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Apresentação

Hannah Arendt já afirmara que a violência necessita sempre de instrumentos, sejam


esses materiais, como a violência física, ou simbólicos, como o apagamento de existências
outras que não se enquadram na heteronormatividade. Ao pensarmos as relações genderi-
zadas, torna-se latente que as subjetividades são construídas através de embates, de choques
e, por que não afirmar, através de violência. Como afirmara Judith Butler, “o gênero não é
um substantivo, mas tampouco é um conjunto de atributos f lutuantes, pois vimos que seu
efeito substantivo é performativamente produzido e imposto pelas práticas reguladoras da
coerência do gênero”1.
A violência está vinculada à questão de gênero a partir de uma noção que estabelece
sua existência como um a priori do processo civilizatório, ou seja, como se tanto a violência
quanto o estabelecimento de gêneros definidos por valores patriarcais (e, por extensão, da
própria sexualidade) fossem uma situação inevitável e entendidas como definidoras de to-
dos os papéis culturais. Butler afirma que argumentar em prol de possibilidades diferentes
de entendimento da realidade social deve, necessariamente, buscar uma espécie de com-
preensão mínima de como essas estruturas se consolidam. No seu ensaio A reivindicação
da não violência, Butler alerta para que o discurso contra a violência não se limite apenas
a um apelo, a uma busca por uma sensibilidade humana em sua essência, pois esta mesma
essência também justifica a própria violência.

Assim, a violência não é estranha àquele a quem o discurso de não violência é


dirigido; a violência não se encontra, a princípio, presumivelmente “fora”. A vio-
lência e a não violência não são apenas estratégias ou táticas, mas configuram o
sujeito e se tornam suas possibilidades constitutivas e, assim, uma luta perma-
nente. Fazer essa afirmação é sugerir que a não violência é a luta de um único
sujeito, mas também que as normas que atuam sobre o sujeito são sociais por
natureza, e que os vínculos que estão em jogo na prática da não violência são
vínculos sociais.2

Considerando essa proposta de publicação do número 28 da Revista eletrônica Litera-


tura e Autoritarismo – Violência e Gênero –, os artigos que compõem essa edição discutem,
assim, as relações estabelecidas entre violência e gênero em diversas áreas do conhecimento
tendo como base de análise fontes das mais variadas.

1 BUTLER, Judith. Problemas de gênero: feminismo e subversão da identidade. Tradução de Renato Aguiar. Rio de Janeiro:
Civilização Brasileira, 2003, p. 48.
2 BUTLER, Judith. A reivindicação da não violência. In: . Quadros de guerra. São Paulo: Civilização Brasileira,
2015, p. 234.

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No que tange períodos de guerra e repressão, a saber a Guerra Civil Espanhola (1936-
1939) e do Franquismo (1939-1975), Adriana Aparecida de Figueiredo Fiuza e Patrícia
Dal’moro Mendes analisam a condição feminina na literatura – La voz dormida (2002), de
Dulce Chacón, e Las trece rosas (2003), de Jesús Ferrero –, tendo como ponto de apoio os
cruzamentos entre memória, literatura e história. O corpo transgressor, o corpo feminino,
deveria ser reeducado, tanto politica quanto religiosamente. A despeito da violência física, o
medo figura como forma de controle, psicológico, sobre esses corpos. Neste contexto, Fiuza
e Mendes afirmam que “[a]s obras, objetos desse estudo, representam memórias de um pe-
ríodo e de personagens históricas que são importantes para recuperar uma parte da história
esquecida das mulheres”.
A comédia grega Lisístrata (411 a.C), de Aristófanes, e sua reescritura fílmica A Fonte
das Mulheres (La Source des Femmes, 2011), coproduzido por França, Bélgica e Itália e di-
rigido pelo romeno Radu Mihaileanu, são as fontes do artigo de Amanda Jéssica Ferreira
Moura e Carlos Augusto Viana da Silva, que propõem analisar o “tratamento da condição
social da mulher” em ambas as obras. Moura e Silva apontam para o fato de que ao dar o
poder ao feminino, Aristófanes estaria ‘empoderando’ essas mulheres, mas usando de um
recurso para criar o riso, dado o absurdo de tal situação, isto é, “[a] autoridade feminina
tratada na peça é apenas um disfarce, uma máscara através da qual a comédia em questão
discute mais acerca da preservação da cidade do que da condição da mulher”. Na narrativa
fílmica, o episódio da fonte perde a comicidade e ganha contornos dramáticos, visto que,
na atualidade, o riso não é a maneira de se abordar a condição feminina, “mas denunciando
os abusos que elas sofrem diariamente, o que explica o tom dramático adquirido no filme”.
A análise do conto Ruídos (2008) de Luci Collin, realizada por Andiara Maximi-
niano de Moura, tem como base teórica as discussões acerca da violência simbólica do
masculino sobre o feminino propostas pelo sociólogo francês Pierre Bourdieu em A do-
minição masculina. As discussões apresentadas por Moura partem do pressuposto de que
no conto percebe-se uma relação “entre uma mulher e um homem, já que é visível uma
representação discursiva de dominação do contexto patriarcal”. Após a análise do conto,
a autora conclui que neste há “um protesto contra os valores e padrões vigentes, contra o
autoritarismo, além da luta em defesa dos direitos femininos e de igualdade”. A protago-
nista figura, portanto, como a representação de um novo feminino, uma vez que “no lugar
da mulher objetificada e/ou silenciada, af loram sujeitos livres de classificações hierarqui-
zadas de gênero”.
O centro do trabalho de Carlos Roberto Ludwig é a análise das “projeções do mascu-
lino sobre o feminino” em peças shakespearianas, tendo como base teórica os estudos de
Adelman (1992), sobre as fantasias maternas, e Maus (1995), acerca da noção de interiori-
dade. As diferentes representações das personagens femininas nas obras acabam, segundo
Ludwig, sendo projeções dos masculinos “como resultado de um construto social e simbó-
lico da época”. Em outras palavras, é afirmar que acerca desses femininos, sabe-se o que os
masculinos dizem e como eles as percebem. Neste contexto, Ludwig afirma que aquilo que
o público conhece dessas personagens é resultado das projeções interiores dos masculinos,
concluindo que “[a]s mulheres em Shakespeare são por sinal apenas projeções dos desejos
masculinos e uma construção simbólica do que os homens querem que elas sejam”.

