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Política e Verdade

Por Jacques Poulain, Universidade Paris 8


Traduzido do francês para o português por Lucas Guimaraens

1. A globalização como experimentação do fim do homem e como


desaparecimento do político

O ser humano parece não mais ter futuro. Pois o fim da história transparece através
do acesso à finalidade neoliberal da história: sob o aspecto de uma privatização econômico-
política do mundo, chamada abusivamente de “globalização”. A globalização se produz
hoje como um processo de transbordamento sistemático dos Estados de Direito pelas
multinacionais e pelos mercados financeiros. Os efeitos positivos da fusão das
multinacionais se impõem sob o aspecto de uma sutilização da adaptação da oferta à
procura, com uma submissão das ofertas, dos produtos e das relações de produção aos
ditames das procuras consensuais. Esta adaptação arvora orgulhosamente sua
independência frente aos Estados-nação e aos partidos políticos, desafiando sem escrúpulos
seus imperativos e suas proibições rígidas e arbitrárias: é assim que ela consegue fazê-los
desaparecer enquanto derradeiras instâncias de regulação e de legitimação do devir do
homem. Ela invoca para se legitimar uma objetividade dependente da satisfação efetiva e
eficaz do máximo de desejos englobada pelo respeito à independência autártica dos
indivíduos e dos povos: apresentando toda regulação ou desregulação social como a
consequência lógica dos progressos da homogenização do mercado mundial e fazendo com
que estes progressos sejam considerados tão objetivos quanto o seria o próprio progresso
científico e técnico ele mesmo. A humanidade dos indivíduos e dos grupos é reduzida a
uma harmonização desta maximização das gratificações consumistas ao gozo desta
liberdade negativa de todos frente a todos. Esta globalização dá ao mercado hegemônico
mundial e ao consenso pressupostamente responsável pela vida daquele o papel desta
instância infalível que era outorgada ao sagrado nas religiões arcaicas.
Os efeitos negativos desta globalização parecem, quanto a eles, tão incontornáveis
da mesma forma que seus efeitos positivos parecem ser objetivos. O aumento da assimetria
social, da desigualdade e da dependência entre países ricos e países pobres, o desemprego

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das sociedades industriais avançadas, devido à delegação da produção a uma mão-de-obra
“barata”, a exportação para o estrangeiro da impotência dos Estados de Direito
hegemônicos a refrear a especulação financeira, o crescimento da exclusão social dos
desfavorecidos, as recaídas racistas e nacionalistas da injustiça e da exclusão, a
considerável produção da fome nos países em desenvolvimento servos, hoje em dia, através
de uma especulação financeira e de uma desregulação das moedas dos Estados, aparecem
como catástofres em massa e inevitáveis da mesma forma que as catástofres naturais: aqui
desaparece, claro, a capitalização das gratificações e da liberdade que deveria garantir o
acesso à harmonização, tão almejada, da partilha justa dos direitos, dos deveres e dos bens.
Tudo isso vem a confirmar o diagnóstico de Max Weber sobre o futuro da humanidade e
valida sua redução da racionalidade ética a uma racionalidade funcional, aplicada, desta
vez, à própria história.O único cálculo que move esta globalização tem como objetivo a
maximização das gratificações no seu menor preço possível e uma perenização da
oligarquia adaptada a esta finalidade. Seus resultados são validados em tempo real: pelo
oráculo do mercado, por um oráculo justificado por um consenso experimental regendo a
adaptação das relações sociais aos progressos científicos e técnicos. Ele obtém este papel de
última instância do julgamento coletivo que reconhece sua objetividade e valida assim a
privatização econômica e política do mundo em nome da rentabilidade funcional da
unificação universal das forças de produção: o poder político tem como papel somente
consagrá-lo no seu papel e no exercício de seu papel.
Mas estes resultados desastrosos forçam, no entanto, a presente humanidade a
admitir que ela não pode se reconhecer neste “último homem”; ela é confrontada a si
mesma como um problema cultural. A própria política aparece comprometida com um erro
filosófico, o erro que identifica a dignidade do homem à sua capacidade de instaurar um
domínio moral das suas relações com seus próprios desejos e com os desejos e as ações de
outrem.
Ela se vê obrigada a admitir a falsidade da imagem filosófica que, ao mesmo tempo,
a obriga a se reconhecer nesta mesma falsidade e a proíbe de fazê-lo: a identificação do ser
humano ao seu ideal moral, perseguida como a vontade de submeter o espírito ao ser
irracional de desejos, de paixões e de interesses, reduzindo o homem em um ser sensível,
visando, desta forma, assegurar ao ser humano a segurança do próprio domínio de si

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mesmo, como se este conseguisse se dominar da mesma forma que ele o faz com o mundo,
no âmbito científico e técnico.
A experimentação cultural e total a qual o homem se entrega para assim acessar este
domínio de si guarda, no entanto, a solução deste problema, mesmo se ela parece submetida
a esta mesma procura de domínio. Isto porque esta experimentação tenta instaurar um
consenso comunicacional e democrático e, neste ponto, reconhece sua única fonte de
legitimação; no entanto, esta experimentação somente mostra a falsidade deste ideal moral
de domínio de si mesmo e a incapacidade de aí encontrar a fonte de uma harmonia consigo
mesmo através de uma revelação da dinâmica de comunicação à qual a deficiência de suas
coordenações biológicas ao meio ambiente a obrigou a se entregar para assim criar
instituições e psiquismo à imagem desta comunicação, tornando insignificantes tanto este
apetite de domínio de si quanto a frustação infligida hoje em dia a este apetite pela
globalização.
A forma pela qual o ser humano se entrega à experimentação de si mesmo através
da experimentação do acordo do outro parece, no entanto, legitimar o recurso a este ideal
de domínio, colocando o consenso dentro do poder, fazendo com que este se pense apto a
regularizar esta experimentação. Transformando a ciência em uma forma de vida, o ser
humano começou a ter o hábito de experimentar a si mesmo, experimentando o acordo do
outro através da fala. Mas esta experimentação comunicacional de si e do outro está longe
de ser regularizada pela consciência de dever respeitar o acordo produzido; ela obedece aos
imperativos de uma economia puramente hedonista, exatamente a mesma que inspira a
experimentação neoliberal do planeta. Cada um procura uma maximização das
gratificações e uma minimização do esforço pessoal. A ação da comunicação parece assim
permitir que todos se desobriguem ao máximo, com o mínimo de esforço, de seus papéis
sociais e de suas ações aos quais estes papéis os obrigavam, sobrecarregando alegremente
seus parceiros sociais. De fato, esta experimentação comunicacional instauraria e
aumentaria um máximo de dependência dos alocutórios em relação aos enunciadores, em
relação àqueles cuja fala é determinante na sociedade.
Despojado de seu colete à prova de balas jurídico, de sua imponência moral, de suas
responsabilidades políticas, o outro seria destronado de suas pretensões de soberania de si
mesmo, doravante percebido a partir do grau zero de suas prerrogativas sociais, concebido

