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Maria de Fátima Lambert – DDD - 2018

“Como rodopiar sozinho para em crescendo, a espiral agregar e dispersar os outros sob suas
roupagens: a propósito de Jerada de Bouchra Ouizguen”

“Uma situação de ação não habitual transforma-se em normalidade. Reflete os fenómenos que a
sociedade encontra todos os dias e, na sua abstração em atirar, de repente a pessoa vê-se
confrontada consigo mesma. Como se transformaria uma pessoa - isto é, como é que uma
pessoa se afirmaria como indivíduo no seio duma massa coletiva?”
Tanz der Moleküle von Laura Biewald in https://tanzhausnrw-blog.com/2018/03/02/ueber-jerada-
von-carte-blanche-bouchra-ouizguen/ (tradução minha)

Premissa:

Como viver junto? Perguntava-se Roland Barthes, atribuindo esse título à compilação de textos
onde, a transcrição de uma conferência assim se intitula. Donde avançar e complementar:
como sobreviver junto, coabitar num espaço comum, como viver em grupo sem soçobrar, sem
ser alvo de excessivo dano?

1. O corpo dançante foi - desde os primórdios – lugar, veículo e catalisador de culto.


2. Edificado a partir de premissas simbólicas, para lá da pragmática ritual das primeiras
manifestações coletivas dançantes: expressavam a vida e a morte, mediada pelo
instinto de sobrevivência.
3. “É no seu corpo que se operam as passagens, é ele que recebe o poder de uma coisa,
de um lugar, de um morto.” (José Gil, Metamorfoses do Corpo, Lisboa, A Regra do
Jogo, 1980, p.19)
4. Nas comunidades arcaicas e onde predominava a ordem comunitária, em aceção
holista, reconhecia-se o corpo-organismo, mas numa advertência de que este
atravessava por todos os corpos individuais.
5. Veja-se como o corpo que aprendeu a rodopiar em volta de si, para convocar todos os
corpos que aprenderam a ser sozinhos: ludibriava-os e iluminava-os num êxtase que
ultrapassou todas as geografias conhecidas.
6. Era o corpo que guardava em si a herança direta dos mortos e onde se plasmava a
marca social dos ritos — comunicação corporal tribal de qualquer cidade e metrópole.
7. Gestos, música e palavras: assim se consubstanciou a triunica choreia, conceito
cúmplice para a assunção das artes expressivas que tomam o poder da estética mais
substantiva a corpo e alma.
8. A música tornou-se autónoma da triunica choreia, ainda que intrinsecamente
conectada à palavra proferida ou gritada – domesticou os movimentos e concedeu-
lhes o livre arbítrio através da duração e do incessante, inebriante rodopio.
9. Os ritmos da Música eram “imagens” da psique, signos ou manifestações de
temperamento e caráter. Regimentam a entrada, a permanência e a saída de cena, da
vida, da morte – conflito e fruição.
10. O corpo comunitário implicava a vivência subsumida como não separado, não isolado
de coisas ou de [outros] corpos. O corpo que persiste em querer sobreviver em
conjunto guerreia consigo próprio e faz tréguas instantâneas.
11. O corpo dançante desencadeia crises, resultantes da ação deliberada que o autoriza
negociar os limites de si.
12. Concretiza deslocações circunscritas e circulares no espaço em intervalos que
instauram a fixação de pose e a sua intersticial paragem em dinamismo mais lento.
13. Organiza-se compassando os ritmos de respiração que o organismo lhe consente:
exaltação articulada pelo inebriamento causado pela magnetizante pulsão do ritual.
14. Exigem-se [desde o início] capacidades extraordinárias às pessoas-corpos-dançantes,
quer a superação de si respondesse a propósitos comuns, exortado o corpo a ser
reclamado pelo grupo como entidade – coesa ou conflituante – mesmo quando se
pensa dominar o primado do indivíduo sozinho.
15. A libertação da alma era um dos objetivos sublimes e ambicionados, alcançada através
do transe vivenciado mediante as celebrações que transacionavam com a Natureza,
depois com os deuses e sempre sem prescindir dos humanos.
16. Os atos rituais sofreram alterações, multiplicaram-se e configuraram sistematizações
específicas: o estetismo conformou-se consciente e intencional, associado à ideia de
público – já não apenas num contexto de aglomeração de pessoas por causas
ritualizadoras.
17. Há várias formas de estar sozinho: isolado, afastado ou mergulhado na comunidade,
ainda que pautando-se por regras de convivialidade que não existe. Quer nas ordens
monacais, quer nas sociedades tecnológicas – extrapolando as ideias a partir de
Roland Barthes.

Toda a sabedoria de Jerada de Bouchra Ouizguen por Carte Blanche propiciou uma viagem
dentro de mim, perscrutando o que é hoje sobreviver em grupo, viver junto com os outros – F
E L I Z que se queira algum dia ter sido.

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