôsse ela,
as CASSANDRA RIOS EUDEMôNIA 89

pois além de mudar de nome, fingiu sotaque de uma Ela revoltou-se enquanto esperava que êle voltasse
certa francesa de quem foram amigas, e que há muito acompanhado da psiquiatra, que deveria ser velha e feia
viajara para o exterior. como uma bruxa dos contos da carochinha. Mais uma
humilhação que sofreria, considerada também uma dé-
Uma das amigas chegou a contar-lhe o caso inteirí- bil mental pelas mulheres, embora esta provàvelmente
nho e ela teve que fingir admiração e curiosidade. Aturar fôsse velha e não lhe importasse sua opinião. Um dia
todos os deslavados comentários que ouviu a outra falar aquilo tudo teria que acabar. Nada cconseguindo êles ha-
a seu respeito, antes de conseguir o enderêço de Mila. veriam de deixar de pesquisá-la.
Não era saudade, nem vingança que a incitara a fu- Para demonstrar seu desprêzo, foi para a janela e re-
gir para ir à sua procura. Não sabia realmente a razão solveu que ficaria de costas, mesmo depois que ela en-
daquele ato . Fôra instigada por uma fôrça superior. trasse e a cumprimentasse. Nem haveria de lhe respon-
Nem mesmo quando abriu a porta do apartamento que der. Eudemônia se intrigou. Já recebera a visita de tan-
por intuição, ao girar a maçanêta, percebeu não estar tos médicos, por que haveria de se importar com a curio-
trancada à chave. Conseguiu explicar-se porque razão sidade da doutôra! O fato foi que durante aquêle mo-
fôra até lá e agia assim como se pretendesse cometer um mento de espera um nervosismo estranho dominou-a, fa-
novo crime. zendo-a tremer.
A porta se abriu lentamente e os passos esperados
• ressoaram atrás dela. O Dr. Jasper chamou-a pelo nome.
Como não obtivesse resposta avisou:
o Dr. Jasper continuava ainda submetendo-a aos
seus testes psicanalíticos, falando-lhe sempre como se ti- - Eudemônia... apresento-lhe a doutôra Méltsia.
vesse certeza de que haveria de vencer, como se conside- Ela continuou em silêncio sem se mover.
rasse que a sua alma fôsse de argila mole e se pudesse
moldá-Ia novamente. - Não tem importância, Eudemônia... pode ficar
de costas. .. falarei com você de qualquer maneira, como
Uma tarde, o Dr. Jasper informou-a de que a dou- você quiser ...
tôra Méltsia iria conhecê-Ia. Estava interessada no seu
caso e gostaria de submetê-Ia a alguns dos seus testes. Aquela voz... não... não poderia ser de uma ve-
lha. " Era pausada e experiente, porém cálida e macia
Eudemônia quis esquivar-se, porém, a informação como uma nota musical.
dó Dr.Jasper não passara de uma mera formalidade à
Eudemônia continuou tremendo, Estava nervosa.
qual ela teria que atender de qualquer maneira.
Queria voltar-se porém não tinha coragem. Não conse-
40 CASSANDRA RIOS E'UDEMONIA 41

guia mover-se. Apenas prestava atenção naquela voz pro- Seria, como diziam, uma louca?
fundamente estranha que trocava algumas palavras com Quis estudar-se. Começou por enumerar os atos e
o dr. Jasper. os sentimentos que poderia julgar fora do normal.
- Por que você não me avisou que ela não queria Primeiramente, proferiu baixinho de si para si,
conhecer-me? Não a teria vindo aborrecer ... era uma homossexual, exageradamente emotíva. Muito
- Eudemônia a receberá, tenho certeza, doutôra. embora não se apaixonasse com facilidade, era sempre
exaltada em qualquer conquista Segundo, os ímpetos
Méltsia ...
mórbidos que a impeliram a praticar um crime. Depois,
- Não... não a chame. Deixe-a. Voltaremos outra o alívio que sentira, ao perder o interêsse tão-inespera-
vez ... quando ela quiser. damente pela mulher que fôra a causa única de sua des-
Por um segundo Eudemônía pensou que fôsse so- graça.
frer um espasmo, tal a excitação que lhe provocou aquêle Sõmente, então, querendo analisar tudo, se deu con-
timbre de voz. Então acreditou que estivesse realmente ta das poucas vêzes que Mila surgira em seus pensa-
louca. Como poderia justificar tal sensação que a arre- mentos .. Não como outrora, excitando-a. Fazendo-a so-
piou dos pés à cabeça, fazendo-a estremecer quase que frer, mas sim como alguém a quem ela desejava rever
num êxtase divino. Ouviu a porta bater e voltou-se rá- para recordar seus traços e verificar se provaria nova-
pida como se pretendesse ver a dona daquela voz, porém mente aquela sensação de êxtase que os seus belos olhos
já era tarde, êles já haviam se retirado'. Correu para a provocavam. Para arrancar dela a verdade esperada, sô-
porta. Abriu-a. Fechou-a novamente num gesto rápido, bre aquela noite.
apertando a maçanêta e amparando-se na porta, comple- Finalmente, Eudemônia, semicerrou os olhos e pa-
tamente transtornada. receu sentir de novo o arrepio que a percorrera, pela po-
Que se impressionasse com o timbre daquela voz, derosa fôrça da ressonânría da voz daquela mulher que
não seria nada de sobrenatural, porém excitar-se àquele ela não vira ainda.
extremo, era realmente inconcebível. Apenas uma voz invadindo-a, até o coração. De
Ela deu alguns passos e foi sentar-se aos pés da quem? De uma médica, que deveria ser horrorosa e de-
cama. sajeitada, possuindo apenas como dom a inteligência e
um timbre de voz estranho e provocante.
Não podia se conformar com aquela SUpOSIÇao
que fortalecia a dúvida horrível da qual vinha fugindo Não! Definitivamente, não estava louca. Estava sim
há meses. enfraqueci da pelos aborrecimentos por que passara. Que-
rendo apegar-se às coisas mais absurdas, como para li-
42 CASSANDRA RIOS EU-DEMONIA 4:1

vrar-se daquela solidão. Daquele pavor ao qual ela se meira que, por certo, passara por ali. Mas, gritara real-
negava reconhecer: ao de ser uma prisioneira. Teria que mente todos aquêles pensamentos de revolta.
sofrer evidentemente o efeito de tantos choques. Senão
A enfermeira acercou-se mais e estendeu a mão, to-
como explicar a sua capacidade para analisar tudo.
cando o braço; ia dizer algo quando Eudemônia explodiu
Haveria de exigir de seu advogado que agisse imedia- sua raiva, neurastênicamente:
tamente, mesmo que tivesse que dispor de tôda sua for-
tuna para livrá-Ia daquela situação. Não era justo! Ou- - Deixa-me! Tira essas mãos de cima de mim!
tras como ela estavam sôltas e eram consideradas nor- Loucos são vocês, por não reconhecerem o são do doen-
mais, somente porque não desconfiavam do instinto te. Onde foram diplomados? Na academia dos burros?
oculto pela face da hipocrisia. Mesmo Mila, com quem Aviso-os, diga- a todos que se não sair daqui por bem,
a tinham surpreendido, não era considerada assim, ape- comprarei êste hospital e farei dêle um zoológico ...
nas ela era julgada anormal. Entretanto... Eudemô-
A enfermeira recuou um passo, olhou-a altiva e sé-
nia ergueu-se, como se pretendesse gritar sua revolta. ria, afastou-se mais, pretendendo sair por onde en-
Atravessou a pequena distância até a sala do seu apar-
trara. Eudemônia acercou-se dela e sorriu fustiga da pela
tamento e olhou-se no espelho dos pés à cabeça. Não
idéia súbita que lhe veio à cabeça. Reparou então que
era sem motivo que os homens não a deixavam em paz
aquela jovem não era nada desprezível, muito ao contrá-
e as mulheres com facilidade se deixavam levar pela sua rio, tinha um rosto bem feito, a pele lisa e corada, os
infalível tática como se ela pudesse realmente ser uma olhos mesmo arregalados silenciando uma expectativa
lésbica, tendo uma silhueta de ninfa e um rosto de Vênus
medrosa, eram de um azul mesclado que se confundia
egípcia.
entre o veràe e o cinza. Os lábios sem batom eram verme-
-Idiotas. .. Imbecis... Loucos são vocês... igno- lhos e o corpo. " Como poderia saber se ela o escondia
rantes. .. médicos de meia-tijela... psiquiatras de co- debaixo daquele avental sôlto e sem cinto? Foi rápido
queiros. seu gesto. Nem imaginou que ela pudesse gritar e agra-
A porta abriu-se e ela surpreendeu-se com a expressão
.,
,
var sua situação. Puxou-a para perto enquanto dizia:
da enfermeira, que tentou acalmá-Ia, acenando com as - Não tenha mêdo , .. não vou lhe fazer nada. Você
mãos. Antes que ela falasse, Eudemônia acercou-se im- bem sabe que pelo fato de me consideram uma lésbica,
pedindo-a de falar: nem por isso sou uma louca. .. não grite. .. quero ape-
nas ver o seu corpo ...
- Cale-se.
Eudemônia não podia crer que se descontrolara e Enquanto falava, a voz enrouqueci da, os olhos ma-
tivesse gritado, ao ponto de chamar a atenção da enfer- liciosamente semícerrados, os lábios estendendo-se las-
44 CASSANDRA RIOS
EUDEMÔNIA 45
civos, Eudemônia, com precisão nos gestos, ia desabo- viou a cabeça e tentou livrar-se de seus braços. Eudemô-
toando um a um os botões do uniforme enquanto a en- nia, porém, parecia resolvida a não soltá-Ia e disposta
fermeira sem que ela compreendesse por que razão se a continuar lutando para conseguir o beijo. Enquanto
mantinha calada e passiva, sem evitar suas atitudes. lutavam, Eudemônia, dizia enfurecida pela revolta :
Teria ficado paralisada de pavor? Eudemônia olhou-a
nos olhos e percebeu que ela recobrara a calma e que - Por que se deixou abraçar? .. Não pensou que
pensava alguma coisa não de todo desfavorável, pois eu tivesse coragem? Que eu sentisse o seu desprezo e
continuava muda e quieta. recuasse? Verá que por um beijo e por um abraço você
Sob o avental, surgiu uma saia preta de gabardina e
a combinação de "lingérie" branca. A seminudez da
• também poderá ser considerada como eu. .. porque sen-
tirá a sensação. .. eu sei. . . verá que é a mesma coisa ...
moça provocou nela uma reação mais audaciosa e ela tenho certeza- disso, embora nunca tenha provado o que
comentou enquanto fitava seus seios que apontavam bas- é um homem. .. ora!... mas para que falar disso? ..
tante revela dores por sob a leve fazenda: Vamos ... não recue ... não evite ... não ... me em-
purre assim... não vou mordê-Ia... diga alguma coi-
- Aqui está uma paisagem que jamais poderei es- sa ... fale... quero ouvir sua voz. .. se faz jus à beleza
quecer dela. Seios maravilhosos. que você desperdiça pelos corredores dêste hospital. ..
Eudemônia perscrutou-lhe o corpo e sorriu satis-
feita. Fitou os olhos de muito perto e compreendeu que Parecia entretanto que aquela mulher não queria
aquela imobilidade era um desafio. Aquela mulher agia dar-lhe êsse prazer. Limüava-sa a fitá-Ia com aquela ex-
como se conhecesse suficientemente o seu caráter para pressão enigmática que não demonstrava nem raiva nem
impedí-la de prosseguir. Acreditava por certo que ela mêdo. " talvez... talvez fôsse piedade aquela sombra
haveria de recuar diante da sua passividade tão cheia que tornava confusa a côr dos olhos dela. .. Tal pensa-
mento fêz com que Eudemônia afrouxasse os braços que
de segurança.
quase a estrangulavam. Soltou-a, empurrando-a e voci-
Eudemônia sentia entre os braços o seu corpo, sem ferou num descontrôle histérico:
mover um músculo. Sentiu também um calor e um es-
tremecimento. Uma fúria diabólica tomou conta dela e - Não admito! Não admito sua enfermeirinha de
Eudemônía agarrou-a com mais fôrça de encontro ao médicos, que sinta pena de mim... não admito, enten-
peito. Inclinou a cabeça e quis beijá-Ia, aproximando a deu? Eu sou Eudemônia... Eudemônia Forbes... uma
bôca entreaberta dos lábios polpudos e vermelhos que mulher bastante superior a vocês todos. .. verá... verá
estremeciam então como se ela desejasse o beijo ou pior quando eu sair daqui... o que vou fazer... vou com-
ainda, como se ela estivesse com mêdo. A enfermeira des- prá-Ia, por um punhado de centavos e você será mi-
nha ... haverá de me dar êsse beijo hum ...
EUDEMõNIA 47
46 CASSANDRA RIOS
Eudemônia continuava calada sem perceber pala-
Eudemônia mediu-a com olhar desdenhoso, profe- vra, apenas sentindo a ressonância Invadi-Ia, cada vez
rindo, sarcástica: mais fundo, rouca, pausada, firme.
- Talvez você nem saiba bejar ... ou quem sabe Num impulso incontido ergueu as mãos e tapou os
já deve estar cansada de beijar enfermeiros pelos can- ouvidos voltando-lhe as costas. Não queria vê-Ia. Não
tos do hospital. .. ah!. .. talvez seja por isso que não usa queria embriagar-se mais. Ela era louca, sim. Louca!
batom. .. evita qualquer ... Completamente. Fechou os olhos, apertou-os, sacudiu a
cabeça para se livrar da visão, porém continuou a vê-Ia
- Cale-se! Você já falou demais. Creio que já teve pois ela se g-ravara na carne, no cérebro. poderosamente.
tempo para desabafar. Sua arrogância é inútil aqui ... Delgada, quase da sua altura, a testa larga, a bôca bem
Eudemônia estarreecu. Recuou um passo e perscru- talhada, olhos grandes e esverdeados, a pela rosada,
seios eretos, cabelos castanhos prêsos para trás, for-
tou-a gulosamente, enquanto os lábios frios e trêmulos
proferiram ao reconhecer a voz: mando um coque. Alguma coisa estalou. Automática-
mente voltou-se; a doutôra inclinara-se para apanhar
- Méltsia! ... um objeto que esmagara sob o pé. Eram seus óculos.
Provavelmente haviam caído durante a luta. Eudemô-
A doutôra olhou-a indignada diante da súbita trans- nia acercou-se e prometeu sem compreender como ti-
formação de Eudemônia, quis perguntar porque só ago- nha coragem para falar depois de tudo que acontecera:
ra a reconhecera pois até pouco antes tomara-a por uma
enfermeIra, porém acreditou melhor calar e analisar a - Mande fazer outro... eu pagarei o estrago ...
expressão atoIeimada do rosto de Eudemônia, que se en- -- Não é necessário. Eu ainda posso cobrir cer-
costara à parede e a fitava com os olhos arregalados. tos prejuízos. Veja, creio que me enganaram, até o aro
Que poderia estar acontecendo com Eudemônia?! A dou- partiu, disseram-me que era inquebrável.
tôra acercou-se dela e falou pausadamente:
- Dizem muita coisa contrária ...
- Não tenha mêdo, Eudemônia. Compreendo per-
feitamente sua revolta. Sei o que pretende e como é hor- A doutôra compreendeu a intenção das palavras.
rível para você esta situação, mas não se deixe vencer Sorriu e despedindo-se ainda comentou:
por pensamentos que podem prejudicá-Ia. Não, veja men- - Jj;sse é um mal muito sério, quando o estrago é
talmente em cada pessoa que se acerca de você um ini- irremediável é que se descobre o lôgro, eu, porém, sem-
migo e confie em mim. Quero, convença-se disso. .. ape- pre acabo por descobrir alguma coisa certa no duvidoso ...
nas ser sua amiga e ajudá-Ia. .. creia. Não a considero verá, quando nos falarmos na próxima vez.
louca.
4B CASSANDRA RIOS

Ela se afastou sem olhar para trás. Abriu a porta


e saiu.

Eudemônia ficou olhando para o ponto por onde


ela desaparecera e sorriu como se tivesse provado um
pouco de sossêgo ou de calma.

CAPíTULO IV

As horas transcorriam numa lentidão exasperante.


Eudemônia já não sabia mais o que fazer. Aquela
inércia em sua vida, trancafiada naquela Clínica, era
como um temporal de areia no deserto. Impossibilitava-
lhe de ver a verdade escondida pela trama do íncom-
preensível.

O dr. Jasper que pouco depois daquela cena entre


ela e a doutôra, aparecera surpreendendo-a. naquela con-
fusão de pensamentos, medrosa e suspeitando de que
algo deveria de acontecer, pois acreditava que a dra.
Méltsia haveria de contar-lhe o que se passara e então
alguma coisa êle haveria de fazer que agravaria a sua
situação.

Entretanto, não como esperava, êle apenas se preo-


cupou com sua aparência, querendo prestar-se para li-
vrá-Ia do possível aborrecimento que ela deveria estar
sofrendo nesse momento. Eudemônía considerou que
ainda era muito cedo para que a médica tivesse tido
tempo para propagar o acontecido. Entretanto, o dia
terminou e nada de anormal sucedeu.

A dra. Méltsia, com tôda certeza, julgara conveníen.


50 CASSANDRA RIOS ~UDEMõNIA 51

te silenciar comentários. Talvez por vergonha ou então ... o dr. Jasper entrou e foi logo perguntando porque
Eudemônia encontrou a resposta. ela o mandara chamar.
Ela não teria a quem falar, pois era a diretora do
instituto, se tivesse que fazer queixa, teria que recorrer - Preciso falar com meu advogado. Quero que o
a si mesma, se tivesse que tomar providências somente senhor providencie para que êle venha me ver esta tarde
ela poderia tomar a iniciativa. A dra. Méltsia durante sem falta. Tenho problemas para resolver, que valem a
todo o tempo estivera analisando-a. Tôda a expressão minha vida .••
do seu olhar se concentrara nela, concluiu então lógica
e acertadamente. Ela analisa os gestos, as palavras, os - Eudemônia, você não confia em mim? Pois bem,
lampejos do olhar, o próprio timbre de sua voz. Não fôra farei o que me. pede e verá que já temos meio-caminho
mêdo nem lástima que a mantivera passiva e calada en- andado. Eu evitei que êle se comunicasse com você por-
tre seus braços. Fôra para observá-Ia e para estudar as que pretendia resolver isso tudo com mais calma e pre-
sínteses psicológicas que se revolviam em seus pensa- cisão ...
mentos para desnudar todo seu íntimo e chegar a com-
preendê-Ia. Eudemônia acreditou que ela sim havia per- -Não pode existir calma quando se trata da liber-
cebido a sua verdadeira intenção quando a agarrara. dade de alguém. O que pretende, afinal? Há meses que
Queria que ela comprovasse que sabia diferenciar um estou' aqui. E tudo que fazem é observar-me, nem se-
gesto inconsciente de uma ação premeditada e intencio- quer como louca sou tratada; que sou para vocês, afinal?
nal. Compreendera tudo perfeitamente e respondera à
Se não podem curar-me é porque não estou doente.
altura permanecendo calada e depois confirmando que
De que adianta falar durante horas e horas, contar e re-
não a julgava louca.
contar minha vida, falar de coisas que não influenciam
E agora, se lhe contasse o que sentia a seu respeito? nada e depois encerrar-me neste cubículo. Sim porque
Iria ela mudar o seu julgamento? Então não lhe diria êste apartamento é uma verdadeira gaiola. Adianta que
nada. Seria melhor silenciar. vocês conseguirão realmente chegar a uma conclusão,
fazendo de mim uma louca ... Vamos, doutor, vamos
• para a sala de aplicações electrotérmicas... estou des-
Com o amanhecer surgiu de novo uma preocupação
controlada. .. preciso de um anestésico para surrar os
para indispô-Ia. . nervos. " ou será melhor o banho estático que me can-
çou tanto da última vez... O mal está aqui. Aqui, dr.
Logo que a enfermeira entrou no quarto, pediu-lhe
Jasper, é aqui. - Bateu contra o coração, fitando-o de
que chamasse o dr. Jasper, pois precisava falar-lhe, com
perto com os olhos lacrimosos.
urgência. A enfermeira atendeu-a prontamente.
52 CASSANDRA RIOS
EUDEMôNIA 53
Eudemônia, você sabe perfeitamente que precisa es-
perar. Faça de conta que está escondida da ... -----
Fôra um desabafo, atirando-se
~
contra Mila, até o
-
amor que sentira por ela se eyaporara, como por-..-enca~to.
- Polícia? Quem teria idéia para se esconder num Nem lembrança restava da paixão que aquela mulher lhe
asilo de loucos! provocara em outra ocasiã?
- Isso é preciso, porque assim você foi conside-
- Tem razão, dr. Jasper. Pode contar comigo.
rada quando revelou que tentara matar Mila por ciúme,
ao surpreendê-Ia com um homem. Você mesma assegu- A voz de Eudemônia saiu feito um sussurro apaga-
rou que estava fora de si, que não sabia o que estava do. Seus olhos se anuviaram pela sombra da tristeza.
fazendo, que uma fôrça superior impeliu-a, idéias, ob- Apertou as mãos esfregou uma contra a outra e olhou
secantes. Confessou e quis que acreditássemos que fôra para o dr. que sorria comovido por ter finalmente conse
por ciúme, pois não foi. Descontrôle sim, mas, por que? guido vencer a sua teimosia e fazê-Ia compreender sem
Qual a causa? Ciúme? Então, se tôda vez que você sen- prejudicar-se e nem mesmo ofendê-Ia.
tisse ciúme de alguém premeditasse matar, crê que se-
ria normal? Isso é o que eu quero saber, Eudemônia. - Eudemônía, quem vai atendê-Ia de amanhã em
Quantas vêzes você sofreu êsse ímpeto. Precisa contar- diante será a dra. Méltsia.
me, é para o seu bem. Enquanto você não esclarecer êsse Eudemônia arregalou os olhos e deu um passo para
ponto, enquanto nós não tivermos certeza de que você a frente, estendeu as mãos e apertou o braço do dr.
será capaz de controlar seus impulsos e agir sempre cons- Jasper, perguntando como se tal idéia a tivesse amedron-
ciente e com raciocínio, eu não a deixarei sair daqui, com- tado.
preendeu?
- Por que? Por que ela?.. Não!... não pode
Eudemônia permaneceu calada, fitando-o como se ser!. " Não quero submeter-me a uma posição inferior
pela primeira vez tivesse compreendido porque estava perante uma mulher também. - Compreendo a razão de
prêsa ali. Sempre o crime. Teriam razão? Ela não po- seu nervosismo, porém lhe asseguro que estará em óti-
dia responder pois se não pensava mais em matar e se mas mãos e que será para o seu bem. Exercendo a mesma
não sentia ciúme, em outras ocasiões também se acredi- profissão que eu, a dra. Méltsia, por ser mulher, poderá
tara livre do pensamento criminoso para, sem perceber, compreendê-Ia melhor e atendê-Ia, e depois foi ela quem
num impulso estranho e inesperado, sentir-se novamente se interessou por você e sugeriu isso. Pode confiar nela
vítima dos pensamentos que a atordoavam deixando-a como seu pai confiaria em mim. O dr. Jasper fêz uma
muitas vêzes febril acreditando que enlouquecera. Por pausa e concluiu. - Ainda quer falar com seu advoga-
quanto tempo estava livre daquele impulso, desde que do? Quer que eu providencie para que êle venha vê-Ia esta
sentira o alívio ao cometer aquêle gesto. tarde? Ou prefere que eu me encarregue disso?
EUDEMóNIA 55
54 CASSANDRA RIOS
à porta avisando que lhe trazia o almôço . Mandou-a
- Confio no senhor, dr. Jasper. Pode cuidar do
entrar depois de se refazer e se acalmar.
meu caso .. , com calma.. . mas... não prolongue por
muito tempo a minha estada aqui. .. Pediu-lhe que trouxesse um calmante, confessando
que estava com muita dor de cabeça. A enfermeira expli-
- Não creio que será necessário. Farei tudo para
cou que teria de consultar o dr. J asper e que voltaria em
resolver ambos os casos ao mesmo tempo, para que
você saia completamente livre e não espere safar-se de seguida.
uma, para depois ter que se libertar de outra. Eudemônia não tinha apetite porém concordou que
embora contra a vontade deveria comer alguma coisa,
Êle estendeu o braço e trocaram um apêrto de mão
pois do contrário se continuasse naquela abstinência à
para assegurar a confiança mútua. O dr. Jasper se re- qual vinha se entregando há dias, acabaria por enfra-
tirou deixando-a só com suas preocupações. quecer mais. E considerou que a fraqueza física contri-

siç~g.e_que~voltaria
--
Ela queria pensar. Não queria se submeter à supo-
-'.....
...".' .
a sentir desejos de m~..Q!'-
buiria para debilitá-Ia, prejudicando-a evidentemente,
pois precisava de fôrças para lutar contra as influências
ventura tivesse ciúme de mais alguém, se surpreendesse do ambiente.
outra mulher gll€ possivelmente poderia amar nos bra-
A, enfermeira voltou e deixou sôbre o criado mudo
ços de um.Jiomem. Uma cena horrível surgiu em sua
uma cápsula e meio-copo com água. Avisou-a para tomar
mente. A dra. Méltsia naquela cama em que ela surpre-
assim que acabasse de comer e que se deitasse um pouco,
endera Mila, a mesma cena ... o mesmo horror, a mes-
que não pensasse muito e para relaxar os nervos, assim
ma revolta e repugnância, o mesmo impulso. .. Tudo em
ficando mais ou menos meia-hora.
frações de segundos. Tão rápida e tão viva a expressão
do pensamento que ela sentiu uma tontura como se ti- Eudemônia assim que terminou de comer fêz o que
vesse despendido um esfôrço sobrenatural na recons- a enfermeira lhe indicara. Mas, deixar de pensar não
tituíção daquela cena que lhe apresentou a face do rival. conseguia. Méltsia surgia poderosamente com os seus
Contraiu os dedos como se estivsse apertando o gatilho e olhos sinistros para forçar sua imaginação.
caiu sôbre a cama de bruços a chorar neurastênicamente Por que haveria ela de se interessar pelo seu caso
enquanto proferia entre dentes num desvario insano: e querer cuidá-Ia pessoalmente? Com certeza se julgava
- Eu I!ão qu_~!a_ matar você Méltsi~u_não mais competente que o dr. Jasper, com certeza para que
queria matar você Méltsia ... É repugnante Não! Não o seu nome saisse também nos jornais como a médica
pode ser êle! Êle ~!oJ Êle nunca... .., . .. da milionária Eudemônia Forbes, por convencimento,
pois Eudemônia sorriu de si para si e prometeu que
Durante quanto tempo ficou em tal estado ela não
haveria de se divertir muito com a doutôra Méltsia. E
poderia precisar. Tornou a si quando a enfermeira bateu
56 CASSANDRA RIOS EUDEMóNIA 57

quem sabe!... Um pensamento malicioso atravessou-lhe malicíosamenta e parecia que ela ~tava prometendo
a mente, haveria de tentar, para isso era mestra em con- que a qualquer momento as agarraria num dos cantos
quistas. Mila nem sequer imaginava que fôsse possível ~cl!.ros <rõCorredor. _p;;-ém era só impressão. Apenas
uma mulher como ela amar a uma outra, entretanto, em -a impressão que sempre .lizera de Eudemônia uma mu-
pouco tempo se tornara sua amante. Por que não Méltsia? lhêr:diferente e admirada. Ela era assim, realmente,
Não. Não poderia ser. O principal seria livrar-se da- nas mínimos gestos, nas mínimas expressões.
quela prisão. Tinha o mundo aos seus pés, precisava
era livrar-se das cadeias que os prendiam, isso era o Pela terceira vez a enfermeira chamou-a baixinho,
que realmente importava. inclinada ao seu lado, olhanda-a fixamente.

Reflexões, ansiedades, recordações desagradáveis e Eudemônia ergueu as pálpebras e fechou-as de novo.


momentos felizes, tudo revolveu em sua mente até que Uma luz ferira-lhe os olhos. Passou a mão pelo rosto e
pouco e pouco o sono despercebidamente cerrou-lhe os perguntou ao mesmo tempo que se sentava na cama:
olhos. O silêncio continuou naquele quarto até o entar-
decer . De vez em quando uma enfermeira enfiava a - Que horas são? Parece que dormi um século ...
cabeça pela porta para espiá-Ia, retirando-se logo em . estava tão cansada!
seguida. Parecia que era a primeira vez depois de tanto
tempo, que Eudemônia conseguia descansar um pouco. - São seis horas. .. a senhorita deve ter dormido
umas cinco horas mais ou menos ... estava tão calma!
Até as enfermeiras suspiraram tranqüilas. Eude- Nunca a vi dormir assim ...
mônia, era realmente um perigo que caminhava pelos
corredores da C1ínica. Parecia que todos a temiam. To- - Você esteve aqui enquanto eu dormia? - inda-
dos os olhares a seguiam com lampejos de cobiça ou gou Eudemônia, suspeitando de que ela pudesse ter che-
admiração. Alta e esguia, caminhando com aquêle jeito gado a perceber o sonho que tivera ... aquêle sonho
inimitável, soberana, os ombros expressando na pose em que Méltsía surgia e se deixava agarrar para de-
natural uma fôrça que na realidade ela não possuía, os- pois empurrá-Ia furiosamente ...
tentando a cabeça altiva com um olhar atrevido e pers-
crutador. No corpo sensual ressaltava uma certa im- - Não, eu apenas vinha espiá-Ia de vez em quan-
pressão estranha como se tivesse um quê de masculino. do. " até que o dr. Jasper mandou acordá-Ia ... Será
~s enfermeiras pareciam temê-Ia porque quando ~ude- melhor que tome um banho bem quente e que depois
mônía fixava em alguma delas o olhar atrevido e en- do jantar vá até o jardim, para se distrair um pouco ...
yolvente, fazia com que elas se envergonhassem como se ou então, vá até a sala de música. Chegaram novos
discos ...
estivesse a acusá-Ias também; o seu olhar lampejava
58
CASSANDRA RIOS
EUDEMõNIA 59
- Mas. " isto aqui está parecendo um grande ho-
tel. '. com buate e tudo. " será que conseguirei arran- Durante o banho, ficou cismando se aquelas suas ati-
jar um par para dançar comigo? " Há alguma enfer- tudes também não estavam sendo atrevidas demais e con-
meira disponível?
tribuindo para que a julgassem realmente louca. Consi-
derou que era o capricho, estava revoltada e achou natu-
Perguntou ela sarcástica enquanto tirava do ar- ral que desejasse ter como enfermeira qualquer jovem bo-
mário um roupão de banho. Olhou para a enfermeira nita e simpática.
e seus lábios Se entreabriram com aquêle sorriso desde-
nhoso que provocava qualquer um. A enfermeira se con- Voltou para o quarto e enquanto se vestia continuou
trolou e respondeu com calma: a pensar, a revolver idéias criando novas imagens.
Pensou que- durante todo aquêle dia a dra. Méltsia
- indispensável
É que os nossos doentes não se
não aparecera. Teve até impressão de que tudo e a sua
sintam como se estivessem em uma prisão. Portanto lhes
oferecemos as distrações adequadas. " para que se res- existência fôra um sonho que insistia em perdurar. Se-
tabeleçam confortàvelmente. '. Se precisar, de mim, pode ria muito fantástico se ela se apaixonasse pela própria
me mandar chamar ... médica, coisa de que todos os psiquiatras se jactavam.
De que os pacientes acabavam por fazê-Ias objeto de suas
Ela abriu a porta para sair. Eudemônia, que so- paixões. Com Eudemônia acontecia de maneira impre-
frera a ação daquela resposta, não se deixou vencer, e vista. Ela ainda não era sua paciente. Quando sentira
ainda contestou: aquela súbita e forte impressão pela sua voz e quando
a confundira com uma enfermeira, não a conhecia ainda,
- Não Qr€cis~rei de você. '. a não seZ que con- portanto, não fôra pela doutôra, que ela se interessara,
siga me trazer uma de suas colegas. " a mais bonita ... mas por uma mulher como qualquer outra; só depois é
preciso de uma mulher... pagarei extraordinários se fôr que ficara sabendo quem era ela.
O caso ...
Eudemônia abriu o guarda-roupa e olhou para os
A porta se fechou bruscamente, porém sem fazer vestidos pendurados nos cabides, bem passados e novos
ruído. Eudemônia sorriu satisfeita por ter deixado a en- como se tivessem chegado da modista naquele instante.
fermeira furiosa. O fato é que ela queria que a substi- Olhou-os e teve vontade de rasgá-Ios um por um. De que
tuíssem. Não Suportava aquela cara feia e envelheci da. servia tê-los ali expostos se não surgia ocasião para usá-
Era a terceira que provàvelmente iria se queixar dela los. Mesmo porque se vestisse um dêles, aquêles enfer-
nesse mesmo mês, ao dr, Jasper. Eudemônia jurara agir meirinhos aparvalhados que se voltavam nos corredores
assim até que êle se resolvesse a lhe mandar uma enfer- ao vê-Ia passar, por certo haveriam de chegar a criar
meira mais agradável!. " Que fôsse simpática, ao menos. confusão. Os decotes, chegando a extremos; o corte que
se assentava em seu corpo como se ela tivesse nascido
EUDEMõNIA 61
60 CASSANDRA RIOS
ao contrário de pôr em prática a sua tática em conquistas.
vestida com êles. A côr das fazendas caríssimas, os sa-
Teria que conseguir alguma coisa de diferente para matar
patos, as luvas, as bôlsas. Também, para que servia tudo
o tempo, nem que fôsse apenas para olhar e desejar,
aquilo se agora nem ela mesma se considerava uma mu-
sem mesmo que tivesse resultado seus intentos, enfim,
lher feita para aquêles trajes. Até o cabelo lhe faltava.
conquistar e desejar para ela, era considerado sempre
Bateu com fúria a porta do guarda-roupa e procurou no
como uma coisa diferente. Mesmo quando se repetiam as
outro armário um pulover negro de cashemere de gola
aventuras.
olímpica, uma calça comprida também negra. O par de
mocacine e a meia soquete. Tôda de negro, como se ves- Bateram à porta. Mandou entrar e continuou a pas-
tia antes, durante as festas a que só compareciam mulhe- sar o pente pelos cabelos umedecendo-os com colônia.
res. Olhou-se no espelho e calculou que se as suas amigas Alguém entrara, porém permanecia em silêncio a
a vissem agora, tal como estava, de cabelos curtos, pro- observá-lo. Eudemônia viu-a através do espelho e ficou
vàvelmente não repetiriam que faltava cortá-los para pa- olhando-a em silêncio. Parecia que não se atrevia a voltar,
recer realmente um homem, ao que ela constatou que ja- a mão suspensa refreando o gesto com o pente imóvel
mais chegaria a parecer. Era uma mulher cento por cento entre os dedos.
mulher com a diferença pero instinto porque, s;tTsfazia
- Resolvi vir jantar com você, Eudemônia. Pode-
seus des;;os sem preocupar-se com preconceitos. As
remos conversar e chegar a conhecermo-nos melhor ...
Was curvas e saliênciãSliao se escondiam debaixo daquele
Espero que não haja objeção de sua parte ...
traje, de forma alguma. Evidentemente, se ela negasse,
ninguém nem mesmo o dr. Jasper e a dra. Méltsía, pode- Eudemônia se voltou e encarou-a ainda calada. O
riam confirmar que ela era uma homossexual. Odiou-se peito arfava, sem que ela pudesse ocultar seu nervosismo,
nesse instante por ter num momento de fraqueza revelado Finalmente, falou e sua voz cortante falseava uma
.0 segrêdo de sua vida. Odiou-se por ter confessado que afronta:
era uma lesbianac.Oue tentara matar por ciúme- e que
- Adiantaria recusar? Vocês, médicos, ordenam ...
o faria novamente, se um dia qualquer mulher a traísse.
e nós, os loucos. .. obedecemos ...
Dissera-o assim, -irrefletidamente durante aquêle acesso
de nervos que tivera, quando a crivaram de perguntas, - Senhorita... está completamente enganhada ...
já prêsa naquela Clínica. nós não governamos os nossos pacientes e nem os con-
sideramo.s loucos tampouco, aqui não, não nesta Clí-
Agora era tarde demais. Convinha esperar e aguar-
nica. Procuramos apenas ajudá-los a encontrar a ver-
dar os acontecimentos. Porém, ela não haveria de con-
dade que se oculta dentro da mente... no cérebro. ...
sentir que a sua vida se paralisasse naquele drama e que
na consciênéia. .. no íntimo ...
tudo continuasse com aquela monotonia. Haveria, muito
EUÚE:M6NIA 63
62 CASSANDRA RIOS
pagaria os extraordinários... Não imaginei que viesse
_ Pode usar as expressões exatas, doutÔra... -
você .. , seria... exigir muito ...
Eudemônia f~ continuou: - .,. Méltsía.
Compreen~ei perfeitamente a - palavra ... - Ma~- _ Oh! Cale-se! Você é realmente intratável! Você
precisa ficar só, ... passe bem, senhorita, Eudemônia l ...
co, n~os~
.- ---- ~-
psicologia _e estudeioastãí:íte,
- ,-
mas teorias dos melhores psicólogos, porém, espero que
cõmpreenda .. , se quiser saber de minha vida, aviso-a
---
perversão do libido ... Também li livros de
sou ca:Qaz de citar algu- A dra. Méltsia avançou
demônia correu e segurou-a
para a porta,
pelo braço.
decidida. Eu-

_ Espere! Compreenda meu nervosismo, não havia


que não uso teorias ... uso a prática.. _. .() O fN rJ'~~
" '
razão para que eu a ofendesse. Desculpe-me ...
_ Não pretendo saber de sua vida, agora, Eudemô- _ Não tenho o que desculpar, não creia que suas
nia. Queria apenas fazer-lhe companhia. Iríamos até a palavras tenham me ofendido. Apenas achei antipática
sala de música, talvez até jogássemos um pouco de xa- a sua pose, compreendi que não deseja minha compa-
drez ... Pensei que você haveria de gostar de não passar nhia. E você perguntou se adiantaria recusar, não foi?
mais uma noite sozinha. ... Pois eu me retiro.
_ Ah!. .. Com que então, você é a mais bonita? .. _ Não. Não se vá! Fique ... fique, por favor ...
Foi justamente o que pensei! estarei às suas ordens. .. e depois, dra. Méltsia, não é
justo que uma psicóloga perca a paciência com um dos
Eudemônia pôs a mão no queixo e olhou-a com uma
seus. .. doentes ...
expressão maliciosa enquanto se aproximava da outra. Sua
voz fôra sarcástica, porém vacilante e ela não parecia que- _ Não perdi a. calma; é necessário tratá-Ia assim,
rer dizer realmente aquelas palavras, naquele tom pro- para que a senhorita compreenda certas coisas e não
vocador. A dra. Méltsia olhou-a franzindo o sobrecenho, continue a cometer deslizes... Bem, esqueçamos êsse
intrigada e sem compreender, inquiriu enquanto recuava, incidente e vamos para o refeitório.
erguendo a cabeça e olhando-a de frente como se não - Para o refeitório? Pensei que fôssemos jantar
a temesse: aqui. ..

Que quer dizer!? .. A decepção timbrou a voz de Eudemônia,


- Preciso estar presente à hora do jantar no refei-
Foi o que pedi àquela enfermeira horrorosa. Que tório ...
mandasse em seu lugar a enfermeira mais bonita que
encontrasse. .. para fazer-me companhia, para irmos à - Quer dizer que tôdas as noites, você. .. a senhora,
sala de música dançar um pouco e depois... bem... eu poderia ser encontrada entre todos aquêles ...
CASSANDRA RIOS EUDEMõNIA 65
64
Eudemônia parou de falar, porém ela entendeu que morava, tendo como companhia apenas pessoas idosas que
a palavra seguinte seria "loucos', já não a achava ade- só sabiam eensurá-lo e ensinar-lhe coisas após coisas. Con-
quada e por isso não a pronunciara. Eudemônia falara versar com a estátua tornara-se nêle um hábito. Era a des-
como se tivesse pretendido vê-Ia outras vêzes e agora forra que êle tirava da sua vida solitária e vazia, muito
se sentia lograda por descobrir que se tivesse ido jantar embora fôsse filho único de família rica. Não tinha mãe,
sempre no refeitório a teria encontrado por lá. A dra. quando morrera-lhe o pai pouco mais tarde, já rapazola,
Méltsia sorriu e deu um passo para fora do quarto en- ordenou que levassem a estátua para o saguão da casa,
quanto Eudemônia a seguia calada, imersa em suas con- transportou-a logo depois, para o escritório e finalmente
jeturas. para o seu próprio quarto.

O vozerio era confuso. Uns riam, outros pediam


Depois, êle próprio, não suportando o desespêro que
para passar os pratos, alguns permaneciam em silêncio
o enlouquecia, fôra procurar uma solução para o seu caso,
enquanto comiam.
recorrendo ao dr. Jasper, que o encaminhara para a
N esse momento em que Eudemônia entrou no re- Clínica meses após tê-lo atendido em sua própria resi-
feitório em companhia da dra. Méltsia, aquêle ambiente dência. O dr. Jasper ordenou que a estátua fôsse remo-
pareceu o mesmo de qualquer restaurante da cidade. vida para outro lugar e soube por intermédio da gover-
Cada mesa onde se sentavam três pacientes tinha um mé- nanta que Maurício chegara a extremos com a ninfa de
dico ou um enfermeiro, que conversavam como se fôssem granito. Amava-a, como se ama a uma criatura de carne
amigos íntimos. e osso. Maurício não quis ficar em sua casa sem a estátua,
então o dr. Jasper levara-o para a Clínica. Agora, faltava
Eudemônia olhou-os um por um e quis saber, qual
pouco para que êle pudesse sair de lá sem receio de en-
a mania daquele qual, a tara do outro à sua frente que
frentar a causadora de seu distúrbio. Êle contribuíra com
parecia tão-perfeitamente são quanto o médico sentado
tôda sua fôrça de vontade para libertar-se daquela fra-
ao lado. queza e chegara a apaixonar-se por uma enfermeira que
Adra. Méltsia explicou-lhe alguns casos. Maurício, o assistia. Não se fôra ainda porque acreditava que so-
assim denominou o jovem sentado ao lado do médico, esti- mente êle mesmo o poderia resolver, quando chegada a
vera apaixonado por uma estátua que o pai colocara no hora.
jardim. Desde criança êle se sentava perto do pedestal on-
de ela estava e dirigia-lhe palavras, contava-Ihes suas la- Eudemônia olhava-a incrédula enquanto a dra. Mélt-
múrias e segredos, como se ela o ouvisse e compreen- sía lhe contava aquêle caso. Depois voltou-se e disse-lhe
desse. A princípio, considerava-se uma infantilidade de suspeitando da razão daquela conversa:
menino que vivia prêso entre os muros do palacete onde
56 CASSANDRA RIOS EUDEMóN'IA 6't

Dra. Méltsia, eu me apaixono por gente .. , e não - Digo, amou alguém, amou com loucura. .. apai-
por mármores... por criaturas que sentem, vibram e xonadamente? Com verdadeiro Amor? - A quem?
pensam ... crê que seja mais fácil o caso dêsse rapaz?
- Ao meu marido.
_ Depende da fôrça de vontade. Para amputar uma
perna gangrenada precisamos anestesiar o doente, não A resposta trouxe um súbito silêncio entre ambas. Os
podemos fazer o mesmo com um psicopata, é necessário, companheiros de mesa, olhavam-nas calados e com inte-
para que a cura seja perfeita, que êle esteja sempre cons- rêsse. Eram êles dois enfermeiros. Um jovem e :l enfer-
ciente, trabalhando com o médico, que nesse caso é seu meira de Eudemônia.
amigo e confidente ... Eudemônia retraiu-se e olhou para o prato de legu-
Eudemônia olhou-a em silêncio como se estivesse re- mes que puseram à sua frente. Estava gelada como se
solvendo um problema que lhe surgira de súbito na ~te. o gêlo todo do mundo tivesse caído sôbre ela. Não se
-
Os olhos perscrutaram-na --- -
que
com aquela expressão--::-.--- a
J atrevia a olhar para a outra. Aquela resposta tão simples
tornava uma mulher temível. Parecia querer desnudá-Ia e e calma produzira o efeito de um veneno. Ela era casada:
atravessá-Ia através das pupilas esverdeadas que não-~e Uma suposição que julgou absurda provocou a sua curio-
desviavam nem táiiipouco mudavam de expressãõ. _~10 sidade, olhou para os enfermeiros e o médico na outra
se ela fôsse tôda cálculos e raciocínios. Aquela cabeça de mesa que a fitava desde que ela entrara. Procurou reco-
cabelos sedosos e penteados tão-rigorosamente, aquêle nhecer .qual dêles poderia ser o marido de Méltsía. Há-
olhar límpido e otimista, o corpo perfeito e convidativo, pida outra vez, a pergunta fugiu-lhe dos lábios:
aquela mulher completamente feita para o amor, er~n..e-
- Quem é o seu marido? Qual... dos que estão
nas uma máq1].illiij:l.e.nSJl.l1te.. , Eudemônia estremeceu e aqUl.?
....
inclinãndo:se para ela, os braços apoiados sôbre a mesa
perguntou rápida como lhe surgia a dúvida: Sem Importar-se com aquela curiosidade e inabalável
como sempre fôra, ela respondeu. A voz profunda não
_ A senhora nunca amou? revela va emoção.
Fôra realmente uma pergunta inesperada, porém
após breve silêncio, a dra. Méltsia lhe respondeu pausada e - Meu espôso faleceu há quatro anos. Foi o fun-
dador dêste hospital.
sínceramente:
_ Sim. Amei, como se ama a tudo na vida. Então Eudemônia compreendeu a vida daquela mu-
Fudemônia não se satisfezoom a resposta e ainda lher. Sussurrou arrependida, porém, parecia que tudo
insistiu. Em seus olhos transpareciam lampejos sinis- dentro dela vibrava de satisfação. Sua palavra não eram
falsas mas também não eram sinceras:
tros.
CASSANDRA RIOS EUDEMÓNIA 69
68

_ Sinto muto... desculpa-me ... mesmo tempo normal quanto qualquer outra criatura?
De tanto fitá-Ia, Eudemônia sentiu-se possuída de súbita
Continuou fitando-a e quando se deu conta estava
fraqueza. Pareceu-lhe por instante que a cabeça da dou-
a analisá-Ia como se fôsse a médica-analista e não a
tôra girara à sua frente multiplicando-se Tudo desapa-
paciente. Sorriu de si para si e censurou-se também ao
receu num sussurro interminável enquanto ela caía pesa-
sofrer aquela influência de querer analisar tudo como
damente e depois flutuando para dentro de um buraco es-
se assim pudesse resolver qualquer problema. Realmen-
curo sem que encontrasse nada onde pudesse se amparar.
te, achou estranhas as atitudes daquela médica. Dei-
A cabeça pareceu partir-se e uma dor estranha pisou-lhe
xava-se interrogar em vez de fazer perguntas. Aceitava
a nuca como patinhas cheias de garras de estranhos aní-
tudo que ela dizia com a maior calma e indiferenç.a,
maizinhos. O estômago contraiu-se e um sabor amargo
como se tõdas suas palavras fôssem naturais e ... Eude-
subiu para a garganta e encheu-lhe a bôca de água. Con-
mônia mais uma vez surpreendeu-se diante da sagaci-
tinuava a flutuar agora prêsa por estranhos ganchos
dade da outra ... suas palavras eram esperadas ... co-
que a cingiam. Ruídos esquisitos que se confundiam com
mo esperadas eram tôdas as suas atitudes. A dra. Méltsia
apitos e resmungos. A visão do rosto da Dra. Méltsía
analisara-a de um só lance de olhar e respondia e trata-
continuou girando dentro, no cérebro, sim, porque os
va-a da maneira adequada para conquistá-Ia e depois,
olhos estavam fechados, as pálpebras pesadas, não con-
reduzi-Ia a uma submissa e compreensiva paciente. Uma
seguia movê-Ias como também não tinha f'ôrças para
onda de calor subiu-lhe ao rosto e ela quis se revoltar,
gritar e pedir que a socorressem.
porém raciocinou rápida que não valia a pena perder
aquêle momento de poder ficar em companhia dela. Es- Quando voltou a si da singular vertigem e pôde
pantou para longe a idéia de que estava num refeitó- descerrar as pálpebras vagarosamente, conseguindo fôr-
rio de doentes e imaginou que estava jantando em um çaa da mesma maneira inexplicável como as perdera, o
restaurante em companhia de sua última conquista. En- que viu primeiro, ainda desta vez real e ansioso, foi o
quanto isso, a dra. Méltsia jantava em silêncio, sem pa- rosto da dra. Méltsia debruçado para ela, perscrutando-a,
recer alheia ao que acontecia ao redor, sem parecer pres- sempre analisando-lhe as expressões. Eudemônia levou
tar atenção a nada, nem mesmo concentrada nos pro- as mãos ao rosto e fechou os olhos para não' vê-Ia. E
blemas que teria de solucioná-Ios, estranha e enigmática pediu exasperada, como se estivesse venci da por pode-
era a expressão de seu rosto. Tão serena e capaz de per- rosa sensação:
turbar tanto. Tão calma e capaz de provocar tamanho
- Deixa-me ... vá-se por favor ... quero ficar só ...
nervosismo. Eudemônia teve ímpetos de beliscá-Ia para
E mesmo antes que ela tivesse tempo para esboçar um
certificar-se de que ela era real. Seria insensível? Que
g~sto para se retirar, suplicou mais nervosa: _ Não ...
mulher poderia ser assim, inabalável, impenetrável e ao
nao se vá. " fique comigo, por favor ...
i::UnEMONIA 71
CASSANDRA RIOS
70
Retrucou imediatamente num tom suplicante para
_ Não irei, Eudemônia. Já passou, não é? Foi um que ela não a interrogasse mais.
súbito mal-estar que a fêz perder os sentidos. Não se preo- _ Dra. Méltsia, não' fique ressentida por não querer
cupe ... quer voltar para o refeitório e terminar de jan-
responder; creia que não posso realmente explicar-lhe ...
tar ou prefere que mande trazer aqui em seu quarto?
não se preocupe com o que aconteceu... Não, há expli-
Eudemônia tirou as mãos do rosto e olhou ao redor cação .. , foi tudo tão de repente ...
surprêsa e sem compreender. Como? Então todo aquêle
_ Está bem Eudemônia, eu compreendo. Pergun-
tempo êles a tinham carregado de volta para o quarto e
tei por curiosidade para ser-lhe útil. Não havia outra in-
ela não sentira? Fôra realmente um desmaio, entretanto
tenção em minha ,pergunta, não estou aqui com você
não perdera completamente a consciência, sofrera ape-
para isso. Foi um início de conversa ...
nas uma perturbação complexa. Alguns minutos se pas-
sara e Eudemônia sentou-se na cama, recostou-se no tra- Eudemônia sorriu agradecida e em seu olhar trans-
vesseiro que a doutôra ajeitou. Sentiu o cheiro dos ca- pareceram pela primeira vez lampej os de reconhecimen-
belos quando ela se aproximou e estendeu os braços por to. A doutôra entretanto continuou e as suas palavras não
detrás de si para puxá-lo. Um perfume bom de sabo- .eram de uma mulher comum, como Eudemônia a julgara
nete parisiense, de carne morna e sensual. Eudemônia descuidadamente, por alguns segundos, esquecida do mo-
olhou para as mãos dela e teve vontade de agarrá-Ias só tivo porque estavam juntas.
para sentir a maciez, somente para sentir-lhe o calor e o
contato daqueles dedos longos e finos, pálidos como tôda - ~ um hábito meu fazer perguntas, porém se fizer
a pele de seu corpo. Cerrou os punhos e disse enquanto mais alguma, não precisa responder. Prefiro que você
tentava se acalmar e não errar as palavras revelando que fale, sem que eu pareça querer forçá-Ia.
a desejava: Aquela serenidade momentânea fugiu-lhe do rosto.
_ Prefiro jantar aqui. Parece que me habituei de Eudemônia deixou de sorrir e mordeu os lábios enquanto
tal forma à solidão que o barulho de muita gente me se moviam de um lado para outro numa expressão des-
faz mal. .. porém, fique aqui. .. um pouco ... confiada de quem se previne contra um suposto ataque.

