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Conceito de Hermenêutica:

A palavra Hermenêutica é derivada do grego “hermeneuein” entendida


como a teoria da interpretação e, nesse sentido, é muitas vezes usada
como sinônimo de exegese.
Por que a Hermenêutica é tão importante? A partir do século XIX, o direito
passou a se identificar com a lei. E a lei nada mais é do que um texto, cujo
sentido é ensinado nas faculdades, é debatido pela doutrina, é disputado
pelas partes numa ação judicial.
ESCOLAS E TEORIAS JUSFILOSÓFICAS MODERNAS
Escola da Exegese: Positivismo jurídico ideológico
É a doutrina que defende o dever de obedecer à lei, qualquer que seja o
seu conteúdo.
a. Positivismo Jurídico como uma teoria que considera o direito como
fato e não como valor (o que está em jogo é o conceito de direito):uma
norma jurídica existe (vale) porque foi criada e imposta por quem detém o
monopólio da violência numa determinada sociedade. O que caracteriza o
direito não é a justiça da disposição das suas normas, mas a coatividade, a
força para fazê-las cumprir. Por meio da teoria positivista é possível identificar
quais são as normas jurídicas dentre as mais variadas normas sociais (normas
morais, religiosas, de etiqueta).
b. Positivismo Jurídico como uma teoria da obediência (o que está em
jogo não é o conceito de direito, mas uma obrigação moral): deve-se
obedecer às normas jurídicas independentemente do conteúdo das suas
disposições (“a lei é a lei”; “a lei é dura, mas é a lei”). Por mais que se encontre
a justificativa da obediência de uma norma jurídica em outra norma jurídica e
assim por diante, chegará o momento em que as normas jurídicas se esgotarão
e a pergunta ainda permanecerá.
Brocardo In claris non interpretatio
Esse brocardo também é conhecido “in claris cessat interpretatio”, com o
significado de que, sendo a redação da lei clara, não se faz necessária a
interpretação. Somente cabe interpretação se houver obscuridade,
ambiguidade na lei.
Porém, a conclusão a que se chega é não pode mais ser aceito;
 Em primeiro lugar, o texto legal somente é claro porque ele já foi
interpretado e dessa interpretação não restou nenhuma dúvida quanto ao seu
sentido.
 Em segundo lugar, a clareza é sempre relativa: o que pode ser claro
para um, pode não ser para outro.
 Em terceiro lugar, sempre é possível encontrar casos concretos em que
surgem dúvidas a respeito do sentido do texto legal, em que a sua aplicação dá
margem para uma discussão, pois pelo menos dois sentidos são possíveis
para aquele mesmo texto.
Aplicação mecânica do direito
Para a teoria da aplicação mecânica do direito, sempre que uma norma
disciplinar um caso concreto, a decisão é vinculada, isto é, o aplicador do
direito dispõe de critérios determinados e fechados para chegar à decisão.
Em outras palavras, os critérios são objetivos e permitem uma única
resposta correta.
Neste caso, a norma aplica-se por subsunção, ou seja, se o caso concreto
se encaixar no antecedente normativo, então deve ser aplicado o disposto
no consequente normativo; se ele não se encaixar, não deve ser o
consequente. Fala-se em silogismo judicial:
a. a Premissa Maior é a Lei, isto é, a norma;
b. a Premissa Menor é o caso concreto;
c. a Conclusão é a decisão judicial.
Basta ao aplicador da lei (um juiz, por exemplo) conhecer a Lei (isto é, ser
capaz de passar do texto legal para a norma, extraindo do texto todas as
condições de fato e consequências jurídicas ali presentes) e conhecer o
caso concreto (como as partes devem provar o que alegam, é trazido ao
conhecimento do juiz todas as circunstâncias relevantes do caso concreto,
para que ele possa verificar se aquelas condições de fato foram satisfeitas
pelo caso concreto), para chegar à decisão: ou se aplica a consequência
jurídica (todas as condições de fato foram satisfeitas pelo caso concreto)
ou não se aplica a consequência jurídica (pelo menor uma condição de fato
não foi satisfeita pelo caso concreto).
A aplicação do direito é realizada como um cálculo lógico. Dados dois
casos concretos semelhantes quanto às características determinadas nas
condições de fato da norma, eles devem receber a mesma decisão de dois
juízes distintos. Se isso não acontecer, é possível identificar o erro judicial
cometido, bastando refazer todo o silogismo judicial e verificando se a
subsunção foi corretamente aplicada.

Outras Escolas de Interpretação


1. Escola Histórica do Direito
O grande nome dessa escola é o de Friedrich Carl von Savigny
Partia do pressuposto de que as normas jurídicas seriam o resultado de uma
evolução histórica e que a essência delas seria encontrada nos costumes e
nas crenças dos grupos sociais. Empregando a terminologia usada por essa
escola jurídico-filosófica, o Direito, como um produto histórico e uma
manifestação cultural, nasceria do “espírito do povo” (em alemão: Volksgeist).
Nas palavras de Friedrich Carl von Savigny o Direito teria suas origens “nas
forças silenciosas e não no arbítrio do legislador”
A origem do Direito seria encontrada, em um primeiro momento, no direito
consuetudinário. Em um segundo momento ela surgiria por força
da jurisprudência, aqui compreendida como ciência da lei. O Direito, então,
seria o produto de forças sociais internas e nunca produto do arbítrio do
legislador. Interpretar as leis exigiria a consideração da vinculação da lei ao
papel orgânico do instituto jurídico.
2. Jurisprudência dos Conceitos
Entre as principais características da jurisprudência dos conceitos estão: o
formalismo, com a busca do direito na lei escrita; a sistematização; a busca
de justificação da norma específica com base na mais geral
O direito provém de fonte dogmática, imposição do homem sobre o homem e
não consequência de outras ciências ou da fé metafísica. Em lugar de
conhecer o que dispõem as várias normas, o jurista enquanto cientista do
direito deve conhecer a estrutura que sustenta essas normas; deve
buscar os conceitos jurídicos que sustentam o direito. E esses se
organizam em um sistema, dos mais específicos aos mais gerais:
Exemplo: um contrato de aluguel e outro de comodato são espécies de um
conceito mais geral, o de contrato; os contratos e os testamentos, por sua
vez, são espécies de um conceito mais geral, o de ato jurídico.
Quais são as partes em que se decompõe um ato jurídico?
Qual a conceituação de cada uma dessas partes?
Representantes da Jurisprudência dos Conceitos:
Georg Friedrich Puchta (1798-1846) e Rudolf von Ihering (1818-1892O
formalismo jurídico atribui ao direito as seguintes características:
a) ser formado apenas por normas criadas pelas autoridades competentes,
especialmente pelos órgãos legislativos, desprezando-se os costumes e
a jurisprudência;
b) o direito é um sistema de normas, um sistema fechado: os aplicadores
do direito (os juízes, por exemplo) não precisam recorrer a outras normas
(como as morais, por exemplo) para a sua decisão;
c) os aplicadores do direito estão obrigados a recorrer às normas jurídicas,
e somente às normas jurídicas, para chegar às suas decisões;
d) o sistema jurídico é dotado de unidade, coerência e completude. As
normas jurídicas são normas criadas pelo Estado, no exercício da sua
soberania, o que garante a unidade do sistema; o sistema jurídico contém
critérios para eliminar eventuais conflitos entre normas (por exemplo, o
hierárquico determina que a norma superior revoga a norma inferior), de
maneira a garantir-lhe a coerência; e, em caso de lacuna (lacuna é a
inexistência de uma norma que se aplique a um caso, inexistência que
implica falta de solução jurídica para esse caso), estão previstos meios de
integração do direito, como a analogia, por exemplo.
e) para a maioria dos autores dessas escolas, todos estão obrigados a
obedecer às normas jurídicas. Para o formalismo, é irrelevante o conteúdo
do que é disposto pelas normas jurídicas, é irrelevante se ela é justa ou
injusta, se ela atende ou não a determinada finalidade moral. Basta que
elas sejam promulgadas por órgãos que tenham competência para fazê-lo
para que elas sejam normas jurídicas, lembrando sempre que essa
competência é determinada por outras normas também jurídicas.
Pode-se perceber como o sistema jurídico, para o formalismo, torna-se
indiferente à sociedade e aos valores sociais, o que levará muitos
pensadores a criticar essa maneira de conceber o direito.
3. Jurisprudência dos Interesses
A fim de se contrapor ao formalismo da Jurisprudência dos Conceitos,
Philipp Heck (1858-1943) concebe o direito como um processo de proteção
dos interesses.
As leis e as decisões judiciais resultam de interesses que existem na
vida social. A ciência do direito não se limita a um acúmulo de
conhecimento a respeito das normas, mas, antes, é um saber com uma
finalidade, a de encontrar soluções práticas para a vida social. Em lugar do
direito como uma ordenação lógica de conceitos, que acabou por isolar o
direito das suas origens na sociedade, tem-se o direito vivo na sociedade.
E, para a disciplina dos interesses na vida social é fundamental a atividade
do juiz, não mais limitada a uma exegese dos textos legais ou a uma
arquitetura de conceitos da dogmática jurídica. A atividade dos juízes (e
também a do legislador) é uma atividade de conhecimento e também de
valoração.
A atividade do juiz é criadora, na medida em que desenvolve critérios
axiológicos (ligados aos valores) para decidir entre os interesses em jogo,
a partir da valoração já efetuada pelo legislador ao criar a lei. Com relação
à hermenêutica, a escola seguiu privilegiando a interpretação teleológica,
orientada para os fins e para os valores.
A atividade dos juízes assume um papel mais importante, pois se trata de
uma atividade não limitada a uma técnica de simplesmente subsumir casos
a uma norma anteriormente dada, mas os torna efetivos colaboradores do
legislador na atividade de criação do direito, o que fica bastante claro no
caso das lacunas, cuja existência era negada pela Jurisprudência dos
Conceitos.
4. Escola do Direito Livre
Também constitui um movimento de reação ao formalismo jurídico e à
Jurisprudência dos Conceitos. Seus principais representantes são
Hermann Kantorowicz (1877-1940) e Eugen Ehrlich (1862-1922).
Compreensão sociológica do direito. Com base na sociologia, o juiz é livre
para encontrar uma decisão, sempre que a solução prevista pela
legislação for inexistente ou insatisfatória. Para chegar a uma decisão
nesses casos, os juízes deveriam consultar documentos, observar a vida
diretamente, verificar os usos e costumes que vigoram na sociedade,
conhecer as associações que formam na vida social, mesmo aquelas
ilegais!
O direito livre era considerado de maneira independente do direito estatal,
uma vez que constituía o solo de onde se originava o direito estatal, razão
pela qual o direito livre poderia corrigir as imperfeições do estatal e
solucionar o problema das lacunas. O direito livre seria um direito mais
efetivo que o próprio direito estatal.
Nesse cenário, o papel da ciência do direito se modifica, uma vez que ela
não se limita a conhecer o direito criado pelo Estado, mas deve se
constituir em uma atividade que leve a se descobrir o direito livre.
5. Escola da Livre Pesquisa Científica do Direito
François Gény (1861-1959) criticou a Escola da Exegese por se ater a
exegeses dos textos legais. Para Gény, era preciso libertar a pesquisa da
rigidez imposta pelo formalismo jurídico. Sua visão não era tão radical
como a Escola do Direito Livre, uma vez que entendia a lei como um dos
elementos essenciais do direito, e a lei não deveria ser simplesmente posta
de lado no momento de aplicação do direito.
Sempre se parte da lei; mas, uma vez tomada à lei e interpretada pelo
jurista, se este verificar que existe uma defasagem com relação a uma
nova realidade social, defasagem que não permite uma solução jurídica, o
jurista deve identificar a existência de uma lacuna e procurar suprir essa
lacuna por outros meios.
Para se chegar à solução do caso, deve-se proceder a uma investigação
científica dos fatos sociais que constituem o caso analisado pelo juiz
ou pelo jurista. Para Gény, cada fato social já traria em si mesmo uma
razão que conduz à regra jurídica que deve regular esse fato – uma razão
que revela a natureza desse fato. A ciência deve conhecer a realidade
social (o que Gény chamava de “dado”) e, a partir da técnica própria dos
juristas, chegar ao “construído”.
O próprio legislador, ao criar a lei, parte do “dado”, uma vez que o
legislador não elabora as leis num vazio ou numa torre de marfim, mas sob
a influência das forças e dos valores sociais, sendo que a lei irá, por sua
vez, influenciar a sociedade, moldar os valores sociais. O “dado” é
submetido, assim, a uma ordem de fins (ao “construído”).

