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ISSN 1981-6987
ISBN
Em torno de roland
barthes:
da “morte do autor”
ao nascimento do
leitor
e à volta do autor
Eurídice Figueiredo
VICE-REITOR
Prof. Paulo Bayard Dias Gonçalves
EDITORA
Programa de Pós-Graduação em Letras
COMITÊ EDITORIAL
Amanda Eloina Scherer
Marcia Cristina Corrêa
André Soares Vieira
Graciela Rabuske Hendges
Larissa Montagner Cervo
Enéias Farias Tavares
Sara Regina Scotta Cabral
Pedro Brum Santos
PROJETO GRÁFICO
Lilian Landvoigt da Rosa
EDITOR RESPONSÁVEL
André Soares Vieira
DIAGRAMAÇÃO
Flavio Teixeira Quarazemin
Apresentação....................................................09
A volta do autor.................................................51
Considerações finais........................................65
Referências.......................................................68
Política editorial................................................73
Volumes publicados.........................................74
APRESENTAÇÃO
9
tor”. Talvez seja verdade, mas Barthes, um autor
sensível como ninguém às fórmulas da linguagem,
não usava palavras em vão e não deve ter usado
em vão o seu título. Com efeito, se o conteúdo da
reflexão pouco teria a ver com suas interpretações
futuras, o título a “morte do autor” replicava o ideo-
logema da iconoclastia rebelde dos anos sessenta,
com sua menção bombástica à morte do autor. Seu
artigo e o enraizamento de sua reflexão eram mais
profundos, mas mesmo assim o caráter iconoclasta
do seu título não passaria desapercebido às próxi-
mas gerações que trataram de alterar a reflexão de
Barthes em favor de suas próprias ideias.
O atual ensaio da professora Eurídice Fi-
gueiredo, que a Série Cogitare tem a honra de publi-
car, chega em um momento oportuno, quando uma
compreensão viciada da reflexão sobre a morte do
autor tende cada vez mais a se cristalizar em cli-
chês. De fato, ouve-se nas opiniões correntes – até
mesmo entre estudantes e pesquisadores - mais o
caráter bombástico do título do artigo de Barthes
(e de Foucault) do que qualquer reflexão seminal.
A morte do autor é com frequência associada, nes-
se contexto de leitura à revelia, à morte da “autori-
dade”, da hierarquia “cultural”. O autor não seria,
nesta leitura, senão a replicação servil, no terreno
mais restrito da alta cultura, da autoridade política
na hierarquia do poder político. Neste caso, a morte
do autor seria, para alguns, boa; para outros, péssi-
ma. Boa porque constituiria uma denúncia ao autor
instrumentalizado. Ruim porque seria uma destrui-
ção de constatações de ordem estética que tinham
certa autonomia em relação ao político. Nesse caso
o autor seria o “autor burguês” ou, ainda melhor, a
autoridade canônica contra a qual a geração ses-
sentista se insurge. Consequência: todas as gera-
ções seguintes, em ondas cada vez mais renovadas,
10
num processo histórico imitativo no qual proliferam
os slogans mais do que a reflexão, passam a re-
verberar, como ventríloquos apressados, a pulsão
simplificadora que de algum modo está no título do
artigo – embora não nas suas ideias.
O uso político do título do artigo de Bar-
thes – e de Foucault em particular – tornou-se um
problema. Contudo, como bem assinala Eurídice
Figueiredo, quando setores tradicionalmente con-
siderados progressistas dos estudos literários, acu-
saram o artigo de destruir a noção de autoria “no
momento em que a voz autoral feminina estava co-
meçando a crescer”, associando o próprio Barthes
a uma posição “falocrata-patriarcal que queria im-
pedir a eclosão da voz das mulheres”. A crítica femi-
nista, no caso, era apenas um dos exemplos em que
essa interpretação podia ser encontrada. Súbito, a
ideia de uma morte do autor estaria “despoderan-
do” a formação de um “anticânone” alternativo aos
que haviam sido erigidos pela modernidade român-
tica e moderna. Eurídice Figueiredo expressa sua
perplexidade diante dessas leituras que ela lê como
fruto da desinformação de alguns.
O atual ensaio de Eurídice Figueiredo é,
em parte, uma defesa das formulações mais com-
plexas e mais finas de Barthes. É um ensaio que ni-
tidamente se distancia da Babel interpretativa que
se enroscou ao redor das mágicas palavras “autor”
e “morte” – nas quais parece retinir ideias como “a
morte de Deus” (e outras). Entretanto, mais impor-
tante nesse ensaio é um instrumento notável para
a leitura do problema: Eurídice nos coloca a par de
como a reflexão sobre a autoria assumiu contornos
cada vez mais complexos na década de sessenta e
se desenvolveu por direções diferentes nas décadas
seguintes. Mais importante ainda, o ensaio consti-
tui uma notável limpeza de campo que é essencial
11
nesse momento: deveria ser lida por todo o aluno
que se inicia no assunto. Trata-se de um guia de cor-
reção do espírito.
Eurídice Figueiredo lembra, acerca do ar-
tigo de Barthes, que o problema da autoria era já
objeto de estudo de vários teóricos na época, en-
tre os quais Émile Benveniste. Embora Benveniste
não tenha tratado da morte do autor, ele apresen-
ta, em Problemas da linguística geral, de 1966, as
bases do pensamento linguístico que Barthes tem-
porariamente adota. Colocações como a de que a
subjetividade “não é mais que a emergência no ser
de uma propriedade fundamental da linguagem”
revelam a crescente centralidade do discurso no
pensamento. Nessa lógica, se o sujeito é proprieda-
de fundamental da linguagem, o que está em jogo
são justamente as posições entre eu e outro, que
só existem pela inscrição das “formas pronominais”
da língua. Nessa reflexão proposta por Benveniste,
o “eu” é instância do discurso, de modo que é atra-
vés da linguagem que o homem se constitui como
sujeito. Eurídice conduz a nossa atenção às várias
teorias do período, enfatizando, de um lado, como
elas privilegiam uma abordagem da linguagem na
constituição do sujeito e, por outro lado, dissolvem
o papel do sujeito como ator criativo “autônomo”.
É na teoria que Julia Kristeva desenvolve,
via sua leitura de Bakhtin, a noção de intertextua-
lidade: a intertextualidade marca o anonimato do
agente autoral que de fato se reduz ao código pelo
qual ele se constitui. Se todo o texto é parte da lín-
gua e se a língua é um código do qual não se pode
fugir, então a autoria e a subjetividade enquanto
tais são apenas um fenômeno secundário derivado
do código. A teoria da intertextualidade ressalta de
fato a recorrência linguística e tende a levar a uma
espécie de delírio do mesmo ou de repetição. Não
12
há lugar para o autor nesse processo, e a análise
textual torna-se necessariamente pluralista. Eurídi-
ce Figueiredo mostra que, na ampla discussão do
assunto, há, de um lado, uma negação da própria
antologia do sujeito enquanto tal – pois o próprio
eu não é formulável sem a linguagem – e, por outro
lado, há, por parte desses teóricos, uma tomada de
consciência cada vez mais notável dos “mecanis-
mos internos” da linguagem e mesmo da subjetivi-
dade que, na verdade, são apenas uma apropriação
renovada de discursos previamente construídos.
Por um lado, o próprio sujeito desaparece e, por
outro, coloca-se em seu lugar a intertextualidade,
uma espécie de coletividade retórica. Eurídice Fi-
gueiredo assinala um desenvolvimento semelhante
no pensamento de Jacques Derrida para o qual o
sujeito da escrita “é um sistema de relações entre
as camadas: do bloco mágico [de Freud], do psíqui-
co, da sociedade e do mundo”, de modo que o su-
jeito clássico ali não é mais encontrado. A escritura
constitui uma “disseminação”, um engendramento
e uma dispersão de sentidos. Em Blanchot encon-
trar-se-iam também alguns elementos que com-
pletam a reflexão de Barthes. A pergunta, feita por
Blanchot, de quem é Samuel Beckett, por exemplo,
é irrespondível, pois a escritura do teatro do absur-
do o colocou “para fora de si”, transformando-se em
algo que é de outra ordem.
