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Introdução:

Uma Bússola

Todas as coisas são palavras lidas


Na língua em que Algo ou Alguém, noite e dia,
Escreve essa infinita algaravia
Que é a história do mundo. Em sua corrida

Passam Cartago e Roma, minha vida


Que não entendo, eu, tu, ele, a agonia:
Ser enigma, acaso, criptografia
E as vozes de Babel desentendidas.

Atrás do nome há o que não se cita;


Hoje senti sua sombra que gravita
Na lúcida agulha azul que circula

Leve, obstinada até o fim do mar


Com algo de relógio num sonhar,
E algo de ave dormida que tremula.

(O Outro, O Mesmo – Jorge Luis Borges)

Este trabalho tem por objetivo considerar a recepção platônica do eleatismo a


partir do diálogo O Sofista. Tais considerações têm um caráter de preparação. Trata-se
de reconhecer um campo que permite, ao mesmo tempo, articular diferentes momentos
da investigação do “ser”, no contexto de seu surgimento, e observar como essa
investigação implica em um gradual desenvolvimento da linguagem.

Escolhemos o poema de Borges, acima citado, para auxiliar-nos na introdução


de nossa questão, pelo seguinte motivo: ele nos fornece a imagem do ponteiro de uma
bússola, que aponta para um norte inacessível, associado ao nome, que indica algo para
além dele. Este algo, assim como o horizonte, que é, ele próprio, a definição, jamais
poderá ser conhecido enquanto tal, mas, ao mesmo tempo, é o que está por traz do
nome, fundamentando o seu sentido.

No início da história da filosofia, quando todo conhecimento era transmitido


pela poesia, o nome tinha o poder de tornar presente aquilo que ele indicava. Assim, ao
pronunciar um nome, estaríamos evocando aquilo que está por traz dele, e fazendo-o
aparecer na linguagem. Na narrativa poética, assim como entre os primeiros filósofos,
chamados de pensadores da natureza, o “ser” era compreendido a partir de seu
aparecimento na physis. Assim, podemos dizer que tudo o que é capaz de se manifestar
à nossa percepção é. “Ser”, nesse momento, significa fundamentalmente existir.

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Depois, com Parmênides, a investigação do “ser” é feita de forma direta, a partir
de um nome designado especialmente à indicá-lo: a palavra einai. Com isso,
Parmênides opera não apenas uma distinção em relação ao “ser” como aparecimento na
physis, mas, em certo sentido, uma ruptura com esse caminho de investigação. O “ser”
se torna o pensamento que conduz ao conhecimento da verdade. No entanto, nesse
segundo momento, a verdade diz respeito apenas às questões divinas, ou seja, questões
que o pensamento é capaz de formular para si mesmo, independente das percepções
sensíveis. O “ser” e a verdade estão completamente apartados tanto das contradições
próprias às opiniões dos mortais, quanto das considerações acerca do âmbito fisiológico.
Nessa perspectiva, é possível que um nome não signifique nada, que ele seja apenas
glossa, ou seja, um som sem sentido. Para que o nome realmente indique algo, ele
precisa estar fundamentado em um pensamento e em um discurso que se voltem apenas
sobre si. Nesse momento, quando o nome ganha seu sentido em um pensamento
argumentativo, e não mais narrativo, a noção de “ser” amplia sua possibilidade de
significação. Assim, a função existencial, e seu sentido, pode dar lugar a outras funções
sintáticas com diferentes implicações semânticas. Para determinar o significado de
“ser”, Parmênides apresenta, então, sinais, que podem ser compreendidos como
protocategorias da linguagem. A partir deles, podemos julgar e distinguir “ser” e “não-
ser”.

Em seguida, a investigação do “ser” é levada, pelos sofistas, a voltar-se


completamente para os interesses humanos. Nesse momento, não há nenhuma distinção
entre o âmbito puramente intelectivo e o âmbito das coisas sensíveis. Ou, em outras
palavras, não se separa o que o homem é capaz de dizer com base apenas em seu
raciocínio lógico, do que ele diz através de seus sentidos. Tudo é igualmente discurso, e
igualmente verdadeiro. Aqui “ser” e “não-ser”, e toda e qualquer acertiva, são um efeito
da linguagem, que é a única coisa que pode ser reconhecida como portadora de uma
realidade efetiva.

No momento seguinte, Platão recebe o eleatismo, ou seja, as questões


desenvolvidas por Parmênides e pelos sofistas, visando resolver os impasses por eles
criados, e reivindica, para si, a herança de Parmênides. Mas é preciso aprimorá-la, criar
um novo caminho de investigação do “ser” e da verdade. Por um lado, não é possível
seguir um caminho que negue a multiplicidade, o movimento e a diferença, sob pena de
sacrificarmos a linguagem, que é necessariamente articulação, e cairmos em inevitáveis

11
contradições. Por outro lado, também não podemos seguir um caminho que reduza a
distinção entre “ser” e “não-ser” à indistinção do “nada”, e que permita que a linguagem
diga qualquer coisa como se fosse verdade, pois não admite a existência do falso. É
preciso tornar a linguagem capaz de conhecer a verdade, e também a falsidade, não
apenas de um discurso restrito ao âmbito intelectivo, mas, também, daquilo que dizemos
com base em nossas percepções sensíveis.

Ao longo dessa investigação vão sendo descobertas, formuladas e desenvolvidas


as principais estruturas da linguagem. Platão nos mostra que a verdade do que dizemos
deve ser buscada no discurso, como dizia Parmênides, e não apenas nos nomes, e por
discurso entende a articulação mínima entre nome e verbo. Precisa, então, investigar de
que maneira nomes e verbos podem e não podem se articular. Para isso, apresenta os
gêneros supremos, que são as principais estruturas da linguagem, pois fundamentam
todas as articulações, e, apresenta também a dialética, a arte capaz de estabelecer
relações corretas entre os gêneros. Mas, os gêneros não dizem respeito apenas ao âmbito
lógico. Não são como os sinais do “ser” parmenídeo que se opõem à physis. Eles são
encontrados a partir de uma tentativa de conciliar todas as doutrinas antigas sobre o
“ser”, e, por isso, levam em conta também o devir. É preciso, então, refutar Parmênides
e descobrir uma maneira de articular “ser” e “não-ser”, assim como o âmbito inteligível
e o âmbito do devir, mas sem perder os ganhos dessas distinções, nem abdicar da tarefa
dada por Parmênides de julgar e decidir buscando a verdade.

Platão não pôde aceitar, como os sofistas, que “ser” e “não-ser” são efeitos da
linguagem, nomes de nomes. Para ele, o horizonte indicado pelo ponteiro da bússola é
verdadeiro. Mas, para que possamos seguir na direção correta, é preciso que o ponteiro,
os nomes articulados em um discurso, estejam bem regulados, ou seja, é preciso que
saibamos nos conduzir na linguagem.

Neste trabalho buscaremos compreender a Escola Eleática como uma tradição


que investiga o “ser” e a linguagem a partir da tese, apresentada por Platão como
própria ao eleatismo, segundo a qual há uma necessária imbricação entre as noções de
“ser”, “unidade” e “totalidade”. Para que possamos realizar tal tarefa dividimos nossa
pesquisa em três partes.

Nosso primeiro capítulo, intitulado “As Raízes do Eleatismo: todas as coisas são
chamadas a partir de um único ser”, tem por objetivo questionar como se dava a

12
investigação sobre o “ser” entre os primeiros filósofos da natureza. Nele serão
apresentadas algumas questões comuns à diferentes tradições de pensadores, com o
objetivo de compreender as diferenças e semelhanças de suas abordagens, e de que
maneira elas contribuem para a formação de um lógos katà physin.

Nosso segundo capítulo, “O Poema de Parmênides”, tem por objetivo investigar


o pensamento do filósofo central do eleatismo. Aqui serão abordadas questões
referentes à noção de ser enquanto einai, à separação entre sensível e inteligível, e ao
desenvolvimento de uma linguagem argumentativa, capaz de fornecer critérios e sinais
para um método de pensamento que visa alcançar à verdade.

Por fim, nosso terceiro capítulo tem por título: “As descobertas platônicas: é
preciso querer tudo ao mesmo tempo, a unidade e também a multiplicidade, o repouso e
também o movimento. Mas é preciso saber articulá-los corretamente”. Esse capítulo
visa apontar para o caminho que Platão desenvolverá após discutir a tese parmenídea e
os problemas que a levaram ter por consequência a sofística.

Ao nos propor percorrer este caminho, sabemos que estaremos lidando com
problemas inesgotáveis, e tão férteis quanto a própria linguagem. Cada um dos
momentos apresentados aqui poderiam ser discutidos à exaustão, e certamente um
trabalho que se detenha mais especificamente em cada um desses passos poderá
alcançar importantes reflexões. No entanto, este trabalho é movido por um objetivo
diferente. Buscamos descobrir o fio condutor capaz de articular as questões referentes
ao “ser” e ao desenvolvimento da linguagem, de forma a reconhecer a amplidão da
questão sem perder os seus contornos. Acreditamos que este fio pode ser encontrado na
investigação do que consiste a chamada Escola Eleática.

13
Capítulo I - As raízes do eleatismo: todas as coisas são chamadas a partir de um
único ser.

I.I – Apresentação dos filósofos eleatas.

Platão, ao longo de sua obra, reúne os filósofos Xenófanes 1 , Parmênides 2 ,


Melisso 3 , Zenão 4 e Górgias 5 sob o título de eleatas. A fim de investigar o que é o
eleatismo, faremos uma breve apresentação de cada um deles.

Sabemos sobre Xenófanes que foi rapsodo, poeta e filósofo e viveu no séc. VI
a.C. Por ser poeta, era seu papel contar as histórias sobre o surgimento do cosmos e
sobre a natureza dos deuses. Ao observar que as novas teorias cosmológicas e as
cosmogonias dos pensadores de Mileto se contrapunham aos ensinamentos da poesia
clássica que recitava, Xenófanes foi levado a questionar a teologia de Homero e
Hesíodo6. A partir daí desenvolveu reflexões críticas sobre a tradição poética que terão
grande importância no contexto do surgimento da tradição filosófica (CORNFORD, F.
1989). Suas considerações buscavam apontar as inconsistências da crença popular, e

1
“Uma gente de Eléia, começando a partir de Xenófanes...” PLATÃO, O Sofista, 242d.
2
“...trazemos um Hóspede, este aqui, natural de Eléia, do círculo de Parmênides e Zenão, um homem
realmente filósofo.” PLATÃO, O Sofista, 216 a.
3
Não encontramos uma citação direta ao nome de Melisso feita por Platão. Mas, quando no diálogo O
Sofista, Platão discute os problemas de ‘unidade’ e ‘totalidade’, ele faz uma referência ao poema de
Parmênides, interpretando o ser uno como algo material, corpóreo (PLATÃO, O Sofista, 244e). Essa é
justamente a leitura desenvolvida por Melisso. Néstor Cordero defende essa interpretação em seu artigo
L’invention de l’ecole eleatique – Platon, Sophiste, 242D (CORDERO, N. 1991). Neste artigo, Cordero
assume que, de acordo com os critérios oferecidos por Platão na passagem presente no título de seu
artigo, Melisso seria o único filósofo que, de fato, pode ser considerado eleata. Assim, mesmo que não
tenhamos encontrado seu nome, encontramos sua filosofia citada por Platão. De qualquer forma, Melisso
será citado entre os eleatas tanto por Aristóteles (ARISTÓTELES, Física, I, 1, 184b-16 e Metafísica, A, 5,
986b-20), como no famoso tratado do anônimo, conhecido como pseudo-Aristóteles, sobre Melisso,
Xenófanes e Górgias.
4
Além de sempre ser citado junto a Parmênides, tanto no Sofista (ver referência 2) como no próprio
Parmênides (“...vieram para as Grandes Panatenéias Zenão e Parmênides”. PLATÃO, Parmênides,
127b), também é provável que ‘Palamedes de Eléia’ seja um modo usado por Platão para se referir a
Zenão (“E do Palamedes de Eléia, não sabemos ter sido de tão arrebatadora eloquência, que as mesmas
coisas pareciam aos seus ouvintes iguais ou dessemelhantes, unas e múltiplas, em repouso e em
movimento?” PLATÃO, Fedro, 261d).
5
Assim como Melisso, Górgias não é citado nominalmente por Platão como pertencente ao ethos
eleático, mas, como podemos ver na referência que faz ao Palamedes de Eléia (citada imediatamente
acima), Platão encaminha a questão do eleatismo para uma discussão com a retórica e com a sofística. Em
fontes importantes ao estudo do eleatismo, como o tratado De Melisso, Xenófanes e Górgias, ele está
presente. Além disso, no Tratado do Não-Ser de Górgias, que pode ser pensado como um espelho
invertido do poema de Parmênides (CASSIN, B. 1980, págs. 43-44), encontra-se a afirmação de que o
não-ser é. Tal afirmação será tomada, por Platão, como característica ao sofista, e será investigada, pela
personagem “Estrangeiro de Eléia”, no mesmo livro em que Platão discute a tese de Parmênides sobre o
ser, o diálogo O Sofista.
6
“Desde o princípio todos têm aprendido segundo Homero (DK B10) “Homero como Hesíodo atribuíram
aos deuses/ tudo quanto entre os homens é infâmia e vergonha/ roubar, raptar e enganar mutuamente”.
(DK B11).

14
também das representações dos deuses baseadas nas particularidades de cada etnia 7 .
Também buscou refletir de maneira construtiva, buscando soluções para as questões que
levantou.

No âmbito da teologia, considerou a existência de um deus ingênito, imóvel,


inteiro e perfeito8. No âmbito da cosmologia, partiu da terra para compreender a physis9.
Contudo, não apenas terra, mas terra e água eram, segundo ele, os princípios
responsáveis pela geração e corrupção, bem como por todo tipo de movimento que
observamos no mundo10. Porém, a existência de princípios cosmológicos na filosofia de
Xenófanes encontra muitas controversias entre os comentadores, pois ela não se
identifica com sua doutrina que postula um deus ingênito e incorruptível. A contradição
se agrava para aqueles que, da inteireza atribuída por Xenófanes ao deus, inferem que
“sendo similar em todas as direções ele é esférico” (Pseudo-ARISTÓTELES, De
Melisso, Xenófanes e Górgias, A28). Isso porque, Xenófanes teria afirmado que o
“...limite da terra para cima é visto a nossos pés beirando o ar, para baixo atinge o
ilimitado (apeiron)”(DK B 28). Também teria dito que “(...) a terra é infinita e não está
rodeada nem pelo ar nem pelo céu”, e que “há sóis e luas de número infinito” (Hipólito
I. 14, 3)11, donde se presume que a terra seja ilimitada para os lados. Nesse caso não
seria possível conceber o mesmo cosmos como sendo ao mesmo tempo um deus
esférico, ingênito e imóvel e a terra de comprimento ilimitado e mãe de todo o devir. Ao
que nos parece, não há necessariamente uma contradição, mas uma simples diferença
entre o âmbito cosmológico e o teológico. A contradição apena existe se insistirmos em
7
“Os etíopes <dizem que seus deuses> são negros de nariz chato /Os trácios <dizem serem> de olhos
verdes e ruivos” (DK B16) “Mas se tivessem mãos os bois, <os cavalos> e os leões, quando pintassem
com as mãos e compusessem obras como os homens, cavalos como cavalos, bois semelhante aos bois
pintariam a forma dos deuses e fariam corpos tais como fosse o próprio aspecto <de cada um>”. (DK B
15).

8
“Os mortais acreditam que os deuses são gerados, que como eles se vestem e tem voz e corpo”. (DK B
14).
“Um único deus, entre deuses e homens o maior, em nada semelhante aos mortais, nem no corpo nem no
pensamento”. (DK B23) “Inteiro vê, inteiro pensa, inteiro também escuta” (DK B24) “Mas sem esforço
tudo vibra com o coração do pensamento”. (DK B25) “Sempre no mesmo permanece, não se move, nem
lhe convém sair ali e acolá” (DK B26).
9
“Pois da terra tudo se gera e na terra tudo se encerra”. (DK B27)
10
“Terra e água é tudo quanto surge e desabrocha”. (DK B 29), “Pois todos nascemos da terra e da água”
(DK B33). “Xenófanes pensa que está a processar-se uma mistura de terra com o mar, e que, com o
tempo, a terra será dissolvida pela umidade (...). Toda a espécie humana é destruída, sempre que a terra é
arrastada para o fundo do mar e em lodo se converte; então, uma outra geração recomeça, e todos os
mundos tem esse tipo de princípio”. (HIPÓLITO, DK A33).

11
Cfr. KIRK, S.; RAVEN, J. , SCHOFIELD, M., 2008, pág. 178.

15
identificar os dois, e se quisermos exigir de Xenófanes uma precisão sistemática que
não condiz com o que os fragmentos que chegaram até nós atestam sobre seu
pensamento.

Ao que nos parece, o próprio Xenófanes testemunhou os limites de sua


capacidade de alcançar e expressar o que fosse de fato certo sobre o real, tanto com
relação à teologia quanto para todas as coisas.

“E ao certo nenhum homem sabe coisa alguma


nem há de saber algo sobre os deuses nem sobre o todo de que falo;
pois se na melhor das hipóteses, ocorresse-lhe dizer algo perfeito,
ele mesmo, no entanto, não saberia; opinião é o que se cria sobre tudo” (DK
B 34).

Sobre esta constatação estabeleceu suas considerações epistemológicas que


compreendiam o pensamento humano por contraposição ao divino, inaugurando a
separação entre “saber ao certo” e opinião.

Julgamos importante sublinhar que através de sua teologia, Xenófanes articulou


as noções de unidade e totalidade. Por conta disso, muitos chegaram a considerá-lo o
primeiro monista do ocidente. Mas, ele foi além tanto das investigações cosmológicas
quanto das teológicas, pondo em questão os limites do saber humano, e abrindo, dessa
forma, um campo de investigação concernente ao conhecimento que apenas mais tarde
será desenvolvido.

O deus de Xenófanes, ingênito e imperecível, imóvel, inteiro e perfeito teria


levado Parmênides a escrever seu famoso poema, no qual descreve o ser da mesma
maneira. Essa possibilidade é endossada pelos testemunhos de que Xenófanes foi
mestre de Parmênides, mas disso não podemos ter certeza. Embora a relação entre eles
seja discutível, a influência do primeiro sobre o segundo é bastante evidente.

Sabemos sobre Parmênides que é considerado um dos filósofos mais importantes


antes de Platão, por ter escrito um poema, intitulado Perì Physeos, que tem forte
influência sobre a história do Ocidente. Nesse poema, Parmênides narra um homem
alcançando a morada divina e aprendendo com a deusa os caminhos que pode e que não
pode trilhar. A deusa mostra que é possível ao homem pensar e dizer o ser, ou seja,
andar pelo caminho da verdade, mas também mostra como é comum ao homem se
confundir. Indica que o caminho do ser apresenta sinais, tais como imobilidade,

16
unidade, inteireza e perfeição, mostra como os homens podem se enganar com suas
experiências sensíveis e com sua atividade de nomear, e ainda apresenta uma
cosmologia, que adota como princípios o fogo e a noite, a luz e a obscuridade, dizendo
que tal cosmologia pode ser tomada como um parecer de perspectiva superior entre os
mortais. O poema de Parmênides dá abertura a diversas interpretações. Fornece uma
metodologia (caminhos) para o estudo do conhecimento, apresenta o conceito de ser
como fundamental, trabalha os princípios da linguagem, e ainda questões cosmológicas.

Voltaremos a Parmênides com mais atenção no próximo capítulo, mas, de início,


podemos observar que unidade e totalidade, antes pensadas por Xenófanes como
próprias a um deus, são compreendidas por Parmênides como sinais do ser. Esse, por
sua vez, é apresentado como caminho e como pensamento para o conhecimento.

Sobre Melisso, sabemos que se inspirou no poema de Parmênides, e investigou o


ser a partir dos sinais indicados por ele. Aceitou-os todos, com exceção de um:
enquanto para Parmênides o limite era um dos sinais do ser, para Melisso o ser era
ilimitado. Isso porque Melisso priorizou dentre os sinais a unidade. Assim, “se existe
um único ser, ele deve ser infinito, pois se não fosse um teria um limite com outro” (DK
30 B5 e B6). Além da motivação espacial para justificar o ser como ilimitado, Melisso
apresenta também o argumento da impossibilidade de geração e corrupção, que mostra
o ser como infinito, por não encontrar limite em um começo ou em um fim. Mas o que
há de especial na filosofia de Melisso é que ele passou a investigar o ser considerando-o
um “algo”, e buscou justificar os sinais de unidade, infinitude, homogeneidade e
imobilidade como se fossem atributos desse algo. Por conta disso, desde Aristóteles há
muitos testemunhos que o reconhecem como alguém que “parece ter entendido o Um
segundo a matéria” (ARISTÓTELES, Metafísica, A, 986b 20).

É preciso notar que investigar o ser não como um deus ou como um caminho
para o conhecimento, mas como algo, revela a necessidade de integrar conhecimento e
realidade. Melisso parece querer pensar ser, unidade e totalidade como uma mesma
coisa. Não com o objetivo de tomar esta “coisa” como um princípio a partir do qual o
cosmos se desenvolve, como faziam os physikói, nem como uma alteridade inacessível
em vista da qual é possível reconhecer as próprias limitações, como no caso do deus de
Xenófanes, nem tampouco como fundamento para o pensamento, como o caminho

17
parmenídeo para a verdade. Melisso considera o próprio cosmos como um ser único,
que é todo e que é tudo, e o toma como algo sobre o qual se pode pensar e conhecer.

Sobre Zenão, temos o testemunho platônico de que foi o aluno favorito de


Parmênides12. Suas questões dizem respeito às investigações matemáticas da relação
entre finito e infinito, e ao uso das estruturas fundamentais da lógica clássica, mais tarde
desenvolvida por Aristóteles. Zenão polemiza a relação entre unidade e totalidade
pensando o número tanto como contínuo como quanto discreto, ou seja, o mesmo
número pode ser compreendido como uma unidade inteira, em si e indivisível (discreta),
e como algo infinitamente divisível (contínuo) e, consequentemente, múltiplo. Ficou
conhecido por ter escrito um tratado dividido em muitos argumentos (logoi)
apresentados na forma de paradoxos, que nos levam a reconhecer em uma mesma coisa
características contrárias. Tais paradoxos apontam a contradição entre determinado
raciocínio lógico e nossa percepção sensível, como é o caso do argumento segundo o
qual: se Aquiles apostasse corrida com uma tartaruga, e desse a ela a dianteira, não
poderia alcançá-la, porque antes teria que alcançar a metade do caminho até ela, e antes
a metade da metade. Mas o que de fato constatamos, quando assistimos a um bom
corredor tentar ultrapassar alguém realmente lento, é que ele de fato consegue. Desse
modo, ao tomar a distância como algo contínuo, Zenão nos leva a por nossas
experiências em aporia por entrarem em contradição com nosso raciocínio lógico.
Porém, quando pensa a distância como algo discreto também nos leva a aporia e nos faz
negar o movimento, como é o caso do argumento da flecha. De acordo com esse
argumento, uma flecha disparada para o alvo nunca poderá alcançá-lo, pois cada ponto
da distância é um todo em si mesmo, completamente separado dos demais. Assim, a
flecha estaria imóvel em cada ponto, como se cada um deles fosse um instante fixo,
inteiro e separado. Contudo, certamente é possível defender de maneira lógica, inclusive
com bases matemáticas, que Aquiles de fato ultrapassa a tartaruga 13 . Assim, o
pensamento, embasado em determinado argumento, não apenas é capaz de entrar em

12
“Parmênides já era bem idoso, de cabelos bastante grisalhos, mas de nobre e bela aparência, de idade
por volta dos sessenta e cinco anos. Zenão, por sua vez, estava então perto dos seus quarenta anos, <era>
de belo porte e de aspecto agradável, e dizia-se que tinha sido o favorito de Parmênides”. (PLATÃO,
Parmênides, 127b).
13
O pensamento matemático que se aplica a questões como essa, que tratam de movimento, será
posteriormente considerado como próprio ao âmbito de estudo da física, e não da matemática pura. O que
Zenão ilustra com esses argumentos, muito antes da separação entre matemática e física como diferentes
disciplinas de estudo, é que a matemática pura e a lógica dizem respeito a um âmbito de pensamento
distinto do que o que considera a physis, e que tais caminhos de pensamento são contraditórios.

18
contradição com a realidade, como também é capaz de entrar em contradição com o
próprio pensamento, quando encontra outro argumento a ele oposto. Essas contradições
põem em questão o problema da antilogia.

Sobre as contribuições zenonianas podemos, então, ressaltar que apontam para


as aporias inerentes ao próprio pensamento lógico, mostrando como é possível defender
posições contrárias sobre a mesma coisa, o que, consequentemente torna ainda mais
distante a perspectiva de um conhecimento seguro sobre o real. Zenão torna presente o
problema da antilogia, e, desse modo, abre um campo de discussões em que será
possível considerar que mesmo a lógica do pensamento não é capaz de prover
conhecimento seguro. Assim, é possível notar que também na filosofia de Zenão, a
investigação acerca das noções de unidade e totalidade, aqui pensadas em associação
com as noções de limitado-ilimitado e discreto-contínuo, acaba por encaminhar as
investigações filosóficas para a questão do conhecimento.

Sobre Górgias, sabemos que foi um sofista muito importante, e que foi
considerado por Platão um dos principais retóricos. Por ter sido um sofista, podemos
concebê-lo como alguém que prezava pela linguagem falada e pela persuasão através de
discursos. Por ter sido um retórico, podemos concebê-lo como alguém que liberaria a
linguagem da necessidade de dizer o ser, ou ainda, de significar o real. O discurso
valeria apenas no seu próprio contexto. Não haveria verdades essenciais com as quais se
comprometer. Górgias ficou conhecido por ter escrito um tratado conservado com o
título “Sobre o Não-Ser” ou “Sobre a natureza” (Peri Physeos), que, espelhado no
poema de Parmênides, nega a tese parmenídea de que Ser, Pensar e Dizer sejam o
mesmo. Ao contrário, Górgias diz que “Nada é”. “Se é, é incognoscível.” “Se é, e se é
cognoscível, não pode ser mostrado aos outros.”14 Em outras palavras, se algo é, não
pode ser pensado nem mesmo percebido enquanto tal, e, ainda que pudesse ser
conhecido, não pode ser comunicado. Isso pode significar que Górgias libera a
linguagem para dizer tudo àquilo que é, mas não aos moldes do ser como tal, que, como
o deus de Xenófanes, é incognoscível e incomunicável ao certo. Ou, nos termos de
Platão, pode significar que Górgias fala do que não sabe, e, de maneira
descomprometida com o que é, acaba por falar do que não é como se fosse. Falar do
não-ser ganhou, com Platão, o sentido de dizer o falso, como veremos no terceiro

14
GÓRGIAS, Tratado do Não-Ser in. SEXTO EMPÍRICO, Adversus Matemáticos, VII, 65-87 e também
in. PSEUDO-ARISTÓTELES, De Melisso, Xenófanes e Górgias, 979a12-980 b22.