METODOS DE INTERPRETAÇÃO
Interpretação Gramatical, Lógica e Sistemática.
A interpretação gramatical, também chamada de literal, é o início e o limite
de toda interpretação. É o início porque sempre que lemos um texto,
começamos por atribui o sentido que as palavras têm no seu uso
quotidiano para compreender o texto. E é o limite porque não podemos
atribuir o sentido que quisermos às palavras ou expressões do texto.
A interpretação gramatical não é usada em duas situações: a) quando o
próprio Legislador define os termos que utiliza; b) quando são empregados
termos técnicos, que devem ser compreendidos, evidentemente, no seu
sentido técnico
Sempre que o Legislador não define os termos empregados no texto da lei
ou não emprega termos técnicos, devemos partir do pressuposto de que o
termo foi empregado no seu sentido comum da linguagem quotidiana.
A interpretação lógica consiste no emprego do raciocínio lógico (a
dedução, a indução, os princípios racionais) para se chegar ao sentido dos
dispositivos legais.
Por exemplo:
Um determinado contrato estipula que uma das partes pode vender um
determinado bem móvel, mas silencia sobre a possibilidade de a parte
emprestar a outrem o bem. Será que ela pode fazê-lo? Partindo da ideia de
quem pode o mais, pode o menos, chegamos à conclusão de que ela pode
emprestá-lo, pois a vender algo representa uma conduta de maior
amplitude do que emprestar, e se a pessoa está autorizada para fazer o
que é mais amplo, está autorizada implicitamente a fazer o que está
inserido naquela amplitude.
A interpretação sistemática, por sua vez, procura inserir o dispositivo
legal a ser interpretado em um conjunto de outros dispositivos e dar um
sentido coerente a todos eles. Como se sabe, o direito configura um
sistema de normas e uma das características atribuídas a esse sistema de
norma é a coerência. O direito não pode tolerar as chamadas antinomias
ou conflitos de normas, razão pela qual existem os critérios de solução
de antinomias (norma superior revoga norma inferior, por exemplo).
Exemplo de interpretação sistemática:
O Código de Defesa do Consumidor determina em seu artigo 42 que, na
cobrança de débitos, o consumidor inadimplente não seja exposto a
ridículo, nem submetido a constrangimento ou ameaça. No caso abaixo, o
consumidor alegou que a empresa o teria submetido a constrangimento e
ameaça em razão das cobranças insistentes do débito e pelo aviso de que
seriam tomadas providências legais, por exemplo, o ajuizamento de ação,
protesto de título, cadastramento negativo do consumidor.
Será que essas atitudes da empresa configurariam constrangimento e
ameaça, proibidos pelo Código de Defesa do Consumidor?
Ora, ao interpretar o artigo 42 do Código de Defesa do Consumidor em
conjunto com o artigo 188, I do Código Civil, que diz que os atos praticados
no exercício regular de um direito reconhecido não constituem atos ilícitos,
chegou-se à conclusão que aquelas atitudes da empresa não são ilícitas,
não violam nenhum direito do consumidor. Para se colorir a figura do
constrangimento, exposição ao ridículo, ou mesmo da ameaça ao
consumidor, a que alude o artigo 42 do CDC, não basta a cobrança
insistente do débito ou o aviso de que serão tomadas providências legais -
ajuizamento de ação, protesto de título, cadastramento negativo -, já que
são medidas que denotam o exercício dos direitos previstos no
ordenamento jurídico.
O ilícito só se colore se há ameaça da prática de ato em desconformidade
com o direito. Ainda que diversas tenham sido as ligações efetuadas ao
apelante, a fim de realizar a cobrança de débitos, tais ligações foram
efetuadas porque, de fato, devedor era. Até aí, tratando-se de débitos em
atraso, age o réu no exercício regular de seu direito de cobrança. Envio de
carta sigilosa de cobrança à residência do devedor. Ausência de exposição
ao ridículo, ou interferência no trabalho ou no lazer do consumidor. Resta
patente a ausência de qualquer abuso, pelo réu, no exercício de seu direito
de cobrança. Dano moral não configurado. Normas que foram interpretados
em conjunto de maneira a produzir um sentido coerente:
Constituição Federal:Art. 5º
"Todos são iguais perante a lei, sem distinção de qualquer natureza,
garantindo-se aos brasileiros e aos estrangeiros residentes no País a
inviolabilidade do direito à vida, à liberdade, à igualdade, à segurança e à
propriedade, nos termos seguintes:
V - é assegurado o direito de resposta, proporcional ao agravo, além da
indenização por dano material, moral ou à imagem;
X - são invioláveis a intimidade, a vida privada, a honra e a imagem das
pessoas, assegurado o direito a indenização pelo dano material ou moral
decorrente de sua violação; [...].
Código de Defesa do Consumidor (Lei n° 8.078, de 11 de setembro de
1990) dispões em seu art. 42 que:
"Na cobrança de débitos, o consumidor inadimplente não será exposto a
ridículo, nem será submetido a qualquer tipo de constrangimento ou
ameaça".
Parágrafo único: O consumidor cobrado em quantia indevida tem direito à
repetição do indébito, por valor igual ao dobro do que pagou em excesso,
acrescido de correção monetária e juros legais, salvo hipótese de engano
justificável.
Código Civil: Lei n° 10.406, de 10 de janeiro de 2002:
Art. 186. Aquele que, por ação ou omissão voluntária, negligência ou
imprudência, violar direito e causar dano a outrem, ainda que
exclusivamente moral, comete ato ilícito.
Art. 188. Não constituem atos ilícitos:
I - os praticados em legítima defesa ou no exercício regular de um direito
reconhecido;
II - a deterioração ou destruição da coisa alheia, ou a lesão a pessoa, a fim
de remover perigo iminente.
Parágrafo único: No caso do inciso II, o ato será legítimo somente quando
as circunstâncias o tornarem absolutamente necessário, não excedendo os
limites do indispensável para a remoção do perigo.
Interpretação Histórica, Sociológica e Evolutiva.
Para compreender esses métodos de interpretação, é preciso considerar
que o direito, a partir do século XIX, passou a apresentar algumas
características, como:
a) ser basicamente, um direito legislado (nos países que se filiam à família
romano-germânica dos sistemas jurídicos, como o caso do Brasil);
b) o texto da lei deve ter certa permanência no tempo, não pode ser
constantemente alterado, pois os cidadãos precisam conhecer o direito;
c) se a letra da lei permanece o mesmo durante certo tempo, as
sociedades se modificam rapidamente, e tanto mais complexa uma
sociedade, maior a velocidade dessa transformação.
Com isso, é comum acontecer que entre o momento de promulgação de
uma lei e o momento de sua aplicação a um caso concreto decorra um
período largo de tempo. Durante esse período, o texto da lei permaneceu o
mesmo, mas a sociedade se modificou.Os métodos Histórico,
Sociológico e Evolutivofazem referência, portanto, a dois momentos, o
momento anterior, que é o da criação da norma, e um momento posterior, o
da sua aplicação.
A interpretação histórica tem o objetivo de reconstruir o sentido original da
lei mediante um trabalho de reconstrução das condições que levaram o
legislador a criá-la.
Qual era o direito anterior à criação da lei?
Por que esse direito se mostrou insuficiente a ponto de o legislador ter se
proposto a modificá-lo mediante a criação da lei ora interpretada?
Como se deram as discussões parlamentares?
Quais as condições sociais que fizeram nascer os valores, os interesses
tutelados pela lei?
No chamado método sociológico, os fatores sociais a serem levados em
conta são aqueles fatores existentes no momento de aplicação da lei,
fatores estes que podem influenciar a aplicação do direito.Os métodos
histórico e sociológico acabam por interpenetrar-se, pois é preciso
considerar tanto o momento em que a lei foi criada quanto o momento da
sua aplicação.

Exemplo da Interpretação Histórica:


Quando o artigo 7º do Decreto 27.48/49 autoriza expressamente as
empresas que exerçam as atividades constantes nos anexos a trabalharem
em dias de repouso, é preciso verificar quais atividades comerciais estão
descritas nos anexos. Ocorre que o texto legal foi escrito no ano de 1949
onde as atividades comerciais e empresariais eram diversas das existentes
na atualidade, portanto, para se evitar injustiças é imprescindível utilizar
uma interpretação histórico-evolutiva. No caso da ementa proposta o
supermercado foi multado por estar trabalhando em dia de repouso, sendo
certo que o termo “supermercado” não consta expressamente escrito nos
anexos do decreto.
Com efeito, em 1949 não existiam as grandes redes de supermercado que
existem hoje, todavia o decreto traz em seus anexos expressões como:
varejistas de peixes, varejistas de carnes frescas e de caça, venda de pão
e biscoitos, varejistas de frutas e verduras, feiras-livres e mercados,
inclusive os transportes inerentes aos mesmos. É de se observar que um
supermercado concentra todas as atividades ali descritas e, portanto, o
julgador utilizou o método de interpretação histórico-evolutiva, para
concluir que os supermercados também estão abarcados no decreto.

Interpretação Teleológica e Axiológica


A interpretação teleológica parte do pressuposto de que as normas
jurídicas cumprem uma finalidade que justifica a sua existência. Trata-se,
portanto, de descobrir qual é a finalidade que o dispositivo legal a ser
interpretado busca cumprir. Ao se identificar a finalidade da norma,
encontra-se o seu sentido apropriado a ser aplicado ao caso concreto. Este
método foi desenvolvido por Rudolf von Ihering (1818-1892), procurando
liberar a ciência do direito do formalismo da Jurisprudência dos
Conceitos. Para interpretar o direito, não se deve atentar apenas para as
palavras dispostas no papel, mas também para os interesses vitais, para a
realidade social concreta, o fim social da própria norma.
Já a interpretação axiológica procura explicitar os valores que são
concretizados pela norma. Estando esses valores presentes no caso
concreto que enseja a interpretação, a esse caso concreto deve ser
aplicada a norma.

TIPOS DE INTERPRETAÇÃO
Interpretação Especificadora
Esse tipo de interpretação também é conhecido como Interpretação
Declarativa.
De acordo com esse tipo de interpretação, o sentido usual atribuído à letra
da lei é suficiente, isto é, ele não precisa ser restringido (para excluir
casos que aparentemente seriam disciplinados pela lei, mas aos quais a
aplicação da lei é inadmissível) ou alargado (para abarcar casos não
previstos, mas aos quais a lei deve ser aplicada).
Nenhuma outra operação é exigida do intérprete, senão o de especificar ou
declarar o que a lei enuncia por meio dos seus termos linguísticos. O
legislador não escreveu nem mais nem menos do que realmente pretendia
dizer.
Quando comparamos a interpretação especificadora com os outros dois
tipos (interpretação restritiva e interpretação extensiva), percebe-se que na
especificadora o intérprete dá-se por satisfeito ao simplesmente enunciar o
pensamento expresso na norma. A letra da lei expressa, portanto, o espírito
da lei.

Interpretação Restritiva
 É a interpretação que restringe o sentido literal da lei.
Como o sentido usual atribuído à letra da lei não é suficiente, é preciso que
ele seja restringido, a fim de excluir da sua aplicação os casos
inadmissíveis, isto é, casos que aparentemente seriam disciplinados pela
lei, mas aos quais a aplicação da lei é inadmissível.
Se a esses casos não se deve aplicar a lei, o alcance do seu sentido deve
sofrer restrição, redução. O legislador acabou por escrever mais do que
pretendia dizer. Em outras palavras, a lei diz mais do que queria dizer.
Uma das recomendações da dogmática jurídica é a de que as normas
jurídicas que restrinjam direitos e garantias sofram interpretação
restritiva.

Interpretação Extensiva
É a interpretação que amplia o sentido literal da lei.
Como o sentido usual atribuído à letra da lei não é suficiente, é preciso que
ele seja alargado, a fim de ser aplicado a casos que seriam, à primeira
vista, contemplados pela lei.
Se a esses casos se deve aplicar a lei, o alcance do seu sentido deve
sofrer ampliação. O legislador acabou por escrever menos do que
pretendia dizer. Em outras palavras, a lei diz menos do que queria dizer
Por meio da interpretação extensiva, chegamos à conclusão de que o
alcance da lei é mais amplo do que indicado pelos seus termos.

INTERPRETAÇÃO E INTEGRAÇÃO DO DIREITO


Analogia
Diante de um caso concreto, percorre-se o ordenamento jurídico e se
aplica a interpretação extensiva, mas nenhuma norma jurídica aplicável é
encontrada. Se essa ausência de norma jurídica implicar falta de solução
jurídica para o caso, então estamos diante de uma lacuna.
Esse ponto é importante. Lacuna não significa simplesmente ausência de
norma: é preciso que haja falta de solução jurídica em razão da ausência
de norma. Por exemplo, o Código Penal não disciplina a conduta de andar
pela calçada cantarolando. Não existe lacuna, pois a não tipificação dessa
conduta pela lei penal indica que a conduta é permitida - há, pois, solução
jurídica, sabe-se que a conduta é permitida.
Constatada a lacuna, para se chegar à decisão é preciso encontrar outra
norma que possa preencher o vazio e ser aplicada ao caso.
Na analogia, é preciso seguir os seguintes passos:
a. existência de um caso não previsto no ordenamento jurídico;
b. existência de um caso previsto no ordenamento jurídico;
c. pelo menos uma semelhança relevante (e diferenças irrelevantes) entre
o caso previsto e o não previsto no ordenamento jurídico; e
d. aplicação ao caso não previsto da solução do caso previsto.
A analogia obedece a um princípio muito importante para a justiça, o de
que casos semelhantes devem receber o mesmo tratamento, a mesma
solução jurídica.
É importante dizer que:
a. no direito penal, a analogia em prejuízo do réu (in malam partem) não é
permitida, pois viola o Princípio da Legalidade (Código Penal, art. 1º: “Não há
crime sem lei anterior que o defina. Não há pena sem prévia cominação legal”).
Admite-se a analogia apenas para favorecer o réu (in bonam partem).
b. no processo penal, contudo, a analogia é permitida. O Código de
Processo Penal, em seu artigo 3º determina: “A lei processual penal admitirá
interpretação extensiva e aplicação analógica, bem como o suplemento dos
princípios gerais de direito.”.

Costumes
O costume é um dos meios de integração do direito, ou seja, um dos meios
de preenchimento das lacunas do ordenamento jurídico.
A Lei de Introdução às normas do Direito Brasileiro (Decreto-Lei nº 4.657,
de 4 de setembro de 1942) determina:
Art. 4º. Quando a lei for omissa, o juiz decidirá o caso de acordo com a
analogia, os costumes e os princípios gerais de direito.
Também o art. 126 do Código de Processo Civil se refere aos costumes:
Art. 126. O juiz não se exime de sentenciar ou despachar alegando lacuna
ou obscuridade da lei. No julgamento da lide caber-lhe-á aplicar as normas
legais; não as havendo, recorrerá à analogia, aos costumes e aos
princípios gerais de direito.
Se a lei é criada mediante declaração solene por um órgão competente,
no costume as normas formam-se espontaneamente. São as pessoas que
vivem em sociedade que acabam por criar as normas costumeiras e não o
fazem de maneira deliberada, como no caso da criação da lei pelo
legislador.
Por essa razão, a criação do costume é difusa, ninguém pode precisar a
data em que um costume tenha se formada, tratando-se de um
longoprocesso de transformação de um mero hábito em um costume
jurídico.
No meio social, muitas condutas se repetem. Quando essa repetição for
acompanhada pela consciência da sua obrigatoriedade, estamos diante do
costume, diante de uma norma jurídica consuetudinária (do latim
“consuetudo”, que significa costume).
Nos finais de semana, por exemplo, temos o hábito de comer pizza. Mas
essa conduta não configura um costume jurídico, uma vez que ninguém se
sente obrigado a se comportar dessa maneira; e, se alguém deixar de
comer pizza num final de semana, não será criticado como tendo
descumprido alguma obrigação.
Já com relação à fila, as coisas são diferentes: temos o hábito de,
chegando por último, tomar o último lugar na fila; e o fazemos porque nos
sentimos obrigados. Caso “furemos” a fila, somos imediatamente criticados
pelas outras pessoas que estão na fila e sabemos que nossa conduta foi
errada.
Como as pessoas nascem e crescem no meio de uma comunidade,
comunidade que tem os seus usos e costumes, as normas costumeiras
aparentam ser normas “naturais”, normas que sempre foram observadas
por nós porque ensinadas pelos nossos pais, por exemplo.
Essa normas eram muito consideradas pelo fato de serem criadas pela
própria sociedade, que delas se serve para se regular. E, caso o costume
viesse a se mostrar inadequado, a própria sociedade trataria de o eliminar.
Foi apenas com o Ilumismo, no século XVIII, que o costume passou a ser
duramente criticado como uma maneira irracional de regular a sociedade.
De fato, muitas normas costumeiras acabam se tornando anacrônicas,
enrijecendo certas práticas sociais e impedindo o dinamismo da sociedade.
A própria tradição passou a ser vista com suspeita, acarretando um
menosprezo pelo costume.
No século XIX, a lei se tornou a principal fonte do direito e o costume
começou a ser aceito apenas nos casos em que não contrarie o que a
própria lei dispõe – proibição do costume “cotra legem”.
Mesmo assim, o costume continua uma importante fonte do direito,
especialmente para alguns ramos do direito, como o Direito do Trabalho.
Muitos dos nossos direitos trabalhistas nasceram como normas
consuetudinárias, como o décimo-terceiro salário, nascido como
gratificação paga pelos empregadores aos seus empregados nos dias que
antecediam o Natal.