Tais questões, como a autora assinala,
nos remetem ao chamado problema da represen-
tação, porquanto a escrita de si tradicionalmente
se pretendeu como uma forma de representação.
O nome de Mallarmé e de outros de seus contempo-
râneos é lembrado como casos sintomáticos dessa
crise. Para Mallarmé, com efeito, “a palavra não é
capaz de representar o referente”, pois seu caráter
de referente designa muito mais que a coisa que
13
está ausente. É fato que o interesse de Mallarmé
pela produção da obra pura o leva a ver a palavra
como significância que carrega do significante me-
nos do que seus referentes. Eurídice discute longa-
mente também o texto seminal de Michel Foucault,
lembrando suas diferenças com o de Barthes. Em
Foucault, o autor é tirado do centro tenso da escri-
tura, retirando “ao sujeito o papel de fundamento
originário e analisando-o como um função variável e
complexa do discurso.”
O conjunto desses teóricos constitui os
eventos contemporâneos à publicação de “A morte
do Autor”. No entanto é possível notar que houve,
a partir da formulação de Foucault, cada vez mais
uma historicização das reflexões sobre a autoria, a
qual, em Barthes, convém lembrá-lo, estava muito
mais inscrita numa indagação sobre a (não) perma-
nência ontológica do sujeito da escritura na sua
“obra”. A autora nos lembra que Compagnon bus-
cou colocar a formulação barthesiana no contexto
do momento de 1968, na esteira disseminadora da
desconstrução antiautoritária da primavera. O au-
tor teria sido identificado, segundo Compagnon, ao
indivíduo burguês, à pessoa psicológica, à vida e à
biografia do escritor. Eurídice discorda dessa leitura,
lembrando entre outras coisas que Barthes se man-
teve à distância dos movimentos de 1968.
Eurídice Figueiredo nos mostra que um dos
problemas que emergem no seio dessa discussão,
que está na verdade no centro vital da discussão
sobre o sujeito “autor”, é o problema da intencio-
nalidade. Rejeitar a intencionalidade é sem dúvida
criticar a ideia de uma vontade monolítica pré-freu-
diana que tem sob controle todas as funções da au-
to-interpretação. Segundo a autora, Barthes estava
ciente de que não é possível formular claramente a
centralidade de um sujeito monolítico, de modo que
14
mesmo isso a que chamamos de intenção do autor
não pode ser confundido com os efeitos de fato de
sua obra. Haveria entre o escrever e o ler, entre o
produzir e o produto, uma difração notável que reve-
la a fragilidade da escrita de si.
O que coroa paradoxalmente o ensaio
da professora Eurídice Figueiredo é sua delicada
descrição do que se poderia chamar a “virada” de
Barthes. De fato, Barthes estava tão imbuído do
problema da morte do autor que acabou, por vias in-
diretas, resgatando algo que é da ordem do sujeito
(e talvez até mesmo de alguma forma de autoria ou-
tra) e isso ocorre de um modo que é surpreendente
para nós e que foi certamente surpreendente para
aqueles contemporâneos de Barthes que acompa-
nharam a evolução de sua reflexão. Eurídice analisa
de forma cuidadosa e precisa o modo como Barthes
paulatinamente passa para uma escritura do sujei-
to. Assim em Sade, Fourier, Loyola, ele inventa, se-
gundo a autora, o neologismo “biografema”, o sinal,
a marca corporal, não obrigatoriamente fechada, de
uma narrativa que é “esburacada”... Barthes fala
de uma “volta amigável ao autor” que não é mais o
Autor institucional, mas um ente que reúne uma sé-
rie de encantos, pormenores fragmentários que são
como que fulgures rútilos repentinos que escapam
no meio da parafernália intertextual de todos os tex-
tos. O eu, se muito, era aquilo que apareceria como
um fulgor. A ideia surge numa forma quase irônica
em Roland Barthes por Roland Barthes, quando o
“autor” se refere aos “traços miúdos reunidos em
cenas fugidias”: uma escrita da anamnese, biogra-
femas vivos que Barthes desenvolverá quase na for-
ma de uma nostalgia corporal em muitos de seus
escritos, entre os quais o seu Fragmentos de um dis-
curso amoroso e no primoroso A câmara clara, no
qual a memória da mãe morta irrompe nas páginas
15
finais de um livro, um aparecimento que, contudo,
não era esperado – e assim surpreende até mesmo
por seu pathos cuja irrupção inesperada, melancó-
lica e desesperada, lembra o pathos de Montaigne
ao falar de seu amigo Étienne de la Boétie, cuja
morte, ele percebia, havia esvaziado inteiramente
seus dias.
O resgate sensacional da virada de Bar-
thes – esse novo olhar sobre o autor que já não é
mais o Autor – com o qual a professora Eurídice
Figueiredo nos regala, assim como o seu resgate
do contexto daquele seu texto seminal constitui ao
meu ver uma notável limpeza de campo – um tra-
balho necessário e esclarecedor, diria mesmo útil
para aqueles que se aventuram nesses meandros.
Se Barthes é um pouco culpado de ter sido tão mal
interpretado – afinal não é uma boa ideia dar nome
a um artigo de “morte do autor” – aqui temos um
antídoto ao wishful thinking de muitos críticos mo-
dernos que desconhecem ou não querem ver a vira-
da desse espírito e até dessa alma livre que foi a de
Roland Barthes.
16
INTRODUÇÃO
(Desfazer o clichê)
17
literatura, que avaliei para o CNPq, havia na biblio-
grafia o artigo do Barthes. O que estaria ele fazendo
naquele projeto? Será que a pessoa achava que o
autor tinha sido assassinado? Isso pode parecer
uma piada, mas desconfiei realmente de que o pes-
quisador não tinha lido o artigo, pois sua linha teó-
rica era bem outra e o artigo não fazia sentido na-
quele contexto. Mais recentemente, numa banca de
Doutorado, ouvi, de uma respeitada pesquisadora/
professora feminista, que o artigo de Barthes tinha
sido publicado no momento em que a voz autoral
feminina estava começando a crescer, ou seja, ela
atribuía a Barthes uma posição falocrata-patriarcal
que queria impedir a eclosão da voz das mulheres.
Ela falava sério. E para terminar a série de usos in-
discriminados da expressão meio boutade de Bar-
thes, eu citaria o artigo do José Castello, no seu blog
do jornal O Globo, postado no dia 8/4/2015, e inti-
tulado justamente “A morte do autor”. O post sequer
menciona o artigo de Barthes, e trata fundamen-
talmente do fato de autores brasileiros aceitarem
que seus livros sejam editados pelos tradutores
americanos, ou seja, que sejam adaptados. “O edi-
tor passa a ocupar, também, o papel do leitor, mais
ainda: o escritor escreve agora para se submeter ao
julgamento de seu editor” (CASTELLO, 2015). O que
contaria, para o escritor brasileiro, segundo o artigo,
é penetrar no mercado editorial norte-americano.
Em suma, o sucesso da fórmula de Barthes paga
o seu preço.
18
O INTERTEXTO DA “MORTE DO AUTOR”
Emile Benveniste
19
Assim, pois, é ao mesmo tempo original e fun-
damental o fato de que essas formas ‘pronomi-
nais’ não remetem à ‘realidade’ nem a posições
‘objetivas’ no espaço e no tempo, mas à enun-
ciação, cada vez única, que as contém, e refli-
tam assim o seu próprio emprego (BENVENISTE,
2005, p. 280).
