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Uma Bússola
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Depois, com Parmênides, a investigação do “ser” é feita de forma direta, a partir
de um nome designado especialmente à indicá-lo: a palavra einai. Com isso,
Parmênides opera não apenas uma distinção em relação ao “ser” como aparecimento na
physis, mas, em certo sentido, uma ruptura com esse caminho de investigação. O “ser”
se torna o pensamento que conduz ao conhecimento da verdade. No entanto, nesse
segundo momento, a verdade diz respeito apenas às questões divinas, ou seja, questões
que o pensamento é capaz de formular para si mesmo, independente das percepções
sensíveis. O “ser” e a verdade estão completamente apartados tanto das contradições
próprias às opiniões dos mortais, quanto das considerações acerca do âmbito fisiológico.
Nessa perspectiva, é possível que um nome não signifique nada, que ele seja apenas
glossa, ou seja, um som sem sentido. Para que o nome realmente indique algo, ele
precisa estar fundamentado em um pensamento e em um discurso que se voltem apenas
sobre si. Nesse momento, quando o nome ganha seu sentido em um pensamento
argumentativo, e não mais narrativo, a noção de “ser” amplia sua possibilidade de
significação. Assim, a função existencial, e seu sentido, pode dar lugar a outras funções
sintáticas com diferentes implicações semânticas. Para determinar o significado de
“ser”, Parmênides apresenta, então, sinais, que podem ser compreendidos como
protocategorias da linguagem. A partir deles, podemos julgar e distinguir “ser” e “não-
ser”.
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contradições. Por outro lado, também não podemos seguir um caminho que reduza a
distinção entre “ser” e “não-ser” à indistinção do “nada”, e que permita que a linguagem
diga qualquer coisa como se fosse verdade, pois não admite a existência do falso. É
preciso tornar a linguagem capaz de conhecer a verdade, e também a falsidade, não
apenas de um discurso restrito ao âmbito intelectivo, mas, também, daquilo que dizemos
com base em nossas percepções sensíveis.
Platão não pôde aceitar, como os sofistas, que “ser” e “não-ser” são efeitos da
linguagem, nomes de nomes. Para ele, o horizonte indicado pelo ponteiro da bússola é
verdadeiro. Mas, para que possamos seguir na direção correta, é preciso que o ponteiro,
os nomes articulados em um discurso, estejam bem regulados, ou seja, é preciso que
saibamos nos conduzir na linguagem.
Nosso primeiro capítulo, intitulado “As Raízes do Eleatismo: todas as coisas são
chamadas a partir de um único ser”, tem por objetivo questionar como se dava a
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investigação sobre o “ser” entre os primeiros filósofos da natureza. Nele serão
apresentadas algumas questões comuns à diferentes tradições de pensadores, com o
objetivo de compreender as diferenças e semelhanças de suas abordagens, e de que
maneira elas contribuem para a formação de um lógos katà physin.
Por fim, nosso terceiro capítulo tem por título: “As descobertas platônicas: é
preciso querer tudo ao mesmo tempo, a unidade e também a multiplicidade, o repouso e
também o movimento. Mas é preciso saber articulá-los corretamente”. Esse capítulo
visa apontar para o caminho que Platão desenvolverá após discutir a tese parmenídea e
os problemas que a levaram ter por consequência a sofística.
Ao nos propor percorrer este caminho, sabemos que estaremos lidando com
problemas inesgotáveis, e tão férteis quanto a própria linguagem. Cada um dos
momentos apresentados aqui poderiam ser discutidos à exaustão, e certamente um
trabalho que se detenha mais especificamente em cada um desses passos poderá
alcançar importantes reflexões. No entanto, este trabalho é movido por um objetivo
diferente. Buscamos descobrir o fio condutor capaz de articular as questões referentes
ao “ser” e ao desenvolvimento da linguagem, de forma a reconhecer a amplidão da
questão sem perder os seus contornos. Acreditamos que este fio pode ser encontrado na
investigação do que consiste a chamada Escola Eleática.
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Capítulo I - As raízes do eleatismo: todas as coisas são chamadas a partir de um
único ser.
Sabemos sobre Xenófanes que foi rapsodo, poeta e filósofo e viveu no séc. VI
a.C. Por ser poeta, era seu papel contar as histórias sobre o surgimento do cosmos e
sobre a natureza dos deuses. Ao observar que as novas teorias cosmológicas e as
cosmogonias dos pensadores de Mileto se contrapunham aos ensinamentos da poesia
clássica que recitava, Xenófanes foi levado a questionar a teologia de Homero e
Hesíodo6. A partir daí desenvolveu reflexões críticas sobre a tradição poética que terão
grande importância no contexto do surgimento da tradição filosófica (CORNFORD, F.
1989). Suas considerações buscavam apontar as inconsistências da crença popular, e
1
“Uma gente de Eléia, começando a partir de Xenófanes...” PLATÃO, O Sofista, 242d.
2
“...trazemos um Hóspede, este aqui, natural de Eléia, do círculo de Parmênides e Zenão, um homem
realmente filósofo.” PLATÃO, O Sofista, 216 a.
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Não encontramos uma citação direta ao nome de Melisso feita por Platão. Mas, quando no diálogo O
Sofista, Platão discute os problemas de ‘unidade’ e ‘totalidade’, ele faz uma referência ao poema de
Parmênides, interpretando o ser uno como algo material, corpóreo (PLATÃO, O Sofista, 244e). Essa é
justamente a leitura desenvolvida por Melisso. Néstor Cordero defende essa interpretação em seu artigo
L’invention de l’ecole eleatique – Platon, Sophiste, 242D (CORDERO, N. 1991). Neste artigo, Cordero
assume que, de acordo com os critérios oferecidos por Platão na passagem presente no título de seu
artigo, Melisso seria o único filósofo que, de fato, pode ser considerado eleata. Assim, mesmo que não
tenhamos encontrado seu nome, encontramos sua filosofia citada por Platão. De qualquer forma, Melisso
será citado entre os eleatas tanto por Aristóteles (ARISTÓTELES, Física, I, 1, 184b-16 e Metafísica, A, 5,
986b-20), como no famoso tratado do anônimo, conhecido como pseudo-Aristóteles, sobre Melisso,
Xenófanes e Górgias.
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Além de sempre ser citado junto a Parmênides, tanto no Sofista (ver referência 2) como no próprio
Parmênides (“...vieram para as Grandes Panatenéias Zenão e Parmênides”. PLATÃO, Parmênides,
127b), também é provável que ‘Palamedes de Eléia’ seja um modo usado por Platão para se referir a
Zenão (“E do Palamedes de Eléia, não sabemos ter sido de tão arrebatadora eloquência, que as mesmas
coisas pareciam aos seus ouvintes iguais ou dessemelhantes, unas e múltiplas, em repouso e em
movimento?” PLATÃO, Fedro, 261d).
5
Assim como Melisso, Górgias não é citado nominalmente por Platão como pertencente ao ethos
eleático, mas, como podemos ver na referência que faz ao Palamedes de Eléia (citada imediatamente
acima), Platão encaminha a questão do eleatismo para uma discussão com a retórica e com a sofística. Em
fontes importantes ao estudo do eleatismo, como o tratado De Melisso, Xenófanes e Górgias, ele está
presente. Além disso, no Tratado do Não-Ser de Górgias, que pode ser pensado como um espelho
invertido do poema de Parmênides (CASSIN, B. 1980, págs. 43-44), encontra-se a afirmação de que o
não-ser é. Tal afirmação será tomada, por Platão, como característica ao sofista, e será investigada, pela
personagem “Estrangeiro de Eléia”, no mesmo livro em que Platão discute a tese de Parmênides sobre o
ser, o diálogo O Sofista.
6
“Desde o princípio todos têm aprendido segundo Homero (DK B10) “Homero como Hesíodo atribuíram
aos deuses/ tudo quanto entre os homens é infâmia e vergonha/ roubar, raptar e enganar mutuamente”.
(DK B11).
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também das representações dos deuses baseadas nas particularidades de cada etnia 7 .
Também buscou refletir de maneira construtiva, buscando soluções para as questões que
levantou.
8
“Os mortais acreditam que os deuses são gerados, que como eles se vestem e tem voz e corpo”. (DK B
14).
“Um único deus, entre deuses e homens o maior, em nada semelhante aos mortais, nem no corpo nem no
pensamento”. (DK B23) “Inteiro vê, inteiro pensa, inteiro também escuta” (DK B24) “Mas sem esforço
tudo vibra com o coração do pensamento”. (DK B25) “Sempre no mesmo permanece, não se move, nem
lhe convém sair ali e acolá” (DK B26).
9
“Pois da terra tudo se gera e na terra tudo se encerra”. (DK B27)
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“Terra e água é tudo quanto surge e desabrocha”. (DK B 29), “Pois todos nascemos da terra e da água”
(DK B33). “Xenófanes pensa que está a processar-se uma mistura de terra com o mar, e que, com o
tempo, a terra será dissolvida pela umidade (...). Toda a espécie humana é destruída, sempre que a terra é
arrastada para o fundo do mar e em lodo se converte; então, uma outra geração recomeça, e todos os
mundos tem esse tipo de princípio”. (HIPÓLITO, DK A33).
11
Cfr. KIRK, S.; RAVEN, J. , SCHOFIELD, M., 2008, pág. 178.
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identificar os dois, e se quisermos exigir de Xenófanes uma precisão sistemática que
não condiz com o que os fragmentos que chegaram até nós atestam sobre seu
pensamento.
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unidade, inteireza e perfeição, mostra como os homens podem se enganar com suas
experiências sensíveis e com sua atividade de nomear, e ainda apresenta uma
cosmologia, que adota como princípios o fogo e a noite, a luz e a obscuridade, dizendo
que tal cosmologia pode ser tomada como um parecer de perspectiva superior entre os
mortais. O poema de Parmênides dá abertura a diversas interpretações. Fornece uma
metodologia (caminhos) para o estudo do conhecimento, apresenta o conceito de ser
como fundamental, trabalha os princípios da linguagem, e ainda questões cosmológicas.
É preciso notar que investigar o ser não como um deus ou como um caminho
para o conhecimento, mas como algo, revela a necessidade de integrar conhecimento e
realidade. Melisso parece querer pensar ser, unidade e totalidade como uma mesma
coisa. Não com o objetivo de tomar esta “coisa” como um princípio a partir do qual o
cosmos se desenvolve, como faziam os physikói, nem como uma alteridade inacessível
em vista da qual é possível reconhecer as próprias limitações, como no caso do deus de
Xenófanes, nem tampouco como fundamento para o pensamento, como o caminho
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parmenídeo para a verdade. Melisso considera o próprio cosmos como um ser único,
que é todo e que é tudo, e o toma como algo sobre o qual se pode pensar e conhecer.
12
“Parmênides já era bem idoso, de cabelos bastante grisalhos, mas de nobre e bela aparência, de idade
por volta dos sessenta e cinco anos. Zenão, por sua vez, estava então perto dos seus quarenta anos, <era>
de belo porte e de aspecto agradável, e dizia-se que tinha sido o favorito de Parmênides”. (PLATÃO,
Parmênides, 127b).
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O pensamento matemático que se aplica a questões como essa, que tratam de movimento, será
posteriormente considerado como próprio ao âmbito de estudo da física, e não da matemática pura. O que
Zenão ilustra com esses argumentos, muito antes da separação entre matemática e física como diferentes
disciplinas de estudo, é que a matemática pura e a lógica dizem respeito a um âmbito de pensamento
distinto do que o que considera a physis, e que tais caminhos de pensamento são contraditórios.
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contradição com a realidade, como também é capaz de entrar em contradição com o
próprio pensamento, quando encontra outro argumento a ele oposto. Essas contradições
põem em questão o problema da antilogia.
Sobre Górgias, sabemos que foi um sofista muito importante, e que foi
considerado por Platão um dos principais retóricos. Por ter sido um sofista, podemos
concebê-lo como alguém que prezava pela linguagem falada e pela persuasão através de
discursos. Por ter sido um retórico, podemos concebê-lo como alguém que liberaria a
linguagem da necessidade de dizer o ser, ou ainda, de significar o real. O discurso
valeria apenas no seu próprio contexto. Não haveria verdades essenciais com as quais se
comprometer. Górgias ficou conhecido por ter escrito um tratado conservado com o
título “Sobre o Não-Ser” ou “Sobre a natureza” (Peri Physeos), que, espelhado no
poema de Parmênides, nega a tese parmenídea de que Ser, Pensar e Dizer sejam o
mesmo. Ao contrário, Górgias diz que “Nada é”. “Se é, é incognoscível.” “Se é, e se é
cognoscível, não pode ser mostrado aos outros.”14 Em outras palavras, se algo é, não
pode ser pensado nem mesmo percebido enquanto tal, e, ainda que pudesse ser
conhecido, não pode ser comunicado. Isso pode significar que Górgias libera a
linguagem para dizer tudo àquilo que é, mas não aos moldes do ser como tal, que, como
o deus de Xenófanes, é incognoscível e incomunicável ao certo. Ou, nos termos de
Platão, pode significar que Górgias fala do que não sabe, e, de maneira
descomprometida com o que é, acaba por falar do que não é como se fosse. Falar do
não-ser ganhou, com Platão, o sentido de dizer o falso, como veremos no terceiro
14
GÓRGIAS, Tratado do Não-Ser in. SEXTO EMPÍRICO, Adversus Matemáticos, VII, 65-87 e também
in. PSEUDO-ARISTÓTELES, De Melisso, Xenófanes e Górgias, 979a12-980 b22.
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capítulo. Com isso o discurso sofístico foi considerado um discurso capaz de iludir e
enganar.
Após essa breve apresentação dos cinco filósofos considerados eleatas, nos cabe
perguntar: o que há de comum entre eles? O que significa o eleatismo?
Como dissemos no princípio, o responsável por essa reunião foi Platão. Platão se
referiu a cada um desses filósofos, ou às suas ideias, como eleatas, em contextos e obras
15
É possível reconhecer, em um momento mais avançado no tempo, na escola de Isócrates, na academia
platônica, no Liceu aristotélico, e mesmo posteriormente, como no jardim epicurista, estruturas escolares,
conforme a noção moderna de escola, onde um mestre transmite oralmente seus conhecimentos aos seus
alunos, ou discípulos. Isso também se encontra em organizações anteriores, como, por exemplo, no
pitagorismo, ainda que este último também possa ser compreendido como uma “seita” religiosa, ou
mesmo como uma organização política. No entanto, nos referirmos a Tales, Anaximandro e Anaxímenes
como Escola Jônica ou Escola de Mileto já pode ser considerado projeção nossa, inspirados que somos na
historiografia aristotélica, que analisa a história da filosofia por grupos, e no próprio modelo da instituição
escolar que surgiu na Grécia, algumas gerações depois desses primeiros filósofos. No caso da Escola
Eleática, também não podemos imaginar que tratava-se de uma escola convencional. Provavelmente os
filósofos reconhecidos como seus membros não reconheciam-se a si mesmos como pertencentes a uma
mesma escola, ainda que possam realmente ter influenciado uns aos outros. É preciso, portanto, sempre
estarmos atentos para, a cada vez que dissermos “escola jônica” ou “escola eleática” pensarmos em uma
reunião de teorias semelhantes ou pertencentes a um mesmo contexto histórico, e não necessariamente em
uma escola conforme a compreensão atual da palavra.
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Alguns dos membros da escola eleática podem sequer ter se conhecido. Eles foram reunidos por Platão
a partir da palavra éthos, muito próxima, segundo Néstor Cordero, da noção de génos (CORDERO, N.
1991). Isso nos leva a considerar provável que o que hoje nós chamamos de escolas, para nos referir aos
primeiros filósofos, tenha sido pensado pelos antigos simplesmente em termos de família, ou linhagem,
como um grupo, mais ou menos organizado, de pensadores que tivessem algo em comum quanto ao modo
de buscar compreender o mundo. Acontece que quando não são os próprios membros de uma escola que
se reconhecem como tal e estabelecem o que tem de comum entre si, é possível que isso acabe sendo feito
tardiamente por algum filósofo, que estabelece de fora daquele grupo e de dentro de sua própria filosofia,
o que é este algo em comum. No caso da Escola Eleática, quem faz isso é Platão, conforme veremos.
20
diversas. Mas há apenas um lugar em que ele faz uma referência direta ao sentido dessa
expressão, seu diálogo O Sofista. Nele encontramos a seguinte descrição:
Com isso temos que, para Platão, esses filósofos têm em comum uma certa
articulação entre os conceitos de ser, unidade e totalidade. Contudo, conforme nos
aproximamos da filosofia de cada um deles, encontramos diferenças enormes no modo
como esses conceitos são articulados. Ao que nos parece, ainda que esses conceitos
sejam importantes para os eleatas, a associação das filosofias de cada um deles
apresenta o desenvolvimento de uma outra questão. Tal questão tem como fundamento
necessário a relação entre ser, unidade e totalidade, mas não se restringe a ela. Para nós,
os problemas que se desenvolvem no eleatismo dizem respeito principalmente à relação
entre ser, conhecimento e linguagem. Julgamos que a primeira leitura, mesmo que
bastante resumida e simplificada, que oferecemos como apresentação dos cinco
filósofos eleatas já é capaz de mostrar que as dificuldades de pensar, conhecer e dizer a
realidade ganhavam grande importância e atenção em seus pensamentos.
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podemos perceber é que o pensamento de Parmênides aparece como central no que diz
respeito ao eleatismo. Além disso, se por um lado temos que o eleatismo desenvolve a
questão do ser, ainda é preciso que saibamos de que modo. Vimos que, de acordo com
Platão, o eleatismo investiga o ser partindo de sua relação com a unidade e a totalidade.
Contudo, conforme nos apareceu em um primeiro contato com o que diz cada um dos
filósofos chamados eleatas, eles investigam o ser privilegiando os problemas do
conhecimento e da linguagem. É preciso, então, nos indagarmos sobre a relação entre
esses dois modos de investigar o ser.
É importante notar, na frase platônica, que não apenas ela nos indica a suposta
teoria com a qual os eleatas concordavam, mas diz também de quando eles vieram. Eles
vieram de ainda antes de Xenófanes. O que, de acordo com a perspectiva platônica do
ethos eleático, significa que conceber todas as coisas como um único ser é coisa muito
antiga, bem como são muito antigas as raízes do eleatismo.
22
I.II - A escola jônica:
A tradução de physis por natureza nos leva a perder muito do que a antiga
palavra grega expressa.
“A palavra ‘physis’ indica aquilo que por si brota, se abre, emerge (...); o que
é reconhecido pelos nomes de pensamento espírito, inteligência, lógos, e
mesmo deus pertence a ‘physis’; a ‘physis’ compreende a totalidade de tudo o
que é (...) a ela pertencem o céu, a terra, a pedra, a planta, o animal e o
homem, o acontecer humano como obra do homem e dos deuses, e,
20
“Tales, iniciador desse tipo de filosofia, diz que o princípio é a água”. ARISTÓTELES, Metafísica, A,
3, 283b 20.
21
“Dentre os que afirmam que há um só princípio, móvel e ilimitado, Anaximandro, filho de Praxíades,
de Mileto, sucessor e discípulo de Tales, disse que o ápeiron (ilimitado) era o princípio e o elemento das
coisas existentes. (...) Contrários são quente e frio, seco e úmido e outros. Segundo uns, da unidade que os
contém, procedem por divisão, os contrários, como diz Anaximandro”. (DK 12 A9).
22
“Anaxímenes e Diógenes, ao contrário, mais do que a água, consideraram como originário o ar e, entre
os corpos simples, o consideraram como princípio por excelência”. ARISTÓTELES, Metafísica, A, 3,
984 a 5-6.
23
sobretudo, pertencem à ‘physis’ os próprios deuses” (BORNHEIM, G. 1967,
págs. 12-13).
Tudo o que é, é physis. Não há nada que seja que não apareça como physis, na
physis e a partir da physis. Do mesmo modo, tudo o que é, é ser. Porém, antes da
formalização conceitual do ser - tomando einai como a palavra-chave, como o conceito
a se investigar - os gregos compreendiam ser a partir da noção de physis.
Além disso, a tradução latina de physis por natureza também contribui para
associarmos o pensamento sobre a physis às investigações da matéria.
“Se, porém, não se entende physis, como às mais das vezes acontece, no
sentido originário de vigor dominante, que brota e permanece, mas na
significação posterior e hodierna, a saber, como natureza, e se além disso se
consideram, como a manifestação fundamental da natureza, os fenômenos do
movimento das coisas materiais, átomos e electrões, ou seja, o que a física
moderna investiga como physis, então o princípio da filosofia grega se
converterá numa filosofia da natureza, numa representação de todas as coisas,
segundo a qual elas são de natureza propriamente material”. (HEIDEGGER,
M. 1978, pág. 45).
24
restringida ao pensamento da matéria, admitimos os physikói como investigadores ou
pensadores do ser.
Quando nos fala sobre a teoria das quatro causas, Aristóteles reconhece
prontamente entre os physikói a causa material. Porém, quando se refere a Parmênides,
diz que o eleata compreendeu o uno segundo o lógos (katà tòn lógon) e o múltiplo
segundo os sentidos (ARISTÓTELES, Metafísica, A, 5, 986 b 31). Em vista disso, é
preciso investigar, além da noção de matéria, associada à multiplicidade e à percepção
sensível, qual o caminho trilhado entre os precursores para levar à uma investigação
propriamente linguística.