O costume pode ser:


“Contra legem”: costumes que são contrários à lei. Por exemplo: dirigir
falando ao celular.
“Praeter legem”: costumes paralelos ao que dispõem as leis. Por exemplo,
o cheque pré-datado. O cheque é uma modalidade de pagamento a vista.
No Brasil, contudo, há o ‘costume’ de utilizar cheques como modalidade de
pagamento a prazo.
“Secundum legem”: costumes conforme a lei. Por exemplo, determina o
Código Civil:
Art. 569. O locatário é obrigado:
II - a pagar pontualmente o aluguel nos prazos ajustados, e, em falta de
ajuste, segundo o costume do lugar;
Como vimos acima, não é aceito o costume contrário à lei – “contra
legem”
Princípios Gerais do Direito
Compreender que os Princípios Gerais do Direito são um dos meios de
integração do direito, um dos meios de preenchimento das lacunas do
ordenamento jurídico.
A Lei de Introdução às normas do Direito Brasileiro (Decreto-Lei nº 4.657,
de 4 de setembro de 1942) determina:

Art. 4º. Quando a lei for omissa, o juiz decidirá o caso de acordo com a
analogia, os costumes e os princípios gerais de direito.
Também o art. 126 do Código de Processo Civil se refere aos princípios
gerais do direito:

Art. 126. O juiz não se exime de sentenciar ou despachar alegando lacuna


ou obscuridade da lei. No julgamento da lide caber-lhe-á aplicar as normas
legais; não as havendo, recorrerá à analogia, aos costumes e aos
princípios gerais de direito.
O termo “princípio” possui vários sentidos.
Tradicionalmente, entende-se por princípio geral do direito aquela norma
que, mesmo não sendo escrita, encontra-se presente em todo o sistema,
informando-o. Como exemplo, lembre-se do princípio de que “ninguém
pode se aproveitar da própria torpeza”. Um candidato a prefeito dá causa à
anulação das eleições. Quando o Tribunal Superior Eleitoral decidiu que
nova eleição deveria ser disputada, surgiu a dúvida: aquele candidato que
deu causa à anulação do pleito poderia se candidatar à nova eleição?
Como a legislação eleitoral era omissa, o tribunal resolveu aplicar o
referido princípio e proibi-lo de participar das novas eleições.
Os autores divergem quanto ao conceito de princípio, pois acabam
elegendo diferentes critérios para a tarefa de conceitua-lo: critério da
abstração (os princípios são normas de maior abstração), critério da
relevância (os princípios são os mandamentos basilares de um sistema
jurídico), critério hierárquico (os princípios são as normas de maior
hierarquia no sistema jurídico) etc.
Os autores também divergem a respeito da relação entre os Princípios
Gerais do Direito e outros princípios, como os expressos na Constituição
Federal (o da soberania popular, o da liberdade etc.), no Código Civil (a
boa-fé objetiva, por exemplo), ou em outras leis.
Para uns, seriam conceitos distintos, pois os princípios expressos na
Constituição ou em outras leis são normas válidas e vigentes, aplicáveis a
todo e qualquer caso que lhe digam respeito; já os Princípios Gerais do
Direito somente são aplicáveis em caso de lacuna, de maneira supletiva ao
direito válido.
Para outros autores, contudo, trata-se do mesmo conceito, apenas a
nomenclatura é que se modifica.
Como o chamado Pós-Positivismo, os princípios foram reconhecidos como
verdadeiras normas jurídicas – a norma jurídica passa a ser entendida
como um gênero com duas espécies, as regras e os princípios.
Uma série de distinções entre as regras e os princípios foram
estabelecidos, especialmente quanto à maneira como ambos são aplicados
e quanto à possibilidade de conflito (seja entre regra e princípio, seja entre
dois ou mais princípios).
As obras de Robert Alexy e de Ronald Dworkin dedicam-se largamente a
esses temas.
Equidade
Os romanos já diziam summum jus, summa injuria, isto é, a aplicação cega
da lei leva a uma situação de injustiça.
Esse tema já havia sido notado pelo filósofo grego Aristóteles como sendo
a justiça do caso particular. Como se sabe, o legislador não cria as normas
para uma situação específica – raramente o faz. Mesmo normas com maior
grau de especificidade (pensemos na norma constitucional que outorga
competência para o Presidente da República editar medidas provisórias)
são normas gerais, pois são aplicadas a todos os presidentes da república
eleitos e que venham a se eleger, a todos aqueles que já ocuparam ou
vierem a ocupar interinamente o cargo de Presidente da República, além
do que estipula dois requisitos (relevância e urgência) que devem ser
atendidos por toda e qualquer medida provisória já editada e que venha a
ser editada.
Dada a generalidade das normas, é possível que em certas circunstâncias
a sua aplicação rigorosa ao caso julgado traia o espírito da própria norma.
Em circunstâncias como essas, é preciso corrigir ou, ao menos, ajustar o
disposto da norma para que a sua aplicação não seja desastrosa.
 O direito brasileiro faz referência à equidade. O Código de Processo
Civil determina que:
Art. 127. O juiz só decidirá por equidade nos casos previstos em lei.

Já o Código Civil prevê:


Art. 944. A indenização mede-se pela extensão do dano.
Parágrafo único. Se houver excessiva desproporção entre a gravidade da
culpa e o dano, poderá o juiz reduzir, equitativamente, a indenização.
Já aLei de Introdução às normas do Direito Brasileiro (Decreto-Lei nº
4.657, de 4 de setembro de 1942) não faz referência expressa à equidade,
mas a ideia de equidade encontra-se implícita no seguinte dispositivo:
Art. 5º. Na aplicação da lei, o juiz atenderá aos fins sociais a que ela se
dirige e às exigências do bem comum
A TEORIA PURA DO DIREITO DE HANS KELSEN
Crítica ao caráter ideológico da Escola da Exegese
Para a Escola da Exegese, a interpretação e a aplicação do direito eram
atividades de conhecimento do direito, controladas racionalmente,
envolvendo a explicitação do direito contido na lei e a sua posterior
aplicação aos casos concretos. Nessa atividade racional, os juízes
deveriam se limitar a aplicar o direito criado pelo legislador sem recorrer a
nenhum juízo de valor. Eles deveriam julgar sem qualquer preocupação
com a justiça do conteúdo das normas que aplicavam.
Hnas Kelsen critica de maneira muito dura essas teses. Apesar de também
ser positivista, ele censura muitas escolas positivistas por não perceberem
que:
 - o direito é expresso por meio da linguagem (de palavras), e as palavras
possuem mais do que um sentido, o que impede a existência daquela clareza
quanto à redação das normas – em boa parte das normas, sempre é possível
encontrar mais de um sentido para os seus termos linguísticos;
 - ao se passar de um escalão superior a um inferior (por exemplo, da lei
para a sentença judicial), é impossível encontrar uma completa vinculação,
como queria a Escola da Exegese, pois uma margem de livre apreciação é
deixada para o aplicador da norma;
 - a aplicação do direito não se resume a um ato de conhecimento,
racionalmente controlado; além dele, o aplicador (o juiz, por exemplo) realiza
um ato de vontade, ou seja, ele escolhe um dos sentidos possíveis da norma
geral a ser aplicada. Esse ato de vontade não é racionalmente controlado;
 - ao aplicar a norma geral (uma lei, por exemplo), produz-se uma norma
individual (uma sentença judicial, por exemplo), o que significa dizer que a
aplicação do direito significa criação do direito;
Para Kelsen, é uma ilusão se acreditar que apenas uma solução jurídica
existe para um determinado caso.
Ao defender a tese de que existe apenas uma interpretação correta da lei e
apenas uma decisão judicial possível para um caso, aquelas escolas
positivistas do século XIX mascaravam a verdadeira natureza do direito, e
faziam isso para defender a ideia de que o direito é capaz de oferecer
certeza e segurança jurídica, de maneira a permitir que as pessoas se
orientem racionalmente a partir do que dispõem as normas jurídicas.
Essa é uma postura ideológica dessas escolas, pois procura encobrir a
maneira como o direito é interpretado e aplicado, estando a serviço dos
valores da certeza e da segurança jurídica, valores importantes para o
Estado Liberal, uma vez que serve para a previsibilidade das condutas,
sem o que não se organiza adequadamente a sociedade e o mercado
capitalistas.
Ora, para Kelsen, o direito não é fruto da razão, mas da autoridade – do
ato de vontade da autoridade. Ainda que os juízes justifiquem suas
decisões recorrendo a expressões como “vontade real do legislador”,
“verdadeiro sentido da norma”, ainda que eles digam que chegam à sua
decisão a partir de métodos científicos de interpretação ou de
procedimento lógicos, a sua decisão é, em última análise, um ato de
poder.

A moldura da norma
Para Hans Kelsen, o direito é um conjunto de normas que se dispõem
em escalões no Ordenamento Jurídico.
Desde o escalão de maior nível hierárquico – onde se encontram as
normas constitucionais – até o escalão mais inferior – onde se encontram,
por exemplo, as sentenças judiciais, que são normas jurídicas individuais
–, as normas encontram-se relacionadas entre si por meio do Princípio da
Hierarquia das Normas (a norma superior outorga competência a um órgão
que cria a norma inferior). As normas fundamentam sua validade nas
normas superiores.
Quando se passa de um escalão superior a um inferior (como de uma lei a
uma sentença), o direito sempre apresenta uma indeterminação.
Essa indeterminação pode ser:
 - Intencional: origina-se da vontade do criador da norma de escalão
superior – por exemplo, o legislador determinou que a pena para o crime de
homicídio simples é de seis a vinte anos. Cabe ao juiz, aplicador da norma e
criador da sentença (norma jurídica individual), determinar a quantidade da
pena, dentro do intervalo de seis a vinte anos;
 - Não intencional: como as normas são expressas linguisticamente, isto
é, por meio de palavras, há uma indeterminação quanto ao seu sentido, pois as
palavras possuem mais do que um sentido, e o sentido das palavras depende
do contexto em que são usadas.

Dada uma norma geral (que se encontra, por exemplo, numa lei), ela não
possui um único sentido. Em outras palavras, diferentes pessoas que a
interpretam podem chegar a resultados diferentes.
O juiz que vai aplicar essa norma geral encontra-se diante de várias
normas jurídicas individuais em potencial. Ele terá que, mediante um ato
de vontade, escolher uma dessas normas jurídicas individuais em
potencial para formar a sua decisão, isto é, ele irá transformá-la na
sentença que decidiu o caso julgado (na norma jurídica individual que, uma
vez transitada em julgado, ingressou definitivamente no Ordenamento
Jurídico).

Ato de conhecimento e de vontade


A Teoria Pura do Direito de Kelsen representa uma tentativa de, por um
lado, identificar uma norma como jurídica e, por outro, de organizar o
sistema do direito.
Essas duas questões encontram-se relacionadas: num dos sentidos a que
atribui ao conceito de validade, a norma N é jurídica porque pertence ao
sistema jurídico – isto é, N fundamenta sua validade em outra norma
jurídica, chamada de norma superior (a norma superior outorga
competência a uma autoridade ou órgão competente para criar N). É o
Princípio da Hierarquia das Normas, que dispõe as normas
hierarquicamente, em escalões, e que permite identificar as normas
jurídicas, a partir da Norma Fundamental.
Identificadas as normas jurídicas por esse aspecto formal de produção do
direito, é possível ainda conhecer o seu aspecto material, ou seja, o
conteúdo das suas disposições. As normas são expressas linguisticamente;
no caso do Brasil, são expressas na Língua Portuguesa – mesmo as
chamadas normas consuetudinárias (costume) necessitam ser expressas
linguisticamente.
Como o sentido das palavras não é unívoco ou como duas normas
implicando distintas consequências jurídicas podem ser ambas aplicáveis
ao caso, ocorre o que Kelsen chama indeterminação não intencional do ato
de aplicação do direito.
Portanto, o ato de conhecimento que utilizamos para explicar e descrever o
direito (as normas jurídicas) apresenta como resultado a moldura: dado
que as palavras possuem mais do que um sentido e o sentido delas
depende do contexto em que são usadas, as pessoas que interpretam uma
norma podem chegar a resultados diferentes.
E, como não existe um único sentido possível para as palavras da lei,
como não existe uma única solução possível para os casos submetidos aos
juízes, não podemos exigir que, mediante o ato de conhecimento, seja
encontrado “sentido verdadeiro” da norma ou a “decisão correta” para o
caso. Esse é o erro cometido pelas escolas positivistas do século XIX,
como a Escola da Exegese e a Jurisprudência dos Conceitos.
Existe um limite para o conhecimento do direito – o que significa um limite
para a própria Ciência do Direito. No caso da interpretação e da aplicação
do direito, esse limite é a descrição da moldura, descrição das várias
normas individuais em potencial dentro da moldura.
Se a função da Ciência do Direito é descrever o direito, a função do
Aplicador do Direito é a de criar o direito, isto é, produzir a solução jurídica
do caso concreto. O Aplicador do Direito (o juiz, os Tribunais, a
Administração Pública) não se detém na pluralidade de sentidos possíveis
da norma ou na pluralidade de soluções possíveis para o caso concreto,
uma vez que ele precisa chegar à decisão: qual desses sentidos ou
soluções possíveis será concretizado na norma individual por ele
produzida?
O juiz, por exemplo, deve escolher uma dessas normas jurídicas
individuais em potencial para formar a sua decisão, isto é, ele irá
transformá-la na sentença que decidiu o caso julgado (na norma jurídica
individual que, uma vez transitada em julgado, ingressou definitivamente no
Ordenamento Jurídico).
Essa escolha, contudo, não se configura como ato de conhecimento (pelas
razões expostas acima), mas como ato de vontade. Ao julgar, o juiz
conjuga um ato de conhecimento com um ato de vontade.
Podemos definir vontade como um princípio da atividade: um ato é
voluntário quando tem o seu princípio em uma decisão interior do agente. A
vontade designa o movimento que nos leva a uma ação. No caso aqui
discutido, a ação de escolher uma daquelas normas jurídicas individuais
em potencial da moldura para formar a sua decisão.
Kelsen diferencia o ato de vontade do ato de conhecimento dizendo que o
ato de vontade não é racionalmente controlável. Para entender isso,
suponha dois juízes, J1 e J2 que julgam dois casos semelhantes, um
ocorrido no Paraná o outro ocorrido em Alagoas. Eles entendem que é
aplicável ao caso a norma N. A norma N apresenta indeterminação, de tal
maneira que existem três sentidos possíveis a respeito do que dispõe N
(moldura de N se compõe dos sentidos Ni, Nii e Niii).
J1 adota o sentido Nii e cria sua sentença S1; J2 adota o sentido Niii e cria
a sua sentença S2 – S1, por exemplo, condena o réu ao pagamento de
indenização ter agido com culpa; enquanto que S2 não condena o réu por
entender que não agiu com culpa.
Para J1, a melhor interpretação de N é Nii. Para J2, a melhor interpretação
de N é Niii. Para outro juiz, pode ser Ni. Cada um deles escolheu um dos
sentidos possíveis, pois acreditava que aquele era o sentido que deveria
ser empregado para se chegar à decisão. Nenhum deles pode
racionalmente demonstrar para os demais que a sua escolha é a correta:
Nii foi a escolha de J1, essa escolha vale para ele, mas não vale para os
outros juízes que escolheram Ni e Niii. O mesmo se pode dizer da escolha
de J2 e assim por diante.
Ora, o que é racionalmente controlável vale para todas as pessoas
racionais. Por exemplo, “3 x 7 = 21” vale para qualquer pessoa e, se
alguém discordar que o resultado é 21, ou ele não aprendeu aritmética ou
ele não é uma pessoa racional (pode ser um louco).
Para Kelsen, a criação do direito é sempre um ato de poder. Ainda que se
conjugue com um ato de conhecimento, a Aplicação do Direito é
essencialmente um ato de vontade da autoridade ou órgão competente.