Julia Kristeva
20
havia ainda a teoria do texto de Julia Kristeva, com
o conceito de intertextualidade, inspirado, segundo
ela, no dialogismo de Bakhtin. Como se sabe, Kriste-
va foi a introdutora do pensamento do autor russo na
França no início dos anos 1970. No artigo “A palavra,
o diálogo e o romance”, de 1966, publicado no livro
que no Brasil recebeu o título de Introdução à Se-
manálise, Kristeva discute o pensamento de Mikail
Bahktin acerca do romance. Aí se encontra a célebre
frase “todo texto se constrói como mosaico de cita-
ções, todo texto é absorção e transformação de um
outro texto” (KRISTEVA, 1969, p. 85) 4.
Algumas considerações de Kristeva con-
vergem com as ideias desenvolvidas por Barthes
sobre o autor, como, por exemplo, quando afirma
que o sujeito da narração se reduz “a um código, a
uma não-pessoa, a um anonimato (o autor, sujeito
da enunciação) que se mediatiza por um ele (o per-
sonagem, sujeito do enunciado)” (KRISTEVA, 1969,
p. 95) 5. O autor enquanto sujeito da narração se
metamorfoseia porque ele se inclui no sistema da
narração, sendo o mediador entre o sujeito (autor) e
o destinatário (leitor).
21
vazio é subitamente substituído por ‘um’ (ele,
nome próprio) que é dois (sujeito e destinatá-
rio). É o destinatário, o outro, a exterioridade (...)
que transforma o sujeito em autor, ou seja, que
faz passar o S [sujeito] pelo estágio de zero, de
negação, de exclusão que constitui o autor. As-
sim, no vaivém entre o sujeito e o outro, entre
o escritor e o leitor, o autor se estrutura como
significante e o texto como diálogo de dois dis-
cursos (KRISTEVA, 1969, p. 95)6.
22
(...); a análise textual é pluralista” (BARTHES, 2004b,
p. 285). O sujeito/autor é “clivado, deslocado sem
cessar – e desfeito – pela presença-ausência de seu
inconsciente” (BARTHES, 2004b, p. 288). Assinala
também a importância do leitor, ignorado pela críti-
ca clássica, que só se interessava pela produção da
obra e pela figura do autor.
Mikhail Bakhtin
23
tro leitor/crítico/comentador. Bakhtin distingue as
duas funções, um se torna independente do outro e
“veremos com absoluta evidência o quanto é incerto
o material que deve emanar dessas declarações do
autor sobre o processo de criação da personagem”
(BAKHTIN, 2003, p. 6).
É preciso enfatizar, como já fizera Proust,
a diferença entre o autor-criador e o autor-pessoa,
entre o autor subsumido no ato da criação e o es-
critor, sujeito empírico. Se o personagem, ainda que
autobiográfico, de um romance é acabado, o sujeito
empírico que, pretensamente, aí é representado, é
inacabado, ele está em constante devir, em cons-
tante transformação. Aquele personagem autobio-
gráfico já se desvinculou de sua origem, já se tornou
um dispositivo no processo de leitura, já é objeto do
olhar-leitor. Como escreve Bakhtin: “para viver preci-
so ser inacabado, aberto para mim – ao menos em
todos os momentos essenciais -, preciso ainda me
antepor axiologicamente a mim mesmo, não coin-
cidir com a minha existência presente” (BAKHTIN,
2003, p. 11).
Ainda que muitas vezes se tenda a con-
fundir o personagem autobiográfico com o escritor
real, é preciso reafirmar que o sujeito só se cons-
titui em confronto com o outro, a identidade não
existe sem alteridade. Assim, para escrever sobre a
própria vida o escritor tem de se tornar outro, tomar
distância e olhar o si com o olhar exterior; em ou-
tras palavras, para que haja mediação pela lingua-
gem é preciso haver dois em posição de confron-
to, de cotejo, quiçá de luta. Bakhtin sublinha essa
distância com muita argúcia quando escreve que o
autor “deve tornar-se outro em relação a si mesmo,
olhar para si mesmo com os olhos do outro” (BAKH-
TIN, 2003, p. 13). Ou ainda: “Um acontecimento es-
tético pode realizar-se apenas na presença de dois
24
participantes, pressupõe duas consciências que
não coincidem” (BAKHTIN, 2003, p. 20).
Jacques Derrida
25
socialidade da escrita como drama requer uma
outra disciplina (DERRIDA, 1967a, p. 335)7.
26
que viria se difratar ou se reunir numa literatura
polissêmica. É este conceito hermenêutico de
polissemia que se deveria substituir pelo de dis-
seminação (DERRIDA, 1972, p. 294).9
Maurice Blanchot
27
Inominável, um ser sem ser que não pode nem
viver, nem morrer, nem cessar, nem começar, o
lugar vazio em que fala a ociosidade de uma fala
vazia e que é recoberta, bem ou mal, por um Eu
poroso e agonizante (BLANCHOT, 2005, p. 312).
28
(MALLARMÉ, 1945, p. 366) 10.
29
o escritor com seus deveres, suas satisfações
e seus interesses, mas que se torne ninguém,
o lugar vazio e animado onde ressoa o apelo da
obra” (BLANCHOT, 2005, p. 316).
30
paço para o leitor, contrapondo-se, assim, à História
da Literatura que se fazia na França, a qual privile-
giava o autor e a obra.
Michel Foucault
31
marca do escritor não é mais do que a singularidade
da sua ausência” (FOUCAULT, 1992, p. 36).
Ele afirma que não basta falar da morte do
autor, o conceito de obra é tão problemático quanto
a individualidade do autor. Não basta questionar a
intencionalidade do autor (o seu querer dizer), não
basta atribuir à crítica um papel hermenêutico ou
exegético, o desaparecimento do autor está subme-
tido “à clausura transcendental” (FOUCAULT, 1992,
p. 41). Para Foucault, trata-se, pois, de “localizar o
espaço deixado vazio pelo desaparecimento do au-
tor, seguir de perto a repartição das lacunas e das
fissuras e perscrutar os espaços, as funções livres
que esse desaparecimento deixa a descoberto”
(FOUCAULT, 1992, p. 41).
Barthes, em artigo de 1971, também cri-
tica o uso do termo “obra”, preferindo sempre falar
de texto. “O texto é plural. Isso não significa apenas
que tem vários sentidos, mas que realiza o próprio
plural do sentido; um plural irredutível” (BARTHES,
1988, p. 74). Enquanto a obra estaria presa a um
processo de filiação, em que o autor é o seu pai e
proprietário, o texto é lido sem a inscrição do Pai,
numa relação com outros textos (intertextualidade).
O autor, ao se colocar no romance, por exemplo,
torna-se um “autor de papel”, “o eu que escreve
o texto, também, nunca é mais do que um eu de
papel” (BARTHES, 1988, p.76). Ao fazer isso, Fou-
cault e Barthes dessacralizavam tanto a figura do
autor quanto o estatuto da obra literária. No entan-
to, se para Foucault esse esvaziamento se dava em
proveito de uma compreensão do discurso como
acontecimento, fazendo parte de um processo mui-
to mais coletivo e histórico, para Barthes essa des-
sacralização tirava o foco da produção textual para
visar a recepção (o leitor).