Quando, um pouco a frente, Aristóteles busca aplicar sua teoria das quatro
causas ao pensamento pitagórico, do mesmo modo como fez com Parmênides, ele não
inicia sua exposição indicando se os pitagóricos pensaram segundo a matéria, a forma, a
causa final ou eficiente, mas afirma que eles começaram a falar das essências e a dar
definições (ARISTÓTELES, Metafísica, A, 5, 987a 20). Dar a definição de algo é
compreender este algo segundo o lógos. Contudo, ao que nos parece a noção de
definição entre os pitagóricos muito se aproxima das suas investigações geométricas, e
portanto, de um encaminhamento para a noção de forma. Assim, nos parece ser preciso
investigar a noção de forma entre os pitagóricos para que possamos dar continuidade à
nossa pesquisa sobre o eleatismo e sua investigação da linguagem.
25
I.III - A escola pitagórica:
23
De acordo com Diógenes Laêrtios, acreditava-se que Pitágoras havia sido uma reencarnação de Etálides
e Hermótimo (DIÓGENES LAÊRTIOS, Vidas e doutrinas dos filósofos ilustres, VIII, 4-5). Guthrie nos
explica que ambas são figuras de quem diziam respectivamente possuir o dom, dado por Hermes, de que
sua psykhe pudesse viajar tanto pelo Hades como sobre a terra, e o outro de ter se habituado a deixar o
corpo encostado enquanto a alma vagava em busca de conhecimento (GUTHRIE, 1986, págs. 25-26).
Diógenes também nos conta que “Pitagóras tinha um porte tão majestoso que seus discípulos pensavam
que ele era Apolo vindo da terra dos hiperbóreos. Conta-se ainda que certa vez, estando ele nu, foi vista a
sua coxa de ouro...” (DIÓGENES LAÊRTIOS, Vidas e doutrinas dos filósofos ilustres, VIII, 11).
24
ARISTÓTELES, Metafísica, A, 5, 986a 15-18.
26
articulação de unidades geométricas. Vejamos algumas semelhanças e diferenças entre
eles.
25
“Segundo Anaximandro (DK 12 A10) o cosmos tal como o conhecemos surgiu de um princípio eterno,
e eternamente em movimento, quantitativa e qualitativamente indefinito, o “ilimitado” (ápeiron), por
meio de um processo de estágios sucessivos. No primeiro estágio, um germe (gónimon) se separa do
ilimitado. Diz-se “produzir o quente e o frio” presumivelmente porque, em certo sentido, esses opostos já
estão contidos nele. No segundo estágio, o quente (aparentemente a chama quente) e o frio
(aparentemente algum tipo de umidade ou névoa) são realmente separados e a chama cresce até atingir as
dimensões de um córtex ígneo em volta do núcleo úmido, parte do qual se seca e se torna terra. No
terceiro estágio, a tensão entre os “elementos” opostos se torna tão forte que toda a estrutura explode”. O
córtex ígneo se arrebenta e suas partes são arremessadas para fora e formam anéis ígneos a várias
distancias do centro, que ainda consiste de terra e névoa (a partir daqui seguimos DK 12 A11). Algo da
névoa é arremessado junto e envolve os círculos ígneos celestes, deixando abertos apenas alguns furos
através dos quais brilha o fogo. O resultado é a estrutura básica do cosmos familiar: água, terra e ar (três
manifestações do frio) no centro, e “rodas” (Aécio II.20.1) de fogo envoltas em névoa a diferentes
distâncias. O fogo que passa pelos buracos é o que percebemos como corpos celestes. Nos anéis dos
corpos celestes a batalha entre o fogo e a névoa continua a desempenhar seu papel: em alguns momentos
os buracos são total ou parcialmente fechados pela névoa; em outros o fogo “reconquista-os” o que
caracteriza diversos fenômenos astronômicos, como as fases da lua e os eclipses tanto do sol como da lua.
No decurso do processo de ressecamento da terra, seres vivos são gerados espontaneamente da lama ou
do limo...” (ALGRA, K. 2008, pág. 94). Neste artigo Algra busca reconstituir a cosmologia de
Anaximandro a partir principalmente das referências encontradas em pseudo-Plutarco e Hipólito.
26
“Eles concebiam o ilimitado como vazio circundando tudo, e representavam-se o universo como
brotando de uma espécie de “inspiração” desse vazio por parte de um uno (formado não se sabe como).
Esse ilimitado vazio, inspirado no uno, era concebido como causa da distinção das coisas e dos próprios
números (concepção fortemente influenciada pelo pensamento de Anaximandro e de Anaxímenes)”
(REALE, G. 1993, pág. 84). É bem provável que essa teoria também tenha sido inspirada no antigo mito
Órfico. Uma das versões conta que: “no início era um abismo, um “mar sem limites”, um caos sem limite.
Nele veio a ser, pouco a pouco, e por nenhuma razão particular, uma “bolha” que começou a crescer e se
tornou firme. Ela sugou o πνεὺμα ao redor, sua pele se tornou mais dura, e logo flutuou no mar sem
limites uma esfera brilhando: o ovo mundo. Nele se desenvolveu uma criatura viva, como a esfera no
formato, alada, bissexual. Ela quebrou o ovo e “apareceu” em radiante brilho: Phanes! Então, as duas
metades da concha quebrada fitaram-se uma a outra “harmoniosamente”, enquanto Phanes tomou posição
no máximo do limite dos céus, um segredo, luz espiritual, do conteúdo de procriação do ovo surgiram os
reinos do mundo” (BURKET, W. 1972, pág. 39).
27
“o número era representado como um conjunto de pedrinhas, ou desenhado como conjunto de pontos”
(REALE, G. 1993, pág. 84).
27
que dele derive outros princípios mais imediatamente perceptíveis pelos sentidos,
associáveis a elementos visíveis como a chama e a névoa, capazes de promover a
geração dos corpos de modo mais parecido com o que hoje pensamos no âmbito de
estudo da física e da química. No pensamento de Anaximandro, principal filósofo da
escola jônica, os elementos materiais se relacionam a partir do embate de opostos28. Já
os pitagóricos desenvolveram seu pensamento no âmbito da matemática. Para eles, cada
uma das coisas presentes no universo é determinada por operações entre números
materiais. Essas operações geram composições numéricas que podem ser vistas
geometricamente, enquanto realidades espaciais, ou ouvidas, enquanto música.
Com base nessa sequência, podemos dizer que a teoria pitagórica dos números
consiste em uma cosmogonia aritmético-geométrica. Nessa cosmogonia, como nos
esclareceu Aristóteles, os números são formados pela relação entre limite e ilimitado e
todos esses princípios são compreendidos como “algo”, se quisermos evitar o termo
28
Diz-se que Tales partiu da água por observar a oposição entre o seco e o úmido. O úmido estava sempre
presente na vida, nas sementes e nos alimentos, enquanto o que morre se resseca. Cfr. ARISTÓTELES,
Metafísica, A, 3, 983b 20. Mesmo a alteração do ar na teoria da rarefação-condensação se dá pela disputa,
oposição do quente e do úmido sobre o ar; par de opostos que, na filosofia de Anaximandro, é
responsável por geração e movimento.
28
aristotélico “substância”. Assim, todas as coisas que são resultam de composições
numéricas capazes de apresenta-las aos sentidos como algo determinado.
29
Segundo a tabela apresentada por Aristóteles no livro A da Metafísica (ARISTÓTELES, Metafísica,
A, 5, 986a 11-b2), o mesmo acontece com o três e a relação um-múltiplo, com o quatro e o par direito-
esquerdo, com o cinco e o par macho-fêmea, e assim até o dez.
29
Na articulação de contrários, vimos que o par fundamental, que inicia a
formação dos números e de todas as coisas, é o par limite-ilimite. Na geometria limite e
ilimite também são noções fundamentais, porque apenas a partir delas é possível
conceber e visualizar uma forma. A forma é aquilo que o limite contorna, o aspecto que
o contorno oferece a nossa visão. É pela apreensão da forma que, ao notarmos uma
silhueta, podemos distinguir se estamos próximos a um homem, a um animal ou a outra
coisa qualquer. A forma, embora esteja sempre presente e possa ser percebida nos
objetos materiais, também pode ser pensada sem o intermédio deles. Por exemplo, se
nos for pedido para considerarmos uma forma geométrica, como o triângulo ou o
quadrado, é possível pensar apenas na forma, ou seja, no contorno, no desenho das
linhas. Não é necessário imaginar um triângulo de madeira ou de papel. Isso também é
possível ser feito com outras noções, que não pertencem ao pensamento matemático,
mas que também passarão a ser consideradas sem os detalhes e as particularidades de
um objeto material. Assim, a matemática dos pitagóricos contribui para que os
conceitos possam ser trabalhados de maneira um pouco mais “independente”, em uma
busca por estabelecer limites e definições a partir deles mesmos. Mas, isso ainda não
está totalmente desenvolvido em sua filosofia. Esse modo de pensar os conceitos surge
com a noção de idea platônica, que inclusive é trabalhada a partir do mesmo termo
usado para dizer forma, a palavra grega eidos.
Ainda que uma forma geométrica ou uma música sejam perceptíveis aos
sentidos um tanto quanto “concretamente”, elas são concebidas como formadas por
princípios mediados pelo pensamento matemático, que são compreendidos enquanto tal
quando alcançam certa independência em relação a especificidade de seu preenchimento
30
material. Desse modo, ainda que possuam uma certa materialidade, tais princípios são
noções conceituais. Assim, Aristóteles, após analisar a doutrina dos pitagóricos, não
afirma que eles descobriram a causa formal, mas nos leva a pensar que eles
contribuíram para que ela fosse descoberta porque “começaram a falar da essência e a
dar definições” (ARISTÓTELES, Metafísica. A, 5, 987a 20-21).
30
Nesse caso é preciso frisar o privilégio da noção de limite sem jamais esquecer sua co-dependência
com o ilimitado.
31
I.IV - Unidade e Totalidade pensadas a partir do par limite-ilimitado no modo de
compreender o ser como physis.
As coisas que são, e, como tal, aparecem, podem ser melhor compreendidas a
partir da ideia de “brotar”31. Algo, que antes não se podia ver, surge. Então, cresce,
desabrocha, depois se completa, se finda, e acaba por desaparecer. O aparecimento vem
de um ocultamento anterior e para ele tende a voltar. O que aparece, apenas aparece por
manter-se em seus limites, ou seja, por tornar-se consistente em uma forma. Assim, a
deformação, a perda dos limites, leva algo que aparece enquanto tal, no auge da tensão
de manter seus limites, a, em outro momento, aparecer de modo indeterminado e até
mesmo desaparecer. O ser, como physis, é, então, o que aparece e busca manter-se em
seus limites, resguardar seu fim e sua determinação, mas sempre em uma tensão com o
desaparecimento, sempre tendendo ao indeterminado.
31
No livro Introdução à Metafísica, Martin Heidegger apresenta e explora essa interpretação. Na
tradução brasileira de Emmanuel Carneiro Leão, o termo adotado para dizer physis é “vigor”.
(HEIDEGGER, M. 1978).
32
entre limitado e ilimitado, e é a partir do um que tudo se forma 32 . Todas as coisas
aparecem como um todo em si mesmas, que reúne e congrega as próprias partes, como
um certo algo, uma unidade identificável por uma forma, porque todas as coisas que
são, são na tensão de manterem-se em seus limites.
Vimos que uma coisa que se mantém em seus limites apresenta-se em uma
forma, como um todo, uma unidade. A partir disso, podemos compreender que quem
buscava descobrir as relações necessárias entre os fenômenos, mesmo que os
compreendesse como sendo, cada um, uma unidade em si mesmo, encontrava na relação
e na ordenação de tais unidades uma unidade abarcadora. Physis (o ser) se deixa pensar
como unidade e totalidade. Mas, como vimos, a unidade se deixa ver a partir de uma
tensão entre limitado e ilimitado, entre surgir e desaparecer. Nessa tensão, o ser aparece
na estabilidade, no manter-se em si, e, por isso, busca resistir ao movimento, ao
surgimento e a tendência à deformar-se. Contudo, essas tendências são próprias da
physis, e, por isso, são também próprias ao ser. A unidade aparece em coisas que podem
manifestar-se de diversos modos, e aparece também no abarcamento de coisas
múltiplas, de partes. Assim, se dissermos que o pensamento do ser como physis é o
pensamento da unidade e da totalidade, não estamos, dessa maneira, negando o
movimento, a multiplicidade, o vir a ser. Ao contrário, estamos dizendo que todas essas
coisas aparecem, na e como physis, porque, em uma relação de codependência com seus
contrários, na harmonia de uma tensão, cada qual resguarda seus domínios e se
manifesta na sua unidade33.
32
Tanto para Anaximandro como para os pitagóricos a palavra para dizer ilimitado (ou indeterminado, na
tradução mais frequente de Anaximandro) é ápeiron. Os pitagóricos o tematizam sempre em articulação
com péras, a noção de limite.
33
Como vimos em nossa apresentação inicial dos eleatas, Melisso defenderá que o ser é ilimitado,
justamente por compreender o ilimitado como um modo privilegiado de unidade. Para ele, a unidade não
pode ser espacialmente limitada por outra coisa, pois nesse caso haveria um privilégio do múltiplo, e nem
pode gerar-se de outra coisa ou corromper-se. Assim, mesmo o indeterminado, o ilimitado, são modos de
aparecer do um.
33
A unidade nos pensadores antes de Parmênides, e principalmente antes das
leituras platônica e aristotélica de Parmênides, não é uma noção privilegiada, que se
mantém em tudo o que é, independente e a despeito de seus diversos modos de se
manifestar, como se pudesse ser separada das coisas. Não é tampouco algo que, por ser,
em certo sentido, contrário ao movimento e à multiplicidade, concorra com eles, como
se a sua existência impedisse a do que lhe possa ser diverso.
34
I.V - Heráclito: unidade compreendida a partir de um lógos katà phýsin.
Vida e morte, dia e noite, vigília e sono, justiça, lei e guerra são termos sempre
presentes no modo como Heráclito pensou tanto o homem como a physis. Este é seu
tema principal, o homem em relação à physis. Por trabalhá-lo a partir da aproximação de
termos aparentemente opostos, passou a ser considerado um filósofo que defendia uma
obscura harmonia dos contrários36. Heráclito era afeito a paradoxos. Dizia frases como
“Caminho: para cima, para baixo, um e o mesmo” (DK B 60). Por conta desse modo de
se expressar, algumas pessoas acreditavam que ele falava para propositalmente não ser
compreendido. Mas, para Heráclito, as pessoas não conseguiam compreendê-lo nem
antes, nem depois de sua fala, embora ele buscasse dizer as coisas tais quais são, porque
34
“Muito saber não ensina sabedoria, pois teria ensinado a Hesíodo e Pitágoras, a Xenófanes e Hecateu”
(DK B 40). Via de grega usaremos para os fragmentos de Heráclito a tradução de Emmanuel Carneiro
Leão (ANAXIMANDRO, PARMÊNIDES, HERÁCLITO, 2005). Quando adotarmos tradução diferente,
indicaremos em nota.
35
De acordo com Charles Kahn, sobre a filosofia de Heráclito: “as doutrinas do fogo, da ordem cósmica e
das transformações elementais, são, com efeito, mais do que ilustrações; contudo elas só são significativas
na medida em que revelam uma verdade geral sobre a unidade dos opostos, uma verdade cuja aplicação
primária reside, para os seres humanos, numa compreensão mais funda da própria experiência de vida e
morte, sono e vigília, juventude e velhice” (KAHN, C. 2009, pág. 50).
36
“O contrário em tensão é convergente; da divergência dos contrários a mais bela harmonia”
(HERÁCLITO, DK B8).
35
não conseguem compreender ao próprio lógos que é comum a todos os homens e a
todas as coisas37.
Em um de seus jogos de linguagem, Heráclito diz “τῶ τόξω ὂνομα βίος, ἒργον
δὲ θάνατος”. (DK B 48) Α palavra grega βίος significa tanto arco como vida. Assim, o
fragmento pode ser entendido tanto por “a vida tem por obra a morte”, como por “o arco
tem por obra a morte”. A relação do arco com a vida pode ser pensada para além da
simples homologia. O arco, junto a lira, é símbolo de Ártemis, a deusa de Éfeso. Ambos
têm a mesma forma. Se as duas pontas de um arco são tencionadas uma contra a outra
com o auxílio de uma única corda, pode-se através dele lançar uma flecha. Mas se no
arco são distendidas várias cordas, pode-se fazer música. O arco representa a tensão.
Na tensão o arco aparece como arco, mas caso sua flexão se desfaça, ele próprio
desaparece e deixa de ser arco. Do mesmo modo, na vida, os seres aparecem na tensão
de manterem-se nos limites de suas formas, e sempre tendendo à morte. Vida e morte,
surgimento e desaparecimento estão juntos38 na physis. Essa juntura, ou articulação de
elementos é o que diz a palavra harmonia. Assim, Heráclito conclui sobre o julgamento
de seus interlocutores:
37
“Com o Logos, porém, que é sempre, os homens se comportam como quem não compreende tanto
antes como depois de já ter ouvido. Com efeito, tudo vem a ser conforme e de acordo com esse Logos e,
não obstante, eles parecem sem experiência nas experiências com palavras e obras, iguais as que levo a
cabo, discernindo e elucidando, segundo o vigor (κατὰ φύσιν), o modo como se conduz cada coisa. Aos
outros homens, porém, lhes fica encoberto tanto o que fazem acordados, como se lhes volta a encobrir o
que fazem durante o sono”. (HERÁCLITO, DK B1).
38
De acordo com Martin Heideigger, a palavra harmonia pode ser melhor compreendida a partir da
palavra armós que significa juntura, articulação. Cfr. HEIDEGGER, M. 2002, pág. 153.
39
Optamos aqui pela tradução de Charles Kahn, que se encontra em KANH, C. 2009, pág. 300.
36
contemporâneo Martin Heidegger buscou nos esclarecer o significado da palavra lógos,
investigando as origens de seu sentido. Encontrou uma raiz comum na palavra légein,
que, de acordo com ele, preserva seu sentido na palavra lógos. Légein traz as noções de
colher, acolher, estender, recolher, escolher, juntar (HEIDEGGER, M. 2001). É
exatamente isso o que faz uma palavra: associa certas noções, e apresenta sua extensão
e seu limite (recolhimento). Uma palavra apenas significa algo na medida em que
mostra uma unidade proporcionada pela juntura, reunião e acolhida de sentidos que traz
em si. Escolher, estender, recolher, juntar, é o que fazemos quando falamos: buscamos
articular significados a partir de palavras, escolhendo-as e reunindo-as de determinado
modo. Ao ouvir a fala do outro, o processo não é muito diferente, precisamos acolher
esses conjuntos que são as palavras e permitir que elas se articulem em nosso
pensamento.
Vejamos o exemplo dado por Heráclito, e já citado aqui: “Caminho: para cima, para baixo, um e o
40
37
possa ser o mesmo. Porque aprendemos, desde Platão e Aristóteles, a tratar isso como
equivocidade, como falta de precisão, como um modo ingênuo de cair no erro e na falta
de sentido.
Quando Heráclito nos diz que há um saber, parece dizer um saber uno, um único
saber de fato41. Trata-se do saber que é capaz de ouvir o lógos, perceber a harmonia que
reúne forças que tendem a oporem-se, e concordar que uma mesma experiência de
sentido é possível. Assim, o único saber que há é aquele capaz de alcançar o sentido que
está presente em todas as coisas, a experiência de que tudo compartilha: a unidade. Na
physis, ou no entendimento do ser como physis, tudo é um.
41
“Um, o saber: compreender que o pensamento, em qualquer tempo, dirige tudo através de tudo” (DK B
41).
38
Entendemos por physis tudo o que surge e busca manter-se em seus limites, na
tensão da tendência a perdê-los e a desaparecer. Essa tensão, que está em todas as
coisas, nelas mesmas, e nas relações e articulações de umas com as outras, é
compreendida como governada por uma ordem. Essa ordenação é chamada kósmos,
para referir-se à totalidade do conjunto de coisas, e harmonié para referir-se à tensão das
articulações. Já aquilo que impõe ordem e a tudo governa, encontramos no pensamento
de Heráclito com o nome de lógos. O lógos, porém, não é o simples discurso de uma
pessoa qualquer, um dizer particular. Lógos é o que é comum a todas as coisas e ao
único saber que de fato é saber. E o que o lógos diz é a unidade. Unidade é o que já
tínhamos encontrado na physis, nas primeiras tentativas de compreendê-la, quando ela
se nos mostrou a partir das noções de limite e ilimitado, finito e infinito. Isso pode nos
levar a concluir apenas uma coisa: que, para os pensadores originários, o lógos é o dizer
da physis42.
É preciso, no entanto, ressaltar que o lógos katà phýsin do qual nos fala
Heráclito, articula diferenças na mesma unidade não mais ao modo dos pitagóricos, que
o faziam através dos números, da música e das formas geométricas, mas a partir da
homologia das palavras. A unidade que dá sentido a todas as coisas é pensada e
compreendida a partir da ambiguidade, e é justamente essa ambiguidade que dá a força
ao dizer da physis.
