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“CONTROLAR SUA LÍNGUA”: A VIOLÊNCIA COMO DISPOSITIVO DE

PODER A PARTIR DA ESCRITA DE GLORIA ANZALDÚA

João Paulo Machado Tinoco*


Vania Maria Lescano Guerra**

RESUMO: Esta pesquisa em andamento faz parte das reflexões iniciais de nossa tese de Doutorado cujo
objetivo geral é estudar o processo de constituição identitária da mulher chicana, a partir da obra
Borderlands/La frontera: the new mestiza (2012) escrita por Gloria Anzaldúa, sobretudo as possíveis
representações de identidade de gênero social, com o intuito de rastrear os efeitos de sentidos de violência.
Para tanto, é necessário a crítica do estudo das relações de saber/poder (FOUCAULT, 2014), via Análise
do Discurso. Buscamos também noções sobre o lugar geoistórico (NOLASCO, 2013), sob a visão
discursivo-desconstrutiva (GUERRA, 2010, 2015). Nossa hipótese é a de que a escrita pode ser examinada
como um palimpsesto em que marcas sobrepõem a outras e que não conseguem ser exauridas. Nas análises
podemos observar que a escrit(ur)a está permeada de denúncias de uma violência simbólica praticada
pelo opositor através da incitação ao ódio e pela discriminação étnica e sexual. Observamos que na
escrit(ur)a analisada há marcas “visíveis” de controle e silenciamentos, que caracterizam uma forma de
violência ou perseguição, na busca de uma excludente anulação do sujeito indígena.

ABSTRACT: This ongoing research is part of the initial reflections of our doctoral thesis which general
objective is to study the process of identity formation of the Chicana woman, from Borderlands / La
frontera: the new mestiza (2012) written by Gloria Anzaldúa, mostly the possible representations of social
gender identity, in order to trace the effects of senses of violence. Therefore, it is necessary to critique the
study of the relations of knowledge/power (Foucault, 2014) via Discourse Analysis. We also search for
notions about the geo-historical place (NOLASCO, 2013), under the discursive-deconstructive vision
(GUERRA, 2010, 2015). Our hypothesis is that the writing can be examined as a palimpsest in which marks
overlap others that cannot be exhausted. In the analyzes we could observe that the writing is permeated by
denunciations of a symbolic violence practiced by the opponent through the incitement to hatred and ethnic
and sexual discrimination. We observe through the written analysis that there are “visible” marks of
control and silencing, which characterize a form of violence or persecution, in the search for an exclusive
elimination of the indigenous subject.

PALAVRAS-CHAVE: Análise do Discurso; Violência; Borderlands/La frontera.

KEYWORDS: Discourse Analysis; Violence; Borderlands/La frontera.

CONSIDERAÇÕES INICIAIS

As discussões que aqui emergem fazem parte dos estudos que desenvolvemos no grupo
de estudos “Celebração dos Sujeitos Periféricos”, na Universidade Federal de Mato
Grosso do Sul, campus de Três Lagoas, supervisionado pela professora Dra. Vânia

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Lescano Guerra. Em nossas discussões, trazemos a importância de estudar os discursos
em suas distintas formas práticas, buscando mostrar seus efeitos de sentido nos locais
onde são produzidos. Envoltos nessa proposição, nossa escrita foi impulsionada por
algumas inquietações a respeito da violência que os indígenas vêm sofrendo nas
Américas, por meio das práticas discursivas enviesadas no campo político e social,
especificamente por meio de denúncias (auto)biográficas marcadas como letra ou signo,
por exemplo, a escrit(ur)a de Gloria Anzaldúa. Temática que nos leva a propor uma
problematização de aspectos centrais da atualidade que afligem os sujeitos históricos,
sobretudo o processo da (des)construção identitária do sujeito indígena.

Tomamos a obra escrita por Gloria Anzaldúa, Borderlands/La frontera: the new mestiza
(2012), para lançar nossas reflexões e, com esse desejo, visitarmos um conjunto de textos
produzidos por diferentes pesquisadores que se sentem desconfortáveis diante daquilo
que muitos veem de soslaio, os dispositivos de poder que estão em jogo na luta política e
social. Para este estudo, sob a perspectiva arqueogenealógica de Michel Foucault,
rastreamos na escrit(ur)a de Anzaldúa denúncias que estão relacionadas à violência contra
a mulher indígena. A posição-sujeito é ocupada por Gloria Anzaldúa, como mulher
pesquisadora, ativista, lésbica, professora e chicana. Vale dizer que entendemos a
posição-sujeito como um corpo social que se distancia do indivíduo empírico.

Muitas são as contribuições no meio acadêmico que questionam acerca dos sujeitos que
são (co)locados à margem. Estes são corpos sociais que cotejam ou se opõem a outros
sujeitos sociais. Essa relação é engendrada por um processo marcado por relações de
poder entre grupos revestidos de ideologias diferentes. O termo ideologia é entendido,
neste trabalho, como a visão de mundo no qual o sujeito está inserido. Os saberes aos
quais os sujeitos estão atrelados estão numa dupla diferença, quais sejam, a diferença
cultural do mundo moderno e a política do colonialismo e do capitalismo (SANTOS;
MENESES, 2010).