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como um suporte biológico nu de uma fala cujos efeitos seriam apropriáveis, devendo sê-
los pelos enunciadores, visando seus próprios interesses. Os sociólogos de direita, de todas
as nações, descreveram igualmente seus efeitos: a primitivização das relações sociais e
intersubjetivas reduzidas às ações consumatórias alimentares, sexuais e agressivas às quais
elas organizam o acesso, a perda de sentido da realidade e a sublimação dos fracassos
psíquicos, sociais e políticos num imaginário através do qual tudo é possível, a vontade de
dominar pela programação lógico-matemática e os sucessos de uma tecnologia inevitável
aplicados às operações de envergadura impressionante, os processos de pensamento que
acompanham ou guiam esta experimentação cotidiana ou política do ser humano.
J. Habermas e A. Gehlen descreveram há muito tempo este processo enquanto
consequência da perda da identificação aos Terceiros e enquanto desintegração de toda
instância de autoridade. O primeiro chamou este processo de “neutralização das instituições
e do psiquismo”; o segundo o chamou de “crises de racionalidade, de legitimação e de
motivação”. Identificando ao experimentador das regulações internas os mundos dos fatos
observáveis, o homem contemporâneo não poderia mais fazer derivar da percepção e da
descrição destes fatos nenhuma prescrição de conduta, nem sequer alguma inibição. A
neutralização do psiquismo humano e sua incapacidade de servir de suporte àquilo que se
entende por “pessoa” adviria do fato de fazer desaparecer toda identificação a um terceiro,
toda identificação a um ideal que, ao mesmo tempo, atrai e obriga: procurar-se-ia aplicar ao
“mundo interno dos fatos” – que é a vida psíquica de cada um – a mesma relação científica
e técnica que é aplicada quando se trata do mundo dos fatos externos. Procurando tornar
teórica e particamente o mundo interno dos fatos psíquicos em conformidade com as
figurações romanescas, sociológicas, psicanalíticas, históricas ou publicitárias, o homem
tenta, por todos os meios, se fazer viver exatamente como o outro a partir do qual ele se
identificava anteriormente; ou seja, ele se experimenta. Assim, ele se entrega a uma relação
inédita com a ação. Ele faz variar, em todos os sentidos possíveis, os meios de figuração, os
meios de pensamento e os procedimentos disponíveis, ele tenta colocar em obra tudo o que
ele pode a fim de ver o que dali sai, uma vez que se trata, para ele, de ver o que se pode
aproveitar1 de imprevisto, a partir de uma maneira de proceder ligada, inicialmente, a um
dado objetivo. Generalizada em toda ação e na ação comunicativa, a relação experimental
1
N.T. No original utilizou-se o termo “tirer”: “tirar”. Para o melhor entendimento, utilizamos o termo
“aproveitar”.

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com a ação faz com que esta não seja mais um meio para se chegar a um fim já pensado:
ela é o objeto pelo qual é produzida a situação-efeito a descrever. Desta forma, não se tem
mais um objetivo determinante e pré-almejado, que desencadeia as reações apropriadas à
sua realização: torna-se, assim, inválido o esquema clássico das teorias da consciência
reguladora de ação que servia de suporte para a realização da personalidade e para o
respeito da soberania. Os indivíduos se identificam entre si e com as ações de
experimentações que desencadeiam, por sua vez, efeitos desconhecidos com esta
experimentação.
A situação de comunicação também não consegue predeterminar mais os valores
desencadeantes em função dos valores de autoridade, de fidelidade, de afeição, de amizade,
de reconhecimento do que selecionavam antigamente os comportamentos verbais e
motores. Pelo contrário, experimenta-se aí a situação de fala a partir de um tipo de grau
zero do parceiro. Isto permite experimentar no outro todos os valores de estímulo e de
afeição para produzir em si e no interlocutor todas as realidades intersubjetivas, todas as
ligações sociais possíveis, conhecidas ou desconhecidas. A priori, o interlocutor só é
experimentado como real se ele entra voluntariamente ou compelidamente no circuito das
estimulações específicas que se experimenta nele pela fala. O alocutório só existe como tal
a partir do momento em que ele não se comunica, se o que ele diz não tiver como ser
aceito, nem se tornar determinante. Neste processo de experimentação, o interlocutor não
mais existe como alocutório, ou seja, como instância de verdade e de realidade cujo acordo
seria suscetível de transformar a enunciação do enunciador em uma realidade social
determinante.

2. A política pragmática ou a institucionalização da discussão pública sobre as


necessidades e sobre as normas nas democracias deliberativas.

Parece, da mesma forma, que basta reinstitucionalizar a comunicação como


institutio principal para reatualizar o sonho filosófico de um domínio de si e do outro,
incitando uma obediência ao consenso. O sentido da pragmática transcendental de Apel e
da pragmática universal de Habermas seria o de fazer passar na prática sócio-política
efetiva este reconhecimento teórico que o homem contemporâneo tenta ter de si como ser

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de linguagem. A solução proposta é, nós já sabemos, de institucionalizar a comunicação,
dando o poder político legislativo à opinião pública devido à faculdade crítica de julgar que
ela parece possuir. Uma vez que todo direito, toda moral ordinária ou toda moral da
linguagem vêem suas condições de realização limitadas e ditadas por um jogo de forças
políticas baseado em uma dinâmica econômica, uma vez que é esta mesma dinâmica que
aparece inválida para o homem contemporâneo e que ela produz suas crises de motivação, é
necessário tomar em consideração estas crises a fim de tirar delas todo o benefício positivo
possível. Trata-se de uma estratégia de inversão das relações de dependência da vida social
face às relações econômicas de produção, tornando a expansão econômica e técnica
dependentes da dinâmica social própria à comunicação, dobrando-a juntamente à
racionalidade crítica à qual ela é encarregada. Pressupõe-se que os interlocutores triem seus
desejos através da comunicação, em função do que eles podem fazer aceitar como desejos
racionais por seus parceiros. Com efeito, é no seio dos fracassos de interação social
regulamentada pela comunicação que podem ser triados os bons fracassos: as rejeições
generalizáveis de leis caducas, e os maus fracassos: aqueles que manifestam uma perda de
racionalidade, aqueles que exprimem somente uma exigência irracional, ou seja, uma
exigência cuja generalização seria suficiente para fazer desaparecer o poder regulador da
situação de comunicação, fazendo ser aceito pelo alocutório aquilo que ele não pode
aceitar.
O que pressupõe toda situação de comunicação para que seja legisladora? Os
interlocutores não podem não se pressupor já serem idênticos àquilo que eles devem fazer
mutuamente deles mesmos pela comunicação e o que eles podem produzir somente através
da comunicação: tornar-se autônomos uns dos outros dentro de relações efetivas de
simetria. Eles não podem não pressupor real esta autonomia que eles devem produzir,
respeitando as regras de simetria que impõe a situação e o desenrolar mesmo da
comunicação. Eles devem pressupor como real a situação ideal de autonomia
comunicacional social e psíquica que eles devem produzir. Os interlocutores devem se
reconhecer já serem efetivamente substituíveis uns pelos outros em suas práticas de
enunciadores e de agentes: desta forma, eles fazem com que a prática da comunicação
através da qual eles produzem a situação de comunicação enquanto uma situação social
esteja em conformidade, em todos os parceiros, com as condições de existência. A simetria