Temos então que, no pensamento do ser como physis aos poucos se opera uma
mudança no modo de articular contrários ou diferentes. Essa mudança acontece
acompanhada de uma investigação das noções de unidade e totalidade. Enquanto a
princípio, entre os primeiros physikói, unidades distintas, compreendidas como
elementos materiais ou propriedades dos mesmos, se articulavam por oposição; entre os
pitagóricos unidades opostas eram compreendidas como complementares e, assim, toda
unidade era composta por um par de opostos. A codependência harmônica, ou mesmo
combativa43, de determinada unidade com a sua alteridade, ou simplesmente com o que
lhe é diferente, quando passa a ser pensada não mais através de elementos materiais, ou
através da música e da geometria, mas diretamente através do lógos, inaugura um modo
42
Cfr. Fragmento DK B1 de Heráclito, citado na nota 36, onde Heráclito fala de um λόγος κατὰ φύσιν.
43
Para Heráclito a harmonia não está dissociada da tensão do combate: “De todas as coisas guerra é pai,
de todas as coisas é senhor; a uns mostrou deuses, a outros, homens; de uns fez escravos, de outros,
livres” (DK B 53); “Se há necessidade é a guerra, que reúne, e a justiça, que desune, e tudo, que se fizer
pela desunião, é também necessidade” (DK B 80).
39
de compreender o ser (como physis), através do poder da homologia e da ambiguidade
das palavras. Assim, a filosofia começa a notar a importância do papel do homem na
physis. É o homem que, diante do brotar vigoroso da physis, é capaz de nela colher,
estender, recolher, juntar e acolher a unidade como experiência de sentido.
40
Capítulo II – O Poema de Parmênides.
É provável que Parmênides tenha nascido por volta de 535 e 510 a.C. e morrido
entre 465-440 a.C, na cidade de Eléia. As influências de sua formação são controversas.
Há quem acredite que foi aluno de Xenófanes e há quem afirme, como Diógenes
Laêrtios que “foi por Amínias, não por Xenófanes, que ele foi levado à dedicar-se a vida
contemplativa”. (DIÓGENES LAÊRTIOS, Vidas e doutrinas dos filósofos ilustres, IX,
21). Amínias, ao que sabemos, foi um médico pitagórico. Além disso, é certo que
Parmênides foi influenciado pela poesia de Homero e Hesíodo, e podemos encontrar,
especialmente no prólogo de seu poema, várias referências às figuras divinas e a
algumas das famosas cenas narradas por eles. Além disso, é possível que Parmênides
tenha conhecido as cosmologias milésias de Anaximandro e Anaxímenes, como
indicam algumas de suas expressões44, e também tenha tido contato com a filosofia de
Heráclito45.
44
Essa posição é defendida por Cornford (CORNFORD, F. 1989, pág. 35). Néstor Cordero também nos
leva a pensar o mesmo quando nos conta que a cidade de Eléia foi fundada por uma comunidade de
focences provenientes da região do Parnaso, que a princípio se estabeleceu na Jônia (por volta do séc. XI
ou X a.C). De acordo com Cordero, dizer que Parmênides nasceu e viveu em meio a uma comunidade
focense é o mesmo que dizer que ele nasceu e viveu em uma comunidade jônica. (CORDERO, N. 2011,
pág. 3-5).
45
Nesse caso, sua crítica à ambiguidade dos homens (os mortais de duas cabeças) pode ser uma resposta
ao pensamento heraclítico. Há interpretes que afirmam esta possibilidade, como é o caso de Guthrie
(GUTHRIE, W. 1986, pág. 28) e há os que a negam, como é o caso de Cordero (CORDERO, N. 2011,
pág. 9).
41
provavelmente lhe foram contemporâneos, o contexto em que se encontrava era
marcado pela força do pensamento de cada um desses predecessores. Assim,
buscaremos indicar, nessa sessão, algumas passagens ou alusões, que Parmênides
apresenta em seu poema, nas quais podemos reconhecer o pensamento dos
predecessores. Mas faremos isso apenas de maneira breve, visando contextualizar o
poema e não ignorar os interlocutores que ele nos torna presentes.
No que diz respeito a Homero, sabemos que seus poemas eram de grande
importância na preservação da tradição cultural e na educação dos jovens gregos, que
comumente os recitavam de cor. No caso da influência sobre Parmênides, podemos
observar que o herói do poema parmenídio é descrito da mesma forma que o herói de
Homero em sua Odisséia. Trata-se do homem que sabe, que segue viagem, que encontra
criaturas sobre-humanas e passa por diversos caminhos buscando um apenas, o que o
leve de volta a seu ponto de partida.
46
HAVELOCK, E. 1958, págs. 133-143.
42
Há outra cena, cuja associação entre o poema e a Odisséia, causa forte
impressão:
Hesíodo fala inspirado por musas que, como a deusa de Parmênides, são capazes
tanto de contar a verdade como de dizer o falso, embora a deusa parmenídica fale do
que não-é apenas para instruir o jovem, e nunca para enganá-lo. Parmênides também
pode ter se inspirado em Hesíodo quando, em seu poema, torna presente em vários
momentos a “constelação semântica” de Hélios: desde o início, quando as Helíades
conduzem o jovem para o encontro com a deusa, até a parte final, especialmente quando
trata do cosmos e nos fala dos pares de opostos Dia-Noite, Luz-Obscuridade e Fogo-
Terra. Além disso, assim como faz Hesíodo, Parmênides dá a Díke um papel central em
relação aos caminhos dos homens. (MARQUES, M. 1990, pág. 22).
43
marcada por uma hybris militar, desobediente em relação ao poder justo, enquanto a
segunda era composta por homens justos e corajosos. Por fim, Hesíodo chega à raça de
ferro, quando Díke e hybris se misturam nos homens, fazendo-os ambivalentes
(HESÍODO, Os trabalhos e os dias, 105 - 180).
44
palavra nas assembléias, que antes era dado apenas a nobres e a guerreiros, passa a se
estender aos cidadãos em geral. (MARQUES, M. P, 1990, págs. 32-33).
A palavra poética, que estabelecia os costumes a partir das histórias dos deuses,
que, por sua vez, eram compreendidos como forças e leis da natureza, começa a perder
espaço: para os discursos nas assembléias, onde cada homem que fala busca persuadir
em prol de seu próprio benefício e poder; e para o discurso filosófico nascente, onde os
princípios e leis da natureza passavam a ser investigados não mais como figuras divinas
antropomórficas, mas a partir do pensamento matemático e da observação dos
fenômenos. O início de um afastamento da crença na tradição poética, associado a
disseminação do poder da palavra entre muitos, faz com que os discursos nas
assembléias passem a funcionar como a moeda, que circula e é trocada entre os homens
portando valores relativos. (MARQUES, M. P. 1990, pág. 34)
45
atitude de ascese religiosa muito próxima a que Hesíodo apresenta em Os Trabalhos e
os dias, embora não tomassem mais o trabalho como principal ritual, mas as atividades
contemplativas, como a matemática e a música. Também era importante, para os
pitagóricos, a iniciação nos mistérios do orfísmo, tradição antiga, baseada no mito que
narra a descida de Orfeu ao Hades. A associação à religião órfica reforça o caráter
ascético da doutrina pitagórica.
Heráclito, por sua, vez, valeu-se das tensões presentes no contexto, não para
tentar dissipá-las, mas ao contrário, buscando articular justamente o que tende a se opor.
Assim, trabalhou a relação entre lógos e phýsis a partir das ambiguidades e
equivocidades de sua linguagem poética.
46
ao divino que nos auxilie a encaminhar nosso próprio pensamento para a verdade. Mas
que verdade é essa que só pode ser encontrada para além da physis?
“Por considerar que além do ser não existe o não-ser, necessariamente deve
crer que o ser é um e nada mais. Entretanto, forçado a levar em conta os
fenômenos, e supondo que o um é segundo a razão, enquanto o múltiplo é
segundo os sentidos, também ele afirma duas causas e dois princípios”.
(ARISTÓTELES, Metafísica. A, 986b 25- 987a).
47
SANTORO, F. 2011a, pág. 58.
47
Desse modo, Aristóteles vê em Parmênides a separação entre a ordem do
sensível e a do inteligível. Essa separação implica em uma outra, que se opera somente
no âmbito do pensamento: a que distingue opinião e verdade. Se antes Xenófanes havia
distinguido o pensamento opinativo do pensamento perfeito e verdadeiro, e chamado
este último de divino, Parmênides aplica essa distinção ao pensamento humano,
tornando-o capaz não apenas de opinião, mas também de alcançar a verdade. Se para
Xenófanes a verdade, assim como o deus, era inacessível aos homens, Parmênides, em
seu poema, encontra a deusa e aprende com ela justamente sobre qual caminho os
homens devem tomar, em sua própria forma de pensar, para se conduzirem em direção a
verdade. Tomando o caminho verdadeiro, onde o pensamento humano é de acordo com
o divino, o homem se afasta tanto de uma via enganosa, onde o pensamento erra,
acreditando ser verdadeiro o que na verdade é falso, como de uma via opinativa, onde o
pensamento se confunde e sequer pode decidir sobre o que acreditar.
48
II.II – O Proêmio: da via multifalante dos homens à morada da verdade divina, e,
também, da narrativa ao discurso categorial.
49
viagem iniciática, como a ida de Orfeu ao Hades, tem importância fundamental48. Além
disso, a abundância de pares de opostos – as filhas do sol e seus véus, o movimento das
éguas e do carro contra a fixidez do portal, o Dia e a Noite – remete aos filósofos da
natureza, que possuem duas perspectivas de nomear formas.
Quando o jovem é saudado pela deusa por ter ali chegado, ela usa a palavra
néesthai, uma forma verbal de nostéo que tem parentesco com nóstos, e pode ser
traduzida por ‘volta’, ‘regresso’. Nóstos é uma palavra muito usada na Odisséia, para
referir-se ao desejo e esforço de Odisseu para voltar a casa (HAVELOCK, 1958, págs.
133-143). Do mesmo modo, Parmênides busca um caminho que não o leve a perder-se.
Um caminho onde a sucessão de seus passos não seja indefinida. Mas os caminhos
sobre os quais ele nos fala não são os mesmos de Odisseu. Parmênides fala a partir de
um lugar fora do mundo. Fala de caminhos de pensamento (nóos). E não lhe interessam
quaisquer caminhos, ele busca um caminho de pensamento que seja um caminho de
48
Cfr. KAHN, C. Algumas questões controversas na interpretação de Parmênides in. SANTORO, F.,
CAIRUS,H., RIBEIRO, T. 2009, págs. 83-93.
50
retorno. Trata-se do retorno ao “pensamento puro”, afastado daquilo “com que os
homens geralmente se ocupam: o ‘mundo’ à sua volta”. (COSTA, 2010, pág. 36). Neste
caminho, conforme diz a deusa, deve ser comum o ponto de chegada e o de partida (DK
B5). E que ponto poderia ser esse, se não o próprio ser?
Até aqui Parmênides fala da mesma forma pela qual os poetas gregos, anteriores
a ele, transmitiam seu conhecimento: fazendo uso de imagens e descrições, e também de
personagens sobre-humanas, pois assim são compreendidas as forças ou princípios da
natureza e das relações entre os homens: como realidades divinas. No discurso narrativo
a palavra tem uma ligação tão forte com a realidade que é capaz de tornar presente o
que enuncia.
Na Teogonia de Hesíodo a geração dos deuses e suas ações são como que as
“causas” do mundo. O modelo da sequência de nomes, como em um catálogo, por
exemplo, demonstra a força de presença da palavra. Mas, ao mesmo tempo, é também o
uso dos nomes divinos como princípio ou presença que prepara a linguagem para o uso
dos nomes como conceitos.
51
que pode ser todo mundo fora da relação emissor-receptor – é a mais frequente”
(SANTORO, F. 2001, pág.119).
“O verbo ser, neste passo, tem valor de existência e presença. Articulado com
o advérbio de lugar ἐνθα (ai, lá), o verbo ser marca que em tal lugar são
situadas, estão presentes e permanecem firmes, as portas dos cursos da Noite
e do Dia. É um verbo intransitivo de estado (em que é dito não um modo de
estar, mas o lugar onde está). Este sentido primeiro do verbo ser, sentido de
existência e presença aparece em várias línguas ocidentais associado a um
advérbio de lugar: esser-ci, da-sein, y-être (donde: y avoir). É como se
‘existir’ fosse originalmente percebido como ter lugar no mundo”.
(SANTORO, 2001, pág.117).
49
“Mas é preciso que de tudo te instruas: tanto do intrépido coração da Verdade persuasiva quanto das
opiniões de mortais em que não há fé verdadeira. Contudo, também isto aprenderás: como as aparências
precisavam patentemente ser, por tudo como tudo quanto é”. (DK B 1 v.28-32). Adotamos a tradução de
Fernando Santoro (SANTORO, F. 2011a).
50
“Conhecerás a natureza do Éter e também todos os sinais que há no Éter e as obras invisíveis da flama
pura do Sol resplendente, e de onde surgiram. Sondarás as obras vagantes da Lua ciclópica e sua natureza,
conhecerás também o Céu que tudo abarca, de onde este brotou, e como Necessidade o levou no cabresto
a manter os limites dos astros”. (DK B 10).
52
transformação. Enquanto a narrativa tende a ser mimética, o discurso
pretende ser efetivo. A narrativa presta-se tradicionalmente a reportagem, ao
conhecimento, à verdade que mostra o mundo, a natureza, os deuses. O
discurso, por sua vez, presta-se primordialmente à política e ao
relacionamento prático entre os homens”. (SANTORO, 2001, pág. 118).
53
algo aconteceu” (PLATÃO, O Sofista, 262d). Assim, podemos notar que a distinção de
substantivo e verbo, bem como de todas as demais categorias da predicação, se elaborou
em conexão com a concepção e interpretação do “ser” (HEIDEGGER, 1978, pág. 85).
Como vimos, a princípio o uso semântico mais frequente da noção de “ser” pode
ser identificado a partir das funções existencial e locativa. “Ser” significa antes de tudo,
“existir”, “ter lugar no mundo”. Quando o discurso se torna objeto de observação,
consequentemente passa a ser possível reconhecer a variação sintática que “ser” pode
alcançar na linguagem. Por um lado, isso permite que, pensado sintaticamente, ou seja,
a partir do modo que se articula, e da posição que assume em uma dada proposição,
“ser” ganhe determinações. Por outro lado, enquanto noção semântica, o significado de
“ser” vai se tornando tão amplo que chega a parecer impossível determiná-lo. A função
sintática, estrutural e fundamental, de “ser” e a dificuldade de limitar e determinar o seu
aspecto semântico tornam-se ambas evidentes quando precisamos repetir o ser na
tentativa de defini-lo, ao dizermos: “o ser é ...”.
Sabemos que a distinção mais antiga e fundamental das palavras foi feita por
Platão entre nome e ação, ou substantivo e verbo (como dizemos contemporaneamente).
Usamos também, muitas vezes, o verbo em sua forma substantivada, por exemplo ao
dizer “o ser”. Quando nos propomos a investigar a noção de “ser”, ou, “o ser”, estamos
tratando de um verbo no infinitivo ou de um substantivo criado a partir da forma
infinitiva.
54
num tal estado é o que os gregos entendem por Ser”. (HEIDEGGER, 1978,
pág. 86-87).
55
A deusa conta justamente que o caminho da phýsis não é o único caminho para
investigar. Há duas vias de questionamento que são a pensar (DK B 2 v.2). Neste
momento mesmo, o verbo ser (são a pensar) pode ser compreendido com um sentido
diferente do existencial e do locativo.
“Os caminhos não estão disponíveis para pensar, mas ‘devem’ ser pensados!
O verbo ειμι ‘ser’ já está muito mais próximo dos verbos semi-auxiliares
modais que acompanham e modificam o valor do verbo principal posto no
infinitivo. O verbo ειμι ‘ser’ está atuando com a mesma função sintática do
verbo modificador χρέω (precisar), o qual, na presente passagem, aparece três
vezes nessa posição e função (vs. I, 28, 32 e II,5). Assim como o próprio
discurso, o verbo ειμι ‘ser’ torna-se mais atuante e efetivo nesta posição de
semi-auxiliar que modifica o verbo principal. O seu significado próprio se
enfraquece para tornar-se a palavra que desencadeia o efeito verbal da
exortação. Há um deslocamento do peso semântico para o sintático...”
(SANTORO, 2001, pág. 121-122).
Outros usos do verbo “ser” surgirão ao longo da fala da deusa – “nos modos
indicativo, infinitivo, particípio; nas classes de verbo principal, verbo auxiliar,
substantivo, adjetivo; nos tempos pretérito, presente e futuro” –. (SANTORO, 2001,
120). A necessidade de compreender de forma determinada o que em cada momento ele
indica, levará o pensamento filosófico, ao longo de sua história, à muito empenhar-se na
árdua tarefa de desenvolver e aprimorar categorias. Contudo, ainda que a análise
sintática revele um escopo determinado para a interpretação da significação de “ser”,
quando buscou-se investigar seu sentido fundamental isoladamente, “ser” passou a ser
considerado o conceito mais universal e mais vazio.
56
justamente a partir dessa necessidade de indicar o que aparece, mesmo que por vezes
isso se faça negativamente, por contraposição ao pensamento da physis. Por conta dessa
relação inevitável entre linguagem e physis, também estamos autorizados a entender o
“ser” como uma noção ontológica. Ou seja, o “ser” é um conceito metafísico, e
literalmente isso quer dizer que ele vai além da physis, tem uma natureza distinta da
natureza das coisas que aparecem e desaparecem. Mas esse ultrapassamento não implica
necessariamente que “ser” não possa, ao mesmo tempo, fundamentar o pensamento, a
linguagem e também o aparecimento de tudo o mais que possa se dar a perceber como
algo que é na physis.
57
ele deixa claro quem instrui e quem aprende, quem manda e quem obedece. A partir
daqui a noção de “ser” começa a ganhar outros significados conforme a posição que
ocupa na estrutura discursiva, e o caminho para o conhecimento não é mais apenas um.
No discurso, a multiplicidade de caminhos exige que se saiba julgar, e para que
possamos julgar é preciso conhecer as regras e os sinais de indicação do caminho
verdadeiro.
Sobre o caminho verdadeiro, o que sabemos, por hora, é que ele se distingue da
via multifalante na qual os homens erram sem rumo certo. Tal via multifalante e sem
rumo está de acordo com a pluralidade das aparências das coisas, considerada através de
um modo de pensamento embasado na physis. A verdade, revelada pela deusa em sua
morada fora do mundo, não diz respeito a coisas. Diz respeito a algo determinado, uno,
sem inclinações, a algo que nunca se perde de si mesmo.
Para que possamos descobrir como pensar sobre algo distinto do que nos
aparece, como distinguir os múltiplos caminhos, como decidir sobre qual deles tomar e
porquê, será preciso seguir ouvindo o discurso da deusa.
58
II.III – A encruzilhada: os diferentes caminhos do pensamento.
Há, no entanto, outra versão para este mesmo fragmento. A diferença consiste no
seguinte: onde a deusa diz que a trilha do não-ser é inviável, impensável ou inexplorável
a palavra grega correspondente é panapeuthéa. Mas, há outra versão onde se encontra a
palavra panapeithéa, que não significa “inviável”, e sim “de todo não convincente”. De
acordo com essa segunda possibilidade, a deusa apresenta dois caminhos viáveis, porém
um é persuasivo e o outro não é. O caminho não convincente, não sendo intrilhável, não
diz respeito a um ente ou a entes não realizáveis ou não indicáveis, mas apenas
incognoscíveis. Assim, o problema de andar por esta via não consiste na
impossibilidade de tal tarefa, mas no fato de que isso implicaria não alcançar o
conhecimento verdadeiro. (COSTA, A. 2010, págs. 46-50). Desse modo, a via do não
ser poderia ser dita da seguinte maneira: é uma trilha para o incognoscível, pois nem
conhecerias o não-ente nem o declararias.
Na frase “é, e como tal não é para não ser” (ἡ μὲν ὃπως ἒστιν τε καὶ ὡς οὐχ ἐστιν
μὴ εἰναι) (B2, 3), o artigo feminino “ἡ” provavelmente se refere a “ὁδοὶ”, caminho.
Como os caminhos de Parmênides são caminhos de conhecimento, é possível considerar
que “ser” diz respeito tanto ao caminho do conhecimento verdadeiro, como ao que nele
se conhece. Do mesmo modo, “não-ser” pode dizer respeito tanto ao caminho onde o
conhecimento não alcança a verdade, como aos objetos incognoscíveis que ele pode
apresentar. Mas esta interpretação está longe de ser unânime. Um dos tradutores chegou
a considerar que havia uma lacuna na frase, e inseriu a expressão “aquilo que é” para
ocupar a posição de sujeito, sugerindo que a frase fosse lida como “aquilo que é, é, e é
59
impossível que não seja”51. De acordo com a opção interpretativa, pode-se considerar
que o sujeito do caminho da verdade é “tudo aquilo que se pode pensar que é” 52 ;
“qualquer objeto53; “o universo ou o mundo54; e até mesmo “o que chamamos corpo”55.