A partir de olhares sobre as teorias pós-estruturalista, discursiva, pós-colonial, feminista


e queer, temos como objeto central estudar enunciados produzidos pela mulher chicana
que vão de encontro aos saberes hegemônicos da sociedade patriarcal, abrindo espaço
para contrapor discursos recorrentes que emergem na sociedade como no momento
político em que o Brasil está inserido, cuja máxima tem sido a tentativa da restauração
dos “bons” costumes morais da família brasileira, solidificada, sobretudo, no discurso do
deputado Jair Messias Bolsonaro. Trazemos Bolsonaro à baila por ele estar entre os
candidatos favoritos para ocupar a presidência da república em 2018.

O enunciado que dá forma ao título deste texto, a saber, “Controlar sua língua”, foi usado
num contexto odontológico relatado por Gloria Anzaldúa, no capítulo 5 de seu livro
Borderlands (2012), ocasião em que a dentista insiste para que Anzaldúa controle sua
língua ao terminar o processo cirúrgico a que fora submetida: “’We’re going to have to

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control your tongue’, the dentist says” (p. 75)1. Esta metáfora desliza-se de seu contexto
para alcançar outro efeito de sentido no âmbito político e social do sujeito mulher
indígena, permitindo-nos dizer que a articulação da textualidade com o esquecimento e
com a memória faz emergir o já-dito, que torna possível todo dizer, isto é, o interdiscurso.
Essa insistência em tentar controlar a língua do outro implica uma tentativa de silenciar
um grupo minoritário que, historicamente, tem lutado por seus direitos e pela
“reconstrução de suas relações e organizações” (GUERRA, 2015, p. 95). A título de
demonstração do que temos vivenciado no Brasil, em relação à temática aqui discutida,
trazemos um dos enunciados proferidos por Jair M. Bolsonaro que aclama as falhas da
concessão de ajustes dos direitos das mulheres: “Mulher deve ganhar salário menor porque
engravida”2.

Muitos estudiosos, já na década de 80, desvelavam a oposição tradicional entre o


masculino e o feminino, decorrente da estrutura hierárquica, através da associação com
outras posições construídas, por exemplo, racional e emocional, forte e fraco, ativo e
passivo, etc. E é nesse processo de embate que os corpos sociais se preocupam em
defender seus lugares sociais, atravessados por diferentes saberes epistemológicos.

Com o intuito de problematizar esses dizeres, fizemos quatro perguntas para mobilizar o
nosso trabalho, cujo motivo não é buscar respondê-las; pelo contrário, objetivamos trazer
o pensamento reflexivo que pode fluir a partir dessas questões. São elas: 1) Como
funcionam os discursos que apontam a violência contra a mulher? 2) Há marcas
linguísticas na escrit(ur)a de Anzaldúa cujos efeitos de sentidos fazem emergir a violência
e fomentam esse tipo de discurso? 3) A construção cultural e social da sexualidade, além
da biológica, abre margem para a prática da violência contra a mulher? 4) Que efeitos de
sentido a violência pode produzir?

Este artigo está divido em três partes. Na primeira parte tratamos da problemática da
violência discursiva na contemporaneidade, sob a premissa de que o discurso é a palavra
em ação. Na segunda parte trazemos as condições de produção que esses discursos
emergem, sobretudo aqueles que são expressos no livro de Gloria Anzaldúa. A terceira
parte apresenta reflexões analíticas para, enfim, dar rumos a alguns posicionamentos
presentes na (des)construção dessa discursividade, no intuito de lançar luzes sobre o
percurso identitário das mulheres indígenas diante da violência e do preconceito.

1.O DISCURSO E A PRÁTICA DA VIOLÊNCIA

1
‘“Nós vamos ter de controlar sua língua’, disse a dentista” (Tradução nossa).
2
Bolsonaro usou esse enunciado para justificar seu pensamento quanto à volta da mulher da licença-
maternidade, uma vez que ela poderia usufruir de mais um mês de férias, trabalhando assim cinco meses
no decorrer de um ano.

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Como estudiosos dos discursos, temos refletido sobre enunciados que sobrevivem de
teimosia, no entremeio de histórias hegemônicas. Assim, a voz da mulher chicana,
materializada na escrit(ur)a de Gloria Anzaldúa, atravessa o nosso caminho; voz que a
história ignor(ou)a e a sociedade silenci(ou)a, mas que “deixa rastros de outros fatos
ocorridos numa sociedade particular ou várias” (TINOCO, 2016, p. 76), fazendo-nos
pensar sobre os regimes de verdade que funcionam como mecanismos de produção de
identidades, e, além disso, buscar estratégias para cavar nos fossos das histórias histórias
outras que um dia foram silenciadas, ou seja, saberes que foram construídos num outro
processo histórico e que podem emergir a partir de uma crítica pensada de fora da
sociedade hegemônica, da exterioridade (NOLASCO, 2013).