19
capítulo. Com isso o discurso sofístico foi considerado um discurso capaz de iludir e
enganar.

Temos, então, que Górgias se desprende completamente dos problemas


concernentes a articulação entre ser, unidade e totalidade, e passa a desenvolver seu
pensamento exclusivamente no âmbito da linguagem, sem se preocupar com as questões
referentes à physis.

Após essa breve apresentação dos cinco filósofos considerados eleatas, nos cabe
perguntar: o que há de comum entre eles? O que significa o eleatismo?

Parmênides e Zenão eram cidadãos de Eléia, uma pequena cidade hoje


localizada no sul da Itália. Mas Xenófanes era de Colofão, uma cidade Jônica, na atual
Turquia. Melisso era de Samos, uma ilha na costa da Turquia que pertencia à antiga
Jônia. E Górgias veio de Leontinos, província de Siracusa, localizada na região da
Sicilia. Além do fato de que nem todos os filósofos eleatas foram cidadãos de Eléia, eles
certamente não conviveram como se pertencessem a uma mesma escola 15 . O termo
Escola Eleática é tardio, e é usado somente para reuni-los do ponto de vista filosófico16.

Como dissemos no princípio, o responsável por essa reunião foi Platão. Platão se
referiu a cada um desses filósofos, ou às suas ideias, como eleatas, em contextos e obras

15
É possível reconhecer, em um momento mais avançado no tempo, na escola de Isócrates, na academia
platônica, no Liceu aristotélico, e mesmo posteriormente, como no jardim epicurista, estruturas escolares,
conforme a noção moderna de escola, onde um mestre transmite oralmente seus conhecimentos aos seus
alunos, ou discípulos. Isso também se encontra em organizações anteriores, como, por exemplo, no
pitagorismo, ainda que este último também possa ser compreendido como uma “seita” religiosa, ou
mesmo como uma organização política. No entanto, nos referirmos a Tales, Anaximandro e Anaxímenes
como Escola Jônica ou Escola de Mileto já pode ser considerado projeção nossa, inspirados que somos na
historiografia aristotélica, que analisa a história da filosofia por grupos, e no próprio modelo da instituição
escolar que surgiu na Grécia, algumas gerações depois desses primeiros filósofos. No caso da Escola
Eleática, também não podemos imaginar que tratava-se de uma escola convencional. Provavelmente os
filósofos reconhecidos como seus membros não reconheciam-se a si mesmos como pertencentes a uma
mesma escola, ainda que possam realmente ter influenciado uns aos outros. É preciso, portanto, sempre
estarmos atentos para, a cada vez que dissermos “escola jônica” ou “escola eleática” pensarmos em uma
reunião de teorias semelhantes ou pertencentes a um mesmo contexto histórico, e não necessariamente em
uma escola conforme a compreensão atual da palavra.
16
Alguns dos membros da escola eleática podem sequer ter se conhecido. Eles foram reunidos por Platão
a partir da palavra éthos, muito próxima, segundo Néstor Cordero, da noção de génos (CORDERO, N.
1991). Isso nos leva a considerar provável que o que hoje nós chamamos de escolas, para nos referir aos
primeiros filósofos, tenha sido pensado pelos antigos simplesmente em termos de família, ou linhagem,
como um grupo, mais ou menos organizado, de pensadores que tivessem algo em comum quanto ao modo
de buscar compreender o mundo. Acontece que quando não são os próprios membros de uma escola que
se reconhecem como tal e estabelecem o que tem de comum entre si, é possível que isso acabe sendo feito
tardiamente por algum filósofo, que estabelece de fora daquele grupo e de dentro de sua própria filosofia,
o que é este algo em comum. No caso da Escola Eleática, quem faz isso é Platão, conforme veremos.

20
diversas. Mas há apenas um lugar em que ele faz uma referência direta ao sentido dessa
expressão, seu diálogo O Sofista. Nele encontramos a seguinte descrição:

“Uma gente de Eléia, começando a partir de Xenófanes e mesmo antes dele,


conta que todas as coisas são chamadas a partir de um ser, e desse modo
desenvolvem seus mitos”. (PLATÃO, O Sofista, 242d)

Com isso temos que, para Platão, esses filósofos têm em comum uma certa
articulação entre os conceitos de ser, unidade e totalidade. Contudo, conforme nos
aproximamos da filosofia de cada um deles, encontramos diferenças enormes no modo
como esses conceitos são articulados. Ao que nos parece, ainda que esses conceitos
sejam importantes para os eleatas, a associação das filosofias de cada um deles
apresenta o desenvolvimento de uma outra questão. Tal questão tem como fundamento
necessário a relação entre ser, unidade e totalidade, mas não se restringe a ela. Para nós,
os problemas que se desenvolvem no eleatismo dizem respeito principalmente à relação
entre ser, conhecimento e linguagem. Julgamos que a primeira leitura, mesmo que
bastante resumida e simplificada, que oferecemos como apresentação dos cinco
filósofos eleatas já é capaz de mostrar que as dificuldades de pensar, conhecer e dizer a
realidade ganhavam grande importância e atenção em seus pensamentos.

A referida frase platônica pertence a um contexto específico do diálogo O


Sofista. O interesse de Platão em tal passagem não se voltava a determinar o significado
do eleatismo. Trata-se de uma breve apresentação do que os predecessores diziam sobre
quantas são as coisas que são. O objetivo dessa apresentação é iniciar a crítica à tese de
Parmênides de que o ser é, e o não-ser não é, e impor-lhe que o não-ser, de certo modo,
é17. Platão começa sua crítica pela unidade, indicada por Parmênides como sinal do ser.
Ele diz que o modo “ligeiro” e a fala “através de mitos” não lhe permitiram
compreender bem o que os predecessores disseram sobre o ser 18 , e começa a
investigação como se ‘ser’ e ‘um’ tivessem sido tomados por Parmênides de modo
equívoco, ou seja, como se fossem a mesma coisa19.

Platão coloca a questão: O que os predecessores disseram sobre o ser? E


responde, visando Parmênides: os eleatas disseram que o ser é um. Aos poucos
buscaremos compreender como Platão chegou a essa resposta. Por agora, o que
17
PLATÃO, O Sofista, 241d.
18
PLATÃO, O Sofista, 242c - 343b.
19
“Pois bem, que respondam a isto: ‘vós dizeis que só um é?’ ‘Dizemos’, responderão eles(...) chamais a
algo ‘ser’? (...) De duas uma; como a ‘um’, servindo-se de dois nomes para o mesmo, ou como?”
PLATÃO, O Sofista, 244b-c.

21
podemos perceber é que o pensamento de Parmênides aparece como central no que diz
respeito ao eleatismo. Além disso, se por um lado temos que o eleatismo desenvolve a
questão do ser, ainda é preciso que saibamos de que modo. Vimos que, de acordo com
Platão, o eleatismo investiga o ser partindo de sua relação com a unidade e a totalidade.
Contudo, conforme nos apareceu em um primeiro contato com o que diz cada um dos
filósofos chamados eleatas, eles investigam o ser privilegiando os problemas do
conhecimento e da linguagem. É preciso, então, nos indagarmos sobre a relação entre
esses dois modos de investigar o ser.

É importante notar, na frase platônica, que não apenas ela nos indica a suposta
teoria com a qual os eleatas concordavam, mas diz também de quando eles vieram. Eles
vieram de ainda antes de Xenófanes. O que, de acordo com a perspectiva platônica do
ethos eleático, significa que conceber todas as coisas como um único ser é coisa muito
antiga, bem como são muito antigas as raízes do eleatismo.

22
I.II - A escola jônica:

Se nos lembrarmos da origem da história da filosofia, podemos notar que a


primeira escola filosófica, a escola jônica ou escola de Mileto - que reúne Tales,
Anaximandro e Anaxímenes -, já trabalhava a noção de que o todo é algo único. Esses
primeiros pensadores foram chamados por Aristóteles de physikói, os filósofos da
natureza. Cada um deles buscou compreender o encadeamento dos fenômenos que
aparecem no universo a partir de um elemento originário, que principia todas as coisas.
Para Tales, tal princípio era a água20; para Anaximandro, o princípio era o ilimitado,
ápeiron, no qual o quente e o frio iniciaram a formação das coisas limitadas21; para
Anaxímenes, o princípio era o ar22. O universo era entendido por eles como kósmos, um
todo único e harmônico. Como costumavam eleger apenas um princípio, a partir do qual
buscavam desenvolver sua cosmologia, podemos notar que os conceitos de unidade e
totalidade já se articulavam desde o início. Mas e o conceito de ser? Podemos dizer que
os filósofos da natureza investigavam o ser?

A questão que aqui nos motiva é: “O que é o eleatismo?” Ao começarmos a


investigá-la, surgiu a necessidade de compreender a relação entre um modo de
investigação do ser que o relaciona às noções de unidade e totalidade e outro modo que
o relaciona às noções de conhecimento e linguagem. Buscando compreender o primeiro
modo, recorremos aos pensadores originários, e, a partir disso, temos agora a seguinte
pergunta: os physikói trataram do ser? Para que possamos respondê-la será preciso
atentarmos para a palavra physis.

A tradução de physis por natureza nos leva a perder muito do que a antiga
palavra grega expressa.

“A palavra ‘physis’ indica aquilo que por si brota, se abre, emerge (...); o que
é reconhecido pelos nomes de pensamento espírito, inteligência, lógos, e
mesmo deus pertence a ‘physis’; a ‘physis’ compreende a totalidade de tudo o
que é (...) a ela pertencem o céu, a terra, a pedra, a planta, o animal e o
homem, o acontecer humano como obra do homem e dos deuses, e,

20
“Tales, iniciador desse tipo de filosofia, diz que o princípio é a água”. ARISTÓTELES, Metafísica, A,
3, 283b 20.
21
“Dentre os que afirmam que há um só princípio, móvel e ilimitado, Anaximandro, filho de Praxíades,
de Mileto, sucessor e discípulo de Tales, disse que o ápeiron (ilimitado) era o princípio e o elemento das
coisas existentes. (...) Contrários são quente e frio, seco e úmido e outros. Segundo uns, da unidade que os
contém, procedem por divisão, os contrários, como diz Anaximandro”. (DK 12 A9).
22
“Anaxímenes e Diógenes, ao contrário, mais do que a água, consideraram como originário o ar e, entre
os corpos simples, o consideraram como princípio por excelência”. ARISTÓTELES, Metafísica, A, 3,
984 a 5-6.

23
sobretudo, pertencem à ‘physis’ os próprios deuses” (BORNHEIM, G. 1967,
págs. 12-13).

Tudo o que é, é physis. Não há nada que seja que não apareça como physis, na
physis e a partir da physis. Do mesmo modo, tudo o que é, é ser. Porém, antes da
formalização conceitual do ser - tomando einai como a palavra-chave, como o conceito
a se investigar - os gregos compreendiam ser a partir da noção de physis.

Acreditamos que, de imediato, ao menos um preconceito nos impede de


compreender a maneira como os primeiros filósofos entendiam o ser: o pensamento de
que eles investigavam a matéria. Podemos dizer que esse preconceito provém de
Aristóteles.

Aristóteles, no livro A da Metafísica, escreve a primeira história da filosofia.


Após esclarecer que a filosofia trata da investigação dos primeiros princípios, o
estagirita apresenta o pensamento dos filósofos que o antecederam de acordo com sua
própria organização. Essa organização estabelece como critério o conhecimento de, pelo
menos, uma de suas quatro causas: a material, a formal, a eficiente e a final. Aristóteles
diz que os physikói trataram principalmente da causa material, porque, buscando
compreender os fenômenos que se manifestam no kósmos a partir de determinados
elementos materiais, estabeleciam tais elementos como a causa de todas as coisas.

Além disso, a tradução latina de physis por natureza também contribui para
associarmos o pensamento sobre a physis às investigações da matéria.

“Se, porém, não se entende physis, como às mais das vezes acontece, no
sentido originário de vigor dominante, que brota e permanece, mas na
significação posterior e hodierna, a saber, como natureza, e se além disso se
consideram, como a manifestação fundamental da natureza, os fenômenos do
movimento das coisas materiais, átomos e electrões, ou seja, o que a física
moderna investiga como physis, então o princípio da filosofia grega se
converterá numa filosofia da natureza, numa representação de todas as coisas,
segundo a qual elas são de natureza propriamente material”. (HEIDEGGER,
M. 1978, pág. 45).

Com base nesses preconceitos, é comum pensarmos que os primeiros filósofos


não investigavam o ser, porque, partindo de uma perspectiva materialista, ainda não
eram capazes de pensar o ser enquanto forma. Acontece que no pensamento da physis
discutia-se a origem de todas as coisas, suas transformações, e seu fim; a vida e a morte;
os deuses; o homem, seu pensamento, sua política; a matemática... Enfim, discutia-se
tudo o que é. Por isso, entendendo que a noção de physis de modo algum pode ser

24
restringida ao pensamento da matéria, admitimos os physikói como investigadores ou
pensadores do ser.

De qualquer maneira, não podemos deixar de dialogar com os termos adotados


por Aristóteles, a partir dos quais ele nos apresenta organizada e sistematicamente o
pensamento anterior. Assim, é preciso não adotar irrefletidamente sua categorização,
sob o risco de limitar e reduzir um pensamento complexo e rico de sentido a um
pensamento rudimentar, nem tampouco deixar de notar a presença da perspectiva que
ele nos aponta como marca de tal pensamento, uma vez que ele é uma de nossas
principais fontes.

Quando nos fala sobre a teoria das quatro causas, Aristóteles reconhece
prontamente entre os physikói a causa material. Porém, quando se refere a Parmênides,
diz que o eleata compreendeu o uno segundo o lógos (katà tòn lógon) e o múltiplo
segundo os sentidos (ARISTÓTELES, Metafísica, A, 5, 986 b 31). Em vista disso, é
preciso investigar, além da noção de matéria, associada à multiplicidade e à percepção
sensível, qual o caminho trilhado entre os precursores para levar à uma investigação
propriamente linguística.

Quando, um pouco a frente, Aristóteles busca aplicar sua teoria das quatro
causas ao pensamento pitagórico, do mesmo modo como fez com Parmênides, ele não
inicia sua exposição indicando se os pitagóricos pensaram segundo a matéria, a forma, a
causa final ou eficiente, mas afirma que eles começaram a falar das essências e a dar
definições (ARISTÓTELES, Metafísica, A, 5, 987a 20). Dar a definição de algo é
compreender este algo segundo o lógos. Contudo, ao que nos parece a noção de
definição entre os pitagóricos muito se aproxima das suas investigações geométricas, e
portanto, de um encaminhamento para a noção de forma. Assim, nos parece ser preciso
investigar a noção de forma entre os pitagóricos para que possamos dar continuidade à
nossa pesquisa sobre o eleatismo e sua investigação da linguagem.

25
I.III - A escola pitagórica:

O pensamento da forma desenvolve-se a partir do estudo dos números. Na


Grécia antiga os grandes estudiosos dos números reuniram-se em torno da figura de
Pitágoras e, por isso, além da escola de Mileto, encontramos também na origem
formadora da tradição eleática a escola itálica ou pitagórica. Durante muito tempo, as
descobertas dos inúmeros discípulos de Pitágoras foram feitas em seu nome, donde
Pitágoras acabou por se tornar uma lenda. As pessoas começaram a acreditar que ele
possuía poderes fantásticos, e chegaram a considerá-lo um ser divino23. Por isso é mais
prudente falarmos do pitagorismo e não da figura de Pitágoras.

O que sabemos sobre o pitagorismo chegou até nós através de Platão e


Aristóteles e dos neo-pitagóricos e neo-platônicos. Assim, é muito difícil estabelecer o
que era a teoria dos números antes de Platão. No entanto, no livro A da Metafísica,
Aristóteles apresenta os pitagóricos comparando-os a Platão, marcando suas
semelhanças e diferenças. Talvez esse seja um caminho possível para nos aproximarmos
do que pode ter sido o modo propriamente pitagórico de compreender os números.
Aristóteles busca esclarecer o que eles afirmavam como princípio de todas as coisas e
de que modo tais princípios poderiam ser compreendidos no âmbito da sua teoria das
quatro causas. De acordo com ele, os pitagóricos acreditavam que os princípios das
matemáticas eram os princípios de todos os seres,

“(...) consideraram que o limitado, o ilimitado e o um não eram atributos de


outras realidades (por exemplo, fogo ou terra ou alguma outra coisa), mas
que o próprio ilimitado e o um eram as substâncias das coisas das quais se
predicam, e que, por isso, o número era a substância de todas as coisas”.
(ARISTÓTELES, Metafísica, A, 5, 987a 15-19)

O número era compreendido enquanto constitutivo material dos seres, e também


das suas propriedades e estados 24 . Mas isso não significa que os pitagórios os
compreendessem do mesmo modo como os filósofos de Mileto compreendiam a água
ou o ar. Para os pitagóricos, a geração de todas as coisas era pensada a partir da

23
De acordo com Diógenes Laêrtios, acreditava-se que Pitágoras havia sido uma reencarnação de Etálides
e Hermótimo (DIÓGENES LAÊRTIOS, Vidas e doutrinas dos filósofos ilustres, VIII, 4-5). Guthrie nos
explica que ambas são figuras de quem diziam respectivamente possuir o dom, dado por Hermes, de que
sua psykhe pudesse viajar tanto pelo Hades como sobre a terra, e o outro de ter se habituado a deixar o
corpo encostado enquanto a alma vagava em busca de conhecimento (GUTHRIE, 1986, págs. 25-26).
Diógenes também nos conta que “Pitagóras tinha um porte tão majestoso que seus discípulos pensavam
que ele era Apolo vindo da terra dos hiperbóreos. Conta-se ainda que certa vez, estando ele nu, foi vista a
sua coxa de ouro...” (DIÓGENES LAÊRTIOS, Vidas e doutrinas dos filósofos ilustres, VIII, 11).
24
ARISTÓTELES, Metafísica, A, 5, 986a 15-18.

26
articulação de unidades geométricas. Vejamos algumas semelhanças e diferenças entre
eles.

Tanto para Anaximandro de Mileto como para os pitagóricos o princípio era o


ilimitado (ápeiron) compreendido materialmente. Mas, enquanto para Anaximandro um
germe se separa do ilimitado e produz o par de opostos fundamental, o quente e o frio
ou o seco e o úmido25, para os pitagóricos surge em meio ao ilimitado uma unidade
limitada, comumente representada pela figura de uma esfera, que “respira” e absorve
esse ilimitado limitando-o26. Do mesmo modo, quando se estabelece um ponto em uma
reta ilimitada é possível somar a esse ponto outro ponto (outra unidade) determinando o
dois, e assim por diante. Dessa maneira, a soma aritmética de unidades torna possível
determinar progressivamente o indeterminado27. A diferença fundamental, nos parece, é
que, embora ambos partam de um princípio ilimitado material, Anaximandro faz com

25
“Segundo Anaximandro (DK 12 A10) o cosmos tal como o conhecemos surgiu de um princípio eterno,
e eternamente em movimento, quantitativa e qualitativamente indefinito, o “ilimitado” (ápeiron), por
meio de um processo de estágios sucessivos. No primeiro estágio, um germe (gónimon) se separa do
ilimitado. Diz-se “produzir o quente e o frio” presumivelmente porque, em certo sentido, esses opostos já
estão contidos nele. No segundo estágio, o quente (aparentemente a chama quente) e o frio
(aparentemente algum tipo de umidade ou névoa) são realmente separados e a chama cresce até atingir as
dimensões de um córtex ígneo em volta do núcleo úmido, parte do qual se seca e se torna terra. No
terceiro estágio, a tensão entre os “elementos” opostos se torna tão forte que toda a estrutura explode”. O
córtex ígneo se arrebenta e suas partes são arremessadas para fora e formam anéis ígneos a várias
distancias do centro, que ainda consiste de terra e névoa (a partir daqui seguimos DK 12 A11). Algo da
névoa é arremessado junto e envolve os círculos ígneos celestes, deixando abertos apenas alguns furos
através dos quais brilha o fogo. O resultado é a estrutura básica do cosmos familiar: água, terra e ar (três
manifestações do frio) no centro, e “rodas” (Aécio II.20.1) de fogo envoltas em névoa a diferentes
distâncias. O fogo que passa pelos buracos é o que percebemos como corpos celestes. Nos anéis dos
corpos celestes a batalha entre o fogo e a névoa continua a desempenhar seu papel: em alguns momentos
os buracos são total ou parcialmente fechados pela névoa; em outros o fogo “reconquista-os” o que
caracteriza diversos fenômenos astronômicos, como as fases da lua e os eclipses tanto do sol como da lua.
No decurso do processo de ressecamento da terra, seres vivos são gerados espontaneamente da lama ou
do limo...” (ALGRA, K. 2008, pág. 94). Neste artigo Algra busca reconstituir a cosmologia de
Anaximandro a partir principalmente das referências encontradas em pseudo-Plutarco e Hipólito.
26
“Eles concebiam o ilimitado como vazio circundando tudo, e representavam-se o universo como
brotando de uma espécie de “inspiração” desse vazio por parte de um uno (formado não se sabe como).
Esse ilimitado vazio, inspirado no uno, era concebido como causa da distinção das coisas e dos próprios
números (concepção fortemente influenciada pelo pensamento de Anaximandro e de Anaxímenes)”
(REALE, G. 1993, pág. 84). É bem provável que essa teoria também tenha sido inspirada no antigo mito
Órfico. Uma das versões conta que: “no início era um abismo, um “mar sem limites”, um caos sem limite.
Nele veio a ser, pouco a pouco, e por nenhuma razão particular, uma “bolha” que começou a crescer e se
tornou firme. Ela sugou o πνεὺμα ao redor, sua pele se tornou mais dura, e logo flutuou no mar sem
limites uma esfera brilhando: o ovo mundo. Nele se desenvolveu uma criatura viva, como a esfera no
formato, alada, bissexual. Ela quebrou o ovo e “apareceu” em radiante brilho: Phanes! Então, as duas
metades da concha quebrada fitaram-se uma a outra “harmoniosamente”, enquanto Phanes tomou posição
no máximo do limite dos céus, um segredo, luz espiritual, do conteúdo de procriação do ovo surgiram os
reinos do mundo” (BURKET, W. 1972, pág. 39).
27
“o número era representado como um conjunto de pedrinhas, ou desenhado como conjunto de pontos”
(REALE, G. 1993, pág. 84).

27
que dele derive outros princípios mais imediatamente perceptíveis pelos sentidos,
associáveis a elementos visíveis como a chama e a névoa, capazes de promover a
geração dos corpos de modo mais parecido com o que hoje pensamos no âmbito de
estudo da física e da química. No pensamento de Anaximandro, principal filósofo da
escola jônica, os elementos materiais se relacionam a partir do embate de opostos28. Já
os pitagóricos desenvolveram seu pensamento no âmbito da matemática. Para eles, cada
uma das coisas presentes no universo é determinada por operações entre números
materiais. Essas operações geram composições numéricas que podem ser vistas
geometricamente, enquanto realidades espaciais, ou ouvidas, enquanto música.

A música é pensada pelos pitagóricos em conformidade com a perspectiva


geométrica adota por eles. Ao esticarem uma corda, pensada como um número inteiro,
e, pressionando-a ao meio, fazê-la vibrar, eles notaram que a corda reproduzia o mesmo
som de quando havia sido tocada solta, porém mais agudo. Desse modo eles
descobriram a “oitava”. Do mesmo modo, ao pressionarem na medida de dois terços
descobriram a “quinta”, e, na medida de três quartos, a “quarta”. Esses intervalos
musicais foram chamados consonâncias, e através deles os pitagóricos puderam associar
a música às relações matemáticas simples (1/2, 2/3, 3/4).

Para que melhor possamos compreender o pensamento pitagórico, recorremos a


um fragmento de Alexandro Polystor, expoente do pitagorismo tardio, citado por
Diógenes Laêrtios. Ainda que não possamos saber até que ponto a teoria por ele
expressa condiz com o pitagorismo pré-platônico, é certo que ela não é conflitante com
a posição aristotélica que tomamos como ponto de partida. Segundo Polystor:

“(...) dos números nascem os pontos, destes nascem as linhas e destas as


figuras planas; das figuras planas nascem as figuras sólidas; destas nascem os
corpos perceptíveis pelos sentidos (...)”. (DIÓGENES LAÊRTIOS, Vida e
Doutrina dos Filósofos Ilustres 8-25).

Com base nessa sequência, podemos dizer que a teoria pitagórica dos números
consiste em uma cosmogonia aritmético-geométrica. Nessa cosmogonia, como nos
esclareceu Aristóteles, os números são formados pela relação entre limite e ilimitado e
todos esses princípios são compreendidos como “algo”, se quisermos evitar o termo

28
Diz-se que Tales partiu da água por observar a oposição entre o seco e o úmido. O úmido estava sempre
presente na vida, nas sementes e nos alimentos, enquanto o que morre se resseca. Cfr. ARISTÓTELES,
Metafísica, A, 3, 983b 20. Mesmo a alteração do ar na teoria da rarefação-condensação se dá pela disputa,
oposição do quente e do úmido sobre o ar; par de opostos que, na filosofia de Anaximandro, é
responsável por geração e movimento.

28
aristotélico “substância”. Assim, todas as coisas que são resultam de composições
numéricas capazes de apresenta-las aos sentidos como algo determinado.