Há quem defenda que não há sujeito algum, e, para justificar essa afirmação, diz que
“ser” é um verbo impessoal, como “chove”56. Também é possível interpretar que, nesse
primeiro momento, o ser se mostra apenas como uma evidência: é, existe. E é
justamente nessa evidência que se pode encontrar o sujeito57.
Para nós parece claro que a deusa se refere às vias de questionamento que
podem ser pensadas. Mas, o que significa distingui-las usando os termos “ser” e “não-
ser”?
51
Este é o caso de Cornford, que se apoia no fragmento DK B6, no qual Parmênides diz “ἐὸν ἒμμεναι”,
para sugerir que no lugar da ausência de sujeito Parmênides teria escrito ἡ μὲν ὃπως ἐὸν ἒστι χαὶ ὡς”.
Cornford traduz o frag. DK B2 da seguinte maneira: “Ven ahora y te diré – atiende y pon mis palabras en
tu corazón – las únicas vías de investigación que pueden ser pensadas: uma, que <Aquello que es> es, y
es imposible que no sea, es la Vía de la Persuasión, pues la persuasión sirve a la Verdad”. CORNFORD,
1989, pág.74.
52
Essa é a posição de Owen, de acordo com Cordero (CORDERO, N. 2005, pág.65) e Guthrie, W.
(GUTHRIE,W. 1986, pág 29).
53
Essa é a posição de Gomez-Lobo, também de acordo com Cordeiro (CORDERO, N. 2005, pág. 66).
54
De acordo com Cordeiro, L. Woodbury sustentou que o sujeito é o mundo e Verdenius que é o universo
(CORDERO, N. 2005, pág. 65-66).
55
De acordo com Guthrie, Burnet defendeu que o sujeito ao qual o verbo “ser” se refere é “um plenum
corpóreo, esférico e imóvel”. (GUTHRIE, W. 1986, pág. 39) e com Cordero, que diz que para Burnet “o
sujeito é o que chamamos corpo” (CORDERO, N. 2005, pág. 65).
56
Essa é a posição de H.Frankel, conforme atestam Guthrie e Cordeiro (GUTHRIE, W. 1986, pág. 29) e
(CORDERO, N. 2005, pág.68).
57
Esta é a posição defendida por Néstor Cordero. De acordo com Cordero, “O ponto de Partida de
Parmênides é o desnudo éstin porque o filósofo quer privilegiar uma certeza inegável (...): agora, no
presente, nesse instante mesmo, ‘se é’”. (CORDERO, N. op. cit. pág. 69).
60
das categorias ao longo da história da filosofia, os caminhos ou métodos interpretativos
para se alcançar o verdadeiro conhecimento podem ser muito diferentes. Também a
interpretação semântica de determinada variação sintática do verbo “ser” pode variar
bastante.
61
o caminho do não-ser fosse também um caminho impossível de existir, por que
distingui-lo do ser?
Como vimos na sessão anterior, a deusa, nesse primeiro momento, não nos fala
sobre o mundo ou sobre as coisas do mundo. É preciso distinguir o modo de existir das
coisas que aparecem do modo de pensar conforme as aparências. Bem como, é preciso
distinguir de ambos esses primeiros, o modo de existir que não diz respeito as coisas
nem ao pensamento que parte do aparecimento e desaparecimento delas. Para que
possamos discernir e decidir pela via do ser, que existe de modo diferente do que
aparece e do pensamento embasado em aparências, é preciso termos claro o modo de ser
das coisas que aparecem e o pensamento que delas parte.
Ser ao modo das coisas é ser tendendo a não-ser, é ser como physis. Se o que é
não pode não ser, as coisas de certo modo não-são. Mais adiante teremos que refletir
sobre a realidade das coisas, e se é possível que elas sejam e não sejam ao mesmo
tempo. Consideremos agora somente os dois caminhos sobre os quais a deusa nos fala,
que não dizem respeito as coisas, mas antes ao pensamento.
Mas por que é necessário que um caminho possível a se pensar e trilhar não
deva ser realizado? Ora, se a deusa instrui para que sejamos capazes de seguir pela
62
verdade, este caminho não deve ser tomado, porque dela nos desvia. Parmênides não
quer sofrer, como Odisseu, os desvios que o impediam de retornar à casa. Ele quer
conhecer a rota que o torne capaz de voltar ao ponto de partida de seu pensamento. Quer
tomá-la como norma, regra, regulamento e cumpri-la com justiça, julgando, discernindo
e decidindo conforme a nela manter-se. O caminho do não-ser é contrário a isso tudo.
Logo, trata-se de um desvio, onde a verdade está ausente ou oculta e a rota é incerta,
sem retorno, infinita, indeterminada, não conduz ao conhecimento e a sabedoria, pois os
critérios que adota não tornam possível julgar, discernir e decidir com verdade e, por
isso enganam, ao contrário de nos fornecerem alguma autonomia. Sem autonomia de
decisão estamos sempre a deriva, a mercê dos ventos, ou seja, dos deuses ou princípios
da physis.
Há, portanto, dois caminhos que são a pensar: o caminho do ser, não mais
compreendido enquanto physis, mas enquanto einai; e o caminho da physis, não mais
compreendido enquanto ser, mas enquanto não-ser. Nenhum dos dois dizem respeito as
coisas, mas a modos de pensar. Nesse momento ainda não cabe questionar acerca da
realidade do que aparece, mas do modo de pensar que adota como princípios o
aparecimento e desaparecimento, o movimento, a mudança, a incompletude... Ou seja,
trata-se de negar o método de pensamento desenvolvido pelos physikói.
63
chegada, o próprio pensamento. A mudança no método de buscar compreender o ser
deve levar-nos a investigar o que ela pode implicar.
64
deusa nos diz, em tom de justificativa, logo após indicar os dois caminhos que devem
ser pensados e dizer que o primeiro deve ser seguido: “pois o mesmo é pensar e ser”58.
(DK B3).
Dizer que ser é pensar não consiste em afirmar que ser significa pensar. Não é
esse o caso. Trata-se apenas de identificar a ambiência na qual ser é. Ser, enquanto tal,
só se encontra no pensamento. Ser é pensamento e deve ser pensado. Com isso,
Parmênides inaugura um novo âmbito a se investigar, distinto do fisiológico: o âmbito
intelectivo.
“A lógica dos lógoi, tal como essa última e redundante expressão prenuncia,
inaugura a tó autó logiké, a tautologia, uma lógica da identidade: ‘o ser é, o
não ser, não é’(...) A=A, B=B, C=C etc.”. (COSTA, 2010, pág. 60)
58
Esta passagem é assim traduzida por Sérgio Wrublewski e Trindade dos Santos, e está conforme a
versão de Diels. A tradução de Fernando Santoro, que utilizamos na maior parte de nosso texto, diz o
seguinte: “pois o mesmo é (a) pensar e também ser”. Esta tradução “visa deixar em aberto as
possibilidades sintáticas” (SANTORO, 2011a, pág. 89 nota 27). Há aqui muitas dessas possibilidades. Os
verbos einai e noein (ser e pensar) podem ser compreendidos como estando em função nominal e caso
nominativo, e poderiam assumir função de sujeito: neste caso pode-se dizer que ser e pensar são o
mesmo, ou o mesmo é ser e pensar. (optamos por uma tradução que segue esta via, pois nossa
interpretação lhe é conforme). Os mesmos verbos, ainda na função nominal, também podem ser tomados
no caso dativo (como pensa Zeller), o que leva a interpretação de que ser é igual ao objeto do
pensamento. Há também a possibilidade de que estin esteja na função de verbo semi-auxiliar modificador,
comum nos casos de exortação. Assim, “o mesmo é a pensar e também é a ser” pode ser interpretado
como uma exortação para que as atividades de ser e pensar se integrem em uma única via. Ou ainda como
uma exortação a pensar a verdade, no caso de “o mesmo é a pensar e em vista de que há pensamento”
(SANTORO, 2001, pág. 129).
65
Não há espaço para a ambiguidade, para a equivocidade e para a obscuridade.
Parmênides aponta não para o que é imediato aos sentidos (por exemplo, que algo
surgiu e desapareceu), mas para o que é imediato ao pensamento: a identidade de
determinada noção com ela mesma. Para que uma noção de pensamento se mostre
idêntica a si mesma, deve se dar a pensar enquanto algo determinado, definido, ou seja,
enquanto forma.
66
também carecer de nenhuma mediação sensível. O que está em questão é o único
aspecto de algo que deve ser uma unidade imóvel e em si. Além disso, as noções de
pensamento, que agora poderemos chamar de formas, conceitos ou definições, devem
ser completamente livres e independentes do que aparece aos sentidos. Por exemplo, se
uma forma geométrica, mesmo que não careça de preenchimento material quando é
pensada, ainda exige que consideremos o seu contorno, como se o víssemos, isso não
acontece com as definições conceituais.
Mais a frente, Parmênides nos dirá sobre o “ser” que é “semelhante à massa de
uma esfera bem redonda, do centro por toda parte igualmente tenso” (DK B8 43-44).
Mas dizer que é semelhante não significa dizer que é igual. Ora, para quem tematiza
diretamente o princípio de identidade, essa diferença certamente é clara. Com essa
analogia Parmênides distingue a sua compreensão das formas de pensamento da
compreensão pitagórica das formas geométricas. Mas ao mesmo tempo as associa.
Assim, podemos interpretar que: se por um lado as formas de pensamento assim como
as formas geométricas afastam-se do âmbito sensível de investigação, porque são
independentes do preenchimento material das coisas, bem como de seu aparecimento e
desaparecimento; por outro lado, as formas de pensamento não dependem sequer que as
projetemos visualmente em nossa mente, ou seja, não carecem de nenhum tipo de
mediação sensível. Além disso, Parmênides nos diz que o que é limitado pelo limite, ou
seja, a massa da esfera, é tão importante para a sua noção de forma quanto o próprio
limite ou contorno, que “cerca por todos os lados” (DK B8 31). Isso porque tal massa
diz respeito não mais ao preenchimento material, mas ao conteúdo conceitual de
determinada noção. Assim temos que uma forma de pensamento deve ser uniforme,
homogênea, ou seja, uma definição não pode abarcar o que dela se difere, deve ser um
todo único e limitado.
Os pitagóricos já nos haviam indicado que pensar sobre uma forma implica
atentar para limite, determinação e definição. Parmênides nos diz agora que devemos
considerar que o que se dá a pensar enquanto limite, determinação e definição deve ser
idêntico a si mesmo, e deve apresentar um conteúdo estável, no qual possamos confiar.
Assim, embora ele não tenha tematizado diretamente a noção de forma, podemos dizer
que ele a pensou enquanto tal, na medida em que considerou os limites, determinações e
definições não mais das coisas presentes no âmbito fisiológico, mas do que pode ser
pensado enquanto unidade de significação idêntica a si.
67
A forma diz respeito a unidade, a totalidade e a relação entre limite e ilimitado.
O limite cerca algo, assim estabelece uma unidade e ao mesmo tempo define o conteúdo
por ele cercado, a totalidade que abarca. Mas apenas pode ser limite frente ao ilimitado,
que, por diferenciar-se dele, permite que ele apareça. Essas noções são fundamento para
a forma geométrica, bem como para todos os objetos que possam aparecer em âmbito
sensível. Ao mesmo tempo são também essas noções que fundamentam a forma, os
conceitos e definições no âmbito do pensamento e da linguagem. Encontramos, então,
fundamentos originários presentes tanto em âmbito sensível como em âmbito
inteligível, tanto no caminho do ser como physis, como no caminho do ser como einai.
Mas, como os dois caminhos seguem direções opostas, será preciso notar a diferença na
compreensão de cada um sobre as mesmas noções.
68
não é uma ruptura com o interesse pela unidade, totalidade e pela tensão entre limite e
ilimitado, que, como vimos, são noções fortemente presentes na compreensão do ser
como physis. É, antes disso, uma nova forma de compreender essas noções. Elas não
são mais tomadas como princípios ou causas materiais que iniciam ou se fazem
presentes durante o desenvolvimento de uma sequência infinita de geração e corrupção.
São fundamentos conceituais, pontos de partida e de retorno, sempre presentes ao
pensamento, sinalizando o que nele não se altera, e tornando cognoscível o que puder
ser pensado (tudo o que é). A principal diferença é que com Parmênides torna-se
explícito, consciente, que tais noções são pensamento, e mais do que isso: são
pensamentos reguladores, normativos, que nos tornam capazes de julgar.
Após apresentar a relação necessária entre ser e pensar - porque ser enquanto tal
só pode ser no pensar, e portanto é pensamento -, Parmênides nos fala da relação entre
ser e pensar com o dizer, pondo em questão a necessidade de refletimos sobre a
linguagem. “Precisa tal dizer tal pensar que o ente é; pois há ser,
mas nada não há isto eu te exorto a indicar” (DK B6 1-2).
69
uma determinada variação de associações relacionadas, e então podemos estender sobre
a mesa do pensamento, como se fossem grãos, tais associações referentes as impressões,
imagens e sensações que recolhemos. Tentamos, então, estabelecer o limite do que algo
pode significar sem perder-se totalmente do que lhe é fundamental. Buscamos encontrar
sua unidade, sua forma mais completa e consistente. A partir disso julgamos.
Escolhemos a cada vez que algo semelhante nos aparece ou a cada vez que queremos
torná-lo novamente presente, de que forma ele deve ser acolhido em nós, de que forma
separar e reunir, de que forma reapresentar. Mas há também um outro modo de pensar e
trabalhar com nossa linguagem que não carece do que aparece e de seus diversos
aspectos. Tal é o caso do lógos segundo ele mesmo, a tautologia.
Parmênides investiga o ser. Quer conhecê-lo, determiná-lo. Mas, para isso, não
parte das coisas que aparentam ser, e sim do próprio ser como fundamento do
pensamento e da linguagem. Ainda que possamos conhecer o significado originário de
ser, que indica que algo existe e tem lugar no mundo, ao observarmos o uso que dele
fazemos na linguagem, podemos notar que o que ele indica pode extrapolar o seu
sentido original. Do mesmo modo, ao observarmos a diversidade e multiplicidade dos
entes, e de seus aspectos, aos quais nos referimos através da noção de ser, fica evidente
que, ao pensarmos sobre o que é o ser enquanto tal, estaremos lidando com o que há de
mais abrangente e difícil de definir, mas ao mesmo tempo com o que nos permite
indicar e definir tudo sobre o que pensamos e falamos. Se o ser é fundamento de tudo, é
o único caminho que devemos trilhar, é preciso pensar o ser partindo somente do ser.
Mas tudo o que sabemos sobre ele é que é.
70
Partindo justamente da tautologia segundo a qual o ser é, Parmênides descobriu
o princípio de identidade. Mas se o ser é igual a si mesmo, não pode, por outra
perspectiva, não ser igual a si mesmo. Caso contrário teríamos uma contradição.
Também não pode, na mesma perspectiva, ser e não ser igual a si mesmo, pois nesse
caso, além da contradição interna, este algo seria outro em relação ao que simplesmente
é, e consequentemente não seria o que é, mas não-ser. Assim, no âmbito do pensamento,
através de um lógos auto-referente, Parmênides deduziu os três axiomas fundamentais
da lógica clássica, mais tarde desenvolvida por Aristóteles: o princípio de identidade, o
princípio de não contradição e o princípio do terceiro excluído. Essa linguagem,
tautológica, é a única adequada para investigar o ser. Mas, a partir dela, o que mais
poderemos saber sobre o ser além de que ele é? Ora, além do princípio de identidade
temos o princípio de não contradição, que nos indica a negarmos o que o ser não é, e
assim nos aproximarmos do que ele é, seguindo justamente o caminho oposto ao que
não deve ser seguido. Além disso, temos também o princípio do terceiro excluído, que
nos indica a jamais associarmos o que descobrirmos sobre o ser, através da negação do
não ser, com o que lhe for contrário.
71
placas são diferentes do caminho, pois o caminho é o fundamento, a base, o solo que
contém e articula todas as placas na direção de si mesmo e as placas são marcos que
estão nele, indicando-o e determinando-o; por outro lado, as placas somente podem
estar em um caminho que é todo idêntico a si mesmo, porque são tal caminho, ou seja,
são conforme o que é. Mais a frente voltaremos com mais atenção aos sinais do ser. Por
ora, temos que a partir da negação dos princípios adotados pelo pensamento da physis,
ou seja, pela via do não-ser, Parmênides deduz, com base no princípio de não
contradição, os sinais capazes de indicar o ser. A partir de tais sinais torna-se possível
saber sobre o ser algo mais, além de que ele é.
A primeira via da qual a deusa mandou nos afastarmos é a via do não-ser. A via
que investiga as coisas em devir a partir dos critérios do devir. Agora ela nos exorta a
também nos afastarmos de uma via que não é exatamente um caminho de pensamento,
59
Fernando Santoro optou por deixar uma lacuna em sua tradução seguida por uma nota explicativa na
qual apresenta como possibilidades tanto “afasta-te” como “parte”. A primeira opção remonta a Diels e a
interpretação que reconhece três caminhos apresentados pela deusa no poema, a segunda remonta a
Cordero e a interpretação que reconhece apenas dois caminhos. (SANTORO, F. 2011a, pág. 91).
72
de investigação, conforme o do ser e o do não ser, que ela antes nos apresentou como
caminhos que são a pensar. Trata-se do modo confuso dos homens conduzirem-se pela
errância, seguindo o que lhes dão a perceber os seus sentidos, porém como se fossem
surdos e cegos. Ora, esta via é marcada pela dualidade, pela contradição interna. Isso
porque os sentidos não podem ser os únicos condutores, uma vez que a natureza do
homem é dotada da capacidade de pensar e dizer. Assim, os homens que trilham a via
da errância confundem seu próprio pensamento e suas percepções sensíveis, como se
ambos valessem o mesmo. Diferente dos physikói que transformavam o que percebiam
em critérios que lhes permitissem julgar, nessa via não há critérios de juízo. Aqui os
homens são como um único corpo conduzido por duas cabeças, incapazes de discernir,
acríticos.
Por fim, a deusa reforça algo que já havia dito antes. Quando afirmou: “comum
é para mim de onde começarei, pois lá mesmo chegarei de volta outra vez” (DK B5), ela
nos disse que partindo do ser, tornará ao ser. Agora ela nos diz que de todos o caminho
é de ida e volta, indicando que aquele que partir de opiniões duplas, contraditórias, a
elas sempre voltará. Após reiterar este aviso ela segue dizendo:
Ora, se não devemos jamais domar não entes a serem, isto significa que não
devemos pensar sobre os fenômenos, os aparecentes, que se manifestam no mundo, e
não são conforme o ser? A deusa é clara: é preciso separar o que pensamos desta via. O
73
pensamento e as noções por ele pensadas, que são verdadeiramente, não devem jamais
serem confundidos com os objetos sensíveis do âmbito fisiológico, nem tampouco com
as aparências de tais objetos domadas a serem, ou seja, transformadas em pensamento.
Devemos então dizer que os entes, ou aparecentes, do âmbito sensível não são?
Sim. Não são enquanto pensamento. Até aqui, Parmênides nos fala somente sobre as
vias pelas quais conduzimos nosso pensamento. Isso significa que até o presente
momento devemos nos limitar à investigação do âmbito intelectivo. Isso não implica
que tais entes não sejam de modo algum, como não são, ou não devem ser, os princípios
adotados pelos physikói. Os entes sensíveis existem no âmbito fisiológico. Mas isso
significa dizer que em sua natureza, os entes sensíveis existem e não existem, são e
também não são? Ora, acreditar em tal contradição é caminhar pela via da opinião que
não discerne o âmbito intelectivo do âmbito sensível. No âmbito intelectivo tais entes
não são, não têm realidade própria, porque não são pensamento. No âmbito sensível eles
são, conforme o modo de ser do âmbito sensível: o aparecimento, as aparências.
74
indicadas no nosso dizer, ou seja, se o próprio ser não estiver presente na nossa ação de
declarar e apontar pela fala esse algo que queremos indicar, então não será possível
pensar sobre ele. Pois o que realmente é, é o ser e seus sinais (essas noções, conceitos
ou formas que o determinam). E só é possível pensar verdadeiramente (tendo em vista
conhecer) o que for pensamento, ou seja, o que pode se fixar no pensamento como
pensamento. Qualquer coisa que for pronunciada que não dê a pensar tais noções, será
apenas um nome qualquer, sem fundamento.
A via do não discernimento está interdita, não deve ser trilhada. Mas isso não
implica que, se estivermos na via da verdade, que discerne ser e não ser, que parte do
ser e ao ser retorna, não possamos pensar sobre o que não é pensamento. Podemos sim
pensar sobre os fenômenos e as aparências. Aliás, isso é inevitável. Mas não devemos
buscar domá-los a serem. Assim, ainda que nos voltemos a objetos incognoscíveis,
devemos partir dos critérios do pensamento, buscando sempre discernir nos objetos em
devir o que neles é conforme o ser do que não é. Mas justamente porque não podemos
alterar sua natureza, forçá-la a ser pensamento enquanto tal, é que jamais poderemos
alcançar o conhecimento em uma investigação como essa. Tal empresa alcança apenas a
verossimilhança e, no máximo, pode ser capaz de emitir uma perspectiva superior entre
os mortais (DK B8 60-61), mas não chegará a verdade.