_ Ficarei com você até a hora de dormir, depois - Contudo, suas intenções amistosas são para arran-
terei que ir, enquanto isso, conta-me o que sentiu, quan- car de dentro de mim uma confissão geral de tudo que
do teve aquela vertigem. .. gostaria de saber ... tenha posslvelmente influenciado desde minha infância
até ... provàvelmente à velhice, para que eu me perver-
_ Eu não sei mentir, portanto, prefiro calar ... não ~ Dra. Méltsia, para simplificar seu trabalho que
posso confessar o que me fêz mal naquela hora... des- não é nada agradável em se tratando da minha antipática
culpa-me .. , será melhor silenciar.
72 CASSANDRA RIOS EUDEMôNIA 78

pessoa, vou revelar-lhe algo, a chave de tudo ... promete o lábio inferior fazendo com que a covinha do seu queixo
guardar segrêdo? pareça mais profunda, formando uma espécie de cora-
ção .•. . ,
A doutôra não lhe respondeu. Parecia que adivinhava
as intenções daquele olhar esgazeado e deixava-a falar. A dra. Méltsia apertou os lábios e disse como se qui-
Sem alterar a expressão, sem deixar transparecer que sesse evitar aquêle comentário que provàvelmente resul-
percebia perfeitamente que ela queria ser sarcástica den- taria em vários elogios.
tro da sua revolta ela a deixava falar. Eudemônia sof'ria
pela necessidade de um amigo com quem se desabafar. A - Eudemônia, você não gostaria de ir até à sala de
idéia de que estava sendo submetida a uma terapêutica música? Creio que já está mais disposta. Far-lhe-á bem
distrair-se um pouco ...
psicopática com intenções de reintegrá-Ia ao normal era
humilhante e um abuso inconcebível contra o seu livre - Não crê' que esteja me distraindo? Pois saiba que
arbítrio. Seu temperamento não a deixava submeter-se e nunca me senti tão bem em tôda minha vida.. sinto
desde o início ela repelira a idéia de tal circunstân- como se estivesse representando uma comédia. Como se
cia e se obrigara a aceitar e desconsiderar a importân- a minha personalidade tivesse se multiplicado. .. nunca
cia daquela situação. Era sarcástica consciente e propo- pensei que pudesse ser divertido confundir 0'8 outros ...
sitadamente para não sofrer a ação da realidade.
Eudemônia calou-se de súbito como se tivesse come-
Eudemônia inclinou-se para a frente e arregalou os tido uma incoerência contra si própria. Por reconhecer
olhos, olhou para os lados e confidencialmente revelou que já começara a falar sem que ela desse motivo de
baixinho como se na realidade estivesse confessando e levantou-se de um salto. Deu alguns passos pelo quarto
algo: e voltou-se para ela completamente transformada. Séria,
Sou tarada, desde quando simples embrião ... imponente, olhando-a com aquêle ar de superioridade. E
na súbita mudança tornou-se fria e céptíca :
A dra. Méltsia deixou que os lábios se entreabrissem
\ - Vamos para a sala de música.
num sorriso espontâneo. Os alvos dentes perfilaram-se
como pedacinhos de madrepérola, e a covinha do seu A voz ecoou como se ela estivesse dando uma ordem
queixo pareceu mais profunda. Eudemônía observou voltando ao lugar de senhora que ocupava em sua casa.
aquela particularidade e comentou embevecida : A dra. Méltsia soergueu a cabeça para poder vê-Ia e
contestou:
- Reparei que seus olhos mudam de côr e que cin-
tilam como a luz vacilante dos vagalumes, porém não - Primeiramente esperemos a enfermeira voltar com
havia notado ainda que ao sorrir, a senhora estira o nosso jantar.. Deve ter demorado, porque com certeza
74 CASiANDRA RIOS
EUDEMONIA 75
precisou preparar tudo novamente, pois a comida deve
ma vencer...pela lógica à imposição de seus instintos. Adap-
ter esfriado.
tara-~queI;vida e trilhava normalmente o caminho que
Eudemônia voltou a sentar-se na beira da cama. mlhera. Restava apenas como anátema do seu caso saber
~to poderia ainda chegar incitada de novo por in-
- Enquanto isso, doutôra, faça perguntas. Respon-
fluências da origem daquele instinto que a levaram a idea-
derei a verdade. lizar o crime que afortunadamente não resultara em fatal
- Crê que haja muitas perguntas?
- Acaba de fazer uma. Sim. Creio que existam mui-
-"----
desastre. Quanto ao seu estado sexual pervertido
que acreditou conseguirem realizar seria o de transfor-
Por
:rliá-iã Persuasão em uma bissexual, o que considerou
tudo

tas perguntas a serem feitas.


;;-de"riã ser pior e acarretar-Ihejnaís complic~es. De
Frisou Eudemônia categõrícamente. 'seu ponto de vistà afirmava que já era tão difícil exer-
cer uma função na vida, quanto mais duas! Eudemônía
A doutôra reconheceu a sagacidade daquela mulher por sorte e inteligência não sofria de complexos em relação
que não queria se deixar vencer fazendo com que o seu à su;-p~~ão . .M.!ill..oao contrár~ consider;-~~
diagnóstico dependesse exclusivamente

conseguiria, pouco a pouco, paulatinamente,


tão a arrancar
da vontade dela.
Porém permanecia na sua cama inalterável, certa de que
como até en-
dela o suficiente para saber como tratá-
-sexuais sendo de referência
-
só a ela cabia' escolher o que mais lhe agradasse. E que
o objeto_que ser~Jilara a satisf~çãQ dos seus ~
a mulher, não constituía
problema que ela não soubesse resolver. e um dia
Ia. Já a analisara mais do que o necessário para com- decidisse a ter relação cOmum homem, da mesma forma
preendê-Ia, porém prosseguia com o seu processo. E num o faria sem sofrer o ato como algo contrário à sua ver-
diagnóstico psicanalítico considerou aquêle caso, numa dadeira vontade, porém, como uma novidade que ela
vaga de lôgro, incurável. Eudemônia respondia às suas experimentaria sem recato e sem complexos, achando
próprias revoltas com exatidão, reconhecendo seus erros natural e provàvelmente até satisfatório. Até então ba-
transformando ela mesma todo seu subconciente pato- nira tal idéia como se diante da vida intensa que levara,
gênico em consciente. Conhecia profundamente de uma o homem representasse um refugo ou um prato menos
maneira que ela não esperava, por influência de leituras,
saboroso. A razão de sua preferência tinha certeza de
provàvelmente, mais ainda por capacidade reflectiva psi- que ela a conhecia e aquilo que a influenciara a preferir a
cológica, a técnica da terapêutica psicanalítica e resultados
mulher ao homem seria capaz de revelar com simplicida-

ciente da, verdade iliv~_de -


que dêles poderiam advir. Ela era uma homoxessual cons-
complexos. '!:.1lilQ para ela se
resolvia fácil e com naturalidade. Sozinha poderia liber-
de como se estivesse qualificando o melhor entre dois fil-
mes que assistira ou dos quais fôra personagem. Não lhe
perguntaria nada que ela não quisesse responder até êsse
tar-se da perversão, porém ela não queria de forma algu-
momento. Deixaria que tudo se revelasse como em con-

,
EUDEMÔNIA 77
76 CASSANDRA RIOS
a dor passará, é, sim, como se a bôca do meu estômago
versas se contam coisas do passado que se gravam ou se tivesse contraído.
se perdem nas lacunas da memória e que influenciam
.Kealmente, é um espasmo nervoso,
na decisão da escolha do caminho da nossa vida.
A enfermeira entrou depois de bater levemente na Não vai me receitar nada?
porta. A dra. Méltsia esperou que ela servisse as iguarias Apenas que se distraia com alguma coisa, faça
que fumegavam. Eudemônia foi para o lado da mesa e fôrça para ingerir algo. 1\1ão gosto de recomendar puu-
comentou enquanto se sentava do outro lado, em frente Ias, cápsulas de espécie alguma, somente quando a si-
à doutôra: tuação exige. Quando possível evito a medicina.
- Interessante como perdi o apetite .Antes estava - Então, considera tudo em mim análogo? Somente
com muita fome. Não tenho vontade de comer ... nada psíquico? Rearmente sou tôda cérebro e sexo. .. cumpri-
me apetece. Provàvelmente, a senhora explicará que a mento-a, dra. Méltsia, é realmente, se pode valer minha
falta de apetite momentânea e a dorzinha que sinto opmião, digna de admiração. Desnuda as pessoas com
agora na bôca do estômago será um espasmo nervoso, muita facilidade. Tenho certeza de que já não tenho nada
não é? a responder, sabe tudo... tudo de Eudemônia. Só lhe
falta que eu lhe descreva as cenas ... o resto a senhora já
Talvez, provàvelmente. Não se deve afirmar sem
diagnosticou. Exato?
examinar.
- Completamente não. Euàemônia. Quanto à sua
_ Quer verificar? Dar-lhe-ei êsse prazer - disse
opinião, respeito-a como considero a palavra de qual-
Eudemônia levantando-se e em seguida aproximando-se quer criatura. Somente que não sou alvo exclusivo para
dela, parou ao lado da cadeira esperando que ela se vol- admiração, no campo da psicologia, sou apenas uma en-
tasse. A doutôra apenas voltou a cabeça e olhou-a contes- tre tantas que exercem a mesma profissão, com per-
tando: severança, sempre aprendizes de novas sínteses em cada
caso que surge.
_ Responda-me apenas a estas perguntas. Como vê
é necessário que um médico indague sempre. Que espé- Eudemônia permaneceu calada remexendo a colher
cie de dor você poderá qualificar essa que sente. Aguda, no prato de sopa. Ergueu-se vagarosamente e "levou-a à
de contrações, enjôo ... bôca, Distraída continuou repetindo os gestos até que
- Não, não é enjôo e nem aguda. É uma dor para- no fundo do prato nada mais restou. A enfermeira que
permanecera em pé, perto da janela, acercou-se e prepa-
lisada, quase não posso responder exatamente... ape-
rou-lhe outro prato.
nas me incomoda. Penso, que se tomar um copo-de-água

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78 CASSANDRA RIOS ~UDÉMóNIA 79
Durante todo o jantar o silêncio prosseguiu entre por sob a mesa e vagarosamente foi deslizando o olhar
elas. Por sob as pálpebras, escondido entre os cílios o dos joelhos cobertos pela saia para baixo até que alcan-
olhar de Eudemônia se escoava simuladamente para fitar çou os tornozelos e os pés pequenos calçados por aquêles
aquêle rosto de sílfide, esquecida da própria beleza. As so- sapatos horrorosos de côr branca. Um suor frio escorreu-
brancelhas de pelos castanhos emaranhados pareciam lhe pelo rosto. Não soube como conseguiu voltar à posição
duas pequenas tranças que acentuavam o formato oblíquo antiga, sem passar a mão por aquelas pernas tão bem tor-
daqueles olhos repuxados nos cantos. Verdes, cinzentos, neadas. Eudemônia estendeu o guardanapo para ela sem
azulados, Eudemônía acreditou que estava ficando dal- fitá-Ia. A dra. Méltsia pela primeira vez não conseguindo
tônica, não conseguia acertar com a côr. Os cílios duros adivinhar sua expressão perguntou curiosa:
e longos, ligeiramente recurvados, o rosto não simetrica-
mente oval, porém longo, a testa larga, os cabelos estica- O que sente? a dor apertou? .. Está tão pálida.
dos para trás no penteado de sempre, escondendo o com-
Não ... não é nada ... creio que me inclinei muito ...
primento com aquêle coque entrançado, Uns fíozinhos,
parecendo penugem encaracolavam-se na nuca alva e alta, - Ah!. .. sim!. .. É, natural. ..
o pescoço de acôrdo, os ombros um tanto largos e espadaú-
Eudemônía levantou-se de súbito e caminhou pelo
dos, deveria ter costas magníficas escondidas sob tanta
quarto, mordendo os lábios e esfregando as mãos. A dou-
roupa, os seios eretos. Olhou-lhe as mãos outra vez.
tôra acercou-se dela e perguntou-lha querendo acalmá-Ia.
reconheceu-as imediatamente como sempre considerara
fôssem as mãos de uma médica, longas e finas, a pele
- Por que fica assim perturbada subitamente? Con-
lisa transparecendo as veias azuladas, as unhas ren-
ta-me, Eudemônia. Qual pensamento que a está moles-
tes e róseas, meio chatas, o pulso largo. Eudemônia teve tando? Vamos extermíná-Io ...
vontade de deixar cair o garfo para inclinar-se e olhar
para as pernas. Entre tanta coisa perfeita, olhou para - Oh!. .. você, a senhora não pode. .. ninguém po-
o nariz meio arrebitado, provavelmente ou teria as per- derá. " está no meu instinto... aqui... no cérebro,
nas tortas ou então finas demais, mesmo troncudinhas, compreende? É a primeira vez que penso em livrar-me
de qualquer forma, teriam que ser feias, tal idéia fê-Ia de algo por ser obrigada a refrear. .. creia, dra. Méltsia,
estremecer e não conseguiu soltar o garfo. Não teve cora- que a senhora sim, acabará por enlouquecer-me ...
gem para satisfazer aquela curiosidade. Foi então que
- Que diz?!
olhou para o chão e o rubor subiu-lhe ao rosto como se
ela o tivesse atirado. Perto do pé da doutôra estava o Eudemônia calou ante a surprêsa da outra que recuou
guardanapo que deslizara do colo dela. Eudemônia vacilou como M ela a tivesse esbofeteado, como se tivesse feito
antes de se inclinar. Estendeu a mão metendo a cabeça compreender com aquela revolta, a razão do seu íncontro-
80 CASSANDRA RIOS

lável nervosismo. Mas, não, a dra. Méltsia, voltou à no-


tável calma e silenciou. Eudemônia olhou-a resignada e
desculpou-se sinceramente arrependida de suas palavras:
_ Perdoe-me. dra. Méltsia. Tem razão, preciso dis-
trair-me. De vez em quando me revolto por lembrar que
estou prêsa aqui, sem saber quando sairei. CAPíTULO V

_ Talvez mais cedo do que possa imaginar .. , bem,


se você não pretende terminar de comer a sobremesa, po- Eudemônia foi tomada de uma súbita curiosidade.
deremos ir para a sala de música ... Tinha as mãos trêmulas. Aquêle corredor comprido la-
deado por portas, àtapetado, embora luxuoso como o me-
_ Sim. Vamos - respondeu refletindo sôbre a
lhor hotel da cidade, rescendia a pesadeio. O confôrto,
mentira que dissera para esconder o real motivo daquela
tôdas as distrações que lhe proporcionavam transparecia
perturbação. a uma despedida simulada por sorrisos, a despeuida ao
As duas se retiraram em silêncio. Pelo corredor, Eu- mundo. Sim, porque ali a vida respondia a tudo. Até
demônia de soslaio observava também a sua maneira de . aos mais secretos pensamentos que não deixavam perma-
andar e acreditou que a doutôra era tão imponente quan- necer ocultos, Eudemôma contraiu os lábios e calculou.
to ela própria. Tinha realmente porte de uma grande Ali era o jardim de infância, para uns, para os que se
dama. preparavam para enfrentar o mundo novamente, era hu-
milhação e vergonha, paz e sossêgo para outros, prisão
Só faltava completar as suas observações, descobrir para ela. A carcereira caminhava ao seu lado com an-
a idade dela e. .. estremeceu num transporte emotivo ao dar flexível, imponente e com indiferença, sem imaginar
completar o pensamento. S~..!ltÍJLa_cQnt~ão_pos músculo~ os pensamentos que obsedavam a sua prisioneira. Se qui-
como se fôsse homem e 'corno tal o sexo.zivesse sofrido
~. _._ __. ::.:...:..-- -- -.J sesse fugir, Eudemônia calculou, não precisaria iludir a
uma ereçao: ninguém. Sairia da Clínica, calmamente, sem que ninguém
a impedisse, para isso conhecia as horas em que poderia
Sim, só faltava vê-Ia desnuda ...
se aproveitar da ausência da enfermeira. Mas, o racio-
cínio mantinha-a ali, seria arriscar muito tentar outra
fuga. Mesmo por que o dr. Jasper, já lhe dissera que
quando quisesse ir até à cidade que o avisasse e êle to-
maria providências. Ali provavelmente era apenas a sua
nova casa ...
82 CASSANDRA RIOS
EUDEMÓNIA 83
A dra. Méltsia pousou nela um olhar prudente e reve.
lador, enquanto estendia a mão para abrir a porta à sua
redondos como tampinhas de garrafas. Passou a mão sô-
direita. Apontou para que Eudemônia entrasse, sem di-
bre elas e sentiu uma quase que imperceptível vibração.
zer palavra. Eudemônia parou atrás dela e sem querer
Compreendeu imediatamente quando viu outras mãos se
parecer sarcástica porém delicadamente acrescentou:
apoiarem em cima das chapinhas. Algum efeito deveria
-As senhoras primeiro .. produzir aquela repercussão de ondas, embora fracas,
pelo corpo dos enfermos.
A doutôra sorriu e atendeu-a avançando pela porta
adentro com passos vagarosos. Eudemônia precedeu-a Olhou para a doutôra e quando ela sorriu foi como se
e parou de súbito, já dentro da grande sala. Olhou para confirmasse a sua suposição.
os lados e perscrutou um por um aquêles rostos todos vol-
tados para ela. Não havia dúvida, a sua entrada ali pro- O som do iox que tocava ainda perdurou por alguns
vocara sensação. instantes. Eudemônia desconhecia a gravação, achou-a
sonolenta demais. Não era sem-razão que aquelas cria-
Tinham todos aspecto calmo de inofensivas criaturas turas se comportavam assim, como se estivessem cansa-
e notou a mesma curiosidade que despertava antes quan- díssimas. Observou que uma enfermeira prestava-se uni-
do surgia em outros lugares diferentes daquele. camente para escolher discos e pô-Ios na vitrola. Era a
Eudemônía compreendeu que sempre seria a mesma única ali 'dentro além da dra. Méltsia. O que fêz com que
mulher. Em qualquer parte sem motivo ou não para des- Eudemônia acreditasse que estava entre criaturas ino-
pertar curiosidade, todos os olhares se voltavam para ela. fensivas. Continuou apoiada na mesa com as mãos sôbre
Até aquelas criaturas que julgava agora chegarem à in- as chapinhas, distraidamente. A dra. voltou para o lado
diferença por tudo, porém não, tinham as mesmas carac- depois de ter entregado um punhado de discos para a en-
fermeira.
terísticas de qualquer outra criatura.
Eudemônia deu alguns passos. No centro da sala - Você não quer sentar-se perto da janela, há duas
cadeiras lá ...
havia uma enorme mesa envernízada, Aproximou-se dela,
acompanhada pela doutôra que começou a escolher al-
- Como quiser! - respondeu e olhou-a como se pre-
guns discos empilhados sôbre uma outra mesinha de can-
tendesse fazer-lhe compreender que estava completamen-
to. Eudemônia olhou para cima da mesa e ficou intrí- te desepcionada
- ----, com a tal sala de música.
gada. As beiradas da parte de cima da mesa eram tô-
das cercadas por chapinhas de metal. Não achou Acreditara que fôsse talvez também como as dos
que fôsse enfeite de encrustação e considerou que deve- hotéis, uma espécie de buate, onde ficaria quase que a
sós com a doutôra.
riam exercer alguma função aquêles pedacinhos de metal
Foram para o canto da sala e sentaram-se.

, "
EUDEMóNIA 85
84 CASSANDRA RIOS
Eudemônia olhou para êle e voltou-se novamente
Eudemônía volveu o olhar para ela e comentou ensi- para responder:
mesmada:
_ Não. Basta olhar para o rosto dêle para que eu
_ Sabe, creio que vou considerar esta passagem por compreenda. No fundo, tôdas as 'obsessões são iguais, fa-
êste hospital como uma grande experiência. .. é na rea- zem-nos sofrer, deixam-nos nevróticos, provàvelmente ori-
lidade, embora monótono, muito interessante tudo que ginadas por paixões insatisfeitas, distúrbios sexuais, alu-
já observei. Estranha é a vida e estranha é a maneira
cinações. Resultado da coação feita pela peneira das re-

-
inofensivos, outros traiçoeiros.
--
como devem ser tratados os complexos da mente. ~.
na realidade é nada mais que um alcova de loucos. Uns
--------
- Êstes que aqui estão, se
flexões. Pedras que ficaram para machucar o cérebro ...
expliquei-me bem? ..
- Não há dúvida que sim. - Foi apenas essa
soubessem suportar as complicações que provàvelmente so-
freram, imiscuí dos entre outras criaturas, nem seriam a resposta da doutôra, que a olhou dessa vez tão-fixa-
notados a não ser por certas particularidades a que todos mente que Eudemônia inclinou a cabeça. Depois ergueu-a
estão sujeitos. Por que estão aqui? Por que fugiram do de novo e procurou aquêle olhar tão profundo e provo-
mundo? Também foram trazidos .. , como eu? - vacilou cante. Um arrepio formigou na nuca quando sentiu-o fixo,
ela ao perguntar. A doutôra que a observava atentamente, dentro dos seus olhos, analisando-a, estudando-a, que-
explicou-lhe em poucas p~lavras. rendo arrancar-lhe do íntimo as confissões que ela nunca
revelara a ninguém. Eudemônia estendeu as mãos trêmu-
_ Alguns, sim, porém já estão completamente resta-
las e pousou-as timidamente sôbre as mãos da doutôra
belecidos, capazes de enfrentar o mundo novamente. Ou-
que permaneceu calma sem evitar o contato daqueles de-
tros porque sofriam as perturbações do pensamento e dos
dos gelados e vacilantes.
sonhos que eram verdadeiros pesadelos, obsessionantes.
Está vendo aquêle rapaz de jaqueta escura, lá no outro Eudemônia, num impulso momentâneo, apertou aque-
lado da mesa? las mãos e fechou os olhos para sentir mais profunda-
A dra. Méltsia esperou que ela olhassse para o rapaz mente a sensação que aquêle contato transpartia. Que fa-
zia invadir através da pele lisa o calor que dela emanava,
e depois continuou:
aquecendo-a tôda, um calor gostoso e demorado como um
_ Faz três meses que deixou o hospital, voltou por assôpro descuidado do sol numa noite de inverno. Trincou
livre e espontânea vontade sem razão alguma, talvez para os dentes e segurou aquelas mãos com mais fôrça quando
raciocinar calmamente, ou mesmo para rever os amigos; percebeu que a doutôra tentava libertá-Ias. Abriu os olhos
o caso é que está aí incentivando outros. Gostaria que con- e fitou-a. Impossível que aquela criatura se mantivesse
versasse com êle. Hoje contou ao dr. Jasper, que foi quem assim inabalável, fitando-à sem cansar, sem demonstrar
o ajudou, que ficou noivo. Vai casar. Quer conhecê-lo ?
Seria interessante ouvir sua história.
86 CASSANDRA RIOS
EUDEMóNIA 87
que percebia a sua perturbação, sem sofrer a mesma sen-
sação que ela provocara. conhece; que é a vida senão um mistério de dramas que
se desenrolam de diversas formas, e sempre avessos à
Olhou-a bem nos olhos e disse ofegante: verdade oculta? Ninguém lhe nega, a vida, Eudemônía,
- A senhora venceu... pela primeira vez, coisas foi você quem como uma criança caprichosa, quebrou um
que pareciam insignificantes para mim, vêm à minha ca- vaso e a puseram de castigo. " é a lei. " Você é digna
beça e eu tenho vontade de contar-lhe tudo ... quer ouvir? e capaz de ouvir meu julgamento, falei, antes mesmo que
São lembranças de quando eu ainda era uma garôta ... comece a contar-me a sua vida.

- Você quer contar, Eudemônia? Sente necessidade Eudemônía mordeu os lábios e meditou antes de fa-
de falar? zer a pergunta que surgiu no seu pensamento. A curio-
sidade impelia-a.
- Como? Por que fala assim? Não era isso que a
senhora queria? Pois conseguiu-o. " eu quero contar . - Antes, porém, dra. Méltsia, quero que me respon-
sim ... e são coisas tão tôlas ... porém tão influentes . da algo. Esta pergunta eu tenho certeza que a senhora não
espera. .. Eudemônía demonstrou que também a vinha
Eudemônia tartamudeava as palavras, respirando observando e que percebera que ela a analisava tanto que
profundamente e olhando-a com aquela expressão absor- adivinhava as suas preocupações.
ta, prêsa das recordações, das cenas remotas, do passado
intenso de uma garôta precoce. - Pode perguntar... responderei ...
A doutôra permaneceu em silêncio alguns segundos Quantos anos a senhora tem?
e depois apertando-lhe a mão como se quisesse confortá-
Tenho trinta e três anos, Eudemônia.
Ia ou agradecer sua confiança, foi falando pausada e me-
ticulosa. Eudemônia deu um suspiro de alívio quando ouviu
a resposta, parecia ter desabafado algo, ou melhor sa-
-Você realmente é uma criatura diferente e culta,
tisfeito um desejo. Analisou-a atentamente e de uma
É como uma planta estranha, desconhecida que brotou
maneira tal que percebeu um leve e quase despercebido
entre tantas plantas comuns, que por precaução, com re-
rubor colorir as faces da doutôra. Um regozijo deabólico
ceio de que fosse venenosa arrancaram daquele meio e
invadiu-a ao notar tal acontecimento. Com que a dou-
colocaram numa redoma para que os botânicos a estu- tôra tinha fibras que respondiam?
dassem. .. mas ... o veneno está no seu sangue, no ar,
na sua vida que não pode ser transformada assim, de - Perfeitamente, doutôra l Exatamente como ima-
uma hora para outra, precisa ser tratada com cuidado ... ginei. Avançou nos anos e não percebeu. A senhora ven-
ou então, haverá outras plantas iguais, que a botânica des- ceu a influência do tempo permanecendo intacta às in-
tempéries. A sabedoria conservou-a em vez de cansá-Ia.
88 CASSANDRA RIOS EUDEMõNIA 89

Calou-se um segundo, olhou para os lados e disse: Para o meu quarto. Lá conversaremos melhor.
- A música é suave, o ambiente calmo, porém pre- Estará como no seu, à vontade, se não gostar, volta-
firo voltar para o quarto... a solidão ajudar-me-à para remos.
que seja mais precisa em minha confissão ... sim, por- -Oh! não. Como quiser, c.ontanto que estejamos
que o que vou lhe contar são coisas tão íntimas que fa- a sós.
riam corar a uma pedra. .. atreve-se a ouvir? ..
Perfei tamente.
Ela apenas moveu a cabeça num aceno afirmativo
e a serenidade da sua expressão confirmou que já es- Na última porta Eudemônia leu o nome da doutôra.
tava habituada a tais revelações. Esperou que ela a abrisse e como da outra vez deixou
que ela entrasse primeiro. Depois seguiu-a curiosa para
Levantaram-se. Antes que dessem os primeiros pas- conhecer os aposentos onde ela vivia.
sos, Eudemônia pôs a mão que acabara de soltar as mãos
da doutôra sôbre seu braço e atrevidamente acercando- Eudemônia franziu o sobrecenho mais uma vez de-
cepcionada.
se dela insinuou:
- Posso dizer-lhe algo? Permite que antes de tudo Era uma consultório completo. Exatamente como o
faça um comentário a seu respeito?.. Posso? .. gabinete do dr. Jasper. Um pouco mais confortável e de
melhor aparência, porém completamente hospitalar.
A doutôra nada disse, apenas esperou, sujeitando-se
A doutôra abriu uma gaveta de escrivaninha, tirou
a ouví-la.
de lá um caderno de notas e uns óculos.
- Bem, não é nada. .. não seria elogio nem revela-
Eudemônia caminhou até perto dela, apoiou os co-
ção. .. o espelho já deve ter lhe contado ...
tovelos na escrivaninha e afirmou irrevogàvelmente:
Eudemônia seguira na frente. Apressada e nervosa.
Nada disso. A senhora não vai tomar nota de
No fundo do corredor, a doutôra, indicou para que nada do que eu disser... Caso contrário não abro a
ela a seguisse para a esquerda do lado oposto onde ficava bôca , .. quero que apenas ouça e não que escreva um
o quarto de Eudemônla, romance ...

Eudemônia. curiosa, retardou alguns passos, depois - Está bem, Eudemônia, - concordou ela guar-
alcançou-a e perguntou: dando o bloco na gaveta. Pôs os óculos e deu volta para
o outro lado, foi para o fundo do escritório, abriu uma.
Para onde vamos? porta e depois de acender a luz chamou-a.

"'
90 CASSANDRA RIOS E'UDEMôNIA 91

- Pode vir Eudemônia. Conversaremos aqui. O Não quero parecer uma locutora irradiando o preâmbulo
consultório é muito frio. de uma novela ...

Eudemônia atendeu-a. Enquanto se aproxivama, sor- - Recoste-se no sofá. Verá que os pensamento se
ria lembrando-se da expressão severa que ela usava agora. concatenarão mais fàcilmente. Essa posição dá uma sen-
Parecia mais autoritória com aquêles óculos grosseiros sação de calma, parece que ajuda a aclarar as idéias, em-
de tartaruga. bora pareça absurdo. Não custa atender-me, ou será tão
difícil satisfazer um pedido meu?
Da porta perscrutou o ambiente e concordou.
A voz da doutôra suavizou-se, as palavras se espaça-
Era realmente bastante confortável. As paredes es- ram, e por um minuto Eudemônia julgou-a uma ver-
tofadas, o chão todo atapetado, sofás, duas poltronas, dadeira criança esperando que ela se resolvesse a con-
uma escrivaninha e o divã onde provavelmente ela a man- tar-lhe uma estória de fadas. Sorriu maliciosamente e
daria deitar. aproveitando-se da sua paciência propôs.
Nesse mesmo instante a doutôra apontou o divã - Com uma condição... permita que eu recline a
e convidou-a para que se aproximasse: cabeça em seu colo... prometo comportar-me bem ...
Venha, Eudemônia, deite-se aqui é ... Os olhos esgazearam-se lânguidos e cheios de in-
Já sei, esperava que dissesse isso, doutôra ... tenção. Dessa vez não poderia passar despercebido o que
significava aquêle olhar.
interrompeu, aproximando-se do divã. Porém não
deitou. Voltou-se para ela e lhe disse: - E que poderia fazer? Serás que para tudo você
- Prefiro sentar-me naquele sofá ao seu lado. Con- sente necessidade de impor condições? Não. Decidida-
tar-lhe-eí tudo com uma condição. Quero observá-Ia ... mente não. Estenda-se no sofá. Eu sentarei na poltrona
ao lado.
enquanto falo. .. concorda?

- Por que não? Não há nenhum mal nisso. Tanto A doutôra ergueu-se aparentemente nervosa. Per-
faz o sofá como o divã. dia a paciência. Estava se tornando uma criatura igual
às outras, não tolerando mais tanta afronta. Eudemô-
Eudemônia sentou-se ao lado dela. Olhou-a bem nía ficou calada enquanto ela se afastava para sen-
ncs olhos e disse como se fôsse começar a contar: tar na poltrona. Cruzou as pernas, ajeitou os óculos e
depois ficou calma novamente como se fôsse muito fá-
- Bem... eu tinha quinze anos... não. Não está
cil para ela recobrar o domínio.
bem assim ... preciso pensar um pouco. .. pode esperar?

"'
92 CASSANDRA RIOS
EUDEMÕNIA 93
Eudemônía não insistiu. Sentia-se íncontestãvel-
se dizendo que tinha quinze anos e que tôda criança.
mente satisfeita por conseguir assim a pouco e pouco
provocar o ânimo daquela mulher. Era como se depois fazia a mesma coisa, quando por acaso a surpreendiam
de desperdiçar tremendos esforços, conseguir envergar espiando também pela janela das empregadas. Fazia-o
porque ouvira urna vez ~ jardineiro marcar encontro com
o próprio aço.
a camareira e depois quando ela se afastara, segui-Ia dís-
Estendeu-se no sofá e cruzou as mãos sôbre a ca- farçadamente. Eudemônía que tudo presenciara seguiu-o
beça. Fechou os olhos e depois de relutar contra a ex- por sua vez e o viu entrar no quarto dela fechando a
pressão da doutôra que retivera estereotipada no pen- porta depois de olhar para os lados com receio que o
samento veio-lhe a lembrança daquele tempo distante; tivessem notado. Não perceberam quando ~udemOllla re-
finalmente, num fio de voz repetiu aquelas palavras. cuou rápida escondendo-se atrás de um pequeno arbusto
Sombras se moveram e se tornaram nítidas e aquela cena perto da porta. Logo em seguida ela correu uaudo volta
se reproduziu vivamente na memória. Era um início em tôrno da casa de empregados que ficava no runuo do
que marcava a direção que ela haveria de seguir no de- enorme pátio. Como supusera, encontrando a janela aber-
curso da sua existência. Um pedaço de passado que se ta, subiu num pequeno caixote que encontrou nas imeuia-
revelava em palavras lhe subiram aos lábios espaça- çõe e espiou. A cena que viu arrepiou-a tôda ...
das, recalcadas e cheias de inconfundível prazer.
O jardineiro, que era um forte rapaz, despira-se
Entre o silêncio das pausas em que a voz de Eude- ràpidamente e acabava de deitar-se em cima da cama-
mônia ressoava, profunda e quente, a respiração das duas reira. Em amplexos, excitadíssimos fizeram os dois, sob
se confundia. o olhar curioso e abobalhado de Eudemônia, os mais de-
pravantes atos que se pudessem imaginar. Assim, Eude-
mônia ficou conhecendo tal como seria a relação sexual
Era uma tarde quente de abril. Eudemônia des- entre um homem e uma mulher, exatamente como lera
cia as escadas da grande mansão onde estava morando em livros que tirara às escondidas da biblioteca.
em uma cidade do país europeu. Qúando os dois se separaram, e o jardineiro depois
As vozes do tio e de um amigo dêste despertaram- de se vestir saiu do quarto, Eudemônia ficou ainda es-
lhe a atenção, pois pareciam entre sussurros querer se- piando pela janela a camareira, que continuava desnuda,
gredar alguma coisa importante. estirada sôbre a cama, como se estivesse extenuada. Ou-
viu-os marcar novo encontro, que seria no dia seguinte, às
Encostou-se à porta da biblioteca e espiou pelo bu- mesmas horas. Achou, embora o jardineiro fôsse um
raco da fechadura. Era curiosa e travêssa. Desculpava- rapagão, forte e bonito, que o homem sexualmente era

..•
EUDEMóNIA 95
94 CASSANDRA RIOS
corpo mais belo que já vi. A bôca mais gostosa do mun-
horroroso, e contraiu a expressão do rosto, sentindo náu-
do ... e como beija a danada ... como sabe ... E a pa-
seas pelo que acabara de ver.
lavra que êle proferiu fêz com que Eudemônía corasse
Curiosamente ainda perscrutou o corpo da cama- de vergonha, embora ninguém senão ela a tivesse escu-
reira que se mantinha na mesma posição, as pernas es- tado. Eudemônia continuou atenta. A vergonha fizera
tiradas, meio separadas, os braços pendidos fora da com que ela perdesse um trecho de tão fascinante coló-
cama estreita, os olhos cerrados, como se estivesse dor- quio. A bandida é mesmo uma dessas coissa que se diz
mindo. Sentiu então uma sensação estranha, um arrepio feita pelo diabo. Tudo nela é frenesi... porém... aí é
de mêdo, quando olhou para seu ventre e viu o monte de que está o frenesi verdadeiro. " tudo por dinheiro meu
Vênus. caro ... e a que preço! Ela é um verdadeiro pântano de
Desceu da janela de um salto e correu, sem parar, areias movediças para sugar a fortuna dos outros .. -_
até que alcançou o quarto, lá se trancando durante horas aceita qualquer sujeitinho endinheirado, isso é o que
a fio, a refletir sôbre o que vira. me revolta. .. Ah! Paulo, é realmente um crime que eu
ccmeto contra mim mesmo. .. tenho que visitá-Ia umas
Quando a chamaram para o jantar, Eudemônia . duas vêzes por semana, senão enlouqueço. .. E pensam
resolveu sair. Aquela cena excitara-a, deixando-a assus- que eu perco dinheiro no jôgo!!!
tada durante todo o tempo e sem poder compreen-
der a razão porque, se imaginara no lugar do jardi- O tio de Eudemônia, interessadíssimo torcia as mãos
neiro. Sim, refletiu já naquela idade, que o prazer para enquanto o outro continuou com suas minuciosas nar-
ela seria maior se pudesse dominar e fazer sentir, rece- rativas sôbre a diabólica criatura.
bendo do prazer da mulher a emoção do desejo que sen-
- A mulher é o verdadeiro prazer do mundo. .. o
tisse também. Durante vários dias ela esperou que o jar-
único. .. delicadas, sabem fazer carinhos, deixam-se ma-
dineiro traçasse o mesmo traj eto, para logo em seguida chucar, beijam e mordem, amam e odeiam com uma lou-
ir se colocar no lugar de sempre para espiá-Ios. cura que embriaga... São papoulas das quais sugamos
Aquilo tornou-se-lhe distração cotidiana, que acabou o ópio, como verdadeiros viciados... E nós, os brutos,
por se converter em coisa sem-importância, indiferente- com a nossa fôrça rústica, queremos fazer carinhos, com
mente deixou de ir assistir ao deleitoso espetáculo das as mãos grandes e pesadas. .. somos uns felizardos por
quatro da tarde. podermos ainda tocar nessas preciosidades frágeis e ain-
da conservá-Ias... Quem não provar dessa mulher,
Foi então, naquele dia quente e monótono que ela
Paulo, não provou do melhor no mundo. " diante daquele
ouviu o sussurro das vozes na biblioteca.
que não a conhece, considerar-me-ei um verdadeiro e real
- Paulo! - Falava o amigo do tio, entusiasmado. felizardo ...
- Aquela mulher é um verdadeiro assombro! Tem o

,
96 CASSANDRA RIOS
EUDEMôNIA 97
Onde mora êsse tesouro, êsse dilúvio ... êsse vul-
ção? Dá-me o enderêço dela, Valter ... seja amigo dêste meira aia que tivera. Gostava d~ apertar a cabeça _con-
pobre velho, que já se contorce como se estivesse possuin- ~seUs seios gor.9-~ e sentia uma estranha ~ls~ção
ao pensar que já~ havia.J3ugado, quando ainda era de
do a tal musa. .. diga-me o nome dela.
colo . .J:!;mbora fôsse muito criança e não maliciasss, com-
Eudemônía ofegando, apertou mais ainda a cabeça preendia que nãõ podIa falar SODre 03!:!e sentia. Assim,
contra a porta prestou atenção ansiosa para saber o aos qumze anos ja se anansava, remeruoranoo tuuo
nome e o enderêço daquela mulher. As vozes discutiram, com exatiuao ue Impecável raciocimo, 1'or um mstatne
antes de chegarem a um acôrdo e, finalmente, depois pensara em contar ao paI tais ideias e pemr-lhe que lhe
de uma série de advertências e conselhos, Eudemônia ~xpllcasse melhor Põrque ela nao pensava em rapazes mas
ouviu-o dizer o nome e explicar onde ela morava. Sil- SIm em moças, ào contrário das ~gas. Porem,--;nãüe-
vana Monteiro deveria ser pseudômino, soletrou o en- rentemente o tempo passava sem que ela se preocupasse
derêço e ia tornar a prestar atenção na conversa quando seriamente com o estranho fato de tal uiterença em seu
ouviu os passos que se dirigiam para a porta. Eude- caráter.
mônia correu escada acima, de volta para o quarto. Abriu
a gaveta da cômoda e ofegante marcou em um papel Na noite em que ouviu a conversa dos dois homens
o enderêço de Silvana. que tivera lugar na biblioteca, Eudemônia começou a te-
cer um plano. Um sonho qus teria que se realizar cus-
tasse embora muito dinheiro ... 'I'ôda a sua mesada. Oito,
* pratas, dissera o amigo do tio. Pois ela haveria de dar
Durante tôda aquela noite, Eudemônia pensara em as doze notas que recebia do pai, para aquela mulher.
Silvana, desenhando-a no pensamento, imaginando-a com Dentro de dois dias receberia nova mesada e dentro de
diversas expressões, querendo dar-lhe um rosto e estabe- dois dias iria procurá-Ia. Eudernônia não vacilava. Era
lecer as linhas do corpo que o amigo do tio considerava realmente destemida, calculista e corajosa. Enfim, já ra-
o mais belo do mundo. Como seria? Eudemônia pensara ciocinara que por dinheiro, como dissera o amigo do tio,
e_meditara e depoi~~ç~u a se intrigar por estar as- Silvana se entregava a qualquer um. Apenas uma coisa
sim exasperada, por causa de uma mulh~1Tetirae pretendeu esvanecer-Ihe os traçados planos.. "O que fa-
não achou certo_>-IDill', num raciocínio ~m:~maturo con- ria na cama com aqiiela "mulher r'' Depois de se martiri-
c~ que o tio ~stava com a razão. A mulher .devería ser zar até quando amanheceu, a resposta acalmou-a para
muito mais gostosa do que o homem. Jádlaquela idade, que ela pudesse dormir descansada e confiante.
Eudemônia começara a fazer retrospe~tos~;-econstituin-
~ iria pagar, não é t. Pois que a outra desempe-
do fatos e preferências, considerando qu~ desde peque- .nhasse todo o papel!

----------
nina sentira atração pela mulher. Começara com a pri-
CAPíTULO VI

Dois dias depois, precisamente, o tio Paulo que se


responsabilizara por ela, enquanto o pai viajava a ne-
gócios, entregou-lhe o envelope com as doze notinhas
que antes de partir Andréia Forbes, pusera em envelopes
equivalentes aos meses qUe precisaria permanecer longe
dela.
Eudemônia contou-as e recontou-as, trêmula e an-
siosa como nunca dantes. Até o tio reparou em sua ex-
citação e sorriu perguntando-lhe se ela pretendia fazer
alguma coisa de extraordinário com aquêle dinheiro.
Eudemônia foi para o quarto e abriu o pequeno
cofre onde guardara durante dois meses vinte notas
iguais às qUe acabara de receber.
Iria com todo aquêle dinheiro visitar Silvana. Com
trinta e duas notas, das quais conhecia bem o valor. Dar-
lhe-ia doze, as outras serviriam para mostrar o quanto
era rica.
i i
Abriu o guarda-roupa e pela primeira vez na vida
se preocupou com a escolha do vestido que iria usar. De-
cidiu finalmente, que sairia com um tailleur de lã, im-
poria mais respeito e como já lhe haviam dito, ela pare-
cia mais velha.
EUDEMONIA 101
100 CASSANDRA RIOS
cou olhando-a com os olhos arregalados, a garganta sêca.
Na rua, não pensou que pudesse chegar a tremer Completamente atordoada,. tremendo como se estivesse
tanto, mal teve voz para chamar o taxi que passava. diante de um fantasma.
Foi fácil encontrar a casa de Silvana, que ficava Silvana olhou para a garôta tão bem vestida, pa-
na parte baixa da cidade. Eudemônia mandou que o mo- rada ali à porta, com aquela expressão de bôba, assus-
torista desse umas três voltas antes de se decidir a des- tada com delicadeza perguntou-lhe:
cer, e não desceria, se êle, desconfiado de que ela estives-
- Desculpa-me se me demorei. Estava tomando ba-
se abusando de sua paciência e que nem dinheiro tivesse
nho e como estou sem empregada ... bem ... o que deseja,
para pagar, foi logo abrmdo a porte e resmunganuo :
senhorita? A quem procura?
- Se a senhorita não tem dinheiro para pagar a
Eudemônia engoliu duas vêzes e depois respondeu,
corrida nao precisa ficar tão nervosa e abusar da mí-
engasgando na primeira sílaba:
nha paciência. Deixe seu enderêço que eu irei cobrar do
seu paI. .• - À Si!. .. Si!... vana ...
Eudemônía abriu a bôlsa ràpidamente e pagou. O - Sou eu mesma. Quer entrar ou se trata de as-
carro se foi e ela ficou sozinha a olhar para aquêle so- sunto rápido? Algum recado? -- Perguntou ela curio-
brado com janelas e portas fechadas. Silencioso e com as~ sa, perscrutando a garôta,
pecto de estar abandonado. Num esfôrço supremo, que Eudemônia jamais se es-
Subiu os degraus correndo e tocou a campainha, de- queceria, respondeu audaciosamente:
pois de contar até três para ter coragem de agir. Ela - Preciso falar com a senhora particularmente ...
jamais voltaria atrás, depois de ter chegado até ali. é assunto muito importante... mas não é recado... -
Esperou nervosa. Nenhum ruído. Parecia que não Como sempre petulante, como se· tivesse sofrido uma
tinha ninguém na casa, realmente. Enfurecida, não ad- ofensa, Eudemônia esclareceu, com isso sentindo-se mais
mitindo tal decepção, Eudemônia calcou o dedo na cam- calma e capaz de ir até o fim: - Não sou mensageiro ...
painha e ficou aSSIm por bastante tempo. - Desculpa-me. Não quis ofendê-Ia, senhorita. -
Estremeceu, quando ouviu uma voz gritando lá de Disse a outra, abrindo mais a porta, para que Eudemô-
nia passasse.
dentro:
* * *
_ Espera... calma... já vou ... A sala para onde Silvana a levou era bastante lu-
:""uosa e confortável, embora sombria, com um aspecto
Era Silvana. Pela beleza da mulher que abriu a p<ft-
ta, Eudemônía logo a reconheceu. Só poderia ser ela. Fi-
102 CASSANDRA RIOS
EUDEMONIA 103
que considerou romántico, transparecendo a luxúria. Eu-
demônía sentou-se na poltrona que ela lhe indicou e quan- -
Meu bem, queridinha minha, o que você tem?
do Silvana ia falar o telefone tocou interrompendo-a. Está tão nervosa. .. não vai me contar o que quer? Não
Pediu licença e foi atender. O breve "alô" fêz com que tenha mêdo , .. Silvana não vai mordê-Ia ...
Eudemônía sentisse o primeiro respingo de eiúme. Me- Eudemônia fixou os olhos no decote por onde os
loso, excitante, calmo, quente. Uma porção de adjetivos seios da mulher surgiam róseos e pontiagudos, quando
Eudemônía empregou, para qualificar a voz de Silvana, ela se curvara à sua frente. Silvana inclinou o queixo
que se desfazia em "mon chéri", "mon amour", "trés para verificar o que Eudemônia estava olhando. Sorriu
bien et merci", "Demaín": E a entrevista por telefone maldosa e se desculpou sentando direito afastando-se li-
terminou. Amorosamente ela marcara a hora para rece·· geiramente.
ber alguém na noite seguinte.
Um silêncio profundo perdurou, por alguns instan-
Sílvana voltou-se para o lado de Eudemônia e disse- tes. De súbito, Eudemônía, que inclinara a cabeça e não
lhe curiosa: se atrevera a olhar mais para aquela mulher realmente
satânica, como havia dito o amigo de seu tio, levantou-se
- Pode começar a falar, senhorita. Creio que nin-
e olhando-a quase sem poder firmar-se nas pernas disse.
guém mais nos interromperá. Não espero outros telefo-
nemas. O que deseja? ---!. Voltarei outro dia. " não posso falar. .. não me
atrevo ...
Eudemônía mordeu os lábios e como decidira, en-
quanto ela se demorara naquela conversa com o desco- Silvana ergueu-se também e se aproximou dela mui-
nhecido importuno, tentou revelar o porquê daquela vi- tíssimo curiosa, mais intrigada ainda com as atitudes da-
sita. quela garôta que parecia temê-Ia e ao mesmo tempo de-
sejar ardentemente alguma coisa.
- .Silvana, isto é, senhora eu vim aqui para. .. eu
- Por que não pode falar? É algo desagradável ...
queria. .. eu gostaria. .. eu pretendo. .. bem... eu ... por certo ...
~
Gaguejou e torceu os dedos estalando as juntas, Eudemônia percebeu que ela a estava julgando fi-
mordeu os lábios e não tinha coragem para completar. lha de algum dos seus amantes, que vinha reclamar.
Silvana acercou-se dela e irrefletidamente, por deli- Foi então que a coragem voltou a dominá-Ia. Mostrou
cadeza, num seu jeito natural de tratar as pessoas pen- num gesto trêmulo tôdas as notas que estavam espalha-
deu os mãos dela nas suas e como se compreendesse o das dentro da bôlsa, que abrira.
nervosismo quis ajudá-Ia a falar, tornando-se mais Ín-
tima; Silvana cerrou o sobrecenho e inclinando a cabeça
para o lado, tartamudeou:

"
104 CASSANDRA RiOS EUDEMôNIA 105

- Não compreendo ... Meu nome você já sabe, não é assim? Pois bem,
agora que somos amigas e que nos conhecemos, diga o
Eudemônia olhou para ela e pareceu ler seu pensa-
que quer, mostrando-me todo êsse dinheiro. Por que disse
mento. Por certo Silvana estava julgando ainda que
que é para mim? Antes que responda afirmo que não co-
ela queria comprá-Ia para que se afastasse do suposto
nheço seu pai, nem ninguém de sua família ...
amante. Eudemônia avançou um passo e apertou-lhe o
braço. - Nem meu tio? Perguntou Eudemônia curiosa, sa-
tisfeita por ter se antecipado a êle.
_ Compreenda por favor, não me faça falar ... não
é o que está pensando, eu queria. .. olha... dou-lhe tudo r - Nem seu tio. Palavra! - Confirmou Silvana es-
isto ... tirando a mão num gesto de juramento honroso.

Eudemônia tirou da bôlsa as doze pratas. Estava trê- - Melhor assim... não preciso pedir que não lhe
mula e com os olhos arregalados. Engolia saliva com se conte que eu vim aqui. E se êle vier por acaso. .. não
estivesse tomando água. Estava pálida e exasperada corno diga que me conheceu, por favor ...
se quisesse convencer alguém a vender algo proibido.
- Mas. .. que esquisito tudo isto. " o que há afi-
Assim o era na realidade.
nal? Você está me deixando cada vez mais curiosa e in-
Silvana deu um profundo suspiro e sentou no sofá trigada. Juro que não a deixarei sair daqui se não me
puxando Eudemônia para perto. Olhou-a com calma. contar a que veio ...

Assim, quieta, pare de tremer e responda. Qual é o Silvaria estava realmente curiosa. Tal advertência
seu nome? satisfez Eudemônia que se aproveitou inteligentemente
daquele interêsse.
- Eudemônia... Forbes ...
- Já que é assim, adivinhe ...
- Oh! ... a filha do milionário Dr. Andréia Forbes?
Certo? - Como? Que pensa que sou? Ledora de sorte, car-
tomante? Ora meu bem, eu sou muito burrinha quando
Silvana não escondeu a satisfação por estar ali a filha se trata de adivinhação, prefiro que fale. Se precisa de
do conhecidíssimo magnata. um estimulante vá se preparando, enquanto vou lá den-
Eudemônia afirmou com a cabeça, meditando se fi- tro buscar uns biscoitos e refrescos, está bem?
zera bem em revelar o verdadeiro nome, em vez de dizer Eudemônia respondeu que sim. Silvana sabia real-
aquêle que já havia escolhido. mente cativar as pessoas. Fôsse uma outra a teria pôsto
Sílvana, ainda segurando-lhe as mãos, continuou ... de lá para fora a correr, assim pensou enquanto ela se
106 CASSANDRA RIOS EUDEMôNIA 107

demorava. Como era bonita a danada. Eudemõnia usou Recobrando a voz, Silvana perguntou enquanto ana-
as palavras do homem que lhe provocara interêsse em lisava aquela menina, com mais atenção como se pro-
conhecer Silvana. Os cabelos negros e compridos caindo curasse resolver algo que precisava decidir:
negros e puxados, grandes e brilhantes. O corpo esbelto
Quantos anos tem você? ..
clássico, naquele tempo tudo que era belo e bem feito,
Eudemônia considerava clássico e extraordinário. Dezessete . .. completos ...

Silvana voltou, trazendo o que dissera que fôra bus- - Não minta, Eudemônia... quantos anos?
car. Depois de pôr os pratinhos e dois copos sôbre a me- - Dezesseis ...
sinha perto do sofá e de servi-Ia, voltou à conversa:
Os olhos de Silvana maliciaram, desacreditando.
- Resolveu como vai falar? Sabe que sou uma cría-
Eudemônía confessou:
tura tão curiosa que quando alguma coisa me preocupa
não consigo dormir à noite? Então? Você vai dizer o que - Quinze ...
quer? i : '-'-!
A voz saiu então com raiva e baixinho.
Eudemônia empurrou os pratinhos e o copo e ner-
vosamente tentou: Síivana balançou a cabeça, arrancou o dinheiro das
mãos dela, guardou-o na bôlsa, fê-Ia levantar-se agarran,
- Não quero comer nada... não tenho tempo .. , do-a pelo braço e disse:
eu. .. vou falar ...
- Criança louca. Volte para casa... ainda não
- Então fale. - Atiçou a outra, não consentindo aprendi a explorar crianças desajuizadas como você ...
que ela se demorasse mais naquele mistério. Que pensa que sou ?