Temos então que enquanto os jônicos tomavam como princípios materiais


elementos perceptíveis pelos sentidos de forma mais imediata, como a água, o fogo (ou
a chama) e o ar, os pitagóricos partiam de noções que não são de apreensão imediata aos
sentidos (não vemos ou ouvimos) como o limitado, o ilimitado e o número, mas que se
tornam “visíveis” quando ordenadas geometricamente em uma composição. Também se
tornam mais imediatamente perceptíveis, não mais ao sentido da visão, mas ao da
audição, quando se articulam harmonicamente para compor uma música.

Inspirados por descobertas musicais, os pitagóricos admitiam em sua teoria dos


números relações harmônicas entre opostos, compreendendo-os como constitutivos de
uma mesma unidade. Assim, cada um dos números era representado por um par de
opostos complementares. Por exemplo, o limitado e o ilimitado constituem o número
um, o ímpar e o par constituem o dois, e assim por diante29.

Observarmos, então, uma diferença no tipo de princípio adotado por jônios e


pitagóricos. De um lado temos princípios imediatos aos sentidos, de outro, princípios
mediados por um pensamento matemático. Ou, nas palavras de Aristóteles, de um lado
temos pensadores da matéria, de outro, pensadores que, embora partissem de princípios
entendidos como causas materiais, começam a desenvolver a noção de forma. Além
disso, há também uma importante diferença no modo de operar as articulações. Nos
primeiros filósofos de Mileto as articulações são feitas por oposição. Nos pitagóricos os
contrários se harmonizam em uma mesma unidade. Isso porque não é possível pensar
numericamente em unidade sem pensar também em alteridade. Não há limite sem o que
está para fora dele, ou seja, sem o ilimitado. Uma mesma corda contém o grave e o
agudo e a música só acontece a partir da harmonia, em sua unidade, de diferentes sons.

Assim, consideramos próprio ao pitagorismo um modo de compreender a


articulação de contrários que privilegia a noção de harmonia de opostos em uma mesma
unidade, modo este advindo da consonância musical e da necessidade da alteridade em
vista da qual é possível determinar os números e as formas geométricas.

29
Segundo a tabela apresentada por Aristóteles no livro A da Metafísica (ARISTÓTELES, Metafísica,
A, 5, 986a 11-b2), o mesmo acontece com o três e a relação um-múltiplo, com o quatro e o par direito-
esquerdo, com o cinco e o par macho-fêmea, e assim até o dez.

29
Na articulação de contrários, vimos que o par fundamental, que inicia a
formação dos números e de todas as coisas, é o par limite-ilimite. Na geometria limite e
ilimite também são noções fundamentais, porque apenas a partir delas é possível
conceber e visualizar uma forma. A forma é aquilo que o limite contorna, o aspecto que
o contorno oferece a nossa visão. É pela apreensão da forma que, ao notarmos uma
silhueta, podemos distinguir se estamos próximos a um homem, a um animal ou a outra
coisa qualquer. A forma, embora esteja sempre presente e possa ser percebida nos
objetos materiais, também pode ser pensada sem o intermédio deles. Por exemplo, se
nos for pedido para considerarmos uma forma geométrica, como o triângulo ou o
quadrado, é possível pensar apenas na forma, ou seja, no contorno, no desenho das
linhas. Não é necessário imaginar um triângulo de madeira ou de papel. Isso também é
possível ser feito com outras noções, que não pertencem ao pensamento matemático,
mas que também passarão a ser consideradas sem os detalhes e as particularidades de
um objeto material. Assim, a matemática dos pitagóricos contribui para que os
conceitos possam ser trabalhados de maneira um pouco mais “independente”, em uma
busca por estabelecer limites e definições a partir deles mesmos. Mas, isso ainda não
está totalmente desenvolvido em sua filosofia. Esse modo de pensar os conceitos surge
com a noção de idea platônica, que inclusive é trabalhada a partir do mesmo termo
usado para dizer forma, a palavra grega eidos.

Aristóteles, ao estabelecer o significado de limite no livro Δ de sua Metafísica,


assume, na segunda acepção, que “limite é chamada a forma (eidos), qualquer que seja,
de uma grandeza e do que tem grandeza” (ARISTÓTELES, Metafísica, Δ, 17, 1022a 8-
9). Imaginamos que aqui ele estava considerando a forma em uma perspectiva espacial,
e, portanto, não estava se referindo a noção de forma como ideia. Essa perspectiva
condiz com o pitagorismo. Para os pitagóricos a forma não é ainda a ideia, e sim uma
certa articulação de limite e ilimitado que permite que algo apareça, seja no aspecto, no
contorno, no desenho do que se dá a ver, seja nas escalas, medidas e proporções de uma
composição musical, que não se dá a ver, mas se manifesta concretamente, porque se
pode ouvir.

Ainda que uma forma geométrica ou uma música sejam perceptíveis aos
sentidos um tanto quanto “concretamente”, elas são concebidas como formadas por
princípios mediados pelo pensamento matemático, que são compreendidos enquanto tal
quando alcançam certa independência em relação a especificidade de seu preenchimento

30
material. Desse modo, ainda que possuam uma certa materialidade, tais princípios são
noções conceituais. Assim, Aristóteles, após analisar a doutrina dos pitagóricos, não
afirma que eles descobriram a causa formal, mas nos leva a pensar que eles
contribuíram para que ela fosse descoberta porque “começaram a falar da essência e a
dar definições” (ARISTÓTELES, Metafísica. A, 5, 987a 20-21).

De fato, segundo Aristóteles, é Platão quem introduz as formas, a partir da


investigação das noções através da dialética (ARISTÓTELES, Metafísica, A, 6 987a
33-34), mas o modo como compreende as formas (ou as ideias) tem forte influência da
compreensão pitagórica dos números (ARISTÓTELES, Metafísica, A, 6, 987b 10).
Assim, ainda que não possamos dizer que os pitagóricos descobriram a noção de forma
enquanto tal, sabemos que ela está presente em seu pensamento através de certa
perspectiva que privilegia o limite, a determinação e a definição, capazes de fazer com
que as coisas sejam e apareçam a nós30. Como os pitagóricos eram também filósofos da
phýsis, podemos dizer que a noção de forma começa a se desenvolver entre os physikói.
É preciso prosseguir, agora, buscando compreender o que a noção de forma tem a ver
com a investigação do ser que o relaciona à unidade e à totalidade.

Como vimos, as noções de limitado e ilimitado encontram lugar de destaque


tanto na filosofia de Anaximandro como entre os pitagóricos. É preciso, portanto, que
consideremos o ser como phýsis, em relação à unidade e a totalidade, levando em conta
as noções de limitado e ilimitado, para que melhor possamos compreender os
predecessores.

30
Nesse caso é preciso frisar o privilégio da noção de limite sem jamais esquecer sua co-dependência
com o ilimitado.

31
I.IV - Unidade e Totalidade pensadas a partir do par limite-ilimitado no modo de
compreender o ser como physis.

Falar de limitado e de ilimitado é falar de finito e infinito, de determinação e


indeterminação. O limite contorna e cerca, estabelece um fim, um término. Desse modo,
ao mesmo tempo separa e reúne. Para que algo seja um algo e apareça enquanto tal, é
preciso aparecer separado daquilo que não é, e unido a si mesmo. O contorno de um
círculo permite que o que é circulado por ele apareça enquanto superfície circular
justamente porque o destaca, o separa e o distingue daquilo que está para fora, daquilo
que não é círculo. Só assim é possível aparecer e ser visto como um círculo. É a partir
do limite, do fim, da determinação que podemos compreender algo como um algo,
como um todo em si mesmo.

Entender o ser como physis é entender o ser a partir do que se manifesta. As


coisas que são, são, antes de tudo, o aparecimento, o que, de algum modo, se deixa ver.
Somente o que se mantém em seus limites pode possuir a consistência necessária para
aparecer e ser percebido. Por isso, na compreensão do ser como physis está contida a
compreensão de que tudo o que é aparece a partir de seu limite e fim.

As coisas que são, e, como tal, aparecem, podem ser melhor compreendidas a
partir da ideia de “brotar”31. Algo, que antes não se podia ver, surge. Então, cresce,
desabrocha, depois se completa, se finda, e acaba por desaparecer. O aparecimento vem
de um ocultamento anterior e para ele tende a voltar. O que aparece, apenas aparece por
manter-se em seus limites, ou seja, por tornar-se consistente em uma forma. Assim, a
deformação, a perda dos limites, leva algo que aparece enquanto tal, no auge da tensão
de manter seus limites, a, em outro momento, aparecer de modo indeterminado e até
mesmo desaparecer. O ser, como physis, é, então, o que aparece e busca manter-se em
seus limites, resguardar seu fim e sua determinação, mas sempre em uma tensão com o
desaparecimento, sempre tendendo ao indeterminado.

Na cosmologia de Anaximandro, o limitado surge do ilimitado, e é isso o que


possibilita que as coisas sejam. Na cosmologia dos pitagóricos, o um surge da tensão

31
No livro Introdução à Metafísica, Martin Heidegger apresenta e explora essa interpretação. Na
tradução brasileira de Emmanuel Carneiro Leão, o termo adotado para dizer physis é “vigor”.
(HEIDEGGER, M. 1978).

32
entre limitado e ilimitado, e é a partir do um que tudo se forma 32 . Todas as coisas
aparecem como um todo em si mesmas, que reúne e congrega as próprias partes, como
um certo algo, uma unidade identificável por uma forma, porque todas as coisas que
são, são na tensão de manterem-se em seus limites.

As noções de limitado e fim, nas palavras gregas péras e télos, também


expressam o acabamento de algo, a completude, a perfeição. O termo télos diz ainda
mais, refere-se também ao fim como destinação. Assim, podemos dizer que as coisas
que são, tendem, ou destinam-se, a se completarem, a aparecerem em sua perfeição ao
manterem-se no resguardo de seus limites.

Vimos que uma coisa que se mantém em seus limites apresenta-se em uma
forma, como um todo, uma unidade. A partir disso, podemos compreender que quem
buscava descobrir as relações necessárias entre os fenômenos, mesmo que os
compreendesse como sendo, cada um, uma unidade em si mesmo, encontrava na relação
e na ordenação de tais unidades uma unidade abarcadora. Physis (o ser) se deixa pensar
como unidade e totalidade. Mas, como vimos, a unidade se deixa ver a partir de uma
tensão entre limitado e ilimitado, entre surgir e desaparecer. Nessa tensão, o ser aparece
na estabilidade, no manter-se em si, e, por isso, busca resistir ao movimento, ao
surgimento e a tendência à deformar-se. Contudo, essas tendências são próprias da
physis, e, por isso, são também próprias ao ser. A unidade aparece em coisas que podem
manifestar-se de diversos modos, e aparece também no abarcamento de coisas
múltiplas, de partes. Assim, se dissermos que o pensamento do ser como physis é o
pensamento da unidade e da totalidade, não estamos, dessa maneira, negando o
movimento, a multiplicidade, o vir a ser. Ao contrário, estamos dizendo que todas essas
coisas aparecem, na e como physis, porque, em uma relação de codependência com seus
contrários, na harmonia de uma tensão, cada qual resguarda seus domínios e se
manifesta na sua unidade33.

32
Tanto para Anaximandro como para os pitagóricos a palavra para dizer ilimitado (ou indeterminado, na
tradução mais frequente de Anaximandro) é ápeiron. Os pitagóricos o tematizam sempre em articulação
com péras, a noção de limite.
33
Como vimos em nossa apresentação inicial dos eleatas, Melisso defenderá que o ser é ilimitado,
justamente por compreender o ilimitado como um modo privilegiado de unidade. Para ele, a unidade não
pode ser espacialmente limitada por outra coisa, pois nesse caso haveria um privilégio do múltiplo, e nem
pode gerar-se de outra coisa ou corromper-se. Assim, mesmo o indeterminado, o ilimitado, são modos de
aparecer do um.

33
A unidade nos pensadores antes de Parmênides, e principalmente antes das
leituras platônica e aristotélica de Parmênides, não é uma noção privilegiada, que se
mantém em tudo o que é, independente e a despeito de seus diversos modos de se
manifestar, como se pudesse ser separada das coisas. Não é tampouco algo que, por ser,
em certo sentido, contrário ao movimento e à multiplicidade, concorra com eles, como
se a sua existência impedisse a do que lhe possa ser diverso.

Quando um pensador da physis propunha o ar como princípio, isso não significa


que acreditasse que a água é menos real, ou não é verdadeiramente. Do mesmo modo,
quando um pensador propunha que ‘um’ é deus, isso não significa que achasse que o
‘um’ numérico fosse um modo falso do ‘um’ ser. Unidade e totalidade dão-se a pensar
na physis (ser) cosmologicamente, ou seja, em uma perspectiva que busca harmonizar
todas as coisas que aparecem. A harmonia pode ser compreendida até aqui como uma
relação em que os contrários sempre se complementam em uma unidade, ou mesmo, a
partir de sua aproximação com a noção de cosmos. O cosmos aceita relações
antagônicas, que justificam formas de movimento, como geração e mudança, porém
submetendo-as a sua ordenação necessária. De um modo ou de outro, harmonia é
relação, articulação.

Buscando o significado do eleatismo, investigamos seus predecessores jônios e


pitagóricos, visando encontrar em seus pensamentos relações entre “ser”, “uno” e
“todo”, conforme indicado pela frase platônica. Tais relações apareceram submetidas à
compreensão do ser enquanto physis, bem como a partir das noções de limitado e
ilimitado. Podemos dizer que a unidade e a totalidade se mostram junto ao aparecimento
de algo que é, na tensão de manter-se em seus limite, e também na relação entre todas as
coisas que são.

No entanto, nem os primeiros jônios nem os pitagóricos afirmaram, ao menos


não nos fragmentos que nos restam, que tudo é um. Mas, isso não significa que esse
pensamento não tenha sido expressado naquela época. Alcançou nosso tempo um
fragmento de um filósofo contemporâneo à Xenófanes e à Pitágoras, apenas um pouco
mais jovem que eles, que diz: hèn pánta. Trata-se de Heráclito de Éfeso.

34
I.V - Heráclito: unidade compreendida a partir de um lógos katà phýsin.

Heráclito é conhecido, junto a Parmênides, como um dos mais importantes


filósofos pré-socráticos. Criticou nominalmente tanto Pitágoras como Xenófanes 34, mas
não nos chegaram fragmentos de críticas aos filósofos da “escola de mileto”. É
provável, no entanto, que conhecesse bem as cosmologias propostas por eles, e nelas
tenha se inspirado, pois concebeu uma cosmologia, aos moldes jônios, que tomava o
fogo como princípio. Mas, não devemos tomá-la “ao pé da letra”, como se a partir do
fogo, enquanto elemento material, Heráclito se propusesse somente a explicar o
surgimento e as relações de todos os fenômenos35. O que a palavra “fogo” é capaz de
dizer vai muito além: remete à inteligência, a criatividade, a visão. É um impulso de
movimento e transformação que não deixa de se apresentar como o mesmo sempre.
Luminoso e brilhante, o fogo é a vida. Ao mesmo tempo, o fogo é capaz de consumir e
destruir todas as coisas. Nele nenhuma criatura vive. Ao contrário, são depositados nas
fogueiras os corpos dos mortos. O fogo é a morte.

Vida e morte, dia e noite, vigília e sono, justiça, lei e guerra são termos sempre
presentes no modo como Heráclito pensou tanto o homem como a physis. Este é seu
tema principal, o homem em relação à physis. Por trabalhá-lo a partir da aproximação de
termos aparentemente opostos, passou a ser considerado um filósofo que defendia uma
obscura harmonia dos contrários36. Heráclito era afeito a paradoxos. Dizia frases como
“Caminho: para cima, para baixo, um e o mesmo” (DK B 60). Por conta desse modo de
se expressar, algumas pessoas acreditavam que ele falava para propositalmente não ser
compreendido. Mas, para Heráclito, as pessoas não conseguiam compreendê-lo nem
antes, nem depois de sua fala, embora ele buscasse dizer as coisas tais quais são, porque

34
“Muito saber não ensina sabedoria, pois teria ensinado a Hesíodo e Pitágoras, a Xenófanes e Hecateu”
(DK B 40). Via de grega usaremos para os fragmentos de Heráclito a tradução de Emmanuel Carneiro
Leão (ANAXIMANDRO, PARMÊNIDES, HERÁCLITO, 2005). Quando adotarmos tradução diferente,
indicaremos em nota.
35
De acordo com Charles Kahn, sobre a filosofia de Heráclito: “as doutrinas do fogo, da ordem cósmica e
das transformações elementais, são, com efeito, mais do que ilustrações; contudo elas só são significativas
na medida em que revelam uma verdade geral sobre a unidade dos opostos, uma verdade cuja aplicação
primária reside, para os seres humanos, numa compreensão mais funda da própria experiência de vida e
morte, sono e vigília, juventude e velhice” (KAHN, C. 2009, pág. 50).
36
“O contrário em tensão é convergente; da divergência dos contrários a mais bela harmonia”
(HERÁCLITO, DK B8).

35
não conseguem compreender ao próprio lógos que é comum a todos os homens e a
todas as coisas37.

Em um de seus jogos de linguagem, Heráclito diz “τῶ τόξω ὂνομα βίος, ἒργον
δὲ θάνατος”. (DK B 48) Α palavra grega βίος significa tanto arco como vida. Assim, o
fragmento pode ser entendido tanto por “a vida tem por obra a morte”, como por “o arco
tem por obra a morte”. A relação do arco com a vida pode ser pensada para além da
simples homologia. O arco, junto a lira, é símbolo de Ártemis, a deusa de Éfeso. Ambos
têm a mesma forma. Se as duas pontas de um arco são tencionadas uma contra a outra
com o auxílio de uma única corda, pode-se através dele lançar uma flecha. Mas se no
arco são distendidas várias cordas, pode-se fazer música. O arco representa a tensão.

“Faz parte da essência do arco que as extremidades se tencionem uma contra


a outra, e que nessa tendência contrária se voltem para trás da tensão,
voltando-se uma em direção a outra”. (HEIDEGGER, 2002, pág. 164)

Na tensão o arco aparece como arco, mas caso sua flexão se desfaça, ele próprio
desaparece e deixa de ser arco. Do mesmo modo, na vida, os seres aparecem na tensão
de manterem-se nos limites de suas formas, e sempre tendendo à morte. Vida e morte,
surgimento e desaparecimento estão juntos38 na physis. Essa juntura, ou articulação de
elementos é o que diz a palavra harmonia. Assim, Heráclito conclui sobre o julgamento
de seus interlocutores:

“Eles não compreendem como uma coisa concorda discordando de si mesma;


<é> uma afinação (ou “encaixe”, harmonié) de coisas contrárias, como a do
arco e da lira” 39 (DK B 51).

Heráclito fala de um saber que compreende a harmonia e a unidade através do


lógos. Em sentido imediato, lógos significa palavra, e pode significar também discurso e
razão. Palavras podem ser ditas, ouvidas, escritas, lidas e pensadas. Todos esses
sentidos estão ligados a lógos. Por ser tão abrangente, a palavra lógos pode contrair
inúmeros significados e ser facilmente incompreendida, ou compreendida
apressadamente e tomada em sentido equívoco. Por conta disso, o filósofo

37
“Com o Logos, porém, que é sempre, os homens se comportam como quem não compreende tanto
antes como depois de já ter ouvido. Com efeito, tudo vem a ser conforme e de acordo com esse Logos e,
não obstante, eles parecem sem experiência nas experiências com palavras e obras, iguais as que levo a
cabo, discernindo e elucidando, segundo o vigor (κατὰ φύσιν), o modo como se conduz cada coisa. Aos
outros homens, porém, lhes fica encoberto tanto o que fazem acordados, como se lhes volta a encobrir o
que fazem durante o sono”. (HERÁCLITO, DK B1).
38
De acordo com Martin Heideigger, a palavra harmonia pode ser melhor compreendida a partir da
palavra armós que significa juntura, articulação. Cfr. HEIDEGGER, M. 2002, pág. 153.
39
Optamos aqui pela tradução de Charles Kahn, que se encontra em KANH, C. 2009, pág. 300.

36
contemporâneo Martin Heidegger buscou nos esclarecer o significado da palavra lógos,
investigando as origens de seu sentido. Encontrou uma raiz comum na palavra légein,
que, de acordo com ele, preserva seu sentido na palavra lógos. Légein traz as noções de
colher, acolher, estender, recolher, escolher, juntar (HEIDEGGER, M. 2001). É
exatamente isso o que faz uma palavra: associa certas noções, e apresenta sua extensão
e seu limite (recolhimento). Uma palavra apenas significa algo na medida em que
mostra uma unidade proporcionada pela juntura, reunião e acolhida de sentidos que traz
em si. Escolher, estender, recolher, juntar, é o que fazemos quando falamos: buscamos
articular significados a partir de palavras, escolhendo-as e reunindo-as de determinado
modo. Ao ouvir a fala do outro, o processo não é muito diferente, precisamos acolher
esses conjuntos que são as palavras e permitir que elas se articulem em nosso
pensamento.

Lembremos que a noção de reunião já foi utilizada aqui quando tratamos da


relação entre limite e unidade. Ambas essas noções também são reconhecíveis no
significado da palavra (lógos). Uma palavra busca delimitar, definir o que ela significa.
Contudo, as associações das palavras e de seus sentidos, quando tratamos de filosofia,
devem ser investigadas com cautela. Acreditamos que a relação entre unidade, limite e
lógos encontram no eleatismo um lugar de destaque, que encaminha a história da
filosofia para o conhecimento do ser como ideia. Mas, por enquanto, basta notarmos
que a repetição de certas associações, que podem parecer confusas por encontrarem
fronteiras ainda muito pouco rígidas, não é algo casual. Quando investigamos as noções
de unidade, limite, reunião, e agora também a noção de lógos, buscando compreende-las
em uma perspectiva que entende o ser como physis, encontramos uma presente no
significado da outra. Isso porque, no início da filosofia, quando algo aparecia, e então se
tentava comunicá-lo, era necessário refazer, a cada vez, a experiência de significação
das palavras, a experiência de atribuir sentido. E o sentido, tanto das palavras como das
coisas, aparece e desaparece. Ora se articula a determinadas significações, ora a outras,
e é capaz de se relacionar a uma coisa em um momento, a seu contrário em outro, e até
mesmo a coisas contrárias ao mesmo tempo 40 . Hoje, os limites entre as palavras
encontram-se muito mais solidificados. Por isso, nos sentimos tão confusos e inseguros
quando muitas palavras diferentes parecem apresentar algo muito parecido, algo que

Vejamos o exemplo dado por Heráclito, e já citado aqui: “Caminho: para cima, para baixo, um e o
40

mesmo” (DK B 60).

37
possa ser o mesmo. Porque aprendemos, desde Platão e Aristóteles, a tratar isso como
equivocidade, como falta de precisão, como um modo ingênuo de cair no erro e na falta
de sentido.

Estamos agora tratando de pré-socráticos. É importante nos permitimos uma


certa experiência de equivocidade se quisermos compreendê-los. Especialmente
Heráclito, que se torna capaz de pensar de maneira tão criativa e luminosa justamente a
partir dessas “imprecisões” e “equívocos” da linguagem.

Finalmente chegamos ao fragmento que nos trouxe a falar de Heráclito:


“auscultando não a mim, mas ao lógos, é sábio concordar que tudo é um” (DK B 50).

A palavra aqui traduzida por “concordar” é em grego homologein. Aristóteles


inicia seu livro das Categorias com a frase: “chamam-se homônimos os nomes que só
têm de comum o nome, enquanto a noção da sua essência é distinta” (ARISTÓTELES,
Categorias, 1, 1a 1-2). Aqui, ao que parece, Heráclito diz o contrário. O um não é
apenas um nome comum de essência distinta, mas tem seu sentido presente no
significado de todas as coisas. A palavra essência, por remeter imediatamente a uma
noção platônica e aristotélica, talvez seja inapropriada para falar de Heráclito. Contudo,
parece-nos que, se considerarmos a unidade como aquilo que encontramos quando
investigamos os significados das palavras mais recorrentes para nos referirmos ao
homem e à physis, poderemos compreender o que Heráclito queria dizer. A unidade se
dá a ver em todas as coisas, na reunião de cada uma em si mesma e na reunião de todas
juntas. Esse é um saber que não devém de um homem em particular, mas do próprio
lógos que está presente em todos os homens e em todas as coisas.

Quando Heráclito nos diz que há um saber, parece dizer um saber uno, um único
saber de fato41. Trata-se do saber que é capaz de ouvir o lógos, perceber a harmonia que
reúne forças que tendem a oporem-se, e concordar que uma mesma experiência de
sentido é possível. Assim, o único saber que há é aquele capaz de alcançar o sentido que
está presente em todas as coisas, a experiência de que tudo compartilha: a unidade. Na
physis, ou no entendimento do ser como physis, tudo é um.

41
“Um, o saber: compreender que o pensamento, em qualquer tempo, dirige tudo através de tudo” (DK B
41).

38
Entendemos por physis tudo o que surge e busca manter-se em seus limites, na
tensão da tendência a perdê-los e a desaparecer. Essa tensão, que está em todas as
coisas, nelas mesmas, e nas relações e articulações de umas com as outras, é
compreendida como governada por uma ordem. Essa ordenação é chamada kósmos,
para referir-se à totalidade do conjunto de coisas, e harmonié para referir-se à tensão das
articulações. Já aquilo que impõe ordem e a tudo governa, encontramos no pensamento
de Heráclito com o nome de lógos. O lógos, porém, não é o simples discurso de uma
pessoa qualquer, um dizer particular. Lógos é o que é comum a todas as coisas e ao
único saber que de fato é saber. E o que o lógos diz é a unidade. Unidade é o que já
tínhamos encontrado na physis, nas primeiras tentativas de compreendê-la, quando ela
se nos mostrou a partir das noções de limite e ilimitado, finito e infinito. Isso pode nos
levar a concluir apenas uma coisa: que, para os pensadores originários, o lógos é o dizer
da physis42.

É preciso, no entanto, ressaltar que o lógos katà phýsin do qual nos fala
Heráclito, articula diferenças na mesma unidade não mais ao modo dos pitagóricos, que
o faziam através dos números, da música e das formas geométricas, mas a partir da
homologia das palavras. A unidade que dá sentido a todas as coisas é pensada e
compreendida a partir da ambiguidade, e é justamente essa ambiguidade que dá a força
ao dizer da physis.