Reconhecemos que ainda temos de transpor noções construídas lá no centro, e, erigir aqui,
à beira do centro, uma epistemologia fronteiriça; desconstruir, como o faz Milton Santos
(2012), os lugares habitados por aqueles que estão à margem, considerando o
atravessamento de classe social, raça, gênero, sexualidade que os constroem.

A partir do que já foi exposto, este artigo faz parte da trilha inicial que configurará uma
tese de doutoramento, cujo objetivo é estudar o processo de subjetivação da mulher
chicana, a partir do livro Borderlands/La frontera: the new mestiza (ANZALDÚA, 2012),
sob o viés discursivo-desconstrutivo cunhado nos estudos de Vânia Guerra (2010, 2015).
Para isso, levamos em consideração a produtividade da prática da teorização descolonial,
conforme proposto por intelectuais como Edgar Nolasco (2013) e Boaventura Sousa
Santos (2010), cujas questões tentamos coadunar ao longo de nossas reflexões.
Procuramos mostrar como a noção da prática descolonial se sustenta e como ela contribui
para os estudos do discurso, puxando os fios teóricos da crítica subalterna que ofereçam
contribuições para o nosso trabalho.

Ainda nessa mesma esteira, a partir de um princípio (des)construtor e articulador das


teorias, apoiamo-nos nos estudos de Michel Foucault, que nos ajudam a penetrar nos
efeitos identitários construídos numa teia entre discurso, história e memória. Isso no
intuito de mostrar a pertinência da conjunção dos campos dos estudos do discurso e dos
estudos da crítica subalterna, ou como Nolasco (2013) prefere usar, a crítica pós-crítica.
De acordo com Foucault (2014), o discurso é um conjunto de enunciados que podem estar
atrelados a campos diversos, e que são regidos por regras de funcionamento.

Dessa maneira, o discurso é compreendido como uma prática social, determinada pela/na
história que constitui os sujeitos e objetos. E é através dessas práticas, que nos abre a
possibilidade de analisar a circulação dos enunciados, o local geoistórico do sujeito
mulher chicana, as materialidades que fazem emergir os sentidos e como os enunciados
se estabelecem com a história e a memória. Trata-se de uma investigação que se
fundamenta no suporte teórico-metodológico arqueogenealógico, proposto por Foucault,
para análise dos discursos (FOUCAULT, 2014). Vale retomar a noção de Local
Geoistórico para dizer que a entendemos a partir de Nolasco (2013): o lugar que arraiga

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histórias locais e nos ajuda a exumar memórias veladas; ou ainda segundo a proposta de
Boaventura Sousa Santos: a construção de um pensamento sob o viés reflexivo da
existência de uma pluralidade de saberes, além do conhecimento científico, isto é, uma
crítica da desvalorização das reflexões que são erigidas no Sul.

Partimos, portanto, da hipótese de trabalho de que a escrit(ur)a pode se configurar como


um modo único de o sujeito se singularizar ao relatar suas experiências, diante da
interferência de um movimento sobre o qual a mulher chicana dirige o seu desejo. Por
isso, o local geoistórico é importante para lançar olhares pois, com base nesse princípio,
a escrit(ur)a alcança novas margens quando transgredimos e transpomos, sob o princípio
de aprender a desaprender, os limites da noção de escri(tu)ra para aventar a ideia de
arquivo (DERRIDA, 2001), que consiste em um conjunto de documentos que remetem a
diversos acontecimentos que ocorreram numa dada ordem social. Fiamo-nos no
pensamento de Guerra (2015) que nos mostra a relevância da noção de arquivo ao dizer
que o arquivo é constituído de conhecimentos sobre tudo que é possível de se pensar e
que estão ancorados sob “verdades” outrora construídas. Isso porque, sob o fio discursivo
da escrit(ur)a, é possível perscrutar uma relação entre a história e a memória:
passado/presente e/ou presente/passado que deixam rastros, herança que nos aproxima do
passado e aponta o futuro.3

A escolha deste tipo de temática vincula-se, por um lado, ao interesse em contribuir para
o acervo de pesquisas sobre práticas sociais, bem como o da compreensão dos conflitos
que permeiam o processo identitário da mulher chicana. Assim, o estudo alcança sua
importância quando trazemos gestos interpretativos e saberes outros ao partirmos da
escrita, língua e do corpo da mulher chicana, no intuito de desestabilizar os saberes
hegemônicos, que tentam, numa arena de poder, silenciar histórias deserdadas.

Em se tratando da violência, primeiramente, podemos dizer que ela está associada aos
danos causados à vítima em sua integridade física, moral e simbólica. Na escrita de
Anzaldúa, há registros de dispositivos de poder/saber que certificam práticas de violência,
produzidos por sujeitos situados em lugares diversos. A autora erige seu discurso a partir
de um local fora do centro, marginalizado, excluído daqueles que são considerados
ajustáveis.