Eudemônia abriu a bôlsa novamente e tirou as doze Empurrou-a para a porta, enfurecida.
notinhas que já separara.
Eudemônia começou a chorar num descontrôle de
- Se achar pouco eu lhe darei mais depois. .. de ... nervos. Desprendeu-se das mãos dela e correu de volta
para a sala. Atirou-se de bruços no sofá. Chorando e es-
A pausa dessa vez foi significativa e reveladora, Eu- perneando como uma criança que não quer deixar escapar
dernônía ofegava olhando para o corpo de Silvaria, <rue a oportunidade de satisfazer um capricho.
ficou atoleimada não querendo acreditar que interpre-
tara com exatidão a proposta daquela 'garôta. Silvana caminhou para ela e abraçou-a carinhosa-
mente, apertando-lhe a cabeça contra o peito.

,
108 CASSANDRA RIOS
]l}UDEMôNIA 109
Eudemônía soluçou baixinho e suas mãos audaciosas
prenderam as mãos de Silvana, beijando-as com um fre- contra aquela bôca de criança. Era um novo prazer para
nesi louco. a mulher que vivia do amor.
_ Não me mande embora... sonhei tanto com A pressão dos braços de Eudemônia em tôrno de seu
você. .. não me mande embora... quero ficar com pescoço, quase a estrangulava. Eudemônia era tôda cha-
você ... só um pouco ... há tanto tempo que sonhava ma e fogo, audácia e desej o. Com gestos nunca estu-
com isto ... dados nem conhecidos, enfiou a mão pelo decote de Sil-
vana e agarrou-lhe o seio, levando-a à bôca, que se des-
_ Como! De onde me conhece? Há quanto tempo? prendeu ávida dos lábios de Silvana para a outra fonte
Silvana tinha certeza de que nunca vira aquela me- de prazer. Debruçaram-se no sofá enquanto suspiros ex-
mina em lugar nenhum. citados fugiam da bôca da mulher libertina.
Silvana desnudou-a e nem se importou com a apa-
Eudemônia vacilou, porém não mentiu. rência fresca daquele corpo, que começava a tomar formas
de môça. Beijou-o num frenesi doido e exaltado. As mãos
_ Há dois dias apenas me falaram em você ... foi
umedeceram-se e ela também estremecia enquanto aca-
um amigo de meu tio ...
riciava e se fazia acariciar, dirigindo com as próprias
Contou exatamente e como acontecera, enquanto isso
continuava se apertando contra ela, beijando-lhe as mãos
acariciando-lhe os pulsos.
--... - - -
va como um autêntico machinho.
:-
~-
mas os gestos e carinhos da menina, que se revelava ati-

Os dedinhos de Eudemônia se aprofundaram no mon-


Silvana olhou para aquêle rostinho debruçado no seu te-de- Vênus de Silvana. Avançaram como uma seta para
colo, ansioso, querendo sentir a nudez de seus seios, per- a meta traçada. Sem se importar, sem calcular a inex-
cebeu o desejo naquele olhar, que se esgazeava em ex- períência, instintivamente, acariciou o que acertadamente
pressões inconfundíveis de pecado e luxúria. julgou ser o ponto crítico. Depois, quando sentiu sob
o corpo, os estremecimentos de Silvana, invadiu-a mais
Eudemônia, que nunca supusera ter coragem para para dentro, corno se quisesse ver até onde poderiam avan-
tanto, ergueu os braços e passando-os ao redor do pesco- çar seus dedos as entranhas daquela mulher que tam-
ço de Silvana pediu, estremecendo de ansiedade: bém a estava possuindo.
- Dá um beijo ... um só ... Silvana que até então se reservara entre beijos e ca-
rícias superficiais, num afluxo exasperante, na incons-
Sílvana vibrou com a audácia daquela jovem impe- ciência do espasmo que sofria, deslizou a mão para a pe-
tuosa. Inclinou a cabeça sem vacilar e esmagou os lábios quenina fenda virgem, fazendo-a gemer de dor e saltar
para o lado como se tivesse levado uma fincada ardida.
0436 911~
EUDEMONIA 111
110 CASSANDRA RIOS
Durante semanas as visitas de Eudemônia se fize-
Sílvana correu para ela, que parara assustada em ram diàriamente. Estranhou e desacreditou sôbre o que
pé no meio da sala, e abraçou-a desfazendo-se em pala- o amigo do tio dissera, pois nunca a viu receber homem
vras melosas: algum. Quis perguntar a ela se era verdade que antes
_ Perdão, minha pequena, perdão ... fiquei lou- de conhecê-Ia tivera muitos amantes, mas Silvana mu-
ca. .. você é realmente um vesúvío de lascívias ... dava de assunto. Até que descobriu que ela os recebia
durante a noite, desde logo que ela se ia, depois das seis.
Abraçaram-se as duas e continuaram durante horas
nos mesmos amplexos. Quando, finalmente, resolveram A diretora do colégio, onde Eudemônia estudava, no-
separar-se já era noite. Silvana, em dado momento, te- tificou suas faltas, 'e então as escapadas para a casa de
mera pela possível confusão que poderia estar causando Silvana começaram a se tornar mais difíceis.
a demora de Eudemônia ali. Ajudou-a a se vestir e depois Eudemônia se apaixonra por aquela mulher. Quando
de prometer que a receberia, quantas vêzes ela quisesse descobriram que ela a visitava, um dia em que a gover-
mandou-a ir embora. nanta a seguiu, sem desconfiarem de nada, acreditando
Quando ia fechar a porta, chamou-a para que vol- que fôsse apenas amizade que a levava a tais visitas à
tasse e lhe devolveu o dinheiro queEudemônia deixara em casa suspeita da esperta meretriz proibiram-na de voltar
cima da mesa. Eudemônia insistiu para que ela o acei- por lá, explicando-lhe que se tratava de uma mulher de má
tasse. Sílvana, porém, não quis aceitar, prometendo fazê- reputação.
10 na próxima vez. Eudemônía, revoltada, defendeu-a de tôdas as ma-
neiras, mas de nada adiantou.
•.•* *
Um dia conseguiu ir vê-Ia e contou-lhe tudo. Silvaria
Preocupados estavam todos realmente e mais ain- também considerou que seria melhor para ela que não
da ficaram quando a viram chegar com aquêle aspecto voltasse mais lá, pois haviam feito ameaças, e agora ela
de ébria. Tomaram-na por doente e quiseram chamar o conhecia seu tio e achava-o muito severo. Eudemônia pro-
médico. Eudemônia depois de gritar para que a acreditas- meteu não procurá-Ia mais. Quis cumprir. Era assim. Das
sem que não lhe acontecera nada, foi para o quarto e lá decisões rápidas. Um dia tomou um táxi e para matar a
ficou até à tarde seguinte. saudade, pretendendo apenas passar em frente da casa
dela, viu lá parado o carro do tio. Desceu e tocou a cam-
Silvana era uma sombra empanando-lhe a visão. Não painha. Silvana não a atendeu. Impaciente calcou o botão
havia coisa onde não aparecesse o rosto daquela mulher. muitas vêzes sem obter resposta. Então entrou no táxi
Nessa tarde voltou a procurá-Ia e foi' recebida com en- que mandara esperar e ficou à espera. Algumas horas se
tusiasmo. Silvana sempre chamando-a de "minha pe- passaram e Eudemônia não desistiu de os esperar.
quena."

iAL

,
CASSANDRA RIOS EUDEMóNIA 113
112

Finalmente a porta se abriu e o tio Paulo apareceu. desfizesse as malas e saísse com êle para jantar na cidade
Depois dêle, Silvana. e se distrairem j untos pela primeira vez.
Foi assim que Eudemônia começou a esquecer Síl-
Eudemônia apertou os olhos e mordeu os lábios, vana. Odiando-a primeiro e sentindo desejos de matá-Ia.
compreendendo tudo. Apesar de tudo, tornou-se mais amiga do tio, começando
Paulo beijou Silvana antes de se afastar. Eudemônía a sair com êle quase tôdas as noites. Para cinemas, tea-
gritou de dentro do carro exaltada e com ânsias de ma- tros e outras diversões. Lugares onde ela ia procuran-
tá-los aos dois. E afirmou que se tivesse um revólver não do olhos com expressões iguais aos de Silvana. Mulheres.
que fôssem como ela. Porém, eram muito difíceis tais
haveria de hesitar e atiraria.
revelações e ela se contentava em tecer sonhos e planos
- Rufiões. .. Hipócritas ... para quando ficasse mais velha e pudesse sair sõzinha em
busca de novas aventuras, sem que ninguém a seguisse
Antes que o tio a alcançasse mandou o chofer que
para depois censurá-Ia e proibí-Ia de continuar.
corresse a tôda pressa de volta para casa. Lá chegando,
A vida apresentou-se-lha cheia de quadros belos que
foi buscar o resto de dinheiro que faltou para completar
ela haveria de viver. Conquistas que haveriam de superar
o preço da corrida e voltou para o quarto começando
e de muito,' a impressão que Silvana deixara.
por arrumar as malas.
Mulheres que seriam fiéis porque senão... Eude-
Quando o tio chegou, nervoso e preocupado com mônia, uma noite, jurou, olhando para o céu, de lá da
o que acontecera, já a encontrou pronta para partir. janela do quarto".
o- "Haveria de matar a traidora".
-- Para onde pensa que vai?
_ Vou encontrar-me com papai, estou com sau-
dade dêle ... , ,

o tio chamou-a para a biblioteca e acreditando


como Silvana em poucas palavras lhe dissera, que Eude-
mônia se revoltara por não poder ser sua amiga a êle
sim, quis explicar-lhe que para êle não ficava feio ir lá.
Que êle era homem e que ninguém comentaria ao passo
que ela sendo uma mocinha ficaria sendo mal vista ...
Considerada tal como Silvana era ...
E discutindo e explicando coisas que mais a enfure-
ciam, o tio conseguiu, finalmente, fazer com que ela
CAPíTUULO VII

Cinqüenta e seis notas custara Silvana,


A primeira mulher que ela comprara. Pagara bastan-
te caro pelo mal que ela lhe fizera. Entretanto Eude-
nia não se importava com a suposição de que já não era
virgem. Não era uma criatura .igual às môças do321é-
gío, que s~ ruborrizavam diante de tudo e cÕfiSfdêiavam a
VIrgindade da mulher _um s~ado deyer_ ª-té ~ -diá-d~-
~a.riiento:::-Mêsmo porque ela nem sequer pensaria em
casar. Como lera em diversos livros científicos, havia a
probabilidade evidente de que com o tempo voltasse a
ficar como se nada a tivesse tocado, muito menos um
simples dedo de mulher.
A precocidade de Eudemônia se destacava entre tô-
das que a cercavam, ouvindo-a falar das suas esperanças,
revelando-as de todo, porém, dando a entender que
era uma revolucionária contra certos preconceitos. As
amigas se ruborizavam e exclamavam admiradas com as
suas conversas, porém quando ela chegava iam procura-
Ia curiosas para ouví-Ia expor seus pensamentos e idéias.
Um dia, conseguiram fazê-Ia aceitar um namorado.
um par para acompanhá-Ia ao baile anual do colégio
116 CASSANDRA RIOS 117
EUDEMõNIA
onde estudava. Foi no comêço um suplício imaginar o
te recebeu a noticia de que seu tio falecera. Fôra atro- I·
contato daquele rapaz durante as danças, não obstante pelado. Morrera instantâneamente com a batida que re-
fôsse um dos mais apreciados pelas suas amigas. Depois, cebera na cabeça. Fôra arremessado longe, quando descia
habituou-se a êle sem entretanto deixar que êle se tor- do seu carro, por outro automóvel que entrara impru-
nasse muito Íntimo. dentemente na contramão na rua onde êle estacionara às
Foi mais uma experiência pela qual ela passou quan- duas horas da tarde. Quando Eudemônia ouviu o nome
do se deixou beijar pela primeira vez. Friamente per- da rua, sentiu um frêmíto estranho, que nunca conse-
mitiu que êle a abraçassse, não oferecendo resistência, guira esquecer. ~le morrera na porta da casa qe Sil-
na noite em que êle a levou para passear ao luar no jar- vana. Quando fazia uma de suas custosas visitas. Teve
dim que se tornara o ponto mais procurado pelos casais de ímpetos de ir até lá e .acusá-la do que acontecera, po-
namorados daquela cidade. rém, só por um instante; não a impeliu tal pensamento.
Nessa mesma noite, o doutor Andréia chegou e no dia se-
Eudemônia completara na noite anterior dezesseis guinte, após o entêrro, ao qual Silvana não compareceu,
anos. Sentia-se por isso mais velha. }evou-a consigo para a cidade onde estava trabalhando há
Quando êle a beijou, não sentiu nada. Absoluta- nove meses.
mente nada, nem mesmo raiva, nem indiferença. Nada Durante .tal período, vira a filha apenas três vêzes.
a que pudesse julgar como desinterêsse pelo rapaz. Não pudera sequer comparecer ao seu aniversário e man-
Reação normal de quem já sabe o que desejava na dara o presente que fôra mais dinheiro em cheque. Qui-
vida e se certifica em apalpar o objeto rival. Ao contrário sera a Providência que êle agora fôsse o único e ver-
dela, o rapaz excitou-se e quir ir além. Foi então que a dadeiro responsável por ela. Nesse dia Eudemônía em-
reação surgiu e ela o empurrou furiosamente, fazendo-o bora sofresse a perda do tio, sentiu-se feliz por viajar
rolar pela encosta do morro, de onde se via tôda a cidade. com seu pai que, embora não a visse quase nunca, lhe
queria muito e se preocupava com o seu futuro. Sim. Eu-
Quisera apenas que êle não agisse contra a sua von- demônia assim pensava êle, lhe ensinara a não depender
tade, nada mais. O resto considerava sem-importância. 'de ninguém, sentimentalmente. Embora fôsse volunta-
Se tivesse pensado em agradá-lo não se importaria com riosa e impetuosa, seria sempre uma mulher superior. Pa-
o que êle fizesse, mas, não queria. Somente não queria. ranóica ou não por considerar-se assim, ela sabia respon-
der aos seus erros e compreender suas falhas. Nem por
Sem ter razão para explicar porquê.
isso se preocupava em corrígí-las. O importante era não
Eudemônia recordar-se-ia sempre daquela tarde tris- afetar ninguém, como o fazia todo mundo. O que ela era
te em que ao voltar para casa a encontrou cheia de gen- guardava consigo, o que pretendia reservava para o fu-
EUDEMONIA 119
118 CASSANDRA RIOS
. que ela percebesse que realmente conseguia enervá-Ia
turo. De resto interessava-lhe viver e não desperdiçar os na .. t id
com seus olhares malIcIOSOS e suas a tit d
1 u es a revi a~.
anos que poderiam ser repletos de aventuras.
Sorriu-lhe, tirou os óculos e passou um lenço que ti-
rou do bôlso do avental sôbre os olhos, tornou a fitá-Ia
Eudemônia parou de falar. Não estava cansada. Po-
e olhando para o relógio, preocupou-se.
rém, intrigada com o que estava lhe acontecendo. Ali,
estirada sôbre sofá, contando sua vida minuciosamente, _ Como é tarde! - E como se tivesse de repente
para uma psiquiatra. Justamente para uma psiquiatra ... suposto que Eudemônia no dia seguinte se arrependesse,
por ter começado a lhe contar a sua vida, reatou. não
O silêncio perdurou como se a dra. Méltsia estivesse
querendO perder a oportunidade de ouví-la: - Porém,
esperando que ela prosseguisse. Eudemônia sentou-se e
se ainda quiser, podemos conversar mais um pouco ...
voltou-se para ela.
quer tomar um copo de água?
Seus olhos perscrutaram aquêle rosto, onde uma ex-
_ Não. Conversar a respeito de outras coisas sim,
pressão revelava que ela estava refletindo sôbre tudo que
porém, falar sõzinha não. Que tal, dra. Méltsia, se a se-
Eudemônia lhe contara. Refletindo e peneirando para
nhora me contasse um pouco a respeito de sua vida .
encontrar alguma coisa onde pudesse obter a resposta sô-
deve ser interessante, embora puritana, limpa ... vazia .
bre a perversão de Eudemônía, para poder julgar ter sido
provoca da. Sim, poderia ter sido, talvez houvesse aconteci- Eudemônia queria invadí-la com aquêle olhar, pro-
mentos anteriores aos quinze anos e ao aparecimento de vocá-Ia com suas insinuações. A doutôra percebeu a tra-
Silvana, do jardineiro e da camareira, e quanta coisa a ma de Eudemônia, sem entretanto chegar a aceitar a
mais de que ela provavelmente deixara de contar para não verdadeira intenção. Não porque não se permitia julgar
repetir fatos. Mas Eudemônía também falara sôbre acon- aquêles olhares que a estavam tornando uma criatura
tecimentos anteriores, como sôbre a impressão que lhe cau- nervosa, chegando por vêzes a se descontrolar, quando já
sara a ama de peito, pois já era conhecida a história suportava doentes verdadeiramente horríveis de serem
de que a espôsa do dr. Andréia Forbes falecera quando tratados. Ela não, era sagaz, de uma maneira ferina. Ma-
nascera Eudemônía. O dr. Jasper já lhe contara grande liciosamente desculpava a rudeza da palavra. Eudemô-
parte da vida de Eudemônia. Faltava agora saber a res- nia submetia-se por prazer, para ficar ao seu lado, para
peito de corno ela conhecera Mila e se tivera outras que ela própria pudesse analisá-Ia e perscrutá-Ia como se
antes dela. Acreditou que sim. fôsse outra psiquiatra, querendo considerá-Ia indigna da-
quela profissão. Atiçava-a nos mínimos gestos e se apro-
A dra. Méltsia soergueu a cabeça e só então percebeu
veitava da situação como paciente, para se aproximar
que Eudemônia a observava com aquela expressão que
daquela maneira e dizer tudo que pensava. A dra. Méltsia
ela quase não conseguia mais evitar. Porém era 'preciso.
pensava t?do isso enquanto se levantava para evitar
Teria que aparentar despreocupação e calma. Não convi-
120 CASSANDRA RIOS
EUDEMôNIA 121
aquêle olhar que não se desprendia de cima do seu corpo,
mentindo, que esteja tão enganada a meu respeito, sou
do rosto, das mãos, enfim dela tôdinha.
exatamente tudo isso que acaba de mencionar... nem
Eudemônía ergueu-se também e tão rápida que ine. por tais predicados até o dia de hoje me consideraram
vítàvelments a aproximação das duas aumentou quase louca ou tarada a não ser pelo crime que tentei praticar.
encostando uma na outra. A doutôra deu um passo para Creia que dentro de tudo que penso a seu respeito, o que
o lado e Eudemônía também, como se a desafiasse. A dra. mais me impressiona é a sua coragem em enfrentar so-
Méltsia passou e olhou para ela, autoritàriamente pediu: zinha. .. assim à noite, uma assassina como eu ...
- Dá-me licença, por favor ... - Por que fala o que não sente, Eudemônia? Não
- Está com mêdo de mim? .. A voz de Eudemô- vire as palavras e o pensamento ao avêsso ...
nia soou sarcástica.
- Responda-me, então, não é psiquiatra? Capaz de
- Não. Apenas não gosto que deixem de me atender. analisar minhas perturbações, minhas ofensas, meu sar-
A desculpa soou falsa, como a insegurança de sua casmo, minhas atitudes contraditórias, alteradas, anali-
voz. Endemônia prosseguiu sorrindo cantando um pouco sa-me sem ligar o que sinto agora, ao passado. .. quero
de vitória: admirá-Ia um pouco mais ...

- Sou uma anormal, paranóica, perigosa, e atreve-se Já a 'voz de Eudemônia vibrou rouca, em tom baixo,
natural.
sabendo de meus instintos a ficar a sós comigo em um
lugar como êste?.. A psiquiatria explicaria isso? Não Ela estava à frente dela parada, esperando uma res-
creio que alguém possa ser tão imprudente assim, prin- posta, uma palavra qualquer. Como médica teria que dizer
cipalmente em se tratando de uma criatura de renome alguma coisa, porém o pensamento fugia e o raciocínio se
como a senhora ... romplicava. Para escapar a tal situação, tentando afas-
far-se o suficiente para livrar-se daquela aproximação
A doutôra respirou profundamente e ergueu a ca- a penas disse:
beça, voltando à posição autoritária, quando Eudemônía
imitou-lhe o gesto também estirando o pescoço e olhando-a - :e muito tarde. .. precisamos ir. .. amanhã con-
por cima. versaremos mais.

-Eudemônia, considero-a muito para acreditar que - A senhora realmente tem mêdo!
tenha que me precaver contra você. Não queira se fazer
- Ainda insistiu Eudemônía não permitindo que ela
o que não é, uma criatura sem escrúpulo, imoral ...
se afastasse, muito ao contrário se aproximou mais tanto
Admiro-me, doutôra Méltsia, a menos que esteja que ao recuar, a doutôra, encontrou a parede e teve que
122 CASSANDRA RIOS
EUDEMONIA 12'3

parar. Eudemônia sorriu e seus dentes reluziram mag-


A voz dela ressoou segura e calma. Naquela segu-
nlficamente. A doutôra que já notara não pôde deixar de
rança calma, de quem sabe controlar os nervos.
admirar seu sorriso, aquêle momento não permitia que
ela se distraisse com tal coisa, entretanto, ela ainda ou- Eudemônia tornou a olhar para o quadro e sorriu
sava observar os gestos e expressões, sorrisos e lampe- sinistramente. Dentro, ela chorou de raiva, por ter sido
jos do olhar daquela mulher, que se acercava, prometendo vencida por um rival, que nem sequer vivia, que era ape-
alguma coisa que ela teria que evitar, nem que fôsse, pre- nas um misturado de tintas que desenhavam um busto
ciso soltar um grito. Não. Não poderia fazer isso, teria de homem. Sempre o avental branco. Se pudesse have-
que conseguir fazê-Ia parar e desistir do que pretendia. ria de arrancá-lo do corpo dela e queimá-lo, Porém já
Tinha receio de lutar com Eudemônia. E por que lutar? não se atrevia a nada. Não tinha mais ânimo para pros-
A dra. Méltsia pensava rápido e lõgicamente, como qual- seguir com seus escarnece dores comentários e atos, de ..
quer outra médica em sua situação. Como chegara a tal safíando-a e sofrendo por não conseguir fazer com que ela
ponto, como tivera coragem de confiar naquela mulher? se rendesse e confessasse que compreendia perfeitamente
Não, fôra confiança em si que agora a levava a enfren- que ela estava loucamente apaixonada. Sim, agora sabia
tar tal perigo. Uma idéia rápida sobrepujou tal pensa- que era uma pobre demente impressionada pela voz, pelos
mento. Estava perto da cortina que cobria o grande re- olhos, por tudo da doutôra.
trato, bastaria estender a mão e puxar o cordão. Talvez Não adiantava mais ficar ali, forçando a situação,
surtisse efeito. Um pouco de curiosidade, dar-lhe-ia, al- teimando e querendo prolongar o momento que poderia
guns instantes para agir. Olhou para o lado e se atreveu. desfrutar ao lado dela. O melhor era voltar para os seus
A cortina correu. Teria que agir ràpidamente enquanto aposentos e tentar dormir. Estava realmente cansada.
Eudemônia se distraía. Tal e qual como pensou. Eudemô- Sômnete agora o sentia.
nia, ao acompanhar o gesto com o olhar, não pôde deixar
Eudemônia relaxou os nervos, sorriu para o quadro
de ver o grande quadro pintado a óleo. O busto de um
e para não parecer muito ridícula por se revelar vencida,
homem sério, imponente, em uniforme de médico. Eude-
inclinou a cabeça e murmurou numa reverência:
mônia olhou para o quadro, enquanto isso a doutôra se
afastou para perto da porta. Calmamente esperou que - Boa-noite, doutor. Que esta noite lhe seja ven-
Eudemônia se voltasse. E a pergunta esperada fugiu dos turosa, ao lado de sua espôsa ...
lábios com entonação de suspeita: Deu alguns passos para a porta, de onde a médica a
observava, meio trêmula. Passou por ela avisando:
_ Quem é êsse homem?
- Vou deixá-Ia finalmente. Quer me acompanhar
para certificar-se de que vou para os meus aposentos,
- É o meu marido. realmente?
124. CASSANDRA RIOS EUDEMõNIA 1215

A doutôra não respondeu e seguiu-a calada. O cone- lher desejada, embora estivesse cometendo um roubo. Sim,
dor estava silencioso, porém ainda cruzaram com uma roubava-lhe o abraço, o calor do corpo, o beijo, a saliva, a
respiração, o bater do coração, o estremecimento do
enfermeira, que seguiu caminho despreocupada. À porta
do quarto de Eudemônia, pararam. corpo ...

A dra. Méltsia foi a primeira a dizer boa-noite e sem Eudemônia enfraqueceu diante da verdade. Soltou-a
esperar resposta se voltou para se retirar. de repente tal que chegaram a cambalear as duas quando
perderam o apoio uma do corpo da outra.
Eude!!lônia não c~teve o impulso. Nem cogitou evi-
Rápida, a mão da doutôra desferiu o também ines-
tar à fôrça da imposição do desejo. Puxou-a tão-subita-
mente que a outra não pôde se livrar, nem se esquivar. perado golpe e o rosto de Eudemônia ficou mais vermelho
do que já estava com a fúria da bofetada.
~ tey'e_quase_ tempo de evitar que ela a envolvesse TIos
1:9 V"'i braços alucinada, trêmula, com uma fôrça máscula, a ca- Os olhos lampejaram contra o olhar da doutôra, que
beça se aproximou num lapso de segundo, rápida a bôca faiscou um segundo, antes de que ela se voltasse nos calca-
se esmagou contra os lábios semi-abertos da mulher, que nhares e se afastasse apressada. Sem olhar para trás.
tremia empalidecida pelo susto. A bôca de Eudemônia Sem demonstrar receio sequer de que Eudemônia se atre-
se apertou contra os lábios quentes da doutôra esmagou-os vesse a . segui-Ia para devolver-lhe aquela bofetada ou
ardentemente e avançou na intenção, tornando o beijo "então cobrá-Ia com mais um beijo.
demorado em uma novidade para ela, a língua invadindo
Eudemônia entrou no quarto e fechou a porta vaga-
por entre os dentes que tentaram se apertar, sorveu-lhe
rosamente.
a saliva e movimentando a cabeça, esfregava bôca contra
bôca. Presos os braços entre os braços de Eudemônia, ela Parecia uma autômata que agira sob as ordens do
não conseguia se mover. A própria surprêsa roubara-lhe criador. Ela era realmente o autômato que o instinto go-
as fôrças e o poder daquele beijo inesperado amolecia-a vernara sem que quisesse nem ao menos protestar.
de uma maneira inesperada e inconcebível.
Não quis pensar em coisa alguma. Não quis tirar con-
A doutôra como que desfalecera de pavor ou de emo- clusões do que poderia acontecer na manhã seguinte.
ção. Eudemônia parecia disposta a prolongar aquêle beijo
por horas intermináveis. O coração pulsava descontrolado Queria apenas continuar enlevada, sentindo ainda o
contra o peito da médica que ofegava também sentindo o calor daquele corpo colado ao seu e aquela bôca quente
contra a sua bôca.
coração pular como se quisesse fugir para não sofrer tal
assalto. O corpo de Eudemônia se colara todo ao dela, Oh ! Beijo roubado e audacioso, que sabor estranho
paralisado, apertando-se sem malícia, porém vibrando, deixa nos lábios de quem o provou! ...
possuído por aquela sensação de ter nos braços a mu-

"
s-,

CAPíTULO VIU

Um ruído de cortinas que corriam nos trilhos, pu-


xadas por mãos acostumadas a fazer barulho, proposi-
tadamente. Farfalhando o tecido pesado e colorido, que
amontoando-se em pregas dos dois lados da janela que
escondera, deixou a claridade do dia invadir o quarto,
também contribuindo para que Eudemônia despertasse
daquele sono profundo que conseguira conciliar lá pelas
tantas da madrugada, Abriu os olhos e procurou pelo
quarto a perturbadora do seu sono. Reconheceu a enfer-
meira a quem havia tratado tão mal na tarde anterior
e sorriu.
- Vai! Você voltou? Não está zangada comigo?
Até que hoje, embora tenha vindo atrapalhar meus so-
nhos, você está simpática!
Eudemônia sentou-se na cama e se espreguiçou en-
quanto esperava que ela servisse o lanche matinal que
pusera sôbre a mesínha, na bandeja.
Queria aparentar despreocupação porém ansiava por
saber as precauções tomadas pela doutôra, depois daque-
la noite. Em que estaria pensando, que teria feito, após
deixá-Ia, teria coragem de encará-Ia novamente? Se-
ria !Up&rior a tal acontecimento ou não se atreveria a
=r,

128 CASSANDRA RIOS EUDEMôNIA 129

demonstrar com sua indiferença que já estava habituada ela ficou se espiando não sei porque... Não gosto que
a sofrer tais assaltos dos seus pacientes. E seria certa, nie ODservem como se tuuo que laço seja anorrnai ...
tal suposição? eu qUIS assusta-ia. ~uena urvertrr-me um POUCO! lJes-
CUlpe-me se provoquei pânico.
Eudemônia sentiu centelhas de ciúmes explodirem
dentro dela e uma vontaa.e de ir vigiá-Ia durante todo dia, - Bem, você, é realmente peralta, Eudemônia,
para que ninguém se atrevesse a fazer o que ela fizera. <iualldo vai se resolver a errar jUlZO?

A enfermeira pediu-lhe que se sentasse direito para O dr. Jasper entretanto, não conseguiu esconuer o
que pudesse pôr a bandeja sôbre as pernas. Eudemônia riso. Manaou-a sentar e tomar cale. 'rmna algo para
automàti-camente atendeu-a e continuou a imaginar coi- falar. , ,_....;~LL-4 1.•••••h.U
sas. De súbito, refazendo-se da sensação que queria do-
.l!Judemônia estremeceu supondo que a doutora tivesse
miná-Ia pôs a bandeja de lado, levantou, entrou no pe-
tomauo proviuencias para se vingar de seu atrevnnento.
queno banheiro abriu a torneira e lavou o rosto com
.l:!.mao, nao gostara ao neijo Nao ricara satisrena
í por
água fria. Molhou bem as têmporas e percebendo que
esnoretea-ía apenas. 'ia.vez agora ate consruerasse que
a enfermeira a observava curiosa querendo ver o que seria Dom trata-Ia com alguns choques.
ela estava fazendo, voltou-se de súbito e mostrando-lhe
a língua e arregalando os olhos abanou as mãos no ar, O dr. Jasper sentou em frente dela, puxando a pol-
dando um pequeno grito para assustá-Ia, o que conseguiu. trona para perto da cama para onde ~uaemollla voltara
A enfermeira deu um salto e partiu correndo, soltando e começou:
gritos até que alcançou a porta e saiu do quarto, Ou-
- Ontem estive conversando com o dr. Silas, o
tras enfermeiras a acudiram. Eudemônia fêz o mesmo,
seu advogado. Tenho boas notícias. Preciso confessar
repetiu a cena e continuou gargalhando. As outras com-
que a pena judicial foi atenuada para somente um ano
preeendram a brincadeira de mal-gôsto e riram-se tam-
aqui no nosprtai; restam nove meses, pOIS três você já
bém. Atrás delas surgiu o dr. Jasper e elas se afastaram
cumpriu, ou seja até o tempo impôsto por uma junta
silenciosas e sérias.
méuica que se reunirá hoje ao entardecer a fim de jul-
O dr. Jasper avançou para dentro do quarto e per- gar se êsse tempo é suficiente para podermos pô-Ia em
guntou querendo saber o que acontecera. liberdade com um diagnóstico positivo. Depende do seu;
Eudemônia parou de rir e fazendo um gesto evasivO comportamento até o dia de hoje a nossa decisão. Do
com as mãos, respondeu: seu comportamento intelectual em consideração a tudo
que tenhamos observado. Essa junta será composta de
_ Eu apenas, fiz, bum. .. e abanei as mãos. A en-
cinco médicos psiquiatras. O dr. Kermam, eu, e a dra.
fermeira se assustou e saiu correndo. Fui lavar o rosto e
- -- _.-----

130 CA S SA N D R A R I OS 1S1
EUDEMONIA
Méltsia e duas enfermeiras. A primeira que a atendeu
maneceria em eterno esquecimento. Com essa pergunta
durante um mes e a que a assiste atualmente! creia que me libertou de uma preocupação, trazendo-me
_ Chii... doutor... parece que vão me condenar outra. Tenho certeza de que não era Vitor Petran quem
a prisão perpétua num asilo de loucos incuráveis e fu- estava com ela naquela noite. Petran é alto e magro. O
vulto que passou por mim, vejo-o agora nitidamen~e
riosos.
como naquele momento, era mais encorpado e mais
Não como pensa, Eudemônia. Nossas enfermei- baixo.
ras são bastante mtengentes e só comentarão a expensas
Eudemônia parou de falar fustigada pela curiosi-
da verdade, nada do que você pode ter feito para desa-
dade. Não a interessava por ciúme querer conhecer um
grada-tas, senuo normal, mrunra na decisao. .b: para
rival do passado, porém precisava espantar a dúvida.
ISSO eu, a dra. Mértsia e o dr.Kermam, é que resolvere-
A dúvida que surgia ameaçadoramente querendo obse-
mos. dá-Ia com uma suposição medonha. A lembrança do riso
:B.;udemônia calou meditativa. Já não lhe importava daquele homem ressoava agora em sua cabeça com tre-
o que decidíssemo Nem mesmo o que poderia fazer a menda fôrça para confirmar o que ela não se atrevia
dra, Méltsia, O que ela queria na realidade era apenas a reconhecer. Já muitas vêzes se exasperara com tal
revê-Ia e saber o que teria provocado nela o que fizera pensamento •. supondo um absurdo alucinante, que pu-
na noite anterior. Como a trataria daí por diante ou desse ser verdade o que estava imaginando. Quanto lu-
se nem mesmo voltassse a considerá-Ia sua paciente. O tara para não deixar que a lembrança daquela noite
dr, Jasper notou sua abstração e percebendo que ela não viesse trazer-lhe a verdade. Uma simples pergunta do
se entusiasmara como esperava com a notícia pois até doutor e ela caía pesadamente naquele emaranhado de
aquêle dia tudo fizera para sair do hospital, tentou olhan- suposições absurdas. Não queria se render à evidência
do através dos olhos acertar com o motivo que a tornara e à semelhança do vulto.
indiferente a isso. Alguma coisa nova estava influen-
Estava sonhando. Acordara de um pesadelo e que-
ciando nas idéias daquela cabecinha. ria forçosamente provar que a sombra causadora de sua
_ O que há com você desta vez, Eudemônia? Está desgraça fôsse exatamente igual à mesma pessoa que
pensando ainda em rever Mila? - Insinuou êle que- em outros tempos roubara Silvaria dos seus braços. Eude-
rendo provocar uma reação. mônía levou as mãos' ao rosto e des~tou em convulsivo
_ Mila? Será que ela existe, doutor? Creio que o
pranto. i .• IE~
senhor precisa na realidade curar-me de uma estranha O dr. Jasper esperou em silêncio que ela se acal.
amnésia. Palavra que não me lembrava de semelhante masse.
criatura e acredito que se não a mencíonassse ela per-
132 CASSANDRA RIOS
EUDEMÕNIA 183
Eudemônia, por um descuido do inconsciente, por
••"'i:lV"H~~a.V
ue .1H~tHl,tue::;
ue palCtvl·a::;Vla-::;e ll"\::nce a lrence tempo Eudemônia deverá permanecer ainda nesta Clí-
~V!.Íla veruaue • .lC..J.acaivez u punuo rruar ua sua pei tur- nica e submetida a quais tratamentos. Pois bem, quero
IJ<tlíav que y'úê:l.i:le
a l:UHVtJ.'tt.L'aem UUIa a::l::;a"::llua. saber o que dossivelmente já anotou a seu respeito e
contar-lhe os últimos acontecimentos a fim de que fa-
Inesper auamente, ela mesma resolvia o problema çamos uma análise geral do que já pudemos observar.
íntimo ,que a ooseuara provocando seu instinto agres-
;:!LVU
. .l:' ora o uesejo ua vingança que em recaicara quan- A doutôra sentou-se novamente e estendeu para êle
uo SU1"llH;tHUtl"a ;:'UVl;dla com o tio nescoormuo o pen- a pasta onde durante tôda a noite escrevera mais da me-
samento anos depois quando se uesconrm novamente tade do que Eudemônia havia lhe contado. Estava quase
terminando quando 'êle chegara. Evitara assim que ela
vitima üe uma trarçao iuennca.
se preocupasse ainda se devia ou não revelar o que acon-
"- Matar I" tecera na noite passada. Considerou desnecessário.
Deixa-me só, dr. Jasper. Quero acreditar que não O dr. Jasper pôs a pasta sôbre os joelhos depois de
é certo o que estou supondo. Não quero reconhecer sentar ao lado dela e contou-lhe o que sucedera há
aquele vurto, compreende r Não quero. Prefiro enlou- pouco.
quecer . .I.<lcar aqui até o fim da mmna vida, mas nunca
acertar com a vercaue, se é nao quero pensar ... .1:'01' fa- À medida que êle falava, a dra. Méltsia ia analisando

vor, doutor, deixe-me só... preciso ticar só realmente e associando os acontecimentos atuais com as cenas que
Eudemônia havia narrado.
pela primeira vez na vida.
O doutor se levantou e saiu sem dizer nada. No - Quem acreditará Eudemônia seja o homem que
corredor chamou uma enfermeira e mandou-a observar estava com Mila? Não posso aceitar a idéia de ela ver
naquele vulto a imagem do tio. Não a julgo assim obsce-
Eudemônia sem que ela percebesse.
cada. Suas atitudes não podem confundir, porém não
Depois caminhou em direção da sala da dra. Méltsia. confirmam que ela esteja sofrendo visões por obsessão.
Dr. Jasper, há alguma coisa por trás de todo êsse drama.
Empurrou a porta e pediu licença. Ela estava ano-
Creio que seria conveniente conversarmos com a senho-
tando algo, sentada em uma poltrona ao lado da escri-
rita MiJa. Leia o que já .escreví e chegará à mesma con-
vaninha. A dra. Méltsia se levantou e cumprimentou-o.
• clusão que eu. Não quero precipitar-me, porém tenho, uma
SUspeita grave.
_ Dra. Méltsia. Preciso falar-lhe a respeito de Eu-
demônia. Como já lhe comuniquei, hoje à noite teremos
O dr, Jasper abriu a pasta e absorveu-se na leitura
que nos reunir para diagnosticar e resolver por quanto daquele documento.
EUDIi:MONIA 135
134 CASSANDRA RIOS
Entrou e explicou o que se passava. Os dois se
Quando terminou concordou que a suposição da dra.
levantaram e foram apressados para o quarto de Eu-
Méltsia estava certa. A chave da perturbação de Eude-
mônía escondia-se na revelação daquele vulto. Quem demônia.
seria? Somente Míla poderia saber. Olharam-se os dois Ela nem percebeu quando entraram, porém quando
em silêncio. Não se atreveram a falar. os viu perto da cama tentando acalmá-Ia exigiu se fôs-
sem e que uma vez na vida a deixassem desabafar aquê-
Ao mesmo tempo, Eudemônia se martirizava que-
Ie ódio e aquela revolta.
rendo fugir da horrorosa suposição. Sim. Somente Mila
poderia desfazer aquela dúvida que surgira. Escapando- A presença da dra. Méltsia perturbou-a mais e ela
se do seu subconsciente que recolhera a mesma suposi- pediu :
ção que sofrera na noite em que cometera aquêle
- Deixem-me, por favor. Compreendo tanto quan-
desatino. Fôra um choque tremendo que a deixou para-
to vocês a causa dos meus erros, mais ainda porque só
lisada a murmurar aquelas palavras que a condenaram
eu conheço a causa dêles. Delxem-m~._.. Quer_o vencer
como louca. Sim. Como dissera ao dr. J asper ela fôra
vítima de temporária amnésia apenas a respeito do ver-
sõzinha
--:,--
embora
esta
_seja uma~-
~--
crise.-_Quero
lésbica.
provar-lhes
....
Preciso
que não
descobrir
sou louca,
Petran, ou
dadeiro motivo do seu ímpeto vingativo. Tudo que lhe ~.-
parecera sem importância gritou dentro dela fazendo- então obrigar Mila a falar. Preciso ter certeza. A dú-
vida é horrível! Enlouquece-me O pior é que eu sei. Algo
a sofrer horrivelmente e durante longo tempo Eudemô-
ensombra a minha mente.
nia se debateu na cama chorando copiosamente. Um ódio
insuportável por Mila e Silvana estor'CÍa-a fazendo-a ran- A dra. Méltsia acercou-se dela e pousou a mão sô-
ger os dentes e desferir socos violentos contra os traves- bre seu braço. Eudemônia com o rosto umedecido por lá-
seiros. Por que o vulto se apagava nas sombras não que- grimas, as faces vermelhas, os cabelos alvoroçados, fi-
rendo se apresentar? Ela o vira. cou olhando para ela, imponente dentro do próprio tor-
mento.
A enfermeira espiou cautelosamente por entre a
porta que entreabriu sem fazer ruído e considerou de- Fale Eudemônia. Expulse o pensamento que a
veria avisar o dr. Jasper sôbre o desespêro de Eu- está perturbando. Diga qual a dúvida que a põe nervosa,
demônia, ela agora arrancava os cabelos e mordia os talvez a gente possa esclarecê-lo.
pulsos. - Esclarecê-Ia? Eu mesma o faço. Comprová-Ia é
Correu pelo corredor e bateu na porta da sala da que vocês não podem, nem eu. Somente Mila e talvez
Petran. Se ela o mencionou, provàvelmente alguma coí-
dra. Méltsia.
l5a êle poderá ter ocultado de mim. Dr. Jasper, por fa-
186 CASSANDRA RIOS EUDEMÔNIA 137
vor, acompanhe-me até o apartamento de Mila. Preciso - Chega! Basta de análise. Não me estude mais,
falar com ela. Preciso 1 por favor. Pode diagnosticar pelo que fiz ontem. Sou
Eudemônia apertou as mãos contra o peito como uma louca. Uma louca incurável, compreende?
para reter o coração. A doutôra não proferiu palavra. Fingiu que arru-
O dr. Jasper acercou-se dela e fê-Ia estirar-se na mava a bandeja sôbre a mesinha e não se voltou para
cama enquanto prometia. olhá-Ia.

- Acalme-se primeiro, Eudemônia. Assim nervosa Eudemônia refletiu sôbre diferença do sentimento
não conseguirá nada. Enquanto vou certificar-me de que que lhe dedicava. Era impetuoso e apaixonado, porém
a encontraremos em casa, fique conversando com dra. mais puro, lógico que o dedicado a Silvanae a Mila.
Méltsia. Com calma todos os problemas se resolvem ... Era um sentimento imprevisto, incalculado. Algo que
ela não procurava e nem imaginara que fôsse sentir.
Eudemônia se calou e atendeu-o Fechou os olhos e Apaixonara-se pela voz, não por uma ilusão" que as pa-
apoiou a cabeça sôbre o travesseiro. Em tão pouco tem- lavras de um amigo do tio provocaram. Não por um
po se esgotara tanto. Um simples pensamento para tor- desejo que o corpo esbelto de Mila incitara a ela que já
turá-Ia. Fôra uma porta que se abrira em seu cérebro habituada a desejar tudo que era belo e provocante.
revelando-lhe a verdade que a si própria durante meses Amara a doutôra, sem que pudesse basear-se em razões,
ocultara. Por isso sofria. Por saber tanto. mesmo irrisórias.N em acreditou que fôsse vítima mais
uma vez do inconsciente. Que talvez ao contrário do que
O dr. J asper se retirou. Percebeu quando a porta se
supusera a respeito da doutôra, quando lhe falaram sô-
fechou e o silêncio se fêz. Ela estava só com a dra.
bre ela, julgando-a provàvelmente uma velha solteirona
Méltsia. I I! I
e feia, tecera ilusões adivinhando a sua beleza e simpatia
verdadeira.
Com a dra. Méltsia?
Eudemônia abriu os olhos ansiosamente para certi- Sentou-se na cama e chamou-a baixinho. Pela pri-
ficar-se de que ela ficara e não a enfermeira. meira vez suprimindo o título de doutôra.
Sim. Lá estava ela ao pé da cama, fitando-a preo- - Méltsia. " por favor. " venha para mais perto
cupada, raciocinando, querendo descobrir seus pensa- de mim. Prometo não me atrever a nada mais. Quero
mentos, analisando o seu nervosismo. Sempre analisan- apenas confessar-lhe algo... uma coisa muito chocante
do. Eudemônia se enfureceu revoltada e gritou neuras- que talvez já tenha percebido... sim. Tenho certeza
tênícamente, que já sabe. Por favor se aproxime.
138 CASSANDRA RIOS EUDEMONIA 139

Insistiu ela diante da passividade da outra. Final .. Eudemônia avançou para ela e antes que a médica
mente ela se acercou da cama.
t· esse tempo para recuar segurou-lhe as mãos e beijan-
- Méltsía, não se zangue por falar-lhe assim, pre-
IV
do-as calorosamente e comovi id a murmurou repe tid
1 amen-

ciso que reconheça a diferença... entre você... Sil- te soluços:


vana e Mila . .. se estive louca, devo ter sarado. Se não o _ Você está chorando... chorando por causa de
fui deve ter enlouquecido, " Não é possível que eu tenha minha confissão, Méltsia... você gosta de mim tam-
capacidade para amar tanto, sentir tanto... querer bém .. , sente o mesmo, não negue.. .corresponde ...
assim. .. tudo ao mesmo tempo." Méltsia.,. ouça, vê. .. que adianta estudar e conhecer psicologia até às
seja mulher comum, não analise minhas palavras, não entrelinhas de tudo quanto já se escreveu a respeito.
me considere sua paciente, seja apenas uma mulher Que adianta alimentar tanta sabedoria durante anos e
igual às outras e lembre-se do que me disse: sou uma anos e conseguir superar a tôdas imagináveis e possíveis
planta venenosa. .. a planta desconhecida pela botânica classes de influências capazes de provocar ... não adian-
que quer envenenar você... que precisa de seu olhar ta nada quando surge o amor. .. não adianta fugir quan-
como do sol para fertilizar-se. .. do seu calor e de suas do êle invade o coração ... O amor não avisa quando vem
palavras para continuar vivendo... eu a amo... Mélt- e nem como vem e às vêzes a gente ignora que ama, que
sia ... eu a amo, desde quando ouvi sua voz ... sem vê-Ia, vai amar, que amava sempre assim também, da mesma
desejei-a. .. oh! Méltsia... não... não analise minhas forma você corresponde ao meu sentimento ... reconheço-
palavras ainda. .. ouço-as primeiro, deixe-me dizê-Ias en- 11
-o no estremecimento de suas mãos, nas lágrimas que ro-
quanto tenho coragem, olhe para mim, não desvie essas Iam dos sers olhos, no seu nervosismo.,. na expressão
continhas verdes, tão claras, agora, já não sou daltônica que contrai sua face.,. não Méltsia." não fuja não
ou será que diante da surprêsa elas ficam dessa côr? lute. .. deixe-me segurar suas mãos ...
Eudemônia ficou em silêncio olhando para ela em- Eudemônia lutou com ela querendo reter ainda
bevecida. A doutôra contorceu as mãos nervosamente. aquelas mãos trêmulas que tentavam se desprender.
Era a primeira vez que a confissão apaixonada de um Méltsia, ofegante tartamudeou algumas palavras. iAs
paciente a deixava nervosa sem coragem para o enfrentar, únicas que acreditou pudessem fazer Eudemônia recuar:
sem coragem para inmpedí--Io de falar. Uma sensação es-
tranha invadia-a a cada palavra e ela deixou que uma - Você está louca, Eudemônia, deixe-me. Solte mi-
lágrima brilhasse em cada pupila, prendendo-se aos cí- nhas mãos. Você não sabe o que diz.
lios e deslizasse pelo rosto que se contraíu numa expres- . O resultado foi exatamente como supôs. Eudemô-
são dolorosa. DIa recuou ofendida e paralisada com uma expressão tão
E'UDEMôNIA 141
140 CASSANDRA RIOS
Nenhuma voz se ouvia. Tudo silêncio como se o
dolorosa no rosto que a doutôra, imediatamente se arre-
mundo tivesse mergulhado em súbito inércia.
pendeu das palavras que pronunciara.
A porta se abriu e o dr. Jasper entrou no quarto. Seu
Compreenda, Eudemônia, você está enganada.
olhar fixou-se na doutôra que se manteve impassível e
Eu. .. eU não quis dizer isso. .. Não soube me esclare-
indiferente como se nada anormal acontecera.
cer bem, você está perturbada... está nervosa... está
confundindo afetos... não fique assim, por favor ... Eudemônia não teve coragem para exasperá-Ia mais,
Eudemônia, retraída, voltou à sua ímponência e perguntando-lhe se não seria seu dever como psiquiatra
perguntou agressiva, com uma acentuação dura na voz: contar a êle o que acontecera entre as duas desde a noite
anterior, como era 'sua vontade fazer.
Por que chorou?
O dr. Jasper falou algo, porém nenhuma das duas
Porque. .. porque fiquei comovida... por isso. parecia ter escutado.
- Mentira. Não sabe mentir. Não quer se render
:F::lerepetiu e não se atreveu a perguntar por que
à verdade. Uma mulher culta e admirada se deixando
razão a dra. Méltsia estava assim estranha olhando-o
vencer por preconceitos. Sociedade, lei da procriação, ao
como se não o visse realmente. Absorta e concentrada
inferno com tudo isso. Por falar em filhos, gerações,
em alguma coisa realmente perturbadora, respondendo
subsistência do mundo, que semente a senhora plantou?
com palavras evasivas.
E meus pais? Um rebento que se revelou estéril e ve-
nenoso. Por que? Por causa do mesmo amor que para
os outros faz gerar novas vidas. .. entre as árvores que
não dão frutos eu também sou digna de admiração por-
que me nego a gerar em nome de um amor sublime e
puro, intenso e natural quanto qualquer outro senti-
mento, porque s6 existe um nome para qualifícá-lo, de
qualquer espécie, em qualquer bôca o que sinto embora
possam deturpâ-lo, acompanhando-o com outro adjetivo
qualificativo menos favorável, será sempre amor ...
amor ... amor ...
Eudemônia calou-se e aceitou seu silêncio. Voltou a
sentar-se na cama e olhou de longe pela janela. O pátio
ensolarado estava vazio e calmo.
\ .ic,. ~"1

CAPíTULO IX

Eudemônia empalideceu quando o dr. Jasper disse


que Mila não mC?rava mais naquele enderêço, Como se
com ela se tivesse ido a resposta que lhe traria paz. Te-
lefonara para o apartamento dela e quem atendera fôra
uma voz de senhora idosa que explicou não saber para
onde ela se mudara e nem quando passara o contrato em
seu nome.

Tudo que poderia informar era que Mila viajara.


Não sabia nada mais.

Eudemônia sofria sentindo quase que perdida a es-


perança de matar a dúvida que voltava a assediá-Ia. Te-
ria que saber de qualquer maneira o paradeiro de Mila
e obrigá-Ia a falar.

O dr. J.isper prometeu que logo depois do almôço


tomaria providências para localizá-Ia. Comunicar-se-ia
00111 o dr , Sales, para que viesse urgente falar pessoal-
mente com Eudemônia.

Eudemônia jurou ao dr. Jasper que haveria de vi-


rar o mundo de pernas para o ar até encontrar Mila. Ela
haveria de revelar de uma vez quem era o vulto que a
perturbava tanto.
144 CASSANDRA RIOS mUDEMÕN!A 145
o dr. J asper se retirou para telefonar e perguntou à As batidas na porta impediram a doutôra de falar.
dra .. Méítsía antes de fechar a porta do quarto:
Seus lábios
a haviam se .,movimentado como se ela. preten-
- A, senhora fica? Se precisar de mim, pode me desse dizer alguma COIsa, porem apenas proferíu :
chamar ... - Entre ...