Temos então que, no pensamento do ser como physis aos poucos se opera uma
mudança no modo de articular contrários ou diferentes. Essa mudança acontece
acompanhada de uma investigação das noções de unidade e totalidade. Enquanto a
princípio, entre os primeiros physikói, unidades distintas, compreendidas como
elementos materiais ou propriedades dos mesmos, se articulavam por oposição; entre os
pitagóricos unidades opostas eram compreendidas como complementares e, assim, toda
unidade era composta por um par de opostos. A codependência harmônica, ou mesmo
combativa43, de determinada unidade com a sua alteridade, ou simplesmente com o que
lhe é diferente, quando passa a ser pensada não mais através de elementos materiais, ou
através da música e da geometria, mas diretamente através do lógos, inaugura um modo

42
Cfr. Fragmento DK B1 de Heráclito, citado na nota 36, onde Heráclito fala de um λόγος κατὰ φύσιν.
43
Para Heráclito a harmonia não está dissociada da tensão do combate: “De todas as coisas guerra é pai,
de todas as coisas é senhor; a uns mostrou deuses, a outros, homens; de uns fez escravos, de outros,
livres” (DK B 53); “Se há necessidade é a guerra, que reúne, e a justiça, que desune, e tudo, que se fizer
pela desunião, é também necessidade” (DK B 80).

39
de compreender o ser (como physis), através do poder da homologia e da ambiguidade
das palavras. Assim, a filosofia começa a notar a importância do papel do homem na
physis. É o homem que, diante do brotar vigoroso da physis, é capaz de nela colher,
estender, recolher, juntar e acolher a unidade como experiência de sentido.

Interessados na questão sobre o que é o eleatismo, apresentamos de maneira


bastante breve e introdutória aquilo que, em um primeiro momento, os nomes dos cinco
filósofos chamados eleatas puderam nos indicar. O que pudemos notar de imediato é
que, quando postas juntas, suas teorias indicam o desenvolvimento de uma investigação
do ser que o relaciona ao conhecimento e à linguagem. No entanto, sabemos que quem
primeiro os reuniu e os chamou eleatas foi Platão, e o que Platão nos aponta diretamente
é que o eleatismo provém de um dizer, já muito antigo, de que tudo é um.

Buscamos, então, os primeiros filósofos, os physikói, para melhor


compreendermos o que significa dizer que tudo é um. Chegamos, assim, à noção de ser
como physis. Sendo a physis um modo de conceber o ser, e, consequentemente, todas as
coisas que são, torna-se agora necessário admitirmos que falamos a todo tempo sobre o
que é. Em todas as palavras que usamos tentando dizer o que é, acabamos sempre por
encontrar um sentido comum, que vem da experiência mesma de significar. E este é o
sentido da unidade. Por isso, não nos resta outra coisa senão concordar que tudo é um.
Esse é o pensamento que, segundo Platão, pode ser tomado como marca do eleatismo, o
que a gente de Eléia já contava mesmo antes de Xenófanes. Para nós, no entanto, esse
pensamento é precursor do eleatismo, está nas suas raízes. Pudemos encontrá-lo em
pensadores anteriores, ou mesmo contemporâneos aos cinco filósofos eleatas, que não
estão entre eles, como é o caso dos filósofos de Mileto, dos pitagóricos e de Heráclito,
sobre os quais tratamos aqui.

Resta-nos, então, seguir nossa investigação, buscando saber como, a partir do


pensamento de que tudo é um, é possível chegar às questões que notamos estarem
presentes entre cinco filósofos chamados eleatas. Ou seja, resta-nos compreender como
o pensamento do ser, como physis, nos leva às preocupações sobre o conhecimento e a
linguagem dos homens no eleatismo. Com este objetivo, será preciso investigar o
poema de Parmênides, figura central dessa tradição.

40
Capítulo II – O Poema de Parmênides.

Iniciaremos, a partir de agora, uma investigação sobre o poema de Parmênides.


Nossos objetivos nessa investigação são: compreender o que significa pensar o “ser”
enquanto einai; como as mudanças na compreensão de “ser” tornam possível o
reconhecimento da noção de “forma” no poema; como as questões acerca da linguagem
e do conhecimento dos homens são abordadas por Parmênides; e, por fim, que relações
o pensamento de Parmênides pode ter com o pensamento da physis.

II.I – Apresentação de Parmênides: suas heranças, e o modo como foi interpretado


pelas fontes que nos legaram seu poema.

É provável que Parmênides tenha nascido por volta de 535 e 510 a.C. e morrido
entre 465-440 a.C, na cidade de Eléia. As influências de sua formação são controversas.
Há quem acredite que foi aluno de Xenófanes e há quem afirme, como Diógenes
Laêrtios que “foi por Amínias, não por Xenófanes, que ele foi levado à dedicar-se a vida
contemplativa”. (DIÓGENES LAÊRTIOS, Vidas e doutrinas dos filósofos ilustres, IX,
21). Amínias, ao que sabemos, foi um médico pitagórico. Além disso, é certo que
Parmênides foi influenciado pela poesia de Homero e Hesíodo, e podemos encontrar,
especialmente no prólogo de seu poema, várias referências às figuras divinas e a
algumas das famosas cenas narradas por eles. Além disso, é possível que Parmênides
tenha conhecido as cosmologias milésias de Anaximandro e Anaxímenes, como
indicam algumas de suas expressões44, e também tenha tido contato com a filosofia de
Heráclito45.

Deixaremos de lado as querelas sobre se tais influências de fato se deram de


maneira direta ou não, e trabalharemos considerando todas elas, pois acreditamos que,
ainda que Parmênides possa não ter conhecido Xenófanes ou Heráclito, que

44
Essa posição é defendida por Cornford (CORNFORD, F. 1989, pág. 35). Néstor Cordero também nos
leva a pensar o mesmo quando nos conta que a cidade de Eléia foi fundada por uma comunidade de
focences provenientes da região do Parnaso, que a princípio se estabeleceu na Jônia (por volta do séc. XI
ou X a.C). De acordo com Cordero, dizer que Parmênides nasceu e viveu em meio a uma comunidade
focense é o mesmo que dizer que ele nasceu e viveu em uma comunidade jônica. (CORDERO, N. 2011,
pág. 3-5).
45
Nesse caso, sua crítica à ambiguidade dos homens (os mortais de duas cabeças) pode ser uma resposta
ao pensamento heraclítico. Há interpretes que afirmam esta possibilidade, como é o caso de Guthrie
(GUTHRIE, W. 1986, pág. 28) e há os que a negam, como é o caso de Cordero (CORDERO, N. 2011,
pág. 9).

41
provavelmente lhe foram contemporâneos, o contexto em que se encontrava era
marcado pela força do pensamento de cada um desses predecessores. Assim,
buscaremos indicar, nessa sessão, algumas passagens ou alusões, que Parmênides
apresenta em seu poema, nas quais podemos reconhecer o pensamento dos
predecessores. Mas faremos isso apenas de maneira breve, visando contextualizar o
poema e não ignorar os interlocutores que ele nos torna presentes.

No que diz respeito a Homero, sabemos que seus poemas eram de grande
importância na preservação da tradição cultural e na educação dos jovens gregos, que
comumente os recitavam de cor. No caso da influência sobre Parmênides, podemos
observar que o herói do poema parmenídio é descrito da mesma forma que o herói de
Homero em sua Odisséia. Trata-se do homem que sabe, que segue viagem, que encontra
criaturas sobre-humanas e passa por diversos caminhos buscando um apenas, o que o
leve de volta a seu ponto de partida.

Na Odisséia de Homero caminho e descaminho são questões fundamentais. Os


deuses, como forças naturais, impelem o herói ora para um lado, ora para o outro. Este,
por sua vez, é forçado a enfrentar situações limites para conquistar a autonomia e a
liberdade de trilhar um caminho próprio.

Ao menos duas cenas do poema podem ser claramente associadas à cenas da


Odisséia. A condução do jovem pelas “aurigas imortais” para além dos portais da noite
e do dia e o encontro com a deusa inominada, no proêmio do poema de Parmênides,
remete a conversa entre Odisseu e Circe, no final do canto X da Odisséia homérica.
Nessa passagem Odisseu pede a Circe para voltar para casa e ela lhe responde que ainda
resta fazer mais um caminho: ir ao Hades consultar Tirésias. Ele lhe pergunta, então,
quem lhe servirá de guia, mas ela lhe diz que não é necessário nenhum guia mortal e lhe
dá instruções, contando-lhe sinais do caminho. Há um momento em que Circe fala sobre
o perigo de uma determinada escolha e não fica claro se ela quer indicar duas ou três
diferentes alternativas (HOMERO, Odisséia, Canto X, 480 - 574). Quando Parmênides
ou sua deusa fala primeiro sobre dois caminhos e depois sobre três, e identifica dois
deles como mais perigosos, seu método de se expressar revela a influência da memória
dessa passagem46.

46
HAVELOCK, E. 1958, págs. 133-143.

42
Há outra cena, cuja associação entre o poema e a Odisséia, causa forte
impressão:

“no momento onde, no fragmento VIII, se enuncia enfim o sujeito decretado


pelo verbo, sob a forma do particípio substantivado tó éon, ‘o ente’, eis que
nos encontramos em Homero. ‘Então, imóvel dentro dos limites de largos
laços, / ele é sem começo, sem fim, já que nascimento e perda / estão
realmente desgarrados ao longe, a crença verdadeira os repeliu./ O mesmo e
permanecendo no mesmo ele fica em si mesmo,/ e é assim que ele permanece
lá plantado no chão [empedon authi menei], porque a necessidade poderosa/ o
mantém nos laços do limite que o envolve todo; / por isso é preciso que o
ente [tó éon] não seja desprovido de fim’. Estas são as mesmas palavras que,
em Homero, descrevem Ulisses, quando ele passa na costa das sereias (...)
Ulisses, que quer manter as orelhas livres para ouvir, se faz amarrar em seu
mastro e apertar em laços poderosos, para não se jogar na água como todos
os marinheiros que vão morrer aos pés das sereias: ‘me amarre com laço
doloroso para que eu fique plantado ao chão [empedon autothi mimnô]’,
ordena ele aos seus companheiros (...) Assim, as palavras que descrevem
Ulisses, com o mesmo ritmo e a mesma escansão, o hexâmetro dactílico, são
as mesmas palavras que servem para descrever o ser, no final do caminho do
‘é’”. (CASSIN, B. 2010).

No que diz respeito a Hesíodo, o conhecimento de seus poemas, assim como os


de Homero, também era essencial à formação dos jovens gregos, especialmente porque
os poemas de Hesíodo eram diretamente instrutivos quanto a vida dos homens. O
interesse pela condução dos homens é o principal ponto comum a Hesíodo e a
Parmênides. Podemos reconhecer no poema parmenídico várias referências à obra
hesiódica, tanto aos Trabalhos e os Dias como à Teogonia.

Hesíodo fala inspirado por musas que, como a deusa de Parmênides, são capazes
tanto de contar a verdade como de dizer o falso, embora a deusa parmenídica fale do
que não-é apenas para instruir o jovem, e nunca para enganá-lo. Parmênides também
pode ter se inspirado em Hesíodo quando, em seu poema, torna presente em vários
momentos a “constelação semântica” de Hélios: desde o início, quando as Helíades
conduzem o jovem para o encontro com a deusa, até a parte final, especialmente quando
trata do cosmos e nos fala dos pares de opostos Dia-Noite, Luz-Obscuridade e Fogo-
Terra. Além disso, assim como faz Hesíodo, Parmênides dá a Díke um papel central em
relação aos caminhos dos homens. (MARQUES, M. 1990, pág. 22).

Na poesia de Hesíodo a história dos homens ganha especial importância e


atenção. Ele a conta a partir da sucessão das raças: primeiro a de ouro, onde não há
guerra e nem trabalho e os homens são amigos dos deuses; depois a de prata, onde surge
a hybris, a desmedida e impiedade, e os homens começam a competir com os deuses
pelo poder; seguem-nas a raça de bronze e a raça dos heróis, sendo a primeira dessas

43
marcada por uma hybris militar, desobediente em relação ao poder justo, enquanto a
segunda era composta por homens justos e corajosos. Por fim, Hesíodo chega à raça de
ferro, quando Díke e hybris se misturam nos homens, fazendo-os ambivalentes
(HESÍODO, Os trabalhos e os dias, 105 - 180).

A ambivalência em relação aos princípios orientadores da ação humana torna


necessário o desenvolvimento de um pensamento que fundamente medida e ordenação.
Isso faz com que

“(...) o conhecimento sobre os deuses se transforma progressivamente em


conhecimento ético. (...) A problemática Díke-hybris é o momento em que se
delineia o espaço humano, sendo o homem capaz de colocar diferentes
possibilidades, diferentes caminhos a seguir”. (MARQUES, M. 1990, pág.
28).

No poema de Parmênides, Díke é quem guarda as chaves dos portais do dia e da


noite. É somente através dela, e com sua concessão, que é possível realizar a viagem
ascética da noite para a luz, na qual o jovem, o herói do poema, pode se aproximar da
deusa e com ela aprender. Do mesmo modo, Hesíodo nos fala que os heróis são homens
justos, capazes de bem julgar, e incentiva os homens a serem justos como os heróis,
pois, desse modo lhes é possível se aproximarem da natureza divina.

Homero e Hesíodo foram os maiores poetas da Grécia antiga. Nessa época, os


mitos narrados por eles não eram considerados algo a parte da realidade. Ao contrário,
reconhecia-se na linguagem dos poetas um poder de “tornar presente aquilo que
nomeava”. A narrativa poética valia “como palavra proferida e como coisa real”
(Marques, M. 1990, pág. 23). As histórias dos deuses, dos heróis e mesmo dos homens
simples, trabalhadores do campo, fundamentavam os valores, as crenças e as regras
culturais.

Nesse contexto, os primeiros filósofos de Mileto iniciaram suas investigações


fisiológicas. Tais investigações abriram campo para uma nova forma de conhecimento.
Os homens começavam a desenvolver maior domínio sobre a natureza, alcançado
resultados impressionantes, como quando Tales foi capaz de prever um eclipse e
também quando ele mudou o curso de um rio.

Além disso, o contexto político estava se modificando. Com o advento da moeda


as relações contratuais substituíram as relações de sangue e de privilégios, e o direito à

44
palavra nas assembléias, que antes era dado apenas a nobres e a guerreiros, passa a se
estender aos cidadãos em geral. (MARQUES, M. P, 1990, págs. 32-33).

A palavra poética, que estabelecia os costumes a partir das histórias dos deuses,
que, por sua vez, eram compreendidos como forças e leis da natureza, começa a perder
espaço: para os discursos nas assembléias, onde cada homem que fala busca persuadir
em prol de seu próprio benefício e poder; e para o discurso filosófico nascente, onde os
princípios e leis da natureza passavam a ser investigados não mais como figuras divinas
antropomórficas, mas a partir do pensamento matemático e da observação dos
fenômenos. O início de um afastamento da crença na tradição poética, associado a
disseminação do poder da palavra entre muitos, faz com que os discursos nas
assembléias passem a funcionar como a moeda, que circula e é trocada entre os homens
portando valores relativos. (MARQUES, M. P. 1990, pág. 34)

O poder que o conhecimento humano adquiria sobre a natureza, a partir das


descobertas dos filósofos de Mileto, acrescido de uma maior liberdade político-
discursiva, começava a causar impacto entre os pensadores da época. De um lado surgia
a possibilidade do homem impor-se sobre a phýsis, de outro, no âmbito dos costumes
humanos, a indeterminação e o relativismo ganhavam espaço.

Nesse contexto de reforma, mantém-se, de um lado, a força da tradição poética


marcada por Homero e Hesíodo, e surgem, por outro lado, as primeiras escolas
filosóficas, sobre as quais falamos no capítulo anterior: a Jônica e a Pitagórica.
Xenófanes e Heráclito, que também foram apresentados anteriormente, do mesmo
modo, fazem parte desse primeiro momento da filosofia, completando o quadro dos
interlocutores de Parmênides.

Xenófanes era um poeta e rapsodo que recitava Homero e Hesíodo e, ao


conhecer a cosmologia Jônica, buscou reformular a teologia, porém dando maior espaço
à impossibilidade de determinação, tanto do deus ou dos deuses como de todas as
coisas. Assim, desenvolveu o ceticismo epistemológico, que separou o pensamento
divino e perfeito do pensamento humano sempre opinativo.

Nesse mesmo contexto de reforma cultural, houve filósofos que buscaram


associar os antigos ensinamentos mitológicos e a nova cosmologia, buscando
fundamentar novos costumes sociais. Esse foi o caso dos pitagóricos, que possuíam uma

45
atitude de ascese religiosa muito próxima a que Hesíodo apresenta em Os Trabalhos e
os dias, embora não tomassem mais o trabalho como principal ritual, mas as atividades
contemplativas, como a matemática e a música. Também era importante, para os
pitagóricos, a iniciação nos mistérios do orfísmo, tradição antiga, baseada no mito que
narra a descida de Orfeu ao Hades. A associação à religião órfica reforça o caráter
ascético da doutrina pitagórica.

Heráclito, por sua, vez, valeu-se das tensões presentes no contexto, não para
tentar dissipá-las, mas ao contrário, buscando articular justamente o que tende a se opor.
Assim, trabalhou a relação entre lógos e phýsis a partir das ambiguidades e
equivocidades de sua linguagem poética.

Parmênides, por sua vez, conheceu a necessidade apresentada pela poesia de


Homero e Hesíodo de presentificar, a partir das palavras, deuses, heróis e
acontecimentos que ensinassem aos homens a trilhar os seus caminhos, oferecendo-lhes
sinais, instruções, regras e limites. Soube também da força que esses ensinamentos
podiam alcançar quando pensados independentemente das particularidades das histórias
dos personagens míticos, mas de forma um pouco mais conceitual, como faziam os
pitagóricos, desenvolvendo um código de conduta capaz de ordenar o cotidiano em prol
de uma ascese espiritual. Além disso, Parmênides aprendeu as cosmologias tanto dos
Jônios, que “em contrários cindiram a articulação e puseram sinais opostos uns dos
outros” (DK B 8 55-56), como a dos pitagóricos, que, conforme vimos no capítulo
anterior, buscava articular alteridades em uma mesma unidade, a partir da compreensão
de uma harmônica codependência entre elas. Parmênides viu também essa articulação
harmônica de opostos complementares se transpor para o âmbito da palavra, a partir das
ambiguidades e homonímias de Heráclito. E, por fim, viu, com Xenófanes, que o
pensamento humano está sempre acompanhado pela opinião, pela incerteza, e que
apenas no âmbito divino há a possibilidade de acesso ao real inteira e perfeitamente.

Parmênides compreendeu que o pensamento humano é ambíguo, e está sempre


fadado a incertezas e opiniões. Observou que tais incertezas e opiniões são
consequências do modo próprio da physis se manifestar: surgindo e desaparecendo,
movendo-se, tendendo à indeterminação, aparecendo de forma incompleta, mostrando-
se e ocultando-se. Descobriu também que, embora haja noite, dia, surgimento e
desaparecimento no devir, é possível pensar para além deles, e buscar uma via de acesso

46
ao divino que nos auxilie a encaminhar nosso próprio pensamento para a verdade. Mas
que verdade é essa que só pode ser encontrada para além da physis?

Antes que possamos investigar o que propõe o poema de Parmênides, é preciso


falarmos um pouco mais acerca dessa diferença de perspectiva que remete para algo de
outro que não a physis. Tal diferença vem sendo apontada há muito na história da
filosofia, e, inclusive, o poema de Parmênides foi preservado e chegou até nós graças a
uma disputa interpretativa justamente quanto a essa questão. Vejamos brevemente o
contexto no qual o poema nos foi legado:

Simplício, um filósofo neo-platônico do séc. VI d.C., é considerado a principal


fonte do poema de Parmênides. Ele transcreveu, em seu comentário a Física de
Aristóteles, mais de cem versos, sendo a única fonte de setenta e dois47. Foi através de
Simplício que chegou até nós o conhecido “fragmento ontológico”, também chamado
“discurso do ser”. Esse comentário à Física aristotélica tinha o objetivo de defender
Parmênides da acusação de que ele era um aphysikós, ou seja, alguém cuja filosofia não
dizia respeito à investigação da physis.

Aristóteles, por sua vez, buscava, em sua Física, encontrar os princípios da


ciência da natureza, e a compreendia a partir do movimento. Uma vez que Parmênides
falava de um ser uno e imóvel, Aristóteles assume que em tal filosofia não poderia
haver nem princípio, já que todo princípio necessita de um principiado, nem tampouco
uma verdadeira investigação da physis, já que o movimento estaria excluído da
investigação parmenídia do ser (ARISTÓTELES, Física, I, 1, 184b 15 184b 21). Assim,
para Aristóteles “... se existem seres imóveis pertencem mais a ciência outra, e não a da
natureza...” (ARISTÓTELES, Do Céu, III, 1. 298b14).

No entanto, o interesse de Parmênides por essa “ciência outra” não se


configura em uma total exclusão de seu interesse pela physis. Prova disso é que há no
seu poema uma parte inteiramente dedicada ao âmbito do devir. Por causa dela,
Aristóteles também afirmou sobre Parmênides que:

“Por considerar que além do ser não existe o não-ser, necessariamente deve
crer que o ser é um e nada mais. Entretanto, forçado a levar em conta os
fenômenos, e supondo que o um é segundo a razão, enquanto o múltiplo é
segundo os sentidos, também ele afirma duas causas e dois princípios”.
(ARISTÓTELES, Metafísica. A, 986b 25- 987a).

47
SANTORO, F. 2011a, pág. 58.

47
Desse modo, Aristóteles vê em Parmênides a separação entre a ordem do
sensível e a do inteligível. Essa separação implica em uma outra, que se opera somente
no âmbito do pensamento: a que distingue opinião e verdade. Se antes Xenófanes havia
distinguido o pensamento opinativo do pensamento perfeito e verdadeiro, e chamado
este último de divino, Parmênides aplica essa distinção ao pensamento humano,
tornando-o capaz não apenas de opinião, mas também de alcançar a verdade. Se para
Xenófanes a verdade, assim como o deus, era inacessível aos homens, Parmênides, em
seu poema, encontra a deusa e aprende com ela justamente sobre qual caminho os
homens devem tomar, em sua própria forma de pensar, para se conduzirem em direção a
verdade. Tomando o caminho verdadeiro, onde o pensamento humano é de acordo com
o divino, o homem se afasta tanto de uma via enganosa, onde o pensamento erra,
acreditando ser verdadeiro o que na verdade é falso, como de uma via opinativa, onde o
pensamento se confunde e sequer pode decidir sobre o que acreditar.

Para que possamos compreender como os âmbitos sensível e inteligível e o


pensamento enganoso, opinativo e verdadeiro se distinguem; como se relacionam, ou
não se relacionam; e também como o “ser” pode ser pensado de um modo diferente do
modo como é pensado a partir da physis, iniciaremos a partir de agora uma investigação
acerca do poema de Parmênides.

48
II.II – O Proêmio: da via multifalante dos homens à morada da verdade divina, e,
também, da narrativa ao discurso categorial.

Parmênides foi o primeiro filósofo a tematizar a noção de ser enquanto tal,


através do verbo grego eimi (ser). No primeiro capítulo, vimos que o pensamento dos
primeiros filósofos se desenvolvia em torno da noção de physis. Para que possamos
compreender que relações podem haver entre einai e physis, e como uma investigação
que parte das noções de unidade e totalidade passa a dedicar-se aos problemas da
linguagem e do conhecimento, será preciso atentar para o modo como Parmênides
apresenta e trabalha a noção de einai em seu poema. Observando o desenvolvimento de
tal noção, tentaremos compreender algumas das importantes mudanças que ela
representa.

O poema de Parmênides inicia-se de forma narrativa. Parmênides é o narrador-


personagem, que descreve a si mesmo como “o homem que sabe”. Ele está em um carro
puxado por éguas, que o levam a quanto lhes alcança o Ímpeto (Thymós). Essas éguas
são conduzidas por moças, as Filhas do Sol (Heliádes), que, por sua vez, trazem as
cabeças cobertas por véus. O carro percorre uma via multifalante, uma via loquaz, que
em algumas interpretações também aparece como as cidades dos homens. Passa, então,
por toda parte, abandonando a Noite e seguindo em direção à Luz. As Filhas do Sol,
retiram os véus da cabeça e chegam às portas, fixas em umbral de pedra, dos caminhos
da Noite e do Dia, dos quais Justiça (Díke) guarda as chaves alternantes. Elas
persuadem a Justiça para que abra os portões. E, uma vez abertos os portões, seguem em
frente. Então, encontram a deusa que acolhe o viajante, o saúda por ter sido enviado por
Norma e Justiça (Thémis e Díke) e começa a instruí-lo. (DK B1 vs. 1-27).

A viagem de Parmênides não é uma viagem qualquer. Trata-se de uma viagem


ascética, da Noite para a Luz; dos caminhos dos homens, onde a fala é múltipla e
controversa, para a morada divina, onde a fala é capaz de instruir sobre a verdade. Ele
próprio, o narrador, também não é um homem qualquer: é o homem que sabe. Mas sabe
o que? Sabe sobre o que sabem os homens, mas deseja ir adiante.

No proêmio, Parmênides, além de usar a linguagem poética e fazer várias


referências às figuras míticas da tradição contada por Homero e Hesíodo, conforme
vimos na sessão anterior, também faz referências à religião órfico-pitagórica, na qual a

49
viagem iniciática, como a ida de Orfeu ao Hades, tem importância fundamental48. Além
disso, a abundância de pares de opostos – as filhas do sol e seus véus, o movimento das
éguas e do carro contra a fixidez do portal, o Dia e a Noite – remete aos filósofos da
natureza, que possuem duas perspectivas de nomear formas.

Ao chamar-se “o homem que sabe”, Parmênides nos conta “ter ouvido e


assimilado tudo o que o saber grego já havia oferecido” (COSTA, 2010, pág. 30). Mas,
ao mesmo tempo, por ter aprendido com Xenófanes que o conhecimento humano é
opinativo e a verdade não é alcançável, Parmênides sabe que não sabe, mas, diferente de
seu mestre, busca alcançar um conhecimento seguro. Ele deseja conhecer a verdade de
tal maneira, com tamanho ímpeto, que se dispõe a ser levado para além de seus limites,
onde nenhum mortal costuma ir. Mas não são apenas a sua vontade e curiosidade
intelectiva que o fazem ser aceito por Norma e Justiça. O homem que sabe tem também
uma disposição ética. Ele não é como a maioria dos homens de duas cabeças, incapazes
de julgar. Alcançar uma via separada dos caminhos humanos, distinta, implica
questionamento e discernimento (MARQUES, 1990, pág. 47). Parmênides nos diz que
se esforça, que busca trilhar vias claras, que tem seus ouvidos atentos para um
pensamento superior, divino. E por isso os deuses não o rejeitam, e o indicam o
caminho.