Interpretação autêntica e não-autêntica


Para Hans Kelsen, a interpretação é uma operação mental que se realiza
durante o processo de aplicação do direito ao se passar de um escalão
superior para um escalão inferior do ordenamento jurídico.
Para ele, há duas espécies de interpretação:
a) Interpretação Autêntica: é a interpretação do direito realizada pelo órgão
competente para a Aplicação do Direito (a Administração Pública, os
juízes);
b) Interpretação Não-Autêntica: a interpretação não realizada por um órgão
jurídico, mas pelas pessoas em geral e pela Ciência do Direito.

É preciso não confundir essas espécies de interpretação com os chamados


métodos de interpretação (o literal ou gramatical, o sistemático, o
teleológico etc.) Não se trata de um procedimento mediante o qual se
chega a um sentido do dispositivo legal, não se trata de método. Trata-se,
sim, de uma espécie de interpretação, a partir de uma classificação que
usou como critério quem realiza essa interpretação.
A Interpretação Autêntica cria o direito. Ela é realizada pelos juízes, pelo
Legislador, pela Administração Pública.
Já a Interpretação Não-Autêntica não cria o direito, limitando-se a atribuir
sentido à norma geral, ou sentidos, já que a norma geral configura uma
moldura dentro da qual existem várias normas individuais em potencial.
Essa espécie de interpretação é realizada apenas como ato de
conhecimento. E, como é possível encontrar mais de um sentido para as
normas gerais, o resultado da Interpretação Autêntica é a moldura.
O limite da Ciência do Direito é a descrição da moldura, os vários sentidos
possíveis de uma norma geral. Não há um único sentido possível, não há
uma única solução jurídica possível para o caso, como a própria Ciência do
Direito nos mostra.
Quando os doutrinadores sustentam opiniões como essas, estão
procurando influir na decisão dos Aplicadores do Direito e já não estão no
campo da ciência, mas da Política do Direito.

Função da Ciência do Direito


O projeto desenvolvido por Hans Kelsen é o de estabelecer as bases de
uma verdadeira Ciência do Direito, isto é, uma ciência que estude o direito
a partir do ângulo normativo. Já se encontrava consolidada uma Sociologia
do Direito, uma ciência que estuda o direito como um fato social. Mas a
Sociologia do Direito não se confunde com o que se chama de Ciência do
Direito, pois esta vê o direito enquanto norma, e não enquanto fato.
Até o momento em que publica a sua Teoria Pura do Direito, em 1934, ele
acredita que falharam todas as tentativas de se construir uma Ciência do
Direito que produza realmente conhecimento científico a respeito do direito,
ou seja, que descreva objetivamente o seu objeto de estudo, como faz toda
e qualquer ciência.
Ela não chegou de fato a se constituir porque os juristas se deixaram levar
por temas que não diziam respeito ao objeto próprio dessa ciência. Em vez
de se ater ao seu propósito enquanto cientistas do direito, os juristas
passavam, por exemplo, a criticar o direito existente, propondo a sua
alteração, ou, ainda, que não fosse levado em consideração pelos
Tribunais no momento do julgamento de alguma ação, já que ofenderiam
algum princípio moral ou protegeriam algum interesse social que não
mereceria a proteção naquele caso.
Ao pretender estudar o direito, esses juristas promoviam uma grande
confusão ao trazer para o conhecimento do direito elementos sociológicos,
políticos, econômicos e culturais, bem como fatores valorativos ou
ideológicos. Essa heterogeneidade de objetos impedia o avanço do
conhecimento e a real constituição da Ciência do Direito.
A solução de Kelsen para evitar esse problema foi purificar a Ciência do
Direito desses elementos que não são normativos (esses elementos devem
ser estudados por outras ciências) e desses fatores valorativos e
ideológicos (a tarefa da Ciência do Direito não é a de estipular o direito que
deve ser, isto é, o direito que deverá ser criado, mas a de descrever o
direito que existe, sendo irrelevante se o cientista está ou não de acordo
com o conteúdo das disposições jurídicas, se o cientista avalia uma norma
jurídica como justa ou como injusta).
O postulado metodológico fundamental adotado por Kelsen é o de se
limitar a considerações jurídicas, levando em consideração apenas as
normas jurídicas, o único objeto de estudo de uma ciência normativa do
direito. Com isso, Kelsen pretendia garantir a autonomia dessa ciência
normativa do direito, isto é, diferenciá-la das demais ciências, como a
sociologia jurídica, e da filosofia do direito.
Nesse ponto, é preciso ter cuidado: Kelsen não escreveu a “Teoria do
Direito Puro”, mas a Teoria Pura do Direito. Não é o direito que é puro, é
a teoria que deve ser pura, para descrever o direito cientificamente .
Enquanto fenômeno social, o direito é criado a partir do jogo de forças
políticas, de interesses econômicos, dos mais variados valores existentes
na sociedade. Como bom positivista, Kelsen sabe que é a autoridade que
faz o direito, não a razão. E a autoridade, por meio do direito, faz valer os
seus valores, a sua visão política, privilegia este ou aquele interesse.
É a teoria (que tem a função de descrever o direito) que deve ser pura, ou
seja, não se deixar contaminar pelos valores, pela ideologia, pelos
interesses etc. Se isso acontecer, a visão que se terá direito será uma
visão deformada, o que impedirá o conhecimento do direito.
Por exemplo: José é um constitucionalista (cientista do direito que estuda
as normas constitucionais) e tem a crença de que o voto deva ser
facultativo. Para ele, é um rematado absurdo obrigar as pessoas a votar;
afinal, numa verdadeira democracia, segundo José, é o cidadão que deve
decidir se vota ou não; além do que, pensa ele, a própria qualidade do voto
será melhor, pois ele será conscientemente depositado na urna. Enquanto
cidadão brasileiro, José pode lutar para que o voto deixe de ser obrigatório,
escrever artigos e panfletos nesse sentido, criar um movimento pelas redes
sociais, votar em deputados e senadores comprometidos com a sua causa
etc. Enquanto constitucionalista, contudo, suas crenças políticas são
absolutamente irrelevantes: ele deve descrever objetivamente o que dispõe
a Constituição Federal é concluir que o voto é obrigatório, no Brasil, para
aqueles que tenham de 18 a 70 anos.
O objeto da Ciência do Direito são as normas jurídicas. Kelsen define
as normas como o sentido objetivo de um ato de vontade.
A Ciência do Direito estuda o direito, portanto, do ângulo normativo. Como
se viu, a Sociologia do Direito também estuda o direito, mas como um fato
social. Logo, não se pode estabelecer uma confusão entre elas.
A sociologia estuda, por exemplo, como os casais se estabelecem hoje em
dia no Brasil. Analisa, por exemplo, a existência de relacionamentos
amorosos paralelos. João é vendedor, solteiro, vive com Maria a vida
inteira em São Paulo, e mantém outros dois relacionamentos também
duradouros, com Isabel em Franca e com Amália em Bauru. Qual o tipo de
relação social se estabelece entre todas essas pessoas? Qual a estrutura
preponderante da família hoje em dia? Essas poderiam ser algumas
questões a serem respondidas pela sociologia.
Já a Ciência do Direito se preocuparia com outras questões. Por meio das
suas proposições normativas, descreve as normas que disciplinam a
família. Por exemplo, qual a qualificação jurídica desses três
relacionamentos de João? É juridicamente permitida a coexistência de três
uniões estáveis paralelas? Ou a lei prevê a possibilidade de uma única
união estável, qualificando juridicamente os outros dois relacionamentos
como sociedades de fato?
Aproveitando esse paralelo com a Sociologia, uma importante distinção
apresentada por Kelsen é entre as Ciências Causais (como a Sociologia, a
Física, a Química) e as Ciências Normativas, como a Ciência do Direito.
As primeiras se organizam pelo Princípio da Causalidade. Essas ciências
estabelecem relações de causa e efeito entre determinados fenômenos ou
fatos: “se um metal for submetido ao calor, então o metal se dilatará” (o
calor causa a dilatação dos metais). Eis a forma das suas proposições: “se
A é, então B é”.
Já a Ciência do Direito se organiza pelo Princípio da Imputação. A forma da
sua proposição é outra: “se A é, então B deve ser”. Por exemplo, “se
alguém subtrai para si ou para outrem coisa alheia móvel, então deve ser
condenado à pena de reclusão de um a quatro anos e multa”.
As consequências dessa distinção são importantes para se compreender a
especificidade da Ciência do Direito:
a) a proposição que trata da dilatação dos metais é falsa se, uma vez
submetido ao calor, o metal não se dilatar. Suponha que tenha sido
descoberto um novo metal. Uma vez submetido ao calor, ele não se dilata.
Aquela proposição deve ser abandonada pela Física, pois foi desmentida
pelos fatos. Já no caso da proposição jurídica, o fato de não ter sido
condenada a pessoa que subtraiu para si coisa alheia móvel não torna
falsa a proposição. Trata-se de um juízo de dever ser, não de uma
descrição de um fato acontecido ou de uma previsão do que acontecerá.
b) No caso das ciências causais, as relações de causa e efeitos formam
longas cadeias: o que era o efeito de uma causa torna-se, agora, causa de
outro efeito que, por sua vez, torna-se causa de outro efeito etc. Do ponto
de vista da Sociologia Criminal, é possível estabelecer uma série causal
para explicar o fato de pessoas de alto poder aquisitivo cometerem crimes,
como os chamados “crimes de colarinho branco”. Suponha que um alto
executivo de uma empresa cometa o crime de lavagem de dinheiro. Várias
causas podem ser descobertas para explicar o seu comportamento: sua
educação em uma sociedade individualista em que vigore o lema “aos
amigos tudo, aos inimigos a lei”, as práticas de negócios em um
determinado segmento econômico, a pressão pelos resultados econômicos
sob pena de demissão, a falta de punição pelos órgãos controladores, a
seletividade do Direito Penal em punir os crimes cometidos pelas pessoas
de nível social inferior, etc. Para a Ciência do Direito, essas causas são
desconsideradas, pois se estabelece que, independentemente de uma
causa social determinada, a pessoas que cometeu o ilícito deve ser
condenada. Um recorte da realidade é feito e, desconsiderando-se aquela
série causal, determina-se que uma sanção deve ser aplicada. Para o
direito, o ato ilícito não é a causa da sanção aplicada. Trata-se de uma
ligação de natureza diferente: a imputação. E a consequência do ilícito (a
sanção) é imputada ao ilícito, mas não é produzida pelo ilícito como sendo
a sua causa.

Discricionariedade judicial (poder de escolha)


Kelsen fala da norma geral a ser interpretada e aplicada como uma
moldura, dentro da qual existem várias normas individuais em potencial. O
juiz escolhe uma dessas possibilidades, e essa escolha não é racional,
nem pode ser racionalmente justificada. É por essa razão que não existe,
para Kelsen, uma teoria jurídica que trata da decisão judicial. A decisão
judicial não pode ser explicada pela teoria do direito, mas apenas pela
psicologia, pela economia, pela história etc.
H.L.A. Hart, por sua vez, chama a atenção para o fato de as normas
jurídicas apresentarem termos vagos. Ao se aplicar um termo vago aos
objetos e circunstâncias da realidade, três regiões se desenham:
(i) zona de claridade: certeza quanto à aplicação do termo.
(ii) zona de obscuridade: certeza quanto à não aplicação do termo.
(iii) zona de penumbra: incerteza quanto à aplicação ou não do termo.
Nos casos (i) e (ii) há certeza. A aplicação do direito não apresenta maior
dificuldade ao juiz. Mediante um silogismo é possível chegar à decisão.
No caso (iii), contudo, a norma não oferece ao juiz um critério para que ele
decida de maneira objetiva. O juiz usa da discricionariedade, segundo Hart.
Em outras palavras, os critérios utilizados para se chegar à decisão são
critérios extrajurídicos.
Segundo Hart, nos casos de dúvida quanto à aplicação do termo, a
decisão do juiz é discricionária, o juiz tem liberdade para tomar a
decisão, ainda que não seja uma liberdade absoluta, pois ele necessita
fundamentar a sua decisão em algum juízo de experiência ou algum valor
social.
O DESAFIO KELSENIANO
Vontade do Legislador ou Vontade da Lei
Voluntas legis – voluntas legislatoris.
 “Voluntas legislatoris” – vontade do legislador – doutrina
subjetivista.
Como a ciência do direito se baseia no conhecimento da lei, e como a lei é
criação do legislador, interpretar a lei significa compreender o pensamento
do legislador. Privilegia-se o momento em que a lei é criada, o que significa
que se privilegia o método histórico de interpretação, que procura
reconstruir as circunstâncias que levaram à criação da lei. A preocupação
da doutrina subjetivista é preservar o sentido original, próprio da norma,
o que não acontece, segundo ela, quando se permite ao intérprete adaptar
o sentido da norma ao que ele, intérprete, entende ser uma situação de
mudança social, como defende a doutrina objetivista. Aos olhos da
doutrina subjetivista, essa “manipulação” do sentido da norma é suspeita,
pois a vontade do intérprete se tornaria mais importante do que a do
legislador. Ao se depender da opinião do intérprete, a segurança e a
certeza jurídica seriam afetadas.
 “Voluntas legis” – vontade da lei – doutrina objetivista.
Uma vez criada, a norma desliga-se da vontade do legislador que a criou,
no sentido de que o seu sentido será dado pelas circunstâncias do
momento em que ela é interpretada (e aplicada), momento posterior ao da
criação da lei.
Para a doutrina objetivista, é inútil buscar a vontade do legislador, pois o
legislador é um órgão colegiado – no Brasil, por exemplo, o Código Civil é
uma lei federal, foi aprovado por 513 deputados federais e 81 senadores, o
que torna impossível investigar a vontade de 594 pessoas.
Além disso, é preciso levar em consideração os fatores objetivos
(econômicos, sociais, por exemplo) que influenciam as mudanças na
sociedade, o que provoca um ajuste da norma a situações modificadas ou
novas. O direito é vivo, ele não pode ficar engessado por uma pretensa
vontade que o tenha criado, muitas vezes, há décadas, quando as
circunstâncias históricas eram bem diferentes do momento em que ocorre
a sua interpretação e aplicação.
Essa disputa não é passível de ser resolvida. Trata-se de uma tensão
própria ao direito, na medida em que, uma vez criada, a lei deve ter uma
permanência no tempo (se a lei for constantemente alterada, torna-se
praticamente impossível às pessoas tomar conhecimento e cumprir os
deveres jurídicos; sem se falar no problema de estudar o direito, cujo
conteúdo é sempre diferente toda vez que a ele se retorna). Na medida em
que as palavras da lei se mantêm ao longo do tempo, a sociedade
encontra-se em constante modificação, o que significa dizer que, pelo
menos em tese, a distância entre o texto da lei e a realidade ao qual deve
ser aplicado vai aumentando com o passar do tempo.