As duas entreolharam-se. Interpretando da mesma A enfermeira abriu a porta e esperou que ela lhe
maneira aquelas palavras. isntretanto, ele quisera apenas dissesse o que queria. Ela desculpou-se dizendo que já
ser prestatrvo. Nada mais que um cavainerro diante do não era necessário e mandou-a se retirar.
cansaço aparente da doutora. Eudemônia olhou para ela atentamente. A dra. Mélt-
sia parecia vacilar. Eudemônia se levantou e se apro-
A dra, Méltsia chamou a enfermeira que avistou pela ximou vagarosamente. De muito perto pediu contradi-
janela e esperou que ela se aproximasse para lhe falar zendo o que dissera antes:
- Dê a volta e venha até aqui. Quero lhe pedir um - Não se vá. .. não me importa sua indiferença ...
favor. seu silêncio e que me trate como se estivesse realmente
necessitada. .. seus cuidados serão como carinhos que
Eudemônia prestou atenção querendo descobrir o
eu receberei- respeitosamente. Compreendo perfeitamente
que pretendia a dra. Méltsia, Desconfiada, perguntou:
que há coisas que nem aos médicos se deve revelar .
- Pretende pedir que a substitua? Não será ne-
- Eudemônia verá que isso tudo há de passar .
cessário. Pode ir. Prefiro ficar sozinha. Se fôr isso que acredite em mim. .. tenha confiança em Deus e esfor-
penso, advirto-a de que expulsarei essa mulher horrorosa ce-se para dominar êsse demônio que quer destruí-Ia
daqui a pontapés ...
para sempre. " ajude-se... lute contra... raciocine ...
não pode ser... não pode ...
- Está bem, Eudemônia. Fique só. Direi a ela que
já não é necessário. Que já resolvi o que pretendia. Como! A doutôra parou ofegante. Ela, completa-
mente exaltada, quase histérica, revoltando-se contra o
- Resolveu realmente! Não suplicarei para que fi-
que sentia, desejando convencer a quem? Como se atre-
que. Peço-lhe apenas que não volte aqui. O dr. Jasper
via a falar de tal maneira com uma paciente? Desde a
bastará para resolver meu caso. Não a aceito como mi-
noite anterior se descontrolara a ponto de agredir aque-
nha médica. A senhora dificulta a minha vida... sua
la mulher. Como explicar tanto nervosismo, o desespâro
presença é o que me obsessiona realmente. Para mim
q~e sentiu quando ela a mandou embora pedindo que
já basta de comédia! Não posso sufocar o que sinto.
I nao voltasse mais. Que não a considerasse como sua

III
146 CASSANbRA RIOS EUDEMÕNIA 147
paciente. Que o dr. Jasper seria suficiente para tratá-Ia, lhe apresentasse o diário dos negócios do pai. Precisava
se é que estava louca. Quem estania ? A doutôra levou as realmente saber a quantas andava e em que estado êle
mãos à cabeça e apertou-a com fôrça, Deu um passo deixara as escrituras das propriedades, se estava tudo
em direção a janela e sentou-se na poltrona. Estava exaus- em ordem, se havia alguma coisa para resolver. O dr.
ta. Não conseguira dormir e trabalhara a noite tôda. Silas abriu a pasta e entregou-lhe um punhado de pa-
Por que? Por causa de Eudemônia. Por isso estava péis e recibos. Prometeu que nessa mesma tarde man-
exasperando-se, diante de tanta coisa, era natural que daria entregar-lhe os livros fiscais para que ela se cer-
um dia, eêsse chegara, ela se deixasse vencer pela fa- tificasse de que estava tudo em perfeita ordem. Ficou
diga a ponto de sofrer a influência da doença de um pa- combinado também que êle procuraria localizar Mila.
ciente seu. Eudemônía, com sua personalidade, extir-
para-lhe o resto de fôrças que lhe restava. •
Eudemônia aproximou-se e se ajoelhou ao seu lado.
Apertou-lhe as mãos e procurou confortá-Ia, talvez co- Parecia que uma evitava a outra. Nem Eudemônia
movida diante do seu nervosismo: manifestava desejos de mandar chamar a doutôra Mélt-
sia e nem ela se atrevia a aparecer.
_ Não tocarei mais nesse assunto... perdoe-me,
Aquêle dia pareceu mais lento do que os outros. Mo-
Méltsia. .. prometo-lhe.
nótono e vazio. Até o sol escoando-se por entre a ramada
A voz morreu-lhe na garganta interceptada por um das árvores do pátio, parecia triste e pesado.
soluço abafado. O tiquetaque do relógio assemelhava-se-lhe ao ruído
A médica se levantou e dando uma palmadinha no esquisito de passos de miúdos pêsinhos, Até a côr verde
ombro de Eudemônia, quis certificá-Ia de que se sentia do tapete de lã prendeu sua atenção. Lembrava-lhe os
melhor. olhos da doutôra.

_ Preciso ir, Eudemônia ... se necessitar algo man- Eudemônia leu e releu as inúmeras escrituras e
de-me chamar... eu a atenderei ... quando os livros chegaram horas mais tarde, vasculhou-
os atentamente se distraindo então ao recordar um pouco
Eudemônia deixou-a ir. Não proferiu palavra e de contabilidade qUe aprendera na Universidade e que
nem se moveu de onde estava quando ela se afastou. para bastante lhe servira.
Durante o resto da tarde procurou se distrair lendo Se não tivesse desistido de estudar já estaria for-
revistas e com a chegada do advogado, o dr. Silas, pro- mada em advocacia. Faltava-lhe apenas um ano e meio
curou problemas para se preocupar, pedindo-lhe que quando deixara a Universidade.
1111

148 CASSANDRA RIOS EUDEMÕNtA 1,(9

Fõra realmente uma grande loucura que cometera,


Imposta por fôrças lIuperio.res, _que o dinheiro não co:n-
pois aqueia pronssao sempre rora um dOS seus sonhos, rava facilitando a concretízação de uma aventura. Nao.
DeIxara ue estudar aSSIm sem mais nem menos. ~Ia fôra empurrada por mãos invisíveis e misteriosa-
Inventou uma viagem e permaneceu fora da Cidade três mente obrigada a aceitar aquela situação. Da mesma ma-
meses, perdendo noites em nuates, casmos e tantas ou- neira, surgira a dra. Méltsía. Inesperadamente.
tras coisas que a rez JUlgar-se reaimence uma donnvanas, Então acreditou que ela era a única coisa verdadeira
Como tivera coragem para cometer tantas roucuras { em sua vida.
Parecia que era mentira metade do que recordava. Aque-
las avencui as perrgosas às quais se atirara por capricno, A única coisa que o Destino implacável lhe trouxera.
para satisrazer currosrdaues ae pensamentos e iueias que .- O resto soava 'falso como o brilho de uma pedra-fan-
nem mesmo uuravam em sua caoeça. tasia.
E o que a levara àquela vida intensa que, desfrutara Sentiu então que precisava -ver a doutôra. Mesmo
desde os primeiros dias de sua mocmaue t A apaixonar-se que fôsse de longe. precisava vê-Ia, para certificar-se
por uma psiquiatra. Sim . JJe tudo o que Iizera até pre- de que ela existia e que não era um sonho. Queria ver
sentemente o que mais louco lhe pareceu roí a idéia ue aquêles olhos e banhar-se em sua claridade expressiva.
amar a doutora. IVlas essa era a realidade ... Seria fácil, meditou rápida. Iria jantar no refeitó-
Budemônia parou olhando pela janela para o pátio rio. Ela dissera que precisava comparecer tôdas as noites.
que já começava a se envolver com as sombras da noite. Eudemônia abriu o guarda-roupa e escolheu um novo
traje para essa noite. Poria novamente calça comprida.
O crepúsculo coloria as fôlhas das árvores com um
A verde assentava-lhe bem. Prestaria uma homenagem
brilho avermeihado que doia na vista. aos olhos dela, vestindo-se tôda de verde. Somente o sa-
Não! Ela não poderia desistir. Tinha que completar pato destoou, com a sua côr marron.
o último quadro da sua vida. Haveria de vencer a dra. Faltava pouco para as seis e meia.
Méltsia custasse muito, embora a sua própria vida. Ha-
veria de conquistar aquêle coração e possuí-Ia. A enfermeira chegou trazendo-lhe o jantar. Eude-
mônía dispensou-o, avisando-a e pedindo-lhe que a acom-
Aquela aventura no hospital fôra inesperada: Obra panhasse até o refeitório.
exclusiva do destino. Ela não traçara planos, nem idea-
lizara tal quadro. Tudo o que vinha passando ultima- * * *
Eudemônia parou perto da porta e perscrutou a
mente, pela primeira vez era contra a sua vontade.
i'rande sala já quase lotada. Avistou algumas mesas va-
150 CASSANDRA RIOS E'UDEMÕNIA 151

zias e bem em frente à mesa onde estava a dra. Méltsia _ Marga ...
viu um lugar ao lado de uma enfermeira.
Respondeu apenas com a voz trêmula e mal dís-
Acercou-se e, sem pedir licença, sentou-se.
farçada.
O primeiro olhar foi para o rosto da jovem ao lado. - Marga! .. , Recorda-me algo. .. a minha vida ...
Era mais jovem que as demais enfermeiras e indis- - Por que? - Já o interêsse surgiu na curiosidade
cutivelmente com tôda certeza a mais simpática e bo- da pergunta de Marga, que a olhou dessa vez de frente
nita. Um pensamento mau instigou Eudemônia. dentro dos olhos. Foi um olhar intenso que não deixou
dúvidas. Eudemônia percebeu. Aquela mulher temia-a
Maliciosamente olhou para os lados e certificando-se porque trazia insegurança e pecado dentro de si, um
de que nem mesmo a dra. Méltsia a observava, inclinou a desejo escondido que não permaneceria oculto por muito
cabeça para o lado e proferiu à meia-voz para a enfer- tempo. Seu pé continuava imóvel debaixo do pé de Eude-
meira: mônia que, agora, descalço, alisava-lhe as pernas num
vaivem lento e malicioso.
- Gostaria de ser servida por você. .. quer ter a
bondade de preparar meu prato ... O olhar por momento se desviou para a mesa da
dra. Méltsia.
A enfermeira que já a olhara desde que aparecera
no saguão, sorriu-lhe e, perguntado-lhe o que preferia Foi um relance emotivo que cruzou o olhar das
comer primeiramente, começou a serví-la. duas. A médica inclinou a cabeça e Eudemônia pôde ver,
mesmo de longe, no estremecimento de seus cílios e no
Audaciosamente, Eudemônia estendeu a perna para rubor de suas faces, que ela a observara e que sofria
o lado dela e disfarçando descuido pousou o pé sôbre alguma espécie de emoção ao vê-Ia prestar atenção à en-
o pé da enfermeira. No silêncio daquela mesa onde fermeira. Sim. Não poderia estar enganada. Aquêle curto
todos a observavam com admiração e ínterêsse, a res- minuto em que seus olhos se aprofundaram nos seus,
piração daquela jovem se ouviu nítida e nervosa como trouxe-lhe forte sensação. A sensação do que ela estaria
se ela estivesse com mêdo de alguma coisa. experimentando ao descobrir-se assim tão-levianamente
desprezada. .
Eudemônia calcou o pé segurando o pé da moça.
Eudemônia prosseguiu com suas intenções.
Sorriu para ela e agradeceu quando as mãos que
achou delicadas, pousaram o prato à sua frente. A enfermeira estremecia a cada palavra e olhava
para os lados com receio de que as estivessem obser-
- Qual o seu nome? Importa-se em dizer? vando. Sua adesão era evidente.
152 CASSANDRA RIOS EUDEMONIA 153

Você não explicou ainda porque o meu nome re- facultativo que há pouco se aproximara, e, debruçando-
corda algo da sua vida. se perto, murmurara algumas palavras ao seu ouvido.
Eudemônia sorriu quando ela mudou a conversa Era, talvez, chegada a hora de se reunirem para de-
querendo evitar os elogios que lhe fazia. cidir qual seria a sentença. Por quanto tempo ainda
deveria permanecer prêsa ali e submetida a quais trata-
- Porque minha vida é amarga... amarga como
a inesperada prisão de um pássaro que desperdiçou a mentos.
vida em eterno e aventureiro vôo ... Um sorriso de escárnio transpareceu no rosto de
Porém aqui não é alguma prisão. . . não é zaíola ... Eudemônia.
há liberdade para todos. .. pode se distrair ... Olhou para a 'enfermeira fixamente, e, apontando
- Sempre acompanhada por enfermeiras horroro- com um movimento quase despercebido da cabeça comen-
tou com sarcasmo:
sas. .. por que você não foi a escolhida para mim? Vou
exigir que a transfiram ... - Os sentenciadores se retiram para diagnosticar.
Pobre Eudemônía ! Mal pode imaginar a que grau será
- Oh! não... não faça isso... não adiantará ...
rebaixada. Demente incurável, salteadora de corações
mesmo porque se aproxima minha vez de me revezar com
ingênuos e descuidados de pobres gazelas. .. Sou o gamo
Matilde, a sua enfermeira ...
que caminha pela estrada dos pecados, pervertendo ins-
- Ah!. .. E você esperava por isso? tintos. .. semeando 00 mal e glorificando o pecado ...
Por isso sou anormal e venenosa como disse a dra.
Os olhos da enfermeira dançaram sinuosamente den- Méltsia.
tro das órbitas. O jeitinho gracioso fêz com que Eude-
mônia sorrissse e prestasse realmente atenção a ela. A enfermeira, que a ouvira calada, franziu o sobre-
Entretanto não deixou de observar a doutôra por ins- cenho, demonstrando indignação.
tante. Nada que ela dissesse, nenhum dos seus gestos
lhe passou despercebido. Seu olhar parecia querer quei- - A dra. Méltsia lhe disse isso? Não posso crer!
má-Ia. A medida que o tempo passava, sentia mais forte - E por que não? - interrogou Eudemônia, en-
a necessidade de olhá-Ia e de ver seu rosto, sentir seu quanto olhava para a médica que passava próxima à
olhar, observar seus gestos. Teve vontade de ofendê-Ia e sua mesa nesse momento. Falou em tom mais alto e in-
arrancá-Ia dali à fôrça, para que f'ôsse somente sua. tencionalmente, para que ela a ouvisse:
De súbito a médica se levantou e preparou-se para - Disse que sou uma planta venenosa... provà-
se retirar em companhia de mais duas enfermeiras e do velmente enoontrarei outra que possua o mesmo veneno e
154 CASSANDRA RIOS EUDEMóNIA 155
com a qual possa sem-perigo cruzar minhas raizes ... Alguns discos mais giraram na vitrola. O tempo não
ou pior ainda, o que mais me incita, injetar meu veneno parecia ter passado desde aquêle instante em que a dra.
pouco e pouco até converter em igual a uma planta ... MéItsia passara perto dela, provàvelmente levando con-
arrogante ... altiva ... que não seja nociva ... sigo aquêle resto de palavras que ela proferira proposi-
Quando terminou de falar o ruído dos passos que se tadamente.
afastavam terminou com o som do movimento da porta Eudemônia nem percebera quando Marga se aproxi-
de vaivem do refeitório. Haviam todos se retirado. mara silenciosa fingindo que a encontrava ali por casua-
Eudemônia voltou-se para Marga e com naturali- lidade.
dade a convidou:
Quer me fazer companhia? Vamos até a sala ,te
música?
Marga fêz uma pausa meditativa antes <.terespon-
der. Olhou para os lados e depois propôs:
- Vá para lá... irei depois, assim que puder ...
espere-me e tenha certeza de que irei.
Eudemônia se despediu formalmente e saiu. Da
porta olhou-a ainda uma vez e se afastou. Pensava em
como fôra fácil conquistar aquela enfermeira. Ou quem
sabe ela nem havia interpretado mal suas palavras e
propostas. Não estava enganada. Ela a compreendera
perfeitamente.
Na sala de música o mesmo ambiente da vez ante-
rior que lá estivera, desfilou ante o olhar de Eudemônia.
Ela entrou e foi sentar-se na poltrona perto da janela,
lá onde já sentara uma vez ao lado da doutôra.
O fox repercutia notas insinuantes e envolventes. Pa-
lavras que ela traduziu fàcilmente, compreendendo o sen-
timentalismo do compositor europeu.
CAPíTULO X

Aquêle vulto branco parado ao seu lado logo des-


pertou a atenção de Eudemônía, que ergueu a cabeça,
indo fixar o olhar no rosto expressivo de Marga. Levan-
tou-se rápida e numa mesura cavalheiresca, ofereceu-lhe
a poltrona para que ela se sentasse.

Marga era uma criatura consideràvelmente bela. Os


cabelos negros e curtos penteados à moderna, os olhos
num contraste bizarro, claros e azuis, as sobrancelhas
negros e grossas, o queixo pequeno e quase quadrado,
tudo tão bem traçado, como se tivessem esculpido seu
rosto com medidas estudadas cuidadosamente. Depois,
aquêls seu aspecto de moça sabedora de sua sensualidade,
sabendo utilizar os dotes físicos e intelectuais, completa-
vam a atração que fàcilmente poderia exercer sôbre qual-
quer um.

Eudemônia num só olhar desnudou-a, Já conhecia os


segredos ocultos no íntimo de Marga. O olhar das duas
se revelaram cheios de mútuas intenções.
Ili
Nem por isso Eudemônia conseguia se libertar da
impressão forte que gritava dentro dela reclamando pela
Inédica exclusivamente. Farsa, era o que se escondia nas
intenções que ela simulava dirigir.
158 CASSANDRA RIOS EUDEMôNIA 159

Já lhe parecia um sonho impossível de ser reali- Eudemônia sorriu. Um sorriso malicioso que acusava.
zado mesmo a simples possibilidade de rever aquela mu- _ Oh. .. mas não pense tão mal a meu respeito .
lher que em tal momento deveria estar discutindo teorias é a primeira vez que me revelo ... nunca tive coragem .
a seu respeito. Algo lhe dizia que não a veria nunca mais desta vez joguei para perder ou ganhar ...
e com ela se iriam tôdas as suas aspirações. Que nessa
noite a dra. Méltsia diria pelo última vez o seu nome em - Não tenha mêdo. .. guardarei segrêdo. Agora se
voz alta para determinar seu julgamento. Ela era o único não se importar gostaria de me retirar. Estou indispos-
motivo que tornava aquêles dias de cativeiro numa esta- ta, com dor de cabeça. Pretendo me deitar cedo.
da no paraíso. Os planos para rever a doutôra come- Eudemônia se levantou e estendeu a mão para ela.
çaram a torturá-Ia. Os ímpetos de criatura que não se
deixa derrotar nem mesmo reconhecendo tantos obstá- *
culos, enchiam-lhe o cérebro de idéias complicadas. Um
mêdo terrível apoderou-se dela. A possibilidade de per- Quando a conquista era fácil, ela se tornava difícil
dê-Ia de vista obrigou-a a imaginar meios de evitar tal e vice-versa, para que a aventura tivesse mais sensação.
acontecimento. Tudo pareceu-lhe pela primeira vez im- Porém, dessa vez, muito embora Marga pudesse repre-
possível. sentar uma belíssima tentação, seus pensamentos esta-
vam firmes, imperiosamente atraídos para a doutôra,
Nada que pudesse fazer adiantaria alguma coisa.
Percebera o olhar decepcionado de Marga, que disfarçara
Derrotada pelo destino, Eudemônía contorceu as o sorriso que lhe embelezava os lábios e, sem dizer pala-
mãos sinistramente, como se preparasse um ataque con- vra, retribuira a despedida formalmente.
tra a própria "Providência".
A verdade é que na cabeça de Eudemdônía a imagem
Olhou para a enfermeira de alto abaixo e pergun- da outra pululava como ácido quente, empanando-lhe a
tou-lhe a queima-roupa: visão. A doutôra sobrepunha-se a tudo, tornando qual-
quer meio de fuga ao sentimento, procurando por ela,
- É capaz de confirmar mais diretamente as in- em alguma coisa de desagradável. A expressão do seu
tenções das nossas conversas? É capaz de confessar que ... rosto, do olhar, a lembrança da voz era como que- uma
~
- Que sou igual a você? Por que não? Sei a quem ordem para que ela a conservasse dentro de si mesma
confiar meus segredos ... como o mais delicioso romance de amor que poderia viver.

A resposta comprovava o temperamento franco e Que teriam decidido a seu respeito? E se a dra.
decidido daquela moça que a olhava de frente, quase que Méltsia para livrar-se de sua influência, com receio de
com desabusada irreverência. cair em suspeitas desagradáveis, sugerissse que ela de-

..
160 CASSANDRA RIOS
EUDEMONIA 161
veria ser transferida para outro hospital, outro qual- _ Acontece que ninguém vai _transformar Eudemô-
quer onde com tôda certeza ela não precisasse assisti-Ia. ma. _
. Sua vida já foi traçada, Seu_destino está se cum-
Enquanto caminhava de volta para o quarto, pen- --;-n·donão julgo- direito que. a convertamos em uma bIS-
prl,
samentos confusos provocavam borborinhos na cabeça de - --ual. Sería monstruoso diante
sex _ dos prmcipios que pro-
Eudemônia. Aquêle amor se transformava de um momen- VàVelmenteera~firma. Pode existir moral em sua per-
to para outro no único objetivo da sua vida. Sem êle não versão. o amor dessa espécie para ela é belo e puro,--êm-
õra suas ações e personalidade irreverente,~ impo-
lhe importaria morrer após consegui-Ia nem que preciso
nêncía e superioridade, o sentimentalisrnQ de Eudemô-
fôsse descer aos infernos para forjar entre os demônios
nia procura o eco das coi~rágeis e delicadas, ~elas
a arma que a conquistaria.
encontra oencanto do amor materno, fraternal, tôda espé-
A curiosidade levou-a até a porta do escritório do cie de amor que ~na in[ância~lhe n~garam. Se tiver que
dr. Jasper. Vozes discutiam lá dentro. Entre o murmú- mudar, somente ela poderá resolver. Sua....inteligência_e
rio de palavras que ela não compreendeu, a voz da dra. noção de raciocínio lhe darão as respostas que ela p~o-
Méltsia aclarou-se nítida. Ela a ouviu dizer, e seu cora- cura. Seríamos logrados se tentássemos convert~r umpi-
nheiro em uma cerej eira. .. e são árvores ...
ção pulsou acelerado:
-
Eudemônía poderia
----
ter um filho ...
_ Eudemônia não é nenhum difícil caso patológico
para se resolver. Ela é vítima de uma dúvida que de- O dr. Jasper ponderou ensimesmado. A médica Mélt-
pois de esclareci da a tornará uma criatura normal como sia se voltou. para êle expondo-lhe suas próprias preo-
qualquer outra. .. preciso é porém que ela cumpra essa cupações:
sentença ...
- O dr. Jasper está recordando as palavras do dr.
__ Méltsia,_julgJl, então que não seja difícil j;rans- Forbes. Pensa n.a geração da tradicional família. Pois
formar as idéias de uma mulher de vinte anos de idade bem, Eudemônia oomo último membro dessa família é
e que tõda a vida agiu como uma heterossexual, em uma C@em reSOTverá sJt a geração dos Forbes neve ou não
criatura normal Os atos simples da vida se tornam ví- prosseguir. Ela compreende perfeita~enteque ohõiiiõs-
I 8~xualismo não é hereditário e portanto a ~~ cabe a degí-
I I
cios, quanto mais não se arraigarão as anomalias? ..
~ao. " Se,. o ter filho, para ela fôr um sacrifício, espe-
O dr. Kermam revidou como se ela estivesse estig- r_emos para sabeê qual a sua capacidade, diante do dever
matizando aquêle caso. ~. Li o relatório do dr. Kermam e
do dr. Jasper, ouvi as impressões da~ enfermeiras, reli
A médica imaginando ouvir nítida de Eudemônia sua
meu próprio relatório e concluí em uma síntese bem clara
risadinha compreensiva, explicou seu ponto de vista: a expl' -
Icaçao para qualquer problema da mente de Eude-
162 CASSANDRA RIOS EUDEMÓNIÁ 163

mônia. Sei que as mesmas preocupações que há pouco _ Ciúme. .. por uma mulher... - respondeu o
provocaram a sugestão do dr. Jasper e do dr. Kermam , dr. Kermam olhando-a nos olhos com certa malícia.
também pululam na cabeça de Eudemônia e que ela pro-
_ Não foi ciúme realmente. Tenho certeza disso.
curará resolvê-Ias uma por uma. Eudemônia somente po-
E demônía não amava a essa mulher com tal loucura
deria se converter em uma heterossexual se o quisesse.
a uponto de cometer desatino. Lei~ mais uma ve~.e
- Então a senhora crê que devemos esquecer o caso se passou despercebido encontrara em meu relatório
de Eudemônia, isto é, procurar resolver apenas êsse pro- onde relatei as palavras exatas de Eudemônía o porquê,
blema, essa neurose que a converteu em uma assassina ... a chave dêsse desfecho... Para facilitar a sua pesquisa
- Eudemônia não é uma assassina! - interrom- faça uma comparação dos acontecimentos entre Silvana,
o tio e depois Mila. : .
peu-lhe a dra. Méltsia, olhando para o dr. Kermam fixa-
mente, como se quisesse vasculhar seu íntimo e fazê-lo - Sim, dra. Méltsia, concordo com essa assimila-
lembrar-se de que como psiquiatra deveria compreender ção de fatos, porém, voltando ao início da nossa conversa,
da mesma maneira que ela aquêle êrro de Eudemônia. quero que me responda então a esta pergunta, desde que
resolveu assim prontamente o problema do... com li-
_ Inconsciente ou não, Eudemônia praticou um cença, porém prefiro repetir, crime, qual julga que seja
crime, portanto é ... a origem da perversão de Eudemônía ? FIsicamente ela,
_ Não repita, dr. Kermam, Não repita - redar- tanto em função de glândulas, em resposta aos exames
guiu a médica acercando-se dêle e ajeitando os óculos feitos e assim também como nos testes, se apresenta
que falsearem em seu rosto com o gesto brusco que ela como uma criatura normal. Seu problema, portanto, é
fêz ao se levantar de inopino. Calou de súbito, surprêsa completamente psíquico. Será capaz de arrancar de den-
diante da própria revolta. Passou a mão pelos cabelos tro dela a resposta para isso? Serão vícios, caprichos
e relanceando o olhar para os lados, passando-o por sôbre de milionária que já provou de tudo ou realmente uma
todos aquêles rostos que se haviam voltado para ela e, neurose que mesmo depois de resolvido não resultará em
calma novamente, sentou-se entre o dr. Jasper e o dr. nada ...
Kermam: A doutôra permaneceu calada, refletindo, procuran-
_ Sei, doutor, que compreende tanto quanto eu êsse do as palavras adequadas para vencer aquela refrega.
problema, não posso admitir que considere um de nossos A atenção de todos estava voltada para ela. Todos os
pacientes como qualquer assassino ... vulgar. E se ela o olhares paralisados em seu rosto, esperando que ela come-
çasse a falar.
f'ôsse, não seria relmente uma infeliz, vítima dos pró-
prios instintos? Sabe, pode dizer-me que pensamento ob- Do outro lado da porta, escondida atrás de uma pi-
secante a levou à prática dêsse. .. gesto? lastra que sustentava um busto de mármore, Eudemô-
lê4 CASSANDRA RIOS EUDEMÕNIA 165

nia apertava a cabeça contra a madeira, esperando tam- A porta abriu-se com estrépito, quebrando o silên-
bém que ela falasse. Mal conseguia respirar, sufocada cio que se fizera.
por uma emoção imprevista. Estava trêmula e gelada
Todos se voltaram para ver.
diante da controvérsia que fervilhava aos seus ouvidos
como frangalhos de esperanças. Eudemônia desenhou-se com a sua alucinante ex-
O dr. Kermam duvidava que ela pudesse responder. pressão de embriaguez. Um silêncio expectants perdurou
Um sorriso prendia-se-lhe ao canto da bôca desdenhosa. por alguns instantes antes que o dr. Jasper se levantasse,
A dra. Méltsía observa va-o tamborilando com os dedos perguntando, calmo e indiferente, como se a sua apari-
sôbre a mesa. Era um de seus sestros quando pretendia ção ali não o tivesse surpreendido:
vencer a alguma coisa. Ela sorriu também e depois, tor-
- De onde vem' você agora, Eudemônia?
nando-se séria, suspirou como se fôsse entregar os pon-
tos e confirmar que não chegara a conclusão alguma. Sem desviar o olhar daqueles olhos translúcidos que
Porém ela falou: a fitavam inquisidores e aterrorizados. Pela primeira
_ Eudemônia é como um exemplo para nós, que vez revelando sentimentos e a existência de nervos que
quer confirmar que os segredos da origem do amor per- vibravam, Eudemônia respondeu; dirigindo-se ao dr.
manecerão insondáveis séculos após séculos. Sem razão Kermam que volvia o olhar de um para outro:
e sem motivo porque o amor surge sem que se possa
- Venho do éden das coisas luxuriosas. " dos ma-
evitar. Como a relva rasteira, produto da natureza, com
nanciais das lágrimas e sorrisos... da senda dos dese-
suas qualidades múltiplas, desconhecidas ou banais, pe-
jos inconfessáveis e dos pecados sem castigos, venho em
rigosas ou úteis que nascem de um mesmo corpo, ma-
busca da resposta da justiça, da sentença, que leva um
jestoso e fecundo. A terra. Sua mente é tôda uma tela inocente ao cadafalso...
de cenas proibidas que ela não se peja em descrever,
analisando impressões como um pintor revela os segre- - Não decidimos ainda, Eudemônia ...
dos das misturas de côres usando uma teoria muito pró-
Respondeu o dr. Jasper aproximando-se dela e con-
pria e básica. vidando-a para se sentar:
Ela fêz uma pausa e, como se revelasse mais com a
inflexãoemocionada que empregou na palavras, falou - Não há necessidade de se retirar, pode ficar ...
num transporte enlevado que fêz com que Eudemônia Eudemônia deu volta à mesa olhou para todos e sen-
estremecesse do outro lado: tou '
. -se ao lado do dr. Kermam. Observou-o de perto e sor-
_ Ela é como uma diabólica resposta de Satã a um riu, Não tinha aspecto de médico, poderia sim ser conside-
mistério de amor! rado engenheiro, advogado ou mesmo um galã de teatro!
CASSANDRA RIOS EUDEMÓNIA 167
166

porém nunca um psiquiatra. Tinha as pernas compridas, Aquêle sorriso atrevido que êle relanceou durante o
as canelas estavam estiradas por sob a mesa numa pose rto olhar que trocou com a doutôra, fêz com que Eu-
desajeitada, os braços também longos, porém troncudos, deu mônia compreendesse O d r. K ermarn ja ., es tiivera VIva-
.

os ombros largos. Um homem forte, de rosto bem ta- eente interessado em Méltsia. Talvez fôsse correspon-
lhado. Era realmente um belo espécimem da raça mas- dído. Lembrou-se da intimidade com que o tratara ao re-
voltar-se quando êle falara contra ela. Eudemônia quis
culina.
analisar a espécie de olhar que êle dirigia à doutôra, po-
Eudemônia percebeu que a insistência do olhar esta- rém nesse momento percebeu que êle, descuidadamente,
va intrigando, mas nem por isso deixou de fitá-lo. Queria esquecera o olhar sôbre seu corpo Propositadamente,
por um súbito capricho, desconcertar aquêle homem que com uma intenção que lhe surgiu de súbito à cabeça ela
desafiara a suadef ensora. Fitou-o mais fixamente e pon- respirou profundo fazendo com que os seios se elevassem
derou com todo o cinismo de mulher que sabia provocar: sinuosamente e depois baixassem vagarosos naquele mo-
vimento quase que imperceptível e sensual. Ajeitou-se na
- Por que não sentencia o senhor que foi meu psi-
poltrona cruzando as pernas e ergueu a cabeça olhan-
canalista? Terá mais capacidade para resolver essa cir-
do-a por cima de alto abaixo.
cunstância que os obrigaram a fazer serão. .. Não res-
pondi por acaso a tôdas as perguntas que me fêz duran- Uma das enfermeiras que se mantinham em silên-
te aquelas horas exaustivas de trabalho? Não respeitei cio pigarreou como se quisesse quebrar aquela tensão
suas indiscrições considerando-as apenas uma ... obri- que se fizera, como se todos temessem falar alguma coí-
gação de médico fôsse outro ... bem ... não admiti- sa. Era realmente inconcebível que uma mulher conse-
ria tais perguntas e. .. Eudemônia calou, julgando su-- guisse transformar assim sumidades como aquelas ali
ficiente o que dissera. reunidas, amordaçando-os apenas com sua presença, fa-
zendo-os caírem naquele mutismo, tornando-os ridículos
O dr. Kermam coçou o queixo e puxou alguns fios do comuns e incapazse.
bigode pardo e fino. Sorriu galhofeiro ao lembrar-se da-
queles dias e ponderou firmando-se em algumas palavras Uma voz ergueu-se dentro da sala:
que ela proferira durante as crises de nervos que ti- - Se a minha decisão corresponde à de todos como
vera: acaba de afirmar o dr. Kermam, a senhorita Eudemônia
- Realmente foi cansativo conseguir que falasse cumprirá a pena já comínada pelo juiz do Supremo Tribu-
alguma coisa, porém aquilo não passou de mera rotina, nal. Restam-lhe nove meses aqui submetendo-se à te-
~ '
"question de service" creio que todos já chegamos a uma, rapeutica que convier ao seu caso. Depois de cumprida a
conclusão depois dos esclarecimentos da digníssima dou- sentença, ela, como maior, resolverá se lhe interessa pros-
seguir em tratamentos psicológicos.
tôra Méltsía, não é?
168 CASSANDRA RIOS E'UDEMóNIA 169

Fôra a dra. Méltsia quem falara. êle seu jeito de galã que desconhece sua qualidade e
Eudemônia sorriu e ponderou ainda cínica e desa-
aque
·
tIpO. Eudemônia acercou-se dAIe e e pergun t ou, finei
ingm d o
A·· t -
ingenuidade de garota mexperren e que nao compreen e
d
fiadora : ~
,
I I
I
o sentido da palavra:
- Se até lá eu chegar a me considerar uma débil
_ Doutor. .. quem é cínico é doente mental? O
mental ou uma planta venenosa, não restam dúvidas que
sarcasmo de quem se diverte com os outros que nos
por livre e espontânea vontade recorra aos senhores ...
olham como se fôssemos criaturas estranhas, como se
O gesto extensivo que fêz foi observado quando ela tivéssemos listras no COTpO como as zebras, é mal psí-
estendeu o braço apontando-os num movimento quase quico. E' dr .. Kermam? O que é cinismo e sarcasmo?
que relaxado. - Provàvelmente reflexos de um instinto perverso
- Há alguma observação a ser feita antes de encer- que quer desculpar com tais atitudes a verdade que co-
rarmos nossa reunião? nhece perfeitamente. .. pode também ser como um sor-
riso que desculpa e compreende a razão da dúvida da-
Ninguém objetou nem demonstrou querer comentar
quele a quem julga como inimigo ...
alguma coisa.
- Justamente ... o sorriso de quem sabe que água
Todos se levantaram para se retirar: Eudemônia é água e que se diverte ao observar outros discutirem
então, que continuara sentada, levantou-se também e entre a dúvida se é vinho ou vinagre. Pois eu sei que
o.

avisou alto para que todos a ouvissem: gostaria de provar o meu tempêro!
- Não quero tratamentos por choques nem banhos Dr. Kermam pigarreou.
estáticos ou qualquer outra coisa elétrica. - Ela sorriu
para a doutôra, que tentara ocultar o desejo de rir que - Eudemônia, quero avisá-Ia de que não podemos
sentira ao ouví-la falar naquele tom sarcástico e en- mais consentir que você fique perambulando pelo hos-
graçado, e continuou: - Se estou realmente doente pro- pital a tais horas e que deverá recolher-se tôdas as. noites,
meto que os ajudarei a resolver meu caso, com essa con- duas horas após o jantar ... - Veio a voz do dr. Jasper
salvar aquela situação.
dição, do contrário sairei daqui como uma bobina ou
dona Fany Quito... eu não preciso disso... se é ne- - São ordens? - perguntou ela ao dr. Jasper, que
cessário fazer relatórios para sínteses eu falarei e con- a tomou pelo braço fazendo-a caminhar ao seu lado. Êle
completou:
tarei tudo e repetirei quantas vêzes necessárias forem
para que compreendam. Prometo dístraí-los com minhas - São deveres... normas dêste hospital ...
aventuras. .. cenas de melodramáticas loucuras ...
._ - Quer dizer qus de hoje em diante terei um guar-
O dr. Kermam olhou-a demorada e fixamente com dlao à minha porta? .
170 CASSANDRA RIOS E·UDEMõNIA 171
Não é necessário. .. se acontece quaquer coisa
A dra. Méltsia trancava-a na prisão e fugia para não
em relação a qualquer paciente sabemos como agir sem
vê-Ia mais. Deixava-a nas mãos daquel:s home~s que
precisar que êles se julguem prisioneiros Confiamos em
'amais poderiam compreender o verdadeiro conflito que
nossas análises e sabemos a quem guardar ...
~ matava, porque ela nunca proferiria palavra alguma a
- Agradeço a confiança ... respeito daquele amor que surgira assim, num descuidado
passe de mágica.
O dr. Jasper calou-se e voltou um passo para o lado
da dra. Méltsia que os seguia em companhia das duas Eudemônia olhou para trás. O corredor estava vazio.
enfermeiras e de dois médicos. Tudo mergulhado em semí-escurtdão, silencioso e som-
_ Boa-noite, dra. Méltsia, amanhã chegarei cedo ... brio. Do outro lado, o dr. J asper sumia por trás da porta
de vaivem do gabinete. Algumas enfermeiras conver-
desejo-lhe uma ótima viagem ...
savam baixinho. Outras se afastavam em direções opos-
Eudemônia, que trazia na expressão, calma e segu- tas a fim de inspecionar os corredores. Eudemônía ficou
rança, estremeceu diante da reveladora despedida. Os ali por algum tempo, observando tudo como se pela pri-
olhos se ofuscaram emitindo a forte impressão que aque- meira vez lhe interessasse conhecer a disposição das coi-
las palavras haviam provocado. Os lábios ficaram lí- sas do hospital.
vidos e ela não se atreveu a dizer nada. Cerrou os
dentes com fôrça até fazê-los ranger, contraiu-se num Contou três portas depois da sua ,até à portaria,
pavor de frustração e permaneceu assim, calada e imó- que ficava de frente centralizando o corredor comprido
vel, olhando para ela. ladeado por portas, cada uma diferente da outra. Ao
lado esquerdo e à direita seguiam-se outros corredores
O dr .. Jasper puxou-a pelo braço despertando-a da-
que se iam dividindo em encruzilhadas centralizadas por
quele doloroso suspense. outras portarias onde ficavam as enfermeiras-vigias.
- Vamos, Eudemônia ... De lá tudo se observava, especialmente as portas dos
quartos dos internos.
Nenhuma palavra saiu de seus lábios. Ela se afas-
tou sentindo o coração pular dentro do peito como se Não demorou para que uma enfermeira a visse ali
lutasse pela última caminhada na longa estrada da vida. parada, perscrutando tudo daquela maneira calculadora,
e se acercou perguntando-lhe se desejaria alguma coisa.
Era a resposta àquela sentença que ela dera e a
confirmação de suas suposições. Eudemônia respondeu que não e abriu a porta do
quarto. Antes de entrar voltou-se e chamou a enfermei-
Ela fugia. ra que já se distanciara.
172 CASSANDRA RIOS E'UDEMONIA 173

- Por favor, diga à dra. Méltsia que preciso fa- derno de notas sôbre os joelhos, ajeitou os óculos no
lar-lhe com ur~ência... diga-lhe que traga seu caderno ca to continu'Üu em silêncio como se respeitasse o seu ner-
de notas ... ros , 'd' . - , I
vosismo e ali estivesse a sua isposiçao, a espera que e a
A enfermeira aquiesceu e caminhou em direção do ordenasse algo.
quarto da médica para transmitir-lhe o recado. Eudemônia estendeu-se em decúbito sôbre a cama,
a face debruçada no travesseiro.
Eudemônia entrou e correu para o grande armário
de parede. Num segundo trocou de roupa. Vestiu o pija- _ Dra. Méltsia... apague a luz oontral... deixe
ma de corte masculino, pôs o roupão, e sentou-se à beira apenas o abajur aceso. Façamos o ambiente necessá-
da cama. rio ... - Fêz uma pausa e acrescentou: - para ajudar
o doente a falar. .. '
*
A médica levantou-se e foi até a porta. Apertou o
Aquela fôra a única idéia certa que lhe surgira comutador e a penumbra envolveu-as com 'Ü seu mis-
assim inesperadamente, para que ela pudesse ver talvez tério acolhedor e insinuante. Deu alguns passos e sen-
pela última vez, a mulher que amava. Não lhe impor- tou-se novamente.
tava parecer realmente necessitada por falar de coisas que - Ouvi a conversa do escritório... não pude re-
nem sequer a importunavam mais. Na perspectiva de frear meu impulso de curiosidade... de escutar atrás
perdê-Ia para sempre, nem lhe interessava saber que da porta. Reconheço, é uma falta grave de quem se pre-
rumo iria tomar sua vida, nem o paradeiro de Mila, e cipita para desfazer uma dúvida que a atormenta; que-
pouco identificar o vulto que suscitava a cruel e bárbara ria saber o que a senhora falaria de mim. Qual a sua
dúvida. acusação ... e se ... - Eudemônia parou de falar, vi-
Aquela batida na porta fê-Ia estremecer como se rou-se na cama, deitou-se de costas, fixou o olhar no teto,
fôsse enfrentan a mais terrível hora de sua extstencia. olhou para ela de novo e completou: - ... e se con-
taria o que fiz ...
Num esf'ôrço supremo, respondeu que entrassem.
Um silêncio profundo pesou na atmosfera. Foi uma
A dra , Méltsia aproximou-se depois. de fechar a pausa longa.
porta. Eudemônia mal conseguia fitá-Ia. Estava nervosa
e trêmula, impossibilitada de falar. De súbito, Eudemônía levantou-se e, num passo cal.
culado, atirou-se de joelhos ao lado da poltrona. Abra-
Sem dizer uma palavra, a doutôra foi sentar-se. na, ç?u·a pelas pernas debruçando a cabeça em seu colo. Foi
poltrona que estava ao lado direito da cama. Depositou o tao rapí
' id o que não houve nem tempo para surprêsa.
174 CASSANDRA RIOS EUDEMõNIA 175

Méltsia. .. não se vá... preciso de você... eu Congratule_-se com os-outros, doutôra, Eudemônia
estou doente sim... muito doente... só você poderá inclina a cabeça e acrS!4ita-<}u.9_estª realmente_loucl!..' .
curar-me. .. não se vá ... vitima de uma tara anill!.ales~ epsícossexual.jlçntretanto
a-lésbica fornecerá...à . . tra os últimos uadrQS sinto-
- Eudemônia, meu bem, levante-se... não fique
máti~os que completarão, o seu relatório de fatôres etioló-
assim. .. vá sentar-se em sua cama, por favor. .. levan-
gÍcos. AsSIm, agrupados em uma_só.....sín.tese os síntomas
te-se ...
revO]lâdos completarão Q tratado .sexual diLvida_ de Eude-
Estremecida e fraca a voz dela ressou. As mãos ~õnill não é dra. Méltsia? Desde a vida anímica de crian-
geladas, ergueram a cabeça de Eudemônía fazendo-a ça, da ~a-se-recórda com exata segurança, às conclu-
olhar para si. Os olhos cintilavam estranhamente numa sões roubadas das teorias tão mal-explícadas nos livros, à
expressão desconhecida. Ela também estava trêmula como psicologia empírica de uma vida analisada pelas refle-
se não conseguisse vencer a forte impressão que lhe cau- xões. Página por página relatará os crimes de sua vida,
sava a aproximação de Eudemônia. A voz ressoou num originados por terrível e perigosa tara que se denomina:
timbre novo: Amor. Obsessão pelo que é belo. Venha, sente-se mais
- Levante-se, Eudemônia . Vá se deitar. Não pode perto para ouvir melhor os segredos finais de Eudemô-
se deixar vencer assim. nia. E veja em cada beijo o sinal do fim de uma existên-
cia aventurosa. Um desastre de sensações inéditas. Nas
Enérgica como se tivesse logrado recuperar o con-
mãos do desejo a sentença do pecado -.Aqui está ela, dou-
trôle, rápida levantou-se sem conseguir, entretanto, livrar-
tõra, como a mais degenerada sacrílega aj oelhada aos
se daqueles braços que lhe rodeavam as pernas.
pés do santo confessar ou com a cabeça pendida no al-
Eudemônía olhou para ela em silêncio reflexivo. tar dos sacrifícios à mercê do bárbaro carrasco. Deixe
Seus grandes olhos lampejaram uma sinistra ameaça: cair a guilhotina! Veja-o no lápis prêso em seus dedos.
- Se eu quiser derrubá-Ia e agarrá-Ia aqui no chão, Escreva de início a causa do castigo. A razão porque me
será fácil agora, prendendo-a assim. Entretanto vou sol- condenaram, com letras maiúsculas. A gênese da neu-
tá-Ia ... perdoa a minha fraqueza momentânea. Não resta rose, duvido que a encontre. O meu caso denomina-se:
dúvida que o meu lamentável procedimento de uns tem- ÂIn.Qr, apenas Amor.
pos para cá é mais do que o resultado da solidão e da ele-
Eudemônia esbravejou neurastênicamente num aflu-
troterapía desnecessária à qual me submeteram logo que
xo de revolta. Tudo de um fôlego, só, atropelando as pa-
aqui cheguei.
lavras que saíam fáceis e espontâneas de seus lábios,
Eudemônia afrouxou os braços e soltou-a. Levantou- que se contraíam e se estiravam em influxos nervosos.
se. Olhou-a de perto face a face. Continuou no mesmo A~ mãos gesticulavam como se não conseguisse evitar
tom mordaz e intencionalmente ferino : o unpulso agressivo que lhe retesava os dedos. Ela se
176 CASSANDRA RIOS EUDEMÓNIA 177

atirou sôbre a cama e permaneceu calada respirando com Eudemônia ergueu o braço e deixou-o cair sôbre a
aflição, como se lhe doesse o peito, como. se os pulmões cama vagarosamente. Sorriu, e uma expressão calma
estivessem prestes a estourar. surgIU delicada e serena.

A médica mantinha-se imóvel, fitando-a de longe _ Doutôra, exaltei-me e continuo sarcástica, po-
corno que possuída de um estranho e inevitável estarre. rém eu sei que a senhora compreende, e o meu cinismo
cimento. apenas quer encobrir algo ...

- Sente-se! Apronte-se para ouvir! - gritou Eu- - Eudemônia. - A voz dela ressoou confortadora.
demônía voltando o rosto para ela. Os olhos faiscavam
-Você teve alguma vez como confidente alguém a
com aquêle brilho eletrizante farto de expressões.
quem connasse os seus mais secretos pensamentos 7 Re-
A doutôra deu alguns passos e sentou-se na pol- vetou seus impulsos desabafando-se num momento difí-
trona. cil da sua vida, para recuperar a calma e a paz de es-
pírito?
- Vou revelar um sentimento que ocultei quando
narrei a passagem entre mim e Silvana. Silvana foi quem --Não. Nunca revelei a ninguém o verdadeiro re-
aguçou em mim o instinto da vingança. Sua traição trato de Eudemônia. Acedi apenas aos meus impulsos
revoltou-me furiossamente. Embora audaciosa, capricho- e caprichos, atirando-me a tôda espécie de aventura e
sa e aventureira eu era obediente e compreensiva. Dei- sõmente o que puderam observar, serviu para que me
xei de vê-Ia porque reconheci a razão dos conselhos e as julgassem. Fui apenas personagem de uma história-em-
palavras de meu tio, porém intimamente eu os odiei, quadrinhos, sem legenda. Interpretaram minhas expres-
como se odeia um rival e uma infiel. O tempo se encarre- sões como quiseram.
gou de arrefecer meu ódio porque eu compreendia per-
fetamente que o meu sentimento por Silvana não era amor - Pois então, como se fôsse sua imagem refletida
num espelho, a parte silenciosa de você, a segunda voz
verdadeiro. Considerando assim, prometi que tiraria re-
de sua consciência, conta-me tudo, desde o mais insigni-
vanche no dia em que outra mulher me traísse. Lógica-
ficante ao qué mais lhe impressionou e fale mesmo que
mente também, mais uma vez o tempo se incumbiu de
a palavra seja muito difícil, mesmo que o pensamento
fazer-me esquecer tais pensamentos e tudo dentro de
não queira se tornar nítido. Se houver alguma sombra
mim voltou a ser como dantes. Simples e calmo. Eis, dou-
não passe por sôbre ela, e por mais cruel que seja, exa-
tôra, uma prova da minha memória; parei de contar-
mine o resto da dúvida que a tortura. Arregale os olhos
lhe minha vida no ponto em que saí em companhia do
do cérebro e veja através das nuvens que quiserem es-
meu pai, do país onde vivia. Exato?
conder alguma coisa, a verdade que provàvelmente você
Ela apenas acenou que sim.
118 CASSANDRA RIOS EUDEMÓNIA 179

desprezou, como se fôsse o mais monstruoso acontsn], a cabeça e olhou para o caderno de notas. Escreveu uma
mento, data e, muito séria, como se nada a estivesse pertur-
bando, voltou ao motivo que a levara até ali:
Eudemônia perscrutava-a e ouvia-a falar, com aten-
ção. Os cílios estremeceram e as pupilas luziram mais vi- _ Como conheceu Mila? Quer contar? Sente-se dis-
vamente como se tivessem mergulhado num lago límpido posta a falar?
que estava quase a transbordar. pensar que seria, tal-
Eudemônia não pôde se demorar naquela emoção que
vez a última vez que a teria ante os olhos, intocável, mas
a avassalara ao ouvir as palavras que ela proferira como-
real, enfebreceu-a num súbito e descontrolado bater do
vida e respondeu empolgada por uma disposição ardente:
coração. A pergunta veio-lhe aos lábios, trêmula, po-
rém, exigindo resposta: - Sim. .. quero contar tudo... apenas para que
conheça minha vida. .. porém creia que o faço em nome
- Por que vai fugir de mim de um amor ... ao qual vou renunciar.
- Mas quem lhe disse isso, criatura? - Exclamou
A expressão do rosto da doutôra se transformou exa-
ela sentimentalmente. tamente como Eudemônia imaginara que seria quando
- Por que vai viajar, então? proferisse essas palavras, calculadamente como se ati-
rasse uma pedra contra uma árvore para derrubar uma
_ Porque chegou o momento de resolver certos fruta. E conseguiu-o. Ela sofrera com a ameaça e se ca-
problemas ... lava, abaixava as pálpebras para esconder o brilho do
- Voltará? São problemas particulares? olhar que vacilava entre lágrimas inesperadas. Por mais
imperceptível que fôsse um novo sentimento existia den-
- Sim. tro dela. Eudemônia vencia-a passo a passo e proferiu
Ficará muito tempo fora? Vai para muito longe? ainda querendo provocá-Ia mais.