O homem que sabe, encontra-se, então, em um caminho apartado da errância dos


demais mortais. Que tipo de caminho pode ser esse? Deve necessariamente ser um
caminho com rumo certo. Mas com rumo para onde?

Quando o jovem é saudado pela deusa por ter ali chegado, ela usa a palavra
néesthai, uma forma verbal de nostéo que tem parentesco com nóstos, e pode ser
traduzida por ‘volta’, ‘regresso’. Nóstos é uma palavra muito usada na Odisséia, para
referir-se ao desejo e esforço de Odisseu para voltar a casa (HAVELOCK, 1958, págs.
133-143). Do mesmo modo, Parmênides busca um caminho que não o leve a perder-se.
Um caminho onde a sucessão de seus passos não seja indefinida. Mas os caminhos
sobre os quais ele nos fala não são os mesmos de Odisseu. Parmênides fala a partir de
um lugar fora do mundo. Fala de caminhos de pensamento (nóos). E não lhe interessam
quaisquer caminhos, ele busca um caminho de pensamento que seja um caminho de

48
Cfr. KAHN, C. Algumas questões controversas na interpretação de Parmênides in. SANTORO, F.,
CAIRUS,H., RIBEIRO, T. 2009, págs. 83-93.

50
retorno. Trata-se do retorno ao “pensamento puro”, afastado daquilo “com que os
homens geralmente se ocupam: o ‘mundo’ à sua volta”. (COSTA, 2010, pág. 36). Neste
caminho, conforme diz a deusa, deve ser comum o ponto de chegada e o de partida (DK
B5). E que ponto poderia ser esse, se não o próprio ser?

Até aqui Parmênides fala da mesma forma pela qual os poetas gregos, anteriores
a ele, transmitiam seu conhecimento: fazendo uso de imagens e descrições, e também de
personagens sobre-humanas, pois assim são compreendidas as forças ou princípios da
natureza e das relações entre os homens: como realidades divinas. No discurso narrativo
a palavra tem uma ligação tão forte com a realidade que é capaz de tornar presente o
que enuncia.

Na Teogonia de Hesíodo a geração dos deuses e suas ações são como que as
“causas” do mundo. O modelo da sequência de nomes, como em um catálogo, por
exemplo, demonstra a força de presença da palavra. Mas, ao mesmo tempo, é também o
uso dos nomes divinos como princípio ou presença que prepara a linguagem para o uso
dos nomes como conceitos.

No poema de Parmênides os princípios divinos que o permitem adentrar a


morada da deusa, e consequentemente alcançar o pensamento da verdade, são Thémis e
Díke. Thémis é a Norma, a Lei, ela decide e estipula como e o que deve ser. Díke é a
Justiça, ela julga, indica e distingue o que obedece ou não a essa lei (COSTA, 2010,
pág. 38).

“Decisão e distinção. O pensamento parmenídico encontra-se fortemente


marcado e orientado por esses dois elementos, por esses dois princípios que
ele converte em procedimento do pensar filosófico” (COSTA, 2010, pág. 38).

Mas antes de Parmênides começar a apresentar uma filosofia argumentativa,


trabalhando diretamente através de conceitos, tudo se passa como se contasse uma
história. Com isso, ao mesmo tempo em que prepara a ambiência para o discurso da
deusa, ele nos mostra o modo próprio do conhecimento se desenvolver e ser transmitido
na forma narrativa. O conhecimento narrativo é como um caminho no qual uma
sucessão de acontecimentos se encadeia de forma linear. Os nomes e as ações vão se
associando sem a necessidade de que sejam utilizadas muitas variações das formas
sintáticas do verbo ser, conforme é comum encontrarmos no discurso. “O modo por
excelência da narrativa é o indicativo, que retrata o acontecimento. E a terceira pessoa –

51
que pode ser todo mundo fora da relação emissor-receptor – é a mais frequente”
(SANTORO, F. 2001, pág.119).

Antes do encontro de Parmênides com a deusa, o verbo “ser” aparece somente


uma vez no poema, justamente quando todo o movimento do carro e das éguas subindo
a estrada, relatando o fluxo livre da narrativa, choca-se com algo estático, e Parmênides
diz: “ἐνθα πύλαι Νυκτός τε καὶ Ἢματός εἰσι κελεύθων”, “lá ficam as portas dos
caminhos da Noite e do Dia”. (DK B 1 v.11)

“O verbo ser, neste passo, tem valor de existência e presença. Articulado com
o advérbio de lugar ἐνθα (ai, lá), o verbo ser marca que em tal lugar são
situadas, estão presentes e permanecem firmes, as portas dos cursos da Noite
e do Dia. É um verbo intransitivo de estado (em que é dito não um modo de
estar, mas o lugar onde está). Este sentido primeiro do verbo ser, sentido de
existência e presença aparece em várias línguas ocidentais associado a um
advérbio de lugar: esser-ci, da-sein, y-être (donde: y avoir). É como se
‘existir’ fosse originalmente percebido como ter lugar no mundo”.
(SANTORO, 2001, pág.117).

A partir do encontro de Parmênides com a deusa, uma mudança muito


importante acontece. Não é mais ele, o narrador-personagem humano, quem fala, mas
uma personagem divina, inominada, possivelmente a própria Verdade. E ela não assume
um papel narrativo, contando-lhe uma história, ao modo como ele fazia antes. Diferente
disso, quando toma a palavra, a deusa o saúda por ele ter alcançado a sua via, diz que
vai instruí-lo quanto a tudo: sobre o coração da verdade persuasiva, sobre a opinião dos
mortais em que não há fé verdadeira 49 , e também sobre a natureza 50 , e inicia seus
ensinamentos de forma discursiva, dizendo: “Pois bem, agora eu vou falar, e tu, presta
atenção ouvindo...” (DK B2 v.1).

Diferentemente da narrativa, onde a terceira pessoa é a mais frequente, no


discurso “as principais pessoas usadas são a primeira (eu-nós), para desejos, pedidos,
preces; e a segunda (tu-vós), para orientações, persuasões, comandos...” (SANTORO,
2001, pág. 119).

“O discurso relaciona-se primordialmente com seu receptor, com os homens


que o escutam ou lêem – e nesses opera ou pretende operar uma

49
“Mas é preciso que de tudo te instruas: tanto do intrépido coração da Verdade persuasiva quanto das
opiniões de mortais em que não há fé verdadeira. Contudo, também isto aprenderás: como as aparências
precisavam patentemente ser, por tudo como tudo quanto é”. (DK B 1 v.28-32). Adotamos a tradução de
Fernando Santoro (SANTORO, F. 2011a).
50
“Conhecerás a natureza do Éter e também todos os sinais que há no Éter e as obras invisíveis da flama
pura do Sol resplendente, e de onde surgiram. Sondarás as obras vagantes da Lua ciclópica e sua natureza,
conhecerás também o Céu que tudo abarca, de onde este brotou, e como Necessidade o levou no cabresto
a manter os limites dos astros”. (DK B 10).

52
transformação. Enquanto a narrativa tende a ser mimética, o discurso
pretende ser efetivo. A narrativa presta-se tradicionalmente a reportagem, ao
conhecimento, à verdade que mostra o mundo, a natureza, os deuses. O
discurso, por sua vez, presta-se primordialmente à política e ao
relacionamento prático entre os homens”. (SANTORO, 2001, pág. 118).

No caminho narrativo a palavra tem valor de presença, e nos mostra, como se


fosse real, uma sequência de acontecimentos - onde aparecem, por exemplo, éguas,
carro, deusas, daimones, portais - e, desse modo, é capaz de nos conduzir de maneira
fantástica para onde desejar o narrador; no discurso, a palavra se liberta da função de
presentificar coisas, personagens ou acontecimentos, e passa a valer por si mesma. Cada
palavra assume significados e funções conforme seu papel de indicar. E cada um que
participa do discurso deve saber interpretar tais indicações a fim de conduzir-se. No
âmbito do discurso não é suficiente apenas acompanhar uma sequência de imagens, é
necessário que saibamos discernir, delimitar e decidir. É necessário que possamos
alcançar o conhecimento da verdade através de um método de pensamento.

“O que é, então, conhecer no discurso? Trata-se de apontar e mostrar os sinais


em que o ente pode ser dito” (SANTORO, 2001, pág 129). Mas, como já nos mostrou
Aristóteles, o ente se diz de muitas maneiras (tó on pollakós legetai) (ARISTÓTELES,
Física I, 1, 185a 20). Por isso, para tornar possível discernir os diversos modos de dizer
o ser, Aristóteles cunhou categorias.

“A palavra categoria é a realização, no grego coloquial clássico do séc. V, da


ação de acusar: κατηγορεῖν, feita por um promotor acusador: ὁ κατηγορός. A
acusação, além de ‘categoria’ (κατηγορία) também, normalmente, é
designada simplesmente como ‘discurso’ (λόγος) [...] O que é, pois, acusar?
Apontar, indicar – φράζω – é o mesmo verbo para apontar com sinais
(σῆματα); ou para revelar pela profecia (διὰ μαντικῆς) ou assinalar com
gestos da mão (τῆ χεῖρι) ou ainda para indicar um caminho (τὴν ἂτραμον).
São os mesmos gestos que encontramos na prescrição do caminho da
verdade, bem como na existência de múltiplos sinais, quando este caminho é
percorrido. E o que o acusador aponta, senão justamente as categorias, nos
termos mesmos que Aristóteles utilizará: πότε, ποῦ, πῶς – ‘quando’, ‘onde’,
‘como’?!” (SANTORO, 2001, pág. 134-135).

O discurso da deusa no poema de Parmênides é um discurso categorial, como


todo discurso, mesmo antes de Aristóteles chamar a atenção para as categorias e buscar
determiná-las. Antes de Aristóteles, Platão já havia iniciado os estudos sobre o discurso,
distinguindo as formas fundamentais das palavras em nome e ação a partir das palavras
gregas ónoma e rhema (PLATÃO, O Sofista, 262a). De acordo com Platão, a união
entre ónoma e rhema nos fornece uma “indicação relativa a coisas que são, ou se
tornaram, ou foram, ou serão; não se limitando a nomear, mas permitindo-nos ver que

53
algo aconteceu” (PLATÃO, O Sofista, 262d). Assim, podemos notar que a distinção de
substantivo e verbo, bem como de todas as demais categorias da predicação, se elaborou
em conexão com a concepção e interpretação do “ser” (HEIDEGGER, 1978, pág. 85).

Como vimos, a princípio o uso semântico mais frequente da noção de “ser” pode
ser identificado a partir das funções existencial e locativa. “Ser” significa antes de tudo,
“existir”, “ter lugar no mundo”. Quando o discurso se torna objeto de observação,
consequentemente passa a ser possível reconhecer a variação sintática que “ser” pode
alcançar na linguagem. Por um lado, isso permite que, pensado sintaticamente, ou seja,
a partir do modo que se articula, e da posição que assume em uma dada proposição,
“ser” ganhe determinações. Por outro lado, enquanto noção semântica, o significado de
“ser” vai se tornando tão amplo que chega a parecer impossível determiná-lo. A função
sintática, estrutural e fundamental, de “ser” e a dificuldade de limitar e determinar o seu
aspecto semântico tornam-se ambas evidentes quando precisamos repetir o ser na
tentativa de defini-lo, ao dizermos: “o ser é ...”.

Dizer “o ser é”, ao mesmo tempo em que evidencia uma determinação


necessária: o ser precisa ser; ser é o que é; o que é, é ser; também nos leva a questionar
a indeterminação de tal proposição: o que significa “ser”? “o que é isso que é”?
Determinação e indeterminação se articulam no modo de compreender o “ser” a partir
da physis. A presença do pensamento da physis em nosso estudo da linguagem é,
portanto, inevitável.

Sabemos que a distinção mais antiga e fundamental das palavras foi feita por
Platão entre nome e ação, ou substantivo e verbo (como dizemos contemporaneamente).
Usamos também, muitas vezes, o verbo em sua forma substantivada, por exemplo ao
dizer “o ser”. Quando nos propomos a investigar a noção de “ser”, ou, “o ser”, estamos
tratando de um verbo no infinitivo ou de um substantivo criado a partir da forma
infinitiva.

“a expressão negativa modus in-finitivus verbi, alude a um modus finitus, um


modo de limitação e determinação do significado verbal. (...) O que os
gramáticos romanos designam com a expressão pálida de modus, chamava-se
entre os gregos egklisis, inclinação para o lado. Essa palavra move-se na
mesma direção de significado que uma outra palavra formal da gramática
grega. É nos conhecida na tradução latina: ptosis (casus) caso no sentido das
variações de um nome. (...) Os nomes, ptosis e egkisis, significam cair, virar
perdendo o equilíbrio, e inclinar-se. Incluem sempre um des-viar-se de um
estado ereto e em pé. Esse estar erguido sobre si mesmo, o vir e permanecer

54
num tal estado é o que os gregos entendem por Ser”. (HEIDEGGER, 1978,
pág. 86-87).

As noções de finito e infinito, determinado e indeterminado, e limite e ilimitado,


como vimos no capítulo anterior, estão fortemente presentes na compreensão do ser
como phýsis. Na phýsis, antes de tudo, o que é aparece, e o que aparece é sempre
indissociável de sua tendência a desaparecer. Mas, embora tudo o que aparece esteja
sujeito a inclinar-se e declinar-se, apenas é compreendido e reconhecido como um isto,
ou seja, como algo que é (acusável, apontável) quando está estável em seu lugar, no
resguardo de seus limites, mostrando-se em um aspecto consistente.

Uma árvore é reconhecida como um algo, porque aparece, em algum momento,


de forma consistente. Contudo, uma árvore não é suficientemente consistente para nos
levar a compreender o que é a própria consistência. Se isolarmos, como em uma
fotografia, formas fixas de aparecimento da árvore, poderemos ter uma foto da mesma
árvore com folhas verdes, no verão; com flores, na primavera; com folhas amarelas, no
outono, e sem folha alguma, no inverno. Todos esses aspectos são suficientemente
consistentes para nos permitir reconhecer a árvore enquanto algo que é, que existe, que
ocupa lugar no mundo, que apresenta-se como uma unidade em seus limites. Porém,
qual deles realmente corresponde ao aspecto privilegiado, onde a árvore está
plenamente em si, sem nenhuma inclinação? Se quisermos tornar o questionamento
ainda mais próximo de nós, que ponhamos sobre a mesa fotos nossas com todas as
idades: um ano, dois anos, dez anos, quatorze, vinte e oito, quarenta e dois, setenta e
seis... Qual de nossas aparências corresponderá ao que realmente somos? Nenhuma.

A deusa do poema de Parmêmides fala a partir de um lugar fora do mundo. Ela


parte desse lugar e para ele retornará. Fora do mundo o que está em questão não pode
ser o que nele aparece. Ora, se a deusa nos prepara para pensar sobre algo que se
mantém em um estado consistente, sem inclinar-se de forma alguma, não se trata de nos
preparar para pensar sobre coisas. Não se trata também de ressaltar e destacar um modo
de aparecimento privilegiado de determinada coisa, isolado dos demais possíveis. A
deusa nos prepara para pensar sobre o que é em um único estado, sobre o que não tem
outra possibilidade senão ser pleno em si, e por isso jamais muda. Tal realidade não se
dá a perceber conforme os objetos da phýsis: não aparece nem desaparece, mas antes é o
fundamento que permite que, quando algo aparece, nós possamos destacar, apontar e
indicar: “é”.

55
A deusa conta justamente que o caminho da phýsis não é o único caminho para
investigar. Há duas vias de questionamento que são a pensar (DK B 2 v.2). Neste
momento mesmo, o verbo ser (são a pensar) pode ser compreendido com um sentido
diferente do existencial e do locativo.

“Os caminhos não estão disponíveis para pensar, mas ‘devem’ ser pensados!
O verbo ειμι ‘ser’ já está muito mais próximo dos verbos semi-auxiliares
modais que acompanham e modificam o valor do verbo principal posto no
infinitivo. O verbo ειμι ‘ser’ está atuando com a mesma função sintática do
verbo modificador χρέω (precisar), o qual, na presente passagem, aparece três
vezes nessa posição e função (vs. I, 28, 32 e II,5). Assim como o próprio
discurso, o verbo ειμι ‘ser’ torna-se mais atuante e efetivo nesta posição de
semi-auxiliar que modifica o verbo principal. O seu significado próprio se
enfraquece para tornar-se a palavra que desencadeia o efeito verbal da
exortação. Há um deslocamento do peso semântico para o sintático...”
(SANTORO, 2001, pág. 121-122).

Outros usos do verbo “ser” surgirão ao longo da fala da deusa – “nos modos
indicativo, infinitivo, particípio; nas classes de verbo principal, verbo auxiliar,
substantivo, adjetivo; nos tempos pretérito, presente e futuro” –. (SANTORO, 2001,
120). A necessidade de compreender de forma determinada o que em cada momento ele
indica, levará o pensamento filosófico, ao longo de sua história, à muito empenhar-se na
árdua tarefa de desenvolver e aprimorar categorias. Contudo, ainda que a análise
sintática revele um escopo determinado para a interpretação da significação de “ser”,
quando buscou-se investigar seu sentido fundamental isoladamente, “ser” passou a ser
considerado o conceito mais universal e mais vazio.

O poema de Parmênides, ao apresentar a noção de “ser” (einai) como um


conceito puro, de realidade completamente distinta da realidade das coisas que
aparecem e desaparecem, e ao afirmá-lo como o fundamento do pensamento e da
linguagem, o único caminho no qual o conhecimento é possível, nos autoriza a
considerar o “ser” como um conceito lógico. Ou seja, “ser” é um conceito de realidade
intelectiva, acessível apenas ao pensamento, e somente podemos conhecê-lo e
determiná-lo a partir de categorias da linguagem. Por isso, a realidade dos entes ou
“aparecentes” da physis, que são acessíveis aos sentidos, deve ser considerada em
separado.

Por outro lado, o pensamento e a linguagem dos homens inevitavelmente


buscam acusar, indicar, presentificar e compreender o que aparece aos sentidos
justamente a partir da noção de “ser”: “este algo é”. Além disso, as categorias da
linguagem, através das quais o ser pode ser determinado logicamente, são deduzidas

56
justamente a partir dessa necessidade de indicar o que aparece, mesmo que por vezes
isso se faça negativamente, por contraposição ao pensamento da physis. Por conta dessa
relação inevitável entre linguagem e physis, também estamos autorizados a entender o
“ser” como uma noção ontológica. Ou seja, o “ser” é um conceito metafísico, e
literalmente isso quer dizer que ele vai além da physis, tem uma natureza distinta da
natureza das coisas que aparecem e desaparecem. Mas esse ultrapassamento não implica
necessariamente que “ser” não possa, ao mesmo tempo, fundamentar o pensamento, a
linguagem e também o aparecimento de tudo o mais que possa se dar a perceber como
algo que é na physis.

Buscaremos reconhecer, em nossa leitura do poema, ambas as possibilidades


interpretativas, pois, na verdade, não as vemos como contraditórias ou excludentes.

A princípio, o que podemos dizer é que Parmênides inaugura, com a noção de


einai, um novo modo de compreender o ser, que busca considerá-lo enquanto tal, e não
mais a partir do que aparece e desaparece na physis. Sabemos, com isso, que einai não
se refere a determinado aspecto de algo, mas a própria determinação, da qual ele é o
fundamento. Contudo, não podemos determiná-lo. Mas sabemos que ele é determinável,
ou seja, ele se dá a conhecer, através de categorias lógicas, ou, nas palavras de
Parmênides, através de seus sinais. Porém, ainda antes da deusa nos propor sinais para
identificá-lo, e ainda muito antes de Aristóteles ter iniciado o estudo das categorias,
tudo o que sabemos é que einai não é physis. Será preciso, portanto, buscarmos
compreende-lo a partir do que ele não é.

Até este momento podemos afirmar que o poema de Parmênides inicia-se de


forma narrativa, deixando claras as origens da formação de seu autor, e apresentando
um caminho de conhecimento linear, com foco na imagem, na descrição e no poder de
presença dos nomes divinos. Em tal caminho o que se conta, normalmente sobre uma
terceira pessoa – no caso de Parmênides o próprio narrador-personagem transforma-se
no “homem que sabe” -, apresenta de forma encadeada, sucessiva e acumulativa os
acontecimentos que se quer fazer conhecer. Aqui a noção de “ser” significa antes de
tudo “existência”, “ter lugar no mundo”. A partir do momento em que Parmênides
começa a ser instruído pelo discurso da deusa, são inseridas a primeira e a segunda
pessoa do discurso. Uma na posição de fala outra na de escuta, marcando que o discurso
serve à comunicação entre os homens e tem função política e até mesmo erística, pois

57
ele deixa claro quem instrui e quem aprende, quem manda e quem obedece. A partir
daqui a noção de “ser” começa a ganhar outros significados conforme a posição que
ocupa na estrutura discursiva, e o caminho para o conhecimento não é mais apenas um.
No discurso, a multiplicidade de caminhos exige que se saiba julgar, e para que
possamos julgar é preciso conhecer as regras e os sinais de indicação do caminho
verdadeiro.

Sobre o caminho verdadeiro, o que sabemos, por hora, é que ele se distingue da
via multifalante na qual os homens erram sem rumo certo. Tal via multifalante e sem
rumo está de acordo com a pluralidade das aparências das coisas, considerada através de
um modo de pensamento embasado na physis. A verdade, revelada pela deusa em sua
morada fora do mundo, não diz respeito a coisas. Diz respeito a algo determinado, uno,
sem inclinações, a algo que nunca se perde de si mesmo.

Para que possamos descobrir como pensar sobre algo distinto do que nos
aparece, como distinguir os múltiplos caminhos, como decidir sobre qual deles tomar e
porquê, será preciso seguir ouvindo o discurso da deusa.

58
II.III – A encruzilhada: os diferentes caminhos do pensamento.

A deusa descreve as únicas vias de questionamento que são a pensar do seguinte


modo:

“uma, para o que é e, como tal, não é para não ser,


é o caminho de Persuasão – pois Verdade o segue -,
outra, para o que não é e, como tal, é preciso não ser,
esta via indico-te que é uma trilha inteiramente inviável;
pois nem ao menos se reconheceria o não ente, pois não é realizável,
nem tampouco indicaria”. (DK B2)

Há, no entanto, outra versão para este mesmo fragmento. A diferença consiste no
seguinte: onde a deusa diz que a trilha do não-ser é inviável, impensável ou inexplorável
a palavra grega correspondente é panapeuthéa. Mas, há outra versão onde se encontra a
palavra panapeithéa, que não significa “inviável”, e sim “de todo não convincente”. De
acordo com essa segunda possibilidade, a deusa apresenta dois caminhos viáveis, porém
um é persuasivo e o outro não é. O caminho não convincente, não sendo intrilhável, não
diz respeito a um ente ou a entes não realizáveis ou não indicáveis, mas apenas
incognoscíveis. Assim, o problema de andar por esta via não consiste na
impossibilidade de tal tarefa, mas no fato de que isso implicaria não alcançar o
conhecimento verdadeiro. (COSTA, A. 2010, págs. 46-50). Desse modo, a via do não
ser poderia ser dita da seguinte maneira: é uma trilha para o incognoscível, pois nem
conhecerias o não-ente nem o declararias.

Esse fragmento é um dos mais importantes e também mais polêmicos de todo o


poema. Ao interpretá-lo, as opiniões se dividem tanto quanto ao sujeito gramatical em
questão, como quanto ao modo de enfatizar os aspectos semânticos ou sintáticos do
verbo eimi (ser).

Na frase “é, e como tal não é para não ser” (ἡ μὲν ὃπως ἒστιν τε καὶ ὡς οὐχ ἐστιν
μὴ εἰναι) (B2, 3), o artigo feminino “ἡ” provavelmente se refere a “ὁδοὶ”, caminho.
Como os caminhos de Parmênides são caminhos de conhecimento, é possível considerar
que “ser” diz respeito tanto ao caminho do conhecimento verdadeiro, como ao que nele
se conhece. Do mesmo modo, “não-ser” pode dizer respeito tanto ao caminho onde o
conhecimento não alcança a verdade, como aos objetos incognoscíveis que ele pode
apresentar. Mas esta interpretação está longe de ser unânime. Um dos tradutores chegou
a considerar que havia uma lacuna na frase, e inseriu a expressão “aquilo que é” para
ocupar a posição de sujeito, sugerindo que a frase fosse lida como “aquilo que é, é, e é

59
impossível que não seja”51. De acordo com a opção interpretativa, pode-se considerar
que o sujeito do caminho da verdade é “tudo aquilo que se pode pensar que é” 52 ;
“qualquer objeto53; “o universo ou o mundo54; e até mesmo “o que chamamos corpo”55.
Há quem defenda que não há sujeito algum, e, para justificar essa afirmação, diz que
“ser” é um verbo impessoal, como “chove”56. Também é possível interpretar que, nesse
primeiro momento, o ser se mostra apenas como uma evidência: é, existe. E é
justamente nessa evidência que se pode encontrar o sujeito57.

Para nós parece claro que a deusa se refere às vias de questionamento que
podem ser pensadas. Mas, o que significa distingui-las usando os termos “ser” e “não-
ser”?