Legislador Racional.
Carlos Santiago Nino (1943-1993) foi um filósofo e jurista argentino. Para
explicar a dogmática jurídica (a forma que a ciência do direito assumiu a
partir do século XIX nos países da família romano-germânica), ele criou a
figura do Legislador Racional.
O movimento de codificação do direito, que se desenvolveu no século XIX,
foi entendido como uma criação racional do direito: as normas são
dispostas de maneira organizada dentro de um mesmo diploma legal, as
normas são criadas ao mesmo tempo, de maneira a escapar ao capricho
das determinações pontuais e arbitrárias dos reis ou à lenta elaboração do
direito costumeiro, de conteúdo confuso e muitas vezes irracional.
Já que o direito é criação racional, os juristas acabaram por conferir ao
sistema jurídico e às normas que o compõem uma série de propriedades:
precisão, sentido claro e único das suas disposições, completude (o direito
propõe solução para todo e qualquer caso), coerência (as normas não se
encontram em conflito dentro do sistema jurídico) etc.
A ciência do direito (ou dogmática jurídica), ao estudar e descrever o
direito, acaba por efetuar uma reformulação das normas jurídicas, com o
objetivo de aproximá-las daqueles ideais racionais.
É importante notar que se trata de uma atividade encoberta: os juristas
afirmam que se limitam a descrever o direito (como se dissessem: “nós,
juristas, devemos respeitar a lei, não cabe a nós criar nem mudar o sentido
do direito, que é criado apenas pelo legislador“), mas, ao final, o que
acabam por fazer é reconstruir o direito de modo a torná-lo preciso,
coerente, completo etc... .
O direito, na realidade, apresenta conflitos de normas, lacunas,
disposições permitem várias interpretações, diferentes sentidos. A
dogmática jurídica, contudo, ao estudar o direito, reelabora o sentido das
suas normas, de maneira que esses “defeitos” desapareçam.
Para conseguir reelaborar o direito, a dogmática jurídica cria uma ficção, a
figura do Legislador Racional. Como ela pressupõe a racionalidade do
Legislador, ao se deparar com duas normas que se encontram em conflito.
Exemplo: "entre N1 “é permitido o acesso à internet durante as aulas“ e
N2 “é proibido o acesso à internet durante as avaliações”, a dogmática
“descreve” o direito como coerente, isto é, elimina o conflito dizendo, no
caso de uma avaliação, o acesso à internet é proibido, enquanto que, não
se tratando de avaliação, o acesso é permitido.

Essas são as propriedades do Legislador Racional:


a) ele é único: apesar da existência de leis municipais, estaduais e
federais, todo o ordenamento jurídico é fruto de uma única vontade;
b) ele tem permanência ao longo do tempo: ainda que os vereadores,
deputados, senadores morram, o Legislador não morre;
c) é onisciente, ele conhece todos os elementos fáticos sobre os quais as
normas jurídicas incidem; assim como todas as normas jurídicas do
sistema jurídico, que regulam todos os casos possíveis;
d) é justo, sempre se atribui a ele a solução mais justa;
e) ele é coerente, já que a sua vontade não pode se contradizer;
f) ele é sempre preciso, pois, apesar das limitações da linguagem, o
sentido da sua vontade, expressa por meio das normas, é claro e unívoco;
g) ele é finalista, ao criar as normas sempre tem alguma intenção;
h) é econômico, não usa palavras desnecessárias, nem as normas criadas
são redundantes;
i) é operativo, pois todas as normas por ele criadas têm aplicabilidade.

A função racionalizadora da hermenêutica.


Por um lado, o direito aparece para as pessoas comuns como algo
incompreensível e mesmo contraditório.
Por outro lado, é insuportável para as pessoas, a ideia de que o direito não
possua um sentido coerente, que o ordenamento jurídico se movimente em
distintas direções, direções que possam ser contraditórias entre si.
Por meio da figura do Legislador Racional, a dogmática jurídica descreve o
direito como um ordenamento coerente (sem conflito entre as suas
normas), completo (sem lacunas), constituído por normas precisas e com
sentido único, e justo.
 A teoria de Hans Kelsen apontou para um sério desafio essa
atividade racionalizadora.
De acordo com Hans Kelsen, as normas não possuem um único sentido.
Distintas pessoas que as interpretam podem chegar a resultados
diferentes.
Diante desse fato, a ciência do direito, que tem a função de descrever o
direito, encontra o seu limite: dada a existência de vários sentidos
possíveis de uma norma geral, o ato de conhecimento que a ciência utiliza
para explicar e descrever o direito apresenta como resultado apenas a
moldura.
Se não existe um único sentido possível para as palavras da lei, como não
existe uma única solução possível para os casos submetidos aos juízes,
não se pode exigir que, mediante o ato de conhecimento, seja encontrado
“sentido verdadeiro” da norma ou a “decisão correta” para o caso.
Dada uma norma com vários sentidos possíveis, como não é possível
determinar qual o sentido verdadeiro ou mais adequado ou mais justo,
todos esses sentidos acabam por ser equivalentes.
 Exemplo: Tome-se o crime de furto. Determina o Código Penal:
Art. 155 - Subtrair, para si ou para outrem, coisa alheia móvel:
Pena - reclusão, de um a quatro anos, e multa.
§ 1º - A pena aumenta-se de um terço, se o crime é praticado durante o
repouso noturno.
O crime de furto sofre aumento de pena quando for “praticado durante o
repouso noturno”. Para encontrar o sentido da expressão “repouso
noturno”, um penalista (cientista do direito penal) pode pesquisar muitas
decisões judiciais a fim de verificar como os juízes e os tribunais a
interpretaram, pode recorrer ainda a outros penalistas e, segundo Kelsen, o
resultado do seu trabalho é apresentar os vários sentidos dessa expressão:
(i) “repouso noturno” é o intervalo entre as 22h de um dia e as 6h do dia
seguinte;
(ii) “repouso noturno” é o intervalo entre as 18h de um dia e as 6h do dia
seguinte;
(iii) “repouso noturno” é o período de inexistência de luz natural (o que
varia segundo a latitude do lugar e as estações do ano);
(iv) “repouso noturno” é o período em que a vítima dorme,
independentemente se haja luz natural ou não (alguém que trabalhe à noite
e use o dia para dormir, se for furtado durante o sono, o furto será
considerado como praticado durante o período noturno);
(v) “repouso noturno” é um termo aplicável somente à zona rural e às
pequenas cidades; os furtos praticados nas cidades médias e grandes,
mesmo que à noite ou de madrugada, não são furtos praticados durante o
repouso noturno porque nessas cidades a vida não cessa durante a noite;
e
(vi) “repouso noturno” é qualquer período de descanso, como, por
exemplo, o momento em que as pessoas assistem a programas de
televisão durante o horário de almoço, para relaxar antes de retornar ao
trabalho.
Essa é a moldura da norma do furto noturno – e é preciso lembrar que,
para Kelsen, os limites da moldura não são fixos, isto é, se um novo
sentido for dado, a moldura alarga-se, já que esse novo sentido deve ser
incluído na moldura.
Segundo Kelsen, a ciência do direito não deve emitir nenhum juízo de valor
a respeito desses vários sentidos, não deve dizer “o mais razoável é tal” ou
“tal interpretação não é adequada”.
Por mais absurda que possa parecer uma interpretação, como é o caso do
sentido (vi) acima, cabe apenas ao cientista acrescentá-la à lista.
Suponha que o sentido (vi) tenha sido atribuído por alguém que jamais
pisou numa faculdade de direito ou jamais tenha aberto um livro jurídico,
por exemplo, pelo companheiro de bar do penalista que, numa conversa
descontraída, interpretou “repouso noturno” como qualquer período de
descanso. A resposta do penalista, segundo Kelsen deve ser: “enquanto
cientista do direito, só posso afirmar que a sua interpretação é uma das
interpretações possíveis. Não há como dizer que você esteja errado”.
Em outras palavras, uma interpretação realizada por um penalista e outra
realizada por uma pessoa que jamais estudou o direito são, segundo
Kelsen, equivalentes. Se Kelsen tiver razão, não há nenhum sentido
racional em se procurar a melhor interpretação, a interpretação mais justa,
a mais adequada ou a verdadeira.
Esse resultado da teoria de Kelsen impõe um desafio, segundo Tercio
Sampaio Ferraz Jr., o desafio kelseniano: a filosofia do direito posterior a
Kelsen vai procurar identificar critérios racionais para que se possam
avaliar os resultados da atividade de interpretação dos dispositivos legais,
bem como o das diversas soluções jurídicas obtidas a partir das
interpretações realizadas.
A maioria dos filósofos e teóricos do direito não aceitou essa conclusão da
teoria de Kelsen e mostrou que é possível avaliar racionalmente as
diferentes interpretações, determinando qual é a mais razoável, racional,
justa ou mesmo, para alguns autores, qual a interpretação verdadeira.
Como exemplos desses teóricos, podemos citar Chaïm Perelman, Theodor
Vieweg, H.-G. Gadamer, Recaséns Siches, Robet Alexy, Ronald Dworkin,
Jurgen Habermas. Tercio Sampaio Ferraz Jr