Os quilômetros que separam uma cidade da ou- - Vcu renunciar à única razão de minha vida para
tra não significam distância para mim... nem as ho- que no diagnóstico escrevam esta palavra: Normal. Su-
ras e nem os séculos representam o tempo. É o pensa- focarei a voz do meu instinto e serei indiferente, fútil,
mento que tudo determina. Se não quer que eu vá, não banal. '. vazia... uma mulher comum.
conte o dia da partida e não aguarde o dia da chegada.
Era incrível que se sentisse assim vítima de súbito
Eudemônia esperou que ela continuasse a falar, po- temor, impossibilitada de falar, nervosa e aflita. Mélt-
rém aquelas palavras haviam fugido de dentro da dou- aia começava a se desconhecer, ou melhor, começava a
tôra, num descuido de inconsciente emoção. Ela abaixou perceber que também era humana e como uma criatura
180 CASSANDRA RIOS

que possuía um coração, sofria as inesperadas investi_


das do destino que abrira uma nova porta em sua vida
para que ela descobrisse coisas de si mesma que nunca
poderia supor tivesse dentro. Ela se debruçava nas va-
gas dos pensamentos novos e Eudemônia, observando_
a continuava com a sua provocação:
- Continuará a geração dos Forbes... cumprirei CAPITULO XI
com meu dever, como mulher. Cerá até que ponto chega
a capacidaded e Eudemônia... Escolherei um homem
forte e belo para que meu descendente possa continuar a Eudemônia estava s6.
dar vida ao meu nome tradicional. Quer aj udar-me na.
escolha? Teve então o choque fatal do desengano. Sofreu o
tenebroso mêdo de nunca mais ver aquela criatura que
Já, o coração da doutôra disparara descontrolada- ela acreditava jamais ser capaz de esquecer. Per-
mente. Pela primeira vez um gesto de nervosismo com- cebeu a sombra do sofrimento perseguindo-a em noites
pletou-se. Ele se levantou e ofegante, o olhar aceso como longas de terríveis pesadelos. Noites e dias vazios e de
uma estrêra que brilha pela primeira vez, apertou o ca- tédio. Percebeu no bater enfraquecido do coração a fal-
derno de notas contra o peito e tão rápida para que .c.,,: ta que 'Méltsia significaria em sua vida nos dias que
demônia não pudesse impedi-Ia atravessou o quarto e viriam. Tufões de pensamentos enfureceram-lhe o cére-
saiu. bro, borrasca de lágrimas incontidas que deslizavam des-
Eudemônia nem mesmo tinha certeza de que a cha- percebidamente uma atrás da outra pela sua face onde
mara para que voltasse. O caso é que o nome dela se a expressão da tristeza se revelava. E no afã cerebral
repetia dentro, por todo o seu ser, furiosamente. da congestão do amor que a arrebatava, Eudemônia ca-
minhou até a porta do quarto, perscrutou os corredores
Méltsia saíra e o silêncio, ficara no lugar dela. Um e depois, sem olhar para trás, atravessou a pequena
, silêncio pesado, chocante e insuportável. distância que a levou até às portas do quarto da doutôra.
Ali Chegando, parou indecisa e alquebrada. Encostou-se
na parede como se precisasse amparar-se talo nervosis-
mo de que se deixava vencer .
. Eudemônia, pela primeira vez na vida, estava ín-
d~CIsa, não sabia como agir para satisfazer seu impe-
rIOSO • tí
IDs IDto.
. Vacilava receosa , com medo de não ser
183
E'UDEMONIA
182 CASSANDRA RIOS
Ela não se demorou. Girou a chave na fechadura e
recebida, com O pavor de mil coisas que se apresentaram
a porta se escancarou.
como decepcionantes motivos para que ela voltasse para
o quarto. Eudemônia cambaleou para dentro da sala.
Pôs a mão no trinco e girou-o. Empurrou a porta A doutôra avançou para ela e segurou-a pelo bra-
mas ela não se moveu. Estava fechada. ço para que ela conseguisse alcançar a poltrona. Eude-
mônia sentou-se e inclinou a cabeça, escondendo o rosto
Ela deu alguns passos pelo corredor como se pre-
tendesse partir dali, porém voltou e dessa vez fechando entre as mãos.
a mão foi descendo o braço lentamente e bateu duas vê- _ O que você tem, Eudemônia? ..
zes à porta. Duas batidas fracas que foram respon-
_ Ohl. .. você não compreende? É incapaz de ver
didas pela luz que se refletiu no chão através da fresta
o que está acontecendo comigo? Não percebe?.. Não
da porta.
se convence?
Passos leves ressoaram lã dentro. Aproximavam-se.
Eud=mônía ergueu-se e se aproximou dela, olhan-
Eudemônia firmou a mão no trinco e se abandonou do-a com uma expressão desesperada. Olhou para a por-
tôda, amparando-se naquela madeira envernizada que a ta que ainda continuava aberta e um pensamento louco
separava de Méltsia. a domino ti. Como se fôsse muito difícil caminhar deu
- Quem é? alguns passos vacilantes e empurrou a porta. Antes que
a doutôra pudesse impedir, girou a chave e guardou-a
A voz da doutôra vibrou preocupada fazendo-a es-
no bôlso do roupão.
tremecer e chegar ao limiar do desfalecimento. Eude-
mônia não respondeu. Não tinha fôrças para falar e se As duas ficaram se olhando silenciosamente.
tivesse fôrças para fazer alguma coisa sairia correndo,
Uma, ameaçadora e insinuante. A outra, numa ex-
talvez não parasse nunca. Numa fuga vertiginosa àque-
pectativa embaraçosa, calculando o que estaria para
la tentação, àquele amor que surgira para confundir seus
acontecer, medrosa e trêmula.
dias de cativeiro entre o céu e o inferno. A voz de Mélt-
sia ressoou novamente. Eudemônia entreabriu os 'ábios. A dra. Méltsia entreabriu os lábios para falar. Eu-
demônia correu para ela e pôs' a mão em sua bõca aper-
_ Sou eu... Eudemônia... abra... preciso falar-
tando-a de encontro ao corpo com uma fôrça imprevista.
lhe ... por favor ... Arrastou-a para perto da outra porta e apagou a luz.
Numa súplica dolorosa as palavras sairam espaça-
Passos soaram no corredor e se afastaram.
das daquela garganta que se contraía engolindo saliva.
como se estivesse com desesperadora sêde.
184 CASSANDRA RIOS E'UDEMóNIA 185
A dra. Méltsia compreendeu que Eudemônia julgara _ J!; apenas para que se acalme. Está muito ner-
que ela fôsse gritar.
vosa ...
Eudemônia continuou apertando-a com fôrça. Aquela
- Aproveite. .. analise-me... anote suas impres-
aproximação fê-Ia sentir o seu perfume. Méltsia estre- sões no relatório... Analise o que pode provocar um
mecia entre seus braços e o seu calor era todo humano,
abraço ...
vibrante, excitante.
- Eudemônia, é muito tarde, volte para o seu quarto.
Eudemônia fitou-a nos olhos, fixamente, enlevada,
Peço-lhe que me solte. Está me machucando.
querendo ler o que êles diziam.
A doutôra tentou empurrá-Ia.
A doutôra estava passiva nos seus braços, sem es-
boçar o mais disfarçado movimento para se libertar de Eudemônia sorriu e apertou-a com mais fôrça.
tão forte amplexo.
- Não lute. Vou soltá-Ia. Não vim aqui para con-
Apenas os seus olhos irradiavam uma fôrça estra- segui-Ia à f'ôrça. Quero apenas que me responda porque
nha que fêz com que Eudemônia reclamassse descon- se impressionou quando eu lhe pedi que me ajudasse r
trolada: escolher um homem para mim... por que correu? ..
- Por que me olha assim? Por que não tenta esca- Ofendi-a tanto assim, ou ...
par? .. - Oh! cale-se e solte-me, por favor ...
Os olhos de Méltsia se apertaram e depois entreabri-
- Prometa, primeiramente, que não me obrigará a
ram-se lentamente. Os cílios recurvados e compridos
sair daqui agora. Prometa que me atenderá... como
pareciam formar uma rêde para esconder seu olhar.
minha psiquiatra... preciso-a, agora ...
Eudemônia tirou a mão de sua bôca e disse nova-
- Prometo. Sempre a atenderia a qualquer hora
mente entre suplicante e dominadora:
que fôsse necessário ... agora, deixa-me ...
- Fale... diga alguma coisa... manda-me embo-
ra ... esbofeteíe-me ... por falar nisso, o que sentiu aque- A aflição das duas, embora por motivos contrários,
era intensa. Eudemônia não se resolvia a afrouxar os
la noite quando me bateu? .. Sentiu-se vingada? ..
braços para soltá-Ia, muito ao contrário. desejava ar-
- Não se descontrole, Eudemônia... tenha cal- dentemente que ela permanecesse em silêncio, agarrada
ma ... vou dar-lhe algo para tomar ... a ela nurn.amplexo interminável.
Mas, desde quando pensa que sou tão imbecil? Amor A pouco e pouco, entretanto, foi desprendendo-se
não se mata com pílulas ... dela até que a dra, Méltsia pôde se mover e se afastar.
186 CASSANDRA RIOS EUDEMÔNIA 187

Eudemônia deu alguns passos em direção da outra _ Então confessa que tem mêdo de mim? Tenho
sala. Da porta notou pela primeira vez ao lado da es- notado suas descuidadas expressões apreensivas.
tante central uma outra porta entreaberta. Caminhou
_ Não tenho medo de você. Apenas não gosto de
para lá seguida pela doutôra, que lhe pediu.
suas atitudes atrevidas. Não se aproveite de sua situa-
_ Não entre aí, por favor ... ção, Eudemônia, raciocine uma só vez e seja a mulher
de personalidade que você esconde dentro de si mesma.
Eudemônia parou e voltou-se para olhá-Ia. Um sor-
Deixe de ser sarcástica e não ofenda mais ninguém, não
riso maldoso e desconfiado contraiu seus lábios.
abuse da consideração com que a tratam.
--Ah !. .. com que então, esconde alguém... quero
Méltsia calou e aproveitou-se do silêncio absorven-
ver quem é ... te de Eudemônia, a fim de voltar para a sala. Eudemõ-
Correu e atravessou aquela porta rápida, descon- nía pouco depois apareceu. O olhar cintilava reflexões
fiada: de mágoa ou de revolta A expressão- mordaz transfor-
mara-se em máscara onde sentimentos desconhecidos se
Era o quarto dela. Vazio. A cama preparada, os len-
revelavam.
çóis dobrados na cabeceira, por cima do cobertor de lã.
Ao lado as chinelinhas e sôbre o criado-mudo, um copo A médica observou-a meditando se não fôra longe
de leite e um vidro de pílulas. Eudemônia aproximou-se demais ao usar aquelas. expressões. Seus olhos esga-
e leu o rótulo. Cápsulas para dormir. Do outro lado, no zearam-se por sob as pálpebras, que semícerraram-se,
outro criado-mudo tipo estante para livros, uma pasta, como se ela quisesse recolher fôrças dentro de si para en-
Eudemônia ainda teve tempo para ler seu nome na capa, frentar Eudemônia.
antes que ela imprevistamente a pegasse, apertando-a
Continuou sentada na poltrona esperando que ela
contra o peito. Afastou-se para o outro lado da cama
agisse. Agora estava confusa, sem conseguir pensar, sem
e disse: saber o que esperar daquela mulher que caminhava em
_ Por favor, vamos para a sala. sua direção, obrigando-a a reconhecer o. seu poder.

_ Gostaria de ver .o conteúdo dessa pasta .. , deve Eudemônía desviou-se para o sofá e se estendeu nêle,
ser interessante ler um relatório a meu respeito ... numa poso largada com se um cansaço intenso tivesse
lhe aniquilado tôda a disposição.
-Não se aproxime... - avisou a doutôra pondo-
se de sobreaviso quando viu Eudemônia dar um primeiro - Tem 'razão, doutõra, tenho sido estranha para
passo em sua direção. Eudemônia parou e sorriu satis- mim mesma. Meus pensamentos, minhas ações, tudo que
feita. faço tem provocado uma confusão tão grande que nem
188 CASSANDRA RIOS EUDEMôNIA 189

eu sei o que sou, ou porque vivo. Observada por tanta a mão para ajudá-Ia a seguir ao encontro da razão ...
gente, analisada e prêsa aqui, sinto como se represen~ sem exigir mais do que lhe possam dar, sem dar mais
tasse uma personalidade estranha, desempenhando um pa- do que você mesma possa sentir. Tudo que acontece
pel cuja verdadeira acepção ignoro. Quando terminará aqui permanece trancado, íntocável, e essas pastas vão,
esta luta? Tanto tempo falta ainda. Minha revolta, para os arquivos sem nome que condene o paciente.
meu desespêro, o que me trouxe aqui, foi o mesmo di- Esta pasta tem seu nome, porque eu a separei dos ou-
reito que tôda criatura tem por reclamar pelas coisas tros relatórios. Ficará guardada em meu escrit6rio e
que podem tornar sua vida menos amarga. Eu a te~ quando você partir, ela será queimada. Prometo. Não
nho tratado mal, desrespeitando-a, entretanto, significa sei porque o faço, porém, essa é minha intenção, Não
para mim a sua presença confôrto, um alento para que pergunte nada. Agora, se ainda está disposta pode co-
eu possa suportar a sentença do meu pecado. .. Roubo- meçar com a sua narrativa e não pense que está me fa-
lhe noites de descanso, abuso de sua paciência, aprovei- zendo perder uma noite de descanço. Na realidade, es-
to-me de sua bondade e pior que tudo, ainda há pouco, tou sem sono e pretendia ler, talvez até tarde ...
por duas vêzes ofendi-a com minha desconfiança s6r~ - Prefiro conversar à noite. A senhora, por favor,
dída e minhas palavras torpes... Pedir desculpas não há tanto tempo a trato uma vez por senhora, outra
adianta, porém, para que leve de mim o tudo que lhe por você, permita-me que a trate da segunda maneira '!
posso dar, vou contar-lhe minha vida a fim de que uma - Sim,
vez mais a senhora complete um relatório e encerre um
caderno de sínteses psicológicas a respeito de outro pa- - Pois .bem, é evidente que você já compreendeu
ciente. Sinto não poder lhe dar a satisfação de transfor- ser um pretexto para ficar mais tempo ao seu lado o
mar-me em uma mulher igual às outras, porém para pro- que me faz escolher a noite para conversar, é também
var-lhe que s6 por você sou capaz do mais doloroso sa- um hábito. Sempre dormi tarde da noite, a vida lá fora
crifício, contudo, não me tornando uma bissexual, serei é diferente, sem horários, tôda noturna, tôda luzes e
mãe. .. Não me horroriza tal idéia, apenas não gostn- penumbra. " a vida aventureira das madrugadas, não
ria de consumar o ato sexual. " com um homem ... Se assuste, perguntará por certo a si mesma como uma
mulher como eu, tinha coragem de ir a cabarés, bua-
- Eudemônia, não o faça! Não se precipite nas tes e tantos outros lugares suspeitos. Curiosidade, boê-
ações! E nem pense que eu lhe pedi tal coisa. Quero mia. Gosto de observar a vida por todos os lados, co-
apenas que saia dêste hospital tranqüila, com êsses pro- nhecer tudo, saber de tudo. Assim compreendi a vida
blemas mentais. resolvidos, tôdas as dúvidas esclare- das esquinas e conheci mulheres das madrugadas, quan-
cidas. Dependerá exclusivamente de você a escolha do tos prOblemas, quantos sofrimentos transitando pelas
caminho que se decidir a seguir. ninguém poderá mais ruas. Quantas lágrimas derramadas pelas calçadas da
do que tentar indicar-lhe a direção certa e estender-lhe
190 CASSANDRA RIOS EUDEMÓNIA 191
vida. E eu que a tudo observei, que tentei erguer al- Vítor, Leila e Maura eram
os companheiros para
guém, cheguei a isto. Crêem que conheci Mila em um baile as noite de orgia. Combinav~m. na escolha das dístra-
de uma embaixada qualquer, mas essa não é a verdade. - s e as novidades se multiplicavam absurdamente na
Mila veio da lama. Da rua escura, onde as portas se fe- çoe ibíd
procura de aventuras proi 1 as.
cham, quando a policia passa. De u.n quardo sujo, onde só
tinha uma moringa de água, um vestido e um par de sa- Depois das conquistas em cabarés, buates e "infer-
patos. Vejo ainda aquelas paredes esburacadas e de sú- ninhos", onde viciados de tôda espécie se reuniam, Eu-
bito a porta de tábuas velhas abrir-se e a cara da infame demônía farta de observar aquelas depravantes cenas,
caftina surgir avisando que o tempo se esgotara e que ou- que depois de satisfazer sua curiosidade, aborreciam-na,
tro freguês acabara de chegar. Quanto ódio, que des- quis, mais audaciosamente, .aventurar-sa a conhecer uma
prêzo, que de náuseas? Sim, Méítsia, reconstitua com mi- casa de comércio da vida. Sentia a necessidade obcecan-
nhas palavras êsse cenário. E veja, naquela cama Mila te de visitar um redez-uous, onde escolheria a mulher
e eu ... que lhe interessasse para passar uma noite. Pela primeira
vez, Vítor e as outras duas discordaram, porém, entu-
siasmados com as primeiras palavras incentivadoras de
Eudemônia, deixaram a buate onde a monotonia fôra
provocar aquelas idéias e partiram em busca da aven-
A limusine negra atravessou a rua estreita e es-
tura.
cura. As calçadas estavam molhadas e esburacadas. Em
cada porta, uma mulher, e adiante dos olhos o desfile Eudemônia apo.stara, durante o trajeto, que ha-
de pontas de cigarros acesos presos naqueles lábios can- veria de encontrar em uma daquelas casas, uma mulher
sados das vendedoras de prazer. com quem poderia manter relações.

Eudemônia inclinava a cabeça para os lados e ia ob- Entretanto, mais de quarteirão e meio haviam atra-
servando aquêle cenário, divertindo-se e apreciando a .vessado sem que ela se resolvesse a parar o carro e descer.
quitanda da vida. Ao seu lado, Vitor Petram e duas ou- arecia que aquêle cenário mudara-lhe a intenção. Cada
tras mulheres. Os quatro já perfeitamente embriagados. poste que passava era como que um ponto alugado, onde
Entretanto, em silêncio, observavam o cenário que em- uma mulher estacionava, à espera. Aquêles rostos can-
polgava Eudemônia. sados, olhares mortiços, outros quase vidrados pelo efeito
de dl'ogas, mãos trêmulas erguendo-se para levar à bôca
De uma das portas, uma voz feminina ecoou ofere- um cigarro, os vestidos agarrados e curtos, os cabelos
cendo um momento intenso por poucas moedas. Os quatro Compridos e mal-oxigenados representavam-se-lhe como
se entreolharam e nada comentaram. Parecia que se en- fantoches queimando-se no fogo da perdição. Nada disso
tendiam mutuamente. Pudera passar-lhe despercebido. Eudemônia intimamente
192 CASSANDRA RIOS 193
EUDEMÓNIA

se revoltava e queria indagar a razão daquela podridão, rivel e imunda. Sórdida e apavorante. Vamos, valerá
naquele cantinho de mundo. Ali, onde os fugitivos da vida observar êste lado da vida.
se vendiam porque só tinham para trocar pela sua exis-
tência o próprio corpo. Era como que a lata de lixo do Eudemônia abriu a porta e ia descer quando as ou-
mundo. tras duas medrosamente a advertiram:

Ela mudou as marchas, acelerou, diminuiu a veloci- a -Homem, cuidado. E se passar algum taxi, nós
dade novamente e estacionou a negra limusine, no fim iremos embora.
do último quarteirão onde teria que fazer manobra para
poder voltar. •
Os três voltaram-se para olhá-Ia. Eudemônia sorriu Alguns minutos se passaram antes que a porta se
e apontou em frente: abrissse e surgisse uma mulher de aspecto idêntico àque-
las outras que êles haviam visto espalhadas pela rua.
- A flecha indica retôrno. Não dá passagem o beco
Eudemônia e Vítor se entreolharam e a mulher pergun-
em frente. A rua termina aqui. Vamos descer?
tou-lhas com uma voz cavernosa e fria.
- Você está louca?
- Que de~jam?
Três vozes se confundiram incrédulas.
Eudemônia olhou para Vítor incumbindo-o de falar.
- Ué? Para que viemos? Vocês não querem ir? 1tle adiantou-se:
As duas companheiras acenaram que não. Vítor quis - Queremos visitar sua casa... gostaríamos que
aconselhá-Ia. Eudemônia desafiou-o: DQS apresentasse uma jovem.
- Que tem você a perder? Não é homem? A mulher abriu mais a porta e sem pedir mais ex-
plfCãçóesmandou-os entrar.
- Pois bem, vamos. Não diga depois que não tentei
avisá-Ia. Vou porque sei que a sua curiosidade terminará . A saleta para onde ela os levou estava vazia e o
logo à entrada dêsses covis. Nenhuma mulher poderá in- cheiro de môfo e a pobreza daquela casa cujas paredes
teressá-Ia. Você é muito exigente. Aqui é o fim da vida limidas pareciam prestes a cair, o odor de álcool barato
dessas mulheres, duvido que possa brotar algo nesse provocou em Eudemônia um estremecimento de repug-
charco imundo. Aqui é a lata de lixo, onde a feiúra nância e lástima.
mora, a doença se esconde e o pecado chora. Sômente
Vítor parara à porta e discutia com a mulher.
aqui você poderá ver a verdadeira face do prazer. É hor-
194 CASSANDRA RIOS EUDEMóNIA 195
- Quero que a senhora me mostre fotografias das _ Ela é a mais cara de tôdas e não sou eu quem
moças, pagarei mais, já fomos a quase tôdas as casas escolhe seus fregueses, esperem um pouco, vou falar com
vizinhas desta e nada nos interessou, minha amiga é ela, se não houver fotografia, só mesmo indo vê-Ia pes-
muito exigente e também não quer ser vista por tôdas
soalmente.
as mulheres que a senhora tem para apresentar. Aqui
está uma nota, vai buscar as fotografias ou não '! A velha sumiu-se pelo corredor escuro no fundo do
qual havia uma escada de madeira que rangeu a cada
Eudemônia viu o olhar ganancioso da velha cair sô- passo.
brea carteira recheada de Vítor e depois olhá-los descon-
Eudemônia e Vítor ficaram em silêncio esperando
fiada ..• que ela voltasse,
- Não tenha mêdo. Não somos da polícia, não. E Pouco tempo depois o ruído de madeira que estalava.
a mulher não é para mim é para ela ... se ouviu novamente e a velha surgiu na sala:
Vítor apontou paria Eudemônia. - Não tem fotografia. Laura, também não quer;
A velha mediu-a meio atoleimada e aproximou-se de receber mais ninguém por hoje. Ela tem seus fregueses
próprios.
Eudemônia com os lábios estirados e o dedo apontado
- Como?! Com tôda esta pobreza, ainda somos re-
para ela num gesto de admiração:
jeitados? Ou a senhora está querendo que dobremos o
- Mas ... que tipo de mulher a senhora deseja? Isso prêço? Não será necessário. :Se a mulher fôr realmente
é raro aqui, estou surprêsa, ainda não havia entendido o que promete pagaremos mais do que vocês esperam.
e depois. .. bem ... Leve-nos a ela.
Eudemônía sorriu sentindo-se mais à vontade e ex- Ordenou Eudemônía caminhando para fora da sala.
plicou: A velha alcançou-a no corredor e advertiu-a:

Olha aqui, quero uma mulher que seja bonita e - Lama vai ficar zangada... não me responsa-
bilizo.
bastante feminina, isto é, uma jovem delicada, bem o
melhor será que traga as fotografias ...
- Eudemônia também está "zangada" ... Vamos ...
- Na casa em frente nos disseram que a senhora Vítor espere-me aqui. em baixo.
tem aqui uma jovem chegada há pouco tempo, que é
Vítor ia protestar, porem, parou e depois de resmun-
a mais bonita desta zona. Queremos ver essa mulher ... gar qualquer coisa baixinho voltou para a sala.
196 CA~SANDRA RIOS EUDEMôNIA 197

Lá em cima a velha adiantou-se e abriu a porta de _ Não .. , ninguém me procura... para conver-
um quarto, e fêz sinal com a cabeça para que Eudemô_ sar ... pensei que ...
nia se acercasse.
Eudemônia calou-se, Sentou-se à beira da cama e ti-
Lá na cama, Eudemônía viu-a de bruços, estirada ndo as luvas de couro olhou mais atentamente para
numa posição de cansaço. ra
aquêle rosto que a fitava . tri
m rrga d o e diisse.:

Ela entrou no quarto e a velha mudando o tom de _ Pois eu vim conversar com você... vim ape-
voz avisou: nas ... trazer-Ihes as palavras que você gostaria de ouvir
de alguém, ..
- Trate bem o freguês. E foi embora, fechando
- Mas, quem lhe falou de mim, quem é você? Por
Eudemônía lá dentro.
que veio aqui? Quer também fazer-me alguma proposta
Laura voltou-se lentamente e seus olhos grandes e para levar-me à outro lugar igual a êste ?
mortiços arregalaram-se ao avistar-se com uma mulher. - Oh!, ,. tenho por acaso cara de caftina? ...
Será?!. ..
- O que deseja?
- Não sei, ,. é tão difícil analisar as pessoas. A
Eudemônía perscrutou-a tôda. Não respondeu por-
última da casa onde morei tinha cara de santa e aspec-
que não queria distrair o pensamento e poder analisá-Ia
to de milionária. " no fim. ,. trouxe-me para isto ...
completamente. Os traços da jovem conservavam uma
beleza pura. Todo seu corpo não parecia ter sido to- - Não, Laura, não vim lhe fazer proposta dessa es-
pécie ... ainda ... porém, gostaria de conversar com você
cado pelas mãos do cansaço. A pobreza daquele quarto
mais intimamente ...
e a sua combinação rasgada e curta, as meias desfiadas,
os cabelos em desalinho, aquelas cobertas imundas da Laura olhou-a inquisidora. Eudemônía interessou-se:
cama de ferro, faziam um contraste impressionante com - Quero que me conte sua vida... depois farei a
a beleza de Laura. proposta ...

Era realmente bela e todo aquêle aspecto de luxúria - Minha vida? Resumo-a em poucas palavras. .. e
e pecado atuaram imperiosamente. Até seu olhar de ~orque razão devo eu contar-lhe .. , ganharei algo com
surprêsa provocou em Eudemônía um prazer estranho. ISSO? Quem é você para me roubar uma noite de des-
Acercou-se dela e perguntou: canso?

- Ela não lhe disse que era uma mulher quem - Alguém que lhe pagará muito bem,.. quero co-
desejava eonhecê-la! nhecê-Ia. " como já disse, depois farei a proposta ...
CASSANDRA RIOS EUDEMôNIA 199
198

- Sempre o mesmo, quer que eu conte minha vida _ Eu sabia que êle se interessaria por Paullete ...
para saber se não lhe acarretarei prej uízo depois. " pois h 1. . . ho . .. ho ... ho ...
·
bem, mais do que eu você deve saber a vida de mulhe- E seus dentes postiços e saltados tomaram conta do
res. .. que se vendem... é igual às outras... pode ter rosto bruto, e oval, o queixo pequeno tornando-a mais
certeza. .. E não me interessam suas propostas, porque feia do que era. Os ca~elos curtos, ch;irando a cer~eja.
não tenho motivos para sair daqui. Eudemônia jogou em CIma da mesa tosca um montínho
Eudemônia sorriu diante da suposição de Laura, que de notas enroladas e ordenou:
continuava julgando-a uma caftina que ali aparecera _ Diga ao homem que veio comigo que eu fui em-
para negociá-Ia. Não quis crer que aquela mulher que a bora. Que Laura não me interessou.
princípio parecia ter uns vinte e oito ou trinta anos
agora não revelava mais do que vinte, fôsse fácil como A velha ergueu a cabeça e ia protestar quando Eu-
uma qualquer. Isso fêz com que Eudemônia se interes- demônia interrompeu:
sasse e se resolvesse a ficar por ali mesmo. Levantou-se - Não lhe diga que fiquei. Eu vou subir. Pode
e olhando-a bem nos olhos pediu licença para se retirar. fechar a porta por hoje. Tenho muito que conversar com
Laura sentou-se na cama e disse: aquela jovem.
- Eu ainda não a mandei embora ... A velha sorriu novamente agarrando o dinheiro com
aquêle brilho avarento no olhar. As mãos finas bem con-
- Vou apenas avisar um amigo meu para que se
fessavam a suap :r:ofissão: contar notas e abrir portas ...
retire. Voltarei, se você permitir ...
Eudemônia sentiu profundo asco por aquela mulher
- Isso depende da velha Zi, na realidade é ela quem e acreditou que ela seria capaz de caftinizar a própria
manda. .. o resto é encenação para que o freguês se in- filha, se tivesse uma.
teresse. .. você não usa essa tática quando chega uma
novidade em sua casa? .. E' estranho ... Eudemônia abriu a porta e desceu para a rua. No
outro lado avistou o carro, Vazio. Leila e Maura ti-
Eudemônia sorriu, abriu a porta do quarto e apenas nham ido embora. Entrou e o pôs em movimento. Deu
disse: 'V()lta ao quarteirão, dobrando à esquerda na primeira
rua que surgiu e estacionou novamente no meio-fio da
Voltarei daqui a pouco ...
calçada. Antes de sair para voltar, olhou para aquela
Eudemônia encontrou a velha sozinha na sala. Zi rua já vazia, sem ninguém. No relojinho de pulso en-
sorriu satisfeita e continuando a contar as notas que controu a resposta para aquela solidão. Eram quatro e
êle lhe havia deixado explicou: meia da madrugada.
200 CASSANDRA RIOS EUDEMÕNIA 201

Ela fechou a porta do auto e caminhou de volta. Eudemônia pôs-se ª-


caminhar mais apressada. ím-
Seus passos ressoaram pelas calçadas e ela nesse mo, pelida por um assômo de curiosidade pelo momento se-
mento estremeceu com mêdo da própria sombra. Por que guinte.
resolvera assim inexplícàvelmente esconder-se de Vitor,
Abriu a porta da casa e entrou. A velha olhou-a
ela que lhe confiava tudo? Seria a expressão daquela
assustada quando a viu de volta.
mulher que se esforçava por parecer natural ao falar e
no entretanto percebia-se, estava a contorcer-se de revol, - Fui esconder meu carro, para que Vítor ao. sair
ta contra si mesma pelo papel que desempenhava na não o veja. E não lhe diga que voltei. - Advertiu Eu-
vida? Por certo fôra aquêle brilho pálido e triste do seu demônia, impondo. na voz uma ordem.
olhar que provocara o sentimentalismo de Eudemônia, Quando ela entrou no quarto, Laura estava dormín-
que se decidiu a escondê-Ia dos comentários dos amigos.
do. Eudemônia acercou-se dela devagar e olhou seu rosto.
Preferia passar por venci da uma vez. Ele que nunca se Os cabelos espalhados pelo travesseiro rasgado, soltando
entregava em luta alguma, fôsse a aposta mais absurda
algodão, as cobertas metade fora da cama, denunciavam
de se imaginar. Agora recuava, querendo esconder-se,
miséria extrema. Eudemônia inclinou-se e chamou-a bai-
fugindo da intenção que a levava ali e considerando que xinho.
a verdadeira razão fôra a influência do passado que sus-
citara aquela idéia em sua cabeça. Assim como em ou- - Laur.a ... eu voltei. ..
tros tempos fôra à procura de Silvana. A diferença era A moça abriu os olhos e de muito perto viu o. rosto
mínima. Questão de idade e de ambiente, que relativa- de Eudemônia. Seus olhares se confundiram e uma im-
mente era o mesmo. Sórdido e vergonhoso. pressão diferente paralisou-as. Laura permaneceu em si~
lêncío, vendo-a se despir. De calça e porta-seio, Eu-
Pela primeira vez em sua vida se repetia uma cena
lêncio, vendo-a se despir. De calça e porta-seio, Eu-
e lá ia ela ao encontro da meretriz, como se fôsse ao
demônia estírou-ss ao. seu lado. Laura virou-se para o
encontro da mais pura mulher do mundo. Eudemônia
lado dela, olhos inquisidores, bôca trêmula.
parou açoitada por um estremecimento de recordação.
-. Você vai dormir aqui? ..
Silvaria desenhava-se nas expressões de Laura e Ví-
tor representou-se-lhe como o amigo do tio. O homem - Você não quer? ..
que lhe falava das mulheres com quem passava noites - Afinal quem é você?
por algumas moedas e que a escolhera como entre frutas
- Eudemônia.
a menos machucada. Sim, também, naquele ambiente,
naquele lugar retirado e sujo, frio e envolto na mais As duas se calaram. Laura continuou a fitá-Ia com
dolorosa penúria, podia se encontrar uma mulher ... aquela expressão de quem não espera nada de uma mu-
lher e de quem teme alguma coisa de uma estranha que
___ ""COr,",7""-'i " _

202 CASSANDRA RIOS EUD;EMôNIA 203

sem mais nem menos ia se deitar em sua cama. Alguns dridão onde qual um rato eu espero que a morte um dia se
momentos de silêncio e Laura perguntou num tom de apiede de mim e venha me buscar ... Não posso sair para a
voz abalado, revelando seus torturantes complexos: Tua. .. sou uma mulher descalça... troquei meu único
- Você tem coragem de dormir aqui? Os olhos ver- par de sapatos por um pouco de comida com a vizinha
des olharam ao redor. de quarto dêste muquifo fedorento... Agora, para tor-
nar mais estranha minha vida, surge você. .. e que quer
Com você, aqui é o aposento do rei ...
de mim?
Você fala estranho. .. e seu nome é estranho ...
- Tirá-Ia desta vida!
Que quer dizer Eudemônia?
- Apenas um nome de mulher que corre em busca Eudemônía estava sendo sincera. Essa sua ínten-
da vida e que foge de tudo... uma mulher completa- ção surgiu assim sem mais nem menos, sem medir con-
demais. Eudemônia é um símbolo. É o sistema ético a seqüências, sem cálculos e sem raciocínio.
do mundo seria capaz de se atirar contra o desconhecido Laura sorriu e estirou a mão sôbre a dela apertan-
apenas para saber... e afinal ficar sabendo nada, da do-a como num gesto de agradecimento de quem se con-
vida. .. Sou confusa, não é? Minhas palavras estão im- tenta com uma promessa que não acredita possa ser
plicando-a, porém, não faça caso. Penso muito e sonho cumprida. Agradecia a intenção das palavras, nada
demais. Eudemônia é um símbolo. E' o sistema ético a mais.
que se atribui o nome de Felicidade. Nome que os gregos
davam à Felicidade. E quem sabe ... se desta vez o meu Eudemônia pôs as mãos em seus ombros e olhou-a
nome, na minha pessoa, poderá exercer sua função de de mais perto e foi então que o desejo brilhou em suas
pupilas. Aquela bôca perto da sua, submissa, sem saber
Eudemonismo. .. trazendo-lhe um pouquinho de felici-
a que, a mulher abandonada à sua disposição, sem ofe-
dade. .. Laura, agora, conta-me sua vida.
recer resistência, porque não estava entendendo.
- Minha vida, já disse é fácil de ser contada. Pou-
cas palavras para descrever muitos acontecimentos. Uma Apenas um lampejo de indigrção passou por aque-
las pupilas fitas nas suas.
fuga devido aos maus-tratos da madrasta e das bebedei-
ras de um pai sem dignidade, frouxo, vagabundo, as pro- Eudemônia desceu o rostoj" de encontro ao dela e
messas de um homem casado, o escândalo da espôsa, uma colou os lábios na bôca que es~remeceu ao seu contato
briga que resultou em cadeia e depois de dois dias, va- e se fechou sem retribuir o bei;o.
gando sem destino, um hotel, um desconhecido, depois ou-
Eudemônia se afastou e olhou-a com uma expres-
troe mais outro e finalmente o bordel e a caftina. Novas são de quem não se conforma diante de uma recusa e
fugas e sempre o mesmo fim. Aqui! na sujeira. Na po- soltou-a.

T·....
". \
)

Il ••••• ---
204 CASSANDRA RIOS

osilêncio cercou-as, trazendo naquela quietude fria


um nervosismo que não poderia continuar a ser sufoca-
do. Eudemônía voltou-se novamente e agarrou-a pela cin-
tura, apertou-a contra o corpo e olhando-a face a face
ordenou sofregamente:
- Beija-me ... CAPíTULO XII
- Até as mulheres?! Oh! Deus! Não bastam os
homens. '. também vocês começam a comprar desejo,
famintas. " perdição... perdição ... Fôra a primeira vez verdadeiramente, que Eudemô-
nía atravessara as portas de um lupanar. Nunca pode-
Eudemônia se envergonhou diante do pranto con- ria comparar aquela pocilga de última classe, com os
vulso de Laura . Não teve mais coragem de lhe tocar um aposentos luxuosos de Sílvana, porém no meio de tôda
dedo. Levantou-se, vestiu-se e saiu. aquela pobreza, enojada do ambiente, daquela atmosfera
Ao passar pelo corredor ainda viu a velha contando' repugnante, estava Laura como uma orquídea a emergir
o dinheiro. Seria aquela mulher parente de coruja? Não do charco.
dormia nunca, sempre com aquêles olhos arregalados, Em seus aposentos, Eudemônia caminhava de 'um
tomando conta de tudo! lado para outro sem poder deixar de pensar naquela
- Já? .. Laura tratou-a bem? .. criatura que se lhe apresentou como um moribundo cis-
ne branco, atolado num pantanal de areias movediças.
Eudemônía não respondeu. Abriu a porta e ia sair O coração pulsava acelerado. Precisava rever aquêle ce-
quando reciocínando voltou a cabeça e olhou para Zi. nário e arrancar dali o pobre cisne.
Realmente a velha intrigada, suspeitando de algo seguiu-
a e por certo se ela reclamasse iria brigar com a pobre Ah! se ela tivesse previsto o que a esperava naquele .
pardieir@ jamais teria batido naquela porta.
moça que deixara chorando. Respondeu penalizada:

- Sim. .. ela é urna ótima moça... não merece Os sentidos vibravam despertos, ansiando por expe-
estar aqui ... rimentar a posse de uma meretriz igual a Laura. O colo
marmóreo daquela mulher não lhe saía da lembrança e
- A senhora voltará?.. Laura convidou-a? .. o desejo de tocá-Io com beijos enfebrecia-a,
- Não, ela não me 'convidou, mas eu voltarei.
Teria que voltar lá. Mais ainda, por outra razão.
Eudemônía bateu a (porta na cara da velha. Teria que provar a Laura que não só ao homem cabia o
EUD.EllôNIA. 207
206 CASSANDRA RIOS

direito de visitar um -rerulez-uous, Ela também, muito pai tinha propriedades, ela tinha também o seu grupo
embora suas intenções houvesesm se tornado mais ele- de relações à espera. Eudemônia chegava e parecia en-
tão que tôda a cidade ~semanifestava em auspiciosa
vadas, menos bestiais.
acolhida. Tal o alarido de alegria que faziam seus conhe-
Os cotos de cigarro se amontoaram nos cinzeiros e cidos. Iluminavam-se as janelas de uma propriedade dos
depois se espalharam pelo chão atapetado. Eudemõnia FQ'l'bese os comentários corriam, ponta a ponta, da
calcava-os com o pé e sem se importar, observava as pe- cidade.
quenas marcas de queimado que se desenhavam no ta-
pête. ILJl'I.~:.,Ii
Eudemônia Forbes chegara. Os falatórios continua-
vam mais intensos em tôrno dos amigos escolhidos por
Quando o telefone tocou. Eudemônia de um salto ela. Que nesse caso muitas vêzes eram criaturas sem
atirou-se sôbre a cama e pegou o fone de cima do posição ou destaque a respeito dos quais alguma coisa
"painel" . de anormal já se tivesse ouvido falar. Asseclas perfeitos
dos quais poderia mandar como chefe de uma quadrilha.
Era Vítor.
Queria saber o que acontecera. Eudemônia fingiu O aparecimento de Eudemônia era sempre um acom-
estar completamente decepcionada e pela primeira vez tecimento. Sua partida como a despedida da primavera.
se deu por vencida. Êle ganhara a aposta. Eudemônia Os comentários iam diminuindo a pouco a pouco e logo
nunca teria coragem de possuir uma mulher de "bas- tudo voltava (ao normal.
fond". Agora, resolvera partir, como se quisesse empre-
Ela certificou-se disfarçadamente de que êle não ender uma fuga e sabia assim mesmo que haveria de vol-
vira Laura e que a velha caftina nada dissera. Desligou tar. Por que ela nunca deixava de concluir uma aventura.
o telefone e depois de ouvir os engraçados comentários
Um- dia inteiro transcorreu e uma noite mais se
de Vítor e mais calma se deitou.
completou sem que ela se atrevesse a fazer o que plane-
Na tarde seguinte teria muito que fazer, inclusive jara. Vítor e as duas amigas que a haviam ido procurar
preparar as malas para viajar. Demorara-se muito tem- logo cedo para saber as novidades, não conseguiam ar ...
po naquela cidade. Sr. Andréia já enviara três telegra- rancar dela uma palavra a respeito da razão pela qual
mas exigindo o seu regresso. Êle não conseguia habituar- se mantinha calada e cabisbaixa, pensando em coisas que
se à idéia de imaginá-Ia sõzinha naquele casarão, onde cos- não se revelavam em suas expressões sonhadoras.
tumavam passar as férias. Mas Eudemônia era assim ...
Ao voltar para ease, já avaneade, madrugada, EU J

Não tinha mêdo de nada e dificilmente levava ami- demônia não se conteve e pediu a Vitor que entrasse
gas para fazer-lhe companhia. Em cada cidade onde o
208 CASSANDRA RIOS ElJDEMÓNIA 209
para tomar um drinque. Iria contar-lhe confidencialmen_ Vítor acercou-se e sentou-se ao lado dela.
te, a razão porque estava tão perturbada. Já havia se tor-
nado impossível para ela deixar de pensar em Laura. AI- _ Não quer. Tem mêdo. Não posso compreender
gumacoisa teria que fazer e resolveu que deveria confiar como pode rejeitar a quantia que lhe ofereci.
em Vitor. - Mas você explicou que não há perigo?
A princípio êle se negou a acompanhá-Ia àquelas ho- - Só faltei dizer que o drama era uma farsa. Que
ras, mas era tão difícil negar qualquer coisa à Eudemô- eu não sou casado e que não pretendo vingar-me de mu-
Dia que às oito horas da manhã os dois já avançavam pela lher alguma aparecendo com outra. É inútil. Creio que ela
ruela. já passou· horrores mas co~ acontecimentos reais e não
dramas como o que engendramos. Ela não quer sair da-
Eudemônia estacionou o carro e desceu, seguida por
qui. Prefere morrer apodrecida do que enfrentar o mun-
Vítor.
do novamente. Vamos Eudemônia, não alimente sonhos
Uns quinze minutos se passaram antes que a cabeça caprichosos. Êste lado da vida não deve ser tocado por
da velha surgisse no postígo . Ao reconhecer Eudemônia você.
foi logo abrindo a porta para que ela entrassse. - Mas eu quero essa mulher, Vítor, ardentemente.
Qll.ero-a,compreende?
Quero falar com Laura, urgentemente.
Pode subir... ela está dormindo, no mesmo - Pois compre-a por alguns instantes. Mate essa
quarto. sêde e verá depois como é louca essa sua cabecinha. Todo
êsse entusiasmo não é nada mais do que capricho. Uma
Eudemônia atravessou em silêncio a saleta e sentou- aventura diferente. Não, Eudemônia, não confunda ...
se em uma poltrona. Vítor olhou para a velha e explicou:
-Pois bem, e se depois de tê-Ia possuído eu me sen-
-Desta vez quem vai falar com ela sou eu. tir pior?
A mulher sacudiu os ombros desajeitada e subiu na
-Então você encontrará um meio de levá-Ia ...
frente.
Eudemônia levantou-se e caminhou até o corredor.
Eudemônia ficou à espera. Confiava em Vítor. Sa- a porta ela avisou:
bia que êle desempenharia seu papel sem decepcioná-Ia.
- Espe:r:e-me aqui, Petram.
Os minutos se passaram e logo êle apareceu na sa-
leta. Vítor sorriu. Tôdas as vêzes em que Eudemônía se
210 CASSANDRA RIOS
EUDEMONIA 211
encorajava para fazer alguma coisa, chamava-o pelo so-
brenome. to sensível daquela mulher que se conservava passiva e
merte, como se nào estivesse sentando naua .
.J:1.;udemõnía subiu as escadas calmamente. AtravE::S_
.l:!..udemônia debruçou-a sôbre o leito e furiosamente
sou o correuor escuro e frio . Bateu na porta e esperou.
Nmguem respondeu. Bateu novamente com mais torça despiu-a. os Olhos, numa expressao de gula, percorreram-
Laura gritou ue ra de uentro ; puxando os erres ... na toda. Mal tinha rôrças para prosseguIr . .h:stava pala-
nsaca, perscrutando-a. Um tremor intenso abateu-a.
- A porta está aberta ...
Nos olhos de Laura um lampejo sinistro se revelou.
Budemônia entrou. Laura sentou na cama e ficou OS CHIOS uniram-se, quase impeumuo que se lhe VIssem
Olharmo-a com os Olhos arregaiaaos. as pupuas, Us íamos se umeueceram e ela levou as maos
b;udemônia se aproximou e sentou-se ao lado dela ao rosto como se qursese esconder JS reriexos de um ines-
sem dizer palavra. Apenas ritanuo-a, uaquera maneira perauo e estranho desejo.
reveiauora que nao deixava dúviuas quanto à intenção
hudemônía estendeu as mãos para os omoros dela e
ce sua presença ali.
agarrando-a, sacuuiu-a enraivecina :
Laura manteve-se na expectativa, reconhecendo que
~/- - Por que só aos homens se êles são os causadores
não poueria lutar contra a decisào uaqueia estranha que
da sua desg~aça?
vmna assim imprevistamente ensmar-rne COisas ua vida
que em tonos os anos Cie experiencias uas mais urversas, Aquela pergunta vibrou revoltada, não admitindo
nao provara ainda. que ela a julgasse como um ser inferior ao homem.

Eudemônia estendeu as mãos para ela e puxou-a Laura abriu os olhos e fitou-a de uma maneira di-
para perto. Antes de apertar a bôca contra seus lábios ferente. Como se pela primeira vez provasse alguma coi-
semi-anertos e restoiegantes, murmurou num som gutu- sa quase que impossível, de existir, alguma coisa profun-
damente intensa e misteriosa.
ral
- Não fuja. .. sinta apenas se não é capaz de re- Eudemônia beijou-a de novo e dessa vez sentiu no
tribuir ... ~stremecimento do corpo dela, pôsto nos seus braços, um

..
Início de algo.
Os lábios tomaram o formato de um beijo quando
se aproximaram. '"
As mãos retezadas apertando-a contra o corpo e de- As oito horas da manhã, quando o sono ainda pe-
pois descendo em carícias arrebatadas à procura do pon- sava nas pálpebras, Laura e Eudemônia principiavam a
viver a primeira cena de amor de suas vidas.
212 CASSANDRA RIOS E'UDEMONIA 21i

Hora sombria ainda. Laura começava a ceder cari- _ Mila! Mila, querida... eu vou levar você em-
nhos àquela mulher que viera estranhamente para- pro- bora. Quero-a sõmente para mim. Você não pode conti-
vocar mais um conflito no trágico transcorrer de seus nuar aqui. .. aqui não, nunca, entendeu?
dias. _ Mas como, meu bem? Como poderei sair desta
vida? Quem poderá esconder o que fui sempre e o que
Eudemônia vencia-a com carícias loucas. A impaciên-
sou?
cia estremeceu o corpo de Laura, num desvario completo
cruzou os braços em tôrno das costas de Eudemônía aper- Eu posso. Eudemônía pode tudo. Tenho uma
tando-a contra o peito e os lábios desfalecidos e sensuais grande capa, capaz de cegar o próprio sol. .. Dinheiro ...
se esmagaram contra a bôca que murmurava baixinho o papel do demônio ...
num transporte emotivo: - Oh! não se julgue tão alta assim. " algo poderá
- Laura ... Laura ... Laura ... derrubá-Ia. Nem sempre o dinheiro pertence ao diabo ...

- Nesse caso não, trata-se de uma ninfa esquecida


As horas fugiram velozes, talvez aterrorizadas dian- na terra, por descuido dos deuses. .. Macára é a felici-
te do arrebatamento daquelas duas criaturas, que se pos- dade. Eudemônia é que manda.
suiam íncansàvelmente, multiplicando beijos, estrangu-
lando abraços. Eudemônía falou-lhe de Vítor e explicou-lhe seus
planos. Porque o mandara, pouco antes, fazer-lhe aquela
Laura confessou que, sem compreender a razão por- absurda proposta.
que, não conseguira deixar de pensar nela um só instan- Pretendia, caso ela tivesse concordado, fazer com
te. Pediu também explicando em poucas palavras: que os dois fôssem para a Capital, depois de Vítor con-
seguir transformá-la, enriquecendo-lhe o guarda-roupa
- Não me chame de Laura. Meu nome é Mila. Lau-
que làgicamente seria trocado por um de marfim em um
ra é para os que não merecem saber nada de mim e
dos melhores hotéis, em uma verdadeira dama para que
você! . .. oh! não sei! E' tão estranha a emoção que me
depois Eudemônia se aproximasse, revelando-se como a
arrebata que mesmo sendo apenas por hoje" quero perten-
causadora de tudo, depois de tê-Ia conquistado.
cer-lhe completamente. Como se você fôsse realmente a
Felicidade que chegou. Porém como se eu nunca tivesse Talvez tivesse sido uma idéia infantil mas a verdade
pertencido a um lugar como êste ... era que isso a entusiasmara muitíssimo a ponto de prin-
cipiar a pôr em execução o seu plano.
Eudemônia acariciou-lhe o rosto' e murmurou emo-
Mila riu achando aquilo engraçado.
cionada:
214 CASSANDRA RIOS JI·UDEM6NI.4. 215

Quando o sonho fôra desfeito com a recusa de Lau, Mila apenM acenou que sim, engolindo em sêco, ar-
ra, ela voltara a ser a mulher audaciosa que não admitia riscando-se a tudo. E o que não era sua vida senão um
derrotas e galgara decidida aquêles degraus. corroidos e eterno jôgo no qual ela se arriscava a vencer ou a perder.
barulhentos para conseguir a mulher que desejava. E Nada lhe restava senão aquela promessa que fugia es-
ali estava com ela em seus braços, estremecendo de emo- pontâneamente dos lábios de Eudemônia e a confiança
ção, enquanto os olhos de Mila se marejavam de lágri- que ela lhe inspirava.
mas a cada palavra de Eudemônia.
Eudemônia avançou em poucos passos e parou para
Um soluço incontestàvelmente sentido fugiu-lhe por voltar-se quando ouviu a velha que abrira a porta nova-
entre os lábios. Mila se desfêz em um pranto convulso, mente, já refeita do susto, .grítar atrás dela:
não querendo acreditar que fôsse verdade, que pudesse
acontecer tal coisa em sua vida, julgada irremedíàvel- - Vazabunda, não pense que vai consezulr roubar
mente perdida, naquele antro de podridão, naquela po- minhas mulheres com essa "banca" d.e macho. .. eu vou
cilga. chamar a polícia ... Um palavrão canaz de fazer corar O'
Eudemônia, mais entusiasmada, quis levá-Ia naque- diabo se a estivesse ouvindo naquele momento, arreben-
le mesmo instante, quando a porta se abriu e a cabeça da tou num vozerio histérico. Eudemônia voltou. nua, em
velha, sorridente e dentuça à mostra, apareceu para ponta do pé, e empurrando a velha furiosamente garga-
avisar: lhou sua raiva e desprêzo:

- Já estão chegando os freguezes. .. estão cansa- - Vá velha beicuda... chame a polícia para que
dos de esperar... não podemos perder por uma aven- eu a ponha entre as grades para o resto da vida ...
tura passageira, aquêles que voltam sempre ...
E já, Vítor Petran alcaneara os últimos dezraus
- Eudemônía Forbes pa;gará por todos. Velha para ver o que estava acontecendo lá em cima. Ao avis-
nojenta! Mila não vai receber ninguém! Nunca mais, tá-Ia, Eudemônia escondeu-se atrás da porta e pediu-
compreende? Vou levá-Ia comigo! lhe: !" nl-'-'-r""'r

Explodiu Eudemônía pulando fora da cama e avan- - Leve essa velha lá para baixo enquanto eu e
çando para a velha, empurrou-a para fora do quarto, ba- Mila nos vestimos, faça-a calar-se... Ela ainda expli-
tendo-lhe a porta na cara. Voltou-se para Mila e per- cou ao perceber a expressão inquisidora que se coloriu
guntou, não admitindo indecisão: no rosto dêle - Mila é Laura, tonto ...
_ Quer ir comigo? Tem que confiar em mim! - Bateu a porta e ao voltar-se encontrou-a já ves-
Vamos 7 tida "com seus andrajos. Eudemônia ràpidamente se ves-
216 CASSANDRA RIOS

tiu também. A velha lá fora continuava gritando pela


polícia enquanto Vitor a arrastava escada abaixo.

Quando as duas desceram ainda foram barradas por


dois velhos bar rígudinhos, que se apressaram a querer
segurá-Ias, quando a velha esbravejou.

-Segure-as não as deixem fugir ... são duas la- CAPíTULO XIII
dras. " polícia! ...