Hodiernamente assistimos, ouvimos e lemos notícias que nos marcam e deixam-nos


perplexos com tanta violência. Sua presença alcança todos os grupos sociais e se faz
presente nas relações sociais. É por meio de gritos, mensagens escritas em muros ou
cartazes, na arte, na violência concreta, no silêncio, nos rituais religiosos, na política, nas
redes sociais, nos livros (auto)biográficos, por exemplo de Anzaldúa, que a violência
encontra a forma de se materializar.

3
Ver BESSA-OLIVEIRA, Marcos A.; NOLASCO, Edgar C.; GUERRA, Vânia M. L.; S. FREIRE, Zélia
R. N. dos, 2017.

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Diante dessa violência, as pessoas buscam preencher, sob um viés religioso, os espaços
escuros com luzes de um hostil conformismo que, por vezes, nos ajudam a “não lançar a
criança fora com a água suja do banho”, como diz o velho ditado. Por meio desse impasse,
temos o intuito de observar algumas formas de produção da violência e quais são seus
efeitos, bem como onde os sujeitos estão situados nessa trama social que é atravessada
pela hostilidade e preconceito. Uma vez que essas “práticas não discursivas, como
subjugar e/ou agredir o outro pela força física, e as práticas discursivas, explícitas ou
veladas, revelam a prática da violência, desde suas formas corpóreas até as suas formas
simbólicas” (FERNANDES, 2017, p.7), descortiná-las pode ser uma das maneiras de
apagar as luzes que projetam as sombras da conformidade.

O nosso olhar sobre a escrit(ur)a de Anzaldúa rastreia as formas de produção do sujeito


acampado numa arena de relações de poder, permeado pelas inter-relações sociais, e de
sua sujeição. Olhar para os dizeres do sujeito mulher chicana como corpo social nos dá
fragmentos dessa luta pela construção de si e pelo desejo de verdade que atravessa esse
segmento social.

A escrit(ur)a de Gloria Anzaldúa se apresenta de maneira performática, a partir do lugar


de onde a escritora enuncia, isto é, de sua própria vivencia como mulher, chicana, ativista,
etc. Esse campo político estabelece um embate entre pensamentos hegemônicos e saberes
outros. Esta é uma problemática constante no momento atual: a sociedade (pós)moderna
tem sido articulada numa tensão entre ordem e progresso. Nas palavras do intelectual
Boaventura de Sousa Santos: “é uma sociedade que pela primeira vez cria essa tensão
entre experiências correntes do povo, que às vezes são ruins, infelizes, desiguais,
opressoras, e a expectativa de uma vida melhor, de uma sociedade melhor” (SANTOS,
2007, p. 17-18. Grifos nossos).

Esses ideários de progresso e ordem levam o sujeito enunciador a ter a ilusão de que tudo
pode ser dito no momento e como ele quiser; esquece-se de que há um movimento por
trás dos dizeres, orientados pela ordem do discurso daquilo que pode ser ou não dito.
Michel Foucault (FOUCAULT, 2013, p. 8-9) afirma que

a produção do discurso é ao mesmo tempo controlada, selecionada, organizada


e redistribuída por certo número de procedimentos que têm por função conjurar
seus poderes e perigos, dominar seu acontecimento aleatório, esquivar sua
pesada e temível materialidade.

Ao afirmarmos que a escrit(ur)a de Anzaldúa é performática, sabemos que há um jogo de


interdições, de controle e seleção que se entrelaçam e que atravessam o discurso. Isso
porque o próprio efeito discursivo já é uma performance, um desempenho, uma ação, uma
prática.

E (n)essa trama discursiva em que a violência simbólica se desnuda e emerge a partir da


escrit(ur)a de Anzaldúa, há algo que tensiona esses saberes e alcança força ao ser

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aplaudido por um amplo grupo social, efetivando-se, portanto, como uma norma social.
Assim, ao lançamos mão da perspectiva arqueogenealógica discutida por Foucault
(2014), quando o intelectual diz que a busca do analista tem de ser pelo discurso enquanto
prática, entendemos que as regras já estão determinadas.

2.SOBRE A AUTORA E SEU LIVRO BORDERLANDS

Para discutir os efeitos de sentido de violência na obra de Anzaldúa, valemo-nos de


autores que discutem sobre o ser/estar entre línguas, entre culturas, entre heranças que
(des)constroem identidades, a subjetividade e individualidade do sujeito (CORACINI,
2007), uma vez que a escrit(ur)a de Anzaldúa é permeada por essas problemáticas. A
literatura de Gloria Anzaldúa é atravessada por uma crítica selvagem, visto que esta é
engendrada a partir de seu lugar enunciativo, o da fronteira. Anzaldúa vivenciava a
fronteira enquanto mulher chicana e sua produção parece absorver e representar uma
gama incontável de registros, categorias, (in)disciplinas, práticas, saberes, emoções,
paixões e dores; formas de resistência que ocorrem e se acumulam na fronteira.