A VIRADA PARA O PÓS-POSITIVISMO


A Nova Retórica de Chaïm Perelman
Chaïm Perelman (1912-1984) nasceu na Polônia e desenvolveu sua vida
acadêmica na Bélgica. Em 1958, publicou a sua principal obra, “Tratado da
Argumentação: a Nova Retórica”.
O grande tema do seu pensamento foi a construção de uma via
intermediária entre dois extremos: de um lado, a lógica, a matemática e
as ciências naturais (como a física, por exemplo) e, de outro, as crenças
individuais meramente arbitrárias.
No campo da lógica, da matemática e das ciências naturais, a partir de
uma verdade (de algo que se impõe pela evidência), vai se caminhando por
meio de demonstrações racionalmente justificadas que conduzem a
conclusões necessariamente verdadeiras.
Exemplo: a Física descobriu uma propriedade de todos os metais:
submetidos ao calor, os metais se dilatam. Se alguém pegar a sua aliança
de ouro e colocá-la próxima ao fogo, é indiscutível que a aliança se
dilatará, já que o ouro é um metal.
Já as crenças individuais arbitrárias não são racionalmente
fundamentadas: são irracionais, contingentes, particulares e discutíveis.
Pedro acredita que todas as pessoas que defendem programas sociais,
como o “Bolsa Família”, são comunistas. Para ele, as pessoas devem
trabalhar e, em função do trabalho receber salário proporcional ao que
produziram; os programas assistencialistas desvirtuam a meritocracia
(cada pessoa de acordo com o seu mérito) e isso só pode ser coisa de
comunista. Essa crença é irracional: esses programas assistencialistas
existem em países capitalistas, ou seja, não são programas comunistas; o
seu funcionamento está de acordo com a economia capitalista, uma vez
que as pessoas assistidas passam a consumir, isto é, a renda a elas
destinada é passada para a economia, gerando crescimento econômico.
Essa crença é contingente: Pedro não aceita que os outros sejam ajudados
pelo Estado, mas ele se esquece de que ele mesmo foi ajudado pelo
Estado, uma vez que cursou universidade pública; e, se o Estado mantém
universidades públicas, esse fato não significa, para Pedro, que o Estado é
comunista. Trata-se de uma opinião particular e discutível, ou seja, Pedro
opera uma seleção: se ele foi ajudado pelo Estado (não teve que pagar
pelo ensino universitário, por exemplo), entende que era dever do Estado
manter a gratuidade da universidade; se o Estado ajuda outra pessoa,
entende que é o mesmo que dar esmola, que é “coisa de comunista”.
Ou então Raquel, que tem a opinião de que as pessoas do signo de Leão
são vaidosas e querem ser o centro das atenções. É uma opinião
irracional: a interferência dos planetas e do sol nas pessoas é desprezível,
como a ciência física nos mostra, o que invalida as premissas adotadas
pela Astrologia, bem como a própria Astrologia como presumível fonte de
conhecimento. É uma opinião contingente: a irmã de Raquel é do signo de
Leão, mas não é vaidosa (Raquel jamais conseguiu que a sua irmã
entrasse num salão de cabelereiro!). É uma opinião particular: Raquel leu a
entrevista de um astrólogo dizendo que ser o centro das atenções, não
seria a mesma coisa que ser vaidoso, pois a vaidade é um defeito: o
leonino é magnânimo, como o próprio rei dos animais, o leão, e não se
deve deixar levar pelo orgulho. É uma opinião discutível, afinal, Raquel não
concordou com o astrólogo – aliás, nem a irmã de Raquel concorda com
ela ou com o astrólogo, pois a irmã de Raquel diz que é Raquel quem
almeja ser o centro das atenções, ainda que seja do signo de Virgem.
O Positivismo Jurídico, como o de Hans Kelsen, tem como objetivo produzir
um conhecimento científico do direito, ou seja, conhecimento verdadeiro
(isto é, que corresponda ao objeto descrito, que seja objetivo), irrefutável e
necessário.
Exemplo: a ciência do direito descreve a norma que tipifica o homicídio:
“se matar alguém, então deve ser condenado à pena de reclusão de 6 a 20
anos”. Basta comparar essa descrição com o ato da autoridade que
positivou a norma para verificar que a descrição é verdadeira. Essa é a
função de uma verdadeira Ciência do Direito: descrever o direito criado
pela autoridade.
O processo que levou à criação do direito – isso é, os motivos que levaram
o legislador a criar a lei, os motivos que conduziram o juiz a interpretar a
norma em um sentido determinado – não é objeto da Ciência do Direito.
Quando se trata da interpretação, Kelsen afirma que mais de um sentido
pode ser dado à norma – há uma pluralidade de sentidos possíveis de uma
norma, o que ele chama de moldura. E os juízes, ao aplicarem essa norma,
na verdade escolhem um dos sentidos possíveis, por meio de um ato de
vontade. Trata-se de um ato de vontade porque não pode ser
racionalmente controlado. Em outras palavras, para Kelsen, a interpretação
e a aplicação do direito fogem ao campo da racionalidade científica,
baseando-se no campo das crenças individuais arbitrárias.
A teoria de Perelman representa uma tentativa de mostrar que a
interpretação e a aplicação do direito não se reduzem à arbitrariedade do
ato de vontade, de que fala Kelsen. É certo que a interpretação e a
aplicação do direito não podem ser consideradas uma atividade científica
estrita – e, nesse, ponto Kelsen tem razão. Não se trata, contudo, de uma
atividade que se funda em crenças individuais arbitrárias, uma vez que é
uma atividade argumentativa que obedece às regras e às estruturas dos
argumentos.
Existem para Perelman três grandes campos:
a) a Lógica Formal (ou o campo da lógica e da ciência): trata das coisas
que têm natureza precisa e consistente. É possível ter evidência, ou seja,
clareza e distinção dos conceitos. Por meio de uma linguagem formal (ou
passível de ser formalizada), sem imprecisões semânticas, parte-se de
uma verdade, estabelecida por uma evidência, e, por meio da
demonstração, chega-se a uma conclusão necessária, não existindo lugar
para a valoração;
b) a Teoria da Argumentação (o campo do direito, por exemplo): abrange
aquilo que é ambíguo, provável, muitas vezes inconsistente – não existe
uma evidência inicial, uma verdade da qual se possa partir. As premissas
não estão dadas, elas precisam ser encontradas. Se não há evidência, há
o verossímil (o provável, o plausível): existem outros graus de adesão,
como opiniões razoáveis, prováveis. A linguagem é a ordinária (a que se
usa no dia-a-dia), com ambiguidade e vagueza. E, como as palavras são
usadas em determinado contexto, de acordo com o contexto em que elas
são usadas, o seu sentido se modifica. Há lugar para a decisão e para a
valoração (para se estimar o que é mais conveniente, mais justo, mais
desejável etc.); e
c) as crenças individuais meramente arbitrárias.O problema com o
Positivismo Jurídico é o de ignorar o campo intermediário da Teoria da
Argumentação. Ao ignorá-lo, considera todo o campo coberto pela
Argumentação (que é o campo do direito, da política, da moral) como
sendo constitutivo do campo das crenças individuais meramente
arbitrárias.
Um bom exemplo é o tratamento dado à ação humana – e, lembre-se, a
decisão judicial é uma ação! Como a Lógica Formal e as ciências são
incapazes de orientar a ação humana (pois se limitam a um conhecimento
da realidade, a dizer como é a realidade, e do fato de a realidade ser de
uma maneira não se pode extrair nenhum dever, não se pode passar do
ser ao dever-ser), para o Positivismo Jurídico, os motivos que levam o juiz
a interpretar e decidir o caso de uma determinada maneira não podem ser
racionalmente justificadas, podem apenas ser descritas.
Por meio da Teoria da Argumentação, Perelman procura mostrar como é
possível orientar racionalmente a ação humana, quando se trata de
convencer ou persuadir as pessoas de algo e a fazer algo.
Quando os valores (o justo, por exemplo) estão em jogo, existem técnicas
de argumentação que procuram estabelecer um acordo (consenso) entre o
orador e o auditório. Orador é quem argumenta. E o orador dirige-se a
determinadas pessoas (o auditório). O orador quer persuadir ou convencer
o auditório de que a sua conclusão é justa ou razoável.
É nesse sentido que Perelman fala de Retórica, como um conjunto de
técnicas de argumentação, de persuasão mediante o discurso – e é preciso
ter cuidado para não confundir com o sentido vulgar de retórica (“falar
bonito para enganar as pessoas”) que não é o sentido em que Perelman
emprega o termo. Se não é possível estabelecer a verdade, por exemplo,
quanto à interpretação de um dispositivo legal (é possível atribuir a ele
mais de um sentido), a questão passa a ser a procura pelo consenso, a
procura por persuadir os outros. Não se trata mais, como entendia Kelsen,
de se preocupar com o processo “interno” do juiz interpretando e aplicando
o direito; mas, sim, da maneira como o juiz justifica para o auditório,
mediante a argumentação, a sua decisão.
O orador, mediante o seu discurso (argumentação), procura influenciar o
auditório. No caso do direito, o auditório é representado pelos tribunais
superiores. É verdade que, na primeira instância, os advogados se dirigem
aos juízes de direito e estes, ao prolatarem suas sentenças judiciais,
também se dirigem às partes. Todos eles, advogados e juízes, sabem, no
entanto, que a parte vencida apelará da decisão, de maneira que serão os
tribunais que decidirão em última instância.
Ao se dirigir ao auditório, o decisivo para o orador é encontrar objetos
(fatos, valores, hierarquias de valores, “topoi”) que venham a estabelecer
um meio de se obter o acordo, a adesão do auditório. Um dos conceitos
centrais da Retórica é o conceito de “topos” (o seu plural é “topoi”). “Topos”
é uma palavra grega que significa “lugar” (daí se falar em “medicamente de
uso tópico”, uma pomada, por exemplo, que deve ser aplicada no lugar em
que há uma lesão; ou “utopia”, lugar que não existe). “Topos” é uma forma
padronizada de argumentar ou um esquema de um argumento, que pode
ser utilizado em diferentes circunstâncias, por exemplo: o princípio de que
“a lei especial revoga a lei geral”. Sempre que duas normas se
contradizerem, sendo uma geral e a outra particular, esse “topos” é
utilizado para eliminar o conflito entre elas.
 Como se pode perceber, a argumentação que se dirige ao seu
auditório é construída a partir desses “topoi”, isto é, segundo esquemas
de argumentos.
Se existem regras para argumentar, essas regras não foram estabelecidas
pelo orador. São regras aceitas pelo auditório. Como o orador objetiva a
adesão do auditório, deve seguir essas regras.
Exemplo: o “topos” do argumento de autoridade. Ele não é aceito na
Física: nenhum físico pode justificar a existência de buracos negros porque
“Einstein disse que eles existem”. Já no direito, esse “topos” é aceito: se o
Supremo Tribunal Federal decidiu de uma determinada maneira, ao utilizar
essa decisão como argumento, ao incluir no seu arrazoado tal acórdão, o
advogado se utiliza de um objeto poderoso para a adesão do seu auditório.
É por meio da obediência a padrões argumentativos aceitos pela
comunidade jurídica que se diminui – ou se procura eliminar – a
arbitrariedade na interpretação e na aplicação do direito. Se existem várias
possibilidades de interpretação e de decisão, é possível racionalmente
determinar qual é a mais justa ou a mais adequada.
Vamos supor que o professor em sala de aula pretende incentivar os
alunos a visitarem uma exposição de arte moderna – por exemplo, a do
pintor espanhol Pablo Picasso. O professor mostra aos alunos o cartaz da
exposição, que traz os quadros abaixo (“O almoço na relva”), uma das
obras expostas:
Os alunos não conhecem as obras de Picasso e ficam chocados com o que
veem:—
Isso não pode ser arte! Isso é muito feio!
– gritou o Marcelo.
— Eu não consigo nem entender o que foi pintado nessa tela! – completou
a Marina.
Bem, o professor está em apuros. Ele precisa persuadir os alunos a visitar
a exposição e o cartaz teve o efeito de afastá-los da exposição!
O professor (o orador) precisa dirigir uma argumentação (persuadir) aos
alunos (o auditório) a fim de que eles visitem a exposição (realizar uma
ação). Para isso, o professor precisa conhecer os valores do auditório e
encontrar um elemento comum (“topos”) aceito por todos e conseguir obter
a sua adesão (consenso). Ele vê uma aluna com a camisa do conjunto de
rock Queen, com a imagem estampada do Freddie Mercury. E dispara:
— O Freddie Mercury costumava dizer que as pinturas da arte moderna
são como as mulheres, você jamais vai gostar delas se tentar compreendê-
las. Ainda que vocês não consigam compreender a pintura, a visita vale a
pena pela experiência de estar em contato com a arte e passar a gostar
dos quadros de Picasso.
Bem, na verdade, os alunos não se persuadem, já que, para eles, o
Freddie Mercury não é uma autoridade no assunto. Por que acreditar nele?
Além do que, muitos alunos têm antipatia pela sua música, de maneira que
o professor não obtém a adesão do seu auditório. O professor vai ter mais
trabalho do que imaginava.
— Pessoal, vamos partir do que o Marcelo disse. Realmente, a pintura não
é bonita. Agora, será esse fato um defeito do quadro? Somente poderia ser
um defeito se o pintor estivesse pensando em realizar uma bela pintura.
Será esse o caso de Picasso? Não. E por que não? Porque, para a arte
moderna, a ideia de beleza deixou de servir de parâmetro para se
determinar o que é arte.
— Mesmo sabendo disso, por que sair de casa para ver uma pintura feia
dessas? Se for para sair de casa, gastar na condução, no lanche, no
ingresso, que seja para ver alguma coisa bonita!
— Vale a pena para conhecer algo que é novo para vocês. Afinal, vocês
estão na Universidade para conhecer coisas novas – retruca o professor,
apoiando a sua argumentação no valor do conhecimento, um valor tão
importante para os estudantes.
— Sim, coisas novas, mas coisas ligadas ao direito, já que cursamos
direito! O que uma obra de arte pode me ensinar para que eu me torne um
advogado melhor? Os demais alunos parecem concordar com o Marcelo.
O professor percebe que o útil é um valor largamente aceito pelos alunos –
afinal, é um valor aceito pelas sociedades capitalistas, como a brasileira. O
professor sabe que a arte não tem valor pela sua utilidade; mas, nesse
momento, o mais importante é fazer com que os alunos visitem a
exposição. Na aula da semana seguinte, discutirá com eles a questão da
utilidade ou não da arte; vai deixar essa discussão para depois, porque
agora consegue encontrar o “topos” que poderá finalmente conseguir a
adesão do auditório, o valor do útil:
— Muito bem. Partindo da premissa de que as atividades devam ter uma
utilidade (premissa que assumo provisoriamente), a arte moderna pode nos
ensinar muitas coisas: (i) a pensar por conta própria, pois os artistas –
principalmente os modernos – costumam romper com as ideias aceitas no
seu tempo, questionando aquilo que era tido como verdadeiro; (ii) a
encontrar um modelo de autenticidade, pois muitos dos artistas foram
incompreendidos pelo seu tempo, mas nem por isso deixaram de acreditar
em si mesmos ou de procurar uma maneira própria de se expressar,
diferente das pessoas do seu tempo; (iii) a sempre mostrar, de uma
maneira nova, aquilo que é rotineiro, que já é conhecido por todos nós.
— Um bom advogado, continua o professor, precisa de todos esses
atributos. Ele deve ser capaz de olhar o problema a partir de um ângulo
novo, pois somente assim descobrirá uma solução que não existia antes
que ele a concebesse. Por exemplo, interromper a gravidez configura o
crime de aborto. Interromper a gravidez de feto anencéfalo significa
cometer esse crime; salvo se o feto não tiver viabilidade de vida, uma vez
que, por meio desse tipo penal, protege-se o bem jurídico vida. Ora, se
viabilidade de vida não há, não há que se falar em crime contra a vida
(como o aborto). Essa capacidade de ver o novo onde todos somente
enxergam a mesma coisa é o que permite ao advogado descobrir uma
solução jurídica que, por sua vez, encontre o direito, a justiça no caso
concreto.
Os alunos finalmente pareciam concordar com o professor e aceitar fazer o
que lhes era proposto: visitar a exposição de Pablo Picasso.
— Para completar, meus caros alunos, percebam a posição das figuras no
centro do quadro: Picasso está citando a pintura “O almoço sobre a
relva”, do grande pintor Édouard Monet (para muitos, o primeiro pintor da
arte moderna); e Monet, por sua vez, cita uma gravura de Raimondi, que
nada mais é do que uma citação de Rafael, pintor do Renascimento
italiano. Isso nos pode levar a pensar como o direito é feito também de
citações, no sentido de que, no direito, o que temos é uma série de
padrões que se repetem (nas artes plásticas, há uma série de padrões
gráficos, como o padrão dessas três figuras sentadas, que se repete ao
longo do tempo, pelas obras mencionadas; no direito, os padrões se
constituem de estruturas de argumentos). São esses padrões
argumentativos (a analogia, o princípio de que ninguém pode se aproveitar
da própria torpeza, o “in dubio pro reo”, o critério de que a norma especial
revoga a norma geral, “suum cuique tribuere”, dar a cada um o que é seu
etc.) que garantem a própria possibilidade de encontrar a solução mais
justa para o caso concreto, ou seja, de realizar o próprio direito. Mais do
que um conjunto de normas, o direito é um conjunto de padrões de
argumentos.