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dos parceiros, o respeito do interlocutor que a gente deixa fazer e dizer o que ele quer fazer
ou dizer, o respeito da alternância na prática dos papéis comunicacionais devem impedir o
privilégio de qualquer relação de heteronomia que faria de um dos interlocutores o meio de
um outro atingir seus próprios fins ou o forçaria a reconhecer como verdade o que ele sabe,
de forma pertinente, ser falso. Todo partícipe de uma interação comunicacional é assim
pressuposto poder ser portador de um discurso gerador e legitimador de normas: cada um
pode se emancipar da alienação imposta pelos jogos de força capitalista e veiculada pelas
regras de linguagem injustificáveis somente se for possível a ele denunciar a validade desta
norma no nível político. Todo interlocutor é pressupostamente sujeito e legislador eventual
da comunicação e das relações sociais. Esta identificação com aquele que é capaz de fazer
aceitar, através de um discurso argumentativo teórico-prático, a validade das normas que
ele defende fazendo admitir sua retidão, canaliza o dever de dizer o verdadeiro, de exprimir
veridicamente suas intenções e de aderir legitimamente às convenções pelas quais
reconhece-se a retidão de certas ações e das relações socio-políticas que instauram estas
convenções.
Esta teoria tem o mérito de reconhecer a realidade da imagem social que os
indivíduos têm deles mesmos e fazem com que estes se valorem quando se comunicam.
Mas seu fracasso consiste em considerar esta imagem como sendo a realidade do
enunciador; ela consiste em fazer deste um sujeito social, uma pessoa, e em reforçar,
através de uma teoria ideológica do diálogo, os processos de crises de racionalidade, de
legitimação e de motivação que ela pensa permitir ultrapassar: é precisamente porque os
indivíduos já se regularizam partindo desta imagem de si para regular, pela comunicação, o
que as instituições fracassadas não conseguem mais regular para eles (fazendo reconhecer a
validade das leis institucionais em vigor), que eles reforçam o desnível existente entre, de
uma parte, aquilo que eles se figuram ser: a imagem de si-mesmo e, de outra parte, aquilo
que eles fazem efetivamente deles mesmos: suas próprias práticas experimentais.
É assim que eles produzem aquilo de que os pragmáticos querem salvá-los. Faz
parte das crises de motivação considerar como invasoras as condutas primitivas (agressivas,
nutricionais ou sexuais) de compensação: tenta-se produzir gozos-ersatze (gozo de
substituição2) substituindo os esperados gozos de justiça social. Os estímulos nutricionais,

2
N.T.

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sexuais ou agressivos encontram todas as suas forças: esta primitivização do homem
pragmático é vivida como confirmação de um behaviorismo animista. Os protagonistas se
identificam uns aos outros com os circuitos de estímulos-respostas como locutores e como
agentes, levados pelo princípio de prazer até atingir a forma pela qual eles se identificam
com as enunciações: como lugares antecipados de desencadeamento de afetos mútuos. A
justificação das normas em função da condição de generalização das necessidades faz com
que se reforce este processo de primitivização: somente as necessidades primitivas
aparecem como forçosamente generalisáveis. Todas as outras necessidades tornam-se o
lugar de uma incerteza social exacerbada: assim que um parceiro exprime uma necessidade
derivada, cultural ou culturalmente condicionada, é sempre possível suspeitar de um desejo
de dominação, de uma relação de forças assimétrica, de um desejo inelutavelmente privado.
Pressupõe-se assim ser facilmente o inverso do que normalmente deveria ser pressuposto
ser o interlocutor, o inverso do que a adequação em uma situação comunicacional nos
obriga a pressupor o que ele é: de juiz e sujeito de suas falas e de seus atos, ele desce ao
nível de tirano possuído por seus afetos e seus instintos. A ritualização da comunicação
legisladora induz, desta forma, apenas a uma ritualização das leis: somente as leis
regularizando os instintos intra-específicos de nutrição, de sexualidade e de agressividade
aparecem como válidos, sendo toda lei regularizante de uma necessidade não fundada em
um instinto intra-específico, toda lei “cultural”, considerada como podendo ser procurada
para fazer realizar os desejos privados dos legisladores-sujeitos do consenso.
Desta forma, esta proposição pragmática faz com que seja reconduzida, no espírito,
a identificação com o Terceiro que já anima o liberalismo, pretendendo instituí-lo como
instância ética. Mas, pretendendo curá-la, ela reforça a doença capitalista. A especificidade
da doença capitalista reside na perversão da consciência moral liberal, que a carrega e a
propaga. Como Max Weber já havia diagnosticado, na busca de autocertificação salvífica
(redentora) dos capitalistas na produção das condições de vida e de trabalho dos
trabalhadores somente é possível fazer os capitalistas se entregarem ao reinvestimento dos
benefícios na empresa, somente é possível obrigá-los a privar os trabalhadores destes
benefícios porque ela tenta reforçar e garantir antecipadamente a certeza de sua própria
salvação pessoal e social que oferecem a certeza do sucesso do crescimento das próprias
empresas e a certeza de poder produzir a salvação material de outrem. Esta autocertificação

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da consciência de salvação é perversa na medida em que ela faz total abstração do bem
supremo dos parceiros sociais que é almejado através desta experimentação, ou seja, da
abstração da produção de uma justiça acessível a todos e baseada em uma distribuição
harmoniosa dos direitos, dos deveres e dos bens e da autocertificação salvífica e social
destes parceiros sociais.
Desta forma, a dúvida sobre as leis propostas pelos alocutórios desta discussão
legisladora flui do parceiro em direção ao próprio enunciador e desencadeia uma
reflexividade crônica. Nenhum parceiro social pode ter certeza de respeitar as condições de
simetria e, assim, não pode ter certeza de ser verídico no momento em que ele pensa que
estas condições necessárias ao jogo simétrico da comunicação são preenchidas: para se
fazer aceitar a contestação de seu interlocutor como mais bem fundada do que sua própria
proposição, não é suficiente ser verídico no jogo livre da discussão normativa. Como nós
fazemos a certeza da legitimidade das normas e a objetividade das necessidades depender
do respeito das condições socio-políticas da simetria comunicacional, torna-se, desta forma,
cada um pragmaticamente incerto da objetividade de toda necessidade e da validade de
toda norma sócio-política. Desta forma, a teoria crítica da sociedade reforça a angústia
social. Este desnível entre, de uma parte, os processos motores, as motivações primitivas e
insatisfeitas, a identificação prática e teórica do homem contemporâneo com o homem
primitivo pelos e nos processos de comunicação, pela dinamização dos contextos de
comunicação, e, de outra parte, os processos de recepção sensorial, teórica e imaginária de
si fabricadas por uma imagem social impossível de se realizar, é o que deve ser
ultrapassado, abandonando este sonho de domínio de si e do outro.
Estes aumentos globalizados da cegueira coletiva e da injustiça social são, no
entanto, apenas os sintomas de uma doença da reflexão e derivam de um erro filosófico
sobre a “natureza” do homem. Esta doença e este erro só se proliferam em favor destes
fenômenos a partir do momento em que se ignora a dinâmica da comunicação e do
julgamento próprios ao psiquismo humano e às instituições políticas. Esta doença é baseada
em um erro filosófico herdado da primeira instituição do político, da religião dos deuses
soberanos: erro sobre a crença de que o espírito e a fala coletivos, encarnados como deuses
soberanos no espírito e a fala do soberano do grupo são – como encarnações da harmonia
do mundo e do homem – suficientes para permitir ao homem dominar seus desejos e seu