Vimos que “ser’ significa antes de tudo “existir”, “aparecer de modo


consistente”, “estar presente” e “ter lugar no mundo”. Em sua raiz etimológica “ser”
remonta a “esse” (SANTORO, 2001, pág. 114) e nele encontram-se também os sentidos
de “respirar”, “viver” e “permanecer” (CORDERO, 1984 pág. 216). Por outro lado,
vimos que ao assumir diferentes posições sintáticas, o sentido de “ser” se modifica, e
pode significar tantas coisas que torna-se praticamente impossível determiná-lo
enquanto tal. Com isso, surge a necessidade de avaliar, a cada vez, o que “ser” pode
significar conforme a posição, função e inclinação que assume em cada proposição
linguística. Contudo, os sinais (as protocategorias que a deusa apresentará) ainda não
foram tematizados como critérios para julgar o que determinado modo de apontar
indica. Além disso, com todo o desenvolvimento, lapidação, crítica, e até disputa acerca

51
Este é o caso de Cornford, que se apoia no fragmento DK B6, no qual Parmênides diz “ἐὸν ἒμμεναι”,
para sugerir que no lugar da ausência de sujeito Parmênides teria escrito ἡ μὲν ὃπως ἐὸν ἒστι χαὶ ὡς”.
Cornford traduz o frag. DK B2 da seguinte maneira: “Ven ahora y te diré – atiende y pon mis palabras en
tu corazón – las únicas vías de investigación que pueden ser pensadas: uma, que <Aquello que es> es, y
es imposible que no sea, es la Vía de la Persuasión, pues la persuasión sirve a la Verdad”. CORNFORD,
1989, pág.74.
52
Essa é a posição de Owen, de acordo com Cordero (CORDERO, N. 2005, pág.65) e Guthrie, W.
(GUTHRIE,W. 1986, pág 29).
53
Essa é a posição de Gomez-Lobo, também de acordo com Cordeiro (CORDERO, N. 2005, pág. 66).
54
De acordo com Cordeiro, L. Woodbury sustentou que o sujeito é o mundo e Verdenius que é o universo
(CORDERO, N. 2005, pág. 65-66).
55
De acordo com Guthrie, Burnet defendeu que o sujeito ao qual o verbo “ser” se refere é “um plenum
corpóreo, esférico e imóvel”. (GUTHRIE, W. 1986, pág. 39) e com Cordero, que diz que para Burnet “o
sujeito é o que chamamos corpo” (CORDERO, N. 2005, pág. 65).
56
Essa é a posição de H.Frankel, conforme atestam Guthrie e Cordeiro (GUTHRIE, W. 1986, pág. 29) e
(CORDERO, N. 2005, pág.68).
57
Esta é a posição defendida por Néstor Cordero. De acordo com Cordero, “O ponto de Partida de
Parmênides é o desnudo éstin porque o filósofo quer privilegiar uma certeza inegável (...): agora, no
presente, nesse instante mesmo, ‘se é’”. (CORDERO, N. op. cit. pág. 69).

60
das categorias ao longo da história da filosofia, os caminhos ou métodos interpretativos
para se alcançar o verdadeiro conhecimento podem ser muito diferentes. Também a
interpretação semântica de determinada variação sintática do verbo “ser” pode variar
bastante.

É possível reconhecer na referida frase, onde a deusa apresenta o caminho que é,


na primeira vez em que “ser” aparece (como “é”), o uso existencial, e na segunda (não
pode não “ser”) a função de semi-auxiliar modificador de outro verbo. Assim, a frase
pode ser interpretada da seguinte maneira:

“uma via de conhecimento realmente existe (porque revela o que existe,


porque deixa o real desvelar-se na verdade). Esta via não deve deixar de ser,
não deve ser ocultada, não devemos afastar-nos dela nem falseá-la” (Santoro,
2001, pág. 125).

Também é possível reconhecer na mesma frase, a função “veritativo-


predicativa”, que implica dizer “é verdade que” ou “é o caso que”(KAHN, C. 1997, pág.
200). Trata-se de um uso metalinguístico, que permite ao verbo “ser” significar a
verdade de uma proposição. Atribuir ao “ser” uma função veritativa deriva da tentativa
de universalizar o uso predicativo (copulativo), que é eminentemente sintático,
independente do valor semântico. (MARQUES, M. 1990, págs. 58-59). Esta
interpretação não é incompatível com a primeira, pois seria possível dizer que a deusa
afirma “é verdade que existe”, e também “é verdade que deve, necessita, ser”. Contudo,
essa posição interpretativa compreende a noção de ser como fundamentalmente
metalinguística, enquanto a primeira, embora afirme que o sentido originário de ser
pode se enfraquecer para ressaltar o sentido de outros verbos, parte de uma
compreensão de “ser” a partir de seu uso existencial. Assim, ainda que a análise
sintática muito possa nos auxiliar na interpretação semântica, sua função é antes limitar
o escopo de possibilidades de um conceito tão amplo, para que a partir de tal limite ele
possa ser compreendido no âmbito específico de sua posição na proposição, do que de
fato determinar sua significação enquanto tal.

Relacionando as duas possibilidades interpretativas que oferecemos, que partem


de um estudo do uso sintático de einai (ser), no fragmento II, temos, então, que: a deusa
exorta o caminho da existência, exorta também que ele deve ou necessita ser trilhado, e
ainda afirma que é verdade o que afirma. A partir disso, poderíamos dizer que o
caminho do não-ser refere-se ao que não existe, e não deve ser trilhado. Mas o que
significa não existir? Se não existir fosse não existir absolutamente, e consequentemente

61
o caminho do não-ser fosse também um caminho impossível de existir, por que
distingui-lo do ser?

Normalmente separamos e distinguimos uma coisa que é de outra coisa que


também é. Só assim podemos decidir sobre o que é cada uma. Só seria possível decidir
não trilhar determinado caminho se ele existisse. Uma interpretação existencial do “não-
ser” também pode considerar que o que “não-é” não existe tal qual o que é existe, sem
que por isso não possa existir de modo algum.

Como vimos na sessão anterior, a deusa, nesse primeiro momento, não nos fala
sobre o mundo ou sobre as coisas do mundo. É preciso distinguir o modo de existir das
coisas que aparecem do modo de pensar conforme as aparências. Bem como, é preciso
distinguir de ambos esses primeiros, o modo de existir que não diz respeito as coisas
nem ao pensamento que parte do aparecimento e desaparecimento delas. Para que
possamos discernir e decidir pela via do ser, que existe de modo diferente do que
aparece e do pensamento embasado em aparências, é preciso termos claro o modo de ser
das coisas que aparecem e o pensamento que delas parte.

Ser ao modo das coisas é ser tendendo a não-ser, é ser como physis. Se o que é
não pode não ser, as coisas de certo modo não-são. Mais adiante teremos que refletir
sobre a realidade das coisas, e se é possível que elas sejam e não sejam ao mesmo
tempo. Consideremos agora somente os dois caminhos sobre os quais a deusa nos fala,
que não dizem respeito as coisas, mas antes ao pensamento.

O pensamento que parte das aparências, ou seja, o pensamento da physis, é aqui


chamado a via do não-ser. Sobre essa via, a deusa nos diz que não é convincente e
persuasiva, e também não é acompanhada pela verdade. Pode ser, então, compreendida
como o caminho onde a verdade está ausente ou oculta, e, portanto, é o caminho onde
há o risco do falseamento e do engano. Esse caminho de pensamento diz respeito ao que
não existe enquanto tal, e, por isso, ele próprio não pode existir em sentido pleno.
Assim, a deusa exorta a não o deixarmos ser de modo algum, já que ele não deve ser
trilhado. É necessário, então, que ele não seja o caminho através do qual nosso
pensamento siga.

Mas por que é necessário que um caminho possível a se pensar e trilhar não
deva ser realizado? Ora, se a deusa instrui para que sejamos capazes de seguir pela

62
verdade, este caminho não deve ser tomado, porque dela nos desvia. Parmênides não
quer sofrer, como Odisseu, os desvios que o impediam de retornar à casa. Ele quer
conhecer a rota que o torne capaz de voltar ao ponto de partida de seu pensamento. Quer
tomá-la como norma, regra, regulamento e cumpri-la com justiça, julgando, discernindo
e decidindo conforme a nela manter-se. O caminho do não-ser é contrário a isso tudo.
Logo, trata-se de um desvio, onde a verdade está ausente ou oculta e a rota é incerta,
sem retorno, infinita, indeterminada, não conduz ao conhecimento e a sabedoria, pois os
critérios que adota não tornam possível julgar, discernir e decidir com verdade e, por
isso enganam, ao contrário de nos fornecerem alguma autonomia. Sem autonomia de
decisão estamos sempre a deriva, a mercê dos ventos, ou seja, dos deuses ou princípios
da physis.

O caminho do não-ser é portanto, desvio sem retorno, sem fim, é caminho de


ausência, ocultamento, incerteza, falta e indeterminação. Como não é um caminho
impossível, pode existir. Mas se existe estará sempre dirigindo-se a perder-se, a não-ser.
O caminho do não-ser é um caminho onde aparecimento e desaparecimento,
movimento, mudança, inclinação, ocultamento e incompletude são noções
independentes das coisas, são noções adotadas como princípios para o pensamento.
Nesse caminho o pensamento fundamenta-se tomando como base a physis. Mas tais
noções, ainda que possam ser tomadas falsamente como noções que são conforme o
pensamento, e por isso podem existir e serem pensadas, na verdade não são e precisam
não ser.

Há, portanto, dois caminhos que são a pensar: o caminho do ser, não mais
compreendido enquanto physis, mas enquanto einai; e o caminho da physis, não mais
compreendido enquanto ser, mas enquanto não-ser. Nenhum dos dois dizem respeito as
coisas, mas a modos de pensar. Nesse momento ainda não cabe questionar acerca da
realidade do que aparece, mas do modo de pensar que adota como princípios o
aparecimento e desaparecimento, o movimento, a mudança, a incompletude... Ou seja,
trata-se de negar o método de pensamento desenvolvido pelos physikói.

Por enquanto temos que einai é o princípio de determinação que fundamenta um


caminho de investigação diferente do caminho que parte da observação da physis. Esse
princípio dá-se a conhecer somente se tomarmos como base, como ponto de partida e de

63
chegada, o próprio pensamento. A mudança no método de buscar compreender o ser
deve levar-nos a investigar o que ela pode implicar.

Aristóteles nos fez compreender que os pitagóricos se aproximaram da noção de


forma porque começaram a dar definições. Sobre Parmênides, ele nos disse que pensava
sobre o ser e o uno segundo o lógos, o que nos leva a imaginar que talvez possamos
reconhecer a noção de forma em sua filosofia. Que diferença podemos encontrar entre o
modo de indicar a noção de forma, que pudemos observar no primeiro capítulo, na
filosofia pitagórica, e a noção de forma que einai (o caminho de investigação proposto
por Parmênides) pode nos revelar? Que tem a ver a noção de forma com o alcance de
uma investigação sobre a linguagem e o conhecimento humanos? Que relação pode
haver entre essa nova investigação e uma outra que lhe é anterior: a que busca articular
unidade e totalidade, a partir da tensão entre finito e infinito, no âmbito fisiológico.

Antes de tudo, para que seja possível falarmos de um âmbito fisiológico de


investigação é preciso que haja um outro âmbito qualquer a se investigar, que o limite e
o torne apenas um “âmbito” e não a única via de investigação possível. Dissemos logo
no início de nossa pesquisa que o “ser” era percebido e pensado como physis justamente
porque physis compreendia tudo o que há, tanto no sentido de abarcar como no de dar a
entender. Não havia uma distinção clara entre a natureza dos objetos sensíveis, as coisas
que aparecem, e a natureza do pensamento e da linguagem. Mesmo o pensamento e a
linguagem eram considerados physis. Por isso, podíamos pensar, tanto nas coisas como
nas noções do pensamento, a partir da constatação sensível de que tudo o que existe está
em pleno devir: movendo-se da obscuridade e indeterminação para a luminosidade e
determinação para, em seguida, retornar à obscuridade e indeterminação, e assim
infinitamente.

Como na physis tudo se transforma e se perde em indeterminações, tais


indeterminações também se mostram presentes no caminho de pensamento que é
conforme a physis. Mas, se pensarmos adotando como critérios geração, corrupção,
movimento, mudança e oposição não encontraremos para nosso próprio pensamento um
porto seguro. Por isso einai, enquanto caminho que completa a sua rota, não pode ser
conforme a physis, assim não pode ser mundo e nem pode pensar a partir das coisas do
mundo. Mas isso não significa que exista aparte do mundo, porque não se trata de
pensar sua existência fisiologicamente. Einai é pensamento. E é justamente isso o que a

64
deusa nos diz, em tom de justificativa, logo após indicar os dois caminhos que devem
ser pensados e dizer que o primeiro deve ser seguido: “pois o mesmo é pensar e ser”58.
(DK B3).

Dizer que ser é pensar não consiste em afirmar que ser significa pensar. Não é
esse o caso. Trata-se apenas de identificar a ambiência na qual ser é. Ser, enquanto tal,
só se encontra no pensamento. Ser é pensamento e deve ser pensado. Com isso,
Parmênides inaugura um novo âmbito a se investigar, distinto do fisiológico: o âmbito
intelectivo.

Parmênides busca um caminho de pensamento que conduza os homens à


verdade, que os torne capazes de discernir e tomar decisões em suas vidas, e também
que os ajude a se comunicar uns com os outros, quando uma narrativa não for suficiente
para instruir, compreender, pedir ou persuadir. Por isso, einai não diz respeito a
percepção sensível, nem a obscuridade e indeterminação, mas ao que fundamenta o
pensamento e o torna capaz de julgar. Uma noção como tal não pode ser apresentada de
maneira narrativa, nem tampouco a partir de princípios que lhe sejam contraditórios,
mas deve mostrar-se ao pensamento, justamente quando ele trabalha sobre si mesmo:
argumentando, julgando e discernindo.

Assim, Parmênides inaugura, juntamente ao âmbito puramente intelectivo de


investigação, uma linguagem que seja capaz de pensá-lo e dizê-lo. Não se trata mais da
narrativa nem do lógos katà physin, trata-se de um lógos argumentativo, um lógos
segundo si mesmo:

“A lógica dos lógoi, tal como essa última e redundante expressão prenuncia,
inaugura a tó autó logiké, a tautologia, uma lógica da identidade: ‘o ser é, o
não ser, não é’(...) A=A, B=B, C=C etc.”. (COSTA, 2010, pág. 60)

58
Esta passagem é assim traduzida por Sérgio Wrublewski e Trindade dos Santos, e está conforme a
versão de Diels. A tradução de Fernando Santoro, que utilizamos na maior parte de nosso texto, diz o
seguinte: “pois o mesmo é (a) pensar e também ser”. Esta tradução “visa deixar em aberto as
possibilidades sintáticas” (SANTORO, 2011a, pág. 89 nota 27). Há aqui muitas dessas possibilidades. Os
verbos einai e noein (ser e pensar) podem ser compreendidos como estando em função nominal e caso
nominativo, e poderiam assumir função de sujeito: neste caso pode-se dizer que ser e pensar são o
mesmo, ou o mesmo é ser e pensar. (optamos por uma tradução que segue esta via, pois nossa
interpretação lhe é conforme). Os mesmos verbos, ainda na função nominal, também podem ser tomados
no caso dativo (como pensa Zeller), o que leva a interpretação de que ser é igual ao objeto do
pensamento. Há também a possibilidade de que estin esteja na função de verbo semi-auxiliar modificador,
comum nos casos de exortação. Assim, “o mesmo é a pensar e também é a ser” pode ser interpretado
como uma exortação para que as atividades de ser e pensar se integrem em uma única via. Ou ainda como
uma exortação a pensar a verdade, no caso de “o mesmo é a pensar e em vista de que há pensamento”
(SANTORO, 2001, pág. 129).

65
Não há espaço para a ambiguidade, para a equivocidade e para a obscuridade.
Parmênides aponta não para o que é imediato aos sentidos (por exemplo, que algo
surgiu e desapareceu), mas para o que é imediato ao pensamento: a identidade de
determinada noção com ela mesma. Para que uma noção de pensamento se mostre
idêntica a si mesma, deve se dar a pensar enquanto algo determinado, definido, ou seja,
enquanto forma.

Quando, no capítulo anterior, investigávamos o pitagorismo, justamente


procurando saber se os physikói compreendiam a noção de forma, vimos com
Aristóteles que eles não a desenvolveram enquanto tal, mas a indicaram, na medida em
que começaram a dar definições.

O pensamento pitagórico dedicou-se principalmente as formas geométricas e a


escala musical. Vimos que tanto as formas geométricas como a música podem ser
concretamente percebidas pelos sentidos, e por isso os números eram considerados
princípios materiais. Contudo, vimos também que pensar sobre números, formas
geométricas e música exige uma certa independência quanto a preocupação acerca do
preenchimento material que podem apresentar. A preocupação principal diz respeito a
articulação entre limite e ilimitado que, ao delimitar certa unidade que se dá a perceber
como um todo, permite que algo apareça, seja no aspecto, no contorno, no desenho do
que se dá a ver, seja nas escalas, medidas e proporções dos sons que podemos ouvir.

O objeto de estudo de Parmênides, diferente dos objetos investigados pelos


pitagóricos, não se dá a perceber aos sentidos, mas somente ao pensamento que
investiga a si mesmo. Contudo, assim como seus predecessores, Parmênides entende
que o que permite que algo seja, não ao modo do que aparece aos sentidos, mas ao
modo das noções do pensamento, é o resguardo dos limites. Quando o pensamento se
volta a si mesmo, ainda antes de explorar o conteúdo de determinada definição, deve
poder confiar que as definições são estáveis, fixas, idênticas a elas mesmas. Ou seja, que
elas se manterão em seus limites.

Parmênides, assim como os pitagóricos, não investigou diretamente a noção de


forma (enquanto eidos), como fará Platão. Mas, certamente se aproximou dela.

A noção de forma, que podemos reconhecer no pensamento de Parmênides, não


deve lidar com aspectos diferenciados de algo que pode mover-se e mudar, não deve

66
também carecer de nenhuma mediação sensível. O que está em questão é o único
aspecto de algo que deve ser uma unidade imóvel e em si. Além disso, as noções de
pensamento, que agora poderemos chamar de formas, conceitos ou definições, devem
ser completamente livres e independentes do que aparece aos sentidos. Por exemplo, se
uma forma geométrica, mesmo que não careça de preenchimento material quando é
pensada, ainda exige que consideremos o seu contorno, como se o víssemos, isso não
acontece com as definições conceituais.

Mais a frente, Parmênides nos dirá sobre o “ser” que é “semelhante à massa de
uma esfera bem redonda, do centro por toda parte igualmente tenso” (DK B8 43-44).
Mas dizer que é semelhante não significa dizer que é igual. Ora, para quem tematiza
diretamente o princípio de identidade, essa diferença certamente é clara. Com essa
analogia Parmênides distingue a sua compreensão das formas de pensamento da
compreensão pitagórica das formas geométricas. Mas ao mesmo tempo as associa.
Assim, podemos interpretar que: se por um lado as formas de pensamento assim como
as formas geométricas afastam-se do âmbito sensível de investigação, porque são
independentes do preenchimento material das coisas, bem como de seu aparecimento e
desaparecimento; por outro lado, as formas de pensamento não dependem sequer que as
projetemos visualmente em nossa mente, ou seja, não carecem de nenhum tipo de
mediação sensível. Além disso, Parmênides nos diz que o que é limitado pelo limite, ou
seja, a massa da esfera, é tão importante para a sua noção de forma quanto o próprio
limite ou contorno, que “cerca por todos os lados” (DK B8 31). Isso porque tal massa
diz respeito não mais ao preenchimento material, mas ao conteúdo conceitual de
determinada noção. Assim temos que uma forma de pensamento deve ser uniforme,
homogênea, ou seja, uma definição não pode abarcar o que dela se difere, deve ser um
todo único e limitado.

Os pitagóricos já nos haviam indicado que pensar sobre uma forma implica
atentar para limite, determinação e definição. Parmênides nos diz agora que devemos
considerar que o que se dá a pensar enquanto limite, determinação e definição deve ser
idêntico a si mesmo, e deve apresentar um conteúdo estável, no qual possamos confiar.
Assim, embora ele não tenha tematizado diretamente a noção de forma, podemos dizer
que ele a pensou enquanto tal, na medida em que considerou os limites, determinações e
definições não mais das coisas presentes no âmbito fisiológico, mas do que pode ser
pensado enquanto unidade de significação idêntica a si.

67
A forma diz respeito a unidade, a totalidade e a relação entre limite e ilimitado.
O limite cerca algo, assim estabelece uma unidade e ao mesmo tempo define o conteúdo
por ele cercado, a totalidade que abarca. Mas apenas pode ser limite frente ao ilimitado,
que, por diferenciar-se dele, permite que ele apareça. Essas noções são fundamento para
a forma geométrica, bem como para todos os objetos que possam aparecer em âmbito
sensível. Ao mesmo tempo são também essas noções que fundamentam a forma, os
conceitos e definições no âmbito do pensamento e da linguagem. Encontramos, então,
fundamentos originários presentes tanto em âmbito sensível como em âmbito
inteligível, tanto no caminho do ser como physis, como no caminho do ser como einai.
Mas, como os dois caminhos seguem direções opostas, será preciso notar a diferença na
compreensão de cada um sobre as mesmas noções.

Vimos que Parmênides inaugura o âmbito puramente intelectivo de investigação,


mostra-nos que tal âmbito deve ser explorado a partir de um lógos argumentativo e nos
diz que esse lógos argumenta a partir de formas de pensamento bem definidas,
homogêneas, idênticas a si. Essas descobertas tornarão Parmênides o marco principiador
das investigações acerca do conhecimento e da linguagem.

De início buscávamos justamente compreender a investigação sobre o ser, que


busca relacionar as noções de unidade, totalidade, limite e ilimitado no âmbito da
physis. Notamos agora que tais noções permanecem presentes na investigação acerca da
linguagem e do conhecimento. Devemos, então, prosseguir nossa leitura do poema
observando justamente como as descobertas de Parmênides se desenvolvem em um
método para conhecer e dizer o ser, e de que modo as noções antes presentes no
pensamento segundo a physis, que também são fundamentais ao pensamento segundo o
einai, são resignificadas.

No âmbito intelectivo de investigação pensamos sobre o pensamento e buscamos


conhecer o modo de conhecer. Isso só é possível através da linguagem. A investigação
sobre o conhecimento e a linguagem dos homens ganha força quando passamos a nos
perguntar sobre o “ser” como pensamento, como conceito. Mas isso não significa que,
neste modo de investigar, não haja mais interesse por relacionar unidade e totalidade.
Ao contrário, unidade e totalidade também estão presentes na investigação que parte do
ser enquanto tal. São marcas e sinais desse caminho. Descobrir o pensamento e a
linguagem como método de investigar o “ser”; como caminho do, em e para o “ser”,

68
não é uma ruptura com o interesse pela unidade, totalidade e pela tensão entre limite e
ilimitado, que, como vimos, são noções fortemente presentes na compreensão do ser
como physis. É, antes disso, uma nova forma de compreender essas noções. Elas não
são mais tomadas como princípios ou causas materiais que iniciam ou se fazem
presentes durante o desenvolvimento de uma sequência infinita de geração e corrupção.
São fundamentos conceituais, pontos de partida e de retorno, sempre presentes ao
pensamento, sinalizando o que nele não se altera, e tornando cognoscível o que puder
ser pensado (tudo o que é). A principal diferença é que com Parmênides torna-se
explícito, consciente, que tais noções são pensamento, e mais do que isso: são
pensamentos reguladores, normativos, que nos tornam capazes de julgar.

Após apresentar a relação necessária entre ser e pensar - porque ser enquanto tal
só pode ser no pensar, e portanto é pensamento -, Parmênides nos fala da relação entre
ser e pensar com o dizer, pondo em questão a necessidade de refletimos sobre a
linguagem. “Precisa tal dizer tal pensar que o ente é; pois há ser,
mas nada não há isto eu te exorto a indicar” (DK B6 1-2).

Einai está relacionado a nous e a légein pela necessidade. É necessário ao


pensamento e a linguagem, pensar e declarar o que é. Assim, tudo o que puder ser
pensado e dito, deve ser pensado e dito segundo o ser.

A palavra légein já nos apareceu anteriormente, quando tratávamos de Heráclito.


Vimos que além de significar dizer, falar, enunciar, declarar, ela traz em si as noções de
colher, recolher, estender, escolher, juntar e acolher. Tais noções dizem respeito a
operações fundamentais da linguagem. A partir dessas operações estabelecemos no
pensamento certas unidades, que são em si mesmas totalidades e limites conceituais, as
quais nos referimos por intermédio das palavras, e assim somos capazes de atribuir
significado ao que nomeamos e nos comunicar. O pensamento se dá a partir da
linguagem, quando, através dela, busca dar forma ao que pensa, ou mesmo quando
reflete sobre a própria linguagem buscando encontrar-se. O âmbito intelectivo é
fundamentalmente linguístico.

Linguagem e pensamento são ferramenta e faculdade que auxiliam nossos


sentidos a perceber e receber o que está ao nosso entorno. Elas nos ajudam a colher
naquilo que aparece, os aspectos, as múltiplas formas de ser a ele relacionadas. Feito
isso, são as mesmas ferramenta e faculdade que nos permitem recolher e trazer conosco

69
uma determinada variação de associações relacionadas, e então podemos estender sobre
a mesa do pensamento, como se fossem grãos, tais associações referentes as impressões,
imagens e sensações que recolhemos. Tentamos, então, estabelecer o limite do que algo
pode significar sem perder-se totalmente do que lhe é fundamental. Buscamos encontrar
sua unidade, sua forma mais completa e consistente. A partir disso julgamos.
Escolhemos a cada vez que algo semelhante nos aparece ou a cada vez que queremos
torná-lo novamente presente, de que forma ele deve ser acolhido em nós, de que forma
separar e reunir, de que forma reapresentar. Mas há também um outro modo de pensar e
trabalhar com nossa linguagem que não carece do que aparece e de seus diversos
aspectos. Tal é o caso do lógos segundo ele mesmo, a tautologia.

Parmênides descobriu que apenas somos capazes de colher, recolher, estender,


juntar, escolher e acolher informações, aspectos de algo, e relacionarmos a esse mesmo
algo, porque antes de tudo nosso pensamento parte da identidade: identifica, determina,
define. Partimos da identidade e para ela buscamos voltar, pois é identidade o que
procuramos encontrar nas coisas que aparecem. Antes mesmo do aparecimento de
qualquer coisa que seja, sabemos que algo que é, é igual a si mesmo. Por isso, para que
possamos estabelecer a unidade, a totalidade e o limite de algo e conhecermos sua
identidade, é antes preciso ter clareza acerca do que são essas noções e do fundamento
que faz delas os verdadeiros critérios para o juízo.