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APRESENTAÇÃO

Cinthia da Silva Belonia apresenta uma discussão acerca das personagens femininas
negras no romance de Isabela Figueiredo Caderno de memórias coloniais, o qual “narra a
infância da personagem narradora em Moçambique”. Belonia volta seu olhar para a ques-
tão do racismo “personificado na hipersexualização da mulher negra e na infantilização
do homem negro”, violências cotidianas contra o corpo negro. A autora, após analisar o
romance, conclui que as imagens do negro criadas na e pela narrativa reforçam “sempre a
imagem de indivíduos inferiores, irracionais, animalescos, infantilizados e hipersexuali-
zados”.
O eu e o outro, o masculino e o feminino, os conf litos de um amor possessivo e a ruína
da relação e do eu (a psicose): “um masculino despótico que lamenta um feminino pleno de
possibilidades”; esses são alguns dos aspectos levantados por Érica Schlude Wels ao analisar
Valsa Negra de Patricia Melo. Wels, dialogando com Foucault, Bourdieu, Butler, Lipovetsky
e Baudrillard, acentua a capacidade do romance “de exemplificar as tensões de gênero, bem
como a derrocada dos papéis sociais esperados pelo casamento heterossexual”.
A representação da mulher-amada, através da voz do narrador-protagonista Don José,
no conto Carmen de Prosper Mérimée é o foco das indagações de Felipe dos Santos Matias.
Nas palavras deste narrador, a mulher, por seduzir e conquistar, é a culpada pela morte. Se
na voz do outro, a figura feminina é culpada, nas “pequenas aberturas [do discurso machis-
ta] [...] se podem perceber caminhos para a refutação e a desconstrução do que é narrado,
que se podem observar a angústia sofrida pelo sujeito feminino”. Matias conclui, portanto,
que, na narrativa, ao masculino cabe o domínio, inclusive o da fala, e ao feminino, o silen-
ciamento.
O binômio masculinidade e violência fornecem a base de análise para que Jonas Hen-
rique de Oliveira observe o filme brasileiro Tropa de Elite. De acordo com Oliveira, a perso-
nagem Capitão Nascimento incorpora a imagem de herói e anti-herói, uma figura vacilante,
preenchida por conf litos. A masculinidade policial é construída, assim, na e pela violência;
uma violência cotidiana e urbana que marca os corpos e os constrói: uma violência natura-
lizada.
O objeto de estudo de Marcos Sardá Vieira é o filme Sob a pele, tendo o artigo como
propósito “ref letir sobre a vulnerabilidade presente no comportamento regular de homens
e mulheres no contexto urbano de interações sociais”. Centrando sua investigação na per-
sonagem alienígena percebe que a escolha pelo gênero feminino faz parte de uma estratégia
maior, na qual a figura é uma “isca dentro de um mecanismo mais complexo, que utiliza a
cidade escocesa e a arquitetura de uma casa (onde leva suas vítimas para o suposto encontro
furtivo) para esconder seus atos ilícitos e inumanos”. O que está latente, portanto, em toda a
narrativa fílmica é a questão da “vulnerabilidade social dos homens diante da sua condição
de dominação”.
Fechando este número, o artigo de Ana Carla Vagliati e Geiva Carolina Calsa partem
de um levantamento bibliográfico para discutir a questão da violência de gênero contra
mulheres no contexto escolar, mais especificamente, “concentrando-nos nos estudos sobre
as representações de docentes sobre a violência sexual contra meninas”. Após a análise
bibliográfica, Vagliati e Calsa concluem que é de grande valia que a prática docente seja
ref lexiva a ponto de “possibilitar aos/as docentes um repensar sobre suas representações de

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si e do outro e, nesse contexto, oportunizar uma educação que venha contribuir para ques-
tionar preconceitos e desigualdades”.

Profa. Dra. Daniele Gallindo G. Silva (UFPel)


Prof. Dr. João Luis Pereira Ourique (UFPel)
Organizadores

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