Um aspecto que Foucault focaliza com
32
destaque, diferentemente de Barthes e Blanchot,
é a questão do nome do autor, que não é a mes-
ma coisa que o nome de uma pessoa qualquer; um
nome de autor exerce uma função classificatória
que serve para delimitar um certo corpus (a obra
de tal autor) e determinar a sua recepção pelo pú-
blico leitor. “A função autor é, assim, característica
do modo de existência, de circulação e de funciona-
mento de alguns discursos no interior de uma socie-
dade” (FOUCAULT, 1992, p. 46). O autor (ou, o que
Foucault chama de função autor) surgiu no fim do
século XVIII quando se instaurou um regime de pro-
priedade dos textos: do lado negativo da questão, o
autor se tornou responsável por seus livros, poden-
do ser punido por suas transgressões (basta pensar
nas ameaças aos filósofos como Voltaire, Rousseau,
Diderot); do lado positivo, ele adquiriu uma certa
aura (até mesmo por suas transgressões).
Na mesma época operou-se um quiasma
entre a produção científica, que perde a função au-
tor, e a produção literária, em que se exacerba a
função autor. A formação do autor tem a ver com a
projeção, “em termos mais ou menos psicologizan-
tes, do tratamento a que submetemos os textos, as
aproximações que operamos, os textos que estabe-
lecemos como pertinentes, as continuidades que
admitimos ou as exclusões que efetuamos” (FOU-
CAULT, 1992, p. 51). A prática crítica se aproxima
das técnicas usadas na exegese cristã, com critérios
semelhantes àqueles empregados por São Jerôni-
mo (valor, coerência conceptual ou teórica, unidade
estilística e momento histórico).
De um ponto de vista mais formal, o tex-
to tem signos que remetem à função autor, como
os pronomes pessoais, os advérbios de tempo, a
conjugação verbal. No romance há algumas con-
venções que atestam que o eu não remete ao au-
33
tor real, empírico, mas a um narrador ou a um alter
ego. “Seria tão falso procurar o autor no escritor real
como no locutor fictício; a função autor efetua-se na
própria cisão – nessa divisão e nessa distância”.
Em suma, “todos os discursos que são providos da
função autor comportam esta pluralidade de ‘eus’”
(FOUCAULT, 1992, p. 55). A proposta de Foucault
em relação ao autor é “retirar ao sujeito (ou ao seu
substituto) o papel de fundamento originário e de o
analisar como uma função variável e complexa do
discurso” (FOUCAULT, 1992, p. 70).
Como se pode ver, tanto Barthes quanto
Foucault esvaziaram a função autor de sua carga de
sujeito pleno e detentor da origem e do sentido do
texto, colocando o texto em relação e em circulação
com outros textos; ao mesmo tempo, eles esvazia-
ram a carga psicologizante da crítica biográfica que
buscava explicações vivenciais aos sentidos que
emanavam do texto. O discurso sobre o autor em
Foucault se situa no campo da História porque ele
trata tanto do autor de textos literários quanto do au-
tor das Ciências; a discussão está centrada na fun-
ção-autor, ou seja, no papel desempenhado social-
mente pelo autor enquanto produtor de discursos.
Barthes assinala que o aparecimento do
autor está associado ao humanismo moderno, ini-
ciado no Renascimento, e deriva da ideia mesma de
“pessoa humana” (BARTHES, 1988). Aqui há uma
confluência do pensamento de Barthes com o de
Foucault, que mostra as transformações ocorridas
na era clássica, ensejando o surgimento da figura
do autor (de literatura). Ele diz que
34
não levantava dificuldades, a sua antiguidade,
verdadeira ou suposta, era uma garantia sufi-
ciente (FOUCAULT, 1992, p. 48).
35
A RECEPÇÃO CRÍTICA DA “MORTE DO
AUTOR” NA FRANÇA
36
colocar em questão a noção de autor (substituindo-a
pela de scripteur [escrevente], faz algo semelhante,
mas nem por isso pratica de fato a coisa” (LEJEUNE,
1975, p. 34; 2008, p. 34 para esta tradução). E atri-
bui ao conjunto dos participantes de Tel Quel uma
noção que é de Barthes, entendendo que “a morte
do autor” seria sinônimo de obra anônima13. Philippe
Roger, no debate após minha apresentação de par-
te deste texto no colóquio “Roland Barthes plural”,
contou uma anedota: disse que foi convidado a falar
sobre o artigo de Barthes “A morte do autor” em um
evento sobre o anonimato em obra de arte em um
museu de Genebra, o que demonstra que os mal-
-entendidos sobre o significado do texto continuam.
Já Antoine Compagnon usa a afirmação de
Barthes de que o aparecimento do autor está asso-
ciado ao humanismo moderno, iniciado no Renasci-
mento (ideia que é, aliás, muito mais desenvolvida
por Foucault), como um dado ideológico que teria
levado Barthes a “matar” o autor. “Esse era o ponto
de partida da nova crítica: o autor não era senão
o burguês, a encarnação da quintessência da ide-
ologia capitalista” (COMPAGNON, 2010, p. 50). Ele
associa a morte do autor aos acontecimentos de
maio de 1968.
37
a história literária sugeria, sem dúvida, mas que
não recobre certamente todo o problema da in-
tenção, e não o resolve em absoluto (COMPAG-
NON, 2010, p. 51)14.]
38
leitor como substituto do autor de que se estaria fa-
lando?” (COMPAGNON, 2010, p. 52). Sua pergunta
não deixa de ter sentido embora as respostas, de-
pendendo do autor que as faça, formem um grande
emaranhado. Entretanto, o que parece irrefutável é
o fato de o leitor não substituir o autor; o que ele faz
é atualizar o sentido do texto e, nesse sentido, ele
faz viver o texto, como o instrumentista que, tocan-
do a partir da partitura, faz pulsar a música.
39
INTENCIONALIDADE DO AUTOR OU
ATO DE LEITURA?
40
posição hierarquizada, o leitor não é livre de enten-
der a seu modo o texto, ele é forçado a descobrir o
que o autor quis dizer. Barthes volta a essa questão
em “Da obra ao texto” (de 1971) em que ele assina-
la que se considera que o autor é o pai e proprietário
de sua obra (que, neste artigo, ele distingue do tex-
to, que estaria mais aberto ao leitor).
Em Crítica e verdade (que é de 1966, por-
tanto, anterior ao artigo “A morte do autor”) Barthes
já refletia sobre a relação autor-leitor, criticando a
ideia, muito comum, de que o escritor detém o sen-
tido de sua obra. É curioso como a doxa continua na
academia nos dias de hoje: basta pensar em como
nossos estudantes (nossos colegas?) usam a en-
trevista do escritor para provar “a verdade” do que
é dito no texto. Ora, não podemos acreditar em tudo
o que diz o escritor em suas entrevistas; por outro
lado, o que fazer quando se trata de escritor morto?
A busca do sentido do texto torna-se uma tarefa in-
sana porque, como afirma Barthes, se quer “fazer
falar o morto ou seus substitutos, seu tempo, seu
gênero, o léxico, em suma, tudo o que é contempo-
râneo do autor, proprietário por metonímia do direito
do escritor passado sobre sua criação” (BARTHES,
1966, p. 59)15.
Barthes distingue o leitor do leitor-crítico,
um leitor já escritor, que vai fazer não uma tradu-
ção ou uma explicação do texto, mas uma perífra-
se; ele não pode pretender atingir “o fundo da obra
porque esse fundo é o próprio sujeito, quer dizer,
uma ausência”; esse fundo não é nem um “explícito
puro” que, ao ser encontrado, nada mais haveria a
dizer sobre o texto, nem um “segredo último”, que,
igualmente, se pudesse ser encontrado, nada mais
15 Tradução minha. (...) on veut à tout prix faire parler le mort ou
ses substituts, son temps, le genre, le lexique, bref tout le contem-
porain de l’auteur, propriétaire par métonymie du droit de l’écrivain
passé sur sa création.
41
haveria a buscar; em suma, “o que quer que se diga
da obra, nela resta sempre, como em seu primeiro
momento, linguagem, sujeito, ausência” (BARTHES,
1966, p. 72)16. E o leitor é aquele sujeito atravessa-
do pelas múltiplas linguagens do texto (BARTHES,
1988, p. 51).