Em um de seus trabalhos, Borderlands/La Frontera: The New Mestiza, Anzaldúa


organiza sua escrita em torno de uma multiplicidade de espaços fronteiriços: um texto
entre a ética e estética, ficção literária e ensaios, “transparente” e “evidente” para toda a
expressão cultural, política, histórica que fala sobre as vicissitudes dos migrantes na
fronteira. E ao escrever, a escrita se torna um lugar de conflitos, de rupturas, de tensões,
sobretudo, de resistência.

Borderlands/La Frontera: The New Mestiza foi publicado primeiramente em 1987. Desde
então, as discussões sobre sua categorização narrativa têm aumentado: autobiografia,
ensaios históricos, memórias, testemunhos, poesia, ficção? Borderlands é um texto
transcultural que nos induz a pensar sobre a construção identitária – a nova mestiza. Como
ativista, a escritora nos leva a refletir sobre nossa compreensão do que é fronteira, não
como uma simples divisão entre aqui e lá, nós e os outros, mas como algo psíquico, social:
um lugar onde habitamos e que habita todos nós.

Anzaldúa escreve no entre-línguas-culturas (o espanhol, inglês e o Nahutl), desvelando


que as línguas que emergem na fronteira estão num espaço de desconforto, uma vez que
somos estrangeiros para nós mesmos. As características que estão presentes no livro
realçam questões que estão sob a ordem do discurso desconstrutivo, por exemplo, a
différence derrideana, a hibridização cultural, a singularidade e a subjetividade da escrita
mestiza, língua(gem) como local para jogos de poder/saber, o local geoistórico
nolasquiano e o pensamento liminar cunhado por Walter Mignolo.

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Ocorre que, para a Análise do Discurso de origem francesa (AD), o sujeito, por meio da
língua e afetado pela história, constrói representações; a história carrega fatos
significativos que são afetados pelo simbólico, e, ao ser afetado pela língua e história, o
sujeito discursivo move-se pelo inconsciente e pela relação de poder. A partir dessas
considerações, entendemos que a língua(gem) faz sentido porque está inscrita na história,
que o homem, ao nascer, perpetua e produz mudanças. A AD traz em seu bojo a
preocupação em analisar o discurso, traz a língua(gem) para a análise, mas não como
prioridade: ela é o meio, a forma material, a materialidade simbólica, passível de deslizes,
de falhas, de equívocos, determinante para o gesto de interpretação.

3. A PRÁTICA DA VIOLÊNCIA (D)ENUNCIADA NA OBRA DE GLORIA


ANZALDÚA
Com o desejo de avaliarmos a produtividade das reflexões feitas até aqui, propomo-nos
desenvolver gestos análiticos nos quais pode ser observada a relação do local geoistórico
com o poder e o saber, materializada na escrit(ur)a, sobretudo, os efeitos de sentido que
emergem dos discursos sobre/da violência que atuam como um processo de subjetivação
do sujeito.

Em Borderlands/La Frontera, Gloria Anzaldúa faz uma descrição do movimento de


busca pela identidade em um mundo que se recusa a permitir outras possibilidades. A
fronteira México e Estados Unidos da América está cercada de eventos que marcam uma
área altamente conflituosa: o femicídio, centenas de mexicanos à espera de passar para
outro lado, superlotação urbana, comunidades indígenas deslocadas, reformas anti-
imigração, construção de muros, inúmeras mortes no deserto, tráfico de drogas e de
pessoas, violência, assassinatos de meninas e mulheres.

A fronteira física entre os EUA e México ajuda a escritora a criar maneiras diferentes de
enxergar e pensar; contudo a fronteira pode ser também secundária, pois, uma "cerca"
psicológica pode ser posta, (a)locando o sujeito à margem, ao tentar ocultar e negar sua
cultura e seu local geoistórico. A fronteira estabelece a vergonha para aqueles que estão
do lado de cá e a dignidade para quem está do lado de lá. Para Guerra (2017, p. 99), essa
distinção visível é o que alicerça os conflitos, “as tenções identitárias e a normalização de
esteriótipos”.

Na obra que estamos a estudar, é possível encontrar inúmeros enunciados que atestam
práticas de violência. Entres esses enunciados podemos verificar uma forte visada
feminista que mobiliza uma desconstrução de saberes comprometidos com o domínio
masculino. Podemos também observar muitos enunciados que são caracterizados pela
discriminação dos sujeitos indígenas; são situações em que a relação de poder busca
determinar a utilização do espaço, como a escola, para restringir o uso da língua

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estrangeira, a língua do outro (selvagem, estranho, estrangeiro) que está a margem. A
escola é entendida como um espaço institucional que promove o sujeito “civilizado”, um
sujeito-de-direito. Conforme Lagazzi (1988, p. 20), o sujeito-de-direito “ao mesmo tempo
em que se vê como ser único, senhor e responsável de si mesmo, ele é intercambiável
perante o Estado”. Ele exerce o seu poder por meio da asserção e da repetição. Essas
repetições e ações assertivas asseguram o logocentrismo, isto é, uma pespectiva
polarizada em que isso é bom e aquilo é mau, certo ou errado, heterossexual ou
homossexual, língua ou dialeto, objetivo ou subjetivo, “em que o primeiro é qualificado
como supererior ao segundo” (CORACINI, 2007, p. 53).