A Tópica de Theodor Vieweg (tópico-problemática)


Vieweg caracteriza a tópica de diversas maneiras:
a) como uma técnica do pensamento problemático;
b) pela noção de “topos” ou lugar comum;
c) como busca pelas premissas (no pensamento problemático, as
premissas ganham maior importância que as conclusões).
Os “topoi” (plural de “topos”) são premissas que, em razão da sua
plausibilidade, são aceitas e compartilhadas pelas pessoas. Perelman
também se refere aos “topoi”, mas os entende num sentido mais restrito
que Viewweg. Para o primeiro, “topos” é um esquema de argumento; para
Vieweg, “topos” é também o próprio argumento.
Exemplos de “topoi”:-
 Ninguém pode se beneficiar da própria torpeza;-
 Norma especial revoga norma geral;-
 Quem pode o mais, pode o menos;-
 Não se pode transferir a outrem mais do que se tem;-
 Os contratantes devem respeitar a boa-fé; etc.
Como são aceitos pelas pessoas, aqueles que invocarem os “topoi” não
precisam apresentar razões para justificar o seu emprego argumentativo; o
que não ocorre com aqueles que se dispuserem a contestá-los, que têm o
ônus de provar que determinado “topos” deve ser afastado.
Vieweg entende a tópica como uma técnica do pensamento problemático.
Para ele, problema significa uma questão que admita mais de uma
resposta. No direito, o problema aponta para a aporia fundamental do justo
“aqui e agora”.
Para se compreender o sentido de problema, Vieweg estabelece a
distinção entre:
a) o pensamento sistemático: sistematiza aquilo que já está dado, decidido
ou já se encontra positivado; e
b) o pensamento problemático: a partir dos “topoi”, procura solução que
ainda não se encontra dada.
O pensamento problemático enfatiza que uma determinada situação
concreta apresenta várias soluções jurídicas, o que significa dizer que o
juiz terá de escolher uma delas.
Já o pensamento sistemático parte de um sistema, que fornece a solução
para todo e qualquer problema apresentado – surgindo um problema que
não esteja dentro da relação de problemas selecionados pelo sistema,
esse problema novo deve ser ignorado como pseudoproblema, uma vez
que são as próprias normas do sistema que determinam quais são os
problemas relevantes.
Como as normas do direito brasileiro, ao disciplinar a união estável,
determinam que é a união entre um homem e uma mulher, do ponto de
vista do pensamento sistemático, a união estável homoafetiva seria um
pseudoproblema, ou melhor, não se configura como problema para o
direito. Ora, como se sabe, o Supremo Tribunal Federal reconheceu
recentemente a união estável homoafetiva, entendendo que se estava
diante de um problema jurídico e encontrou a solução jurídica para ele.
É importante dizer que Vieweg não se opunha ao pensamento sistemático,
mas, antes, procurava acentuar a primazia do pensamento problemático
para o direito. Segundo ele, o direito sempre se orientou pela tópica, desde
o direito romano até a época moderna: a partir de um problema dado,
procurava encontrar argumentos que encaminhassem a sua solução. A
partir da época moderna (século XVII), implementou-se o modelo
axiomático-dedutivo (sistema dedutivo): a partir de certas premissas,
deduzem-se todas as demais normas.
Apesar dessa tentativa de impor o modelo axiomático-dedutivo, o direito
jamais deixou de ser tópico na sua aplicação, uma vez que:
a) as normas e os fatos precisam ser interpretados;
b) o direito – pelo menos o direito moderno – proíbe o “non liquet”;
c) existem casos não previstos pelo legislador (lacunas);
d) a solução prevista por uma norma não se revela a justa medida para o
caso.
Tome-se, como exemplo de “topos”, a cláusula geral da boa-fé (Código
Civil, art. 422: “os contratantes são obrigados a guardar, assim na
conclusão do contrato, como em sua consecução, os princípios de
probidade e boa-fé”).
Tem-se uma ideia geral do que seja a boa-fé. Dado um caso concreto, no
entanto, o que significa agir de boa-fé? Nesse caso concreto, o dever de
agir com boa-fé pode levar a que se limite o exercício de um direito
subjetivo da outra parte? E, se em lugar de limitar, ele se satisfizer em
ampliar o escopo dos deveres já estabelecidos contratualmente? Há
possibilidade de se afastar por completo a autonomia da vontade das
partes, em face do dever de agir com boa-fé?
Segundo o artigo 766 do Código Civil, “se o segurado, por si ou por seu
representante, fizer declarações inexatas ou omitir circunstâncias que
possam influir na aceitação da proposta ou na taxa do prêmio, perderá o
direito à garantia, além de ficar obrigado ao prêmio vencido”.
Carlos contratou seguro do automóvel e, ao preencher o seu perfil,
declarou à seguradora que não utilizava o veículo no período noturno para
frequentar nenhum curso, para se dirigir à faculdade, por exemplo. O carro
foi furtado e a seguradora descobriu que o furto aconteceu nas imediações
da faculdade cursada por Carlos à noite. Ela se negou a indenizar Carlos,
invocando o artigo 766 do Código Civil. Partindo-se do sistema, a solução
pode ser facilmente encontrada.
Trata-se, contudo, de uma solução inaceitável, porque se violou a boa-fé
objetiva. Ao se partir do problema, uma série de questionamentos se
apresenta. É preciso esclarecer que não se trata da boa-fé subjetiva (ou
seja, não se trata de verificar a intenção de Carlos ao omitir da seguradora
a informação de que usaria o veículo para se dirigir à faculdade à noite),
mas da objetiva. Se é assim, deve-se, agora, perguntar: se Carlos tivesse
informado a seguradora de que ele usaria o carro para frequentar a
faculdade, a seguradora teria recusado o risco?
Pela análise da maneira objetiva de contratação do seguro em São Paulo,
onde ocorreu a sua contratação, pode-se dizer que não, pois a seguradora
se limitaria a aumentar o valor do prêmio a ser pago pelo segurado (para
simplificar, ela cobraria 10% a mais, em virtude de o risco ser também
maior). Primeira conclusão: se essa falta de informação não seria capaz de
impedir a contratação do seguro, a falta dessa informação não pode ser
invocada como razão para que a segurador deixe de indenizar o segurado!
Segunda conclusão: se essa falta de informação fez com que a seguradora
cobrasse 10% a menos pela contratação do seguro, ela pode descontar
esses 10% no momento da indenização (se o valor da indenização for R$
60.000,00, ela pode descontar os 10% e indenizar apenas R$ 54.000,00).
Como se pode perceber, utilizou-se o pensamento problemático, e, por
meio de um “topos”, a boa-fé objetiva, não apenas foram interpretadas
algumas normas jurídicas, como também se encontrou uma solução mais
adequada para o caso concreto.
Se o direito se encontra no campo do razoável, cabe à tópica encontrar
caminho para que a decisão seja justa. Não se trata de caminho arbitrário,
uma vez que a razão caberá a quem recorrer aos “topoi” mais aceitos pela
comunidade jurídica, articulando-os de maneira mais coerente e
persuasiva.
Pode-se ver como a argumentação jurídica restringe a arbitrariedade: há
liberdade na atividade de argumentar, o que não significa arbitrariedade,
porque ela é articulada pelos “topoi” ao redor dos problemas – a atividade
da ciência do direito é concebida e compreendida a partir do problema.
No caso tratado pelo acórdão abaixo, a defesa do réu questiona a validade
da perícia realizada nos objetos apreendidos, já que não foi realizada em
todos os bens apreendidos, como o Código de Processo Penal determina
em seu art. 530-D: “subseqüente à apreensão, será realizada, por perito
oficial, ou, na falta deste, por pessoa tecnicamente habilitada, perícia sobre
todos os bens apreendidos e elaborado o laudo que deverá integrar o
inquérito policial ou o processo”.
Por meio de um raciocínio tópico, esse argumento é recusado: “entendo
ser plenamente admissível, no caso concreto, a prova pericial que recaia
sobre bens analisados por amostragem, a despeito da redação do art. 530-
D do CPP. É que a simples interpretação sistemática não é mais admitida.
Deve o magistrado aplicar o direito a partir do caso concreto, conjugando
ao pensamento sistemático também o pensamento problemático . É dizer:
o Direito deve ser compreendido como sistema aberto às particularidades
do caso concreto ”.
A Filosofia Hermenêutica.
Para a Filosofia Hermenêutica, a interpretação não se resume a um
método para se alcançar o sentido dos textos, mas revela uma
característica essencial da presença do ser humano no mundo, a sua
existência.
A Filosofia Hermenêutica parte do ser humano entendido em seu sentido
singular e concreto, do modo de ser desse existente humano, a fim de
revelar tanto a estrutura da nossa compreensão quanto a maneira como
estamos no mundo e a estrutura do mundo para nós.
Seus principais representantes foram Martin Heidegger (1889 – 1976) e
Hans-Georg Gadamer (1900 – 2002).
Como se sabe, o Positivismo Jurídico foi o paradigma teórico dominante na
filosofia e teoria do direito durante o século XIX e boa parte do século XX.
Não apenas no direito, mas também em outras ciências, a visão positivista
diante do saber científico foi muito influente nesses séculos.
A Filosofia Hermenêutica representa uma crítica a essa postura positivista:
a) o positivismo apresenta uma preocupação teórica de ordem
metodológica e não valorativa, enquanto que, para a filosofia
hermenêutica, o conhecimento é valorativo, na medida em que o mundo
humano é o mundo das ações que precisam ser compreendidas, no qual o
próprio sujeito que conhece faz parte do processo de conhecimento;
b) o positivismo entende o conhecimento como uma relação entre um
sujeito e um objeto exterior já dado na realidade, conhecer é descrever
esse objeto; enquanto que, para a filosofia hermenêutica, o conhecimento
somente pode ser obtido a partir da compreensão daqueles que conhecem,
do ponto de vista interno dos participantes do processo de conhecimento,
sendo que o conhecimento se compõe de enunciados interpretativos;
c) o positivismo jurídico separa os enunciados em descritivos (ser) e
prescritivos (dever ser), a ciência do direito se compõe de enunciados
descritivos a respeito das normas jurídicas (enunciados prescritivos);
enquanto que a filosofia hermenêutica privilegia o discurso, a comunicação
linguística, como tecido de uma vida comum – a norma não é entendida
mais como proposição ou fato, mas como argumento, como razões que
somente podem ser obtidas a partir do interior dos contextos discursivos;
d) para o positivismo jurídico, a função da ciência do direito é descrever, do
ponto de vista externo, o direito; enquanto que, para a filosofia
hermenêutica, o conhecimento do direito somente se dá a partir da
compreensão daqueles que o conhecem do ponto de vista interno (por
exemplo, da comunidade jurídica, dos juízes), o que significa dizer que a
ciência do direito não é exterior ao direito;
e) para o positivismo jurídico, existe um objeto (enunciado normativo) que
precede a interpretação; enquanto que a filosofia hermenêutica vê o direito
como atividade interpretativa, isto é, o direito deixa de ser entendido como
um conjunto de normas que existem antes e de maneira independentes da
sua interpretação pelos juízes e pelos juristas;
f) o positivismo jurídico concebe o sujeito do conhecimento como neutro,
enquanto que a filosofia hermenêutica concebe o sujeito do conhecimento
situado em determinada perspectiva e, por isso, o conhecimento é, ao
mesmo tempo, ação (trata-se de um conhecimento valorativo), exigindo
que se investiguem os motivos racionais da ação; e
g) o positivismo jurídico vê a decisão judicial como um resultado a ser
descrito pela ciência do direito, enquanto que a filosofia hermenêutica vê a
decisão judicial como ação, o que significa que importa também investigar
os motivos racionais da ação, e não apenas o resultado obtido.
Para o Positivismo Jurídico, ao decidir, o juiz opera no vazio: ele analisa e
toma conhecimento dos fatos do caso concreto, interpreta as normas
jurídicas que estão à sua disposição, e aplica a norma escolhida ao caso
para chegar à decisão judicial. Cabe à ciência do direito descrever o
resultado de todo esse processo, pouco importando a ela como o juiz
alcançou tal resultado. Para Hans Kelsen, os processos “internos” ao juiz,
que o levaram à sentença judicial, são irrelevantes para a ciência do
direito. Se alguma ciência deve deles se ocupar é a psicologia ou a
sociologia.
Para a Filosofia Hermenêutica, contudo, antes que o juiz decida, os fatos e
as normas jurídicas sofrem uma valoração por parte do juiz, valoração que
não se processa no vazio. Essa valoração se dá segundo “lentes”
adquiridas por meio da experiência social do juiz. Ao perceber aqueles
fatos e aquelas regras, o juiz, como qualquer pessoa, acentua certos
aspectos, valora as condutas, prefere determinado elemento a outros,
entende que algumas características são aquelas relevantes para a sua
solução, etc.
A esse processo inicial, a filosofia hermenêutica chama de pré-
compreensão. Na pré-compreensão, há elementos subjetivos (dizem
respeito àquele que compreende, como, no caso, o juiz, sua situação
social, onde e em que época nasceu, sua formação familiar e social, suas
expectativas e valores etc.) e objetivos (o contexto social no qual se dá
todo o processo, pois a decisão judicial se constitui como prática social que
se desenvolve dentro de uma tradição com vistas a cumprir determinadas
expectativas históricas, sociais).
A interpretação é um processo circular, um processo constituído pelas
interações entre os fatos, o texto legal e a pré-compreensão, ente os fatos
e as normas, entre a norma e outras normas etc. – esse processo é
conhecido como “círculo hermenêutico”.
Para a Filosofia Hermenêutica, ao se interpretar uma lei, é impossível se
desvincular da própria situação histórica, da pré-compreensão. A lei não é
a realidade do direito, mas apenas uma possibilidade do direito. É por meio
de cada situação concreta, de modo distinto e novo, que o texto da lei vem
a ser entendido e adequado.
O direito não é, portanto, um objeto dado e acabado, mas é construído, é
algo em contínuo devir, resultado da sua contínua aplicação (práxis
interpretativa/aplicativa). A interpretação é a síntese entre a norma abstrata
e o caso concreto, razão pela qual o processo de interpretação do direito
não pode ser separado do processo de aplicação do direito ao caso
concreto.
A aplicação (interpretação) é a passagem do geral ao particular, do
passado ao presente. A compreensão se dá justamente nessa mediação
entre o geral e o particular. Quando se trata da lógica ou da ciência natural,
essa passagem poderia ser explicada mediante a subsunção: se a Biologia
afirma que os mamíferos são vertebrados e que os cães são mamíferos,
conclui-se que todos os cães são vertebrados.
No campo do direito, da sua aplicação, não se utiliza o modelo lógico-
formal da dedução, mas a razão prática, uma sabedoria prática que
consegue lidar com aquilo que é contingente e com o tempo. Ao decidir se
um médico agiu com culpa ao cancelar uma cirurgia por entender que ela
representava um risco de morte do paciente, sendo que o paciente veio a
morrer no dia seguinte, o juiz deverá ser capaz de estabelecer, nesse caso
específico, quais eram os deveres e obrigações próprias do médico – não
basta dizer que ele devia salvar a vida do paciente, porque a questão
permanece: o médico salvou-lhe a vida (ainda que por um dia) ao cancelar
a cirurgia ou não lhe permitiu uma chance maior de vida quando cancelou
a cirurgia? O que seria legítimo exigir do profissional naquelas
circunstâncias? As razões para cancelar a cirurgia são aceitáveis? É
relevante saber como agiria outro médico? Que informações estavam
disponíveis ao médico no momento em que decidiu cancelar a cirurgia? Os
demais profissionais da área médica têm alguma responsabilidade? O
anestesista, que concordou com o cancelamento da cirurgia, tem alguma
culpa? O Hospital? Seria legítima a expectativa de que o paciente
apresentasse melhoria no seu quadro clínico sem a intervenção cirúrgica?
Qual o grau de confiabilidade em prognósticos dessa natureza?
O que caracteriza a ação (seja a do médico ao cancelar a cirurgia, seja a
do juiz ao julgar) é a sua contingência. É preciso agir, contudo, tendo-se
consciência que o curso e o sentido da ação somente se dão pela ação,
isto é, ao agir. As normas jurídicas e as decisões tomadas pelo médico
somente são encontradas e somente se conformam na ação.