Giorgio Agamben, retomando as reflexões
de Benveniste e Foucault em seu livro O que resta
de Auschwitz, e ainda que não cite Barthes, vai no
mesmo sentido afirmando que se a filosofia levar a
sério o fato de o eu ser uma função discursiva, “eu
falo”, isso significa “deixar de pensar a linguagem
como comunicação de um sentido ou de uma ver-
dade por parte de um sujeito que é seu titular e seu
responsável”. Desse modo, a intencionalidade des-
se sujeito já está comprometida porque no lugar do
sujeito está um vazio.
42
lugar, ou o ter lugar, “está no gesto no qual autor e
leitor se põem em jogo no texto e, ao mesmo tem-
po, infinitamente fogem disso. (...) Pois tão ilegítima
quanto a tentativa de construir a personalidade do
autor através da obra é a de tornar seu gesto a cha-
ve secreta da leitura” (AGAMBEN, 2007, p. 62-63).
43
O ATO DE LEITURA E A ESTÉTICA DA
RECEPÇÃO
44
organizou sobre a estética da recepção, a importân-
cia da leitura nas análises de Iser, tendo em vista
a indeterminação do texto, ou seja, o texto ficcional
contém vazios que devem ser preenchidos no ato de
leitura. Citando parcialmente Iser, ele escreve:
45
O outro autor da estética da recepção,
Hans Robert Jauss, enfatiza o papel da leitura ao
longo da história. No livro Por uma estética da re-
cepção17, ele compara a obra a uma partitura musi-
cal que deve ser interpretada, como fez Barthes no
artigo “Da obra ao texto” (de 1971).
46
Muito criticado por Raymond Picard, que
representava, justamente, a exegese histórica pra-
ticada na Sorbonne, Barthes respondeu-lhe no livro
Crítica e verdade, explicitando seu esforço de liberar
a obra das limitações da intencionalidade; ao fazer
isso, ele pode reencontrar o “tremular mitológico
dos sentidos” (BARTHES, 1966, p. 60). O mundo
se transforma, a obra permanece inalterada, mas
não é lida mais da mesma maneira; a percepção do
público que vai hoje à Comédie Française assistir
a uma peça de Racine não é a mesma da do públi-
co do século XVII, nem a interpretação dos atores é
a mesma. Cabe ao leitor/espectador assegurar ou
não perenidade às obras do passado tendo em vis-
ta a possibilidade de elas continuarem significando
algo, continuarem suscitando emoção e reflexão. No
prefácio a Sobre Racine (que é de 1960), Barthes
reflete sobre a recepção ao longo da história:
47
(e da chamada nova crítica francesa naquele mo-
mento) com a de Iser e Jauss assinala a pertinência
de valorizar a função do leitor na cadeia autor-obra-
-leitor. Jauss entende que o sentido ou a resposta
que o leitor depreende podia estar colocado no texto
de maneira ambígua ou totalmente indeterminada.
É, aliás, pelo grau de indeterminação que se mede a
eficácia estética da obra e, portanto, sua qualidade
artística; então, questionar “a morte do autor” de
Barthes com o argumento hermenêutico de inten-
cionalidade do autor não leva em conta, justamente,
a polissemia e a ambiguidade do texto.
Como afirma Jean Starobinski no prefácio
do livro de Jauss, “a figura do destinatário e da re-
cepção da obra está, em grande parte, inscrita na
própria obra, em sua relação com as obras prece-
dentes que foram conservadas a título de exemplos
e de normas” (STAROBINSKI, 1978, p. 13). Esse
contínuo, estudado por Jauss através de conceitos
como o de “horizonte de expectativa”, estava implí-
cito na obra de Barthes. Barthes não era um filóso-
fo, não elaborou sistemas de pensamento; ensaísta,
ele trabalhava, como em suas aquarelas, por finos
traços, por insights gloriosos que lhe garantiram o
sucesso no mundo intelectual e, ao mesmo tempo,
provocaram algumas polêmicas. O título “A morte do
autor”, uma boutade, sem dúvida, se prestava para
os mal entendidos gerados e, por essa razão, ele
voltou inúmeras vezes a essa questão, inclusive no
seu último curso, A preparação do romance II.
Jean-Paul Sartre
48
(Que é a literatura?), publicado em 1948, que se in-
sere no âmbito da Fenomenologia, como a obra de
Iser, com a qual mantém algumas semelhanças21.
Sartre afirma que o objeto literário é um
estranho pião que só existe em movimento; para
fazê-lo surgir é preciso um ato concreto que se cha-
ma leitura e ele só dura enquanto durar a leitura
(SARTRE, 1948, p. 52) 22. Em outras palavras, é o
ato de leitura que atualiza e dá vida ao texto escrito
que, sem esse sopro de vida, é só um amontoado
de traços. Os processos mentais do leitor são dife-
rentes dos processos mentais do autor; enquanto o
leitor aguarda, ansioso, o desenrolar do narrado, o
autor compõe com palavras aqueles acontecimen-
tos narrados.
Talvez a crítica que se poderia fazer a Sar-
tre se relaciona com o fato de ele acreditar que o
escritor conhece as palavras antes de escrevê-las.
Barthes (e outros pensadores como Derrida) diria
que as palavras surgem no momento mesmo da
composição, ou seja, o autor não sabe o que vai es-
crever enquanto não escreve efetivamente. O autor
conhece as palavras, é claro, mas não sabe que pa-
lavras vai empregar, não tem um controle absoluto
sobre o processo. O autor projeta e controla sem dú-
vida, mas muita coisa lhe escapa, foge a sua inten-
ção. Enquanto teórico da fenomenologia, Sartre não
podia deixar de pensar na intencionalidade, como
faz, também, Compagnon.
Não obstante todas as diferenças, deriva-
das de posições filosóficas diferentes, Sartre já pos-
21 Barthes nutria grande admiração por Sartre no início de sua
carreira, admiração que nunca encontrou ressonância em Sartre,
que preferiu ignorá-lo.
22 Tradução minha. Car l’objet littéraire est une étrange toupie,
qui n’existe qu’en mouvement. Pour la faire surgir, il faut un acte
concret qui s’appelle la lecture, et elle ne dure qu’autant que cette
lecture peut durer.
49
tulava a indissociabilidade entre criador e leitor. Se
o autor escrevesse e não tivesse leitor, seu produto
seria nulo porque “a operação de escrever implica a
de ler como seu correlato dialético e esses dois atos
conexos necessitam de dois agentes distintos. É o
esforço conjugado do autor e do leitor que fará sur-
gir esse objeto concreto e imaginário que é a obra
do espírito. Só existe arte para e por outro” (SARTRE,
1948, p. 55). 23
O ato de leitura para Sartre não é uma ope-
ração mecânica, ele desvela o objeto literário e, ao
desvelar, o leitor se torna também um criador, pois à
medida que vai desvelando, ele vai inventando junto
com o autor, que funciona como um guia. Já que a
escrita só se perfaz na leitura, já que é através da
consciência do leitor que o autor pode se perceber
como essencial à sua obra, toda obra literária, para
Sartre, é um apelo. Para Sartre, sem o leitor o autor
não vive, ou em termos que empregaria Barthes, o
autor morre para ceder lugar ao leitor que, ele sim,
dará vida à sua obra.
50
A VOLTA DO AUTOR
51
contemporâneos, que conheceu bem (como Bau-
delaire), tendendo a preferir os medíocres, os que
agradavam o público de sua época.