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corpo pelo espírito, por um espírito concebido – ele-mesmo – como uma alma coletiva e
individual. A globalização e a experimentação total do homem perseguem este sonho
coletivo de domínio de si e do mundo através da multiplicação dos desejos como local de
confirmação de um domínio de si e de uma experiência de liberdade frente a si e ao outro,
obtidas, todas as duas, pelo cálculo racional. Esta experiência de domínio de si só se opera
através de um domínio dos desejos e do corpo do outro, por intermédio do jogo de ofertas e
das procuras que são impostas de forma cega e arbitrária. A maximização da satisfação dos
desejos e a busca pleonéxica da satisfação de ser livre frente a este jogo engendra apenas a
consciência de não poder satisfazer estes desejos supermultiplicados e o desejo de se sentir
livre frente a este jogo, contemplando a conformidade de sua distribuição aos ideais de
justiça. Este deslocamento pragmático do homem desnivelando seu desejo de domínio de si
e a inversão dos efeitos deste desejo parece coroar um destino histórico de fracasso,
enquanto que ele impõe esta busca dentro do seu princípio mesmo. É o coroamento político
da vida humana pelo fenômeno do político que havia instaurado a modernidade que se
encontra radicalmente falsificado.
Esta doença e este erro não são incontornáveis, nem necessários, uma vez que eles
apenas parasitam os processos de comunicação e de julgamento criadores no que tange às
condições de vida humana, mas sua expansão atual torna patente a loucura que os abriga e
obriga as instituições políticas e o julgamento político cotidiano de cada um a operar neles
uma verdadeira mutação cultural para ultrapassar esta loucura. Esta os obriga a se
arrancarem do sonho de apropriação de si almejado por uma vontade de potência e de
monopolização do poder e a se auto-assumirem como potências de julgamento aptas a
conter a injustiça, a exclusão e as desregulações econômicas e financeiras. A reativação de
uma ética e de uma política consensual, instruídas a partir destes fracassos e que
procurariam transformar diretamente o homem em consenso, submetendo este último à
instância crítica que pretende ser este consenso, somente alteraria de lugar este
deslocamento autista em um nível de reflexão e completaria o autismo pragmático com um
autismo da reflexão. O alocutório de si e de outrem o qual pressupomos querer dar a fala,
somente pode descobrir neste uso da razão crítica do consenso um desnível mental entre, de
uma parte, a experiência de uma reflexividade ética crônica e impotente e aquela

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experiência de uma ritualização jurídica da vida social, da experiência dos movimentos de
descarga da consciência de responsabilidade e de culpabilidade.
Não obstante esta experiência ter querido induzir a uma neutralização do psiquismo
e das instituições e, por conseguinte, tornar-se mortal, ela obriga o homem contemporâneo
a se descobrir enquanto ser de comunicação: assim, ela abre a via à única humanidade
efetivamente acessível ao homem e ela vai ainda mais além, ela faz com que o homem
descubra a lei de engendramento desta humanidade: ela faz com que o homem descubra
que ele só pode se submeter ao outro que está em si mesmo: ao alocutório que está frente a
ele e ao alocutório que ele é para ele mesmo a partir do momento em que renuncia a se
transformar diretamente, renunciando à idéia de um homem que faz a si-mesmo,
renunciando à idéia de história e mesmo à idéia de se transformar diretamente em consenso.
Apenas indiretamente, ou seja, aceitando julgar a verdade das suas proposições de ação ou
de desejo, da mesma forma como ele julga a verdade de suas proposições descrevendo
percepções e aceitando partilhar este julgamento de verdade com seus alocutórios.

3. Política e verdade

A imagem que o liberalismo faz do homem é efetivamente falsa. Não se cuira da


crispação política em torno dos problemas de distribuição eqüitativa de direitos, de deveres
e de bens, não se cura da política, a não ser percebendo, por assim dizer, que não há do que
se curar. Pois só se expõe uma doença, uma infelicidade ou uma loucura na vida política,
tendo-se anteriormente diagnosticado uma doença ou uma loucura necessária, ou até
mesmo a priori, ou pelo menos uma alienação que ela saberia constituir denegando-se ela
mesma. Desde Platão, os relacionamentos de antagonismo dos desejos, que
presumidamente reproduzem o antagonismo perpétuo dos deuses, foram generosamente
distribuídos aos homens como “natureza” determinante, derivada da queda do espírito no
corpo, depois como politeísmo liberal dos valores, como já havia visto Max Weber. Essa
natureza agonística viu-se projetada, pela modernidade, nas relações intersubjetivas e
políticas dos homens entre si, até fazer do homem enquanto desejo, o inimigo dele mesmo
como espírito e a transformá-lo, segundo o famoso adágio de Hobbes, em lobo para seus