Para o processo analítico trazemos o excerto, codificado de R1 (recorte 1) em que, ao se


inscrever no discurso, o sujeito retoma passagens de sua história de vida, deixando aflorar
a voz do outro:

R1: Se você quer ser Americana, fale “americano”. Se você não gosta da
língua, volte para o México que é onde você deveria estar. (Tradução
nossa).4

Obersevamos que ao negar por meio do advérbio não, R1 desvela que o enunciado “Se
você não gosta da língua” carrega em si mesmo saberes antagônicos. O não funicona
como um rastro de que no interdiscurso existe um enunciado que diz o contrário, isto é,
há uma outra voz que afirma o que está negando. Nos dois enunciados, o sujeito designa
o outro de forma mostrada. Dessa maneira, o sujeito reivindica a autonomia de seu
discurso sob a forma da denegação do outro (AUTHIER-RÉVUZ, 1998). A partir de um
pensamento abissal, isto é, o pensamento moderno ocidental hegemônico, refutado por
Santos (2010), o sujeito é revestido pelo desejo de uma língua que alardeia o nacional,
cujo primado está relacionado ao puritanismo patriota, que considera a língua do outro
como uma estranha indesejada. Entendemos que essas práticas concernem a uma

violência “simbólica” encarnada na linguagem e em suas formas [...] essa


violência não está em ação apenas nos casos evidentes [...] de provocação e de
relações de dominação social que nossas formas de discurso habituais
reproduzem: há uma forma ainda mais fundamental de violência que pertence
à linguagem enquanto tal, à imposição de um certo universo de sentido. [...] há
aquilo a que eu chamo violência “sistêmica”, que consiste nas consequências
muitas vezes catastróficas do funcionamento regular de nossos sistemas
econômico e político (ZIZEK, 2014, p. 17).

O sujeito mulher chicana se torna alvo da violência simbólica, praticada por meio da
interdição e da hostilidade. O desrespeito que perpassa a violência é veiculado quando
R1 “passa a ser o outro, sem nome, sem terra, sem família, um bárbaro, que não tem
direito à hospitalidade da lei, do pacto, mas que pode ser alvo da hospitalidade absoluta”
(GUERRA, 2010, p. 32). Tal efeito de sentido se materializa no enunciado “Se você quer

4
If you want to be American, speak ‘American’. If you don’t like it, got back to Mexico where you belong.

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ser Americana, fale ‘americano’” que mostra a construção da deslegitimação do
estrangeiro quanto ao pertencimento à língua inglesa americana: fale na minha língua
para que seja compreendido, não fale em sua língua; volte para sua terra de origem. Se há
um dono, portanto, há um pedido de hospitalidade, e, se há hospitalidade, podemos
considerar que haja também a “hostipitalidade” derrideana, uma vez que aquele termo
não existe sem este.

Ora, concentrando-nos na temática, entendemos que o sujeito mulher chicana procura


lutar contra atitudes do oponente cuja tentativa, por meio da “hostipilidade”, visa até
mesmo a burlar as ações do governo. Para essa estratégia, muitas representações sociais
de cunho fundamentalista étnico e religioso são levadas em consideração. Uma língua
sem impurezas surge como um recurso para excluir os sujeitos que não estão atrelados ao
saber do colonizador, que impõe a sua monolíngua pela força e/ou pela lei para

interditar, lançar o sujeito – o outro quem se impõe e que submete – no entre-


dizeres, na interdição, ou melhor, no lugar confuso e sem dono do entre-
línguas, que significa entre-culturas, entre-outros, entre mim e o outro, que é
sempre “outros” (CORACINI, 2007, p. 47).

Foi o que aconteceu com os mexicanos que ainda hoje enfrentam uma profunda
dualidade, ancorada sobretudo entre a parceria econômica e os conflitos migratórios,
interligando temor e apatia por pessoas estranhas que vêm de fora do país, ou seja, a
xenofobia. A partir do século XX, uma nova organização social, dentro do capitalismo
industrial, tem sido erigida para alcançar todos os níveis da sociedade, transformando
culturas e construindo riqueza e pobreza, despertando “a ganância, a inovação e a
esperança, e ao mesmo tempo impondo o rigor e instilando o desespero” (CASTELLS,
2013, p. 17).