Além dessa confusão entre o escritor em-
pírico e o escritor-criador, a crítica biográfica tentava
detectar a voz do autor, que faria confidências de
maneiras mais ou menos disfarçadas pela ficção. É
contra a escuta dessa voz que se colocou Barthes,
preferindo privilegiar, como Mallarmé e Valéry, a lin-
guagem, ou seja, como o sujeito é falado pela lin-
guagem. Como já dizia o próprio Proust, e que seria
retomado por Barthes, o que conta na literatura não
é propriamente o que está nas palavras, mas o que
está entre as palavras (PROUST, 1954, p. 157).24
Para Barthes a “escrita é a destruição de
toda voz, de toda origem. A escrita é esse neutro,
esse composto, esse oblíquo aonde foge o nosso
sujeito, o branco-e-preto onde vem se perder toda
identidade, a começar pela do corpo que escreve”
(Barthes, 1988, p. 65)25. Assim, a partir do momen-
to em que o narrado se torna texto e é dado ao públi-
co, começa a morte do autor. Ao tirar o foco do autor,
Barthes privilegiava o leitor, aquele que teria o en-
cargo de dar sentido ao texto no processo de leitura:
“o leitor é o espaço mesmo onde se inscrevem, sem
que nenhuma se perca, todas as citações de que é
feita uma escrita; a unidade do texto não está em
sua origem, mas no seu destino” (Barthes, 1988, p.
70). O leitor encarna essa travessia ou esse atraves-
samento de textos e linguagens; o leitor pode ser,
em última instância, um escritor, porque ninguém
se torna escritor sem ser leitor, o desejo de escre-
24 Tradução minha. “Seulement ce n’est pas dans les mots, ce
n’est pas exprimé, c’est tout entre les mots, comme la brume d’un
matin de Chantilly ».
25 Tradução modificada por mim. O tradutor usa a palavra “escri-
tura” para écriture; eu prefiro usar “escrita”, termo mais comum da
língua portuguesa. Creio que esta é a tendência atual.
52
ver nasce da leitura, como assinalou com acuidade
Kristeva no seu conceito de intertextualidade que
considera que o texto é um “mosaico de citações”.
O retorno do autor começa no livro Sade,
Fourier, Loyola, no qual Barthes cunha o neologis-
mo “biografema”. Ele considera nos três autores
estudados apenas alguns traços corporais26, assim
como ele destacara, na biografia de Michelet, a en-
xaqueca do historiador; “o sujeito é disperso, um
pouco como as cinzas que se atiram ao vento após
a morte”. Da mesma maneira, ele sonha que, após
a sua morte, algum biógrafo faça dele uma biografia
“esburacada”, reduzida “a alguns pormenores, a al-
guns gostos, a algumas inflexões, digamos: ‘biogra-
femas’” (BARTHES, 2005a, p. xvii).
53
Chamo de anamnese a ação – mistura de gozo e
de esforço – que leva o sujeito a reencontrar, sem
o ampliar nem o fazer vibrar, uma tenuidade de
lembrança: é o próprio haicai. O biografema (ve-
ja-se SFL, p. 13) nada mais é do que uma anam-
nese factícia: aquela que eu atribuo ao autor que
amo (BARTHES, 2003, p. 126. Grifos do autor).
54
Roland Barthes, um livro de fragmentos, em forma
de aforismos, máximas, anamneses, comentários
ensaísticos, no qual predomina o uso da terceira
pessoa. Há nele um hibridismo genérico que mistu-
ra ensaio, fotografia e recordações pessoais. Não é
confessional, trata de alguns assuntos como amor
e sexo de maneira distanciada; em alguns poucos
momentos podem-se sentir os afetos que o movem,
seu sentimento de ser marginal quando diz que o
natural na França é ser católico, casado e ter um
bom diploma, ou seja, tudo o que ele não era 28.
Apesar de todas as denegações, o livro
fornece muitos dados autobiográficos através da
“encenação de um imaginário” (BARTHES, 2003, p.
121) em diferentes graus: canhoto, nulo em Mate-
mática, ele era leitor mais de Literatura do que de
Ciências e Filosofia e leu muito menos do que um
autor de grande cultura deveria ter lido. Algumas
lembranças de infância são evocadas: ficou sozinho
em um buraco e teve de ser salvo pela mãe, tomou
banho de mar e se queimou com as medusas, re-
memora os odores da cidade natal, Bayonne. É ver-
dadeiramente uma autobiografia esburacada, como
ele queria, com biografemas selecionados.
O destaque em termos autobiográficos
seriam as fotografias presentes no início do livro:
através das fotos o leitor tem a genealogia do autor,
os ancestrais, a mãe, o pai, o próprio Barthes em
todas as idades, fotografias que o “sideram” (que
pungem?). As legendas se encontram em defasa-
gem em relação às imagens: ora remetem a um
outro tempo (diante das fotos dos avôs jovens, o
comentário se refere ao fim da vida deles), ora re-
metem ao segundo plano, onde estaria o punctum
28 Apesar de seu brilhantismo e de seu sucesso, Barthes se res-
sente (talvez) de algumas frustrações referentes aos diplomas e
cargos que não obteve devido à tuberculose que o acometeu em
1934 e o perseguiu ao longo da vida.
55
(a empregada no fundo o fascina, a moita atrás de
sua foto adolescente evoca cenas de sexualidade
infantil). Aí está o pai, morto durante a guerra, as-
sunto que reaparece na passagem sobre o Liceu
Louis-le-Grand. A ausência de pai, como no caso
de Sartre (As palavras) e de Camus (O primeiro ho-
mem), teria significado falta de conflito edipiano? As
fotos da infância conduzem à obra de Proust, seu
quase contemporâneo, seu duplo ideal: ele gostaria
de escrever sua autobiografia “esburacada”, como
Proust (BARTHES, 2005a, p. xvii). Diante de suas fo-
tos mais atuais, simplesmente a impossibilidade de
se reconhecer, colocando o problema da identidade
(quem sou eu?). Ele lê em suas fotos tristeza e tédio.
Escrever uma autobiografia é forçosamen-
te passar pelo Imaginário, se imaginar e se repre-
sentar, o que Barthes procura evitar através de uma
escrita fragmentada e díspar, já que os fragmentos
têm caráter diferente, passando do aforismo à máxi-
ma, do ensaio à anamnese, da revisão de sua obra
a seus projetos futuros. E, no entanto, ao se dar
conta do sentimento de insegurança que o toma no
momento em que escreve, devido à total liberdade
que tem após ter abandonado todos seus mentores
e/ou ciências tutelares (marxismo, psicanálise, lin-
guística, semiologia) ele afirma que cai no pior ima-
ginário, o psicológico (BARTHES, 2003, p. 118).
O sujeito desdobrado que busca assinar
seu imaginário no livro se esforça para se desviar
da imagem fixa, joga lucidamente com aspas, pa-
rênteses, ironias, mas percebe que “o imaginário
vem a passos de lobo, patinando suavemente sobre
um pretérito perfeito, um pronome, uma lembrança,
em suma, tudo o que pode ser reunido sob a própria
divisa do Espelho e de sua Imagem: Quanto a mim,
eu” (BARTHES, 2003, p. 120-121).
A relação autobiografia e imaginário apare-
56
ce assim: há um constrangimento do autor em falar
de si e, de outro lado, há o fantasma do leitor pre-
sumido, cuja complacência não pode ser medida de
antemão. Uma certa vergonha ou timidez do autor
se manifesta também em função da probabilidade
de um olhar (voyeur) que o objetaria. O jogo do olhar
pode ser tanto de reconhecimento quanto de reifi-
cação e o autor, ao produzir sua autobiografia, não
controla as reações de seus prováveis leitores.
