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A Europa não se importa com naufrágios no Mediterrâneo

No último mês, dois naufrágios sucessivos de embarcações que cruzavam o Mar Mediterrâneo
com centenas de pessoas, em grande maioria africanos, trouxeram à tona o recrudescimento de uma crise
humanitária de proporções alarmantes. De acordo com a Organização Internacional para as Migrações
(OIM), somente neste ano mais de 1.750 pessoas que tentavam chegar à Europa de forma clandestina
morreram – um número 30 vezes maior do que o registrado no mesmo período do ano passado. A OIM
estima que, sem um plano de socorro para conter essa situação, 30 mil pessoas poderão morrer na
travessia até o final de 2015.
Uma complexidade de fatores ajuda a explicar a urgência dessa questão, agora reconhecida por
ministros e dirigentes da União Europeia (EU). De um lado, o surgimento de uma máfia que lucra com a
miséria dos imigrantes somado à fome, à exploração, às guerras e perseguições, a cenários distintos de
devastação que impelem milhares de pessoas a buscar refúgio e proteção no velho continente. De outro, o
endurecimento das políticas imigratórias que tornam as fronteiras dos países europeus inacessíveis por
vias legais e o refreamento de medidas de resgate e acolhimento que vinham, até então, evitando desastres
nas proporções dos ocorridos recentemente.
Mas, para além desse caldo de ingredientes catastróficos, a banalização da morte – escancarada
nessa tragédia no Mediterrâneo – pode ser entendida por uma outra perspectiva: o crescente sentimento de
repúdio à figura do imigrante. Cada vez mais, a figura do estrangeiro tem sido desumanizada, não apenas
na Europa, mas em todo o mundo rico. Por meio do emprego sistemático de rótulos e de um discurso
ideológico que o avilta e diminui, o estrangeiro, o “outro”, passa a ser percebido como não-humano,
como uma vida sem qualquer valor.
Essa categorização, por meio de um conceito de linguagem que o desumaniza – tal qual aplicado
contra o judeu, o cigano, o comunista, o ateu –, tem uma função política e jurídica clara: subtrair-lhe
direitos mínimos de sua condição humana. Lembrando que, no Estado Democrático de Direito, a
característica jurídica e política primordial do ser humano é a garantia de direitos fundamentais atribuídos
pela sua simples condição humana.
O filósofo italiano Giorgio Agamben usa, como representação de ideia semelhante, o conceito do
“homo sacer”, ou “homem sagrado” – uma figura antiquíssima do direito romano. No entanto, sagrado,
neste contexto, não carrega a acepção habitualmente empregada hoje, de algo divino ou venerável. Ao
contrário, o homo sacer era aquele que todos podiam matar sem ser punido. Logo, o homem que não
tinha direito sequer à vida. A figura clássica utilizada por Agamben na contemporaneidade para
exemplificar o homo sacer é a do preso no campo de concentração. Aquele ser vivente de “vida nua”, ou
seja, desprovido de qualquer proteção política, jurídica ou mesmo teológica. O inimigo, ”hostis”, como
lembra Zaffaroni.
As imagens estarrecedoras dos náufragos mortos na costa da Itália, Grécia e Espanha falam por
si: essas vidas não têm tanto valor assim para a Europa civilizada, não são dignas de serem amparadas,
protegidas. O continente que é berço do Estado moderno, da ideia de Direitos Humanos, e que secularizou
o conceito de pessoa legado da cristandade, traduzindo-o, com a revolução francesa em uma pauta
mínima de direitos fundamentais do homem, nega ao imigrante (sobretudo ao africano e ao árabe) a
humanidade que automaticamente lhe transferiria o direito ao acolhimento.
O descaso cínico do mundo desenvolvido, que ora se mostra compungido diante do
emborcamento dos barcos superlotados, mas não cede um milímetro na abertura de suas fronteiras, ganha
contornos mais dramáticos quando se observa que as calamidades de que fogem os desesperados são, em
grande medida, espólio de suas próprias intervenções, do caos engendrado pela sua sanha dita
“civilizatória”.
Está claro: a Europa, da África, não quer os africanos. Em um mundo globalizado e
desterritorializado, em que mercadorias, capitais e recursos naturais circulam quase sem restrições e em
velocidade cada vez maior, milhares de seres humanos, mais do que impedidos de circular, são deixados à
deriva, como um entulho indesejável. Não há escapatória. Por mais que as embarcações turísticas desviem
a rota e os líderes da comunidade europeia desviem o olhar, os navios negreiros do século XXI, desta vez
não mais conduzidos pelos conquistadores brancos, continuarão dizendo muito sobre a hipocrisia e a
indiferença que nos torna a todos, meros espectadores de tragédias sucessivas, desumanos – na acepção
mais ordinária e mesquinha do termo.

SERRANO, Pedro Estevam. A Europa não se importa com naufrágios no Mediterrâneo. 15/06/2015.
Adaptado. Disponível em: <https://www.cartacapital.com.br/internacional/a-europa-se-importa-com-os-
naufragios-no-mediterraneo-3643.html>. Acessado: 22 mai. 2018.

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