Temos então que não devemos trilhar a via do não-ser, onde o pensamento adota
como princípios para si as características dos fenômenos em devir, confundindo a sua
75
própria natureza com a natureza do que investiga, que lhe é distinto, e seguindo rumo
incerto, que não conduz ao verdadeiro conhecimento. Temos também que não devemos
trilhar a falsa via da mistura entre ser e não-ser que é conforme a percepção acrítica dos
mortais bicéfalos, ou seja, é conforme a percepção imediata fornecida pelos sentidos,
isto é, sem a mediação do pensamento. Essa via não apenas não distingue que o que
percebe no âmbito sensível não pertence ao mesmo âmbito das noções fundamentais ao
pensamento, como não as têm consciente, e, portanto, não possui critérios para
discernir. Temos, por fim, que a via pela qual devemos conduzir nosso pensamento é a
via que tem esclarecido que seu fundamento é o ser, e que ser é pensamento capaz de
pensar-se através da linguagem. Essa via revela o modo próprio de investigar e
conhecer, pois nos leva a descobrir a partir dela mesma, tautologicamente, seus
axiomas, que são estruturas fundamentais capazes de nos levar a deduzir os sinais a
partir dos quais devemos nos conduzir. Neste caminho o pensamento deve pensar o
próprio pensamento, e desse modo torna-se independente do âmbito fisiológico. Mas
isso não implica que não possa pensar sobre as coisas pertencentes a tal âmbito. Pode,
pois isso é inevitável à natureza humana. Mas deve assegurar-se sempre de separar bem
as duas investigações, tendo em vista que ao voltar-se para o que aparece no mundo, ou
seja, ao querer pensar sobre o cosmos, não alcançará o conhecimento e a verdade. É
preciso não perder de vista a necessidade de sempre retornar ao ser.
Após anunciar os três caminhos pelos quais é possível ao homem conduzir seu
pensamento, a deusa nos instrui que é preciso discernir pelo lógos a controvérsia que há
entre o âmbito sensível e o inteligível, pois caso não o façamos, nosso pensamento
vagará, enquanto mera opinião, através de nosso olhar, ouvido e língua, afastando-se do
verdadeiro conhecimento. Esse risco está sempre presente, uma vez que somos ao
mesmo tempo seres dotados de nous e lógos e também de percepções sensíveis.
Para permitirmos que o ser seja enquanto tal, em nosso pensamento e em nossa
fala, é preciso violentar a physis, retirar o ser do devir, da indeterminação, da tendência
à obscuridade e infinitude, e o deixarmos aparecer enquanto forma inteligível. Do
mesmo modo, o homem, enquanto ser da physis, está sempre atado ao não ser, sempre
sofrendo a violência de sua própria natureza, que o faz tender a declinar-se de si mesmo,
a perder-se em meio a aparências inconsistentes, e a sucumbir à sua própria corrupção.
76
O discurso da deusa nos fala sobre bifurcação, encontro, bicefalia e controvérsia
para nos revelar a nossa condição humana60: eis que estamos sempre na encruzilhada.
Mas a deusa visa nos instruir, nos tornar sábios para que possamos nos conduzir da
melhor maneira sendo como somos.
A deusa nos revela que estamos sempre em uma encruzilhada e nos exorta a
discernir, julgar e decidir. Por isso, o homem que sabe é, desde o começo, apresentado
como aquele que é aceito por Díke. Mas Díke acompanha Thémis. Para que possamos
julgar é preciso conhecer as normas. Assim, falta ainda algo a ser ensinado pela deusa.
60
“No discurso da deusa a imagem predominante é a da encruzilhada, da bifurcação e do encontro. A
primeira oposição de caminhos é a partir de uma separação “moral”: o caminho dirigido por Θέμις e Δίκη
(Legalidade e Justiça) que conduz o sábio e que está fora do outro caminho trilhado pelos homens.
Depois, temos a separação, no fragmento II, entre o caminho de persuasão que leva à verdade – e, de
outro lado, o caminho insondável, inviável, incognoscível, irrealizável, inefável. No fragmento V, há o
encontro (Ξυνόν) da chegada e da partida (ὁππόθεν [...] τόθι). A bicefalia (δικρανία) dos mortais aparece
no fragmento VI, 5. E, também a ideia de decisão (κριναι) e controvérsia (ἔλεγχον) no fragmento VII,
5”. (SANTORO, F. 2001, pág. 112).
77
II.IV – As noções reguladoras que nos permitem julgar: a deusa apresenta os
sinais do ser.
Mas como conhecer o que não conhecemos? O único modo de conhecer é partir
do que já conhecemos. E o que conhece Parmênides? Ora, ele conhece as estruturas
fundamentais do pensamento, que descobriu ao pensar o próprio pensamento em sua
identidade e solidão, e conhece o pensamento tradicional entre seus precursores: o que
compreende o ser a partir da physis.
Para que seja possível conhecer algo além do que já se conhece, é preciso, antes
de tudo, relacionar o que se tem. Mas Parmênides já deixou claro que não podemos, de
forma alguma, deixar que seja o caminho investigativo da physis e chamou-o de
caminho do não-ser. Deixou claro também que não podemos associar ser e não ser, e
jamais devemos confundi-los como se fossem o mesmo.
78
justamente as características ou os sinais (sémata) opostos aos que nos apresentam o
que não é, ou seja, as aparências da physis domadas em noções de pensamento.
Na physis as coisas são geradas e perecem, porque estão em pleno devir. Nesse
processo o que aparece apresenta-se de vários modos, em múltiplos estados. Por isso a
via do não ser adota como critérios investigativos noções tais quais “geração”,
“corrupção”, “surgir”, “desaparecer” e “multiplicidade”. A partir disso, porém tomando
a via contrária, a deusa nos diz que o que é, é “ingênito”, “imperecível” e também
“uno”, “contínuo” e “indivisível”, pois não é como as coisas que aparecem na physis,
nas quais a unidade se articula com a multiplicidade de partes. O que é, ou existe
totalmente ou de modo algum. Também por isso, se nasce ou perece não é. (DK B8 3-
25).
Dito isso, a deusa frisa que o mesmo é o que é a pensar e o pensamento de que é.
Assim, temos que o que é a pensar, ou seja, as verdadeiras noções de pensamento, são o
mesmo que o próprio ser. São essas noções, os sinais do ser, que devemos indicar
quando dizemos que algo é.
Por fim, a deusa nos fala que, ao contrário dos entes da physis, que aparecem
escapando de seus limites, como coisas “dessemelhantes” a si mesmas, e sempre se dão
79
a ver de modo “incompleto” e “ilimitado”, o ser é “limitado”, “igual por toda parte”,
“mantém-se no mesmo”, e é sempre “completo”, “acabado”, “perfeito”. (DK B8 42-49).
Parmênides, interessado em encontrar normas e leis para que pudesse julgar sem
cair em erro, pensou sobre o próprio pensamento e encontrou três princípios
axiomáticos. Depois disso levou ao tribunal o fundamento de tudo o que se pode pensar
e dizer, ou seja, a única coisa que buscamos conhecer sempre que visamos conhecer: o
próprio ser.
No entanto, a partir de seus princípios axiomáticos nada mais podia saber além
de que o ser é, que não pode não ser, e que não pode ser e não ser ao mesmo tempo.
Valeu-se então de outro conhecimento que possuía além dos princípios axiomáticos, o
61
Cfr. SANTORO, F. Il tribunale de Parmênides. Neste artigo, Santoro apresenta o uso da linguagem
forense no contexto de Parmênides, mostrando textos de Homero e de Górgias (o primeiro muito anterior
e tradicional e o segundo imediatamente posterior a Parmênides). Com base nos termos presentes nesses
textos, é possível observar que as primeiras categorias da linguagem cunhadas por Aristóteles não
surgiram do nada, e sim do sistema jurídico da Grécia antiga e da retórica forense. Também os sinais do
Ser, que Parmênides nos apresenta em seu poema, têm forte influencia da linguagem dos tribunais, e
podem ser interpretados como protocategorias da linguagem.
80
conhecimento do não-ser, o método de investigação da physis desenvolvido pelos
primeiros filósofos, buscando encontrar, através dele, por oposição, sinais do ser que o
permitissem indicá-lo, ou seja, acusá-lo.
Parmênides estabeleceu sinais para tornar possível apontar o que é o ser. Tais
sinais dizem respeito às várias maneiras de resguardar os limites do que é enquanto tal.
Assim, Parmênides foi capaz de determinar o ser, e fazer dele o ponto fixo a partir do
qual é possível pensar e dizer todas as coisas. Com esses sinais, a noção de ser por eles
determinada e os três princípios axiomáticos que descobriu, Parmênides nos oferece
critérios, normas, leis, que nos tornam capazes de julgar a cada vez que nos
encontrarmos em uma encruzilhada, afim de nos mantermos sempre no caminho do ser.
Mas há ainda algo a se pensar sobre como julgar.
81
A deusa nos alertou que é preciso julgar a partir do lógos (légein), e nos disse
também que o que for proferido sem o ser será apenas nome (ónoma). O que significa
essa distinção?
Primeiro é necessário não confundir o estatuto ontológico dos nomes das coisas
com o estatuto ontológico do ser e dos sinais que o revelam. Não se trata do mesmo tipo
de nomes. Esse tipo de distinção, entre o que pertence ao âmbito sensível e o que
pertence ao âmbito inteligível é feita a partir do lógos. Mas, distinguirmos se estamos
falando sobre entes sensíveis ou noções inteligíveis não é suficiente, é preciso que
possamos julgar a cada vez que dizemos que algo é o que esse tal algo é, que tem ele a
ver com o ser. É preciso que sejamos capazes de indicar seus limites, ou seja,
determiná-lo. Para que possamos fazer isso, será preciso aplicar a tudo sobre o que
dizemos “é” as protocategorias ou acusações a partir das quais determinamos o ser,
tendo sempre em vista não contrariar os princípios axiomáticos do próprio lógos.
Ao nos perguntarmos sobre algo que proferimos de que modo ele é, onde e
quando o vimos, qual sua qualidade, sua quantidade, com o que o comparamos, não
teremos mais apenas um nome, teremos pequenos discursos sobre os quais poderemos
pensar e julgar. Então, poderemos buscar as diferenças e semelhanças com o próprio
ente, e por fim decidir se trata-se de um nome completamente sem fundamento, forjado
apenas pelo imediatismo de nossa percepção sensível, ou se trata-se de um nome que é
capaz de indicar, ainda que em uma natureza distinta da natureza do ser enquanto tal,
aquilo que realmente é. Se o nome for capaz de dar a pensar o que é no algo que indica,
ou seja, que semelhanças esse algo tem com o ser que o permitem ser chamado algo que
é, e que diferenças lhes são próprias, a ponto de não poder se confundido com o que é
enquanto tal, então o nome deixará de ser apenas um nome vão.
82
Os nomes das coisas não são mais compreendidos como presenças, como antes
eram compreendidos os nomes dos deuses, muitas vezes associados aos fenômenos
naturais. A única coisa que deve estar sempre presente é o caminho do ser, ou seja, o
fundamento do pensamento e da linguagem, seus sinais (que também o são), os
princípios axiomáticos que o regem, e o próprio processo de discernimento e
julgamento que ele representa. No caminho do ser, o nome enquanto presença
progressivamente tem sua significação original (de existir, ter lugar no mundo)
enfraquecida para dar lugar a sua utilização predicativa.
Ao dizer que apenas julgamos pequenos discursos e que nomes isolados, sem a
mediação do pensamento, não passam do resultado de uma atividade acrítica, estamos
antecipando a compreensão de juízo que encontraremos mais adiante em Platão e
Aristóteles.
Platão, no diálogo O Sofista, após distinguir ónoma e rema nos diz que apenas
podemos julgar algo que se apresentar como, no mínimo, um pequeno discurso. Ou
seja, um encadeamento, uma combinação de sujeito e verbo. Podemos julgar as frases
Teeteto voa e Teeteto é este aqui que está sentado, mas não podemos julgar um nome
ou um verbo que estejam fora do encadeamento discursivo, ou seja, não julgamos
“dormir”, “cavalo”, “lua”, “armário”. Com isso, temos que a atividade de discernir,
julgar e decidir depende de articulações, de relações.
No poema de Parmênides aquilo que é não pode jamais articular-se com o que
não é. Mas justamente essa impossibilidade de articulação estabelece uma relação que
nos permite julgar: julgamos em prol de manter a relação de afastamento, de oposição.
Assim, légein, no poema de Parmênides, diferente de ónoma, diz respeito a um arranjo
de palavras sobre o qual podemos aplicar a atividade crítica. O nome isolado não passa
de um som no qual os mortais buscam fixar os entes em devir, sem saber que apenas
encontrarão o sentido de tais entes se forem capazes de julgar, através do discurso, a
relação deles com o ser.
83
Contudo, do princípio ao fim, as únicas relações admitidas pela lógica de
Parmênides são a de identidade ou a de diferença absoluta, ou seja, de oposição ou
negação. Parmênides não busca encontrar, como fará Platão com sua dialética, as
demais possibilidades de relação, nem entre as coisas nem entre as noções do
pensamento. Pois, para ele, as noções de pensamento ganham sentido apenas a partir de
sua identidade com o ser, na medida em que o indicam, e são pensadas justamente
através dos três axiomas: identidade, não contradição e terceiro excluído. Já as coisas
em devir, mesmo que pensadas a partir do caminho do ser, nunca levam ao
conhecimento e a verdade, pois não podem ser convertidas em ser. Para o pensamento e
para linguagem todos os entes sensíveis que nascem e morrem não são.
84
sobre o que é o eleatismo. Por hora, resta-nos ainda algo a ser investigado no poema de
Parmênides.
Após apresentar o ser e seus sinais e dizer ao homem que sabe que deve pensar
sobre seu próprio pensamento, pois nada além dele pode ser realmente conhecido, a
deusa diz que apresentará uma perspectiva superior sobre o cosmos.
85
II.V- O homem no cosmos e o cosmos no homem.
Antes de iniciar a investigação sobre o cosmos a deusa já havia avisado que não
há conhecimento possível a se alcançar nessa empresa. O discurso sobre os entes
sensíveis não condiz com o âmbito do pensamento puro, logo não há verdade sobre ele,
mas apenas opiniões. Apesar disso, a deusa instrui sobre essa investigação também.
Mas, por que ela faz isso? Ora, o homem é mortal. Vetar-lhe de pensar sobre coisas
mortais é inútil. A investigação cosmológica é de acordo com a natureza do homem.
Justamente por isso tal investigação parte da perspectiva humana e de sua atividade de
nomear:
A distinção entre o que é por si mesmo e o outro, que não é por si mesmo, mas
apenas em relação ao que é, também é precursora de uma análise extremamente
importante ao pensamento filosófico: a que faz Platão, no Sofista, quando se permite
pensar o não-ser como alteridade. Mais adiante voltaremos a essa questão.
86
equivalente, como se na ausência da luz acreditássemos que a escuridão é ser em igual
medida que a luz, e assumíssemos essa percepção equivocada como se fosse verdade.
Desse modo, a fragilidade da opinião não se deve nem a aparência, nem a percepção
sensível, mas a um pensamento enganoso acerca do que apareceu e se percebeu.
Pensamento enganoso que se reflete na nomeação, quando dizemos, por exemplo, “a
escuridão é”, do mesmo modo como dizemos “a luz é”.
Porém, não podemos deixar de observar que a primeira recepção daquilo que nos
aparece se dá à percepção sensível, e que um pensamento mais atento desenvolve-se em
um nível diferente do dessa primeira recepção.
A deusa nos instrui quanto a nossas opiniões não para domá-las a se tornarem
pensamento fiável, mas apenas para que elas alcancem uma perspectiva superior. O que
ela nos ensina é que é possível olhar para as coisas que aparecem a partir de um
pensamento consistente, que busca discernir no que vê o que fundamenta sua
possibilidade de ser visto, sua inteireza e mesmidade. É possível, a partir de um
pensamento que pensa o próprio pensamento, tornar presente o que possa estar ausente
nas coisas que aparecem, considerando o que nem sempre se mostra, mas, no entanto
nunca deixa de ser. Assim, a deusa diz:
O que aparece como ausente, mas deve estar sempre presente no pensamento?
Ora, o que é por si mesmo: o próprio ser. Os sinais do ser que nos permitem julgar,
embora não sejam o que aparece imediatamente no que se dá a ver, devem sempre ser
trazidos a presença pelo pensamento. Não devemos acreditar que o que é se dispersa
pelo mundo, nem que se concentra em algum só lugar. Devemos buscar reconhecer nas
coisas que dizemos que são a presença do que é o mesmo que si mesmo por todos os
lados.
Luz e Noite são para a perspectiva humana, para o nosso olhar, os princípios do
aparecer. Porém, apenas na luz podemos distinguir as formas, indicá-las, determiná-las.
87
A noite e a escuridão não são responsáveis pelo aparecimento. Ao contrário, elas
ocultam o que aparece, levam o que aparece a desaparecer. Acontece que se nós
pensarmos no desaparecimento como o aparecimento do escuro e da indistinção, a noite
passará também a ser um princípio responsável pelo aparecimento, o aparecimento de
algo de outro que não a luz. Na physis tudo o que aparece também desaparece, por isso,
o pensamento do não-ser tomou como princípios de investigação também as noções
responsáveis por “determinar” o indeterminado, por fazer aparecer o desaparecimento.
Mas pensar no escuro, na indistinção, como algo que é por si só, e aparece ao mesmo
modo como a luz, é buscar domar não seres a serem.
O pensamento que parte apenas do ser a ele retorna. O pensamento que parte do
não-ser, considerando como princípios justamente os modos de indicar o que é
deduzidos do ilimitado e da indeterminação, ao não-ser retorna. Mas a opinião imediata,
que não pensa nem decide, por partir de ambos ao mesmo tempo, da luz e da noite, da
determinação e da indeterminação, não pode chegar a lugar nenhum.
88
em nomes sem nos preocuparmos em discernir o ser que as permite ser, mas apenas
repetindo conforme o hábito multitudinário.
A deusa nos instrui a pensar mesmo quando tivermos que opinar. Para
exemplificar seu modo de olhar para os entes sensíveis buscando neles encontrar o que
deve estar sempre firme no pensamento, Parmênides nos conta uma de suas descobertas
cosmológicas: “Brilho noturno de luz alheia vagando em torno a Terra” (DK B14),
“sempre espreitando os raios do sol”. (DK B15).
Parmênides descobriu que a lua não tem luz própria, mas reflete a luz do sol.
Com isso ele nos mostra que é possível distinguir, nas coisas que aparecem, o que é por
si mesmo e o que é apenas em relação ao que é por si mesmo. Isso não significa dizer
que a lua não existe, mas sim, que ela não existe por si só, existe apenas enquanto
alteridade. Portanto, se quisermos descobrir a partir dela o ser, será preciso sabermos
que ela no-los indicará apenas na medida em que indica o sol, que, por sua vez, é o
mesmo que si mesmo. Assim, podemos afirmar que se há luz na noite, que é justamente
a ausência do dia, essa luz pertence ao domínio do dia, ao domínio das coisas que são
por si mesmas. Por outro lado, uma noite sem lua jamais indicará o ser se for tomada
enquanto tal. Apenas poderemos pensá-lo através dela se considerarmos que a noite
nada mais é que o outro do dia, este sim o mesmo que si mesmo. A deusa nos exorta a
buscar o ser mesmo na aparente ausência do ser, porque o ser está sempre presente.
O cosmos, que está no homem e no qual o homem está, não pode ser revelado
pela deusa. Não há sobre ele uma verdade divina, um conhecimento seguro. Porém, é
possível que uma opinião se aproxime do conhecimento, se ela não for caminho de
errância, é possível que ela seja ao menos semelhante a verdade. Como já dizia
Xenófanes: “Que tais coisas sejam consideradas semelhantes as reais...” (DK B 35),
pois “Tudo quanto se manifesta aos mortais é para ser contemplado...” (DK B 36).
89
Encerramos aqui nossa investigação sobre o poema de Parmênides. O que
descobrimos até aqui? descobrimos que há uma via de investigação distinta da via da
physis. Nessa via, o ser (einai) é compreendido a partir dos axiomas do pensamento,
descobertos quando o pensamento volta-se sobre si mesmo, e também a partir das
noções adotadas como princípios na investigação da natureza, por oposição.
90
Como Parmênides é o pensador central do eleatismo, todos os demais eleatas,
aqui citados no primeiro capítulo, trabalharão tendo o seu pensamento como referência.
Com exceção de Xenófanes que lhe é anterior. Mas, como é uma das referências com a
qual Parmênides dialoga, pudemos encontrar nesse capítulo algumas de suas
contribuições.
91
Capítulo III- A recepção platônica do eleatismo no diálogo O Sofista.