Régine Robin considera que se trata de
“um biográfico sem biografia, de um imaginário es-
vaziado de toda imago”; se o eu tem dois aspectos,
o si (soi) e o eu (moi), o si corresponde ao fixo e ao
acabado, o eu é aberto ao inacabado, ao biografe-
ma, ao indecidível (ROBIN, 2004, p. 63). Robin as-
simila assim o si (soi) ao studium e o eu (moi) ao
punctum, o si (soi) à biografia (na sua completude) e
o eu (moi) ao biografema (ao fragmentário, ao deta-
lhe). Para Barthes, a subjetividade não se confunde
com o narcisismo, nem se opõe à objetividade: “o
sujeito se coloca alhures, e a ‘subjetividade’ pode
voltar num outro trecho da espiral: desconstruída,
desunida, deportada, sem ancoragem: por que eu
falaria mais de ‘mim’ já que ‘mim’ não é mais ‘si’?”
(BARTHES, 2003, p. 185). Françoise Gaillard acen-
tua que o livro não é propriamente uma autobiogra-
fia, mas uma biografia do eu, restituindo à palavra
biografia o seu sentido etimológico, em que bio de-
signa a “vida no que tem de mais orgânico: o corpo”
(apud DOSSE, 2009, p. 308).
Em oposição à metafísica clássica, que
não tinha medo de falar de dois homens dentro de
si (que acabavam se reconciliando), Barthes afirma
que falar do sujeito dividido hoje significa outra coi-
sa: “é uma difração que se visa, uma fragmentação
em cujo jogo não resta mais nem núcleo principal,
nem estrutura de sentido: não sou contraditório,
57
sou disperso” (BARTHES, 2003, p. 160). A questão
que se coloca aqui diz respeito não propriamente
ao sujeito-autor, mas ao sujeito tout court, o sujeito
fragmentado, que vai além da simples contradição
porque são muitas as pontas que constituem seu
ser, o eu é uma invenção constante em seu devir.
“Não digo: ‘Vou descrever-me’, mas: ‘Escrevo um
texto e o chamo de R.B.’. Dispenso a imitação (a
descrição) e me confio à nominação. Então eu não
sei que no campo do sujeito não há referente?”
(BARTHES, 2003, p. 69).
Há um certo pudor de Barthes em falar
de si, como se não fosse realmente autorizado a fa-
zê-lo, como se isso fosse reservado ao espaço do
diário (ou do romance, quando mediatizado por um
personagem). Aliás, a primeira frase do livro (no ver-
so da capa da edição francesa) é: “Tudo isto deve
ser considerado como dito por um personagem de
romance”, ou seja, ele toma distância de si, ou me-
lhor, pede que o leitor tenha um recuo em relação
à identidade autor-narrador-personagem. O livro se-
ria uma exposição de seu Imaginário. “Em seu grau
pleno, o Imaginário se experimenta assim: tudo o
que tenho vontade de escrever a meu respeito e que
finalmente acho embaraçoso escrever. Ou ainda: o
que só pode ser escrito com a complacência do lei-
tor” (BARTHES, 2003, p. 122).
Pergunta de Barthes no artigo “Deles a
nós”, publicado nos Inéditos, vol. 2. Crítica: “como
escrever sem ego? É minha mão que traça, não a
do vizinho” (BARTHES, 2004c, p. 224). O que não
é mais possível na modernidade: o ego, a narrati-
va. Mas Barthes deixa isso um pouco para trás e
sem querer voltar ao sujeito clássico, ele abandona
a atitude arrogante do passado. “Sem renunciar a
ser moderno, Barthes defende uma volta ao sujeito
cuja ambiguidade de certas formulações oculta a
58
plena epifania”29. Ou seja, há “uma verdadeira rea-
bilitação da subjetividade” (COSTE, 2009, p. 40). É
impossível escrever sem ego. Para Coste, o ego faz
uma volta através da palavra corpo, que lhe dá uma
forma aceitável, diferente do cogito cartesiano e do
“ça parle” de Lacan, sujeito do inconsciente. “Mas,
sobretudo, graças ao corpo, é justamente o ‘sujei-
to’ como totalidade que se encontra restaurado na
sombra vergonhosa de um ego que não disse sua
última palavra” 30 (COSTE, 2009, p. 41).
E já que é o corpo que define o novo su-
jeito barthesiano, há um ponto do corpo que trai a
precariedade da felicidade: a dor de cabeça. A ca-
beça: lugar simbólico da vida intelectual. No caso
de Barthes: a hiperatividade intelectual, próxima da
autoanálise e da lucidez de Valéry. “Meu corpo só
existe para mim mesmo sob duas formas correntes:
a enxaqueca e a sensualidade” (BARTHES, 2003, p.
74). Esses dois polos, da dor e do prazer, individu-
alizam seu corpo. O conhecimento e o sentimento
passam pelo corpo, um corpo que impõe desejos,
impulsos e limitações. O sujeito não controla seu
inconsciente, não controla sua fala, não podendo,
portanto, ter qualquer certeza sobre a autenticidade
do que diz. A inocência de Rousseau, que acreditava
poder dizer toda a verdade nas Confissões, foi per-
dida na avalanche das considerações teóricas de
Freud, Marx, Nietszche com as quais Barthes está
em sintonia profunda.
59
porque ele seja insincero, mas porque temos
hoje um saber diferente do de ontem; esse sa-
ber pode ser assim resumido: o que escrevo de
mim nunca é a última palavra: quanto mais sou
‘sincero’, mais sou interpretável, sob o olhar de
instâncias diferentes das dos antigos autores,
que acreditavam dever submeter-se a uma úni-
ca lei: a autenticidade. Essas instâncias são a
História, a Ideologia, o Inconsciente. Abertos
(...) por esses diferentes futuros, meus textos
se desencaixam, nenhum vem coroar o outro;
este aqui não é nada mais do que um texto a
mais, o último da série, não o último do senti-
do: texto sobre texto, nada é jamais esclarecido
(BARTHES, 2003,p. 137).
60
vida e a vida escrita: entre as duas não há analogia,
mas homologia. Ao contrário do que afirma a doxa,
que a arte imita a vida, “não é a vida de Proust que
encontramos em sua obra, é sua obra que encontra-
mos na vida de Proust” (BARTHES, 2004c, p. 173).
O que ele diz de Proust pode ser aplicado
a Roland Barthes por Roland Barthes com a dife-
rença que o romance de Proust tem intrigas e per-
sonagens, que se entrelaçam de maneira a atingir
uma completude (aliás, interminável e inatingível
devido à morte que chega) enquanto no livro de
Barthes só há fragmentos que, se montados, não
fecham o puzzle. Em vez de personagens, o que se
vê é o desdobramento de vários Barthes: doravante
o sujeito só pode ser pensado em sua multiplicidade
e dispersão. Até o Je est un Autre de Rimbaud foi
ultrapassado pelo estilhaçamento do espelho: o eu
são vários outros.
61
sentação nem sua projeção. Em outra passagem,
Barthes postula que uma pesquisa sobre o sujeito
pode passar por várias fases, e acaba por concluir
que finalmente o sujeito volta, não como ilusão, mas
como ficção, o que o aproxima mais da concepção
do sujeito da autoficção contemporânea. “Talvez en-
tão retome o sujeito, não como ilusão, mas como
ficção. Um certo prazer é tirado de uma maneira
da pessoa se imaginar como indivíduo, de inventar
uma última ficção, das mais raras: o fictício da iden-
tidade” (BARTHES, 2004a, p. 73. Grifos do autor).
Ele declara, com efeito, no curso A preparação do
romance II dado no Collège de France (1979-1980),
que a volta do autor se dá a partir de O prazer do
texto, momento em que há o desrecalque do autor.