Parmênides investiga o ser. Quer conhecê-lo, determiná-lo. Mas, para isso, não
parte das coisas que aparentam ser, e sim do próprio ser como fundamento do
pensamento e da linguagem. Ainda que possamos conhecer o significado originário de
ser, que indica que algo existe e tem lugar no mundo, ao observarmos o uso que dele
fazemos na linguagem, podemos notar que o que ele indica pode extrapolar o seu
sentido original. Do mesmo modo, ao observarmos a diversidade e multiplicidade dos
entes, e de seus aspectos, aos quais nos referimos através da noção de ser, fica evidente
que, ao pensarmos sobre o que é o ser enquanto tal, estaremos lidando com o que há de
mais abrangente e difícil de definir, mas ao mesmo tempo com o que nos permite
indicar e definir tudo sobre o que pensamos e falamos. Se o ser é fundamento de tudo, é
o único caminho que devemos trilhar, é preciso pensar o ser partindo somente do ser.
Mas tudo o que sabemos sobre ele é que é.

70
Partindo justamente da tautologia segundo a qual o ser é, Parmênides descobriu
o princípio de identidade. Mas se o ser é igual a si mesmo, não pode, por outra
perspectiva, não ser igual a si mesmo. Caso contrário teríamos uma contradição.
Também não pode, na mesma perspectiva, ser e não ser igual a si mesmo, pois nesse
caso, além da contradição interna, este algo seria outro em relação ao que simplesmente
é, e consequentemente não seria o que é, mas não-ser. Assim, no âmbito do pensamento,
através de um lógos auto-referente, Parmênides deduziu os três axiomas fundamentais
da lógica clássica, mais tarde desenvolvida por Aristóteles: o princípio de identidade, o
princípio de não contradição e o princípio do terceiro excluído. Essa linguagem,
tautológica, é a única adequada para investigar o ser. Mas, a partir dela, o que mais
poderemos saber sobre o ser além de que ele é? Ora, além do princípio de identidade
temos o princípio de não contradição, que nos indica a negarmos o que o ser não é, e
assim nos aproximarmos do que ele é, seguindo justamente o caminho oposto ao que
não deve ser seguido. Além disso, temos também o princípio do terceiro excluído, que
nos indica a jamais associarmos o que descobrirmos sobre o ser, através da negação do
não ser, com o que lhe for contrário.

Investigando o não ser, ou seja, o pensamento sobre a physis que Parmênides já


conhece bem, será possível alcançar os sinais do ser. Mas o que são tais sinais? No
caminho do ser, os sinais são como marcas que nos ajudam a nos mantermos nele, a não
nos desviarmos, a não nos perdermos. São noções orientadoras do pensamento, critérios
que permitem julgar. Porém, são diferentes das noções adotadas no caminho da physis,
pois essas dizem respeito justamente aos marcos e indícios de entes ou aparecentes
sensíveis, ou seja, dizem respeito a sinais que não são conforme o pensamento deve ser,
mas são tomados como se fossem. Os sinais do ser, por serem investigados a partir do
pensamento puro, tautológico, puderam ser deduzidos por oposição ao caminho do não
ser sem que sua natureza fosse confundida com a natureza equivocada dos sinais desse
último, que não são objetos sensíveis, nem são pensamento com base no pensamento,
mas pensamento com base em objetos sensíveis.

Do ponto de vista da linguagem, os sinais do ser podem ser compreendidos


como protocategorias capazes de determiná-lo. Por outro lado, do ponto de vista da
natureza de tais noções, acreditamos que elas não se distinguem da natureza do próprio
ser. Ou seja, enquanto princípios ontológicos, os sinais do ser indicam o ser justamente
porque são. Aproveitando a imagem do caminho podemos pensar que, se por um lado as

71
placas são diferentes do caminho, pois o caminho é o fundamento, a base, o solo que
contém e articula todas as placas na direção de si mesmo e as placas são marcos que
estão nele, indicando-o e determinando-o; por outro lado, as placas somente podem
estar em um caminho que é todo idêntico a si mesmo, porque são tal caminho, ou seja,
são conforme o que é. Mais a frente voltaremos com mais atenção aos sinais do ser. Por
ora, temos que a partir da negação dos princípios adotados pelo pensamento da physis,
ou seja, pela via do não-ser, Parmênides deduz, com base no princípio de não
contradição, os sinais capazes de indicar o ser. A partir de tais sinais torna-se possível
saber sobre o ser algo mais, além de que ele é.

Vimos, com a noção de légein, que as primeiras indicações do modo de pensar


segundo a forma têm relação com certos processos que realizamos quando percebemos
o que aparece. Além disso, sabemos que a via do não-ser não deve ser justamente
porque pensa conforme o que aparece. A partir disso podemos notar que, embora
Parmênides opere uma distinção entre o âmbito da physis (o âmbito fisiológico,
fenomênico ou sensível) e o âmbito do ser enquanto tal (einai), (o âmbito do
pensamento, linguístico ou intelectivo), a ruptura que põem de um lado ser, pensar e
dizer e de outro lado aparecer, não implica na impossibilidade do âmbito intelectivo
refletir sobre o que aparece. Ao deduzir os sinais do ser por oposição a via do não-ser
podemos notar com clareza que o pensamento tautológico apenas avança porque pode
considerar, mesmo que por oposição, o que lhe é distinto.

Na sequência, Parmênides nos apresenta a terceira via, que é conforme o terceiro


princípio axiomático que descobriu:

“Pois afasta-te59 desta primeira via de investigação,


em seguida daquela em que mortais que nada sabem
forjam, bicéfalos; pois despreparo guia em frente
em seus peitos um espírito errante; eles são levados,
tão surdos como cegos, estupefatos, hordas indecisas,
para os quais o existir e não ser valem o mesmo
e não o mesmo, de todos o caminho é de ida e volta”. (DK B6 vs. 3-9).

A primeira via da qual a deusa mandou nos afastarmos é a via do não-ser. A via
que investiga as coisas em devir a partir dos critérios do devir. Agora ela nos exorta a
também nos afastarmos de uma via que não é exatamente um caminho de pensamento,

59
Fernando Santoro optou por deixar uma lacuna em sua tradução seguida por uma nota explicativa na
qual apresenta como possibilidades tanto “afasta-te” como “parte”. A primeira opção remonta a Diels e a
interpretação que reconhece três caminhos apresentados pela deusa no poema, a segunda remonta a
Cordero e a interpretação que reconhece apenas dois caminhos. (SANTORO, F. 2011a, pág. 91).

72
de investigação, conforme o do ser e o do não ser, que ela antes nos apresentou como
caminhos que são a pensar. Trata-se do modo confuso dos homens conduzirem-se pela
errância, seguindo o que lhes dão a perceber os seus sentidos, porém como se fossem
surdos e cegos. Ora, esta via é marcada pela dualidade, pela contradição interna. Isso
porque os sentidos não podem ser os únicos condutores, uma vez que a natureza do
homem é dotada da capacidade de pensar e dizer. Assim, os homens que trilham a via
da errância confundem seu próprio pensamento e suas percepções sensíveis, como se
ambos valessem o mesmo. Diferente dos physikói que transformavam o que percebiam
em critérios que lhes permitissem julgar, nessa via não há critérios de juízo. Aqui os
homens são como um único corpo conduzido por duas cabeças, incapazes de discernir,
acríticos.

Nesse momento Parmênides nos apresenta o terceiro axioma da lógica, chamado


por Aristóteles de o terceiro excluído. Essa via da qual ele nos fala, onde ser e não ser
são o mesmo e não o mesmo, é a terceira via apresentada e deve ser completamente
excluída. Aqui o que se passa pela cabeça dupla dos homens não pode ser realmente
pensamento, por isso a deusa não a citou entre as vias que são a pensar. Esta via sequer
é, mas é forjada pelos homens como se fosse. Isso porque os homens confusos, diferente
de observar a physis e dela retirar critérios, mesmo que equivocados, para julgar,
recebem suas percepções sensíveis sem mediação do pensamento, transformam-nas em
opiniões, e as tratam como se fossem pensamento.

Por fim, a deusa reforça algo que já havia dito antes. Quando afirmou: “comum
é para mim de onde começarei, pois lá mesmo chegarei de volta outra vez” (DK B5), ela
nos disse que partindo do ser, tornará ao ser. Agora ela nos diz que de todos o caminho
é de ida e volta, indicando que aquele que partir de opiniões duplas, contraditórias, a
elas sempre voltará. Após reiterar este aviso ela segue dizendo:

“Pois isto não, nunca hás de domar não entes a serem;


mas o que pensas, separa desta via de investigação;
nem o hábito multitudinário ao longo desta via te force
a vagar o olhar sem escopo, e ressoar ouvido
e língua, mas discerne pela palavra a litigiosa contenda
por mim proferida”. (DK B7).

Ora, se não devemos jamais domar não entes a serem, isto significa que não
devemos pensar sobre os fenômenos, os aparecentes, que se manifestam no mundo, e
não são conforme o ser? A deusa é clara: é preciso separar o que pensamos desta via. O

73
pensamento e as noções por ele pensadas, que são verdadeiramente, não devem jamais
serem confundidos com os objetos sensíveis do âmbito fisiológico, nem tampouco com
as aparências de tais objetos domadas a serem, ou seja, transformadas em pensamento.

Separar o ser enquanto tal (como caminho e fundamento de pensamento e as


noções que o sinalizam e nele conduzem o pensamento) do não-ser e da mistura de ser e
não-ser, é uma operação do pensamento. O pensamento não pode deixar-se persuadir
pelos sentidos de que o que lhes aparece é ao mesmo modo que o que é enquanto tal.
Jamais devemos equiparar o que percebemos pelos sentidos com o que descobrimos ao
pensar o pensamento. Assim, não devemos transformar as características próprias ao
devir, como geração e corrupção, movimento, mudança, incompletude e imperfeição em
critérios de pensamento, em noções enquanto tal. Do mesmo modo, não devemos
transformar os entes sensíveis, que aparecem e desaparecem no mundo, como sol, lua,
casa, montanha, cadeira, mesa, flor, em noções enquanto tal.

Devemos então dizer que os entes, ou aparecentes, do âmbito sensível não são?
Sim. Não são enquanto pensamento. Até aqui, Parmênides nos fala somente sobre as
vias pelas quais conduzimos nosso pensamento. Isso significa que até o presente
momento devemos nos limitar à investigação do âmbito intelectivo. Isso não implica
que tais entes não sejam de modo algum, como não são, ou não devem ser, os princípios
adotados pelos physikói. Os entes sensíveis existem no âmbito fisiológico. Mas isso
significa dizer que em sua natureza, os entes sensíveis existem e não existem, são e
também não são? Ora, acreditar em tal contradição é caminhar pela via da opinião que
não discerne o âmbito intelectivo do âmbito sensível. No âmbito intelectivo tais entes
não são, não têm realidade própria, porque não são pensamento. No âmbito sensível eles
são, conforme o modo de ser do âmbito sensível: o aparecimento, as aparências.

Mais à frente a deusa nos dirá o seguinte:

“Pois sem o ente, no qual foi proferido,


não encontrarás o pensar. Pois nenhum outro nem é
nem será além do ente, pois que Partida já o prendeu
para ser todo imóvel; assim será nome tudo
quanto os mortais instituíram persuadidos de ser verdadeiro,
surgir e também sucumbir, ser e também não,
mudar de lugar e variar pela superfície aparente”. (DK B8 35-41).

A partir desse fragmento podemos interpretar que se as noções que nos


possibilitam reconhecer o que fundamenta e permite algo ser não estiverem presentes e

74
indicadas no nosso dizer, ou seja, se o próprio ser não estiver presente na nossa ação de
declarar e apontar pela fala esse algo que queremos indicar, então não será possível
pensar sobre ele. Pois o que realmente é, é o ser e seus sinais (essas noções, conceitos
ou formas que o determinam). E só é possível pensar verdadeiramente (tendo em vista
conhecer) o que for pensamento, ou seja, o que pode se fixar no pensamento como
pensamento. Qualquer coisa que for pronunciada que não dê a pensar tais noções, será
apenas um nome qualquer, sem fundamento.

Assim, quando transformamos em linguagem, ou em noção de pensamento, o


que não pertence a essa natureza, persuadidos de que o que existe no âmbito sensível
deve ser verdadeiramente tal qual o que é pensamento, caímos no engano. Confundimos
o dizer que se identifica ao pensamento e ao ser com o dizer que apenas nomeia. Assim,
será sempre preciso discernir o âmbito inteligível do âmbito sensível, bem como o que é
enquanto tal, e pode ser pensado e dito verdadeiramente, do que apenas pode ser dito
enquanto nome e opinião.

Assim, quando o pensamento pensa pensamento alcança um conhecimento


persuasivo, convincente, verdadeiro. Mas, quando a investigação se volta para os
fenômenos em devir, para as aparências, partindo de uma perspectiva que não discerne
ser e não-ser, certamente se perderá na errância, nas opiniões controversas, pois voltará
ao não discernimento

A via do não discernimento está interdita, não deve ser trilhada. Mas isso não
implica que, se estivermos na via da verdade, que discerne ser e não ser, que parte do
ser e ao ser retorna, não possamos pensar sobre o que não é pensamento. Podemos sim
pensar sobre os fenômenos e as aparências. Aliás, isso é inevitável. Mas não devemos
buscar domá-los a serem. Assim, ainda que nos voltemos a objetos incognoscíveis,
devemos partir dos critérios do pensamento, buscando sempre discernir nos objetos em
devir o que neles é conforme o ser do que não é. Mas justamente porque não podemos
alterar sua natureza, forçá-la a ser pensamento enquanto tal, é que jamais poderemos
alcançar o conhecimento em uma investigação como essa. Tal empresa alcança apenas a
verossimilhança e, no máximo, pode ser capaz de emitir uma perspectiva superior entre
os mortais (DK B8 60-61), mas não chegará a verdade.

Temos então que não devemos trilhar a via do não-ser, onde o pensamento adota
como princípios para si as características dos fenômenos em devir, confundindo a sua

75
própria natureza com a natureza do que investiga, que lhe é distinto, e seguindo rumo
incerto, que não conduz ao verdadeiro conhecimento. Temos também que não devemos
trilhar a falsa via da mistura entre ser e não-ser que é conforme a percepção acrítica dos
mortais bicéfalos, ou seja, é conforme a percepção imediata fornecida pelos sentidos,
isto é, sem a mediação do pensamento. Essa via não apenas não distingue que o que
percebe no âmbito sensível não pertence ao mesmo âmbito das noções fundamentais ao
pensamento, como não as têm consciente, e, portanto, não possui critérios para
discernir. Temos, por fim, que a via pela qual devemos conduzir nosso pensamento é a
via que tem esclarecido que seu fundamento é o ser, e que ser é pensamento capaz de
pensar-se através da linguagem. Essa via revela o modo próprio de investigar e
conhecer, pois nos leva a descobrir a partir dela mesma, tautologicamente, seus
axiomas, que são estruturas fundamentais capazes de nos levar a deduzir os sinais a
partir dos quais devemos nos conduzir. Neste caminho o pensamento deve pensar o
próprio pensamento, e desse modo torna-se independente do âmbito fisiológico. Mas
isso não implica que não possa pensar sobre as coisas pertencentes a tal âmbito. Pode,
pois isso é inevitável à natureza humana. Mas deve assegurar-se sempre de separar bem
as duas investigações, tendo em vista que ao voltar-se para o que aparece no mundo, ou
seja, ao querer pensar sobre o cosmos, não alcançará o conhecimento e a verdade. É
preciso não perder de vista a necessidade de sempre retornar ao ser.

Após anunciar os três caminhos pelos quais é possível ao homem conduzir seu
pensamento, a deusa nos instrui que é preciso discernir pelo lógos a controvérsia que há
entre o âmbito sensível e o inteligível, pois caso não o façamos, nosso pensamento
vagará, enquanto mera opinião, através de nosso olhar, ouvido e língua, afastando-se do
verdadeiro conhecimento. Esse risco está sempre presente, uma vez que somos ao
mesmo tempo seres dotados de nous e lógos e também de percepções sensíveis.

Para permitirmos que o ser seja enquanto tal, em nosso pensamento e em nossa
fala, é preciso violentar a physis, retirar o ser do devir, da indeterminação, da tendência
à obscuridade e infinitude, e o deixarmos aparecer enquanto forma inteligível. Do
mesmo modo, o homem, enquanto ser da physis, está sempre atado ao não ser, sempre
sofrendo a violência de sua própria natureza, que o faz tender a declinar-se de si mesmo,
a perder-se em meio a aparências inconsistentes, e a sucumbir à sua própria corrupção.

76
O discurso da deusa nos fala sobre bifurcação, encontro, bicefalia e controvérsia
para nos revelar a nossa condição humana60: eis que estamos sempre na encruzilhada.
Mas a deusa visa nos instruir, nos tornar sábios para que possamos nos conduzir da
melhor maneira sendo como somos.

“Um homem verdadeiramente sábio não é aquele que persegue cegamente


uma verdade. É somente aquele que conhece constantemente todos os três
caminhos, o do Ser, o do não-ser e o da aparência. Um saber superior, e todo
saber é superioridade, só é concedido àquele que experimentou o ímpeto
alado do caminho para o Ser. Que não estranhou o espanto do segundo
caminho para o abismo do nada. E que aceitou, como constante necessidade,
o terceiro caminho, o da aparência”. (HEIDEGGER, 1978, pág. 139).

A deusa nos revela que estamos sempre em uma encruzilhada e nos exorta a
discernir, julgar e decidir. Por isso, o homem que sabe é, desde o começo, apresentado
como aquele que é aceito por Díke. Mas Díke acompanha Thémis. Para que possamos
julgar é preciso conhecer as normas. Assim, falta ainda algo a ser ensinado pela deusa.

60
“No discurso da deusa a imagem predominante é a da encruzilhada, da bifurcação e do encontro. A
primeira oposição de caminhos é a partir de uma separação “moral”: o caminho dirigido por Θέμις e Δίκη
(Legalidade e Justiça) que conduz o sábio e que está fora do outro caminho trilhado pelos homens.
Depois, temos a separação, no fragmento II, entre o caminho de persuasão que leva à verdade – e, de
outro lado, o caminho insondável, inviável, incognoscível, irrealizável, inefável. No fragmento V, há o
encontro (Ξυνόν) da chegada e da partida (ὁππόθεν [...] τόθι). A bicefalia (δικρανία) dos mortais aparece
no fragmento VI, 5. E, também a ideia de decisão (κριναι) e controvérsia (ἔλεγχον) no fragmento VII,
5”. (SANTORO, F. 2001, pág. 112).

77
II.IV – As noções reguladoras que nos permitem julgar: a deusa apresenta os
sinais do ser.

Ao pensar sobre si mesmo o pensamento alcançou três axiomas: o princípio de


identidade, o princípio de não-contradição e o princípio do terceiro excluído. Para
resumi-los e os apresentar de forma exemplar, nas palavras de Parmênides, podemos
dizer: a) princípio de identidade: o ser é, o não ser não é; b) princípio de não
contradição: o que é não pode não-ser, o que não é não deve ser; e c) princípio do
terceiro excluído: afasta-te da via forjada por mortais bicéfalos para os quais ser e não
ser valem o mesmo e não o mesmo. Pois bem, temos ai um conhecimento seguro sobre
as estruturas do pensamento que conhece, e devemos obedecer tal conhecimento como a
uma lei. Mas, ao afirmar que ‘o ser é’ o que efetivamente conhecemos?

Sabemos que Parmênides quer alcançar um conhecimento efetivo, a partir do


qual os homens estejam aptos a julgar e a agir nas relações que operam entre si
(políticas, jurídicas), ou seja, em um âmbito fundamentalmente linguístico. Para tanto,
para que seja possível aplicar o conhecimento do caminho do ser, é preciso saber
reconhecer o que é.

Mas como conhecer o que não conhecemos? O único modo de conhecer é partir
do que já conhecemos. E o que conhece Parmênides? Ora, ele conhece as estruturas
fundamentais do pensamento, que descobriu ao pensar o próprio pensamento em sua
identidade e solidão, e conhece o pensamento tradicional entre seus precursores: o que
compreende o ser a partir da physis.

Para que seja possível conhecer algo além do que já se conhece, é preciso, antes
de tudo, relacionar o que se tem. Mas Parmênides já deixou claro que não podemos, de
forma alguma, deixar que seja o caminho investigativo da physis e chamou-o de
caminho do não-ser. Deixou claro também que não podemos associar ser e não ser, e
jamais devemos confundi-los como se fossem o mesmo.

Acontece que existem várias maneiras das coisas se relacionarem. Há inclusive


relações onde não há mistura. Por exemplo, a negação, a oposição, a contrariedade, a
diferença, a distinção. Distinguir é justamente o que Parmênides nos indicou a fazer.
Assim, para nos apresentar o que é enquanto tal, ou seja, o ente (tò éon), a deusa ressalta

78
justamente as características ou os sinais (sémata) opostos aos que nos apresentam o
que não é, ou seja, as aparências da physis domadas em noções de pensamento.

Na physis as coisas são geradas e perecem, porque estão em pleno devir. Nesse
processo o que aparece apresenta-se de vários modos, em múltiplos estados. Por isso a
via do não ser adota como critérios investigativos noções tais quais “geração”,
“corrupção”, “surgir”, “desaparecer” e “multiplicidade”. A partir disso, porém tomando
a via contrária, a deusa nos diz que o que é, é “ingênito”, “imperecível” e também
“uno”, “contínuo” e “indivisível”, pois não é como as coisas que aparecem na physis,
nas quais a unidade se articula com a multiplicidade de partes. O que é, ou existe
totalmente ou de modo algum. Também por isso, se nasce ou perece não é. (DK B8 3-
25).

As plantas, os animais, os fenômenos da physis, que nascem e perecem, não


podem, portanto, serem transformados em ser, ou seja, não são noções por si mesmas do
pensamento. Assim, Parmênides aponta a diferença ontológica que há entre palavras
como ‘unidade’ e ‘indivisibilidade’, que dizem respeito ao ser, são seus sinais, ou seja,
são noções de pensamento enquanto tais e normas para o juízo; palavras como “surgir”,
“sucumbir”, que dizem respeito ao que não é, ou ao menos ao que não deve ser no
âmbito do pensamento; e também palavras como “palmeira”, “cachorro”, “lua”, que
dizem respeito a coisas que mudam de lugar ou variam (de aspecto) pela superfície
aparente e são no âmbito sensível, mas não são no âmbito intelectivo.

Na investigação da physis, como já nos disse Aristóteles justamente ao chamar


Parmênides de aphysikós (ARISTÓTELES, Física, I, 1 184b 26), são pensados o
“movimento”, a “mudança” e a “alteração”. Assim, a deusa nos diz que o que é deve ser
“imóvel”, e manter-se firmemente “em si mesmo”, em seus “limites”, em suas amarras
(DK B 8 vs. 26-32).

Dito isso, a deusa frisa que o mesmo é o que é a pensar e o pensamento de que é.
Assim, temos que o que é a pensar, ou seja, as verdadeiras noções de pensamento, são o
mesmo que o próprio ser. São essas noções, os sinais do ser, que devemos indicar
quando dizemos que algo é.

Por fim, a deusa nos fala que, ao contrário dos entes da physis, que aparecem
escapando de seus limites, como coisas “dessemelhantes” a si mesmas, e sempre se dão

79
a ver de modo “incompleto” e “ilimitado”, o ser é “limitado”, “igual por toda parte”,
“mantém-se no mesmo”, e é sempre “completo”, “acabado”, “perfeito”. (DK B8 42-49).

Assim, a deusa aponta os sinais do ser por contraposição ao que já conhecíamos


a partir da physis, e, desse modo, determina o que é. O que é, é, então, algo que está
além do devir, do fluxo de geração e corrupção, algo ingênito, incorruptível, imóvel,
fixo, idêntico a si mesmo, completo e perfeito. Ora, é algo que está para além da physis,
é o que fundamenta o pensamento metafísico.

Dissemos anteriormente que os sinais do ser são como protocategorias que


buscam acusar o ser, para desse modo, determiná-lo. Devemos agora, tratar da relação
entre os sinais e as categorias com um pouco mais de atenção.

O discurso categorial tem sua origem na linguagem forense dos antigos


tribunais, onde era preciso analisar acusações e provas para que se pudesse chegar a
uma sentença justa. Um acusado é levado a júri para responder a determinada acusação.
Ele é então interrogado a fim de que a acusação seja esclarecida e provada ou não. Mas,
o que lhe interroga o juiz ou quem o acusa? Ora, as perguntas que lhe são feitas
normalmente são: “quando”, “onde”, “como”. Tais perguntas têm o objetivo de mostrar
os sinais, os indícios, de um crime. A partir de tais sinas o crime poderá ser provado, ou
seja, poderemos ter fé verdadeira de que o acusado é realmente um criminoso, ou não
poderá ser provado, e teremos que assumir que ele não é.61

Parmênides, interessado em encontrar normas e leis para que pudesse julgar sem
cair em erro, pensou sobre o próprio pensamento e encontrou três princípios
axiomáticos. Depois disso levou ao tribunal o fundamento de tudo o que se pode pensar
e dizer, ou seja, a única coisa que buscamos conhecer sempre que visamos conhecer: o
próprio ser.

No entanto, a partir de seus princípios axiomáticos nada mais podia saber além
de que o ser é, que não pode não ser, e que não pode ser e não ser ao mesmo tempo.
Valeu-se então de outro conhecimento que possuía além dos princípios axiomáticos, o

61
Cfr. SANTORO, F. Il tribunale de Parmênides. Neste artigo, Santoro apresenta o uso da linguagem
forense no contexto de Parmênides, mostrando textos de Homero e de Górgias (o primeiro muito anterior
e tradicional e o segundo imediatamente posterior a Parmênides). Com base nos termos presentes nesses
textos, é possível observar que as primeiras categorias da linguagem cunhadas por Aristóteles não
surgiram do nada, e sim do sistema jurídico da Grécia antiga e da retórica forense. Também os sinais do
Ser, que Parmênides nos apresenta em seu poema, têm forte influencia da linguagem dos tribunais, e
podem ser interpretados como protocategorias da linguagem.

80
conhecimento do não-ser, o método de investigação da physis desenvolvido pelos
primeiros filósofos, buscando encontrar, através dele, por oposição, sinais do ser que o
permitissem indicá-lo, ou seja, acusá-lo.