Os personagens que Platão reúne, já nesta primeira cena, podem indicar muitas
das questões que serão abordadas no diálogo. Podemos notar que eles formam duplas
quanto a determinados aspectos, por exemplo: Teeteto e o seu amigo Sócrates são
jovens, Teodoro, assim como o Estrangeiro de Eléia, também é estrangeiro, o Sócrates
jovem é uma duplicação de Sócrates, por ser seu homônimo. Essas duplas apontam, já
de início, que a despeito da unidade parmenídea, Platão quer falar partindo do dois, que
permite a multiplicidade e as relações. Não por acaso o diálogo apresenta e faz uso da
diáiresis, o método da divisão em dois, para realizar sua investigação, e dedica-se
também a desenvolver a dialética.
92
Teeteto se pareciam fisicamente (PLATÃO, Teeteto, 144a-e), donde temos um tipo de
semelhança pela aparência. Agora surge um personagem, que permanecerá mudo o
diálogo inteiro: o homônimo de Sócrates. Sua mudez indica que sua presença tem
importância apenas para marcar a semelhança quanto ao nome. Ou seja, há entre
Sócrates e o Sócrates jovem uma falsa aparência de semelhança, produzida pela
equivocidade no âmbito do discurso. Disso temos que as aparências, que existem entre
os objetos físicos, também existem entre as noções inteligíveis. E assim como, através
delas, podemos nos confundir e enganar no âmbito sensível, também no discurso isso é
possível.
62
Há em Homero muitos exemplos de estima pela hospitalidade, incluindo passagens que mostram os
deuses recompensando quem a desse e castigando quem com ela faltasse: Quando Glauco e Diomedes se
encontram no campo de batalha e descobrem que suas famílias haviam construído laços de hospitalidade
decidem trocar suas armas e não lutarem entre si (Ilíada VI, 120-236); Quando Ulises chega a ilha de
93
marcas de valorização da alteridade, que por sua vez, é indispensável ao diálogo. Assim,
aqui está indicado que é através da prática da hospitalidade - de receber o outro como
amigo - que se torna possível o desenvolvimento da nova noção de dialética. Tal noção
se diferencia do modelo, então comum no mundo grego, do discurso enquanto jogo de
disputa. É frequente nos diálogos platônicos a idéia de que filosofia só se faz entre
amigos, é uma atividade para “almas dóceis”.
A questão que Sócrates aqui indica é para nós um dos principais problemas a se
investigar, uma vez que buscamos compreender o que é o eleatismo. O eleatismo diz
respeito ao divino, como indica o discurso da deusa no poema de Parmênides, ou diz
respeito a contradição, própria aos sofistas? O eleatismo é filosofia ou é sofística? Quem
é o Estrangeiro de Eléia? É ele um homem justo ou apenas um disputador que não se
interessa verdadeiramente pela justiça?
Polifemo pede para ser acolhido em nome de Zeus Xénios, mas o Ciclope não só recusa seu pedido como
zomba da hospitalidade e do deus. Depois, acaba encontrando seu castigo. (Odisséia IX, 266-370);
Quando o porqueiro Eumeo recebe Ulisses em sua humilde cabana, ele o agradece dizendo “Oh, meu
hóspede! Que Zeus e as outras deidades o concedam aquilo que ancíeis por essa acolhida” (Odisséia XIV,
53-54).
94
Quando o Estrangeiro é chamado a distinguir os três gêneros - o filósofo, o
sofista e o político - lhe é dada a escolha da forma através da qual realizará essa
empreitada: se pela via de uma longa exposição ou se pela interrogação. Esse ponto é
bastante importante, pois um discurso apresentado na forma de uma peça inteira, sem
interpelações, por ser fechado e coerente em si mesmo, apresenta-se mais facilmente
como razoável, tendo como consequência um maior poder de manipulação. 63 Além
disso, o Estrangeiro de Eléia, ao optar pelo método interrogativo – conforme, segundo
Sócrates, fazia o próprio Parmênides –, afirma que frente à opção contrária “valeria
mais a pena argumentar apenas para si mesmo”. (PLATÃO, O Sofista, 217c-d). Disso
temos que, se não formos como os loucos64 que falam sozinhos, o discurso é sempre
para o outro. Então, se falamos para o outro é justo que o deixemos participar da
discussão. Escolhida a forma que terá o discurso, um diálogo, inicia-se a busca pela
definição do sofista. Ao início, tem-se apenas o nome: “sofista”.
“Até aqui só concordamos, tu e eu, quanto ao seu nome, mas a função que,
por esse nome lhe cabe, poderia ser, para cada um de nós, uma noção toda
pessoal. Todavia em qualquer análise, é sempre indispensável, antes de tudo,
estar de acordo sobre o seu próprio objeto servindo-nos de razões que o
definam, e não apenas sobre o seu nome sem se preocupar com a definição”.
(PLATÃO, O Sofista, 218 c).
63
Como os sofistas, é justamente assim que Trasímaco, na República, dá forma a seus discursos: “A
maneira de um banhista hábil, inundando os ouvidos com aquele jorro de palavras” (PLATÃO.
República. 344d).
64
Os loucos, ou delirantes, também são citados por Sócrates como um gênero com o qual podem se
confundir filósofos, sofistas e políticos (PLATÃO, O Sofista, 216 d).
95
armadilhas. Também a caça é dividida em duas: a caça ao gênero inanimado e a caça ao
gênero animado, chamada de caça aos seres vivos. Essa última, por sua vez, se divide na
caça aos seres vivos terrestres e na caça aos seres vivos aquáticos. O gênero de seres
vivos aquáticos é divido entre os que vivem na água e os que voam, mas também
nadam, desses últimos a caça é chamada caça as aves, enquanto a caça aos aquáticos é
chamada de pesca. A pesca, por sua vez, também é divida em dois gêneros: a que se faz
por cerco, como a pesca com redes, e a pesca vulnerante, que se faz por meio de arpão
ou anzol. A pesca vulnerante quando é feita a noite é chamada de caça ao fogo, mas
quando é feita de dia é chamada de caça por fisga. A caça por fisga também pode se
dividir em duas: a caça com o arpão, que fere a presa do alto para cima, e a caça com o
anzol, que traz a presa por tração ascendente. Eis então que o Estrangeiro alcança uma
definição e pode explicar o que é a pesca com o anzol. Trata-se de uma atividade
aquisitiva, de captura pela caça aos seres vivos aquáticos, feita de forma vulnerante, por
meio de uma fisga, puxando a presa pela boca, ou seja, através de um anzol. Temos, a
partir desse modelo, o método da diáiresis. Nesse método, parte-se de algo que seja
possível identificar no objeto buscado, no caso da pesca com anzol é fácil perceber que
trata-se de uma arte, e opera-se a divisão em dois conforme as articulações65.
65
Quando, no Fedro, Sócrates fala sobre a arte do discurso, diz ser preciso “primeiro: concentrar numa
idéia única, por meio de uma visão de conjunto, os elementos dispersos, a fim de ressaltar pela definição,
em cada caso, o que se deseja comunicar”, depois, o segundo ponto consiste “em dividir as idéias pelas
articulações naturais, sem decepar nenhum dos seus elementos, como quem procedesse a maneira de um
açougueiro desajeitado”. (PLATÃO, Fedro, 265d 266a).
96
perca em meio a manipulação da linguagem, quer garantir a possibilidade da ontologia
depois da sofística. Para isso precisará dar lugar ao movimento e a alteridade na
investigação do ser, e não poderá mais pensá-lo a partir da unidade tautológica de
Parmênides.
97
III.II – Uma breve investigação sobre a relação de Parmênides com a sofística a
partir do Tratado do Não-Ser de Górgias.
Temos, então, seis definições. Acontece que muitas definições não são definição
nenhuma. Isso já havíamos visto com Parmênides no capítulo anterior: é preciso que
determinada forma conceitual mantenha-se no resguardo de seus limites como uma
unidade homogênea, ou não chegaremos a conhecê-la, e estaremos apenas opinando
sobre aparências. O Estrangeiro de Eléia, como um bom representante de sua tradição,
retoma esse ensinamento justamente após apresentar as seis possíveis definições:
98
232b), pois é justamente a habilidade em discutir que leva os jovens a procurar pelos
sofistas, para aprender com eles a fazer o mesmo, e para isso oferecem dinheiro. Como
os sofistas pretendem formar contraditores acerca de todas as coisas, e é impossível
saber de tudo, eles na verdade, podem apenas trazer “uma falsa aparência de ciência
universal, mas não a realidade” (PLATÃO, O Sofista, 233c). Tendo encontrado na
sofística uma atividade capaz de produzir uma falsa aparência de conhecimento sobre
tudo o que há, o Estrangeiro de Eléia a associa às artes imitativas:
“Assim o homem que se julgasse capaz, por uma única arte, de tudo produzir,
como sabemos, na realidade não fabricaria, afinal, senão imitações e
homônimos das realidades. Hábil na sua técnica de pintar, ele poderá,
exibindo de longe os seus desenhos, aos mais ingênuos meninos, dar-lhes a
ilusão de que poderá igualmente criar a verdadeira realidade, e tudo o que
quiser fazer (...) Não devemos admitir que também o discurso permite uma
técnica por meio da qual se poderá levar aos ouvidos de jovens ainda
separados por uma longa distância da verdade das coisas, palavras mágicas, e
apresentar, a propósito de todas as coisas, ficções verbais, dando-lhes assim a
ilusão de ser verdadeiro tudo o que ouvem e de que, quem assim lhes fala,
tudo conhece melhor que ninguém?” (PLATÃO, O Sofista, 234b-c).
“Pois, mostrar e parecer sem ser, dizer algo, sem, entretanto, dizer com
verdade, são maneiras que trazem grandes dificuldades, tanto hoje, como
ontem e sempre. Que modo encontrar, na realidade, para dizer e pensar que o
falso é real sem que, já ao proferi-lo, nos encontremos enredados na
contradição? (...) A audácia de uma tal afirmação é supor o não-ser como ser;
e, na realidade, nada de falso é possível sem essa condição”. (PLATÃO, O
Sofista, 236e-237a).
99
indeterminações que aparecem na physis. Agora, o Estrangeiro de Eléia nos diz que o
não-ser é o falseamento do ser no discurso, que permite a contradição.
A contradição, conforme nos fala o Estrangeiro de Eléia, não está mais associada
àqueles que, mesmo através de um pensamento criterioso, caíram no erro; e nem
àqueles que, justamente pela falta de critérios para julgar, eram incapazes de discernir.
Quando fala da sofística, Platão, através de seu personagem, aponta para uma atividade
que falseia a realidade deliberadamente, tendo em vista iludir. Não se trata de não saber
julgar ou decidir. Ao contrário, a contradição, a arte da controvérsia, está inserida
justamente nos tribunais, onde o que está em questão é o julgamento e a decisão. No
entanto, tal arte não tem por interesse descobrir ou alcançar a verdade, mas forjá-la. Não
é necessário indicar o ser, mas o que parece ser, tendo em vista manipular o juízo e a
decisão de outra pessoa para vencer a disputa discursiva66.
66
Investigando as artes oratórias, Sócretes, no diálogo Fedro, nos diz o seguinte: “Que fazem as partes
nos tribunais? Não contesta cada orador as afirmações de seus opositores? (...) A respeito do justo e do
injusto? (...) Sendo assim, quem obtém esse mesmo resultado por meio da arte, não fará parecer ora justas
ora injustas as mesmas coisas às mesmíssimas pessoas, conforme entender?” (PLATÃO, Fedro, 261 c-d).
100
pode levar-nos a cometer injustiças. Podemos incriminar um inocente acreditando agir
conforme a verdade, e sequer poderemos ser responsáveis por isso, uma vez que fomos
persuadidos, por alguém que dizia-se conhecedor da verdade, de que era correto julgar
de tal maneira. Mas como é possível que exista tal arte capaz de persuadir-nos a tomar o
falso pelo verdadeiro?
101
detalhadamente, conforme uma imagem no espelho. Porém, ao modo do reflexo no
espelho, o tratado inverte o que diz o poema.
Parmênides diz: O ser é, o não-ser não é; Górgias diz: nada é. Parmênides diz: o
mesmo é o que é e o pensamento de que é, assim o ser é a única via de conhecimento.
Górgias diz: se é, é incognoscível. Parmênides diz: o mesmo é ser, pensar e dizer, e
também que é forçoso dizer o ser, pois nada não há. Górgias diz: se é, e se é
cognoscível, não pode ser comunicado67.
Quando Parmênides diz que o ser é e o não ser não é, instaura a krísis, a
separação entre os dois caminhos. Górgias, ao dizer que nada é, rompe justamente com
a distinção entre ser e não ser. Isso porque, atento a estrutura sintática do enunciado
parmenídeo, percebe que antes de podermos negar o não-ser é necessário afirmar que
ele é, pois para negá-lo é preciso tomá-lo como sujeito, e tomando-o como sujeito já
afirmamos sua existência. (CASSIN, B. 2005, pág. 32).
“Pois se o não ser é não ser, o não-ente seria não menos que o ente: com
efeito, o não-ente é não-ente assim como o ente, ente, de modo que são, não
mais do que não são, as coisas efetivas”. (Pseudo-Aristóteles, De Melisso,
Xenófanes e Górgias, in. CASSIN, B. 2005, pág. 278 3- 25).
“Minha opinião (dokei), pois, é que quem sabe (epistamenos) alguma coisa
sente (asthanestai) o que sabe. Assim, o que me parece (phainetai) neste
momento é que conhecimento (episteme) não é mais que sensação
(aisthesis)”. (PLATÃO, Teeteto, 151 d-e).
Aqui são apresentados em uma relação íntima, como que “confundidos”, quatro
termos muito importantes: doxa (opinião, parecer), aisthesis (perceber, sentir), phainetai
67
Crf. nota 13.
102
(aparecer, aparência) e episteme (conhecimento) 68 . Ao longo do Teeteto, buscar-se-á
desfazer essa confusão. Mas, o que aqui nos interessa é apenas essa primeira tese,
segundo a qual conhecimento é sensação, pois ela é imediatamente associada por
Sócrates à doutrina do homem-mesura de Protágoras.
De acordo com Protágoras “o homem é a medida de todas as coisas, das que são,
que são, das que não são, que não são” (PLATÃO, Teeteto, 152 a). Sócrates mostra que
a tese de Teeteto é como a de Protágoras, pois ambas propõem uma identificação entre
ser e aparecer, e entre aparecer e sentir. Assim, se as coisas são como aparecem, a mim
ou a alguém, aparecer é o mesmo que ser sentido ou percebido. Com isso, entende-se
que as coisas que são percebidas são realmente, pois não é possível perceber algo que
não é (não aparece), então não há opiniões falsas e tudo o que percebemos (sentimos) é
conhecimento.
68
Cfr. FLAKSMAN, A. Considerações iniciais sobre o Teeteto in. Aspectos da Recepção de Heráclito
por Platão, 2009, págs.71 -151.
69
Essa é uma posição comum entre os chamados sofistas quanto a teoria da linguagem. Antístenes a
resume da seguinte forma: “Pois todo discurso assevera (aletheuei); de fato, aquele que diz diz algo; ora
aquele que diz algo diz o ente; ora, aquele que diz o ente assevera”. (CASSIN, B. 2005, pág.40).
103
todas são verdadeiras, pois, uma vez que nada existe, a verdade também não existe.
Mas, no entanto, é possível que existam homens sábios e homens ignorantes, pois sábio
não é aquele que conhece a verdade, e sim aquele que é capaz de perceber da melhor
maneira aquilo que lhe aparece. Sabedoria é uma questão de medida: a percepção ou
sensação do homem, e consequentemente seu estado da alma, pode ser melhor ou pior.
Assim, a teoria de Protágoras também pode ser interpretada como um empirismo
subjetivista.
Fizemos essa digressão para mostrar que a confusão entre ser, aparecer,
perceber, sentir e opinar torna inevitável que o discurso esteja sempre associado às
coisas sensíveis. Contudo, os sofistas não são physikoi, eles não estão preocupados em
conhecer tais coisas. Ao invés disso, seu objetivo é mundanizar a linguagem, ou melhor,
humanizar a linguagem, assumir que ela serve ao homem e aos assuntos do homem. Ou
seja, que ela diz respeito a vida prática, e que o próprio lógos é algo efetivo (ta
pragmata).
De volta a investigação sobre Górgias, podemos dizer que ele não quer domar
não seres (sensíveis) a serem (enquanto lógos). Diferente disso, quer mostrar que
logicamente não é possível distinguir ser e não-ser, pois essa distinção, que é o
fundamento da metafísica e que pretende tornar possível conhecer o ser enquanto ser,
não passa de um efeito da linguagem, e que, na linguagem, ente e não-ente são ao
mesmo modo.
Górgias assume que, ao modo como quer Parmênides em seu poema, nada é,
porque, na prática, a separação entre ser e não-ser é impossível. Se não é possível
distinguir “ser”, nada pode “ser” enquanto sujeito, então “não é verdade que exista ser”
(CASSIN, B. 2005, pág 21), e “se ‘ser’ e ‘não-ser’ não tem existência, então eles nunca
poderão servir de verbo em uma frase”. (CASSIN, B. 2005, pág. 22). Assim, não seria
possível conhecer nem tampouco falar sobre o ser. O que Górgias nos mostra é que:
104
consciência do curso do discurso e da diferença normalmente inscrita no
enunciado de identidade: é o ‘não é’ que deve se tornar a regra do ‘é’.
(CASSIN, B. 2005, pág. 33-34).
Quando dizemos “o não ser é não ser” a estrutura sintática da proposição fica
evidente. É nesse sentido que ele deve se tornar a regra da linguagem. E também no
sentido de que mesmo se ele não for, ele é, porque pode ser predicado ainda que para
negá-lo, e isso o torna pensável e dizível. A partir disso, devemos notar que quando
dizemos “o ser é” ou “o ser é ser”, o “é” ou o “é ser”, enquanto predicados, não são a
mesma coisa que “o ser” enquanto sujeito. Mas a separação entre sujeito e predicado
serve apenas ao esclarecimento da articulação necessária entre ambos. Isoladamente,
fora da relação, como diria Protágoras, ou fora da articulação discursiva, como talvez
dissesse Górgias, nada há. De um sujeito impredicável não se pode afirmar nem mesmo
a existência. No discurso, ser e não-ser, como sujeitos opostos, são passíveis de receber
o mesmo predicado: “o ser é”, “o não-ser é”, donde o predicado “é” nem é nem não é,
pois não diz respeito somente ao ser ou ao não-ser. Do mesmo modo, o sujeito “ser”
pode receber predicados contraditórios: “é uno”, “é múltiplo”, “é”, “não é”, donde,
“ser”, enquanto sujeito, nem é uno, nem é múltiplo, nem é, nem não é. Assim, enquanto
tal, nada é nem não é. Mas pode ser e não ser conforme a predicação.
Porém, quando Parmênides diz que aquele que tentar pronunciar o não-ente não
poderá fazê-lo, porque o que não é, não é declarável, isso significa que o não-ser não
pode ser colocado sobre nada, ou seja, não pode ser sujeito. Se nos lembrarmos da
função da palavra na narrativa poética e de seu poder de presentificação, lembraremos
também que a palavra “se colava” sobre as coisas, tornava-se uma unidade com o
sujeito que indicava. É nesse sentido que o não-ser não é, pois ele não pode ser aplicado
a nada. Por outro lado, quando a linguagem começa a ser investigada, as palavras se
descolam do sujeito, perdendo seu poder de presentificação para assumir maiores
possibilidades de indicá-lo no encadeamento discursivo. Porém, para Parmênides, nem
mesmo no encadeamento discursivo é possível dizer o que não é. Isso porque, assim
como ser é pensamento, não-ser é imediatismo, é fala sem pensamento. Assim, quando
os mortais acríticos dizem o não-ser, eles o fazem a partir de nomes (ónoma) sem
embasamento, que não passam de glossa, sons que não significam. “O fato de que falar
seja dizer o ser é portanto a ‘decisão’ que se encontra no fundamento da tese de
Parmênides”. (AUBENQUE, apud. CASSIN, 2005, pág. 37). Contudo, Parmênides
precisa enunciar o não-ser para negá-lo, donde, segundo as suas próprias regras, incorre
105
em uma contradição. Além disso, ao valer-se da homonímia e da anfibolia, gerando uma
confusão entre sujeito e predicado no enunciado do ser, “ser” torna-se algo
completamente indistinto, tanto sintática como semanticamente, assim, Parmênides
pode ser acusado, ele próprio, de fazer uma glossa, ou seja, falar sem significar.
“Se então nada é, as demonstrações dizem tudo sem exceção. Pois é preciso
que o representado seja e que o não-ente, se pelo menos não é, tampouco seja
representado. Mas se é assim ninguém diz que uma falsidade nada seria, diria
mesmo que as carruagens lutam em pleno mar, porque o que é visto e ouvido
é pela única razão de ser a cada vez representado”. (Pseudo-aristóteles, De
Melisso, Xenófanes e Górgias, 9 in. CASSIN, B. 2005, pág. 281).
106
metafísico, mas como “coisas efetivas”. Isso porque o âmbito metafísico é o âmbito
discursivo, e no discurso é o próprio discurso que se fundamenta. Para além do discurso
o que há é a physis, mas se o “ser” da physis é em algum ponto distinto do “ser”
discursivo, torna-se então impossível conhecer esse “ser”. Aqui, Górgias aceita,
juntamente com a tese de que “o ser é”, a separação entre o âmbito discursivo e o
âmbito sensível.