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semelhantes, antes de fazer da política, no liberalismo, a política dos grupos antagonistas de
interesses.
Trata-se aqui de um erro filosófico, devido à ignorância na qual estávamos, na
antigüidade como na modernidade, da forma pela qual se engendra no homem a relação
com os desejos como uma relação a priori racional e derivante de sua identificação com a
linguagem. Da mesma forma é simplesmente falso procurar proteger-se com o auxílio de
um sistema de defesa político indefensável, mas que se impõe para submetê-lo ao
julgamento da verdade. Esse erro era acoplado a uma crença que também se demonstrou
falsa: ao mesmo tempo histórica, ou seja, a crença moderna de que o homem pode se
autotransformar diretamente, conforme as exigências da consciência moral. Esse erro é hoje
acoplado à crença contemporânea que só lhe é possível se transformar conforme as
exigências éticas da experimentação comunicacional e da discussão argumentativa. Tenta-
se em todos esses casos incarnar a justiça do liberalismo político ou da razão argumentativa
no sistema de conhecimentos, de direitos e de leis ou ainda, no sistema de comunicação
parlamentar, judiciário e administrativo : esse sistema deve, nesses dois casos, funcionar
como àquele análogo e rígido de um instinto, ligando, por correlações bi-unívocas de
estímulos, reações e ações consumatórias, como um sistema que deve transformar por ele
mesmo “o animal mal formado” (L.Bolk) e “não ainda fixado ( F. Nietzche)” que é o
homem, como vivente bem formado : em um sistema rígido e infalível de coordenação de
um só e único sistema de ações e de desejos, a um só e único sistema de percepções
cognitivas e estimulantes.
Essa concepção do zoon logicon, herdado de Aristóteles, retomada pelos utilitaristas
e moralistas, permanece presente na concepção dos interesses e dos bens primários próprios
à teoria liberal da justiça bem como na democracia deliberativa. Essa concepção
antropológica não é menos falsa na medida em que existe no ponto de partida no homem
apenas os instintos intra-específicos de consumação alimentar, de sexualidade e de defesa.
Procura-se, pois, em vão instituir a partir deles coordenações institucionais ao meio
ambiente físico e social que sejam também rígidas e infalíveis como o são os instintos dos
animais bem formados. Quando se procura assim uma solução política ao problema
colocado pela experimentação total, recorre-se à força da palavra utilizada para proteger o
homem frente à agressividade de outrem, tal como ela era reconhecida intrinsecamente nas

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religiões dos deuses soberanos, instituição primeira da vida política. É nesse uso político da
palavra que se procura um análogo ao instinto de regulação e que se limita arbitrariamente
o uso da palavra a seu uso jurídico, moral e político. Faz-se isso postulando, de maneira
inconsistente com relação a essa pressuposição de uma “natureza heterônima, até mesmo
instintiva” no homem, que ele pode e deve oferecer livremente e de maneira responsável
sua adesão racional a esses sistemas necessários de regulação social da vida.
Esses fracassos confirmam a incapacidade do homem de se transformar diretamente,
mesmo em um consenso crítico. O desvio pelo julgamento de verdade inerente ao uso da
linguagem parece ser necessário, mas engaja uma mutação cultural da concepção da
humanidade do homem: essa mutação se engaja quando reconhece, por trás da
exarcerbação do capitalismo e de sua condenação moral coletiva, que explode em cheio
dentro da globalização, o processo positivo do qual ela apenas parasita, e que obriga a
produzir um mundo público seguindo-se a lei de criatividade própria da linguagem e do
psiquismo: projetando uma pré-harmonização afetiva, cognitiva, prática e consumatória
com o mundo, consigo mesmo e com outrem em toda situação problemática e julgando se o
mundo assim antecipado (pensado3) se apresenta como o mundo do qual se tem necessidade
e que constitui a única realidade na qual possamos nos reconhecer.
A filosofia, as letras, as artes e as ciências humanas que refletiram essa
experimentação e seus resultados como fenômenos culturais descobriram pouco a pouco
que o julgamento que torna o homem ativo na experimentação que ele tenta de si mesmo
faz com ele saia desse sonho de domínio, fazendo-o ultrapassar a cegueira do consenso e
esse fracasso mortal da história, submetendo ao julgamento da verdade as formas novas da
vida que ele inventa, pois essa experimentação se faz necessariamente pelo desvio de um
julgamento de verdade trazido tanto pelas formas de vida experimentadas quanto pela
partilha desse julgamento de verdade. A experimentação política do ser humano, pela qual
ele cria suas condições coletivas e públicas de vida e julga sua objetividade no seio de um
exercício público do julgamento, não constitui uma exceção. Ela é obrigada, quer os
políticos queiram ou não, a recorrer ao uso desse julgamento.
Essa experimentação do homem ensinou efetivamente que o homem não era esse
composto de espírito e de corpo como havia feito a filosofia, fixando-lhe à tarefa de fazer
3
N.T. Para uma maior compreensão, talvez seja melhor utilizar o termo pensado. O mundo antecipado é o
mundo já pensado, real ou irreal.

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sua história, instaurando um domínio de seu espírito sobre seu corpo e seus desejos, mas
que ele era ao contrário, como corpo, como afeto quanto como espírito, um ser de
comunicação consigo mesmo e com outrem, ou seja, um ser que só pode se fixar em suas
ações e em seus desejos reconhecendo que ele é também objetivamente suas ações e seus
desejos quanto julga que seja essas ações e esses desejos, podendo fazer com que reconheça
isso em outrem. Ele não pode, pois, se fixar nisso a não ser fazendo partilhar o julgamento
de objetividade que ele tem sobre eles, como o que tem sobre seus conhecimentos: essas
ações e esses desejos não podem, pois ser o objeto de um querer arbitrário, mas entram
necessariamente no conjunto de relações necessárias que ligam os homens ao mundo e os
fenômenos desse monde entre eles.
Essa experimentação total do homem faz, pois, com que ele reconheça o erro que
está no cerne da idéia de cultura moderna e de sua adulação do político, ao cerne da idéia
de um domínio do espírito por ele mesmo. Como ser de comunicação, ele reconhece
necessariamente que é impotente para se apropriar de uma vez por todas do exercício e dos
resultados desse julgamento e dessa partilha da verdade como código jurídico, moral ou
político sob a apelação de regras jurídicas, morais e políticas, pois ele não pode submeter
arbitrariamente a ocorrência desse acordo de objetividade e de verdade ao simples querer,
individual ou coletivo, de o produzir. Ele está tão impotente de se apropriar disso tanto
quanto está impotente de se apropriar de uma capacidade artística criativa, de uma escrita
literária fecunda, de um julgamento filosófico infalível, mais amplamente, de uma
comunicação que triunfe do simples fato de aceitar submeter seu querer artístico, literário,
filosófico ou expressivo às regras dadas. É assim que a experimentação pragmática e
consensual do homem por ele mesmo faz descobrir que o ser humano não pode atingir os
fins que ele tinha fixado pela história: que ele não pode se ajustar uma vez por todas a ele
mesmo, mas que o exercício partilhado de um julgamento da verdade sobre suas ações e
seus desejos é a única instância de ajuste à ação que lhe seja acessível, quando se dá lugar a
uma verdade tão objetiva quanto ele afirma que ela o é. Justiça e emancipação sociais
confirmam-se condicionadas por uma emancipação intelectual.
Confrontadas a esse erro, a essa incapacidade e a essas descobertas, as artes, as
literaturas, as filosofias e mais amplamente as culturas da comunicação desenvolveram
assim uma outra cultura além da que desejava produzir a modernidade. A dinâmica dessa