O texto nos leva para ambientes confliantes. A escrita de Anzaldúa é invadida de reflexões
profundas, alcançando o leitor em sua mais distinta vivência. O sujeito olha para si e
percebe-se mulher, chicana, nascida numa atmosfera de opressão e confusão. O seu local
geoistórico enuncia o seu desconforto para (sobre)viver e enfrentar as contradições:
buscar uma nacionalidade, não encontrar nenhuma, ou encontrar mais de uma, num
confronto do sujeito com o outro. Trata-se também de uma paisagem onde a pergunta
"Quem sou eu?" não é prontamente ou facilmente respondida. As restrições impostas por
questões culturais, por todas as suas pretensões de proteção, sufocam o sujeito. E em
muitos lugares o sujeito percebe essa tentativa de seu silenciamento. Enraizado na cultura,
a insistência em falar da e pela mulher chicana é, a todo momento, atualizada por
Formações Discursivas que estão atreladas às instituições religiosas. Isso inclui obedecer
sem questionar, manter o silêncio e essencialmente sufocar seus próprios seres.

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Em sua escrita, o sujeito rechaça as normatizações, normalizações, naturalizações e
binarismos sobre as sexualidades e os gêneros. Por isso citamos instituições religiosas,
dentre outras, por ser uma das instituições que fomenta discursos patriarcais, como
apreendido no recorte R2:

R2: O queer é o espelho que reflete o medo da heterossexualidade: ser


diferente, ser outro e, portanto, inferior, portanto sub-humano, humano, não
humano" (ANZALDUA, p. 40, grifos nossos)5.

De acordo com Michel Foucault (2014), há uma estratégia que tenta manter o controle
colocando pensamentos acusadores nas mentes das pessoas. Observamos um poder
distribuído, pouco ou quase nada explícito, mas que funciona em rede e promove a
docilidade e a submissão do sujeito. R2 demarca uma relação interdiscursiva com o
discurso da medicina e com o religioso. Algumas instituições religiosas podem colocar
em prática, atreladas ao livro bíblico de Deuteronômio, por exemplo, um poder
disciplinador e normalizador. De acordo com o livro, os ensinamentos devem ser
praticados a partir da ideia de que:
os mandamentos do SENHOR aos vossos filhos, conversando acerca deles
quando estiverdes sentados em casa e nos momentos em que estiverdes
andando pelos caminhos, ao deitardes e quando vos levantardes para um novo
dia; tu os escreverás nos umbrais da tua casa, e nas tuas portas
(DEUTERONÔMIO 11: 19-20).

Dentro desse campo de representações, há estratégias e táticas de poder para colocar e


manter fora as mulheres, os gays, as lésbicas, sob um guarda-chuva de marcas indeléveis
reatualizadas por um elemento de memória e reconhecimento. O sujeito social é associado
a “um conjunto de elementos que o caracterizam como o que deve ser banido sobre a
prerrogativa de que causa malefícios à sociedade” (FERNANDES, 2017, p. 19). O outro,
o queer, o sub-humano, o inferior carrega uma historicidade que promove a interação do
discurso do passado com o discurso do presente.

Foucault nos assevera que onde há poder há resistência. Assim, o sujeito mestizo
demonstra sua crítica ao pensamento abissal. A maioria de nós adere à autoridade porque
não tem conhecimento de que a autoridade deve se provar válida. As imposições
colocadas sobre o sujeito, neste trabalho a mulher chicana, vieram de uma necessidade de
controle, disfarçadas como o ato benevolente de "proteção". O pensamento ocidental
moderno diz que a mulher tem de ser protegida pelo homem, contudo esse pensamento
coloca a mulher em papéis rígidos e definidos, como dona de casa, a professora, mãe, etc.
Segundo Guerra (2008, p. 47), esse processo enunciativo, “constitui-se sob o primado do
interdiscurso: todo discurso produz sentidos a partir de outros enunciados já cristalizados
na sociedade”.

5
The queer are the mirror reflecting the heterosexual tribe's fear: being different, being other and therefore
lesser, therefore sub-human, in-human, non-human.

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Um outro aspecto da opressão, violência simbólica, das pessoas consideradas
"desviantes", que ora trazemos para a discussão do enunciado R2, é o medo envolvido na
necessidade de separação e de controle em relação ao estranho, o diferente, o “anormal”.
Há uma grande dificuldade em reconhecer que há mais de uma maneira de ser. As pessoas
temem o que é diferente, mesmo que sua existência como "outro" seja o que os define
como o que eles consideram "A Norma". O medo e a suspeita residem na possibilidade
de que o "outro" possa desafiar “o poder existente”. Daí nossa proposta de estudar os
sujeitos subalternos sob a articulação de problematizações discursivo-desconstrutivas e
transdisciplinares que (des)estabilizem a ideia de que a linguagem é operada por
binarismos, para compreendê-la como espaço de produção das relações que a cultura
estabelece entre corpo, sujeito e poder. A partir da qual se deve buscar tecer
deslocamentos, pois os sentidos não são sempre os mesmos, flutuam em um eterno vir a
ser (GUERRA, 2015).