Depois de afirmar sua primeira tese, que nada é, e operar esse primeiro recuo,
para apresentar a sua segunda tese, que se algo for é impossível conhecer, Górgias opera
um segundo recuo para apresentar sua terceira tese: ele aceita, como hipótese, a
possibilidade do conhecimento, e diz:
“Assim, aquilo do que ninguém tem idéia, como perguntaria a um outro por
meio de um dizer, ou ainda como poderia ter idéia por meio de um qualquer
signo da coisa que é outra – senão, se é uma cor, vendo-a, e se é um ruído
ouvindo-o? Pois, para começar, ele [o discurso] não diz uma cor, mas um
dizer. De modo que não ocorrem nem o conceber nem o ver da cor, assim
como do ruído, há apenas o escutar”. (pseudo-ARISTÓTELES, De Melisso,
Xenófanes e Górgias 10 in. CASSIN, B. 2005, pág. 282).
Górgias leva a distinção, que o lógos parmenídeo busca operar por meio da
identidade, para o âmbito da percepção sensível. Assim, os olhos não podem conhecer
os sons, mas conhecem as cores; os ouvidos não podem conhecer as cores, mas apenas
os sons. Se o discurso diz um dizer, e não pode levar a visão a conceber nenhuma
imagem, então ele será apenas um ruído para ouvidos que são capazes de perceber
somente sons.
107
Temos então que nada é, e basta. Porque se fosse não seria cognoscível e nem
comunicável. O nada, que não é uma “coisa efetiva” (ta pragmata), torna-se no
discurso. O discurso é algo efetivo capaz de mudar o nada em tudo. É porque o discurso
pode produzir seres, que para além dele não-são, representando percepções sensíveis,
imitando-as e misturando-as, que é possível ser, conhecer e dizer (mas não ao modo de
Parmênides, para quem conhecer é conhecer a verdade). Assim, não há o falso, pois se
apenas o discurso é, tudo o que ele for capaz de dizer é verdade. O discurso afirma.
Mesmo quando nega, afirma a negação. E como não é possível distinguir ser e não-ser,
tudo o que for afirmado igualmente é. Assim, “todos os discursos como todas as
sensações valem e se equivalem”. (CASSIN, B. 2005, pág. 40). Eis que, a partir dessas
conclusões podemos retomar a investigação acerca da preocupação platônica em relação
à sofística.
108
III.III – “Não me tomes por um parricida”, mas será preciso desobedecer
Parmênides e investigar o não-ser.
109
união entre ser e não-ser. Assim, o Estrangeiro de Eléia mostra que o próprio
Parmênides incorreu em contradições.
Ora, mas não foi o próprio Parmênides quem ao dizer “o ser é” valeu-se da
homonímia que confunde mais que esclarece, e se utilizou “do equivoco do ‘é’ para
erigi-lo como regra”? (CASSIN, B. 2005, pág. 33-34). O próprio surgimento da
ontologia é indissociável da sofística. Assim, a sofística não deve ser pensada como
uma parte distinta da filosofia, como se ela se preocupasse apenas com a retórica, por
exemplo. A filosofia dos sofistas é necessária, inclusive, para que Platão possa realizar a
investigação que agora opera.
Mas, como dizia o Estrangeiro, o sofista seria capaz de fornecer uma definição
do não-ser, porque, provavelmente, se valeria de simulacros e da contradição que
provocaria em nós. Frente a isso, poderíamos chamá-lo de “produtor de imagens”, ao
que ele iria querer saber o que chamamos de imagens. (PLATÃO, O Sofista, 239d).
Teeteto fornece, então, exemplos de imagens: das águas, dos espelhos, das pinturas, das
gravuras... Ao que o Estrangeiro replica:
“Bem se vê, Teeteto, que jamais vistes um sofista (...) Ele te parecerá um
homem que fecha os olhos ou que, absolutamente não tem olhos (...) Quando
assim lhe responderes, ao lhe falar do que se forma nos espelhos, ou do que
as mãos amoldem, ele [o sofista] se rirá de seus exemplos, destinado a um
homem que vê. Fingirá ignorar espelhos, águas e a própria vista e te
perguntará, unicamente, o que se deve concluir de tais exemplos”.
(PLATÃO, O Sofista, 239 e 240 a).
110
definição. Pois bem, Teeteto dá ao Estrangeiro uma definição de imagem: trata-se de
“um segundo objeto igual, copiado do verdadeiro”. Mas, esse segundo objeto não pode
ser realmente igual, por não ser “um ser real” e nem tampouco “verdadeiro”. Assim,
seria apenas semelhante, e teria que ser “um não-ser irreal”. Frente a afirmação de que
“o que parece é um não-ser irreal”, Teeteto intervém e diz: “entretanto há algum ser”
(PLATÃO, O Sofista, 240b), donde na própria tentativa de definir a imagem enreda-se
no entrelaçamento de ser e não-ser.
“Como não compreender que ele nos acusará de dizer agora o contrário do
que então dizíamos, nós que temos a audácia de afirmar que há falsidade
tanto nas opiniões como nos discursos? Na verdade, isso mesmo nos leva a
unir o ser ao não ser em muitas fórmulas, quando havíamos concordado na
sua impossibilidade, a mais absoluta”. (PLATÃO, O Sofista, 241a-b).
Com isso, enfim chegamos ao momento em que Platão, por afirmar a existência
do falso, terá que tratar diretamente da necessidade de abandonar a tese parmenídea, e
defender que em certo sentido o não-ser é. A partir desse momento ele apresentará o
eleatismo como uma escola de pensamento que relaciona “ser”, “uno” e “todo”, e
discutirá o que implica a imbricação desses três conceitos. Com isso temos que, não
apenas o problema do não-ser, mas também a questão do número, que já foi antecipada,
sobre a forma do “algum”, “alguns” e do “um” e “vários” na discussão sobre singular e
plural, deverá ser analisada. Vimos na sessão anterior, quando falamos sobre a
referência a Protágoras que Sócrates faz no Teeteto, que os sofistas e todos os
pensadores com exceção de Parmênides, que aqui serão chamados de mobilistas, além
do movimento (devir) defendiam também a multiplicidade. Por causa disso foram
acusados de tornar impossível que as coisas sejam unas em si mesmas e,
consequentemente, teriam também tornado impossível nomeá-las acertadamente.
111
(PLATÃO, Teeteto,152e). Por isso, Platão dá à unidade e à totalidade, consideradas por
Parmênides como sinais do ser, grande atenção em sua discussão com o eleatismo. Mas
depois, terá que tratar também dos mobilistas e buscar articular as duas teses. Vejamos
como isso acontece.
“Enquanto não houvermos feito esta contestação, nem essa demonstração [de
que o não-ser em certa medida é], não poderemos, de forma alguma, falar
nem de discursos falsos nem de opiniões falsas, nem de imagens, de cópias,
de imitações ou de simulacros, e muito menos de qualquer das artes que deles
se ocupam, sem cair, inevitavelmente, em contradições ridículas” (PLATÃO,
O Sofista, 241e).
Inicia-se então a discussão sobre o não-ser através das antigas teorias do ser. O
ponto de partida é a pergunta sobre quantos e quais são o ser ou os seres:
O Estrangeiro diz que todos lhe dão a impressão de contar “fábulas” (mythos),
“como faríamos a crianças” (PLATÃO, O Sofista, 242c), e passa a enumerar
resumidamente algumas teorias quanto ao número e a qualidade do ser. Nos conta
então, que há quem diga que existem três seres, e que eles guerreiam entre si, casam-se
e tem filhos. Dizendo isso, nos parece referir-se a Hesíodo e aos princípios Kháos, Gaia
e Eros. Depois, diz que também há quem acredite que os seres são dois, o úmido e o
seco ou o quente e frio, indicando-nos a tese de Anaximandro. Logo em seguida vem a
frase que nos conduziu ao longo deste trabalho, e que agora podemos repetir em seu
contexto próprio: “Entre nós, os eleatas, vindos de Xenófanes e mesmo de antes dele,
admitem que o que chamamos o Todo é um único ser” (PLATÃO, O Sofista, 242d).
112
Como vimos no capítulo anterior a unidade é para Parmênides apenas mais um
dos sinais do ser e não uma definição do ser. Xenófanes, por sua vez, pode ter tratado da
unidade enquanto deus, mas não deixou de diferenciar o âmbito divino do humano,
donde da unidade do deus não se pode necessariamente inferir a unidade do todo. Por
que, então, Platão atribui aos eleatas a tese de que “o todo é um único ser”?
Bem, quanto a Parmênides podemos dizer que todos os sinais do “ser” são “ser”,
pois são as marcas que nos permitem apontá-lo e reconhecê-lo. O “ser”, não pode ser se
não apresentar todos os seus sinais, assim, podemos afirmar, a partir do sinal da
unidade, que não é “ser” aquilo que não puder se apresentar como uma unidade em si.
Além disso, outros eleatas, como Melisso e Zenão, trabalham sobre os sinais
apresentados no poema de Parmênides dando especial atenção à unidade e buscando
reafirmá-la.
Com isso, podemos interpretar que a unidade defendida por Melisso tem por
objetivo falar do ser como uma totalidade. Isso faz com que sua filosofia possa
representar literalmente a crença atribuída por Platão a todos os eleatas. Por conta disso,
Platão foi acusado contemporaneamente de “inventar” a Escola Eleática, misturando as
teses de todos os filósofos que são ditos fazer parte dela, e olhando para Parmênides
“com óculos de Melisso”70. No entanto, ainda que saibamos que a frase Platônica é
responsável por reunir esses filósofos na identidade de uma escola, não acreditamos que
isso tenha sido feito desse modo arbitrário. Para que possamos compreender em que
sentido Platão, quando trata do eleatismo, privilegia a unidade dentre os demais sinais
do ser, vejamos também a posição de Zenão quanto a isso.
70
CORDERO, N. 1991, págs. 91-124.
113
No diálogo intitulado Parmênides, Platão mostra Sócrates ouvindo os
argumentos de Zenão, e diz que eles pretendem provar o seguinte:
“Que se os seres são múltiplos, então é preciso que eles sejam tanto
semelhantes quanto dessemelhantes, mas que isso é impossível, pois nem as
coisas dessemelhantes podem ser semelhantes, nem as semelhantes,
dessemelhantes (...). Então, (...) é também impossível haver múltiplas
coisas”. (PLATÃO, Parmênides, 127e).
Além de buscar afirmar a unidade do ser, o Zenão platônico atesta que seus
argumentos também foram motivados pela controvérsia. Com isso, podemos notar que
Platão indica a relação de Zenão com a sofística. No diálogo Fedro, quando começa a
falar das artes oratórias, Platão se refere a Zenão da seguinte maneira:
Aqui Zenão aparece como um antilógico, motivo pelo qual foi considerado por
Aristóteles o pai da dialética. Não da dialética aos moldes platônicos, mas uma dialética
erística71. Sabemos que Zenão era defensor da unidade e da imobilidade, como atestam
seus argumentos da flecha e da tartaruga, dos quais falamos no primeiro capítulo, no
momento em que o apresentamos. Contudo, agora podemos notar que, embora
defendesse a unidade e a imobilidade, Zenão o fazia de forma paradoxal, levando-nos a
entrar em total desacordo com nossas percepções sensíveis, donde as mesmas coisas
poderiam ora parecer unas, ora parecer múltiplas, ora em movimento, ora em repouso.
71
“Aristóteles disse que Zenão foi o inventor da dialética, como Empédocles da retórica”. (DK 29A1) Na
origem da filosofia grega o uso do termo dialética se referia a arte da discussão (COLLI, 2006, pág. 27)
nada incomum em uma cultura como a grega, que manifestava “uma tendência particular pela discussão
por ela mesma” (COLLI, 2006 pág. 28). Assim, a dialética dita zenoniana aparece geralmente associada à
disputa e a contradição.
114
Dito isso, retornemos a Platão. Após anunciar o que, segundo ele, constitui o
éthos eleático, ou seja, a tese de que o Todo é um único ser, o Estrangeiro continua a
sua lista e diz, por fim, que posteriormente houve quem buscasse combinar as duas teses
e assumir que “o ser é ao mesmo tempo uno e múltiplo, mantendo-se a sua coesão pelo
ódio e pela amizade”. Ao dizer isso provavelmente referia-se a Empédocles, mas
atribuiu este pensamento a “certas musas da Jônia e da Sicília”. Finda essa lista,
podemos observar que, com exceção dos chamamos eleatas, todos falaram do ser
através da multiplicidade, ora assumindo-a completamente, ora buscando relacioná-la à
unidade. Os que trataram do ser apenas como uno o fizeram, em acordo com
Parmênides, para pensá-lo absolutamente, sem nenhuma alteridade, como ordena o
principio de identidade. Por isso, consideraram o ser um todo indivisível e imóvel.
“Todo”, porque não há algo de outro que não ele, então deve ser inteiro e homogêneo;
“indivisível”, porque caso se dividisse isso geraria a multiplicidade, e nem a
multiplicidade nem a geração são admitidas por Parmênides no caminho do ser. A
“imobilidade” por sua vez, embora não esteja presente no enunciado platônico que
define o ethos eleático, é também trabalhada por eles, pois é necessária ao “ser” para
que ele seja constante, e além disso não haveria outro lugar para o qual o “ser” pudesse
se locomover, pois não há nada para fora dele. Vimos tudo isso com Parmênides no
capítulo anterior. Agora, porque assumimos que essas teses estão imbricadas, são
codependentes, podemos dizer que resumi-las na associação entre ser, unidade e
totalidade é algo legitimo, pois a partir dessas noções podemos chegar a todas as outras.
Assim como agora chegamos a necessidade da “imobilidade”. Entretanto, há uma razão
especial para Platão privilegiá-las: ele precisa reformular a linguagem de Parmênides
para admitir a existência do não-ser, e consequentemente da alteridade, da
multiplicidade e do movimento, mas sem, no entanto, perder a conquista parmenídea da
unidade que permite que as coisas sejam nelas mesmas, e por isso torna possível
“nomear acertadamente” e conhecer a verdade. Podemos, então, dizer que embora a tese
segundo a qual “o todo é um único ser” seja muito antiga, e possa estar presente entre
filósofos que não são considerados eleatas, e mesmo entre os eleatas não pode sempre
ser tomada “ao pé da letra”, reuni-los em torno de tal tese, considerando a relação entre
ser, unidade e totalidade a partir dos problemas da linguagem, não deve ser considerado
uma invenção arbitrária.
115
Retornando ao texto platônico, na sequência da apresentação das doutrinas dos
antigos, o Estrangeiro inicia sua investigação sobre o ser citando primeiro o método que
usará e, logo em seguida, a confusão feita por aqueles que admitem que o ser é múltiplo:
“Aí esta, pois, ao que creio, o método que se impõe a nossa pesquisa. Nós os
suporemos presentes, pessoalmente, e lhes proporemos estas perguntas: “que
devereis vós todos, para quem o Todo é o quente e o frio ou algum par desta
espécie, entender por esse vocábulo que aplicais ao par quando dizeis que
tanto o par como cada um de seus termos ‘é’? Que pretendeis fazer-nos
entender por esse ‘é’? Devereis nele ver um terceiro termo somado aos dois
outros, ou deveremos, segundo acreditais, admitir que o Todo é três, e não
mais dois? Pois se chamardes de ser a um dos dois, não podeis mais dizer que
os dois igualmente ‘são’; e nesse caso, teríamos em rigor, uma maneira dupla
de fazer com que apenas um seja, mas nenhuma maneira de fazer com que
dois ‘sejam’(...) Seria, pois, ao par, que pretendes chamar de ser? (...) Mas
então, amigo (...) ainda nesse caso se afirmaria muito claramente que dois é
um”. (PLATÃO, O Sofista, 243d 244a).
“Bem, pelo nome de ser entendes vós alguma coisa? (...) E sendo essa coisa o
mesmo que o uno, empregais dois nomes para um mesmo e único objeto, ou,
que deveremos nós pensar?” (PLATÃO, O Sofista, 244 b-c).
No livro I de sua Física, Aristóteles inicia sua crítica aos eleatas do mesmo
modo: acusando-os de tomar “ser” e “um” equivocamente, como se fossem dois nomes
para a mesma coisa (ARISTÓTELES, Física I, 1 184b). Façamos uma pequena
digressão para conferir o que ele diz sobre isso.
116
dizer uma qualidade, uma quantidade ou uma substância, e se ao dizer “um” ele queria
dizê-lo enquanto contínuo, indivisível ou como a unidade significativa de uma
definição. Ao fazer essas distinções, ele mostra que nenhuma delas pode ser assumida
por si só como uma unidade absoluta. Pois no caso do “ser”, tanto a qualidade como a
quantidade só podem ser se atreladas a uma substância, o que já implicaria uma
multiplicidade. E se adotássemos a substância como o único sentido de “ser”, ela
também não poderia estar articulada a nada de outro, e então seria completamente
indiferenciada. No caso de assumirmos a continuidade como sendo a única coisa que é,
sua divisibilidade ao infinito levaria a multiplicidade. No caso da indivisibilidade, o
resultado seria novamente a indeterminação, visto que nada poderia ser uma quantidade
ou uma qualidade. E no caso de tudo o que é ser “um” pela definição, a consequência
seria novamente a impossibilidade de diferença e articulação. Assim, se tomássemos o
homem como “ser”, dizer que o homem é branco seria o mesmo que dizer que o homem
é não-homem.
Além da acusação de que a premissa que diz “o ser é um” seria falsa,
Aristóteles quer mostrar também que o argumento do qual Parmênides se utiliza não é
válido. Para tanto, ele diz:
Aristóteles não pode aceitar que tudo o que tem o mesmo significado seja uma
coisa só. Contra isso, seu argumento acima citado nos mostra que mesmo se existisse
apenas o branco, com um único significado, seriam muitos os brancos, pois se o branco
fosse uma continuidade ele “se aplicaria a uma multiplicidade de coisas não contínuas
117
entre si, como uma parede e um cavalo” (ANGIONI, L. 2009, pág. 100). E isso
implicaria em uma “espécie de fragmentação semântica do branco” (ANGIONI, L.
2009, pág. 100). Além disso, mesmo que não houvesse coisas não contínuas, ou seja,
que houvesse apenas o branco, “haveria uma diversidade entre o ser branco e o ser uma
coisa que tem a propriedade de ser branca” (ANGIONI, L. 2009, pág. 100). Entretanto,
essa última parte do argumento pressupõe uma teoria da predicação que não poderia ter
sido conhecida por Parmênides. Além disso, o exemplo escolhido por Aristóteles (o
branco) corresponde dentro da linguagem de suas próprias categorias a um acidente, ou
seja, a algo que necessariamente deve ser dito de algo, e, assim, deve funcionar como
um predicado. No entanto, nos parece que o que Aristóteles pretende com isso é nos
mostrar que é necessário distinguir, por um lado, o “ser”, e por outro, as coisas que têm
a propriedade de “ser”. Mas como o próprio Aristóteles diz “Parmênides ainda não tinha
percebido isso” (ARISTÓTELES, Física, I, 186a 30-31), ou seja, ele não falava por
intermédio dessas categorias.
Retornando a Platão, veremos que a distinção entre o nome que se aplica ao ser;
e o nome que se atribui a ele como seu predicado, tem seu início neste momento,
quando o Estrangeiro de Eléia analisa a tese atribuída por Platão ao eleatismo. As
categorias usadas por Aristóteles, e sistematizadas a partir dessa distinção – qualidade,
quantidade, substância, continuidade, divisibilidade, quididade – começam a ser
discutidas aqui, donde temos que: de Parmênides a Aristóteles, passando pelas
descobertas platônicas, podemos observar um gradual desenvolvimento das categorias e
de toda a teoria da predicação.
Assim, o Estrangeiro nos diz que se fosse o caso de “ser” e “um” serem dois
nomes para a mesma coisa, então eles deveriam significar a mesma coisa e não haveria
multiplicidade. Mas, ao mesmo tempo, se além da unidade há o ser, deve haver
multiplicidade ao menos porque existem esses dois nomes. Donde “admidir que há dois
118
nomes quando se acabou de afirmar que só existe o Uno, e nada mais, é um pouco
ridículo” (PLATÃO, O Sofista, 244c). Contudo, isso provoca o questionamento quanto
a existência e a natureza do nome. Então, o Estrangeiro nos mostra que afirmar que o
nome é diferente da coisa é dizer que há duas coisas: o nome (que existe apenas no
âmbito da linguagem e representa a coisa para significá-la) e a coisa (o objeto sensível
significado pelo nome). Por outro lado, afirmar que o nome é idêntico a coisa é
necessariamente afirmar que há apenas a coisa, e nesse caso o nome não significa nada,
ou é a coisa que não passa de nome, e assim o nome é, na verdade, idêntico ao próprio
nome. Se for esse o caso, “o nome só será nome de um único nome e de nenhum outro”.
A partir disso o estrangeiro conclui que: “sendo o uno, unidade apenas de si mesmo, não
será, ele mesmo, se não a unidade de um nome” (PLATÃO, O Sofista, 244d). Com essa
frase, separa-se, por um momento, o nome e o significado de “unidade” de todas as
demais coisas.