14
cultura contém em reserva o único futuro que o homem pode se construir. Apesar de a
experimentação comunicacional obrigar cada um a dela participar, volta-se, no entanto, à
filosofia para separar essa dinâmica e essa lógica da verdade inerente ao uso da linguagem,
pois a dinâmica da experimentação comunicacional faz acreditar que basta produzir um
sucesso de comunicação: o acordo com o outro e sua aplicação para regular de novo essa
experimentação redescobrindo no interior da linguagem, sob o aspecto dos verbos
performativos, essa posição soberana que permite se apropriar do consenso em si,
obrigando-o a se submeter às regras.
A antropologia da linguagem descobriu neste século que o homem, como ser de
linguagem, só pôde sempre e só pode sempre se transformar ele mesmo apenas
indiretamente: por intermédio, inicialmente, da identificação arcaica aos deuses, depois,
voltando ao julgamento da verdade que ele faz sobre suas condições de vida. A posição do
acordo de si consigo mesmo, com outrem e com o real que move todo pensamento e toda
palavra não constitui somente um princípio regulador, válido no reino dos fins, mas ela é
constitutiva da identificação do homem vivente aos sons e faz a lei, como tal, da harmonia
do pensamento com o real, como o faz com relação à harmonia com o outro. Ela faz
objetivar no homem seus desejos e suas ações como faz objetivar suas percepções e seus
conhecimentos: projetando a harmonia entre sons emitidos e sons apreendidos em suas
percepções, em seus desejos e em suas ações para poder lhes dar existência, destacá-los
dela mesma e fazer com que este homem reconheça se essas percepções, essas ações e esses
desejos são realmente suas condições de existência, uma vez que teve que pensar que
estava identificado com eles para ter podido assim pensar. Ela é, pois, igualmente o que se
deve julgar tão real que teve de se pressupor que ela existia para colocar cada um em face
dessas percepções, em face desses conhecimentos, em face dessas ações e em face desses
desejos como sendo suas condições de existência, como sendo a realidade de seu mundo.4
Essa harmonia se impõe ao homem pelo simples fato de que ele não pode distinguir
os sons que emite, os sons que escuta no momento mesmo em que os emite. Esta identidade

4
A estrutura democrática do respeito da lei da verdade é destacada em minha obra La loi de vérité ou la
logique philosophique du jugement. Albin Michel, Paris, 1993, depois em La condition démocratique,
L”Harmattan, Paris, 1998. Sua neutralização pragmática contemporânea por um consenso cego é analisada
como autismo da civilização em J. Poulain, L’âge pragmatique ou l’expérimentation totale, L’Harmattan,
Paris, 1991. A extensão dessa neutralização à vida política pela pragmática ética da república é diagnosticada
em J. Poulain, La neutralisation du jugement. La critique pragmatique de la raison polititque, L’Harmattan,
Paris, 1993.

15
é que passa por um processo mimético 5 em toda proposição como movimento de projeção
referencial dos sons nas coisas e como movimento de recepção predicativa do que, nas
coisas, faz delas realidades para nós. Toda emissão e toda compreensão de proposição
articulam mimeticamente6 esse movimento de emissão-recepção fono-auditiva que as traz,
quer sejam ditas ou simplesmente pensadas, pois esse movimento só permite isolar do que
se fala ou em que pensa, quando se pensa idêntico à propriedade ou à relação identificada
pelo predicado.
Também não se pode pensar em uma proposição sem pensá-la como verdadeira ou,
segundo a fórmula de C.S.Peirce, “toda proposição afirma sua própria verdade” 7 para poder
ser compreendida. Da mesma forma que se pode isolar da realidade pelo uso da expressão
referencial, apenas se julgarmos pelo uso do predicado no que consiste para ela o fato de
existir, identificando, por exemplo, a neve à sua brancura quando diz: “a neve é branca”, da
mesma forma que só se pode desfrutar dessa verdade na qualidade do alocutório que se é
para si mesmo, a partir do momento em que se julga se existir, para essa realidade, é ser
efetivamente aquilo a que se identifica: somente julgando a objetividade da harmonia
instaurada entre a neve e a brancura e somente reconhecendo se ela é também constitutiva
da neve e de sua aparição fenomênica como realidade é que é tido como verdade o fato de
termos pensado que ela o era para poder percebê-la dessa forma.
É essa reconstrução das condições antropológicas e filosóficas do uso do julgamento
que obriga a uma troca de paradigma com relação à modernidade que não seja somente
pretendida, mas efetiva: ela obriga substituir ao primado da razão prática aquele da razão
teórica e isso na área mesma da razão prática, no seio das relações ético-políticas. Com
efeito, libertam-se apenas as relações ético-políticas que reconhecemos ser e que julgamos
ser na experiência da vida e naquela do mundo, na maneira pela qual nos afirmamos e da
qual reconhecemos ser, na comunicação, a única realidade na qual consideramos estar. Pois
o exercício do julgamento político numa dimensão de justiça consiste em fazer realizar por

5
N.T. No original, o autor utiliza a palavra “mimée”, que que remete ao aristotelismo e a idéia de mimesis
que, por sua vez, remete à idéia de cópia ou imitação. Não havendo, em língua vernácula, um verbo advindo
de tal palavra, optamos por criar expressões, tais como “passar por um processo mimético”. Poderíamos
também ter usado neologismo mimetizar. No entanto, este se daria a interpretações dúbias. Na biologia, p.
ex., mimetizar poderia ser confundido com camuflar, etc.
6
N.T. No original, “miment”.
7
Ver Charles S. Peirce Collected Papers of Charles S. Peirce, The Belknap Press of Harvard University Press,
Cambridge, 1935, Vol. 5, § 340.

16
outrem e em realizar por si mesmo apenas aquilo que pensávamos que éramos. Nessa
inversão do primado da razão prática pelo primado da razão teórica, o primado do
julgamento da verdade que aí se encontra assim restaurado, “cura” todos os dois: eles se
tornam desalienados de uma procura moral de uma sabedoria onde o deleite último e o bem
supremo residem em um só e único prazer, no prazer de se saber livre do outro e de si
mesmo em toda experiência e, em seguida, igual a todo parceiro social. Conseguimos assim
nos liberar do que havia de loucura na relação política: esquecemos, dessa forma, da
convicção de que é possível deixar de se identificar magicamente e abstratamente com
todos os relacionamentos sociais ou vitais aos quais tivemos de nos identificar para poder
pensá-los, da mesma forma que libertamos o outro dele mesmo e como se fôssemos para
nós mesmos um outro alguém, como se estivéssemos alienados disso tanto quanto isso nos
vem ao espírito.
Ainda é necessário se libertar intelectualmente dessa mesma loucura no
relacionamento com a linguagem ela mesma. Ela reaparece, com efeito, no contexto da
experimentação total do homem sob os traços da enunciação performativa. Lugar de
garantia de todo julgamento, o acordo, já nas convenções institucionais, dá ao julgamento
social, transcendente aos indivíduos, a força performativa própria às enunciações as quais
basta enunciar para realizar os atos que aí estão designados. A partir de Austin, parece ser
suficiente pronunciar e invocar esse acordo já presente nos verbos performativos, depois,
fazê-los interferir na vida corrente invocando as convenções necessárias no momento certo:
cada um parece depositário de um julgamento infalível de apropriação das convenções do
contexto. Toda enunciação performativa que é emitida em conformidade com o enunciado
com a pretensão de um veredicto apropriado, de um julgamento que julga seu ajuste ao
contexto físico, social e mental dos parceiros implicados e que repousa assim sobre um
julgamento de apropriação partilhada, é boa e justa. Basta ser aquele que é necessário ser
para isso e seguir fielmente as regras de invocação dos performativos, conduzindo-se
conseqüentemente por eles. A enunciação performativa de promessa, de ordem, de conselho
ou de condenação é então feliz. E os dominantes dizem sempre o que é necessário.
O problema que surge é certamente que os julgamentos a serem ditos são sempre
diferentes visto que o outro tem outra coisa a me dizer do que eu tenho a lhe dizer, pois ele
não diz a mesma coisa que eu nem ao mesmo tempo, se é verdade, claro, que esta fala