PÓS-POSITIVISMO
Distinção entre as duas espécies de normas: regras e princípios
Distinção entre duas espécies de normas: regras e princípios.
De acordo com o Pós-Positivismo, as normas jurídicas são um gênero com
duas espécies: as regras e os princípios.
a) as regras, por meio da hipótese fática, disciplinam uma situação; quando
se dá tal situação na realidade, incide a norma.
Exemplo: a norma que tipifica o homicídio estabelece, como hipótese
fática, “matar alguém”, o que engloba uma série de condutas, como
esfaquear, dar um tiro, desligar aparelho que mantém artificialmente a
pessoa viva, envenenar etc. Se uma pessoa envenena outra e esta morre,
a norma tem incidência; se não há morte, não incide a referida norma;
b) os princípios são diretrizes gerais, o que significa dizer que a sua
incidência é mais ampla e difusa, incidindo num arco maior de situações
concretas.
Exemplo: o princípio da presunção de inocência, que protege o réu de
uma condenação injustificada, disciplina como deve ser produzida a prova
para que o réu possa vir a ser condenado ou como se deve dar a ampla
defesa do réu.
Reconhecer os princípios como verdadeiras normas jurídicas significa
reconhecer a sua normatividade, a sua aplicação direta e imediata aos
casos concretos, a sua eficácia. Esse reconhecimento é recente na teoria
jurídica.
Os princípios jurídicos foram entendidos de diferentes maneiras ao longo
do tempo:
a) pelos jusnaturalistas, como axiomas racionais a partir dos quais as
normas jurídicas seriam deduzidas: a partir dos princípios da justiça
comutativa – princípios já estudados por Aristóteles, já descobertos pelos
jurisconsultos romanos – deveriam ser deduzidas as normas do direito das
obrigações, por exemplo;
b) meio de integração do direito, como os entendia o positivismo jurídico.
Em caso de lacuna, se poderia recorrer aos princípios para dar a solução
jurídica ao caso;
c) mera expressão de valores, sem nenhuma normatividade jurídica (como
não apresentam sanção, os princípios não seriam normas jurídicas, mas
simples expressão dos valores aprovados socialmente).
Com o reconhecimento dos princípios como normas jurídicas, modifica-se a
maneira de se compreender o direito. Entender o direito como composto
apenas por regras tem, como consequência, admitir que os casos não
previstos pela sua hipótese fática são casos de não direito.
Exemplo: todas as normas (normas que são regras) do direito brasileiro
que disciplinam a união estável determinam que união estável é a união
entre um homem e uma mulher. Quando dois homens ajuízam ação
pedindo o reconhecimento de união estável, a ação deve ser rejeitado
como um caso não previsto pelo direito, pois não se subsome na hipótese
fática daquelas normas.
Ora, ao se partir de um princípio, como o da igualdade, é possível entender
que o direito disciplina o caso daqueles dois homens que mantém relação
homoafetiva. Foi o que entendeu o Supremo Tribunal Federal
recentemente.
A visão Robert Alexy
Robert Alexy é um filósofo alemão, nascido em 1945. Publicou a sua
principal obra, “Teoria da Argumentação Jurídica”, em 1983.
Para Alexy, existem duas espécies de normas: as regras e os princípios:
a) regras são normas que devem ser cumpridas na sua totalidade e
também aplicadas na sua totalidade; e
b) princípios são mandamentos de otimização, isto é, normas que devem
ser cumpridas e aplicadas na maior medida possível a partir das condições
reais e jurídicas possíveis.
As regras ou são cumpridas ou não são cumpridas. Já os princípios
admitem que o seu cumprimento se dê de maneira gradual, em razão de
limitação de ordem jurídica e fática.
Exemplo:- o direito à liberdade de expressão está restringido pelo direito a
não ser discriminado em razão de raça (ao publicar uma obra, o seu autor
tem a liberdade de expressar seu pensamento, desde que não seja
discriminatório, por exemplo, aos judeus – como já decidiu o Supremo
Tribunal Federal no caso do editor Siegfried Ellwanger, em sede de Habeas
Corpus – HC 82.424);
 todos os brasileiros têm direito à moradia. Não existem, contudo,
condições econômicas para que o Estado construa e distribua moradias para
todos aqueles que carecem de moradia. A limitação é de ordem econômica.
Outra distinção diz respeito ao conflito entre regras e a colisão entre os
princípios:
a) conflito entre regras: esse conflito é resolvido de duas maneiras:
a.1) por uma cláusula de exceção. Suponha que o Regulamento da
Biblioteca da Uninove contenha as seguintes normas: (Ni) “O aluno da
Uninove devolverá o material retirado no prazo de 7 dias ” e (Nii) “O aluno
de Direito da Uninove devolverá o material retirado no prazo de 15 dias”.
Há um conflito entre Ni e Nii; e o conflito é resolvido quando se considera
Nii uma cláusula de exceção à Ni: tratando-se de alunos do curso de
Direito, há uma exceção quanto ao prazo de devolução do material da
biblioteca. Conhecendo o amor que os alunos de Direito devotam aos
livros, nada mais merecido!
a.2) ao se invalidar uma das regras em conflito. É o caso de uma regra que
tenha sido declarada inconstitucional. No conflito, a regra
infraconstitucional foi declarada inválida, o que significa dizer que deixou
de existir o conflito com a regra constitucional.
b) a colisão entre princípios: a colisão é resolvida pela ponderação ou
sopesamento dos princípios em colisão. É importante ressaltar que,
somente diante de um caso concreto, é possível realizar a verificação de
qual é o princípio de maior peso (maior importância, maior relevância).
A visão de Ronald Dworkin
Ronald Dworkin (1931-2013), filósofo do direito norte-americano, foi um
crítico do Positivismo Jurídico, especialmente da teoria positivista mais
refinada que, a seu juízo, é a de H. L. A. Hart.Publicou várias obras, sendo
que as mais influentes são “Levando os Direitos a sério”, em 1977, e “O
império do direito”, em 1986.
Para Dworkin, as normas são um gênero com duas espécies, as regras e
os princípios. As regras aplicam-se segundo o critério do “tudo ou nada”.
As regras, no antecedente normativo, estipulam uma condição ou hipótese
para a sua própria incidência. Por meio da hipótese fática, as regras
disciplinam uma série de fatos (“matar alguém”, “ser proprietário de imóvel
urbano”).
Sempre que algum caso concreto se adequar à hipótese fática, incide a
norma e, com ela, uma consequência jurídica é atribuída: (“pena de
reclusão de 6 a 20 anos”, “obrigação de recolher IPTU”). Se João matou o
seu cunhado, deve receber a pena de reclusão de 6 a 20 anos; se Mariana
é proprietária de um apartamento em São Paulo, deve pagar o IPTU. Se os
fatos do caso concreto não se adequarem à hipótese fática da norma, a
norma não se aplica: se João feriu, mas não matou o cunhado, não se
aplica a norma referida; se Mariana mora no apartamento cujo proprietário
é o seu tio, ela não deve pagar o IPTU.
As regras estipulam deveres de maneira definitiva. Se uma outra norma
determinar que os imóveis urbanos com área menor do que 40 m2 estão
isentos do pagamento de IPTU e este for o caso do imóvel do tio de
Mariana, estabelece-se um conflito de normas (antinomia) e, segundo o
critério da especialidade, a norma especial revoga a geral, o que significa
que se aplica ao caso apenas a norma especial (isenção do IPTU).
Já os princípios não se aplicam da mesma maneira. Eles possuem o que
Dworkin chama de dimensão de peso. Os princípios estabelecem deveres
provisórios, isto é, eles admitem que sejam afastados pela aplicação de
outros princípios. Apenas no caso concreto é que se saberá qual o
princípio será aplicado e, por consequência, qual o dever que se revelou
preponderante.
No Brasil, existem dois princípios constitucionais: o da liberdade de
expressão e o da não discriminação em razão da raça e religião. No plano
abstrato, não existe conflito entre eles. Num caso concreto, contudo, pode
ocorrer um conflito: alguém escreve um livro em que afirma que os adeptos
de uma determinada religião são pessoas degeneradas.
Dizer que prevalece um dos dois princípios, não significa dizer que um seja
válido e o outro seja inválido, mas apenas que, no caso concreto analisado,
um deles deve prevalecer (os dois princípios são e continuam sendo
válidos).
Diferentemente de Alexy, Dworkin admite a existência de apenas uma
resposta que seja a correta, do ponto de vista jurídico, para um
determinado caso. Dworkin justifica essa pretensão por meio de uma
concepção mais forte dos princípios.

A JUSTIFICAÇÃO DA DECISÃO JUDICIAL NA


CONTEMPORANEIDADE
Princípio da razoabilidade
Na doutrina brasileira, os Princípios da Proporcionalidade e o da
Razoabilidade são, muitas vezes, tratados como sinônimos.
Se ambos procuram limitar o poder do Estado (por meio do Estado-juiz,
entenda-se), será estabelecida uma distinção entre eles:
a) quanto à origem: o Princípio da Razoabilidade surgiu nos Estados
Unidos da América, o da Proporcionalidade, na Alemanha;
b) quanto à forma de aplicação: o Princípio da Razoabilidade avalia os atos
do Estado, enquanto que o Princípio da Proporcionalidade diz respeito ao
problema da colisão entre princípios.
O Princípio da Razoabilidade desenvolveu-se como uma garantia do
devido processo legal, com base na Constituição dos Estados Unidos da
América. No início, dizia respeito apenas quanto ao aspecto formal; depois,
quanto à matéria do ato estatal.
Na Constituição Federal Brasileira, o artigo 5°, inciso LIV, determina:
“Ninguém será privado da liberdade ou de seus bens sem o devido
processo legal”, o que é considerado por muitos doutrinadores como uma
disposição semelhante àquela da Constituição Norte-Americana.
Por meio do Princípio da Razoabilidade, o Poder Judiciário conseguiu
limitar o poder estatal, especialmente quanto aos seus abusos.
No julgamento da Suprema Corte, em 1905, do caso Lochner versus
Estado de Nova York, ficou estabelecida uma limitação quanto à
possibilidade de uma lei afetar os direitos individuais: para fazê-lo, a lei
deveria estipular uma adequação racional entre meios e fins, sendo que os
fins deveriam sempre ser legítimos. No caso, uma lei do Estado de Nova
York limitou o número de horas de trabalho dos padeiros. O proprietário de
uma padaria, Joseph Lochner, foi acusado de ter violado a lei do Estado de
Nova York. A Suprema Corte rejeitou o argumento de que a lei era
necessária para proteger a saúde dos padeiros, entendendo a lei como
atentatória à liberdade negocial, declarando-a irrazoável, desnecessária,
arbitrária por interferir na liberdade negocial dos indivíduos.
Por meio do Princípio da Razoabilidade, tem-se, portanto, um critério para
avaliar uma lei (e, por extensão, qualquer outro ato do Estado, inclusive
uma decisão do próprio Poder Judiciário):
a) qual o fim que é visado pela lei?
b) esse fim é legítimo? Ou seja, é conforme ao que dispõe a Constituição?
c) os meios estipulados para atingir esse fim são adequados?

Princípio da proporcionalidade
A doutrina brasileira diverge a respeito de alguns temas a respeito:
a) a proporcionalidade é um princípio ou uma regra?
b) o princípio da razoabilidade e o princípio (ou regra) da proporcionalidade
são a mesma coisa?
c) qual a origem da proporcionalidade?
O posicionamento adotado é o de que:
a) seguindo a teoria de Robert Alexy, a proporcionalidade é uma regra, já
que é aplicada por subsunção, e não por ponderação;
b) a proporcionalidade não se confunde com a razoabilidade; e
c) apesar de alguns autores encontrarem a origem da proporcionalidade na
passagem para o Estado de Direito, foi a partir dos julgamentos do Tribunal
Constitucional Alemão depois da Segunda Guerra Mundial que ela foi
desenvolvida de fato.
A denominação “princípio da proporcionalidade” foi mantida no título do
tópico pelo fato de ser amplamente difundida na doutrina brasileira.
Para Robert Alexy, a diferença entre regras e princípios não é apenas de
grau, mas também de natureza.
Para ele, os princípios são normas que ordenam que algo seja realizado na
maior medida possível dentro das possibilidades jurídicas e fáticas
existentes, constituindo mandamentos de otimização.
Quando os princípios colidem entre si, a decisão é obtida mediante o
sopesamento, isto é, mediante a verificação da dimensão de peso de cada
um dos princípios envolvidos nessa colisão, para que se chegue àquele
que tem maior peso no caso concreto analisado.
A Constituição Federal de 1988 incorporou uma série de princípios,
reconhecidos como verdadeiras normas jurídicas, aplicáveis, portanto, às
situações concretas.
A regra da proporcionalidade é utilizada para resolver esses conflitos. Ela
é, portanto, uma regra de interpretação do direito, para se alcançar uma
decisão judicial. A proporcionalidade é importante para que, em razão de
um ato do Estado, uma eventual restrição a um direito não se mostre
desproporcional. Esse ato do Estado é um ato que procura realizar outro
direito. Daí a colisão entre direitos (normalmente direitos fundamentais):
para se promover um, acaba-se por restringir outro.
Como encontrar a justa proporção nesses casos? Trata-se de encontrar
uma restrição às restrições (a proporcionalidade aplica-se contra atos
estatais): essa a função da regra da proporcionalidade.
A regra da proporcionalidade estabelece que dentre todos os meios
adequados para se alcançar a finalidade estipulada pela lei, deve ser
escolhido o menos restritivo e, verificada a finalidade instituída pela norma,
deve resultar numa relação de proporcionalidade entre os meios e o fim
 A aplicação do Princípio da Proporcionalidade envolve as seguintes
etapas:
1. Adequação: o meio (o exame de DNA de “M”) era o meio adequado para
se promover o direito ao reconhecimento da paternidade?
2. Necessidade: obrigar a realização do exame é necessário para se
promover o direito ao reconhecimento da paternidade? Não existe outro meio
mais adequado (menos lesivo a “M”) para tanto?
3. Proporcionalidade em sentido estrito: sopesamento entre a intensidade
da restrição imposta a “M” (a obrigação de realizar do exame) e a importância
do direito do autor da ação ao reconhecimento da paternidade. Comparar os
danos decorrentes de se adotar a medida (obrigação de realizar os exames)
com os benefícios dela advindos (reconhecimento ou não da paternidade).

Outros princípios
Além dos chamados princípios da razoabilidade e o da proporcionalidade,
existem outros princípios constitucionais ligados à hermenêutica, como:
1. Princípio da supremacia da Constituição. As normas jurídicas
constitucionais são as normas de maior grau hierárquico dentro do sistema
jurídico, de maneira que prevalecem sobre as demais normas (normas
infraconstitucionais). Como se sabe, se alguma lei ou ato administrativo
entrarem em conflito com o disposto na Constituição, a lei ou o ato devem ser
declarados inválidos. Dada essa posição desfrutada pela Constituição, as
demais normas serão interpretadas a partir das disposições constitucionais.
2. Princípio da unidade da Constituição. Se a Constituição é um diploma
com inúmeras normas jurídicas, não se pode conceber que essas normas
sejam contraditórias entre si. Ainda que haja uma série de tensões entre as
normas, é preciso que a interpretação da Constituição harmonize essas
tensões, de maneira que, a partir de um conjunto de princípios basilares,
conceba-se a ordem constitucional como dotada de unidade.
3. Princípio da força normativa da Constituição. Esse princípio
determina que, existindo mais de um sentido atribuído a uma norma
constitucional, isto é, distintas interpretações, deve-se escolher aquele sentido
que resulte em maior grau possível de eficácia ou de aplicabilidade àquela
norma constitucional objeto de interpretação.

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