CONSIDERAÇÕES FINAIS
Hoje, nós, mulheres indígenas, também buscamos
igualdade de gênero na política. O objetivo é seguir
mostrando que as mulheres também sabem sobre
política, dos saberes tradicionais, da cultura, de
educação e saúde; está na hora das mulheres
indígenas serem as protagonistas. (Josiane
Tutchiauna) 6

Com esses dizeres, marcamos a epistemologia crítica que perpassa este texto na direção
de entender o processo identitário da mulher indígena. Alicerçados em inúmeras políticas
públicas e iniciativas filantrópicas esses dizeres têm sido veiculados, de modo construir e
constituir um arcabouço de informações sobre os povos indígenas, especificamente pela
posição das mulheres indígenas no atual contexto em que vivemos.

O tema da inclusão social das minorias étnicas é objeto de reflexão pelo menos desde os
anos 60. Dele se ocuparam as teorias pós-coloniais e também as teorias sobre o sujeito
fronteiriço. Neste passo, os debates pós-coloniais parecem, ao rejeitar uma referência
direta a noção de cultura e etnicidade, aproximarem-se mais daquilo que nos parece o
cerne do problema: a compreensão das raízes da exclusão social. Em nossos entender, o
risco que essas abordagens trazem é aquele de reduzir o fenômeno da exclusão social à
herança pós-colonial das periferias.

6
Josiane Tutchiauna é mulher do povo ticuno e tem 36 anos. Desde os 12, acompanha os pais na militância
indígena. Graduanda em Antropologia Social, atua no âmbito das políticas educacionais e nas relações de
gênero e sexualidade. Ela relata os desafios das mulheres indígenas no Alto Solimões e revela como, pouco
a pouco, conseguiram quebrar tabus. Ver https://www.cartacapital.com.br/sociedade/o-que-pensam-cinco-
mulheres-indigenas-que-sao-lideranca-em-suas-comunidades. Acesso em 25 de fevereiro de 2018, às 10 h.

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Felizmente, abordagens críticas e desconstrutivas têm alcançado a academia e feito
mudanças, deslocando o pensamento abissal, a partir duma visada pós-abissal. Isso pode
ser entendido como o reconhecimento de que a exclusão social pode ser visualizada de
diferentes maneiras, ao delinearmos uma linha abissal ou não-abissal. De acordo com
Santos, para desbaratar a exclusão abissal é preciso confrontar qualquer alternativa
hegemônica (2010). Nessa esteira, entendemos que a escrit(ur)a de Anzaldúa vem
contemplar essa visada, engendrando o confronto e a desconstrução de estereótipos.

Diante desta análise preliminar, entendemos que o estranho, o queer, o gay e a lésbica
são temidos porque não estão incluídos na “cartografia urbana’ cuja zona é estabelecida
como civilizada (SANTOS, 2010, p. 37), ameaçando o poder daqueles que instituem o
“nós”. Esse processo analítico nos leva a dizer que a escrit(ur)a de Anzaldúa (d)enuncia
uma sociedade moldada historicamente por dispositivos dominadores com o intuito de
manter o homem em posições de referência.

Distante da aplicabilidade inócua e da repetição exaustiva de modelos fossilizados


(NOLASCO, 2013), intentamos desconstruir, (des)locar os alicerces do discurso
circulante sobre os indígenas trazendo à baila como este tem se configurado como
ferramenta de agenciamento de condutas, responsável pela formação de subjetividades,
que, em lugar de apagar diferenças dentro da esfera pública, reforça-as dando-lhes
visibilidade. Trata-se de um trabalho mobilizador de (re)leituras, (re)significações no
âmbito discursivo que nos instiga a modificarmos os valores sociais e históricos que nos
perpassam enquanto sujeitos, por estarmos submersos em uma cultura que enfatiza
poderes e saberes da hegemonia etnocêntrica.

Por fim, sabemos que a Análise do Discurso (AD) traça como propósito escavar os
vestígios normalizadores, dispersados nos discursos dos saberes, das instituições e,
consequentemente, investiga como os arranjos dos poderes corroboram o aparecimento
de acontecimentos discursivos (GREGOLIN, 2001). Nessa perspectiva, esperamos que
esse conhecimento, a partir dos sentidos da representação que o sujeito elabora sobre si e
sobre o outro, possa contribuir também para a discussão de “novas” formas de exclusão
e inclusão. O que vimos emergir na escrit(ur)a analisada são marcas visíveis, ou
silenciamentos, que caracterizam uma forma de violência ou perseguição, na busca de
uma excludente anulação do sujeito indígena, em favor da homogeneidade de uma etnia.

REFERÊNCIAS

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* Doutorando e mestre em Letras pela UFMS de Três Lagoas. Bolsista da CAPES. E-mail:
lajptinoco@gmail.com

** Pós doutora pela Universidade de Campinas sob a supervisão da Profa. Dra. Maria José Faria Coracini.
Docente permanente no Programa de Pós-graduação em Letras (mestrado e doutorado), da Universidade
Federal de Mato Grosso do Sul (UFMS) e pesquisadora do CNPq. E-mail: vguerra1@terra.com.br

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