62
Blanchot), depois de sua morte alguns de seus di-
ários foram publicados. Além de Diário de luto que,
como o título indica, tem fragmentos sobre o sen-
timento de dor após a morte da mãe, saiu o livro
Incidentes. Trata-se de um diário escrito em 1968
e 1969, quando vivia no Marrocos, e estava pronto
para impressão na revista Tel Quel, segundo a nota
dos editores. Nele, o diarista capta instantâneos
da vida cotidiana, com ênfase no olhar que dirige
aos corpos dos jovens marroquinos. Já “Noites de
Paris”, diário publicado no mesmo livro Incidentes,
foi escrito entre 24 de agosto e 17 de setembro de
1979, logo após a redação do texto teórico “Delibe-
ração”. Nessas curtas anotações escritas 6 meses
antes de sua morte, vemos um homem bastante
melancólico, que busca na noite um prazer sempre
insuficiente, insatisfatório.
Deixando alguns fragmentos de diários,
Barthes constrói o seu futuro como fantasma para
os que virão: da mesma maneira que André Gide
representou o fantasma do escritor para ele, que
seguia seu percurso, suas viagens, seus escritos,
ele poderá se constituir no fantasma para os seus
leitores. “Pois aquilo que o fantasma impõe é o es-
critor tal como podemos vê-lo em seu diário íntimo,
é o escritor menos sua obra: forma suprema do sa-
grado: a marca e o vazio” (BARTHES, 2003, p. 92.
Grifos do autor).
Barthes postula que se deve “substituir a
história das fontes pela história das figuras: a origem
da obra não é a primeira influência, é a primeira pos-
tura: copia-se um desempenho, e depois, por meto-
nímia, uma arte: começo a produzir reproduzindo
aquele que eu gostaria de ser” (BARTHES, 2003, p.
115). Gide foi esse fantasma para ele: protestante,
filho de pais de diferentes regiões da França (Nor-
mandia e Languedoc no caso de Gide, Alsácia e Gas-
63
conha, no caso de Barthes), escritor de profissão e
pianista como hobby, “sem contar o resto”, ou seja,
homossexuais que gostavam de ir aos países do nor-
te da África (Marrocos, Argélia e Tunísia) nas férias
em busca de uma vida mais simples com os jovens
árabes. “O Abgrund gideano, inalteravelmente gidea-
no, forma ainda em minha cabeça um formigamento
teimoso. Gide é minha língua original, meu Ursupe,
minha sopa literária” (BARTHES, 2003, p. 115).
Esses últimos livros e artigos de Barthes
já apontam para as mudanças de paradigma que
estavam se processando tanto nele enquanto autor
quanto no mundo literário francês. Ele deixava para
trás as fórmulas mais duras do estruturalismo em
favor de uma valorização da subjetividade. Data do
mesmo período o livro Le pacte autobiographique,
de Philippe Lejeune, que considera que Roland Bar-
thes por Roland Barthes “propõe um jogo vertigino-
so de lucidez em torno de todos os pressupostos do
discurso autobiográfico – tão vertiginoso que acaba
por criar no leitor a ilusão de que não está fazendo o
que entretanto está” (LEJEUNE, 2008, p. 65).
64
CONSIDERAÇÕES FINAIS
65
Não o relato da sua vida, não a sua biografia,
quantas vezes anódina, quantas vezes desinte-
ressante, mas uma outra, a secreta, a profun-
da, a labiríntica, aquela que com o seu próprio
nome dificilmente ousaria ou saberia contar.
Talvez porque o que há de grande em cada ser
humano seja demasiado grande para caber nas
palavras com que ele a si mesmo se define e
nas sucessivas figuras de si mesmo que povo-
am um passado que não é apenas seu, e por
isso lhe escapará sempre que tentar isolá-lo e
isolar-se nele. Talvez, também, porque aquilo
em que somos mesquinhos e pequenos é a tal
ponto comum que nada de novo poderia ensi-
nar a esse outro ser pequeno e grande que é o
leitor (SARAMAGO, 1998, p. 27).
66
p. 186. Grifos do autor). Essa afirmação de Barthes
remete a Nietzsche que distingue o que ele é daqui-
lo que ele escreve, uma coisa não se confundindo
com a outra (apud DERRIDA, 1984-2005, p. 73-74).
Quando Blanchot se indagava para onde
iria a literatura e anunciava a morte do último es-
critor, ele se baseava na sua percepção do fim da
poesia em benefício do romance que triunfava. A
predominância do romance significava para ele que
cada vez mais o escritor se refugiava no gênero
mais domesticado para fugir do perigo que ameaça
o autor que busca uma verdade que o joga fora de
si. Ao se tornar inofensiva, a literatura morre (BLAN-
CHOT, 2005, p. 299). Com o florescimento das es-
critas de si, em que o EU passa a reinar absoluto,
em que o autor busca exibir sua vida íntima sob a
forma da extimidade, a alta literatura, tal como a
concebia Blanchot, talvez esteja realmente próxima
do fim. Mesmo Barthes, que parecia se interessar
pelo novo, tinha como modelos autores clássicos
como Tolstoi e Proust no seu horizonte de expectati-
va ao pensar em si mesmo como autor de romance
no curso A preparação do romance II. No mundo de
hoje já não há, entretanto, lugar para autores como
Tolstoi e Proust, Kafka e Joyce. A mão que digita no
teclado de um computador já não é igual à mão que
escrevia no papel, o corpo que se deixava fotogra-
far algumas raras vezes já não é o mesmo corpo
do autor midiático que dá entrevistas, comparece a
feiras e bienais, dá depoimentos em programas de
televisão e sites ou blogs da Internet. Ao retornar,
triunfante, ele enterra o lado secreto e transgressivo
da literatura.
67
REFERÊNCIAS
68
Liberdade, 2003.
69
la Perrone-Moisés. São Paulo:Martins Fontes, 2005.
CALVET, Louis-Jean. Roland Barthes. Paris:Flamma-
rion, 1990.
70
KRISTEVA, Julia. Recherches pour une sémanalyse.
Paris:Seuil, 1969.
71
________. Cybermigrances. Traversées fugitives.
Montréal:VLB Editeur, 2004.
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POLÍTICA EDITORIAL
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VOLUMES PUBLICADOS
Volume 1
A Dama, a Dona e uma outra Sóror
Maria Lúcia Dal Farra
Volume 2
Sartoris:
A História na Voz de quem Conta a História
Vera Lucia Lenz Vianna
Volume 3
A Fronteira e a Nação no Séc. XVIII: Os Sentidos e os
Domínios
Eliana Rosa Sturza
Volume 4
O Outro no (In)traduzível / L’Autre dans l’Intraduisible
(Edição Bilingüe)
Mirian Rose Brum-de-Paula
74
Volume 5
Pero Sigo Siendo el Rey:
Referente e Forma de Representação
Fernando Villarraga Eslava
Volume 6
Aquisição, Representação e Atividade
Marcos Gustavo Richter
Volume 7
Da Corpografia: Ensaio Sobre a Língua/Escrita na
Materialidade Digital
Cristiane Dias
Volume 8
Perspectivas da Análise de Discurso Fundada por
Michel Pêcheux na França: Uma Retomada de Per-
curso
Ana Zandwais
Volume 9
Mitos, Héroes y Ciudades: ecorridos Míticos por Al-
gunas Urbes Literarias
Pablo Molina
Volume 10
Mário Peixoto: O Escritor de Permeio com a Crítica
André Soares Vieira
Volume 11
Manuscritos de linguistas e genética textual : quais
os desafios para as ciências da linguagem? : exemplo
através dos “papiers” de Benveniste
Irène Fenoglio
Volume 12
Mário de Andrade: escritor difícil?
75
Sonia Inez Gonçalves Fernandez
Volume 13
De cegos que vêem e outros paradoxos da visão:
Questões acerca da natureza e da visibilidade
Alcides Cardoso dos Santos
Volume 14
Poesia de resistência à ditadura civil-militar (1964-
1985)
Cristiano Augusto da Silva Jutgla
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77
PPGL EDITORES
UNIVERSIDADE FEDERAL DE SANTA MARIA
PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM LETRAS
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2015