Eudemônia deu um safanão em um, enquanto Míla


Com magistral conversão à esquerda o carro dirigi-
empurrava o outro e Vítor, todo desconjuntado e arra-
do por Eudemônia avançou pela avenida, rumo ao centro
nhado, segurava a velha que se esforçava em livrar-se
da cidade.
para correr para a rua.
Vítor olhava Mila de soslaio, querendo descobrir
Os gritos da velha provocaram a ocorrência dos vi-
através daqueles cílios espessos o seu olhar e admirava
zinhos. Eudemônia, acompanhada dos dois mal pôde al-
a sua incontestável beleza.
cançar o carro que felizmente fôra deixado à porta dessa
vez. Quando conseguiu ligar o motor teve tempo ainda Eudemônía, não restavam dúvidas, era uma incon-
de ver a mulherada afluindo de tôdas as casas para ver seqüente, seus atos inconsiderados, nos quais êle tomava
o que estava acontecendo na pocilga da velha Zi, que gri- parte, sem poder atinar com a razão dêles, provocavam
tava feito louca seus palavrões alarmantes. uma excitação cerebral de fantasias para lhe acirrar os
sentidos. Agoraêle se perguntava o que iria acontecer
Instigadas pela velha e pelos dois barrigudos, tôda
àquela jovem que tão-bruscamente saía do charco para o)
a zona quis correr atrás do carro, erguendo as mãos
sol. Por certo haveria de fenecer açoitada pelos olhares
ameaçadoras enquanto êle se afastava para sempre da-
malévolos e pelos acintes das más línguas. Não! Eudemô-
quele lugar infernal.
nia saberia colocá-Ia no pedestal para o qual todos te-
riam de erguer a cabeça. As loucuras de Eudemônia nun-
ca redundavam em fracassos. Das coisas mais absurdas
ela sempre soubera fazer um alvo para admirações. Ela
saberia como transformar Laura, ou Mila, em uma ver-
dadeira mulher, digna de freqüentar os mesmos salões
que êles. Enfim, êle, como homem, conhecia muito bem
o caráter de cada uma daquelas bonequinhas íntocáveís
218 CA&iANDRA RIOS EUDEMóNIA 219

e frágeis, que entre alil paredes de suas alcovas, se reve- Não será muito cedo para decidir tanto? - Per-
lavam como verdadeiras fúrias ou bêstas, na hora dos sen- untou a moça puxando a saia do vestido para cobrir os
tidos entrarem em função. Eudemônia, com tôdas suas foelhos. ~'f
. ,,' - , .~,
loucuras e com o seu instinto pervertido, era muito mais
digna Ô:() que qualquer uma delas, que se escondiam _ Com um olhar, Eudemônía escolhe o que lhe in-
atrás de um rubor forçado, diante de uma anedota qual- teressar e com um beijo apenas reconhece a mulher para
quer. Ela era simples e natural, embora todos seus atre- :ua vida. .. eu decidi isso antes de conhecer você. Foi
vimentos. Uma mulher arrojada que não temia concor- o destino que me indicou onde eu iria encontrar a mulher
rências. dos meus sonhos. Você estava perdida, caiu do barco dos
A voz de Eudemônia vibrou forte e indignada como sonhos ...
se ela já o tivesse chamado antes. Vítor se desculpou: - Para a lata do lixo. .. - interrompeu Mila es-
- Estava pensando. .. o que foi que você disse? condendo o rosto entre as mãos.

- Não quero que ninguém me veja com Mila. Nem - Eudemônía sonha - pondera Vítor.
quero que saibam o que aconteceu e onde a conhecemos.
Eudemônia estacionou o carro e se voltou para ela
Leve-a com você e vista-a o melhor possível. Quero vê-Ia
puxando-lhe as mãos para olhá-Ia de frente a fim de que
mais linda do que já é, como se fôra uma rainha. Confio
ela sentisse que suas palavras eram sinceras:
em você, Vítor, meu neguinho ...
- Nada disso importa. Quero que você se esqueça
- Não precisa fazer carinhos. - Disse êle tirando
que tem um passado. De hoje em diante seu nome é Mila,
a mão dela do queixo. - Nem me chame de neguinho.
E para que não me façam perguntas que não quero res-
Espero que se lembre que eu não dormi ainda. Daqui
ponder, você aparecerá na minha cidade em companhia
a alguns instantes caio duro e ninguém conseguirá fazer
de Petran, que a apresentará como sua prima. Ninguém
com que eu mova um só fio de barba, que parece ter cres-
desconfiará e o máxmo que poderão comentar é que você
cido feito grama espinhosa de ontem para hoje. Tenho
possa ser sua amante. Com o tempo se provará o contra-
impressão que devo estar com cara dêsses lunáticos.
rio e tudo transcorrerá normalmente. Eu já decidi o que
Você vai acabar me mandando para um sanatório. Qual-
quero, mas você não. E eu não vou forçá-Ia a nada. Vou
quer dia vou ter que enfrentar um exército de mame-
deixá-Ia à vontade. Livre para escolher o que quiser e se
lucos por sua causa ...
lhe interessar outra pessoa pode ter certeza de que eu não
- Oh! não. Agora eu tenho o que sempre desejei. a impedirei disto. Quero que você venha para mim espon-
Eudemônía olhou para Mila sorridente, com uma ex- tâneamente. Não me importa quanto tempo tenha que
pressão de vitória, brilhando nas pupilas. esperar por sua decisão. Eudemônia sabe compreender.
220 CASSANDRA RIOS
EUDEMóNIA 221
Agora você vai descer em companhia de Vítor. Precisam
Sentou-se à beira da cama, tirou o fone do gan-
fazer muitas compras. Eu a verei mais tarde. cho e fêz uma ligação. Vítor não estava em seu aparta-
Eudemônia estendeu o braço por cima dos dois abriu mento, pois ninguém atendeu.
a porta e sacudiu Vítor que cochilava: Ela foi para o banheiro e deixou a porta aberta para
- Ei Morfeu, vá embora que Vítor tem o que fa- poder ouvir se o telefone tocasse, E em silêncio tomou
zer. A porta está aberta cavalheiro ... banho.
Aprontou-se e retocou o maquilage. Penteou o ca-
- Muito obrigado, dona Insônia. Porém não me pro-
belo inúmeras vêzes, desceu para jantar e nada. Vítor
cure depois das quatro, porque vou viajar para o país
não se resolvia a se comunicar c-om ela. Milhões de pen-
das inconsciências soporíferas durante um mês. E quem
samentos começaram a torturá-Ia. E se Vítor se interes-
tiver o atrevimento de me despertar vai levar um murro sasse por Mila. E se ela ficasse apaixonada por êle? Mas
de mula. estava ficando psícastênica, por certo. Como poderia pen-
- Então adeus, dona Mula, e cuide bem da minha sar semelhante coisa. Era realmente uma tôla. Jamais
Mila ... deveria duvidar daquele rapaz que sempre fôra o seu
melhor amigo. Mesmo porque Vítor jamais se atreveria
Eudemônía beijou-a no rosto e os dois desceram, dei- a tocar em .algo que fôsse dela ...
xando-a só.
Quando concluía tal pensamento a campainha tocou
o carro se pôs em movimento e ela se afastou, pela e a criada foi atender à porta principal.
avenida.
Eudemônia esticou o pescoço por trás do encôsto da
Já passavam das doze quando ela chegou em casa. cadeira e olhou para o saguão onde dois vultos se dese-
Avisou a governanta, para que não a perturbassem e foi nhavam.
para o quarto. Vestida como estava atirou-se sôbre a
Incrédula viu-a chegar. Vítor seguiu-a alguns passos
cama e dormiu. atrás. Mila parou no limiar daquela sala enorme e sun-
Somente às sete e meia ela despertou. Levantou rà- tuosa, mas parecia nada ver a não ser os olhos arregala-
pidamente e foi para o banheiro. Ligou o chuveiro e en- dos e os lábios estirados de Eudemônia, querendo dizer
quanto escolhia a roupa que iria, vestir, cantarolava uma alguma coisa. Porém não conseguia. Estava fascinada
canção em idioma estrangeiro. pela transformação atordoante de Mila.

"Un jour tu verras ... " Parecia uma estrêla de ouro a brilhar depois de ter
sido Polida e cravejada de brilhantes.
222 CASSANDRA RIOS EUDEMóNIA 2Z3

Ela nesse mesmo instante se perguntou como pode- ça, Estou arrasado! Completamente! Fiz tudo para con-
ria ter aquela criatura chegado àquele lugar onde ela a quistá-Ia e não consegui tocar-lhe um dedo. Oh! não fi-
fôra encontrar. que assim enraívccída, afinal nada aconteceu. Replicou
Vítor levantanda-se depressa e correndo para o outro
Mila acercou-se mais e se ajoelhou ao pé da cadeira
lado da mesa para que Eudemônia não o alcançasse como
de Eudemônia, que mesmo querendo impedi-Ia daquele
gesto, não conseguiu mover um dedo e nem mesmo pro- pretendia.
ferir uma só palavra. _ Mas se ela tivesse querido, Eudemônia, creia que
- Eudemônia. " obrigada ... você teria perdido um amigo. Eu fugiria com ela. Mila
só faltou fugir pela j anela, quando eu fiz a proposta, se
A voz trêmula e reconhecida de Mila ressoou como
revoltou e me fêz jurar que não tocaria mais no assun-
um queixume de emoção.
to. Eu pretendia, mas para que? Bastou ver a expressão
- Você está deslumbrante! É a obra magistral da dela quando a viu e o tremor de suas mãos, o brilho
"Mão Poderosa". de seus olhos e a ansiedade de encontrá-Ia para que eu
As duas ficaram se olhando embevecidas. Eudemô- compreendesse que todos os meus argumentos seriam
nia estendeu as mãos e levantando-se fêz com que ela inúteis. A jacto você a conquistou arrebatadoramente, mi-
ficasse de pé também. Mandou-a caminhar até determi- nha querida. E essa descoberta restitui-lhe o amigo fiel
nado ponto da sala e tornou a repetir um comentário en- de sempre.' Agora se quiser que eu jure, até pelos meus
tusiasmado. Vítor bateu palmas, chamando a atenção das falecidos pais, eu juro que nunca mais vou querer tocar
duas e acercando-se de Eudemônia perguntou: nessa mulher.

- Está satisfeita? Aqui está minha obra-prima. Eudemônia olhou rápida para Míla e ela inclinou a
Vestir uma mulher para entregá-Ia a uma outra. Oh! cabeça. Eudemônia perguntou:
que diriam meus amigos se soubessem disso! Fugiriam
- Você o esbofeteou?
todos acreditando que qualquer dia eu os quisesse. .. ves-
tir assim também para apresentá-los a algum homem! - E como! - Respondeu Vítor ainda esfregando o
Isto é verdadeiramente o cúmulo, um acontecimento ab- rosto com as mãos. Ainda estava a dois passos de dis-
surdo em minha vida. Vou confessar algo a você Eudemô- tância da gatinha ...
nia. Vítor se fêz sério e foi sentar na poltrona, pos a
mão sob o queixo e prosseguiu: - Oh! você!. .. seu ... ~eu ...

- Eu não fui leal para com você. E que bonde er- Esbravejou Eudemõnia furiosa, sem encontrar adjeti-
rado, querida! Antes tivesse sido digno de sua conrían- vo para qualificá-Io.
224 CASSANDRA RIOS
EUPEMONIA 226
- 'Pode me chamar de guloso. Ora, Eudemônia, eu
para descansar estiradoconfortàvelmente no banco de
mereço ser perdoado. Afinal, confessei o crime não per- PO I"
trás da espaçosa imusme.
petrado. - Dizia êíe enquanto rodeava a mesa perse-
guido por Eudemónia que o tuimmava com o Olhar _ Eudemônia e Vítor foram buscar as malas que já
Vamos ... perdoa o coitado do Vitor, Êle já foi bastante haviam sido fechadas e sairam. Passaram pelo aparta-
castigado ..• mento de Vítor e recolheram o resto das bagagens que
tiveram que ser espalhadas pelo chão do carro, pois não
- Por favor, Eudemônía l , .. - Gritou lVIila quando cabia tudo dentro do porta-malas. Vítor esticou-se no,
a outra conseguiu aproximar-se de Vítor. - l!.;ua.emoma banco de couro negro,acomodou-se bem como o traves-
parou e se voltou para ela. - Ela continuou. - 'renno seirinho que levava e avisou Eudemônia que poderia fe-
certeza que Vítor e eu agora seremos bons amigos. Ele char a porta e partir.
está exagerando. Esbotetiei-o, porém êle como qualquer
Durante a viagem ela e Mila se revelaram mais ar-
um outro teria o direito de me julgar fácil e tentar, de- dentes e Vítor pôde também certificar-se que o interêsse
vido minha vida. Foi uma resposta drástica para que da nova companheira era sincero e realmente apaixona-
êle se certifícasse que seria inútil e que o que eu fazia do, Eudemônia conquistara-a e passara a representar na
antes era apenas por necessidade. Vamos, não rique abor- vida daquela moça, não só o amor, mas também a apoio,
recida com êle, tudo isso que está dizendo é para provocá- a paz, a felicidade que talvez ela nunca julgara alcançar.
Ia ... creia ...
Vítor em dotado de bons sentimentos e quando se
Eudemônía inclinou a cabeça, olhou para o chão e tratava de respeitar a situação de qualquer criatura e
depois para Vítor. zelar para o seu bem, êle não vacilava em se apresentar
como um verdadeiro amigo.
- Está bem. Mas desta vez vou fazê-lo jurar. Não!
Estaria me despersonalizando se o fizesse. Eudemônia
nunca se rebaixaria a tanto. Não será necessário. A li-
berdade para disputá-Ia é sua, Petran. Tudo transcorreu como êles haviam planejado. Uma
festa, uma simulada apresentação de Mila à Eudemônia.
- Obrigada, Forbes, mas prefiro viver em paz. Não Uma elevada conta aberta no Banco em nome de Mila
quero desgastar meus nervos inutilmente. O campo está que continuou a desfrutar as vantagens que aquêle conhe-
muito escorregadio. Prefiro não entrar na arena. eimento lhe trouxera. Uma amizade que se foi tornando
[nais íntima com constante freqüência dos três em saraus
Os dois riram e se esqueceram do incidente. Afinal
e outras espécies de recepções, passeios e noitadas em
se resolveram a partir naquela mesma noite. A viagem
salões de jôgo e finalmente a proposta de Eudemônia
demoraria cinco longas horas e Vítor teria bastante tem-
Para qUi Mila passasse a viver em sua residência. Assim
226 CASSANDRA RIOS
EUDEMONIA 227
o amor das duas prosseguiu oculto por uma pretensa ami-
Alta madrugada, Eudemônia voltava em companhia
zade e de nada se desconfiou. Os comentários sôbre a
de Vítor, e em sua voz embargada por soluços e risínhos
verdade não escapavam daquele círculo das amigas esco- notava-se o quanto estava embriagada.
lhidas pois tôdas tmham mêdo de serem desmascaradas
Mila passara a ser a prima de Vítor e vivia como tal. Mila quis discutir com ela, mas Eudemônia parecia
não entender e só fazia ofendê-Ia com palavras tôrpes:
O dr. Andréia Forbes logo fôra conquistado pela sim-
plicidade e tato de Miía, Ensinada por Eudemônia logra- - Eu não quero mais você. .. fique com aquêle ve-
ra conseguir do velho tôdas as atenções e confiança. O lho. .. êle não é meu tio sabe. .. mas... é um homem ...
ambiente na mansão dos milionários continuou festivo e - Tudo que você diz soa desconexamente! Não a
acolhedor como sempre. compreendo Eudemônia e 'também não posso suportar sua
Os acontecimentos entre as duas se intensificavam infundada suspeita de hoje. Vou me deitar e se a minha
em arrebatadas cenas de amor nas quais elas se consu- presença a incomada realmente a ponto de não poder
miam, esgotando gemidos e suspiros de êxtase intermi- suportar, diga-me e eu irei ... para o lugar de onde vim ...
prefiro voltar para lá, do que perder sua confiança e seu
náveis. Uma noite a primeira sombra de ciúme passou
amor ... quer que eu vá? .. Diga, alguém me espera! A
pelas pupilas de Eudemônia.
velha cafe ...
Chegara naquela tarde um amigo de seu pai, que
A bofetada que Eudemônía lhe deu fê-Ia engolir o
viera para discutir negócios e acabou por começar a te-
resto da palavra. Mila levou a mão ao rosto e vertendo
cer elogios avançados em tôrno de Mila, que sorria agra-
lágrimas sentidas se afastou para o canto do quarto e
decida, enquanto Eudemônia via aquela manifestação
de lá ficou olhando para Eudemônia, completamente al-
como uma aderência às provàvelmente simuladas pro- quebrada.
11I
postas que aquêle homem lhe fazia.
Eudemônia também ficou como paralisada, olhan-
Levantou-se de inopino e sem se despedir, deixou-os do para ela. Depois avançou em sua direção em poucas
em meio ao jantar, atravessando a sala a largos passos passadas e tomou-a nos braços num amplexo arreba-
tado,
batendo a porta atrás de si ruidosamente.

Mila se levantou e seguiu-a, porém, Eudemônia já A noite terminava e as duas mais que nunca se en-
havia atravessado os jardins e alcançado a avenida com tregavam à euforia emotiva daquele amor louco. A ma-
o carro. Mila chamou-a ,nervosa, porém, Eudemônia não drugada cumprimentou-as com seus primeiros raios de
respondeu. sol
ne que atrevidamente entraram pela janela , mas as duas
rn se voltaram para responder e continuaram a se amar
228 CASSANDRA RIOS

intensamente. Durante longos dias ficaram sem sair, pri-


sioneiras na tenda da paixão.
As brigas começaram a açoitar-lhes os nervos. Ciú-
mes por coisas, insignificantes. Ciúmes por dúvidas re-
lacionadas ao passado de Mila. Também, Mila começou a
criar· embaraçosas situações quando Eudemônia, para CAPíTULO XIV
acirrar-lhe os nervos, fazia galanteios às amigas e simu-
lava interêsse por qualquer mulher que aparecesse. Até
que Mila enfureci da fêz a ameaça. Eudemônia sentou-se apoiando-se nos cotovelos e es-
condeu o rosto entre as mãos. Méltsia permaneceu em si-
_ Pode continuar com suas conquistas, Eudemô-
lêncio, esperando que ela continuasse. Como Eudemônia
nia. Eu saberei como me vingar. Ou melhor, não será real-
se demorasse entregando-se àquele nervosismo que mal
mente vingança. .. eu sempre pertenci aos homens I
podia sufocar, levantou-se e pondo a mão sôbre seu om-
Seria o máximo que ela poderia dizer para que Eu- bro perguntou:
demônia chegasse ao auge do desespêro. -Não quer continuar?
Entretanto não houve briga. Eudemônia apenas pro- Eudemônía tirou as mãos do rosto e respondeu:
feriu entre dentes:
O resto você já sabe. Não há mais nada para re-
_ Eu a mato I Crivarei seu corpo de balas I velar.
E saíu do quarto. - Então posso fazer uma pergunta?
- A respeito do que?
- Sôbre aquela noite.
- Já revelei tudo. Perpetrei o crime que havia pre-
meditado. Infelizmente ela não morreu, pelo menos eu
não estaria aqui e não a teria conhecido. A razão que me
levou a isso foi a suspeita... a suspeita terrível... o
rival não poderia ser outro. .. tinha que ser. .. tinha que
!!IerINão, Méltsia não pense que eu sofro ainda a ínfluên-
230 CASSANDRA RIOS EUDEMôNIA 231

cia da revolta que provocou a traição do meu tio e Síl- Seria impossível querer reconfortá-Ia. Méltsia dei-
vana. Agora não. Quando eu agi, embora não quisesse re- xou-a chorar e contorcer-se sem esboçar um gesto para
conhecer a verdade, foi porque vi. .. percebi em todos os acalmá-Ia. Um rícto de tristeza descia-lhe dos olhos ao
gestos, em tôdas as atitudes dos dois que eu quis descul- canto da bôca vincando uma expressão reveladora, Mélt-
par, como se fôsse uma coisa natural pela razão de mo- sía enxugou 'com a ponta dos dedos as lágrimas que lhe
rarmos todos juntos ... mas não, a verdade quer ser ou- afluiram aos olhos e não se contendo mais atirou-se para
tra, a que estava em meu subconsciente. E aconteceu. Eu o sofá e puxou Eudemônia para perto. Abraçando-a fê-
vi, com os meus próprios olhos.. eu sei. .. eu sei quem Ia debruçar a cabeça no ombro. Não conseguia articular
era o homem que estava com Mila, mas não me atrevo ... uma sílaba. A emoção estraçalhava-lhe os nervos. A apro-
ximação de Eudemônia impressionava-a e aquêle deses-
não quero crer. .. não posso dizer. .. Sou louca em pen-
pêro dela tocava-lhe o coração.
sar assim.
Eudemônia ergueu o rosto e olhando para ela disse:
Eudemônia se levantou e caminhou nervosa pelo
quarto, esfregando as mãos, contorcendo as faces que se _ Você está chorando, Méltsia! Sofre comigo! Oh!
umedeciam de lágrimas. O peito arfava, exasperado, amor. .. amor... você compreende, sabe que não sou
como se o coração estivesse empreendendo uma desaba- louca só porque quis fugir da verdade, porque não queria
lada corrida. reconhecr a razão. .. Eu sei que você sente o mesmo que
eu e êsse sentimento veio trazer-me confôrto dentro dessa
A doutôra acercou-se dela e insistiu: tragédia tôda... oh! querida... querida, minha ...
- Fale. Quem era aquêle vulto? Eudemônia apertou-se mais contra ela num trans-
porte emotivo.
Continuou insistindo, andando atrás dela, que se exas-
perava cada vez mais numa explosão de nervos. Méltsia recebeu o beijo que ela lhe deu no rosto e
quando viu os lábios se aproximarem trêmulos e ansio-
Num grito neurastêníco, erguendo as mãos para :1
sos, de um pulo afastou-se e passando a mão pela testa
cabeça e arrancando os cabelos furiosamente combateu: contestou corno se estivesse se revoltando contra si pró-
-- Não quero falar mais! Não me obrigue a lembrar pria:
aquela tão horrível noite. Eu não sei de nada, não! É -Não! Não pode ser! Tanto assim não! É mentira!
uma suspeita louca. Isto não pode acontecer!
Chorando convulsívamente Eudemônía se atirou sô- Ela correu para a outra sala. Eudemônia chamou-a,
bre o sofá. suplicante, estendendo as mãos para ela:
232 CASSANDRA RIOS EUDEMONIA 233

Não fuja, Méltsia ... não fuja, por Deus! Eudemônia parou poucos passos distante e ficou em
silêncio olhando-a fixamente. O coração pulsava forte e
Méltsia olhou-a voltando a cabeça para o lado e seus seus lábios estiravam-se trêmulos, querendo emitir sus-
olhos brilhantes responderam àquele apêlo com duas lá- surros que não signfiicavam nada, As mãos geladas se
grimas que deslizaram silenciosas pela face. contraiam enterrando as unhas na carne. Ela tôda vibra-
Eudemônia levantou-se e correu para ela. Méltsia sa- va descontroladamente.
cudiu a cabeça negando-se a aceitar aquela situação e fu-
giu tropeçando nos passos para o quarto. Méltsia ficou admirando-a sem conseguir concen-
trar-se em nada que não fôsse o olhar de Eudemônia.
_ Não, EudemÔnia... não... você está enganada. Não se controlava mais e não podia sufocar a estranha
Interpreta mal meu ressentimento ... sensação que a impelia para a frente, ao encontro daque-
la;mulher, tal como poderoso imã atraía-a imperiosamente
Mas Eudemônia já não podia refrear aquêles im-
pulsos e correu ainda ao seu encalço, empurrando a por-
-Eu a amo ...
ta que ela tentou fechar para impedí-Ia de alcançá-Ia.
Eudemônia colheu-a entre os braços ao mesmo tempo
Frente a frente as duas se fitaram. Eudemônia es-
que repetia o revelador conflito que se decifrara naque-
tendeu as mãos e quis prendê-Ia. Méltsia, entretanto, des-
las palavras ..
viou para o canto do quarto e suplicou, revelando-se me-
drosa e estranha para consigo mesma: Méltsia entregava-se àquele abraço e se apertava
_ Não se aproxime, Eudemônia .. '. não se atreva ... mais contra ela como se dentro dos seus braços estivesse
O quarto estava fracamento iluminado por uma luz se escondendo de si própria.
central azulada que refletia no rosto das duas numa côr
Eudemônia estrangulava-se naquele apêrto desvaira-
pálida e difusa. do que não terminava nunca. A pouco e pouco afastan-
Eudemônia deu um passo em sua direção e parou do-se puxou-a para o outro lado.
para olhar pela janela entreaberta que dava' para o pá-
tio. Um clarão de relâmpagos que se arrebentavam em Méltsia olhou para a cama e sacudiu a cabeça, que-
. rendo protestar.
profusão se fizera e logo em seguida forte chuva desa-
bava. Eudemônia fitou-a mais uma vez e ela a seguiu ca-
Eudemônia continuava a aproximar-se dela envian- lada e deixou que a estirasse sôbre a cama. Não disse nada
do lampejos sinistros com o olhar fito naquele rosto que quando Eudemônia reclinando-se sôbre seu corpo apro-
se contraia em expressões reveladoras. ximou os lábios de sua bôca. Faltava quase nada para o
234 CASSANDRA RIOS EUDEMõNIA 235

beijo e Méltsia num último instante virou a cabeça para As bôcas se desuniram e Eudemônia, com uma ex-
o lado fazendo menção de fugir. Eudemônía prendeu-a, pressão diabólica no olhar e com a voz trêmula sussur-
segurando-a pelos ombros e acabou de cair inteirinha em
rou:
cima dela. Os lábios alucinados e febris esmagaram-se
contra aquela bôca que hesitava. - Deixa .. , eu quero você... deixa... quero sen-
tir sua carne ...
Os lábios de Méltsia se entreabriram macios e ela
sentiu todo o interior daquela bôca vibrante que retribuía Mais furiosa, ínstígada por um desejo incontrolável
o beijo enrijecendo a língua que a invadiu como se qui- de um arranque libertou a mão e em gestos brutais pu-
sesse transmitir-lhe uma súplica de pecado. xou pela gola o roupão que se abriu pondo a desnudo os
seios eretos e túrgidos da doutôra que a olhava trêmula
A saliva de Méltsia verteu abundante para dentro e ruborizada. Num desvario alucinante desceu a cabeça
como se fôsse água fresca para saciar a sêde que a tor- em direção ao seu peito e recolheu entre os lábios
turava. o bico endurecido que apontava como um botãozinho ró-
As mãos resvalaram-se em suas costas e espalmaram- seo. Chupou-os insaciável, esfregando a língua pela curva
se em suas faces, depois deslizaram para os cabelos e dos seios que terminavam em escultura! formato.
numa fúria brutal se emaranharam nêles apertando aque-
Méltsia .puxou-a pelos cabelos e levou-a para perto
la cabeça para que o beijo doesse, para que os lábios san-
do rosto que revelava traços de êxtase. Prendeu a bôca
grassem e ela lhe bebesse o sangue.
atrevida mordendo-a e beliscando-a com os dentes em ca-
Eudemônia enfurecida resvalou a mão pelo seu om- rícias ferinas de uma sedenta pitonísa que adormecera
bro em direção ao decote e por sob a fazenda grossa sen- durante séculos à espera de um momento de amor.
tiu a carne quente do início de um seio. O corpo de Mélt-
Eudemônia porém queria mais que beijos e abraços
sia se contorceu sob o seu como se quisesse evitar o pros-
e se afastando se pôs numa posição agressiva para o
seguimento das manobras de Eudemônia que adejava em
lado e puxando-a com jeito conseguiu despi-Ia e a cada
cima dela como se estivesse possuída de uma febre conta-
peça de roupa que jogava para longe ia beijando a parte
gíante e malévola. Ela se sacudia em tremores intensos do corpo que surgia liso e alabastrino.
e agitados e gemia e enlouquecia mais, prolongando aquê-
Ie beijo brutal e desfalecedor. Méltsia contorcia-se indefesa, sem f'ôrças para lutar,
sem fôrças para repudiá-Ia, sem coragem para negar que
Eudemônia ainda quis agarrar aquêle seio que ire-
a amava e a desejava também e entontecida como uma
mia perto, mas Méltsia prendia-lhe a mão com fôrça, se-
criança que abre os olhos para a vida pela primeira vez;
gurando-a pelo pulso. chorou seu primeiro queixume:
236 CASSANDRA RIOS
EUDEYõNIA 237
Adorada, minha ...
Méltsia entreabriu os olhos e fitou-a de muito perto.
Eudemônia resvalava a bôca pelo seu rosto descia Ergueu o braço vagarosamente, e, estirando a mão, pas-
o pescoço, sugava-lhe os seios passeava ao redor do um- sou os dedos pelos lábios dela:
bigo descia para o ventre e ia além prodigalizando os es- _ Como são rubros. .. e quentes. .. escaldantes ...
tremecimentos daquele corpo que recebia os primeiros criminosos. .. tentadores ...
arrepios do gôzo.
Era incrível que Méltsia lhe falasse assim. Não po-
- Sente, querida. .. como eu a amo ... veja do que dia crer que aquelas palavras se escapassem de seus lá-
sou capaz ... bios. Eudemônia não podia acreditar. Nem mesmo que a
Eudemônia resfolegando carícias ia provocando tre- tivesse possuído. E segurou a palavra quando percebeu
mores e conseguindo fazê-Ia desfalecer assaltada pelas que ela ainda ia falar mais:
garras do espasmo que a contorceu num desvario com- - Você me ama! Eu a amo, também, Sou sua! Fui
pleto arrancando dos lábios gritos de prazer e loucura, sua! Faça de mim o que quiser, estou vencida debaixo do
gemidos alucinantes que confessavam o verdadeiro tem- seu corpo, prêsa aqui sem fôrças para fugir mais, sem
peramento daquela criatura que se escondia por trás de coragem para negar. Vamos, Eudemônia,. beja-me mais ...
um uniforme branco. Erótica, vibrante, ela era fogo e assim ... assim e assim, alucinadamente ... morde a mi-
pecado despertando como um vulcão que entrava em ar- nha bôca ... morde meu corpo. Marque-se em mim por
rasadora erupção. fora como já marcou por dentro ... assim ... assim ... e
O espasmo venceu-a num último grito do paroxismo assim. .. Méltsia ia espaçando as arrebatadoras pala-
carnal: vras com mordidas e beijos ferozes que mais do que ma-
chucavam Eudemônia, excitavam-na.
- Eudemônía, querida... meu amor... amor ...
amor ... O ardor daquelas carícias produzia nela um efeito
diabólico.
Eudemônia afastou-se ligeira e se despiu e nua 6
Eudemônia se esfregava enfebrecida ao corpo dela
fresca como se tivessse emergido de um poço de essências
e foi sentindo vagarosamente queimando-a o gôzo se in-
raras acercou-se novamente estendendo-se tôda sôbre o
tensificar até que rangendo os rendes ela caiu em estre-
corpo de Méltsia que jazia inerte como se estivesse sob o
mecimentos para o lado, encolhendo-se e esticando-se con-
efeito de uma droga entontecedora.
vulsiva pelo estertor do êxtase.
- Ainda não, querida... quero mais de você .. , é
Méltsia pulou para cima dela e, beijando-a na bôca,
cedo para cansar ...
desceu a mão rápida e, instintivamente, num movimento
238 CASSANDRA RIOS EUDEMÓNIA 229

rítmico, foi procurar o gôzo que queria fugir do corpo de ela. Uma agonia infinita soçobrava em sua voz e seus
Eudemônia, olhos a perscrutavam ansiosos enquanto ela perguntava
ofegante:
A chuva lá fora continuava a cair barulhenta e a
água correndo pelos canos da calha fazia um ruído gos- - Que tem você, Méltsia? Que foi que eu disse? Por
toso como um cãntico luxuríoso. que mudou tão de repente?.. responda, por favor ...
responda. .. olha para mim ...
A bôca de Méltsia, prendendo a bõca de Eudemônia
- Oh! não, Eudemônia! Vá embora! Deixe-me!
~ as suas mãos lisas e longas, enterrando-se nela, crimi-
Perdoa minha fraqueza. Fiquei louca de súbito. .. não ...
nosas e assaltantes. Invadindo-a sem se Importar com os
não pode ser. Volte para o seu quarto, por Deus, obe-
germdos da outra que reconua para dentro de si pren-
deça-me.
dendo-lhe a bôca.
- Não creio no que diz! Não aceito sua revolta! Por
Os cabelos soltaram-se e caíram em madeixas com- que não reconhece a verdade? Não é digno de sua per-
pridas e aneladas sôbre os ombros. Por entre os cilíos sonalidade vacilar diante de preconceitos que valem para
que se emaranhavam, Eudemôma VIU-OSe afastando com outras, não para nós. Eu a forcei a alguma coisa? Pedi-
esfôrço os lábios daquela bôca esfaimada que nao queria lhe que me amasse? Não, não nego, eu sei que você me
se desprender, murmurou, enquanto passava a mao em ama e não permitirei que destrua nossa felicidade com to-
sua cabeça: lices infantis. Eu não sou louca e nem você tampouco.
- Que macios!... eu gosto dos seus cabelos ... - Eu estou esgotada! - interrompeu Méltsia que-
rendo esclarecer a razão da sua fraqueza.
Méltsia afastou-se ruborizada, como se aquêle comen-
tário a tivesse feito despertar de uma loucura. Escondeu - Não arranje mais desculpa. Ninguém que se es-
o rosto entre as mãos e depois se atirou de bruços sôbre gota por trabalhar em excesso se apaixona por qualquer
a cama ao lado de Eudemônía. Ela tôda, estremecida de criatura. Não você. Por que não se casou de novo? Aposto
vergonha. Parecia voltar a si depois de longas horas de que teve milhões de oportunidades. Pois eu vou respon-
inconsciência. Como se tivesse agido sob o efeito de uma der, não precisa pensar na resposta. Porque você estava
hipnose. Uma revolta dolorosa comprimia-lhe o peito. . à espera de algo sobrenatural capaz de arrebatá-Ia de
Como pudera chegar àquele ponto. Descontrolar-se tão-" tôda a sobriedade em que tem querido viver e se concen-
ignõbílmente sem que refletisse um só segundo. Era ab- trar. Não, Méltsia, não fuja da verdade. Eu leio em seus
surda a idéia de que pudera se deixar vencer pela fôrça olho! o que você sente. Você é uma verdadeira fúria e
invasora do olhar de Eudemônia que agora a chamava não Poderá refrear por mais tempo seu temperamento.
em súplicas, sacudindo-a e querendo forçá-Ia a olhar para Desperte, Méltsia. Olhe para mim!
240 CASSANDRA RIOS
E'UDEMÔNIA 241
- Não posso, Eudemônia! É inútil querer convsn,
cor-me. Eu não aceito tal idéia. Está errado! Não pode Ao receber um raio de luz sôbre o rosto, Méltsia en-
ser! Não pode! De jeito nenhum. treabriu os olhos e sacudindo Eudemônia, avisou:

- Está bem. - Acorde, meu bem, está na hora de voltar para o


seu quarto ...
Eudemônía soltou-a e, engolindo um alude de pala-
vras que queriam escapar de seus lábios, suplicando para Eudemônia olhou-a com seus grandes olhos inquiri-
dores.
que ela não se negasse mais, levantou-se quase se arras-
tando e pegou uma peça de roupa que havia jogado no - Eu a verei depois?
chão.
Méltsia vacilou em responder e finalmente acenou
Estendeu o braço para vestir a blusa quando Mélt- que sim.
sia, correndo para ela, exasperada, agarrou-se à sua cin-
tura ainda chorando copiosamente: - A noite? Aqui?

- Não posso ... não se vá. .. fique. Ela tornou a acenar que sim. Eudemônia apertou-a
nos braços e beijou-a, Ela retribuiu nervosamente e aper-
Eudemônia abraçou-a enfebrecida por uma emoção tou-se contra seu corpo com fôrça.
violenta e derrubou-se com ela de novo para cima da
cama. - Agora vá, Eudemônia!

A chuva terminara e apenas o barulho de goteiras - Diga, primeiro, que me ama. Diga que não via-
ressoava num ritmo que provocava sono, espalhando uma jará mais. Diga a verdade, mesmo que seja o contrário.
umidade gostosa pelo ar afora. - Eu a amo. Vá, Vá, meu bem, e acredite em mim.
Eu estarei à sua espera.
A penumbra empalidecia o quarto sensualizando o
aspecto do tempo. Eudemônia levantou-se e vestiu-se ràpídaments.
Tudo refletia calma e descanso. Méltsia permanecia Olhou para Méltsia ainda uma vez e vendo duas lá-
em silêncio com a cabeça reclinada no ombro de Eudemô- grimas rolarem de seus olhos, aproximou-se e, beijando-
nia que passava as mãos pelos seus cabelos. a muito, perguntou:
Os minutos se transformaram em horas e a claridade - Por que você está chorando?
do dia ilumínou-lhes o semblante.
Méltsia custou a responder mas pareceu sincera:
242 CASSANDRA RIOS

- Porque eu a amo.
Eudemônia ia beijá-Ia mais. Méltsía pôs a palma da
mão em seus lábios e pediu:

- Vá! Beija-me depois ...


Eudemônía se afastou. Olhou para trás, deu um sor-
riso e saiu. CAPíTULO XV

Eudemônia acabara de sair do banheiro, e com a toa-


lha enrolada no corpo, atendeu a enfermeira que, cum-
primentando-a cordialmente, avisou:

- Acaba de chegar esta carta para a senhora. Creio


que vem do estrangeiro.

- Oh! deve ser de Vítor. Finalmente! - disse ela,


correndo para pegar a carta que a enfermeira lhe es-
tendia.

-Sim. .É dêle l Reconheceria esta letra entre mi-


lhares de envelopes subscritos. Oh! Vitinho, quanto tempo
para responder! ...

Eudemõnia sentou-se na cama e nervosamente rasgou


o envelope.

Um sorriso de satisfação coloria-lhe o semblante.

Havia dois meses escrevera-lhe uma carta e só agora


.recebia resposta.

Contara-lhe tudo e até mesmo revelara sua mais se-


creta suspeita querendo que êle, de uma maneira sóbria
244 CASSANDRA RIOS EUDEMôNIA 245

e sincera, esclarecesse a tremenda dúvida, julgando-a lou- :ele pusera a alma naquelas palavras e o seu senti-
ca ou vitima ae uma oarnara e asquerosa traiçao, mento brotava nas linhas como rios de lágrimas revol-
tadas e tristes.
Agora irra saber o que o detivera tanto tempo fora
do pais. Vitor emoarcara para o exterior naquela tarde Depois de tanto tempo de abandono, sem amigos,
em que em, corrorua pela uescontiança, não quisera ir sem ninguém que se atrevesse a visitá-Ia e compreendê-
ate o porto, a 11m ae espionar. lYl11a,que uesue cedo per- Ia, chegava aquela carta como um sorriso de alento, como
manecera na cama queixanoo-se de imprevisto mal-estar lenitivo para tôda recusa de amor para ela naquele
que a impeuia ae acompanna-ios. rxao navia razao aparen- mundo de criatura.s que queriam julgar e castigar como
te para que n.ucemoma oesconnasse uas palavras de lVl11a, se fôssem deuses cuspindo na obra que esculpiram com
encretanto a suspeita espicaçou-a noras seguiuas queren- as próprias mãos. Leu e releu com calma, demorando-se
do onrrga-ra a voitar ae surpresa como se tivesse certeza, nas palavras para gozar aquêle momento em que, depois
como se previsse que irra uesmascara-ia num flagrante de tanto tempo, voltava a conversar com um amigo. O
único.
imperuoavei. ~ aSSIm .rouara ate tarue pela ciuaue, para
que ela acreuitasse que a tais horas ..t.;uaemOllla ja esti- Dentro de tôda a dor e mágoa que sofria um res-
vesse a uemorauos quuometros ae uistancia sem tempo pingo de esperança acendeu-se para amenizar a terrível
para voitar antes naquela norte. Aquela carta era a umca nostalgia que o amor por Méltsia lhe causava.
prova ue que v itor emoarcara realmente e que a mentrra
ae lV.1llarora completamente falha e estupiua. 'Vomo pu- :E:le,indignado, reconfortando-a, prometendo que ha-
dera em cometer tamanho disparate era o que n.uuemô- veria de chegar antes do início do próximo mês, vibra-
ma nao conseguira compreender mais do que tudo. Alem va em cada letra escrita com uma impetuosidade de
de nipocrrta, aquela criatura era estupidamente Ignoran- sentimento, transmitindo-lhe mensagens de carinho para.
te. vrtor, muumtavennente, nada sounera a respeito do que ela acreditasse não estar tão só como julgava.
desastroso acontecimento, caso contrarro, como anrmava Que o mundo inteiro era pouco para vencê-lo na luta
na carta, terra voitauo imediatamente para aJ uuá-ia a des- que haveria de empreender para arrancá-Ia de lá onde
mascarar aquela perversa mulher que se revelara como a haviam prendido. Estava revoltadíssimo e seria capaz
de tudo por causa dela.
um serpente rastejante escondida na grama de um jar-
dim. Explicava-lhe que muito tempo após a chegada da
carta que ela lhe escrevera é que a recebera em mãos,
Aquela carta confirmava que só lhe restava Vítor e
pois estivera em uma fazenda à qual a camareira da.
que êle não se atrevia a negar o- que possivelmente era a
casa da cidade não pudera ir e nem mesmo houvera
verdade. Víto« também sabia.
meios de comunicação. Assim sendo, somente com seu
EUDEMONIA 247
246 CASSANDRA RIOS
sua tática de conquistas. Eudemônia, embora êle lhe
regresso, depois da temporada no campo é que êle pu-
parecesse antipático, cumprimentou-o dessa vez sorriden-
dera ler a carta de Eudemônia. Sua ida para o campo
te e continuou a perscrutar os arredores ansiosamente à
havia sido um imprevisto, uma deliciosa aventura que
procurar por entre aquêles que chegavam a sua querida
êle empreendera em companhia de uma jovem que iria
voltar em sua companhia, para o país, como sua legí- doutôra.
tima espôsa. Era realmente uma notícia jamais espe- As mesas tôdas foram ocupadas. Parecia não faltar
rada. Eudemônia quase explodiu de contentamento e de ninguém, pois todos continuavam a almoçar indiferentes
entusiasmo quando leu êsse parágrafo, que terminava a sem olhar para a porta de vaivem que permanecia imóvel.
carta.
Apenas a cadeira de Méltsia continuava vazia.
Dobrou-a e foi guardá-Ia em gaveta.
Eudemônia principiava a impacíentar-se , As mãos
Começou a se preparar para ir almoçar, e enquanto tremiam e ela mal podia erguer o garfo para levá-lo à
isso fazia planos para quando êle chegasse. Precisava bôca.
contar-lhe urgentemente a respeito de Méltsía e haveria
Méltsia nada de aparecer.
de conseguir que ela fôsse embora consigo, nem que fôs-
se preciso lutar com o diabo para conquistá-Ia. Alguns enfermeiros se retiraram, o dr. Kermam
passou por ela e se despediu. Logo, ela percebeu que ao
Eudemônia exultava de contentamento. Nada mais
seu redor estavam ainda umas poucas pessoas que a
poderia superar a felicidade que lhe proporcionava os
observavam curiosas querendo saber qual a razão do seu
acontecimentos da noite anterior entre as duas e a che- nervosismo.
gada :Ia carta de Vítor.
Alguns momentos mais e ela ficou só.
Eudemônia foi para o refeitório.
Eudemônia apoiou os cotovelos sôbre a mesa e ficou
Sua disposição e alegria também surtiram o efeito olhando para o prato de doce no qual não tocara.
de uma grande novidade para todos.
Onde estaria Méltsia? Por que não havia ido ao
Ela escolheu uma mesa próxima à qual iria sentar- refeitório quando era seu dever comparecer todos os
se Méltsia e esperou que a servissem. dias? Assim havia lhe dito. O que teria acontecido? Por
certo, Eudemônia se acalmou, estava com vergonha, sem
O refeitório estava quase vazio. Haviam chegado
coragem de encará-Ia, por êsse motivo teria, com tôda
apenas alguns enfermeiros e o dr. Kermam, que a olhou
cérteza, almoçado em sua própria sala. Com êsse últi-
depois de cumprimentá-Ia com aquela expressão de galã
mo pensamento! Eudemônia deixou o refeitório,
que não escolhe hora nem ambiente para experimentar
248 CASSANDRA RIOS
EUDEMôNIA 249
No corredor encontrou-se com Marga, que a cum-
choque paralisante. Tudo nela se contraía sofrendo a
primentou significativamente, querendo conversar com
revolta do engano. Como pudera ser tão tôla a ponto de
ela. Eudemônía, porém, não lhe deu atenção e prosse-
deixá-Ia, depois daquela noite cheia de revelações? Mélt-
guiu.
sía como era, só poderia pensar em escapar de cir-
Depois de alguns passos resolveu chamá-Ia. Apro- cunstâncias mais comprometedoras . Jamais teria cora-
veitaria para perguntar sôbre Méltsía. gem para envolver-se em um caso daqueles. Acima de
tudo estava a sua carreira f à qual ela se dedicara fervo-
Marga voltou-se para perto dela. Eudemônía não teve novamente e não deixaria que todos aquêles anos de
coragem para perguntar nada e trocou algumas pala- considerável apreciação na sociedade médica, fôsse assim
vras desconexas que provàvelmente indignaram a enfer- em inesperado roldão redundarem num fracasso vergo-
meira que dessa vez poderia acertadamente julgá-Ia como nhoso, em um escândalo arrasador. Não se conseguiria
se ela fôsse uma pobre desequilibrada. explicar nunca como poderia ser considerada psiquia-
Caminharam uma ao lado da outra e pararam à tra, doutôra, professôra de milhares de estudantes de
porta do apartamento de Eudemônia que, por uma for- psicologia, uma mulher que se deixava vencer de um
malidade usual, convidou-a para entrar. momento para outro por uma paixão anormal que já
fomentara a curiosidade de quase uma nação inteira em
Marga olhou para os lados, porém como se tivesse comentários alarmantes.
refletido melhor ao perceber a pouca vontade de Eude-
mônía em prolongar conversas, respondeu: Seria justo que ela empreendesse uma fuga àquele
acontecimento que prometia se agravar, perdendo-a ir-
- Voltarei mais tarde, quando você estiver menos remedià velmente.
perturbada. Gostaria de saber o que lhe aconteceu. Exis-
Como era pouco o amor de Méltsia! Era realmente
te algo que eu possa fazer?
preferível que ela se fôsse para sempre do que continuas-
- Sim. Quero que você vá dizer à dra. Méltsía, se cedendo aos seus impulsos sexuais. Sim, nada mais do
que venha me ver antes de partir. que uma necessidade, fôra aquela manifestação de Mélt-
sia. Usara-a como instrumento para a satisfação de um
- Creio que não poderei satisfazer o seu pedido.
desejo sufocado. E se fôra sem agradecer, sem se des-
A doutora Méltsia viajou pelas primeiras horas desta pedir ao menos.
manhã. Eu mesmo a levei até o aeroporto.
Respiranto dificultosamente, ainda procuranda uma
O rosto de Eudemônía se contraiu com uma expres-
escusa para as atitudes de Méltsia, Eudemônia não quis
são de lôgro. O coração disparou em palpitações como
crer que fôsse verdade o que Marga lhe dissera. Sua ilusão
se quisesse sufocá-Ia. Parecia ter sido vitima de um
e esperança não poderiam ter se esvanecido assim de
250 CASSANDRA RIOS E'UDEMÔNIA 251

uma hora para outra, não era possível que Méltsia tives- doar nunca tal sofrimento. Sua face se contraiu em uma
se coragem para partir sem deixar uma palavra apenas expressão maldosa, como se em sua mente tivesse pas-
prometendo seu regresso. Confirmando que realmente sado uma idéia de vingança.
acontecera algo entre elas e que existia um pouco de
sentimento em seu coração. Que fôra apenas excitação Sim, porque ela não poderia aceitar a posição à qual
sexual que a levara a se deixar envolver pelos carinhos Mélstia a estava rebaixando. Teria que revídar como uma
de Eudemônia. resposta à altura. Méltsia teria que receber o trôco das
lágrimas que lhe subiam aos olhos, intrusas, querendo
Eudemônia estalou as juntas dos dedos e nervosa- revelar a todo mundo o que estava se passando com ela.
mente exigiu que Marga fôsse transmitir seu recado à Querendo provar que ela amava arrebatada e alucinada-
deutôra. Queria vê-Ia incontinenti. mente.
Marga afirmou que não era possível e para certi- Um brilho esquisito refletiu-se nas pupilas dela quan-
ficá-Ia levou-a até à portaria para que melhor lhe infor- do disse para Marga:
massem sôbre a partida de Méltsia.
Volte mais tarde. Gostaria de conversar com
Eudemônia inclinou a cabeça e, sem proferir pala- você.
vra, caminhou de volta.
- Sim. Eu voltarei - confirmou Marga, sorrindo
Parou à porta do apartamento e olhou para Marga com satisfação.
em silêncio. Seus cílios estremeceram, ela umedeceu os
Eudemônia estendeu a mão para ela e se despediu.
lábios lívidos que tremiam, esfregou as mãos, tornou a
Marga voltou-se nos calcanhares e se afastou, olhando
inclinar a cabeça e ficou olhando para as pontas do sa-
de vez em quando para trás. Eudemônia, - quando ela
pato que reluziam bem engraxados.
sumiu na curva do corredor, empurrou a porta e entrou
Marga ficou à espera de que ela dissesse algo. para o quarto.

Eudemônia sufocava a impetuosa fúria que a inci-


Quanta solidão se desenhando por sôbre tudo. Como
tava a gritar sua revolta e partir dali à procura de Mélt-
era horrível aquela impressão de abandono. Tudo vazio,
sia para agredí-la e se vingar de sua falsidade, de sua impregnando-se de tédio. Como suportar aquêles dias
hipócrita traição. Era uma covarde, incapaz de aceitar monótonos, frios e longos sem ter por quem esperar.
o que lhe obrigava o próprio coração. Poderia ser justo Sem ansiedades, sem motivos para nada. Aquêle sabor
o motivo que a fizera fugir, porém era tão horrível a horrível subia-lhe do coração à bôca como se de revolta
idéia de tê-Ia perdido que Eudemônia não poderia per- as lágrimas tivesse se convertido em fel. Um so-
252 CASSANDRA RIOS
E'UDEMõNIA 253
luço queria arrebentar-se. Tinha a garganta contraída.
A vista turva, os cílios trêmulos contendo lágrimas que torcendo a bôca salivosa, alguns parecendo carregar às
teimavam em fugir dos olhos. Era realmente um tor- costas um insuportável fardo e ainda outros beáticos com
mento cruciante aquela primeira impressão que a ausên- expressões ingênuas dos santos de Igreja.
cia de Méltsia lhe deixara. Então o que seria nos pró- Se antes médicos e enfermeiros a rodeavam dispen-
ximos dias? Seriam horas intermináveis, marcando mi- sando-lhe tôdas as atenções, querendo agradá-Ia, ora
nutos de agonia a cada batida triste do coração. Cada aborrecendo-a com interrogatórios, ora querendo estu-
lágrima valeria por tôda angústia que a lembrança dá-Ia e convencê-Ia de que poderia libertar-se daquele
daquela que fugira feria em sua alma. Fôra-se covarda. vício, ou daquela tara. Se antes a esgotavam com
mente e-covardemente a atormentava com seu silêncio, po- testes e se não a deixavam só um minuto, agora ali es-
rém uma vaga esperança bordou um sorriso no rosto de tava esquecida, solitária, sem que se importassem com o
Eudemônia. Se ela a quisesse como tudo fizera crer na sofrimento que a enlouquecia. Onde teriam ido todos,
noite anterior, como teria que se humilhar e com que agora que precisava tanto de alguém para ajudá-Ia a
coragem teria que voltar para se entregar a ela nova- se livrar daquela angústia que se apoderara dela arra-
mente. Sim, porque mesmo que Méltsia tivessse partido sadoramente? Não poderia se deixar vencer assim, só
para longe não poderia nunca fugir do sentimento que porque a haviam desprezado com tanta frialdade. Teria
levava dentro, em todo o ser. Eudemônia tinha certe- que ser forte e lutar. Vencer aquela situação à qual
za de que ela a levara j unto, em todos os pensamentos. Méltsia orgulhosamente a submetera. Teria que erguer
Ela não poderia tê-Ia arrancado de dentro do coração a cabeça e encará-Ia COlIn a mesma superioridade, quan-
assim sem mais nem menas, como se arranca uma planta do ela voltasse. Eudemônia nunca inclinara a cabeça a
da terra que a prende. E se porventura ela tivesse ca- nada e se ali estava era porque não admitia que a fizes-
pacidade para tanto, por mais imperceptivel que fôsse sem de idiota, que a traíssem. Como então admitir que
a lembrança deixada, ela haveria de crescer imperiosa alguém pudesse se convencer por ter sido mais forte do
e a sufocaria com o seu amor, obrigando-a a voltar. que ela a ponto de escapar daquela situação e depois
olhá-Ia com ares de piedade? Nunca! Méltsia haveria de
Sim. Métsia teria que voltar... E o seu regresso
ver quem era verdadeiramente Eudemônia. Uma mulher
seria uma vitória tão grande que dispensaria a vingança.
capaz de sufocar a mais avassaladora nostalgia. Capaz de
E se Méltsía não voltasse mais? Que seria dela na- sufocar dentro o mais impetuoso sentimento Se isso sur-
quela prisão de criaturas estranhas e sinistras, de cria- tisse o efeito de uma vingança, se refletisse como des-
turas que caminhavam quais espectros, insensíveis, indi- prêzo para recolocá-la no lugar que ocupara sempre.
ferentes, trazendo no aspecto uma sombra de mortan-
Procurou mesmo na ausência de qualquer sombra
dade. Outros, com olhos de verdadeiros lunáticos, con-
que testemunhasse a sua tristeza, escondendo-se atrás
254 CASSANDRA RIOS E'UDEMÓN1A 255

de um sorriso falso, sufocando soluços e engolindo O reconhecer que ainda não vivera realmente e que pas-
pranto que lhe doia dentro, parecer indiferente e inaba- sara pela vida em sonhos funestos e efêmeros que se
lável. desfaziam na lembrança como coisas não acontecidas.