119
garantir a inteireza de cada coisa com ela mesma, para que possam ser pensadas como
“algo”, mas não pode admitir uma inteireza absoluta que impede a relação, pois desse
modo não avançaria no desenvolvimento da linguagem que pretende operar.
Por outro lado, dividir é justamente o método adotado por Zenão para negar o
movimento e a articulação das partes. Por isso, Platão não apenas deve admitir a divisão
de partes de uma dada totalidade (hólon), como também deve assumir “uma unidade
que se sobreponha ao conjunto de suas partes” e que seja “não apenas total, mas
também una” (PLATÃO, O Sofista, 245a). Ora, a unidade entendida como se
sobrepondo a um conjunto, e não apenas a uma totalidade indivisível, torna possível a
relação. Por outro lado, prejudica a definição própria a esse mesmo conceito, donde o
Estrangeiro diz:
“Mas, o que assim é não pode ser em si mesmo o próprio Uno, não é? (...)
Porque o verdadeiro Uno, corretamente definido, só pode ser absolutamente
indivisível. (...) E um Uno assim constituído de várias partes não
corresponderia, absolutamente, a esta definição” (PLATÃO, O Sofista, 245a-
b).
Com isso, após isolar a unidade em seu nome e significação, ou seja, em seu
conceito, o Estrangeiro quer sobrepor essa unidade a uma totalidade divisível, para
poder identificá-la ao todo compreendido como “um algo”. Mas isso tornaria a própria
unidade divisível, e consequentemente múltipla, prejudicando-a em sua definição.
Entretanto, se distinguíssemos essa unidade relativa e divisível, própria ao todo, da
unidade enquanto definição, e aceitássemos aplicá-la ao ser, então, o ser não poderia ser
idêntico ao uno, enquanto tal. Assim, dizer que o ser é um todo, implicaria dizer que há
uma totalidade (divisível e múltipla) maior que o um. (PLATÃO, O Sofista, 245b).
Desse modo, se admitíssemos que o ser é um todo, não poderíamos admitir que ele é, ao
mesmo tempo, uno. Por outro lado:
“Se, pois, o ser não é o Todo, em virtude desse caráter de unidade que
recebeu do Uno, e se o Todo absoluto existe em si mesmo, segue-se que o ser
falta a si mesmo”. (PLATÃO, O Sofista, 245c).
120
Assim, se o ser fosse um todo (múltiplo) ele não poderia ser uno. Mas como é
possível ser mais de um sem antes ser um? Além disso, haveria também o problema de
que estamos falando do ser, e não dos seres, de forma que, sem o um, nem o ser nem o
todo poderiam ser. Por outro lado, se o ser fosse uno não poderia ser todo, donde se o
todo existisse mesmo assim, o ser se faltaria e não poderia ser. Mas se o todo não
existisse, a unidade também não poderia existir, porque “o que não for um Todo não
poderá ter nenhuma quantidade, pois o que tiver alguma quantidade, seja ela qual for,
necessariamente a terá como um todo” (PLATÃO, O Sofista, 245d). O Estrangeiro
conclui, então que: “surgirão, em cada caso, milhares e intermináveis dificuldades a
quem definir o ser como um par ou como uma unidade” (PLATÃO, O Sofista, 245 d-e).
Dizer que o ser é um todo único, tomando por todo algo inteiro, homogêneo e
indivisível, é negar toda possibilidade de diferença, multiplicidade e relação. Isso teria
por consequência a impossibilidade de até mesmo pronunciar tal tese, uma vez que ela é
dita através da articulação de diferentes nomes. Por outro lado, se o todo for tomado
como algo divisível, e consequentemente múltiplo, então a tese eleática mostra-se
insuficiente para explicar como devemos articular unidade e multiplicidade Assim, após
mostrar todos os problemas da tese atribuída ao eleatismo, o Estrangeiro de Eléia afirma
que “não é nada mais fácil dizer o que é o ser do que o que é o não-ser” (PLATÃO, O
Sofista, 246a). Precisa, então, continuar a sua investigação do ser até que possa
encontrar um maneira de compreendê-lo, para que também possa compreender o não-
ser, e por fim possa descobrir como eles se relacionam.
Antes que sigamos o Estrangeiro em sua análise das demais teorias, é preciso
reiterar que não consideramos a refutação da tese parmenídea como um abandono de
Platão ao eleatismo. Ao contrário, acreditamos que ele quer levar à frente o projeto de
Parmênides, e desenvolver uma linguagem capaz de nos permitir julgar, decidir, pensar
e dizer o ser com verdade. Com isso, discutir a relação entre ser, uno, e todo é algo
necessário ao desenvolvimento da linguagem. Como vimos, mesmo Aristóteles, quando
busca aplicar as categorias da linguagem desenvolvidas por ele em uma ciência da
natureza, precisa começar discutindo a equivocidade entre ser e um. Porém, para que
Platão possa iniciar essa tarefa, sem cair em contradições, é preciso reconhecer que o ser
é muito mais que um efeito da linguagem, e que a linguagem apenas pode se
fundamentar no ser porque o ser é o fundamento de tudo. O ser é fundamento do que
121
aparece na physis, como matéria sensível, múltipla e em devir, e também do que é
invisível e pertence ao âmbito intelectivo das formas de pensamento imóveis e unas.
122
III.IV - As descobertas platônicas: é preciso querer tudo ao mesmo tempo, a
unidade e a multiplicidade, o repouso e também o movimento, mas é preciso saber
articulá-los corretamente.
Esta sessão tem por objetivo apontar o caminho que Platão começa a construir
quando abandona as regras criadas por Parmênides para linguagem. A partir desse
momento, ele seguirá seu estudo sobre o ser com base nas teorias antigas, até descobrir
meios de legitimar novas formas de articulação na linguagem: estabelecendo os gêneros
supremos - ser, movimento, repouso, mesmo e outro - como estruturas fundamentais da
linguagem e indicando qual ciência é capaz de ordenar as articulações entre eles: a
dialética. Feito isso, Platão poderá resignificar a noção de não-ser, compreendendo-a, a
partir da comunidade do ser com o outro, enquanto alteridade. Todas essas questões
apresentam grande complexidade, e não poderemos aprofundá-las aqui. Nosso objetivo
é simplesmente apontar o caminho das soluções platônicas para as questões levantadas
por Parmênides e pelos sofistas. Nos interessam principalmente as questões que dizem
respeito à teoria da predicação e ao problema do falso no discurso, que põe em risco a
possibilidade de falar sobre o ser com verdade.
Os materialistas são ditos acreditarem que apenas existe o que tem corpo,
enquanto os amigos das formas recusam aos corpos o ser, e vêem neles apenas um
móvel devir, assumindo que o ser verdadeiro diz respeito a certas formas inteligíveis e
incorpóreas. Para contestá-los, visando a necessidade de articular o que é corpóreo com
o que é incorpóreo, o Estrangeiro sugere uma definição provisória de ser:
Após sugerir essa definição, que é aceita por Teeteto, representando os amigos
das formas, o Estrangeiro associa os amigos das formas aos estáticos, porque ambos
separam o devir do ser. Para os amigos das formas, é pela alma e por meio dos
123
pensamentos que estamos em comunhão com o ser, que é idêntico a si mesmo e
imutável. Por outro lado, eles acreditam que o corpo e as sensações nos colocam em
relação com o devir. Com base nisso, e na definição de ser acima proposta, o
Estrangeiro questiona a tese dos estáticos e amigos das formas dizendo que: se eles
concordam que a alma conhece e o ser é conhecido, e se admitem que conhecer é agir, a
consequência inevitável é que o objeto a ser conhecido sofre ação. Pela mesma razão o
“ser”, ao ser conhecido pelo ato de conhecimento, será movido, e não poderá ser
conhecido se sempre se mantiver em repouso. (PLATÃO, O Sofista 248e). Dito isso, o
Estrangeiro nos mostra que “se os seres são imóveis, não há inteligência em parte
alguma, em nenhum sujeito e para nenhum objeto”. (PLATÃO, O Sofista, 249b). Mas
ele não pode aceitar isso:
Assim, será necessário admitir que há ser no devir, uma vez que é preciso
reconhecer o ser no que move e no que é movido. Mas, por outro lado, se admitimos
que tudo está em movimento, então estaremos pondo em risco a existência da própria
inteligência, pois a inteligência necessita de alguma permanência para que possa ser.
Assim, aqueles que prezam pela ciência, pela inteligência e pelo pensamento claro,
devem
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movimento, não estivesse em repouso, e algo que não estivesse em repouso também não
se encontrasse em movimento? Esse problema traz consigo a necessidade de investigar
como uma única e mesma coisa pode ser designada por uma pluralidade de nomes.
(PLATÃO, O Sofista 251a).
Assim, a investigação do ser finalmente leva Platão ao momento em que terá que
desenvolver sua teoria da predicação. Será preciso descobrir como e em que medida as
coisas podem se articular; apresentar os elementos fundamentais que permitem as
articulações; e a ciência capaz de distinguir o que pode e o que não pode se relacionar.
A partir disso, nos conta que há quem defenda que somente é possível chamar de
bom o bom, e de homem o homem, e a esses critica duramente. Isso porque não admitir
a articulação tem como consequência o impedimento da linguagem, e assim, do
pensamento, da fala e do conhecimento. De acordo com essa perspectiva nem mesmo o
nome poderia significar, pois não poderia haver um pequeno discurso que lhe servisse
como definição. O Estrangeiro decide, então, não discutir apenas com esses
contentadores e colocar a questão para todos os que falaram sobre o ser. Diz ele:
125
Assim, a segunda hipótese também é excluída. Com isso, assume-se como verdadeira
apenas a hipótese que afirma que “há algo que se presta e algo que não se presta a
mútua associação” (PLATÃO, O Sofista, 252e).
Ao assumir que há a comunidade entre nomes e coisas diferentes, mas que eles
não se associam sempre e nem de qualquer maneira, o Estrangeiro nos leva a pensar
que, assim como há a necessidade da arte da gramática, para que possamos articular
corretamente as letras, e da arte da música, para que possamos saber quais sons
combinam entre si e quais não combinam, do mesmo modo, há também a necessidade
de que haja uma ciência capaz de nos orientar quanto a associação dos gêneros no
discurso. “Dividir assim por gêneros, e não tomar por outra, uma forma que é a mesma,
nem pela mesma uma forma que é outra, não é essa, como diríamos, a obra da ciência
dialética?” (PLATÃO, O Sofista, 253a).
Ao encontrar a dialética, o estrangeiro diz que, eles que procuravam pelo sofista,
acabaram por descobrir o filósofo (PLATÃO, O Sofista, 253c). Nesse momento, o
Estrangeiro afirma que o filósofo, assim como o sofista, é difícil de ser visto com
clareza, mas não pelos mesmos motivos:
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articulação entre os gêneros é o caminho assumido por Platão como o caminho do ser,
capaz de levar à verdade. Mas que gêneros são esses?
Quando falava sobre a necessidade das artes, como a gramática e a música, para
orientar a articulação, das letras e dos sons, o Estrangeiro deu o exemplo das vogais.
Segundo ele, “as vogais certamente se distinguem das outras letras, pelo fato de
circularem como laços através de todas; além disso, sem uma delas é impossível que as
outras se combinem uma a uma” (PLATÃO, O Sofista, 253a). Com esse exemplo o
estrangeiro adianta o que são os gêneros supremos: tratam-se das formas fundamentais
que “circulam como laços” através de todas as outras e que possibilitam a combinação
entre elas (PLATÃO, O Sofista, 254c).
Esse mesmo raciocínio nos mostra que o movimento é “ser” e “não-ser”. É “ser”
porque participa do “ser”, e é “não-ser” porque não é o “ser” enquanto tal, nesse sentido
é “outro” que não o “ser”.
127
não ser. Assim, universalmente, por essa relação, chamaremos a todos,
corretamente, não-ser; e ao contrário, pelo fato de eles participarem do ser,
diremos que são seres” (PLATÃO, O Sofista, 256 b c).
“Quando falamos no não-ser isso não significa, ao que parece, qualquer coisa
contrária ao ser, mas apenas outra coisa qualquer que não o ser (...) Não
podemos, pois, admitir que a negação signifique contrariedade, mas apenas
admitimos nela alguma coisa de diferente. Eis o que significa o “não” que
colocamos como prefixo dos nomes que seguem a negação, ou ainda das
coisas designadas por esses nomes” (PLATÃO, O Sofista, 257 b c).
Assim, Platão desenvolve uma estrutura de linguagem capaz de admitir que o ser
em certa medida não é. Não é, todas as vezes em que participa de outra forma, como por
exemplo o gênero do movimento, que não é o mesmo que o ser. Também não é, quando
participa diretamente do outro. Mas, ao mesmo tempo, e pelos mesmos argumentos, ele
não deixa de ser, pois é o ser quem participa do que lhe é diferente. Assim, quando
dizemos que o não belo é uma parte do outro que se diferencia diretamente do belo,
estamos admitindo que o não-belo é um ser que separamos do gênero outro e opomos ao
gênero belo, que por sua vez também participa do ser. Assim, “o não-belo se reduz, pois
a uma oposição determinada de ser a ser” (PLATÃO, O Sofista, 257e). Do mesmo
modo, devemos considerara que o não-justo “é” tanto quando o justo. “O mesmo se dirá
de todo o resto, pois que a natureza do outro, pelo que vimos, se inclui entre os seres; e
se ela é, é necessário considerar as suas partes como seres pela mesma razão que o que
quer que seja” (PLATÃO, O Sofista, 258a).
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definir o não-ser como alteridade do ser não é dizer que ele é ao mesmo modo do ser
enquanto tal. Trata-se de uma relação.
“Há uma associação mútua dos seres. O ser e o outro penetram através de
todos e se penetram mutuamente. Assim, o outro, participando do ser, é, pelo
fato dessa participação, sem no entanto, ser aquilo de que participa, mas o
outro, e por ser outro que não o ser, é, por manifesta necessidade não ser. O
ser, por sua vez, participando do outro, será pois, outro que não o resto dos
gêneros. Sendo outro que não eles todos, não é, pois, nenhum deles tomado à
parte, nem a totalidade dos outros, mas somente ele mesmo; de sorte que o
ser, incontestavelmente, milhares e milhares de vezes não é, e os outros, seja
individualmente, seja em sua totalidade, são sob múltiplas relações, e, sob
múltiplas relações não são”. (PLATÃO, O Sofista, 259a).
129
que modo é possível distinguir o falso e o verdadeiro no discurso. Para realizar tal
tarefa, O Estrangeiro de Eléia chega, em fim, aos problemas da predicação.
“Se ele não se associa, segue-se necessariamente que tudo é verdadeiro. Mas,
uma vez que a ele se associe, então, a opinião falsa e o discurso falso serão
possíveis. O fato de serem não-seres o que se enuncia ou se representa, eis o
que constitui a falsidade, quer no pensamento, quer no discurso. (...) Ora, se
há falsidade há engano. (...) E desde que há engano, há em tudo,
inevitavelmente, imagens, cópias e simulacros. (...) Ora, como dissemos, é
exatamente neste abrigo que o sofista se refugiou, e, uma vez ali, negou
obstinadamente a própria existência da falsidade...” (PLATÃO, O Sofista 260
b-d).
Para verificar que tipo de sequência faz sentido, o Estrangeiro separa dois
gêneros de sinais através dos quais exprimimos vocalmente o ser: os nomes e os verbos
(ónoma e rhema). Já havíamos falado sobre essa distinção operada por Platão
anteriormente, no capítulo sobre Parmênides. Aqui, Platão nos diz que os nomes que
não estão associados com algum verbo não formam um discurso. O discurso é, então
definido, como uma combinação que, no mínimo, articula um nome e um verbo, sendo,
por exemplo “o homem aprende”, um discurso breve, que, por isso, pode ser
considerado simples e primeiro. (PLATÃO, O Sofista, 262c). Assim, mesmo o discurso
mais simples e breve é sempre sobre alguma coisa. Este é um momento fundamental. A
partir daqui, o Estrangeiro pede a Teeteto que diga, sobre os seguintes discursos, a
propósito de quem e sobre o que eles discorrem: “Teeteto está sentado” e “Teeteto, com
quem agora converso, voa”. Ambos são discursos breves que Teeteto reconhece como
sendo a propósito dele e sobre ele. (PLATÃO, O Sofista, 263a). Temos, então, uma
primeira distinção entre sujeito e predicado.
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“Na medida em que Teeteto é nomeado, em que é, se preferirmos, o sujeito
do discurso, então trata-se de um lógos ‘de Teeteto’ (no genitivo de pose sem
preposição), mas na medida em que se trata de um predicado, ‘voa’ ou ‘está
sentado’, que fazemos gravitar em torno de Teeteto, trata-se ao mesmo tempo
de um lógos ‘a propósito de Teeteto’ (peri e o genitivo)”. (CASSIN, B. 2005,
pág.42).
Com isso, o Estrangeiro assume que uma opinião é uma afirmação ou negação
que fazemos em um discurso com nossa própria alma, de forma totalmente apartada do
âmbito sensível; ou, pode ser também uma afirmação ou negação que fazemos por
intermédio das sensações, quando uma sensação é espelhada, ou tornada imagem no
131
discurso. Assim, o discurso é o meio pelo qual expressamos, silenciosamente ou através
de sons, nossas opiniões, que podem ser o resultado de um pensamento, mas também
podem estar combinadas às sensações, e se for esse o caso, nosso discurso não será um
puro diálogo da alma com ela mesma, mas terá um caráter de imagem, de representação,
e será o resultado de uma percepção sensível. A imaginação é, então, uma opinião,
afirmativa ou negativa, acerca de uma sensação. Essa perspectiva permite articular o
discurso às sensações mantendo a separação feita por Parmênides entre o âmbito
intelectivo, do pensamento puro, e o âmbito sensível. Assim, Platão ganha a
possibilidade de investigar novamente as coisas que se manifestam na physis (que se
dão a perceber), sem que para isso tenha que sacrificar o conhecimento adquirido no
âmbito intelectivo. É essa possibilidade de articular sensível e inteligível, sem confundi-
los, que permite a existência de discursos falsos e verdadeiros, e também a distinção
entre eles. Mais tarde, com Aristóteles, a noção de verdade encontrará entre suas
possíveis definições a adequação entre o intelecto e as coisas. Promover essa adequação
foi exatamente o que o Estrangeiro pediu que Teeteto fizesse, para distinguir entre as
afirmações de que ele estava sentado e de que ele voa qual delas era a verdadeira.
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tornar possível a articulação entre movimento, repouso, unidade, multiplicidade,
sensível e inteligível, sem que para isso tenha que aceitar qualquer discurso como
verdadeiro. Dito de outra maneira, Platão visa recuperar a possibilidade de falar sobre a
physis, sem que essa fala esteja condenada a nunca levar a verdade, como dizia
Parmênides. Ele acredita que através da dialética é possível de fato conhecer a verdade
de um discurso, independente desse discurso articular sujeito e predicado em âmbito
inteligível ou sensível.
Visto dessa maneira, não acreditamos, como Platão, que os sofistas devem ser
distinguidos dos filósofos. Ao contrário, nos parece que a sofística desenvolve uma
filosofia que, apesar de dirigir o poema de Parmênides para uma leitura oposta à leitura
platônica, é fundamental ao platonismo. Ao que nos parece, Platão, apesar de querer
diferenciar-se dos sofistas, pelas discordâncias éticas nas quais implicam ambas as
teorias, reconhece a importância filosófica dos mesmos. Assim, podemos dizer que
tanto os sofistas como Platão são filhos legítimos de Parmênides, e nesse sentido, estão,
de igual modo, imersos na tradição eleática. Por isso, a recepção platônica do eleatismo
é, a um só tempo, a recepção de Parmênides; de seus sucessores imediatos: Melisso e
Zenão; e dos sofistas, dentre os quais Górgias e Protágoras se destacam.
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Conclusão:
Este trabalho nos levou a considerar a Escola Eleática como uma tradição de
pensamento que investiga a noção de “ser” de forma intimamente relacionada a
investigação da linguagem. No entanto, vimos que a investigação do “ser” tem sua
origem junto a própria história da filosofia, e mesmo antes, com tradição poética. Na
poesia antiga, assim como entre os primeiros filósofos da natureza, o “ser” era
compreendido como a própria physis. Por isso, logo no início da filosofia, as primeiras
cosmologias passaram a considerar a physis diretamente, visando esclarecê-la sem o
necessário intermédio das figuras mitológicas divinas. Isso culminou, com Heráclito,
em um uso da linguagem que trazia em si todas as ambiguidades da physis. Tratava-se
de um lógos katà physin.
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defender a mesma perspectiva e seu contrário acreditando em igual medida na validade
de ambas.
Este trabalho buscou apontar para a tarefa a ser realizada por Platão, observando
o caminho que as questões, que serão trabalhadas por ele, trilharam antes de alcançá-lo.
Acreditamos que o diálogo com os predecessores nos torna capazes de acompanhar os
problemas investigados de maneira orgânica, reconhecendo suas raízes. Nosso objetivo
é que essa perspectiva oriente o desenvolvimento de nossas pesquisas futuras, para que
possamos pensar a filosofia platônica sem perder de vista aquilo que ela mesma
reconhece como sua tradição.
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