17
responde, como se deve, ao que se tem necessidade de se ouvir um e outro. Desde então
esses julgamentos de apropriação visam sempre a preencher a única necessidade que falta
ao outro, da única forma que ele precisa e invocando a única convenção a invocar. Mas esse
único acordo social que falta produzir é sempre visto pelos parceiros de maneira diferente,
e logo antagônica: ele é sempre falso, sempre aparentemente falso. Desde que ele é também
procurado numa invocação performativa, deve sempre se justificar, o que também só pode
ser feito aniquilando o julgamento de outrem. A guerra do julgamento caracteriza essa
experimentação social pela fala pela qual eu devo sempre provar que o outro não tem razão
para poder ter razão. Somente a descrição antropológica e filosófica da dinâmica de
verdade da linguagem libera desse engodo de domínio revelando atrás desses fracassos
necessários, um erro, curando assim dessa procura de um acordo com o outro e registrado
na língua sob o aspecto dos performativos.
Mas opera-se também uma mutação cultural na relação da cultura ela mesma e esta
mutação tem a mesma virtude terapêutica a propósito da cultura do que a descrição da
dinâmica de verdade no uso da linguagem. Desde Kant, Humboldt, Schelling e Hegel, essa
mutação cultural relaciona-se com o jogo criativo de uma harmonia entre o imaginário, o
entendimento e o sensível que só é produzível pelo gênio e somente é receptível por
aqueles que estão tão livres magicamente das obrigações da razão quanto os gênios eles
mesmos. O julgamento reflexivo pelo qual ele apreende as formas artísticas, por exemplo,
pressupõe que se possa deleitar do belo sem conceito, pois a obra de arte desdobra uma
livre harmonia entre o entendimento e a sensibilidade que desafia toda regra. A
experimentação contemporânea do homem pelo consenso obedece à mesma lei de
formação colocando no poder da comunicação um livre consenso entre indivíduos, um
consenso que afeta somente a felicidade de harmonia entre todos que ele produz. O
consenso cultural com a obra de arte era tão cego quanto o é o consenso experimental
contemporâneo. É esta cegueira que põe fim à mutação cultural provocada pela descoberta
da dinâmica de verdade no seio do imaginário verbal, da razão como da sensibilidade ela
mesma. Só é cultura o que é criado e reconhecido segundo as leis desta dinâmica de
verdade. As obras de arte que se fazem reconhecer como tais nesta experimentação total só
o podem ser emancipando-se deste gozo do puro jogo harmonioso, mas cego, do imaginário
e do entendimento, do puro esteticismo. Elas só podem subsistir aos olhos de seus criadores

18
bem como de seus receptores revelando um diálogo do homem com sua própria natureza e
meio ambiente o qual apresenta as condições de vida sem as quais eles não podem viver,
pois elas obedecem à mesma dinâmica crítica do julgamento inerente à linguagem ela
mesma. A cultura significa aqui o reconhecimento in actu da dinâmica da verdade inerente
tanto à criação de um mundo novo em resposta à percepção de um mundo em pedaços
quanto ao reconhecimento da objetividade da beleza desse mundo que o habita para ser o
que parece ser: uma condição de existência do ser humano tão objetivamente verdadeira em
suas relações com o belo como é objetivamente reconhecido como real o mundo científico
novo por aqueles que devem reconhecê-lo como real, fazendo julgar mutuamente
verdadeiras as proposições que descrevem esse mundo.
A cultura das artes e da escrita se manifestam assim como exemplos da cultura da
comunicação, como uma comunicação que integrou um movimento crítico de verdade tanto
na dinâmica da criatividade quanto na de receptividade, que integrou, por exemplo, nela o
uso do julgamento crítico universitário. Ela lhe faz reconhecer assim igualmente que toda
comunicação é nesse sentido um espaço público e que ela o é já, como espaço público
constituído e institucionalizado como tal, na medida em que ela é uma troca universitária,
uma troca de julgamento que repousa sobre ela mesma e sobre sua capacidade de apresentar
o mundo no qual esse julgamento é verdadeiro: fazendo vir, pelo pensamento, esse mundo à
existência do único fato que possa mostrar que ele já está lá como realidade, como mundo
humano, tão presente como realidade quanto é verdade que ele a represente como tal sob a
forma que ele lhe dá.
A universidade se universaliza necessariamente neste horizonte de experimentação
do homem pela comunicação reconhecendo-se já como forma de toda comunicação uma
vez que essa não pode satisfazer o desejo de consenso de forma cega, mas pode alcançar
isso, a propósito do homem ele mesmo, fixando-o, pelo simples fato de fazê-lo se
reconhecer como tal, como ser de juiz de verdade, como ser teórico através de um processo
de experimentação dele mesmo submetido a esse julgamento. Ela já preenche assim seu
papel como fase inicial, mediana e terminal da transformação indireta do homem por ele
mesmo que é esta experimentação total do homem como elemento do mundo, pois esta
experimentação se faz necessariamente através de um desvio de um julgamento de verdade
trazido sobre as formas de vida experimentadas bem como pela partilha desse julgamento