Caminhou pelo quarto, seguidamente, abriu a gave- Eudemônia sufocava-se naquele quarto. As parede
ta e pegou a carta de Vítor, pareciam diminuir de encontro a ela como se fôssem
esmagá-Ia. Parecia ter ficado vêsga de súbito. Entonte ..
Tanto tempo! Como pudera ficar semanas inteiras cida cambaleou até perto da cama e sem fôrça, deixou-se
sem se lembrar dêle ? Como pudera deixar escapar a cair pesadamente , Mal conseguia respirar. Todos aquê-
preocupação pela demora daquela resposta? Até então Ies pensamentos produziram-lhe nos sentidos indefinível
parecera que nada lhe faltava e asim de súbito, até mal-estar. E nunca como então, subiu-lhe à garganta
aquêle pedaço de papel valia por todos tesouros do mun- um calor intenso que ressecou-lhe até a bôca, um desejo
do. Tinha ali uma mensagem de carinho, uma promessa insuportável de beber até cair embriagada numa con-
de liberdade. Saber que Vítor chegaria dentro de pouco torção de delírio. Champanha, vinho, cerveja, vermute,
tempo representava um insubstituível alento e êsse dia ou cachaça, qualquer coisa que estancasse aquela ansíe-
seria de alegria tão grande que haveria de superar dade, que a arrastasse para fora do mundo, entorpecen-
nem que por imprescindíveis segundos aquela saudade do-lhe a mente para que não pudesse pensar mais.
que Méltsia lhe deixara. Eudemônia debateu-se nervosa-
Num desesperador esfôrço, ela se levantou e deu
mente contra so pensamentos que fugiam à procura de
alguns passos vacilantes até à porta. Amparando-se na
Méltsia, impetuosos como se pudessem materializar-se
maçaneta, conseguiu girá-Ia e abrir a porta. Olhou pe.o
em braços para trazê-Ia de volta num arroubo de magia.
corredor e teve a impressão de que fôra atirada num
Mas por que aquêle silêncio a penitenciar-lhe a vida
labirinto que se perdia na distância, escuro e sem fim.
com a sua ausência? Por que fugira-lhe assim o raio de
Apertou os olhos e, exasperada, tentou gritar para que
luz que iluminara tão-divinamente aquêles momentos
a socorressem, pois sofreu a impressão horrível de que
negros de enlouquecedores sofrimentos? Por que tão de
o chão desaparecera de sob seus pés e que ela cairia pela
repente sua vida se transformara em um drama confuso
escuridão do nada se soltasse a maçaneta que segurava
e cheio de terríveis suspeitas? Estaria ela realmente vi-
com fôrça contorcendo os dedos em tôrno daquele pe-
vendo aquêle trágico desenrolar de cena? daço de ferro frio.
Cada dia passado parecia ter sido mais um capítulo
de macabra novela escrita por Satã. E cada desfeche - O que você tem, Eudemônia?
trazia-lhe uma nova revelação. Cada nova manhã o iní- Reconhecia aquela voz, porém não conseguira ver a
cio de tantas outras cenas surpreendentes obrigando-a a nessoa que lhe falava para poder ràpidamente identifi-
E'UDEMõNIA 257
256 CASSANDRA RIOA
O dr. Kermam sorria e seus dentes reluziam magní-
cá-Ia. Sentia que a seguravam pelos ombros cuidadosa_
ficamente como ponto principal de apresentação, para
mente querendo ajudá-Ia. Sentia aquela aproximaçao au-
um belíssimo tipo galã da tela.
mentar, porém não tinha f'ôrças para abrir os olhos, não
tinha fôrças para perguntar quem era que aSSIm surgira As mãos finas e compridas, muitíssimo bem trata-
para auxiliá-Ia. das, permaneciam apoiadas sôbre a cama, uma perto do
seu rosto e a outra quase tocando-lhe o braço.
Eudemônía , .. abra os olhos... o que que você
Eudemônia desviou o olhar novamente para o rosto
tem?
dêle e anansou aquêle SOI'l'lSO e aquele olhar. Ele nau
Era tão suave aquela voz, tão delicado o toque da- a estava observando como outros a haviam cnservauo .
quelas mãos, porém ela não conseguia raciocinar. Não Êle a perscrutava não querendo saber CiOSseus pronie-
conseguia coordenar nada. mas íntimos, porém aproveitando aquela oportuniuade
de reconhecer de perto os seus traços e touo seu corpo
Ela caminhou às cegas e se deitou quando a ajuda-
de mulher.
ram a se reclinar sôbre a cama. Ouviu quando a porta
se fechou e percebeu que ~e aproximavam de novo. Er- Ele estava ali, como que pasmado, enleado, quieto
gueram-lhe a cabeça do travesseiro e delicadamente sen- sem tentar abraçá-Ia. Sem esboçar um gesto que a mti.
tiu nos lábios o contato frio de um copo. A água fresca mídasse , Apenas continuava a olhá-Ia com os olhos áví-
desceu pela garganta e ela como que reviveu. Abriu os dos, as formas, as reentrancias e sanências, a sua expres-
olhos que amua se turvaram entre duas piscadas e ela são se foi transformando até que êle deixou de sorrir e
viu aquêle rosto sorrir muito próximo. se tornou muito sério como se não pudesse mais supor-
tar a ânsia que o impelia a pesquisar o corpo dela.
- Está melhor?
Eudemônia tentou sentar. Ele estendeu a mão sôbre
- Dr. Kermam! ...
seu ombro e obrigou-a a se recostar de novo.
- Sim, eu. Quem pensou que fôsse?
- Não! Não se mova. Convém... convém que
Eudemônia olhou-o demoradamente, indignada, sen- fique deitada ...
tindo uma estranha reação de rancor e de repulsa, como
Ela olhou para êle intrigada e perguntou querendo
se êle a estivesse desnudando com aquêle olhar atrevido. protestar:
.Como se êle a tivesse possuído naquele rápido instante
em que a auxiliara. Olhou-o ainda incrédula de sua pre- - Por quê'? Terá por certo adivinhado o que sinto?
sença em seu quarto, não podendo chegar a deduções - Sim. Tenho certeza.
claras à qual sua sagacidade atilada prevenia com seu
Eudemônia uniu as mãos e desdenhou:
instinto de mulher que reconhece o perigo de um ataque.
258 CASSANDRA RIOS
E'UDEMôNIA 259
- Então diga ...
Guardei-o para as noites de plantão no tempo de
- Você preciso de um bom trago ... frio, mas hoj e é um dia que exige uma comemoração e
Ela se sentou rápida e passou a mão pela testa. temos de bebê-Io. Permite que eu a escolha para fes-
Umedeceu os lábios e engoliu com esfôrço como se só tejar?
pelo fato de mencionar isso êle já lhe tivesse dado de - Seu aniversário? - perguntou Eudemônia sar-
beber. eàsticamente, querendo magoá-Io.
Mas. .. CQmo... como adivinhou? - Oh? não. Meu aniversário é uma data que passa
- NãQ sou adivinho coisa nenhuma, apenas queria despercebida. Comemoro um novo prestígio aqui dentro.
fazer-lhe essa sugestão. Se acertei com seu desejo, creia Estou substituindo a dra. Méltsia porque o dr. Jasper
que foi por casualidade. Mas se assim é, voltarei dentro não pôde por circunstâncias plausíveis, tomar sua po-.
de alguns segundos para trazer-lhe um bom conhaque. síção antiga.

Êle se afastou enquanto Eudemônia mal podia acre- Eudemônia empalideceu e a pergunta fugiu-lhe dos
ditar que tal coisa pudesse acontecer ali. Evidentemente lábios rápida e nervosa:
êle estaria querendo agradá-Ia, e para conseguir um seu - Então ela não pretende voltar para o hospital?
sorríso e uma palavra amável, seria capaz de se subme-
ter ao risco de ser expulso do hospital. Eudemônia exul- - Não sei. Parece que sim, porém não quer mais
tou de satisfação. Haveria de usá-l o como instrumento ser a diretora, prefere clinicar e lecionar apenas. Ela é
para satisfazer muitas outras coisas e seria muito fácil uma dessas coisas surpreendentes. Nunca se sabe o que
subordá-lo sem dar nada em troca. Ela riu convencida, pretende na realidade, porém se tem certeza de que ela
é e será sempre a primeira aqui.
Estava a PQUCOe pouco revolucionando aquela Clí-
nica. Primeiro, Méltsía, que fugira para não sofrer o Eudemônia sorriu triste e vitoriosa. Ah! se êle sou-
poder de sua influência; Marga, que esperava sempre beSse uma palavra apenas do que existira entre as duas!
por um aceno seu para se entregar a ela, e, agora, o dr. Como seria ela j ulgada? A destruidora de uma montanha
Kermam. Que diria Méltsia quando voltasse e soubesse, de aço? A lâmina que fôra capaz de cortar o brilhante?
se porventura algo acontecesse, que Eudemônia 08 ven- O dr. Kermam encheu os dois copos quase até a bor-
cera a todos? Esse era uma pergunta para a qual ela da e estendeu uma para ela.
ansiava uma resposta.
Eudemônia avaliou o efeito daquela quantidade e
Êle voltou. Trazia dois copos e uma garrafa de co- perguntou:
nhaque estrangeiro. Acercou-se da cama sorrindo e co-
- Não será um abuso? Não tem mêdo de cair do
mentou entusiasmado: pôsto em que o colocaram assim tão cêdo?
1.1

EUDEMôNIA 261
260 CASSANDRA RIOS
O dr. Kermam sorriu delíciado diante daquela ex-
- Não. E ninguém saberá.
pressão submissa que sensualizou mais ainda o belo rosto
_ Como sabe que eu não direi a ninguém? de Eudemônia.
_ Por que a conhêço suficientemente para poder
julgar. E depois o dr. Jasper não se encontra no hospi- 1!:lese aproximou mais e estendeu a mão para tocar-
tal hoje. Acaba de sair para atender um chamado de lhe os seus cabelos.
outra clínica. Vamos, beba... isso lhe fará bem ... Eudemônia cerrou os punhos e avisou quando êle
_
Afirma então que isto é contra os princípios se inclinou para beijá-Ia:
desta Clínica? Êle sorriu.
- Sem beijos. Sem confissões tôlas... agora to-
Eudemônia ergueu o copo e bebeu um primeiro gole. ma-me ...
Parecia que a vida entrava-lhe pela bôca naquele sabor
ardente que lhe queimava a garganta e que começou a O homem, viu-a fechar os olhos e relaxar-se sôbre
esquentar-lhe o corpo a cada novo gole. O dr. Kermam, a cama à espera dêle , 1!:le caminhou às tontas até a
sempre sorrindo, e naquele sorriso Eudemônia começou porta, trancou-a à chave.
a ver uma revanche e um belo sorriso de criança. Sa- Voltou e antes de se deitar ao lado dela se despiu.
cudiu a cabeça e quis espantar o absurdo pensamento que
Eudemônia estremeceu quando sentiu seu contato,
se assenhoreava dela. Fechou os olhos e virou o rosto para
estremeceu, como se estivesse se submetendo às carícias
o lado. As faces queimavam-lhe e os lábios ardiam. Como
de um animal cuja raça ela desconhecia. Abriu os olhos
podia pensar tantos absurdos e criar imagens inconseqüen-
e olhou para aquêle rosto que se transformava em mil
tes, sem atinar com a razão?!
expressões e proferiu de si para si. "Terá que ser um
Pois ali estava o substituto de Méltsia . O homem belo tipo o meu filho ... O filho do substituto de Méltsia!"
que a doutôra deixara em seu lugar. Pensaria também
Os lábios dêle assaltaram os seus.
que conseguiria assim livrar-se dela? Que se apaixonara
pelo doutor da mesma maneira que se apaixonara por Ela trincou os dentes quando sentiu que êle avan-
ela? çava desnudando-a, tateando-a com as mãos lisas e trê-
mulas. Estremeceu mais quando sentiu todo o contato
Pois haveria de aceitar aquela troca sem nem mes- e quando êle se deitou em cima dela apertando-a nos
mo completar o plano que a iniciativa a perpetrar uma
braços e forçando-a a uma posição submissa e inferior,
vingança. obrigando-a a se deixar possuir assim animalescamente
Voltou a cabeça para êle e depositou o copo sôbre o como se fôssem dois selvagens se atracando em uma luta
criado-mudo.
262 CASSANDRA RIOS EUDEMôNIA 263

encarniçada. Parecia até que ressoava aos seus ouvidos fôra feliz, ela vibrara com tôda impetuosidade nos bra-
o estalo de uns ossos qus se partiam. Pior ainda tinha ços de uma mulher e sõmente ela conhecia a supremacia
impressão de que ela era uma rocha e que a feriram do gôzo. Ela não lhe dera a chama que faria explodir o
cruelmente com uma picareta ao descobrirem uma fenda amor que êle escondia dentro de si.
na qual acreditavam fôssem encontrar um veio de ouro,
Fôra horrível o plantio daquela semente, como horrí-
Ela se contorceu de dor e êle, convulsionado, ran- vel seria a colheita do seu fruto, porém o perfume da
gendo os dentes espigaitado, apertou-se mais contra ela flor que brotaria haveria de compensar tal sacrifício e a
esmagando-a furioso e rugindo qual fera. Deu-lhe a im- geração dos Forbes continuaria para que ela não se sen-
pressão de que até espumava pela bôca. tisse culpada de um final, para que ela não sofresse mais
Ali estava o Homem em tôda sua plenitude. .. Tôda a responsabilidade de ser a última letra de um alfabeto.
a natureza humana vibrando ... E era tão difícil empregar tal letra que ela escrevera a
primeira palavra que surgira em sua mente para não
Todo êle se estufou dentro dela enquanto uma sen- ter que pensar mais em resolver aquêle problema. A
sação quente corria-lhe pelas coxas umedecendo-as. Ela palavra não fôra das mais belas, porém, haveria de se
não precisava olhar para saber que era sangue e mais multiplicar. E tudo que viesse dela seria belo.
alguma coisa. Não precisava perguntar para certificar-
se de que êle gozara dentro dela, deixando em suas en- Eudemônia não se atrevia e chamá-lo e parecia que
tranhas uma semente que teria que germinar porque nem êle tinha coragem para se levantar ou mesmo abrir
assim ela a desejava. E nenhum espasmo, nenhum arre- os olhos.
pio auxiliara o cultivo daquela semente que seria apenas
a reprodução dela própria em uma criatura diferente, Permaneceram os dois em silêncio por muito tempo.
humana e normal. Assim seria, Eudemônia acreditava. Até que êle se debruçou sôbre ela novamente, mas
Ela e o homem. Era mais um quadro que se conpletava. nada fêz, apenas disse, pausado e meticuloso:
Ele se deitou para o lado e permaneceu em silêncio, - Se você tiver impressão de que aconteceu... de
suando e estufando o peito largo com a respiração ofe- que. .. bem, você me compreende, não é? - Ela nem
gante e cansada. sequer acenou que sim e êle continuou: - Você corre
Eudemônia olhou para êle e teve vontade de chorar. me avisar para que providenciemos ...
Era um pobre idiota vencido pelo poder da carne .. , Vi-
- O que pensa? - perguntou ela sentando na cama
brava materialmente sem reflexos de sentimentos na ex-
,e puxando as cobertas sôbre o corpo.
pressão. Sem ter conseguido ainda vencer-se a si próprio
com o êxtase supremo de um espasmo de amor. Ela sim - E' melhor evitar.
264 CASSANDRA RIOS EUDEMõNIA 265

- Só agora você pensa iSSQ? Pois eu quero que Bem que diz seu nome... Eu... demônia... traz tudo
vença. .. quero, entendeu? nessa palavra, o inferno no arrebatamento de uma feli-
cidade. E gente nunca consegue possuí-Ia realmente ...
Mas eu não posso compreender... o que pre-
E se você quisesse ...
tende?
Sem deixar a garrafa, se afastou em direção da
Quero um filho. E êle vai nascer, mesmo que
porta.
não use um nome paterno. E seria preferível, não quero
que um filho meu se preocupe com preconceitos. Eu o Eudemônia ainda gritou nervosa, querendo conven-
criaria livre dessas convenções ... cê-lo :

- Ele nunca seria feliz. .. você não pode lutar con- Deixe essa garrafa ...
tra séculos de tradição ... Não. Você já bebeu demais. Se quiser vá bus-
- Oh ! Vá-se embora! Não quero discutir! Estou me cá-ta à noite em meu quarto. Pode ser que eu não tenha
sentindo pessimamente indisposta, sou capaz de come- trabalhado bem mas prometo que conseguirei satisfazer
ter uma loucura se me arrepender do que fiz. Vá-se embo- o seu desej o ...
ra, por favor, e não fale nunca mais nesse assunto. Eu Eudemônia quase espumou de raiva. Jogou o tra-
não quero, compreendeu? Esqueça-se que já tocou em vesseiro contra êle, que sorrindo, abriu a porta e saiu.
mim. .. esqueça-se que eu me chamo Eudemônia.
No corredor Kermam parou meditativo. O que fize-
- Só me lembrarei disso se essa loucura que come- ra, tudo acontecera imprevistamente.
temos tiver resposta positiva . Eu me casarei com você ...
Como de roldão outras cenas haviam transcorrido.
Disse êle enquanto se levantava e se vestia rápido
Ela estava só novamente com suas imagens pulu-
querendo fugir dali como se aquêle acontecimento o ti-
lando no cérebro. Dessa vez veio nítida, escarnecendo
vesse decepcionado profundamente.
de seus gestos a expressão severa de seu pai.
Embora mais fácil, êle custou em pôr o avental e
Eudemônia vociferou uma blasfêmia empertigando-
recolher a garrafa de conhaque e QS copos. Eudemônia
se na cama enquanto passava as mãos pelas coxas en-
estendeu a mão para êle e pediu:
sangüentadas ainda:
- Deixe isso aí... preciso beber... preciso em-
.. "

- Está satisfeito, velho Forbes? Venha cumprimen-


"bríagar-me. .. quero ficar louca.
tar sua filha pela chacina que acaba de cometer. Come-
- Pode crer que conseguiu me enlouquecer .. , você more o dia de hoje, venha ver minhas mãos sujas de
é O verdadeiro demônio, criatura! demônio, criatura! pecado, do próprio sangue de minha carne .. , oh l .. "
266 CASSANDRA RIOS

maldita dúvida... maldita traição... Infames e covar-


des. .. venham ver o resultado de tudo... Eudemônia
está ensangüentada como uma virgem que se batizou
num prostíbulo. .. onde mulheres se vendem por dinhei-
ro. .. e eu pela necessidade de ser mãe. .. papai... ve-
nha ver ...
CAPITULO XVI
Ela rolou pela cama feito um tigre ferido rastejando
pela relva querendo livrar-se de um espinho.
Os olhos vertiam lágrimas abundantemente e ela Indubitàvelmente, Marga percorreu aquêle corredor
se contorcia tartamudeando palavras que saíam por en- inúmeras vêzes. Cada vez que passava pela porta do
tre os dentes trincados como gemidos de uma terrível apartamento de Eudemônia se aproximava para ver se
dor. ela finalmente a atenderia. Porém parecia que Eude-
Era o dia marcante que talvez Méltsia jamais per- mônía não se encontrava lá dentro. Chegou a tanto sua
doaria. preocupação que ela resolveu entrar.

Isso era tudo que Eudemônia poderia desejar. Que Abriu a porta e olhou disfarçadamente como se algo
Méltsia soubesse que no dia de sua partida ela se entre- tivesse despertado seu interêsse. A enfermeira da por-
gara ao seu substituto. taria a observava e Marga vagarosamente tornou a fe-
char a porta caminhando em sua direção.
Todos vencidos.
Eudemônia dormia vencida pelo cansaço das horas
E o pior de tudo. Ela própria rastejava, vítima da torturantes que passara. Estava ausente do mundo e a
sua vingança. expressão de sua face impedira que Marga a despertasse
e por isso se afastara em silêncio acreditando que Eude-
mônía tivesse tido uma explosão de nervos.
}
- Ouvi diversas vêzes alguém gemendo e quis ver
o que se passava - mentiu ela. - Eudemônia está so-
nhando, pobre infeliz!

Comentou Marga apoiando os cotovelos no balcão


da portaria. A outra enfermeira olhou-a disfarçando sua
desconfiança e maliciosamente encetou o tão desejado fa-
latório:
268 CASSANDRA RIOS EUDEMõNIA 269

Deve ter chorado a ausência da doutôra ... Marga a ouviu de bôca aberta. Não podia acreditar
que fôsse verdade o que Yara lhe dizia. Olhou-a com
Como assim?! - indagou Marga curiosa e en-
desprêzo e prometeu:
contrando de súbito a resposta para o nervosismo de
Eudemônia. Como pudera ter sido tão ingênua e não - Se você comentar qualquer coisa a respeito do
suspeitar de nada? Olhou para a colega e fêz novas per- que viu e ouviu eu arrebento com você. E cuidado com
guntas querendo saber o que motivara tais suspeitas. êsse resfriado que pode ser castigo de Deus, por ter
- Ora - respondeu a outra - nunca vi a dou- você enfiado o nariz onde não deve. Será que você não
tôra Méltsia receber clientes altas horas da noite em seu sonhou tudo isso agora à tarde? Você chegou fora de
quarto e soltá-los de madrugada. Isso não está certo, hora, deve ter dormido demais.
não. De repente, sem mais nem menos ela deixa a Clí-
- Eu entro às sete e são apenas sete e meia, que-
nica e a senhorita Eudemônia vem com aquela expres-
rida, Eudemônia é quem deve estar sonhando bastan-
são de louca perguntar se ela partira realmente. Foi
te, pois nem para jantar o dr. Kerrnam consentiu que
a primeira vez que a considerei verdadeiramente per-
fôssem acordá-Ia. A coitadinha não dormiu à noite! E
turbada. Será que você não percebeu? Nem parece que
mal sabe êle com quem ela a passou para se penalizar
estuda psicologia, vejo que você não tem dom para psi-
tanto!
quiatria. Está reprovada antes de terminado o curso ...
- Ora, Yara, cale-se! Você fala demais. Se devo
- Mas você viu alguma coisa, para falar dessa :rp.a- ser reprovada você deve ser condecorada como rainha
neira? Sabe que é muito sério o que está dizendo? Não dos falatórios, mas se eu souber que você proferiu qual-
sabe avaliar o que aconteceria se por acaso êsse comen- quer coisa a respeito de Eudemônía e da dra, Méltsia eu
tário se propagasse aqui? juro que a desmentirei, afirmando que passei a noite com
- Eu vi. Vi com os meus próprios olhos quando as duas e quem se sairá mal será você ...
ela abriu a porta para Eudemônia entrar. Tomei tôda - Mas desde quando você se revelou protetora dos
I'
a chuva e é por isso que hoje amanheci com êste mise- outros?
rável resfriado, mas valeu a pena o que eu ouvi. Pare-
- Desde o momento em que você abriu a bôca para
ciam duas fúrias se atracando numa luta passional. A
se apresentar como a criatura mais à tôa que eu já
dra. Méltsía é um Vesúvio. Até Netuno sacudiu as águas
conheci ...
do oceano querendo sair do mar para ver tal aconteci-
mento, tôda a natureza gritou j unto com as duas. Você . A discussão cresceu entre as duas provocando pânico
não sabe que espetáculo perdeu! na portaria do hospital. O dr. Kerrnam apareceu exí-
iindo silêncio e querendo saber o porque daquela alter-
270 CASSANDRA RIOS EUDEMôNIA 271

cação. As duas se entreolharam ameaçadoras e Yara foi Eudemônia olhou para ela e depressa ao lembrar-se
quem respondeu: do que acontecera naquela tarde, olhou para ver se esta-
va descoberta. Suspirou aliviada. Estava tudo em or-
- Marga não acertou uma pergunta que eu lhe fiz demo Embora ela não tivesse se lavado, O' reboliço das
e não sabe perder ... cobertas cobriam as manchas de sangue que haviam
Marga permaneceu calada enquando o dr. Kermam umedecido os lençóis. Pediu à enfermeira que se reti-
avisava que não queria mais discussões e que guardas- rasse prometendo que não se demoraria. Perguntou que
sem suas perguntas e estudos para quando fôssem à horas eram e surpreendeu-se quando ela disse que pas-
sala de aulas. sava um quarto das nove,
Marga esperou que êle se afastasse e ficou olhando - Infelizmente a diretoria agora passou para as
inquisidora para Yara que, sorrindo lhe disse: mãos do dr. Kermam e é isso que acontece. Tudo de-
sorganizado, uma confusão dos diabos, já não sei o qUE;
- Tôla? Não pense que porque eu contei a você,
vou fazer amanhã e o que vai acontecer daqui a pouco.
tenha coragem í'ie espalhar por aí, apesar da suspeita
que eu tenho do seu. .. caráter, creia que é a única que - E porque o dr. Jasper não substituiu a dra.
me inspira confiança. Agora, vamos, não fique com Méltsía, afinal se êle é o único competente?
raiva de mim porque revelei que Eudemônia gosta de
- Porque êle não pôde renunciar à diretoria da
outra ...
faculdade que agora lhe toma quase todo o tempo. A
Marga ficou vermelha feito a rosa que estava no dra. Méltsia precisou partir inesperadamente e o dr.
vaso e inclinou a cabeça querendo fingir que não enten- Kermam, depois do dr. Jasper, é o único indicado apesar,
dera o que ela lhe dizia. Yara se levantou e pegou-lhe dêsses senões, Êle não é mau, porém é muito jovem ain-
as mãos delicadamente. da, talvez seja isso que o deixe assim desorientado. A
euforia por essa oportunidade, desconcertou-o, amanhã
- Olha para mim, tolinha! Eu gosto de você ...
ou depois talvez êle consiga recolocar tudo nos eixos.
Marga puxou as mãos envergonhada e surprêsa Bem, eu vou buscar seu jantar enquanto a senhorita se
saiu da sala quase a correr. veste.
Enquanto isso Eudemônia dormia. A enfermeira saiu e Eudemônia pulou da cama.
'" '" li' Ao primeiro passo ela já provava a impressão de
Tarde da noite para horário de jantar, a enfermei- que estava pesada corno se carregasse dentro de alguma
ra-chefe foi despertá-Ia, depois de conseguir ordem do coisa estranha. Inclinou-se dobrando-se na cintura para
dr. Kermam. a frente e estendeu as mãos até O' chão fazendo uma
272 CASSANDRA RIOS
É'UDEMóNIA 273
ginástica para que o sangue empreendesse a antiga ca- - Bem, a senhora tem ordem para sair mas será
minhada através das suas veias com mais ímpeto. Es- necessário que vá acompanhada ...
tava muito fraca. Precisava se alimentar e espantar tôda
espécie de pensamento torturante que começava a pisar - Eu sei. Diga a êle que eu quero que Marga me
maldosamente em sua cabeça. acompanhe. Só isso. Se quiser agora pode se retirar
mas' não se esqueça de me trazer a resposta.
Correu para o banheiro e abriu as torneiras. Ouviu
a água jorrando e pensou que até então nada mais fi- A enfermeira se retirou deixando-a sozinha e sabo-
zera do que tomar banho para se limpar e depois se rear o seu jantar.
sujar de novo.
Aquela noite negra e fria tinha o aspecto agourento
Assim sucessivamente até que ela se afogasse de das asas de um abutre .. O silêncio e o cheiro de chuva,
uma vez. as sombras das árvores refletindo pelas frestas das ja-
nelas a cada relâmpago, traduziam bem tôda tempesta-
A imagem de Méltsia voluteou ante seus olhos como de interior daquela alma que se revoltava contra a vida.
uma visão fantasmagórica e a sua expressão trazia os
traços de Laura que gritava para que ela não a deixasse. Eudemônia olhava para o passado e se torturava re-
vendo os lugares todos que percorrera, olhava para trás,
Eudemônia pulou para fora da banheira e se enxu- para os dias gastos em aventuras loucas e inconse-
gou ràpidamente. Tirou do guarda-roupa roupão e pija- qüentes e se desprezava. Olhava mais distante e via o
ma e se vestiu. Depois tirou a roupa da cama e foi lavar rosto do tio, cadavérico e petrificado até o dia em qUD
o lençol para que ninguém visse aquela pequena mancha se converteria em pó. A última vez em que o vira pre-
comprometedora. parado para empreender a última viagem de sua casa
para o túmulo, e reconhecia o rosto congestionado de
Quando a enfermeira voltou, estava estendendo o len- Silvana a fitá-Ia com lástima por ter que deixá-Ia ir.
çol num varal que improvisara com barbante encontrado Caminhava para a frende pelos caminhos das recorda-
no fundo de uma mala. ções e o resto de Laura se transformava ingênuo e CÍ-
Ela explicou, quando a outra comentou sôbre o que nico para confessar seu verdadeiro nome: Mira, E depois,
ela estava fazendo: num estouro de emoções bárbaras, aquela cena se repro-
duziu uma duas e três e quatro mil vêzes para que ela
- Preciso distrair-me. Já não sei o que fazer para visse claramente as linhas e perfil daquele vulto que
fugir desta monotonia. Amanhã preciso dar um jeito de fugia para que ela não o reconhecesse. Eudemônia sen-
ir à cidade. Você quer falar a êsse respeito com o dr. tou-se na cama e, levando as mãos à cabeça, gritou his-
Kermam? Sei qUe êle eompreenderá ...
tericamente. Um grito tétrico, que ressoou por aquelas

.i
274 CASSANDRA RIOS
E'UDEMóNIA 2'15
paredes e foi através do corredor vibrar aos ouvidos da
~les deixaram que ela se desesperasse ao máximo
enfermeira, que sentiu um arrepio de terror percorrer
até que, perdendo as fôrças, caísse vencida num letár-
pelo corpo, enquanto o grito se repetia alucinado como
gico desfalecimento de angústia.
aviso de loucura:
O dr. Kermam foi buscar uma seringa e aplicou nela
- Papai... papai... Não... Não ... uma injeção endovenosa. Do desfalecimento Eudemônia
passou inconscientemente ao sono.
Tôdas as portas, uma por uma, foram se abrindo,
e enfermeiros e médicos e enfermos correram pelo cor- A enfermeira deitou-se na cama ao lado e ali ficou de
guarda até a manhã seguinte.
redor em direção ao quarto de Eudemônia,
O estado de l:!.;udemônia se agravou quando ela des-
O dr, Kermam surgiu descalço do outro lado e in-
pertou. Ü sono fôra turnurento, crieio de pesaceros, mas
vadiu o quarto que já estava cheio de gente.
não tão cruciante quanto o encontro com a reauuada.
O, rosto de Eudemônia se contorcia numa expres- Ela estava febril e sem fôrças para verter mais lágri-
são diábólica como se dentro dela tivesse fervido o ácido mas. Pai ecía que ela as vertera tôdas naquele úrtimo
do inferno. Os olhos, desmesuradamente abertos, brilha- dia intenso, rmpossrvej de acontecer ae novo.
vam expressivos revelando o choque esperado há tempo. !!.la mal perna entreaoru- os Olhos e nem mesmo
esboçar um gesto, entretanto a uuviua persiana reroz
Ela estava pálida como um mármore branco de car-
exigrnuo que a.guem conrirmasse a VIva voz aquela cer-
rarar. Tremia e murmurava num descontrôíe dolorido: teza ,
- Papai... o senhor não. .. porque morreu? Volte - O homem que estava com Mila naquela noite era
para dizer que é mentira. Não... ela não poderia ter seu pai.
coragem. .. com êle não... não... Mila... não ...
Somente MUa poderia afirmar. Somente Míla po-
O dr. Kermam compreendeu tôda a angústia de Eu- deria repetir aquelas palavras, porque mnguem mais
demônia quando ela ,se voltou de bruços sôbre a cama sacia a nao ser as auas. b.; ela, naquele momento de
e continuou chorando enquanto confessava quem era o toucura, com as vistas turvas, vesga ae ÓdIO e ae norror,
homem que estivera com Mila naquela noite. E um man- vi'ra-o embaralhar-se à sua frente como uma mentira
dado seu todos haviam se retirado e êle, com apenas " que suas proprras pupuas querram lhe impmgrr,
uma enfermeira, ficara ali a observá-Ia. EUdemônia entebreceu delirando palavras descone-
O desespêro de Eudemônia era indescritível e impos- xas e entrou em estado de choque, permanecenao imovel
e silenciosa como uma pedra com um coração prêso den-
sível de se acalmar com palavras.
tro a palpitar sem descanso. ,
E'UDEMôNIA 277

CASSANDRA RIOS
276 o dr. Jasper apenas contorceu a bôca e o ausculta-
dor arrebentou-se em suas mãos brutamente , Ê:le ia
As horas vagaram pelo mundo e o tempo transcor-
deixá-Ia para procurar o dr. Kermam, provavelmente
reu transformando tudo.
para entender-se com êle, quando Eudemônia puxou-o
Um dia passou e outro mais se completou trazendo pela manga do avental e pediu:
com os primeiros raios de sol uma expressão de vida
no rosto de Eudemônia que, com os cuidados do dr. Ker- _ Não lhe diga nada. Ê:le não tem culpa. Fui eu
mam, do dr. Jasper, começava a melhorar. quem quis. Para satisfazer o último desejo do meu pai
e. .. para vingar-me de alguém ...
Com os primeiros momentos de lucidez semanas
depois, iniciaram-se novamente os interrogatórios até O dr. Jasper olhou-a intrigado mas não fêz pergun-
que ela, exausta, não se revoltava mais e calmamente ta. Parecia difícil para êle naquele momento resolver tal
conseguia reconstituir aquela cena que fôra a causadora situação. Seus olhinhos pequenos a percorriam curiosos
de todos os seus tormentos. Mila nos braços do próprio e perscrutadores. As mãos contorciam-se sinistras e pela
pai. Sim, fôra êle o rival do qual, inconscientemente primeira vez Eudemônia sentiu que aquêle homem na
ela duvidara sempre. As palavras que ela queria ouvir· . ..realidade a estimava como se fôsse um membro que res-
para sua convicção saíram dos lábios do dr. Jasper, que tara da sua extinta família. Tinha-a ali sob sua obser-
fôra o confidente de seu pai à hora da morte. . vação e nunca na realidade a tratara como a uma doente
mental, muito ao contrário, deixa-a à vontade e somente
- Sim era êle. fizera o que achara necessário para acalmar seu esgota-
Eudemônia, abatida e descrente, se deixou cair pros- mento nervoso. Era essa tôda a sua loucura. Excessó de
trada sôbre os leitos das enfermarias, submetendo-se ilusões e confiança demais em seu poder de mulher bo-
aos. tratamentos que o dr. Jasper julgava capaz de res- nita e irresistivel. Méltsia surrara a sua vaidade, o dr.
taurá-Ia à sua integridade moral. Eudemônia, entretan- Kermam provara que ela poderia ser o que outras mulhe-
to, estava completamente vencida . Sem ânimo para ven- ,\res eram,e o dr. Jasper ensinava-lhe como aquêle único
cer as horas que teria forçosamente que viver. olhar de mágoa e desengano que existiria no mundo
Foi na última visita à enfermaria, mês e tanto de- sempre alguém à espera de respeito e consideração por-
pois o que o dr. Jasper, olhando-a incrédulo, perguntou: que sabiam querer bem. Ela inclinou a cabeça e tarta-
mudeou uma explicação.
_ Quem foi? Diga, Eudemônia.
-., - Êle prometeu que se casaria e eu não aceitei .
Ela não vacilou em responder e seus olhos brilha-
'j vá e diga apenas que meu filho precisa de seu nome .
ram irônicamente . apenas isso, Dr. Jasper ... não diga nada mais, por favor.
- Foi o dr. Kermam.
278 CASSANDRA RIOS

o dr. Jasper coçou a cabeça e passou a mão pelo


rosto, depois disse:
- Será difícil não esbofeteá-Io... não os psíqui-
tras também perdemos a calma. Também nos revolta-
- Pois deveria cumprimentá-lo, doutor. Eu o es-
colhi para pai do meu filho. Embora eu não o tolere
vontade de matar êsse sujeito ... CAPíTULO XVII

_ Pois deveria de cumprimentá-Io, doutor. Eu o


escolhi para pai do meu filho. Embora eu não o tolere
No pátio do hospital Eudemônia caminhava lenta-
como homem, confesso que o admiro, pois gosto dos que
mente de um lado para outro, observando uns e outros
sabem conseguir o que desejam, sem pedir e sem lutar.
espalhados em grupos a conversar empolgados pela exu-
f':le é inteligente, jovem, forte e capaz, orgulhar-me-ia berância daquela dia de sol.
se meu filho o retratasse.
Da janela da diretoria, o dr. Kermam e o dr. Jasper
O dr. Jasber olhou-a com admiração.
a observavam em silêncio. De súbito, o dr. Kermam se
_ Bem, vou falar com aquêle patife. Você quer afastou e sentou-se na cadeira giratória da escrivaninha.
esperar-me aqui ou vou vê-Ia, depois em seu quarto?
- Dr. Jasper, eu amo Eudemônia. Amo-a sem ilu-
_ Estarei à sua espera no pátio. Preciso tomar sões, amo-a para minha infelicidade.
um pouco de sol.
O outro médico voltou-se paraêle e pousou a mão em
Os dois saíram da enfermaria e pouco depois se se- seu ombro. Seu rosto contraía-se numa expressão ensi-
paravam em direções opostas. mesmada. Estalou os lábios e ponderou também preo-
Ela para o jardim em busca de um pouco de sol. cupado:
ll:le para a sala onde o dr. Kermam anotava algumas pas- - Reconheço a inutilidade dêsse afeto. Existe no
sagens em seu diário. coração de Eudemônia alguém que eu temo reconhecer.
Na portaria, Marga
e Yara conversavam baixinho. Ela não foi feita para o homem, Kermam, como tudo
Dír-se-ía que trocavamsegredos ou comentários que ou- que é estranho e insondável, ela permanecerá distante
trosnão poderiam ouvir. Os corredores em silêncio vazios de nós, sem que alcancemos o triunfo de transformá-Ia
e sómbrios como se ainda expressassem a ausência de no que deveria ser. Já nem posso acreditar que o lográs-
alguém, semos se a tivéssemos aqui quando ainda criança como
sempre julguei. Ela vem de longe, de uma idéia forjada

)
E'UDEMóNIA 281
280 CASSANDRA RIOS

há séculos passados, desenrolando confusões para que - Não, doutor. Acontece que eu também vivo para
compreendamos que nem todos os mistérios serão resol- os acontecimentos fora da rotina e vejo coisas que valem
vidos pela astúcia do homem e nem todos os corações por uma confissão completa. Um olhar, uma palavra,
dominados por nós. Lembro-me de uma última frase da uma resposta, uma pequena revolta da doutôra que eu
dra. Méltsia e reconheço quanta verdade há em suas pa- provoquei quando chamei Eudemônia de criminosa e eu
lavras: "Eudemônia é como uma diabólica mensageira completei meu diagnóstico. A dra . Méltsia apaixonou-se
de Satã, dos mistérios de amor que deverão permanecer por Eudemônia e fugiu. Fugiu de mêdo que percebes-
indevassáveis". Ela a compreendeu melhor do que nós sem que ela já não podia esconder aquêle sentimento
todos e por isso foi embora, para não se debater em que imprevistamente veio derrubá-Ia do pedestal em que
pesquisas que só prej udicariam Eudemônia ... se plantou durante anos, como se tivesse se consideran-
do uma estátua de mármore prestando homenagem pós-
_ Não, dr. Jasper, não creio que tenha sido essa a tuma a si própria. Mas não seria possível prosseguir
causa da viagem da dra. Méltsia ... inabalável e indiferente erguendo a cabeça por cima de
todos e acreditando ser um acontecimento efêmero e vul-
Interrompeu êle, sarcástico, levantando-se de inopi- gar o amor. E ela caiu, espatifando-se. Fugiu para
no e andando pela sala nervosamente. colar os pedaços que conseguiu ajuntar mas voltará, dr.
Jasper, desfeita, para se entregar a ela.
_ Por que então, dr. Kermam? Qual a suspeita que
reconheço existir em suas palavras? O dr. Kermam apontou da janela para Eudemônia
que, indiferente ao que se passava naquela sala, cami-
A dra. Méltsia se deixou levar pelos encantos de nhava de um lado para outro.
Eudemônia da mesma maneira que eu. Porém, sàbia-
mente, soube fugir, mas eu ainda duvido que ela consiga O dr. Jasper franziu o sobrecenho, passou a mão
superar a fôrça impressiva dessa demônia... dêsse pelos cabelos deixando-os revoltos, sentou-se, tornou a se
levantar e , abrindo os braços completamente aturdido,
satã ...
exclamou:
- Dr. Kermam!
- E' demais! O que está acontecendo aqui?! Eu já
A voz do dr. Jasper vibrou exaltada e indignada. não compreendo e me parece que devo queimar todos os
Seus olhos luziram rancorosamente e êle demonstrou sua livros que li. Rasgar meu diploma, esquecer todos êsses
indignação: anos de trabalho. Eu creio que vou consultar outro psi-
_ Não posso admitir que julgue assim à Dra. Mélt- quiatra, sabe? Êste hospital precisa freqüentar outro
sia. Deve haver qualquer razão infundada para que você instituto. Estão todos loucos. Quer saber de uma coisa?
Ontem surpreendi Yara e Marga trocando beijos na
a considere tão leviana.

,J
282 CASSANDRA RIOS EUDEM0NIA 283

enfermaria. .. E sabe o que fiz? Nada! Voltei nos cal- para outro enquanto sua espôsa, em silêncio, por sua
canhares com receio de que elas me vissem. Oh! o que vez o observava.
será que está acontecendo aqui, meu Deus! - Eudemônia lhe explicará melhor esta situação.
- Está acontecendo que essa mulher vai acabar Disse o jovem doutor, que ficara vermelho como se
por usar a eletroterapía em nós todos, sair daqui conde- lhe tivessem dito que êle estava nu na presença de uma
corada como doutôra e nós internados num hospício. senhora. Despediu-se com um movimento da cabeça e
O dr. Jasper ia proferir algo quando uma batida na saiu da sala altivo querendo esconder que estava ner-
porta ressoou persistente. Êle avançou para ela e abriu-a. voso.
Um homem alto e corpulento e mais uma jovem O dr. Jasper balanceou a cabeça e afirmou para
muitíssimo bem trajada olharam-no hostilmente ao per- Vítor:
guntar:
Como vê, as novidades se multiplicam. Hoje eu
- Onde podemos falar com Eudemônia? já nem sei se posso continuar a clinicar ... estou tão con-
O dr. Jasper convidou-os a entrar e, fazendo uma fuso que julgo necessário tirar umas férias a fim de
suposição, perguntou: coordenar idéias. Eudemônia tem provocado tremenda
confusão e tudo que faz é permanecer em silêncio atraín-
- O senhor é Vítor Petram?
do como a aranha imóvel em sua teia os que a rodeiam.
Ele olhou para baixo e ergueu a cabeça altivamente. E' mesmo difícil conseguir dominá-Ia e submetê-Ia a uma
- Sim. Eudemônía lhe falou de mim? posição de paciente. Eudemônia venceu a todos. Há nela
- Muitas vêzes. Mas não nos demoremos em que uma fôrça impressíva que ninguém é capaz de destruir.
dar esta esperada satisfação. Venha. Levarei os senho- Ela cativa e manobra tudo indiretamente e quando me-
res até o pátio onde ela se encontra. nos esperamos convertemo-nos em 'escravos rodeando-a
com atenções como se ela representasse a soberana de
O dr. Kermam se levantou e o dr. Jasper se voltan-
um reinado de loucos. Mas vamos até ela. Verá a razão
do, apresentou pedindo desculpas por ter se esquecido
dêsse casamento feito aqui ainda na semana passada
de sua presença ali:
entre quatro pessoas apenas. Um casamento que repre-
- Apresento-lhe o dr. Kermam, espôso de Eude- senta um nome para manter a dignidade dos Forbes ...
mônia.
- Então, Eudemônía ;. . com ,êle... como? ..
Vitor empalideceu e mediu-o dos pés à cabeça, in-
crédulo, incapaz de fazer pergunta. Sentou-se como se - Para que a geração continue... uma resposta
o tivessem empurrado e ficou olhando ora para um ora lós-ica embora absurda. .. Respondeu encolhendo os om-
284 CASSANDRA RIOS
B'UDEMôNIA 285
bros como se estivesse resignado a aceitar qualquer
coisa. - Oh! Vítor da minha alma, quanto tempo! Meses
que pareceram séculos. Por que Deus quis que você se
Vítor levantou-se e acompanhou-o. Da escada êle li
fôsse assim justamente quando precisava tanto de você ...
viu e estremeceu, sentindo lágrimas subirem aos olhos.
oh l querido, diga que não se afastará mais e que veio
Na sua forma reveladora, gorda, quase rotunda, Eude-
para ser de novo o amigo adorado de sempre ...
mônía ostentava o ar majestoso da mulher que vai ser
mãe. _ Claro, meu bem, você é a única coisa que eu
tenho de éaro no mundo ...
:E:le sentiu um nó na garganta e já não podia dar
_ E ela? .. - Eudemônia apontou para a jovem
um passo para ir ao encontro dela. A espôsa empur-
que os olhava de longe visivelmente comovida.
rou-o pelo ombro e disse baixinho carinhosamente:
- Ela é parte de mim, a outra parte. Venha, quero
- Vá. Vá abraçá-Ia antes que ela o veja e sofra
que você a conheça. Seremos três agora. Verá como
com a surprêsa inesperada.
'I'alita é digna do nosso amor.
Ele avançou escada abaixo e o nome dela ecoou por
Os dois caminharam abraçados ao encontro da jovem
entre seus lábios, vibrante cheio de ansiedade e ca-
que os observava ao lado do dr. J asper.
rinho quando a sentiu apenas alguns passos distante:
Eudemônia abraçou-a comovida e aprovou o gôsto
- Eudemônía l ...
de Vítor ao escolher a mulher para o resto da sua vida.
Ela se voltou com a expressão cheia de emoção, os Era realmente bela e delicada e nas suas pupilas azuis
olhos brilhando, sem coragem para dar um passo e ficou e serenas via-se tôda candura e pureza de uma alma
à espera de que êle a tomasse nos braços. sonhadora e boa.

Naquele apêrto saudoso e demorado êles ficaram O grupo entrou para a sala do hospital, atravessa
em silêncio. Um silêncio intenso que expressava a sau- ram o patamar, Eudemônia levou-os pelo corredor ao seu
dade sentida mais que tôdas as palavras de saudades e novo aposento qus dr. Jasper improvisara em um dos
carinho que pudessem ser proferidas entre lágrimas de mais espaçosos compartimentos.
alegria, Ficava mais próximo à diretoria à porta da qual o
dr. Jasper se despediu deixando-os sós e à vontade.
Olharam-se muito e êle apenas proferiu primeiro,
antes que ela o abraçasse novamente: Vítor, a cada passo, ia admirando a suntuosidade
daquele hospital e declarou mais reconfortado ao inspe-
- Eudemônia... minha malandra."
cionar também o enorme apartamento em que Eude-
mônia fôra aloj ada :
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286 CASSANDRA RIOS
Apaixonei-me pela dra. Méltsia ...
- E' realmente magnífica a arquitetura dêste hos-
pital. O pátio estende-se por uma vastissima área e a A velha que você disse na carta que iria conhe-
disposição das salas e apartamentos e quartos estão bem cer naquela tarde?
distribuídos pelos corredores que por sua vez foram
- Oh! eu escrevi isso'! - Vítor acenou que sim.
muito bem idealizados. Creia, Eudemônia, que isto mais
se parece com um hotel "rafiné" da alta sociedade. Um Eudemônia continuou:
hotel de classe, incomparável, para uma temporada de - Pois bem, ela não é velha e muito menos feia.
descanso. Tenho até a impressão de que mil aventuras E' bastante' jovem e exuberantemente bela. Oh! Vítor,
se desenrolam aqui dentro. Vamos, Casamou«, conta-me como é horrível perder o amor... estou vencida.
tudo que estou ansioso por saber o reboliço que você
- Você. .. não conseguiu. .. desta vez? ..
armou aqui denrto ,
Eudemônia acenou que sim entusiasmada mas logo
Um largo sorriso clareou o rosto de Vítor que sen-
inclinou a cabeça tristemente. Vítor recurvou-se sôbre
tou na poltrona próxima ao sofá onde Talita e Eude-
os joelhos assim na distância que os separava e de perto
mônia sentaram. Êle se lembrou da cara dos dois psi-
o rosto próximo ao seu perguntou curioso:
quiatras e carregando o sobrecenho ensimesmado, per-
guntou seguidamente: Mas, então?.. Que aconteceu?
- O que foi que você fêz que desnorteou aquêles Ela fugiu. Fugiu, Vítor, depois de confessar que
dois ... me amava, depois de se entregar... oh! que imprudên-
Êle apontou com o dedo tentando lembrar-se do nome cia conversarmos sôbre essas coisas perto de Talita ...
dêles. Eudemônia ajudou-o: somos dois irresponsáveis, sem respeito ...

- O dr. Jasper e o dr. Kermam? .. - Oh! nada disso! Pode continuar falando. Vítor
- Sim ... êles estavam perturbados, creia que você contou-me tôda sua vida e posso enumerar tôdas as suas
os arrasou querida, embora eu ainda não saiba o que aventuras, nada mais me impressiona... podem falar
tenha feito, mas essa é a verdade ... sossegadamente, porém se a minha presença lhes rou-
- Realmente não sei ao certo. Tantas coisas acon- a liberdade, posso retirar-me ir, até o pátio ...
teceram desde que cheguei aqui, Vítor, primeiro o pior - Oh! Vítor l Onde foi você buscar esta preciosi-
de tudo ... dade! E' incrível que se possa ainda encontrar tanta de-
Eudemônia parou de falar e inclinou a cabeça como licadeza e beleza juntas. Você bem merece êsse brilhan-
se fôsse difícil prosseguir. Os cílios estremeceram e ela te, meu querido.
olhou para êle novamente:
288 CASSANDRA RIOS
EUDEMôNIA 289
- Talita foi colhida por mim como uma flor que
brotou escondida entre papoulas no jardim do édem, nios . .. a culpa recairá sôbre mim e tudo transcorrerá
continue Eudemônia, diga-me, explique-me como foi que depois normalmente. ~le poderá ainda encontrar a mu-
o resto aconteceu. lher que o ame porque eu não posso lhe dar o que êle
gostaria de receber agora. Falta pouco para vencer mi-
- Méltsia foi embora, sem dizer uma palavra, sem nha sentença aqui, porém irei embora quando já fôr mãe.
que eu pudesse evitar, deixou o dr. Kermam com a posse
da diretoria da Clínica. Odiei-o no momento em que êle - Você quer que seu filho nasça aqui. Eudemô-
me procurou para comemorar. Dêsse ódio cresceu a idéia. nia? . " - perguntou Vítor procurando um motivo para
de satisfazer o desejo do meu pai, o desejo de todos e· isso, como se estivesse pensando em levá-Ia embora na-
a vingança. .. Kermam ficara como substituto de Mélt- quele mesmo instante. Ele respondeu que sim e expli-
sia, e eu. .. quis aceitar a troca. Foi apenas uma vez, cou: - Não sabe com que ansiedade aguardo o regresso
Vítor, afortunadamente porque se não desse resultado de Méltsia. Sei que mais dia menos dia ela terá que
eu teria tentado novamente e com uma expressão de voltar. Quero ver a expressão de seu rosto quando me
quem se apronta para enfrentar o mundo, proferiu num ver assim... Ela terá que chegar a tempo... - Oh!
susurro: Não pense que tenho raiva disto ... eu já o amo como se
tivesse nascido.
- Há de ser inteligente e haverá de valer por tôda
a geração dos Forbes. Eudemônia contorceu a mão e Vítor reconheceu sem
Vítor levantou-se e abraçou-a passando o braço ao saber como interpretar a transformação de Eudemônia.
redor do seu ombro. Parecia incrível que aquela mulher fôsse a mesma que
discutira consigo no dia de sua partida por não querer
Eudemônia apertou a cabeça contra o peito dêle e acompanhá-l o até o pôrto. Não fôra sem motivo que êle
um filête de lágrimas correu por sua face incontidamen- se despedira dela preocupado com sua expressão pertur-
te. Talita inclinou a cabeça e voltou as costas depois se bada, ah! se tivesse previsto, se tivesse feito caso êle a
voltou e como se precisasse impor tremendo esfôrço, per- teria arrastado à fôrça até a outra cidade e talvez nada
guntou: tivesse acontecido. Mas Eudemônia era teimosa e nada
- Mas ... você vive com ... êle? .. Casaram-se e ... a demovia de uma decisão tomada, portanto êle a dei-
xara se ir se contentando com o aperitivo que tomaram
- Oh! não! Isso nunca! Assim que meu filho nas-
juntos. Agora ali estava ela sentada à sua frente, com-
cer eu o libertarei do compromisso que contraiu comigo,
pletamente mudada, uma mudança jamais pensada, ca-
irei embora daqui e meus advogados se encarregarão do
belos curtos, naquela forma de mulher comum, inchada,
resto. Levará tempo suficiente para que se descubra a
gorda, o rosto manchado e com tudo isso continuava,
causa da separação definitiva, incompatibilidade de gê-
ostentando sua beleza dominadora. Tinha razão o dr.
290 CASSANDRA RIOS EUDEMôNIA 291

Jasper, Eudemônia deveria ser obra de poderes maquia- - Vamos, Petram, o que espera para obedecer a
vélícos que entretanto provocando tantas confusões e sua majestade, a Beleza?!
desordens não chegava a praticar o mal realmente.
Êle sorriu e sacudindo-lhe a cabeça puxando-a pelos
Era o demônio ingênuo gozando férias num mundo onde
cabelos, brincou:
por incompreensão e descuido chegara.
- Cuidado, hein, dessa vez você se queimaria sem
Eudemônia estava mudada e Vítor teve certeza que
conseguir nada ...
reconhecia aquêle brilho nos olhos dela. Um brilho nun-
ca vista dantes, uma expressão triste e doce, uma expres- Talita enrubesceu e deu um beliscão em seu braço.
são de encanto, era a expressão do amor, era saudade
- Estúpido! Não se convença tanto do meu amor!
de alguma coisa. E tudo aquilo que a transformava tan-
to traduziria-se fielmente em um nome: Méltsia. Êle soltou Eudemônia, arregalou os olhos, pôs as
mãos na cintura e ameaçadoramente com trejeito galho-
Outra coisa ainda mais, notou, a calma, a classe
feiro foi acercando-se dela enquanto Talita ia recuando
de uma mulher ponderada.
rindo-se daquela sua atitude:
Êle olhou para 'I'alita e sorriu satisfeito. Se êle con-
- A senhora vai ter que pagar tamanha insolên-
seguira encontrar a sua felicidade porque não consegui-
cia ... terá que me dar um beijo de oitocentos volts por
ria Eudemônía o que desejava se caminhavam os dois
parcela de segundo... anda... venha ...
lado a lado mesmo na distância das horas e das coisas .
Talita se aproximou dêle e beijou-o na testa delica- • Talita sorriu deliciada e jogou-se em seus braços e
damente como se quisesse confortá-lo e depois, ajoelhan- os dois se beijaram arrebatadoramente . Eudemônía, que
do-se ao lado de Eudemônia, disse com seu jeitinho meigo os observava satisfeita, achando graça, bateu palmas e
então os dois se soltaram. Êle saiu deixando-a a sós.
e gracioso:
Eudemônia olhou para 'I'alita e compreendeu que reai-
- Eudemônia, eu e Vítor queremos ficar aqui com mente Vítor encontrara a felicidade. Ela se afastou para
você. - Voltando-se para o marido ela ordenou. - Vá, peito da janela que dava para o pátio e chamou Talita ,
não se demore, vá dizer ao dr. Jasper que nos vamos
- Venha ver. Quero contar-lhe o caso de cada uma
nos hospedar aqui e que promoveremos escândalo se não
daquelas criaturas e verá quantos problemas existem que
consentirem.
nem sequer poderíamos imaginar possíveis.
Os olhos de Eudemônia cintilaram cheios de lágri-
mas e ela abraçou 'I'alita comovida. Sorriu feliz e levan- Talita surpreendia-se a cada narrativa e mais en-
tou-se puxando-a para qua a seguisse. Esforçando-se tusiasmada ia apontando de uma para outro querendo
quis ter a personalidade da antiga Eudemônia que fôra : saber qual o caso dêsta e daquete outro.
292 CASSANDRA RIOS

Pouco depois Vítor voltou sorridente e avisou:


O dr. Jasper é um homem muitíssimo gentil. Já foi
providenciar nossos aposentos, enquanto isso vou à es-
tação buscar nossa bagagem.
_ Na estação?! - perguntou Eudemônia pedindo CAPíTULO XVIII
que êle explicasse.
_ E onde mais? Pensa você que eu primeiro iria
ao hotel ou para casa para depois vir vê-Ia? Está mui- Eram mais ou menos sete horas da noite.
tíssimo enganada. Primeiro você... Uma garoa fina escoava-se lá fora em ondas pro-
_ Eudemônia correu para êle comovida e com os vocadas pelo vento fraco que soprava cansado e frio.
olhos cheios de lágrimas, aninhou-se em seus braços, e As fôlhas das árvores reluziam e seus galhos cin-
cheia de alegria puxando Talita para perto, exclamou: zentos e cascudos se balouçavam afagados por aquela
_ Oh! queridos! que seria de mim sem vocês dois... umidade triste.
eu os quero tanto! ... As sombras das coisas estremeciam refletidas no
assoalho enquanto Talita olhava para °
pátio distraída
com o rosto apoiado contra a vidraça.
Vítor folheava interessadarnente as páginas de uma
enciclopédia.
Enquanto isso, no' outro extremo do grande aposen-
to, em sua larga cama, Eudemônia dormia calma e se-
rena. Ao seu lado uma cabecinha loira de cabelos es-
parsos feito penugem. Um rostinho rosado, a bôca peque-
nina e recurvada, vermelha feito um botão de petúnia.
Talita caminhou pé ante pé e ficou olhando para
aquela cabecinha que apenas há três semanas chegara
ao mundo. Ele estendeu o beicinho e bocejou, entreabriu
as pálpebras e seus olhinhos claros, azuis violáceos, bri-
lharam serenos.
CASSANDRA RIOS EUDEMôNIA 295
294

Talita sorriu para Vítor que se aproximara, e pôs mundo e que nada valeria o amor que ela assim impre-
o dedo nos lábios pedindo-lhe que fizesse silêncio. vistamente passara a dedicar àquela criança.

Vítor ficou olhando-o e em sua expressão apaixo- Fugia do único pensamento que acreditava ser ca-
nada se refletia uma ansiedade mórbida. Talita com- paz de toldar de angústia aquela revanche que ela encon-
preendia bem o seu entusiasmo. Ela também iria ser trara contra tudo que a pudesse vencer.
mãe. Daria ao seu amor o que êle tanto desejava. Aper-
A lembrança de Méltsia era sufocada por fugas dos
tou-se contra êle e depois soltou-se de seus braços para
olhares que ela lançava àquele pequenino ser que trazia
estender as mãos e recolher no regaço o filho de Eude-
no semblante os traços inconfundíveis da mãe. Do dr.
mônía que estirara os lábios fazendo beicinho para
Kermam, que de minuto a minuto aparecia para observá-
chorar.
Ia embevecido, êle tinha a côr dos olhos e o risco com-
o chôro saíu de dentro dêle ferindo os ouvidos de prido e já vultoso da grossa sobrancelha. A testa larga
Petram, que se afastou abanando as mãos e reclamando: com fundas entradas formando principescamente a cabe-
_ Tudo bem e êle tem que continuar com êsse com- leira dourada.
plexo de sirene de carro de bombeiro. 1tta sinfonia ener- Eudemônia fôra feliz na mesa de operação. O parto
vante. transcorrera normalmente e parecia que aquela criança
Talita ralhou com êle e Eudemônia sentou-se rápida, surgira entre o espaço de um sonho e de um sorriso.
acordando assustada, para ver o que estava acontecendo. Fôra tudo tão rápido e de maneira como ninguém espe-
rara dada a natureza de Eudemônia.
Vítor tentava arrancar dos braços de Talíta o pe-
queno embrulho de roupo dentro do qual uma boquinha O mais interessante fôra que durante tôda a tem-
aberta berrava desesperadamente. Os dois discutiam porada de gravidez, nenhum comentário e nenhum olhar
querendo acalmá-Io. Eudemônia gritou por sua vez ,e maldoso a ofendera. Na Clínica todos pareciam perten-
êles a obedeceram entregando-lhe o pequeno que gulosa" cer a uma grande família.
mente enciou a cabecinha debaixo do seio à procura do
O dr. Kermam, se antes se revelara ardentemente
bico. Em silêncio ora rosnando feito um cabrítinho, su-
apaixonado por ela, agora empolgava-a em confissões ar-
gou o seu jantar.
rebatadas querendo imaginar naquele coração um pou-
Eudemônia acariciava-o encantada, sentindo-se imen- co de afeto. Querendo que ela prometesse que permane-
samente feliz. ceria como sua espôsa, pelo menos em nome daquela
criança, que como tôdas as outras precisaria de um pai.
Assim depois de tantas outras noites, Eudemônia
Eudemônia debatia-se num conflito pelo qual jamais
teve a sensação divina de que não lhe faltava nada no
296 CASSANDRA RIOS EUDEMôNIA 297

julgaria fôsse passar. Tudo se resolveu dentro dela tem- va. Premeditava o que ínla fazer, engendrando planos,
pestuosamente e nem mesmo diante de tudo que conse- porém, comedida e sem precipitação. Com calma have-
guiu gritar de si para si contra Méltsia, conseguiu ria de conseguir a solução para a mágoa que levava den-
desfazer aquêle amor que ainda vibrava oculto em seu tro. Com precisão e dignidade haveria de desenhar o úl-
coração. timo quadro que representaria sua vida tôda. Para isso
era necessário ser otimista e acreditar que tinha direito
Dela notícias nenhuma. Haviam se passado tantos
de ser feliz e com serenidade haveria de vencer.
meses!
Eudemônía não conseguira com tôdas suas artima-
Vencera-se a sua sentença. Do Tribunal de Justiça nhas descobrir para onde fôra a doutora Méltsia e nem
chegara o mandato de soltura. O seu casamento e o nas- mesmo Marga, que já lhe dera a notícia do seu amor por
cimento de seu filho meses depois haviam provocado Yára, sabia exatamente qual o rumo que ela tomara.
estardalhantes comentários que ocuparam as primeiras Deixara-a em uma agência de ônibus e tudo que conse-
páginas dos jornais. Diàriamente novas expressões eram
guira entender fôra que ela havia voltado, para um dos
reveladas, apagando de vez para sempre os falatórios
hospitais em que já clinicara! E havia sido em tantos
anteriores, desmentia-se tudo e ela passara a ser conside-
que nem Marga e nem o dr. Jasper poderiam informar
rada uma vítima das calúnias e da falsidade de uma ao certo.
amiga que os repórteres não deixaram de enxovalhar com
pesadas acintes a respeito de sua viagem para fora do Eudernônía não se atrevia a querer deixar o hospi-
país em companhia de um dos grandes magnatas da tal. Se antes êle lhe parecera sombrio e vazio, monótono
cidade. e insuportável, agora representava um mundo edificado
por ela para onde Méltsia teria que voltar um dia para
Mila como que deixara de existir e mesmo podendo, encontrá-Ia à sua espera.
por acaso se encontrarem de novo, Eudemônia jurou que
O dr. Kermam se revoltava cada vez que Vítor, que
nem sequer haveria de olhar para ela como se a não
já havia deixado o hospital, aparecia para querer levá-
conhecesse. Não se provocava espécie alguma tal pro-
Ia para a cidade. Não achava conveniente que aquela
babilidade. Muito ao contrário, de dia para dia, tudo o
criança começasse a abrir os olhos verdadeiramente para
que lhe parecera problemático e atordoante agora não
a vida, num ambiente como aquêle. E nada se resolvia.
significava mais do que tristes lembranças que o tempo
Eudemônia que julgava melhor sair de lá a fim que
se encarregaria de dispersar mais ainda.
o dr. Kerrnam se desacostumasse de sua presença e da
Sõmente prosseguia firme e louca a idéia de rever criança, a fim de preparar o dia do amanhã, não se
Méltsia. Ela, calmamente estava à espera de que surgis- atrevia diante da idéia de que Méltsia voltasse apenas
se uma oportunidade para resolver tudo que a preocupa- por alguns instantes para fugir novamente, assim per-
CASSANDRA RIOS EUDEM.óNIA 299
298

dendo ela a oportunidade de impedi-Ia de deixá-Ia outra Eudemônía compadeceu-se e afirmou relembrando-
vez. lhe sua promessa:

Mas os dias se passavam, Otávio começava a gati- - Eu não vou para longe e depois não combinamos
nhar, e Eudemônia também começou a sentir novamente que o garôto passará quantas vêzes você quiser ao seu
a necessidade de sair, de escapar daquele silêncio que lado e que você poderá ir nos visitar todos os dias? Só
lhe sentenciara a vida à uma espera que se comprovava não quero que você alimente mais ilusões, Kermam. Será
inútil. inútil, você sabe. Vou confessar-lhe algo para que com-
preenda e não pense que eu tenha motivos piores para
Estavam já todos indignados com a falta de notícias não aceitar suas propostas. Eu não consigo esquecer ...
da dra. Méltsia que abandonara tudo de uma hora para
uma certa pessoa ...
outra sem explicações prévias que pudessem motivar sua
demora. A princípio ninguém procurou saber qual a ra- Ela parou de falar. Não se atrevia a proferir aquêle
zão de sua viagem, porém, agora todos se interessavam, nome. O dr. Kermam insistiu:
querendo descobrir a causa de sua demora. O dr, J asper - Diga ... que é ...
intrigado, já enfurecido por não obter resposta de hospi-
Ela fêz um esfôrço louco e revelou:
tal algum que confirmasse a sua presença. Todos respon-
diam dizendo que ignoravam o seu paradeiro. Ainda uma mulher. Méltsia.
Eudemônia ajudava-o a rasgar os envelopes e ela Eu a amo. .. foi por êsse motivo que ela deixou
mesmo lia para o dr. Jasper as cartas que chegavam. Era o hospital ...
inútil procurar mais. Méltsia desaparecera, sem deixar
- Eu! eu sabia ... eu sabia ... sempre desconfiei ...
vestígios. - disse êle caminhando de um lado para outro. - Não
* * * poderia ser outra coisa.
Eudemônia ficou olhando-o de lado, de soslaio, re-
A enfermeira pegou o menino no colo e saiu para
fletindo se não cometera uma imprudência ao contar-lhe
o corredor. O dr. Kermam aproximou-se de Eudemônia e
seu segrêdo .
empurrou a porta com o pé.
O dr. Kermam olhou para ela demoradamente. Ensi-
_ Eudemônia, não sei agora como conseguiu ven-
mesmado, refletiu, andou de um lado para outro, nova-
cer tudo para consentir que você se vá e leve o garôto ...
mente, e disse:
não posso. .. não posso imaginar.
- Eudemônia .. , promete que não me odiará ...
Éle estava pálido e trêmulo, acercou-se vacilante e
prendeu as mãos dela nas suas que estavam geladas. pelo que vou lhe contar? ..

)
300 CASSANDRA RIOS EUDEHóNIA 301

Reconhecendo em sua expressão a culpa de alguma Eudemônía inclinou a cabeça. e hesitante, gelada de
coisa muito grave, reconhecendo naquela expressão al- emoção, leu:
terada tôda uma renúncia, um desgôsto impossível de se
traduzir, Eudemônía acercou-se dêle e agarrando-lhe as - "Perdoa-me, por partir tão- bruscamente". Ela
correu para a mesa e pegou aquêles envelopes todos e
mãos jurou ansiosa, certa de que não teria coragem para
abriu-os um por um, lendo exasperada o que ela escre-
odiar aquêle homem que já sofrera tanto por sua causa
vera.
e que ainda ali estava querendo conseguir um pouco de
sua consideração. E jurou fervorosamente para ouví-lo A dra. Méltsía, através daquelas cartas tôdas, quise-
dizer: • ra saber notícias suas e ensinava a dr. Kermam qual a
terapêutica que deveria empregar para cada acontecimen-
Nada disso foi novidade para mim. Eu interceptei to que êle indubitàvelmente lhe contara por intermédio de
as cartas da dra. Méltsia. Respondi uma por uma e pedi outras tantas cartas. Nas últimas ela se congratulava com
a ela que não voltasse. Contei-lhe tudo tudo, compre- êle por ter se casado com Eudemônia e tentava encorajá-
ende? Inclusive minha suspeita ... Veja está aqui co- 10, afirmando que mais dia menos diaêle haveria de conse-
migo um recado que ela lhe deixou antes de partir. .. eu guir que Eudemônia o quisesse um pouco mais do que
não tive coragem piara destruí-lo e tudo que fiz foi pudesse. Quanto ao amor queêle desconfiava existir entre
fingir que me esquecera de entregá-lo , Trouxe-o comigo as duas não passava de uma suspeita infantil e infun-
porque não sei... o caso é que eu resolvi confessar ... dada e para provar que êle não precisava temer sua pre-
confessar tudo isso... não posso esconder mais. .. não sença, ela haveria de permanecer fora da cidade, sem
posso ocultar mais minha patifaria ... Eu ainda não posso se comunicar com ninguém como êle lhe pedia para que
aceitar essa situação... Duas mulheres me derrotando não a descobrissem.
assim ... Eudemônia amassou todos aquêles papéis e sentou-se
Eudemônia olhava-o incrédula, pasmada. Via-o es- em uma poltrona. '
tendendo a mão para que ela pegasse aquêle pedaço de Uma lágrima rolou de seus olhos e foi umedecer a
papel e não se atrevia. Tudo lhe parecia incrivelmente sua mão que ela abandonara no regaço.
ínverissímdl. Não podia ser verdade, Não poderia ter
Ali ficou em silêncio meditativo sem querer acredi-
vivido tanto tempo de enganos desastrosos que a impe-
tar que tudo aquilo realmente acontecera.
diram de ser feliz.
A porta se abriu e. Vítor indignado chamou-a:
Ele pegou a mão dela e fê-Ia segurar o papel. Eude-
mônía tremia. Ele jogou sôbre a mesa um punhado de - O que está esperando? Não vai me dizer se re-
cartas que tirou do bôlso do avental e saiu. solveu ficar!
302 CASSANDRA RIOS EUDEMõNIA 303

Eudemônia não disse nada. Levantou-se e apanhan- Os dois saíram daquele quarto ao qual acreditavam
do as cartas que haviam se espalhado pelo chão deu-as nunca mais voltar.
para que êle a lesse. O sol do meio-dia escaldava. Estava um dia clarís-
Depois explicou tudo. Êle mordeu os lábios, passou simo e o calor estafante provocava dôr de cabeça.
a mão pela cabeça e balançando a cabeça exclamou: Eudemônia entrou para a limusine negra, que há
- Puxa! Parece um românce! Que acontecimentos tanto tempo permanecera trancafiada na garagem de sua
novelescos ... casa, aos cuidados de seus empregados, e cumprimentou
seu advogado, que em seguida começou a apresentar-lhe
- Mais indignada do que eu ninguém pode ficar.
suas notificações a respeito dos negócios de que fora
Eu não compreendo, Vítor, francamente como podem acon-
encarregado, substituíndo seu pai, como tutor, durante o
tecer tais coisas. E' incrível! Se eu tivesse que con-
período em que ela estivera no hospital.
tar tôda minha vida a alguém, por certo haveriam de
me chamar de ilusionista, sonhadora ou sei lá o que. Eudemônia fechou a pasta e sorriu para êle:
Entretanto, tudo isso meestraçalha os nervos. Como de- - Se papai confiou no senhor durante tantos anos,
verá estar se divertindo o senhor Destino, por ter escrito meses não significam nada. Vítor e o senhor se encar-
a minha vida! Fantasista! Diga que eu vivi sonhando, regarão de tudo.
Vítor, que nada disso aconteceu ... diga que é mentira! ...
A limusina rodou pela estrada numa corrida verti-
Pediu ela exasperada acercando-se dêle. Os olhos ar- ginosa.
regalados, querendo despertar daquele pesadelo estranho
que a arrastara inconseqüentemente.
Vítor abraçou-a com ternura e ponderou:
- Nada aconteceu, querida. Foi tudo um sonho ...
desperte. .. vamos embora que o seu filhinho está espe-
rando ...
Eudemônia afastou-se depressa. Ergueu as mãos t::
deixou-as cair novamente ao longo do corpo e exclamou
febril :
Oh! não! Não pode ser mentira a existência de
Méltsia. Vamos. Vamos depressa que eu preciso ir bue-
cá-Ia.

)
CAPíTULO XX

Os portões de ferro rangeram abrindo-se vagarosa-


mente de par em par.
A limusina atravessou o vastíssimo jardim e parou
à porta principal da mansão dos Forbes.
Os olhos de Eudemônia cintilavam percorrendo tudo
gulosamente. Quanta saudade se refletia em sua expres-
são!
A criadagem em fila se manifestava em calorosa aco-
lhida.
O mordemo fêz uma reverência e proferiu algumas
palavras comovidas em nome dos companheiros. A cama-
reira correu mais entusiasmada e beijou-lhe as costas da
mão, enquanto dizia:
- Esperamos pela sua volta e os que se foram aqui
estão novamente para serví-la sempre ...
Eudemônia moveu os lábios, quis falar, porém ape-
nas abraçou-a e subiu os degraus largos de mármore
esverdeado.
Quando Talita se aproximou com a criança nos .bra-
ços todos correram curiosos querendo ver () filho de

,
306 CASSANDRA RIOS EUDEMÕNIA 307
Eudemônía, que abanava as mãozinhas diante da mani- A camareira subiu correndo e parou à sua frente.
festação daquele grupo que soltava risinhos de satisfação.
- Senhora, eu passei suas coisas para a ala esquer-
Vítor abraçou Talita pela cintura e êles transpuse- da para o aposento que pertenceu à sua mãe.
ram o limiar daquela porta snorme como as de uma cate-
dral. Eudemônia sorriu emocionada. Sempre quisera
ocupar o lugar de sua mãe, porém o pai nunca con-
Do Patamar, Eudemônia observava tudo. As flôres sentira e aquela câmara permanecera sempre fechada.
espalhadas pelos vasos de cristal e alabastro, a disposi-
Agora ela era única lá dentro e haveria de dar vida
ção das coisas, era uma verdadeira demonstração de an-
novamente aos aposentos onde a sua mãe vivera.
siosa acolhida dos criados. Ela que pensara que fôsse
encontrar tudo empoeirado e vazio, cheirando o môfo. Olhou para trás e avisou Talita :
Só então compreendeu por quanto tempo vivera sem - Traga Otávio. Quero-o em meu quarto. Não me
reconhecer que era dona de tanta coisa e que a nada separarei dêle nunca, nem por um segundo,
fizera caso entregando o próprio lar nas mãos de tercei-
A governante adiantou-se e vacilando pediu:
ros. Tudo aquilo era seu e somente ela deveria tomar
conta, somente ela deveria ordenar e dirigir aquelas cria- - Deixa-me carregá-Io? E ... eu pensava que iria ...
turas que nesse momento se aproximavam curiosas, que- bem ...
rendo ver a expressão do seu rosto ao encontrar-se assim - Diga, Babo, o que é que você quer?
depois de tanto tempo no seu lar.
- Cuidar dêle como cuidei da senhora. .. o meu ne-
O advogado se aproximou e perguntou satisfeito: tinho. .. até já havia preparado o quarto de quando a
- Eu não lhe disse que não se preocupasse com senhora era assim, dêsse tamanhinho ...
coisa alguma Y ~ue tomaria conta de tudo devidamente '( Babo estendeu a mão para mostrar a altura de Eude-
- Muito obrigada, amigo, porém, de hoje em dian- mônia aos oito anos. Babo era uma mulher forte que não
te, Eudemonia será uma verdadeira senhora para tomar parecia se .. tir a passagem dos anos e que se mantinha
conta da casa... e dos negócios também... quero que sempre numa mesma conduta aceitando atenções e indi-
você trabalhe comigo e com Petram, como serviu ao meu ferenças sem demonstrar alterações na fisionomia. Agora
pai. .. a emoção de receber nos braços o filho de Eudemônia
- Será uma honra, Eudemônia, fazia com que seus lábios tremessem e os seus olhos s~
enchessem de lágrimas, enquanto murmurava:
Eudemônia subiu as escadas que a levariam aos seus
aposentos. - Que lindo. " "tavinho" ... "tavínho" ...

,
308 CA$SANDRA RIOS
»UDEMc:">NIA 309
Eudemônia olhou para Talíta e Vítor. Os dois ace-
naram que sim e ela hesitando disse: zes filhos do jardineiro, que se encarregavam dêsse ser-
viço e deu partida.
- Babo, leve-o, e ... cuide dêle com o mesmo cari-
nho com que me criou.
Vítor ainda correu até o meio do jardim para gri-
tar quando ela passou:
Afastou-se para o aposento, depois de beijar o rosto
de Otávio que estirou a boquinha e abanando as mão- - Não se esqueceu do enderêço?
zinhas repetiu suas primeiras indecifráveis palavras:
Ela apenas acenou. Brecou de súbito, fêz marcha
- A dadá ... da ... a ré e disse:
Pouco depois Eudemônia descia as escadas nova-
- Tome conta de Otávio, voltarei logo. Aconteça
mente. o que acontecer. preciso certificar-me. .. não posso viver
na dúvida de que poderia ter sido feliz se lutasse mais
Estava exuberante em seu antigo traje que usava um pouco, compreende que é cedo ainda para deixar a
quando pretendia aventurar-se a algo. Calça comprida luta? ..
branca, jaquetão negro de couro, o cabelo penteado para
trás e na expressão um sorriso pretensioso. - Vá ... e felicidade, Eudemônia ...

Vítor olhou-a muito sério e retrucou: Ela se afastou decidida atravessando os portõs que
logo em seguida se fecharam automàticamente.
E ela volta. .. à antiga vida!

Oh! não! Vou buscar o que me pertence e desta


vez não lhe vou pedir que me acompanhe. Não será ne- Era a tarde mais linda que se descortinava ante os
eessário. olhos de Eudemônia. O carro corria beirando o mar que
do lado esquerdo permanecia quase imóvel, como uma
_ Tem certeza? - Perguntou êle seguindo-a até à enorme fôlha de zinco, prateada, reluzindo à luz do sol.
porta. Do outro lado o vento sôlto, farfalhando as compridas
- De que não preciso de você sim, prefiro que faça palmas dos coqueiros. Ela continuava avançando numa
companhia a Talita, ela é que não pode dispensar a sua corrida louca, prêsa de obsessão de que se retardasse
mais não conseguiria alcançar Méltsia.
presença, querido ...
Pensara durante tanto tempo que ela estava longe,
Eudemônia desceu correndo os degraus, Foi para
onde seu pensamento não pudera deslumbrá-Ia, entre-
a garagem e entrou para o carro que nesse instante es- tanto, seria tão fácil vê-Ia. Bastaria vencer aquêles pou-
tava sendo terminado de lavar. Dispensou os dois rapa- cos quilômetros que se iam esgotando para trás, na dis-

,
EUDEMÓNIA 3U

310 CASSANDRA RIOS Estacionou o carro perto e caminhou até o portão.


Procurou a campainha e fêz o que estava escrito no
tância que se marcava na areia pelos pneus da limou-
sine que voava suavemente unida ao chão. muro: "Puxe o cordão".
Passados alguns instantes, uma portinhola se abriu
A praia terminou na curva de uma baía e o carro
avançou por uma estrada arenosa, derrapando perigo- e o rosto de uma freira apareceu perguntando:
samente, até que afinal alcançou o trecho asfaltado, cru- O que deseja?
zando uma pequena cidade que logo ficou para trás.
Quero falar com a dra. Méltsia.
Eudemônia gritou da janela do carro que tivera de
diminuir a corrida, por causa de um número de bois ~ Imediatamente a freira abriu o portão e mandou-a
vacas que haviam se refestelado na estrada despreocupa- entrar, levando-a através daquele jardim de árvores,
damente, porém como não adiantou, pulou para fora (J para o casarão velho que ficava a pouca distância. O
pegou uma vara que viu próxima e foi enxotar a intrusa aspecto era horrível, parecia um castelo assombrado,
barricada. trõr fora, porque dentro já o ambiente pareceu mais con-
fortável e limpo, arejado, trazendo-lhe a impressão de
Um a um, lentamente êles se levantaram e foram
que acabara de ingressar no país do silêncio.
abrindo caminho para ela que sorrindo daquele cenário
entrou para o automóvel, novamente continuando a via- A freira mandou-a passar para a saleta que ficava
gemo ao lado direito da grande sala onde entrara e deixou-a
Nem mais um barraco sequer passou ante seu olhar. só.
Apenas árvores esqueléticas e compridas. Os eucalíptos Eudemônia estava trêmula como nunca, em tôda a
rodeando tudo e o aroma de seus troncos perfumando vida. Transpirava e irrequieta caminhava pela pequena
tôda a estrada. Alguns quilômetros mais e Eudemônía sala e olhava para a porta ansiosa, com medo de que
diminuindo a marcha começou a procurar a tabuleta que Méltsia não aparecesse, com um receio horrível de que ela
I
deveria indicar para que lado ficava o hospital. No não viesse.
envelope da carta de Méltsia indicava apenas o nome da
ístítuição e o quilômetro onde ficava. Teve ímpetos de correr dali e ao mesmo tempo ân-
sias de gritar para que ela não se demorasse mais.
Logo surgiu uma flecha indicando. Ela fez conver-
são à direita e seguiu ainda por uns dez minutos antes A porta abriu.
de avistar os muros altos do hospital. Eudemônía olhou, hirta, apalermada ,
Pobre Méltsia, como tivera coragem de penitenciar ..
E. Méltsía entrou,
se assim indo para um lugar como aquêle ? Na tabuleta
ela leu mais claramente a palavra "Hospício".

,
312 CASSANDRA RIO:'
EUDEMóNIA 313
Ao vê-Ia, recuou um passo, cambaleando de surprê-
sa, ao mesmo tempo que arregalava os olhos estupefata. - Num hospício?! - Desdenhou Eudemônia, desa-
creditando de que ela estivesse sendo sincera. Não po-
Estendeu a mão e deixou-a cair pesadamente, sem con-
seguir também articular uma só palavra. dendo crer que ela tivesse coragem para enterrar-se ali
se não houvesse uma razão muito forte que a obrigasse
Ficaram as duas se olhando, vítimas de um choque a encher seus momentos de preocupações. Esgotando-se
imobilizante. a trabalhar, sem trégua, com mêdo de se deixar vencer
por um único e poderoso pensamento.
Foi Méltsia quem fêz o primeiro movimento.
A médica ainda persistiu e chegou a demonstrar
Sacudiu a cabeça, sentou na cadeira mais próxima, I

que não estava gostando da atitude de Eudemônia que


cruzou as mãos e logo perguntou, entre um estremeci-

i•
rebatia tudo que ela dizia.
mento e uma sufocação de surprêsa. Gaguejou aturdida,
incrédula de que fôsse realmente Eudemônia que estava I Eudemônia, nervosa, procurava acercar-se dela.
ali à sua frente. Mas eram inúteis tôdas as tentativas. Méltsia se esqui-
vava e respondia a tudo como tanta frialdade que Eude-
- Como... como... chegou... até aqui? .. mônía vencída resolveu sentar e ficar em silêncio. Como
Eudemônia levantou-se e correu para ajoelhar-se ao se estivesse a recolher fôrças dentro de si, para dizer al-
lado dela. Beijou-lho as mãos e quis ir além antes de guma coisa que quebrasse aquela hostilidade. Entretanto,
responder, mas Méltsia se levantou e parou atrás da nada lograra ainda. Apenas provocara em Méltsia um
cadeira, que ficou entre as duas, impedindo a aproxima- pouco de raiva por ter persistido na verdadeira causa da
ção de Eudemônia. Ela tornou a perguntar, querendo sua fuga. O que nunca deveria ter feito. Agora ali esta-
evitar aquela sensação que provocava o olhar que tro- vam as duas caladas e aturdidas, sem se olharem sequer.
cavam:
A doutôra levantou-se da cadeira, onde se sentara
- Como chegou aqui? Como descobriu? e caminhou para o outro lado da sala. Voltou, sentou
de novo e começou por dizer:
O dr. Kermam me contou tudo. Por que você
fugiu? - Realmente, escrevi aquelas cartas, não neguei
isso. Eu tinha que me interessar, saber o que se passava
A dra. Méltsia deu um sorriso forçado e conseguin- com um dos meus pacientes.
do refazer-se disse simulando indignação:
Eudemônia ergueu a cabeça e olhou-a furiosa, como
- Mas quem foi que fugiu? Vim para cá porque se tivesse recebido uma bofetada. Os olhos chispavam
mandaram me chamar. Porque tenho clientes mais ne- e tôda ela se aprumou como uma pantera, preparando-se
cessitados aqui ... para um ataque.
314 CASSANDRA RIOS E'UDEMONIA 315

Então. .. oh I hipócrita! também fêz parte do - Oh I Eudemônia, não se exaspere assim, por
tratamento aquela noite?! Responda? Valeram por quan- Deus! Eu quero que você seja feliz. Quero que esqueça,
tos choques elétricos os seus beijos? Em que terapêutica que viva somente para Otávio ...
você classifica seus abraços e suas palavras? ..
- Até seu nome você sabe? Oh! Méltsia não se ne-
A doutôra inclinou a cabeça, mas logo reergueu-se gue tanto à vida a que realmente aspira. Vamos embora
altiva e respondeu céptica e decidida: daqui. Vamos comigo, querida, eu preciso de você e você
de mim que eu sei. Otávio também a amará, nós sabe-
_ Todos nós temos direito de errar. Mesmo os que remos ser dignas dêle. Não percebe que todo êsse tempo
se crêem invulneráveis às vêzes se dobram surrados por que passou foi como uma prova de que é inútil lutar contra
uma tempestade, mas o sol sempre brilha de novo. Con- o amor? Que a distância não vale nada e que nem os
vém que você esqueça Eudemônia e saiba perdoar. E' preconceitos arrefecem o ímpeto que você revela nos
lastimável o que fiz, não, não me interrompa - cale-se olhos? Eudemônia avançou para ela e parou a um passo
uma vez ao menos, preciso falar. - Pediu ela erguendo impedida pelas mãos de Méltsia, que se firmaram em
a mão para que Eudemônia permanecesse sentada, ou- seus ombros.
vindo-a de longe, continuou:
- Olhe para mim, Méltsia, dentro dos meus olhos
._ Foi ignóbil o meu procedimento, mas ainda em e diga: Vá embora, e eu irei, porém olhe para mim fixa-
tempo consegui parar, não venha tornar difícil minha mente, como naquela noite para que eu veja se devo ou
vida, culpando-me de tudo. Por Deus, Eudemônia vá em- não renunciar... Vamos... olhe para mim.
bora e se esqueça dessa passagem louca em sua vida. Eu
Ela ergueu a cabeça e seus olhos foram se movi-
não possa fazer nada. Só tenho que lhe pedir que me per-
mentando por entre as pálpebras semídescerradas, como
doe e que volte para o lado de Kermam, que é o único
se ela estivesse a ponto de desfalecer, mas depois de se
que merece sua consideração, pois é o pai do seu filho.
fecharem algumas vêzes, abriram-se decididas e fitou
f':le deve estar desesperado a estas horas à sua procura.
Eudemônia fixamente, dentro dos olhos, com tôda f'ôrça
- Eu o deixei esta manhã e êle sabe perfeitamente que fôr buscar na alma. Os lábios entreabriram-se e
que eu viria buscá-Ia. Sabe que é inútil lutar contra o muito depressa ela mal murmurou:
sentimento que eu tenho dentro, queimando-me, que nada
- Vá embora. Deixa-me em paz! Não venha des-
e ninguém poderá salvar-me. Eu lutei o máximo que
truir minha vida que eu custei tanto a refazer. Vá
pude contra êste amor, Méltsia, e aqui estou venci da,
embora Eudemônia, por Deus!
implorando-lhe que não me ofenda mais ... que não re-
cuse, e se lhe pareço realmente louca, trate-me, cuide de - Não! Você está tremendo. Você está mentindo!
mim, que eu lhe preciso tanto ... Você não quer que eu vá!
316 CAlil~ANlintA lUOI E'UDEMôNIA 317

Eudemônía tentou agarrá-Ia, empolgada por uma estava sentada à escrivaninha, escrevendo no caderno de
fúria de saudade e desejo. Aquêles lábios trêmulos e apontamentos.
úmidos, aquelas mãos nervosas enterrando-se em seus
ombros, os olhos cheios de lágrimas, a voz alterada por - A dra. lVIéltsia mandou-a se retirar e fechar a
sons de angústia. Tudo nela era desespêro. As duas luta- porta da sala, para que ninguém venha perturbar.
ram arrebatadas até que a dra. Méltsia conseguindo liber- A freira olhou-a alguns segundos, pensativa, levan-
tar-se por um segundo empurrando-a com tôda as fôrças
tou-se e saiu.
exclamou rinconscientemente :
lVIéltsia correu para a porta Eudemônia sorriu sar-
-Louca! Louca! Larga-me! Não se aproxime mais!
cástica:
Você está doente!
- Agora é tarde. Porque não impediu antes?
Eudemônia recuou aparvalhada.
_ Por que não pensei que ela a obedecesse, isto
Completamente alquebrada, prosternou-se vencida,
deixando-se cair sôbre a cadeira. Olhando-a com uma nunca aconteceu aqui ...
expressão maguada, incrédula. Impossível que Méltsia - Mas vai acontecer.
tivera coragem de chamá-Ia de louca, dizer-lhe que es-
Eudemônia fechou a porta, avançou para ela agar-
tava doente, assim tão-furiosamente. Um silêncio pesa-
rando-a ímprevietamente nos braços que se fecharam
do e perigoso se fêz trazendo reflexos sinistros no olhar
com tôda rôrça.
de Eudemônia, que se foi transformando de um momen-
to para outro, remexendo-se na cadeira e fitando Méltsia Méltsia tentou desprender-se. Eudemônia olhou-a
ameaçadoramenta, que começou a recuar em direção da com aquele ar diabólico e nu vitoriosa:
porta, como se pretendesse fugir ou chamar alguém.
_Você me chamou de louca ... e eu vou mostrar a
Eudemônia entreabriu os lábios e pausadamente ex- você, ou melhor, lembrar-lhe como é gostosa a minha
clamou numa advertência: loucura. .. não adianta lutar, porque desta vez eu vou
fazer chantagem. Ou você fica quieta ou eu grito à alta
- Pare. Não dê mais um passo. voz o que você fêz comigo, porque veio para cá e a
A dra. Méltsia estacou acometida por súbito temor todo lugar que fôr eu farei o mesmo até que você se
e viu levantar-se e caminhar em sua direção. resolva a curar a minha loucura. Dra. Méltsia, eu sou
louca, doente mental, e preciso de sua terapêutica. Da
Eudemônia chegou perto, olhou-a dos pés à cabeça
e sorriu desdenhosa. Continuou a caminhar e abriu a medicina que existe em seus lábios. Eudemônia dobran-
porta. Olhou para a outra sala e disse para a freira que do-a para trás conseguiu alcançar a bôca de lVIéltsia, que
tentara se esquivar.
EUDEMóNIA 319
318 CASSANDRA RIOS

Prendeu-lhe os lábios e ardorosamente esfregando-se Méltsia não respondeu e continuou com os olhos fe-
contra ela beijou-a alucinada, por todo aquêle tempo que chados e inerte, muito pálida, sem demonstrar que esta-
desejara sentir o calor de seus beijos e nem mesmo pu- va ouvindo a voz de Eudemônia que dizia:
dera vê-Ia. E sem despregar os seus lábios dos dela con- _ Querida... o que você tem? .. eu não quis ma-
tinuou arrebatada a envolvê-Ia mais e mais, recurvando- goá-Ia ... revoltei-me você me chamou de louca, como
a até que as duas caíram para o chão pesadamente, fa- se tivesse pena de mim corno se estivesse com medo ...
zendo ruído abafado pelo grôsso tapete. perdi a cabeça. .. que ódio senti de você. .. e como eu
a amo ...
Entretanto nem com a queda, Méltsia conseguiu li-
Eudemônia debruçou a cabeça no ombro dela e co-
bertar-se. Apenas suas bôcas se separaram, mas logo Eu-
meçou a chorar silenciosamente vencida por uma tristeza
demônia beijava-a outra vez mais furiosa, quase mor-
imensa e aniquiladora.
dendo-a .Jogou-se para cima dela e tateando com difi-
culdade impedida pelas mãos de Méltsia, que, trêmulas Aquela mão se movendo, aproximando-se de seu ros-
e retezadas, tentavam segurar as suas, foi desabotoando to, o hálito de Méltsia batendo em sua orelha, depois a
maciez de suas mãos tocando-lhe os cabelos, deslizando
o seu avental e depois não conseguindo prosseguir er-
vagarosas e de súbito bruta mente prendendo-lhe a ca-
gueu as mãos e soltou-lhe os cabelos, deixando-os se es-
beça que se voltou num movimento rápido para deixa):
palharem pelo chão. Beijando-a sem despregar a bôca
prender a bôca naquela bôca entreaberta com os dentes
um segundo da sua continuava a espremer-se contra o
trincados por uma fúria de ímpetos impossíveis de se
seu corpo, arrebatada, querendo que Méltsia, cançada de
sufocar.
lutar caísse passiva para que ela a acariciasse mais cal-
ma e carinhosa.
a primeiro, o verdadeiro beijo da saudade e de amor
gemeu naquc.es lábios que se prendiam. a primeiro es-
A bôca de Eudemônia queimava, prendia-se à dela tremeciment«, o primeiro verdadeiro contato de ansie-
e sugava-lhe a saliva com ímpeto sedento e enfiava a lín- dade estrem .ceu aquêles dois corpos que rolaram abra-
gua por entre seus dentes, depois procurava a dela, su- çados, contorcendo-se arrebatadas, quase em delíquio.
gando-a com fúria, como se quisesse arrancá-Ia. Méltsía - Eudemônia!
contorceu-se e gemeu, relaxando-se sob o corpo de Eu-
Aquêle exasperado sussurro saíu de sua garganta,
demônia que afastou os lábios daquela bôca para olhá-Ia
frenético, como um grito. Submissa, mole, relaxada en-
e ver o que acontecera a Méltsia que, de repente, ficara
tre seus braços, Méltsia, com a bôca aberta, ofegante,
imóvel como se tivesse desfalecido. Exasperada chamou- lânguida entregava-se e mais ainda agarrava-se a ela
a passando a mão por seu rosto.
320 CASSANDRA RIOS EUDEMÔNIA 321

com uma fúria quase bestial estorcendo-se e gemendo Conseguindo livrar-se daquelas mãos que se erguiam,
enterrava as mãos em suas carnes e deslizando-as rete- querendo prendê-Ia, Eudemônia levantou-se e desdenho-
zadas e audaciosas desabotoou-lhe a blusa e de um puxão sa, vingativa, com aquela idéia de revanche a estourar-
brusco pôs a desnudo os seios duros e túrgidos de Eude- lhe na cabeça afastou-se enquanto Méltsía murmurou
mônia. Desceu a bôca úmida e arquejante e numa sen- algumas palavras que ela mal pôde compreender.
sualidade erótica a princípio quase que despercebidamen-
- Por que Eudemônía ... não se vá ... eu juro que
te beijou-os e logo assaltada por uma violência selvagem
sugou os bicos duros, arreitados, fazendo-a gemer de dor não fugirei mais ...
e de prazer. As suas mãos tremiam à procura, querendo - Não, Méltsia, no momento em que aqui cheguei
sentir a carne contra carne. Numa loucura terrível, sem seria capaz de arriscar-me a tudo, mas agora eu tenho
poder conter a aspereza de seus gestos. Méltsia estirou as mêdo . .. um mêdo terrível de ter você outra vez. Não
pernas, esfregando as coxas nas suas, ia esfregando os quero sofrer o que sofri em tantos meses, eu não supor-
lábios pelos seus ombros chupando-lhe o pescoço, mor- taria nem o primeiro instante ...
discou a ponta das orelhas, sugou-lhe o próprio queixo e
prendeu-lhe a bôca, mordendo-a num transporte de dese- Eudemônía abriu a porta saindo em seguida quase
j o crescente. a correr, sem olhar para trás.

Eudemônia, atoleimada diante daquela fúria que A freira que estava sentada na varanda do casarão,
mais uma vez se apoderara da doutôra, revelando-a as- olhou-a intrigada e com insistência e só então ela se deu
sim quase que histérica, deixou-a prosseguir sem poder conta da desordem de sua roupa e recompondo-se nervo-
esboçar um gesto sem f'ôrças sequer para retribuir o bei- samente se afastou sem se despedir.
jo. Quando Méltsia mordeu-a novamente, Eudemônia
Abriu o pesado portão de madeira e ferro e correu
engoliu um grito de dor e derrubou-a para o lado. Se- para o carro.
gurou-o pelos ombros e olhando de perto, quase encos-
tando a bôca na sua, disse: Nem ela mesma se conseguira explicar como agia
li assim de uma hora para outra, impelida por estranho
- Agora sou eu que não a quero. compreende? Não li!

desejo de fazer Méltsia sofrer, de deixá-Ia no momento


vou satisfazer seu desejo, como naquela noite, para que
exato em que ela acreditava que iria ser sua.
depois você fuja como uma covarde. Continue... neste
hospício ... covarde! Vê se consegue ser feliz fugindo do Arriscaria tudo 'para ter certeza do amor de Méltsia
amor! Grave seu nome na página do livro do filósofo: até mesmo a probabilidade de perdê-Ia e por isso era ela
"Sábio imprudente ilumina os outros para adormecer quem fugia agora. Era ela quem a deixava, instigada
cansado, sem ter visto a si próprio ... " por aquela idéia fixa que a impelia para a frente em
322 CASSANDRA RIOS EUDEMôNIA 32'3

direção do carro, às pressas com mêdo que Méltsia a al- Vítor vacilava acreditando que Eudemônia deveria
cançasse. estar sofrendo horrível decepção naquele momento. Pre-
feriu esperar que ela o procurasse para desabafar.
Dentro de sua revolta ela não conseguia explicar
porque estava fugindo e o que poderia provar com isso. Realmente, Eudemônia se maldizia e vociferava con-
tra si própria por ter agido daquela maneira louca e inex-
O carro deslizou feito um demônio desembestado de plícâvel , Só poderia estar mesmo fora do juízo para ter
volta pelo mesmo caminho qus havia pouco percorrera. feito o que fizera. Agora seria inútil exasperar-se e dar
Derrapando nas curvas quase se arranhando nas eleva- razão àquela voz que lá no fundo, dentro dela, insistia
ções que beiravam a estrada. Dir-se-ía que ela pretendia em dizer que era necessário vingar-se de Méltsia para
correr mais que o próprio pensamento, tal a velocidade que ela a procurasse vencida, se a amasse de verdade.
que dava ao carro. A fumaça saía pelo tampão em cima Lá em cima em seu quarto, Eudemônia já no auge
do cofre e a água borbulhava no tanque, fervendo e ela do desespêro se atirava sôbre a cama a arrancar os ca-
continuava a apertar o pé no acelerador. belos e a morder os pulsos de raiva de si própria.
Lá estavam as vacas e os bois no meio do caminho, A pouco e pouco um cansaço dolorido venceu-a, dei-
comodamente ajeitados. xando-a inerte a' olhar para o teto, os olhos abertos numa
expressão apagada como se o pêso dos próprios pensa-
A parada forçada fêz ranger os freios e com a der-
mentos a tivessem derrubado.
rapada os animais se levantaram assustados e fugiram
em disparada como se atrás dêles tivesse berrado o Lá em baixo, a campainha ressoou e o mordomo
diabo. adiantou-se para abrir a porta.

Hora depois, Eudemônia subia correndo os degraus Uma voz de mulher, trêmula, pergúntou apenas:
da mansão dos Forbes. - Eudemônia ? ..
Vítor viu-a passar na sala, a correr, e a dois e dois O mordamo mal-acabou de responder e ela já per-
subir a escada e depois a porta do quarto dela bater es- guntava:
trepitosamente. - Onde? .. Onde está?.. Diga logo... na sala?
O silêncio voltou, dando a impressão de que não - Não, minha senhora, vou chamá-la. Ela está em
acontecera nada. seus aposentos ...

As horas se passaram e ninguém Se atrevia a subir E a voz repetiu:


para chamá-Ia. - Onde?
EUDEMÔNIA 325
324 CASSANDRA RIOS
pa a êsmo e apresentando-lhe em tôda nudez o corpo pal-
- Lá em cima.
pitante, e pela arrepiada, híspida de ânsias ferozes,
Vítor ainda viu uma mulher, trazendo no aspecto
Pondo-se na ponta dos pés ela deslizou as, mãos pelos
imponente e altivo, a expressão do desespêro, atraves-
seios, desceu-as pela cintura e estendendo-as depois, ati-
sar correndo a sala, enquanto o mordomo a seguia, que-
rou-se sôbre Eudemônia, fogosa, agarrando-a pelos cabe-
rendo impedi-Ia de subir. Vítor aproximou-se e fazendo
los, puxando-lhe a cabeça para prender-lhe a bôca em um
sinal para que êle a deixasse seguir avisou entre um
sorriso e um cumprimento: beijo infernal.
Eudemônía que ficara entontecída vibrou espicaça-
- A terceira porta na ala esquerda, muito prazer,
da por uma fúria descontrolada e derrubou-a para o lado',
dra. Méltsia.
violentamente.
Méltsia subiu aquêles degraus a dois e dois como há Pulou para cima dela e envolveu-a nos braços em-
pouco o fizera Eudemônia, atravessou o corredor e sem polgada por uma emoção terrível que provocara a sur-
bater abriu a terceira porta. prêsa do seu aparecimento ali. A ansiedade era tanta, o
Lá na cama, Eudemônia permanecia inerte sem desejo tão louco, a emoção tão forte que em vez de bei-
olhar para ver quem entrara, assim, sem pedir licença. já-Ia, Eudemônia mordeu-a e erguendo. a mão' ,~sbofe-
teou-a muitas vêzes e continuou a machucá-Ia com seus
Méltsia aproximou-se vagarosa, aturdida e estíran-
abraços ferinos e beliscões. Méltsia tentava desvenci-
do-se ao seu lado agarrou-a pelos ombros e expeliu de
lhar-se, se encolhendo medrosa, assustada, os olhos des-
um fôlego só tudo' que lhe queimava dentro:
mesuradamente abertos perguntando entre prantos com
- Eu a amo. Eudemônía ... que saudade, que sau- pavor daquela demonstração de Eudemônia que sorría e
dades, não' a deixarei nunca mais, nunca, compreende, chorava ao mesmo tempo:
Eu sou sua, farei O. que você quiser, porém, beija-me, olha - Por que ... me bate. .. querida ... por que? ..
para mim, beija-me com loucura e se estivermos loucas
as duas, que ninguém procure nos salvar. - Oh! meu amor. .. porque não há mais nada que
traduza esta fúria que me enfebrece, porque eu tenho'
Eudemônia fulminava-a com aquêle olhar satânico'
vontade de matá-Ia, porque tenho vontade de morrer,
qus a atravessava até à alma. Estava frouxa, sem acre-
por que eu não' quero' que êste momento termine, nun-
ditar que ela estivesse ali, fitando-a e fitando-a como
ca. .. nunca... Porque finalmente compreendi que sou
uma alucinada.
realmente louca ...
Méltsia se afastou, pulou para o chão e à sua frente,
E o beijo escondeu o. nervosismo' que lhe fazia tre-
sem que ela pudesse impedir ou mesmo tivesse fôrçae
mer os lábios.
para ajudá-Ia, foi despindo-se e jogando' as peças de rou-

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