19
de verdade. Esse desvio e essa partilha de julgamento são universitários tanto em suas
formas como em seu conteúdo.
A universidade se revela assim ser bem mais que uma instituição: a instituição do
saber, pois ela é esta instituição do saber ao estabelecer que ela já é forma de vida, e a única
forma de vida que convém ao homem, pois exprime e desenvolve a dinâmica e a lógica
inerente a toda comunicação: esta força que é criativa do mundo a partir do momento em
que critica esse mundo que ela cria, fazendo dessa crítica uma crítica mutuamente
partilhada, em seu exercício como em seus resultados. É igualmente assim que ela pode
estabelecer que o homem pode se tornar esse ser com um domínio perfeito de si desde que
ele procure através desta experimentação indefinida dele mesmo pois ser-lhe-ia necessário,
para fazer isso, renunciar a ser o que ele é : essa divisão do julgamento a propósito dele
mesmo e do mundo, para se contentar em apaziguar seu sonho de ser soberano.
Ela só consegue também impor o uso do julgamento no seio de uma experimentação
que nega o seu uso e o substitui por um consenso cego, restaurando um espaço de
confirmação mútua fundado sobre o reconhecimento de que o que os mundos públicos
produzem, quer sejam industriais, econômicos, jurídicos, morais ou políticos, são as
condições objetivas de vida que eles presumiram ser para existir como o fazem, ou, que, ao
contrário, eles não o são, e por quê. É assim que ela dá conta, à sua maneira, do fato de que
o homem não pode se transformar ele mesmo diretamente, nem obter um domínio
consensual dele mesmo e do outro, sem estar certo da objetividade desse mundo e das
formas de vida que ele desenvolve, quer dizer, sem fazer o desvio pela separação desse
julgamento de verdade, de um julgamento de verdade que pode fazer que se reconheça que
ele é efetivamente tão verdadeiro quanto é verdade que ele o afirme ser. Este exercício
universitário de reconhecimento do homem em seu conceito: do reconhecimento prático e
teórico de cada um no que ele é como ser de julgamento, substitui já no exercício desse
julgamento como movimento bem sucedido, ao movimento fracassado de transformação
direta.
Logo a universidade tem a afirmar que ela é esta forma de vida universal no espaço
de vida universitária, a se desenvolver e a se completar como tal, mas ela tem de fazer
reconhecer igualmente que todo espaço público é ou tem de ser universitário no sentido de
que já exista como operante e como soberano neste exercício de julgamento. Ela só pode

20
fazer isso estabelecendo que as transformações dos espaços de comunicação econômica,
industrial, política e ética que são impostas para ultrapassar o fracasso globalizado de sua
vontade de potência são efetuadas com sucesso sob a condição de que os indivíduos, as
empresas, as instituições, os grupos e os Estados tenham aceitado operar, do ponto de vista
deles mesmos, esta mutação de ser de vontade de potência em ser de julgamento, em ser
teórico.
No contexto das globalizações culturais que provoca em seguida a globalização
neoliberal, o diálogo intercultural confirma-se como uma necessidade colocada à prova da
capacidade de cada cultura a se propor como uma forma de vida a ser assumida por todos
aqueles que dela participam assim como pelos outros. A necessidade de se recorrer ao
diálogo universitário entre culturas é um de seus componentes essenciais. O discurso
universitário não é, com efeito, uma ocasião qualquer para uma cultura se afirmar: ele é a
instância pela qual esta cultura toma uma consciência crítica de seus limites na
compreensão que ela tem de outras culturas, bem como da necessidade de tirar o diálogo
intercultural de uma pura relação de comunicação e de registro de uma compreensão
recíproca ou de uma incompreensão recíproca. Por ele, advém a possibilidade de discernir
em que as relações necessárias de complementação cultural revelam as constantes
antropológicas que podem ser reconhecidas como tais desde que sejam adotadas pelos
parceiros das diversas culturas implicadas.
É nesse discurso crítico que as fronteiras próprias às diversas culturas podem ser
retomadas e que a maneira pela qual as culturas parceiras ultrapassam essas fronteiras pode
ser integrada na cultura inicial. O respeito às culturas no diálogo cultural não pode, com
efeito, se limitar a uma atitude formal de reconhecimento da existência de uma outra
cultura à maneira pela qual o direito nos obriga a respeitar a existência de uma outra
pessoa. Ele deve ser um respeito exercido no ato mesmo de crítica pelo qual uma cultura
reconhece dever integrar aquilo que lhe falta e que serviu de base à cultura com a qual ela
está em diálogo. Este reconhecimento como ato da especificidade de outras culturas, de sua
validade antropológica e de sua relação real com a construção de uma humanidade
conforme ao que ela deve ser, ao que ela deve ser efetivamente, condiciona a troca da força
crítica do discurso universitário no diálogo intercultural.

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Ele permite, pois, uma implicação dos universitários na transformação de sua
cultura e das instituições que dela derivam bem como uma intervenção de sua parte nas
outras culturas pelo aspecto do reconhecimento que podem conceder à contribuição dos
universitários formados nesta cultura, uma vez que a contribuição crítica da cultura
estrangeira é reconhecida na sua validade antropológica. Se considerarmos, por exemplo, o
desnível intercultural recente advindo entre o liberalismo e a cultura muçulmana, é forçoso
reconhecer de uma parte a necessidade de alargar a cultura contratual do liberalismo
americano por um reconhecimento das relações de necessidade ligando o desenvolvimento
das culturas sociais ao mundo e à realidade dos homens, um reconhecimento das relações
de necessidade que obrigam a reconhecer a objetividade das leis que regulam as trocas
econômicas e impõem uma justiça na redistribuição dos bens, dos direitos e dos deveres. Só
um tal reconhecimento pode fazer escapar o sonho europeu de uma democracia deliberativa
mundial a seus limites éticos internos. A cultura muçulmana oferece esta possibilidade de
criticar os limites internos do pensamento contratual e dos acordos arbitrários de troca que
ela promove. Ela oferece esta possibilidade à condição de poder se ajustar ela mesma à
imagem do homem proposto pela experimentação total dele mesmo à qual ele se entrega e
de abandonar seu refúgio acrítico em uma consciência do destino encorajador da luta contra
tudo aquilo que presumidamente se opõe ao destino por escolha de seus fiéis.
Mas esta crítica universitária deve se fazer transcultural, como bem mostrou Fathi
Triki, na medida em que deve adotar o ponto de vista de outras culturas: para poder
compreendê-las e testar a criatividade cultural de outras culturas bem como sua operância
crítica, deve-se não somente pensar que o outro possa ter razão, mas que ele a tenha ao
pensar ser verdadeiro aquilo que ele pensa, devendo-se em seguida reconhecer ou não que é
verdadeiro aquilo que seja falso. Esta indisponibilidade do único critério antropológico do
diálogo intercultural crítico: o acordo de verdade de outrem era talvez aquilo que era visado
através da proibição de se apropriar da força de julgar em última instância o que era
devolvido ao Deus judaico. Mesmo que esteja fora de questão proibir ao homem das
globalizações culturais de se identificar ao ser de julgamento e de verdade que ele é, resta a
necessidade de que ele entenda da cultura judaica cristã sua incapacidade de o ser humano
reconhecer a verdade daquilo que ele diz e pensa uma vez que não pode partilhar seu
julgamento de verdade com o outro fazendo-o reconhecer a objetividade da experiência

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dele mesmo e do mundo que ele faz acontecer então. Talvez isso constitua o judaissismo e o
islamissismo escondido do europeu, como tão bem pensa R. Maté, talvez isso constitua a
limitação interna ao uso do julgamento filosófico, quer seja cotidiano ou profissional, se é
verdade que essa partilha e a doação ao outro como a si mesmo das condições de acesso
dessa partilha constituem os únicos testemunhos da existência dessa verdade que para ser
tem necessidade de ser comum e de ser comumente reconhecida.

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