Os primeiros filósofos, tinham em comum com Parmênides a investigação sobre


a unidade, a totalidade, o limite e o ilimitado. Como vimos com os pitagóricos no
capítulo anterior, unidade e totalidade derivam das noções de limite e ilimitado. Limite
e ilimitado (peras e ápeiron) são noções originárias do pensamento filosófico. Vimos
também, ateriormente, que há uma relação necessária do ser com o limite, uma vez que
para que algo seja precisa manter-se no resguardo de seus limites. Parmênides sabia
disso. Mas sua investigação não podia manter-se nos limites das investigações da
physis. Ao considerar o ser enquanto pensamento e linguagem, Parmênides inaugura a
filosofia metafísica. Assim, mesmo quando considera o cosmos, ele nos diz que é
preciso ter como ponto de partida e de retorno o ser enquanto tal, enquanto pensamento.
Mas Parmênides também viu que o ser pode se dispersar em seu próprio meio, ou seja,
no pensamento e na linguagem, pois no discurso seu significado se amplia em relação
ao seu sentido original de presença e existência, e, além disso, podemos confundir o ser
com o não-ser. Ora, para que seja possível conhecer o que é, é preciso determiná-lo,
defini-lo, delimitá-lo.

“Parmênides desenvolve o problema ontológico e cosmológico do limite em


vários pontos: limite vital ou existencial (ingênito e imortal), limite
quantitativo (todo, único), limite espacial (imóvel, intrépido e sem meta),
limite temporal (não era e não será, porque é agora), limite qualitativo
(equivalente) ou comparativo (não é maior, não é menor). Esta é com boa
aproximação a lista das categorias e dos termos de acusação que provam a
circunstância do fato quando se quer demonstrar a culpa (aitía) de um réu.
Uma vez que o réu é culpado, a potente Necessidade o condena a restar
totalmente imóvel no limite de grandes amarras”. (SANTORO, F. 2011b,
pág. 10).

Parmênides estabeleceu sinais para tornar possível apontar o que é o ser. Tais
sinais dizem respeito às várias maneiras de resguardar os limites do que é enquanto tal.
Assim, Parmênides foi capaz de determinar o ser, e fazer dele o ponto fixo a partir do
qual é possível pensar e dizer todas as coisas. Com esses sinais, a noção de ser por eles
determinada e os três princípios axiomáticos que descobriu, Parmênides nos oferece
critérios, normas, leis, que nos tornam capazes de julgar a cada vez que nos
encontrarmos em uma encruzilhada, afim de nos mantermos sempre no caminho do ser.
Mas há ainda algo a se pensar sobre como julgar.

81
A deusa nos alertou que é preciso julgar a partir do lógos (légein), e nos disse
também que o que for proferido sem o ser será apenas nome (ónoma). O que significa
essa distinção?

“Os mortais, ao estabelecerem nomes (ónoma) para a multiplicidade dos


seres, podem perder de vista o pertencer originário que une seres e ser. É
próprio da parte que cabe ao homem marcar as coisas que nascem e morrem
com nomes, mas é necessário que aprendam a preservar a diferença que une.
(...) se os mortais não concebem o ser na sua unidade e inteireza, seu nomear
fica fragmentado e errante”. (MARQUES, 1990, pág. 73-74).

Primeiro é necessário não confundir o estatuto ontológico dos nomes das coisas
com o estatuto ontológico do ser e dos sinais que o revelam. Não se trata do mesmo tipo
de nomes. Esse tipo de distinção, entre o que pertence ao âmbito sensível e o que
pertence ao âmbito inteligível é feita a partir do lógos. Mas, distinguirmos se estamos
falando sobre entes sensíveis ou noções inteligíveis não é suficiente, é preciso que
possamos julgar a cada vez que dizemos que algo é o que esse tal algo é, que tem ele a
ver com o ser. É preciso que sejamos capazes de indicar seus limites, ou seja,
determiná-lo. Para que possamos fazer isso, será preciso aplicar a tudo sobre o que
dizemos “é” as protocategorias ou acusações a partir das quais determinamos o ser,
tendo sempre em vista não contrariar os princípios axiomáticos do próprio lógos.

Parmênides, após distinguir o âmbito sensível do inteligível, e sem nunca


abandonar tal distinção, nos mostra como devemos pensar sobre as coisas que não
pertencem ao âmbito do pensamento.

Ao nos perguntarmos sobre algo que proferimos de que modo ele é, onde e
quando o vimos, qual sua qualidade, sua quantidade, com o que o comparamos, não
teremos mais apenas um nome, teremos pequenos discursos sobre os quais poderemos
pensar e julgar. Então, poderemos buscar as diferenças e semelhanças com o próprio
ente, e por fim decidir se trata-se de um nome completamente sem fundamento, forjado
apenas pelo imediatismo de nossa percepção sensível, ou se trata-se de um nome que é
capaz de indicar, ainda que em uma natureza distinta da natureza do ser enquanto tal,
aquilo que realmente é. Se o nome for capaz de dar a pensar o que é no algo que indica,
ou seja, que semelhanças esse algo tem com o ser que o permitem ser chamado algo que
é, e que diferenças lhes são próprias, a ponto de não poder se confundido com o que é
enquanto tal, então o nome deixará de ser apenas um nome vão.

82
Os nomes das coisas não são mais compreendidos como presenças, como antes
eram compreendidos os nomes dos deuses, muitas vezes associados aos fenômenos
naturais. A única coisa que deve estar sempre presente é o caminho do ser, ou seja, o
fundamento do pensamento e da linguagem, seus sinais (que também o são), os
princípios axiomáticos que o regem, e o próprio processo de discernimento e
julgamento que ele representa. No caminho do ser, o nome enquanto presença
progressivamente tem sua significação original (de existir, ter lugar no mundo)
enfraquecida para dar lugar a sua utilização predicativa.

“Em Parmênides temos a emergência da dimensão propriamente discursiva


do pensamento, por oposição a nomeação mítica (...) Estamos assistindo
justamente o nascimento da ‘atribuição lógica’ enquanto modalidade do
discurso. (...) Os signos do ser, no momento mesmo em que gozam do poder
de presentificação da palavra mítica já como que se descolam do ser
compacto, perdendo em presentificação e ganhando em encadeamento
discursivo, cujo sentido se dá no arranjo de frases apresentadas. Os signos já
não são palavras coladas ao real, mas marcas que apontam para as
características, propriedades do ser”. (MARQUES, M. 1990, págs. 67-71).

Ao dizer que apenas julgamos pequenos discursos e que nomes isolados, sem a
mediação do pensamento, não passam do resultado de uma atividade acrítica, estamos
antecipando a compreensão de juízo que encontraremos mais adiante em Platão e
Aristóteles.

Platão, no diálogo O Sofista, após distinguir ónoma e rema nos diz que apenas
podemos julgar algo que se apresentar como, no mínimo, um pequeno discurso. Ou
seja, um encadeamento, uma combinação de sujeito e verbo. Podemos julgar as frases
Teeteto voa e Teeteto é este aqui que está sentado, mas não podemos julgar um nome
ou um verbo que estejam fora do encadeamento discursivo, ou seja, não julgamos
“dormir”, “cavalo”, “lua”, “armário”. Com isso, temos que a atividade de discernir,
julgar e decidir depende de articulações, de relações.

No poema de Parmênides aquilo que é não pode jamais articular-se com o que
não é. Mas justamente essa impossibilidade de articulação estabelece uma relação que
nos permite julgar: julgamos em prol de manter a relação de afastamento, de oposição.
Assim, légein, no poema de Parmênides, diferente de ónoma, diz respeito a um arranjo
de palavras sobre o qual podemos aplicar a atividade crítica. O nome isolado não passa
de um som no qual os mortais buscam fixar os entes em devir, sem saber que apenas
encontrarão o sentido de tais entes se forem capazes de julgar, através do discurso, a
relação deles com o ser.

83
Contudo, do princípio ao fim, as únicas relações admitidas pela lógica de
Parmênides são a de identidade ou a de diferença absoluta, ou seja, de oposição ou
negação. Parmênides não busca encontrar, como fará Platão com sua dialética, as
demais possibilidades de relação, nem entre as coisas nem entre as noções do
pensamento. Pois, para ele, as noções de pensamento ganham sentido apenas a partir de
sua identidade com o ser, na medida em que o indicam, e são pensadas justamente
através dos três axiomas: identidade, não contradição e terceiro excluído. Já as coisas
em devir, mesmo que pensadas a partir do caminho do ser, nunca levam ao
conhecimento e a verdade, pois não podem ser convertidas em ser. Para o pensamento e
para linguagem todos os entes sensíveis que nascem e morrem não são.

Assim, ainda que possamos desenvolver, com base nas protocategorias, um


pequeno discurso, em vista do qual poderemos julgar não apenas as noções de
pensamento que se identificam ao ser, mas também os entes em devir, mesmo assim,
jamais poderemos identificá-los, e se não pudermos identificá-los, poderemos relacioná-
los apenas de forma negativa. Platão, através do personagem Estrangeiro de Eléia,
precisa discordar de Parmênides justamente quanto a isso. Para ele, é necessário buscar
estabelecer as relações possíveis e impossíveis tanto entre os gêneros supremos, que são
estruturas fundamentais da linguagem e da realidade, bem como entre as coisas do
âmbito sensível, mas, além disso, e especialmente, é preciso estabelecer relações
também entre o âmbito sensível e o inteligível. À necessidade de ordenar as relações
serve a sua dialética.

Temos, então, que Parmênides pode ser considerado a figura central do


eleatismo porque levou a investigação filosófica, que partiu das noções de unidade,
totalidade, limite e ilimitado, a extrapolar o âmbito da physis e alcançar a sua natureza
propriamente metafísica. Isso porque, o eleata tematizou o ser enquanto tal, e
questionou-o tendo em vista os problemas do pensamento, da linguagem e do
conhecimento. Parmênides distinguiu o âmbito sensível do inteligível; pensou sobre o
próprio pensamento e descobriu os principais axiomas da lógica; investigou, através
deles, um pensamento que lhe era diferente e descobriu os sinais do ser. Esse sinais
podem ser considerados protocategorias necessárias ao desenvolvimento das categorias
propriamente, que mais tarde serão apresentadas por Aristóteles. Além disso, a distinção
entre légein e ónoma, operada pelo eleata, é fundamental para o posterior surgimento da
dialética platônica. Retomaremos essas questões ao proceder em nossa investigação

84
sobre o que é o eleatismo. Por hora, resta-nos ainda algo a ser investigado no poema de
Parmênides.

Após apresentar o ser e seus sinais e dizer ao homem que sabe que deve pensar
sobre seu próprio pensamento, pois nada além dele pode ser realmente conhecido, a
deusa diz que apresentará uma perspectiva superior sobre o cosmos.

85
II.V- O homem no cosmos e o cosmos no homem.

Antes de iniciar a investigação sobre o cosmos a deusa já havia avisado que não
há conhecimento possível a se alcançar nessa empresa. O discurso sobre os entes
sensíveis não condiz com o âmbito do pensamento puro, logo não há verdade sobre ele,
mas apenas opiniões. Apesar disso, a deusa instrui sobre essa investigação também.
Mas, por que ela faz isso? Ora, o homem é mortal. Vetar-lhe de pensar sobre coisas
mortais é inútil. A investigação cosmológica é de acordo com a natureza do homem.
Justamente por isso tal investigação parte da perspectiva humana e de sua atividade de
nomear:

“pois estabeleceram duas perspectivas de nomear formas,


das quais uma não é preciso, no que estão desgarrados.
Em contrários cindiram a articulação e puseram sinais
separados uns dos outros: de um lado fogo etéreo da flama,
tênue, muito leve, o mesmo que si mesmo em toda parte,
mas não o mesmo que o outro, oposto ao que é por si mesmo
os contrários, noite opaca, articulação densa e pesada.
Eu te falo esta ordenação de mundo toda verossímil
para que nunca nenhum dos mortais te supere em perspectiva”.
(DK B8 53-61).

A deusa retoma a associação que já havia feito anteriormente entre a atividade


de nomear e a cabeça dupla dos mortais. Nomear em uma perspectiva dupla é nomear
do mesmo modo o que é preciso ser e o que não é preciso. A deusa diz que o fogo é,
conforme o ser, o mesmo que si mesmo em toda parte. Mas a noite é apenas em sentido
relativo, ou seja, em relação de oposição ao que é por si mesmo.

A distinção entre o que é por si mesmo e o outro, que não é por si mesmo, mas
apenas em relação ao que é, também é precursora de uma análise extremamente
importante ao pensamento filosófico: a que faz Platão, no Sofista, quando se permite
pensar o não-ser como alteridade. Mais adiante voltaremos a essa questão.

No contexto do poema de Parmênides, ao que nos parece, não há problema


algum que as coisas apareçam no cosmos como identidade e alteridade, ou seja, como o
mesmo que si mesmo, ou o outro que não é por si mesmo. Não são as aparências que
nos enganam, mas a nossa perspectiva sobre elas. Sobre as aparências, a deusa já havia
dito, desde o início do poema, que precisam patentemente ser, por tudo como tudo
quanto é. (DK B1 31-32). Aqui, o que ela afirma que não é preciso é determinada forma
de nomear. O erro e o engano acontecem quando buscamos indicar o ser através de
antíteses ou quando consideramos a sua ausência, ou o seu contrário, um outro ser

86
equivalente, como se na ausência da luz acreditássemos que a escuridão é ser em igual
medida que a luz, e assumíssemos essa percepção equivocada como se fosse verdade.
Desse modo, a fragilidade da opinião não se deve nem a aparência, nem a percepção
sensível, mas a um pensamento enganoso acerca do que apareceu e se percebeu.
Pensamento enganoso que se reflete na nomeação, quando dizemos, por exemplo, “a
escuridão é”, do mesmo modo como dizemos “a luz é”.

Porém, não podemos deixar de observar que a primeira recepção daquilo que nos
aparece se dá à percepção sensível, e que um pensamento mais atento desenvolve-se em
um nível diferente do dessa primeira recepção.

A deusa nos instrui quanto a nossas opiniões não para domá-las a se tornarem
pensamento fiável, mas apenas para que elas alcancem uma perspectiva superior. O que
ela nos ensina é que é possível olhar para as coisas que aparecem a partir de um
pensamento consistente, que busca discernir no que vê o que fundamenta sua
possibilidade de ser visto, sua inteireza e mesmidade. É possível, a partir de um
pensamento que pensa o próprio pensamento, tornar presente o que possa estar ausente
nas coisas que aparecem, considerando o que nem sempre se mostra, mas, no entanto
nunca deixa de ser. Assim, a deusa diz:

“vê como ausentes, no entanto, presentes firmemente em pensamento;


pois não apartarás o ente do manter-se ente
nem se dispersando de toda forma pelo mundo,
nem se concentrando.”(DK B4).

O que aparece como ausente, mas deve estar sempre presente no pensamento?
Ora, o que é por si mesmo: o próprio ser. Os sinais do ser que nos permitem julgar,
embora não sejam o que aparece imediatamente no que se dá a ver, devem sempre ser
trazidos a presença pelo pensamento. Não devemos acreditar que o que é se dispersa
pelo mundo, nem que se concentra em algum só lugar. Devemos buscar reconhecer nas
coisas que dizemos que são a presença do que é o mesmo que si mesmo por todos os
lados.

“Todavia, desde que tudo foi nomeado Luz e Noite


em face disto e daquilo segundo as suas forças,
tudo está cheio ao mesmo tempo de Luz e de Noite escura
ambos iguais, pois que nada leva a nenhum dos dois” (DK B9)

Luz e Noite são para a perspectiva humana, para o nosso olhar, os princípios do
aparecer. Porém, apenas na luz podemos distinguir as formas, indicá-las, determiná-las.

87
A noite e a escuridão não são responsáveis pelo aparecimento. Ao contrário, elas
ocultam o que aparece, levam o que aparece a desaparecer. Acontece que se nós
pensarmos no desaparecimento como o aparecimento do escuro e da indistinção, a noite
passará também a ser um princípio responsável pelo aparecimento, o aparecimento de
algo de outro que não a luz. Na physis tudo o que aparece também desaparece, por isso,
o pensamento do não-ser tomou como princípios de investigação também as noções
responsáveis por “determinar” o indeterminado, por fazer aparecer o desaparecimento.
Mas pensar no escuro, na indistinção, como algo que é por si só, e aparece ao mesmo
modo como a luz, é buscar domar não seres a serem.

Domar não seres a serem e considerá-los ao mesmo modo do que o que é, é


confundir ser e não-ser, é tomá-los como o mesmo e não o mesmo acriticamente.
Quando a deusa nos diz que desde que nomeamos tudo como Luz e Noite, tudo está, ao
mesmo tempo, cheio de luz e noite, ela quer nos levar a pensar que se consideramos
todas as coisas a partir dos princípios da aparência sensível, sem nenhuma mediação do
pensamento, tudo será conforme o que nossos olhos forem capaz de ver, e nossos olhos
vêem as coisas sempre juntas as suas sombras.

O pensamento que parte apenas do ser a ele retorna. O pensamento que parte do
não-ser, considerando como princípios justamente os modos de indicar o que é
deduzidos do ilimitado e da indeterminação, ao não-ser retorna. Mas a opinião imediata,
que não pensa nem decide, por partir de ambos ao mesmo tempo, da luz e da noite, da
determinação e da indeterminação, não pode chegar a lugar nenhum.

A tendência a perder-se em ambiguidades é, contudo, conforme a natureza dos


mortais. Os homens vêem e nomeiam o cosmos em uma perspectiva dupla, porque são
eles próprios, um microcosmos que articula duplicidades.

“Assim como a cada instante tem-se uma mistura de membros retorcidos,


assim também se apresenta o pensamento aos homens; pois é o mesmo
o que discerne pela natureza dos membros nos homens
para todos e para tudo, pois pleno é o pensamento”. (DK B16).

Nós homens, possuímos um corpo simetricamente divisível em dois: dois olhos,


duas orelhas, duas narinas, dois braços e duas pernas. Nossos pensamentos retorcidos
são como nossos membros retorcidos (COSTA, A. 2010, pág. 147). Se por um lado
somos capazes de pensar de acordo com o próprio pensamento, é também inevitável a
nós ressoar ouvido e língua de forma imediata, buscando fixar as aparências sensíveis

88
em nomes sem nos preocuparmos em discernir o ser que as permite ser, mas apenas
repetindo conforme o hábito multitudinário.

A deusa nos instrui a pensar mesmo quando tivermos que opinar. Para
exemplificar seu modo de olhar para os entes sensíveis buscando neles encontrar o que
deve estar sempre firme no pensamento, Parmênides nos conta uma de suas descobertas
cosmológicas: “Brilho noturno de luz alheia vagando em torno a Terra” (DK B14),
“sempre espreitando os raios do sol”. (DK B15).

Parmênides descobriu que a lua não tem luz própria, mas reflete a luz do sol.
Com isso ele nos mostra que é possível distinguir, nas coisas que aparecem, o que é por
si mesmo e o que é apenas em relação ao que é por si mesmo. Isso não significa dizer
que a lua não existe, mas sim, que ela não existe por si só, existe apenas enquanto
alteridade. Portanto, se quisermos descobrir a partir dela o ser, será preciso sabermos
que ela no-los indicará apenas na medida em que indica o sol, que, por sua vez, é o
mesmo que si mesmo. Assim, podemos afirmar que se há luz na noite, que é justamente
a ausência do dia, essa luz pertence ao domínio do dia, ao domínio das coisas que são
por si mesmas. Por outro lado, uma noite sem lua jamais indicará o ser se for tomada
enquanto tal. Apenas poderemos pensá-lo através dela se considerarmos que a noite
nada mais é que o outro do dia, este sim o mesmo que si mesmo. A deusa nos exorta a
buscar o ser mesmo na aparente ausência do ser, porque o ser está sempre presente.

Certamente, frente a uma descoberta de tamanha grandeza como essa, a que a


lua reflete a luz do sol, Parmênides não poderia acreditar que pensar sobre o cosmos
fosse algo que necessariamente levaria a opiniões equivocadas e sem importância. As
opiniões imediatas levam sim o homem a perder-se na errância, mas as opiniões
refletidas, embora não possam ser tão confiáveis quanto uma tautologia, podem levar a
uma perspectiva superior.

O cosmos, que está no homem e no qual o homem está, não pode ser revelado
pela deusa. Não há sobre ele uma verdade divina, um conhecimento seguro. Porém, é
possível que uma opinião se aproxime do conhecimento, se ela não for caminho de
errância, é possível que ela seja ao menos semelhante a verdade. Como já dizia
Xenófanes: “Que tais coisas sejam consideradas semelhantes as reais...” (DK B 35),
pois “Tudo quanto se manifesta aos mortais é para ser contemplado...” (DK B 36).

89
Encerramos aqui nossa investigação sobre o poema de Parmênides. O que
descobrimos até aqui? descobrimos que há uma via de investigação distinta da via da
physis. Nessa via, o ser (einai) é compreendido a partir dos axiomas do pensamento,
descobertos quando o pensamento volta-se sobre si mesmo, e também a partir das
noções adotadas como princípios na investigação da natureza, por oposição.

Porque tanto o lógos auto-referênte quanto o caminho do não-ser são igualmente


necessários à compreensão da noção de einai, assumimos que, do mesmo modo como
sintaxe e semântica estão sempre imbricadas em uma dada proposição, assim também
lógica e ontologia não podem ser completamente separadas. Ainda que tenhamos que
distinguir o âmbito inteligível do âmbito sensível sempre que buscarmos conhecer ou
opinar sobre algo, o ser é o fundamento comum a todos os dois. Mesmo no caminho do
não-ser, que compreende o ser as avessas, tomando como princípios justamente as
indeterminações do que aparece, o que é, é assim reconhecido por manter-se em seus
limites. A noção de limite, que no caminho do não-ser está sempre articulada ao
ilimitado e ao indeterminado e no caminho do ser tem total privilégio, é comum ao ser
tanto como physis como quanto einai. Assim, o pensamento da physis, que é rejeitado
como caminho de investigação, permanece, contudo, presente no caminho do einai,
porém suas noções são resignificadas, ou delas se toma o seu contrário.

A partir da noção de limite alcançamos uma melhor compreensão das formas de


pensamento, ou seja, dos conceitos puros, independentes das coisas. Podemos dizer,
então, que Parmênides é um intermediário necessário entre Platão e os pitagóricos para
que Platão tenha descoberto e tematizado a noção de forma enquanto tal. As noções de
unidade e totalidade, que a princípio Platão nos indicou a investigar para que
pudéssemos compreender a origem do eleatismo, quando passam a ser compreendidas
como formas conceituais, tornam-se sinais do ser. Ao descobrir os sinais que indicam e
acusam o ser, Parmênides também se tornou precursor das descobertas aristotélicas das
categorias da linguagem. Vimos então, como uma mudança na compreensão de limite,
ilimitado, determinação e indeterminação, que passa a considerar somente o limite e a
determinação, implicam também em uma mudança na compreensão de unidade e
totalidade, que deixam de referir-se as investigações cosmológicas e passam a indicar o
ser enquanto tal. Tal mudança no método, no caminho investigativo, põe em questão o
pensamento, a linguagem e o que é possível conhecer verdadeiramente.

90
Como Parmênides é o pensador central do eleatismo, todos os demais eleatas,
aqui citados no primeiro capítulo, trabalharão tendo o seu pensamento como referência.
Com exceção de Xenófanes que lhe é anterior. Mas, como é uma das referências com a
qual Parmênides dialoga, pudemos encontrar nesse capítulo algumas de suas
contribuições.

A partir de agora seguiremos nossa investigação sobre o que é o eleatismo,


retomando nosso ponto de partida: a referência feita a tal escola no diálogo platônico O
Sofista.

91
Capítulo III- A recepção platônica do eleatismo no diálogo O Sofista.

Este capítulo se propõe a refletir sobre a recepção platônica do eleatismo através


da frase, que se encontra no diálogo O Sofista, segundo a qual: os eleatas “admitem que
o que chamamos todo é um único ser”. (PLATÃO, O Sofista, 242d). Neste capítulo,
também buscaremos atentar para as questões que envolvem os demais eleatas além de
Xenófanes e Parmênides - a saber: Melisso, Zenão e Górgias -, a partir dos problemas
envolvidos no contexto da discussão de Platão com Parmênides, no referido diálogo.

III.I – O contexto através do prólogo.

O diálogo O Sofista é uma continuação ao diálogo Teeteto, que teria se passado


na véspera e tem por tema o conhecimento. Teodoro e Teeteto, personagens do diálogo
anterior que continuam presentes no Sofista, são matemáticos. O primeiro, já com certa
idade, era mestre do segundo, que, por sua vez, era bem mais jovem. Sócrates, o mesmo
da maioria dos diálogos platônicos, também estava presente no diálogo anterior e agora
permanece. Há, no entanto, dois personagens que surgem pela primeira vez: Sócrates, o
outro, homônimo do primeiro e amigo de Teeteto, e o Estrangeiro de Eléia, que
conduzirá o diálogo. Este último é trazido pelos matemáticos e anunciado como um
verdadeiro filósofo, pertencente ao círculo de Parmênides e Zenão. (PLATÃO, O
Sofista, 216a). Sabemos que Zenão era matemático, e que Parmênides foi aluno dos
pitagóricos. Assim, parece ficar claro o vínculo de eleatismo com o pensamento
matemático.

Os personagens que Platão reúne, já nesta primeira cena, podem indicar muitas
das questões que serão abordadas no diálogo. Podemos notar que eles formam duplas
quanto a determinados aspectos, por exemplo: Teeteto e o seu amigo Sócrates são
jovens, Teodoro, assim como o Estrangeiro de Eléia, também é estrangeiro, o Sócrates
jovem é uma duplicação de Sócrates, por ser seu homônimo. Essas duplas apontam, já
de início, que a despeito da unidade parmenídea, Platão quer falar partindo do dois, que
permite a multiplicidade e as relações. Não por acaso o diálogo apresenta e faz uso da
diáiresis, o método da divisão em dois, para realizar sua investigação, e dedica-se
também a desenvolver a dialética.

As relações de Sócrates com o jovem Sócrates e com Teeteto também nos


adiantam algumas questões do diálogo. No Teeteto, Teodoro havia dito que Sócrates e

92
Teeteto se pareciam fisicamente (PLATÃO, Teeteto, 144a-e), donde temos um tipo de
semelhança pela aparência. Agora surge um personagem, que permanecerá mudo o
diálogo inteiro: o homônimo de Sócrates. Sua mudez indica que sua presença tem
importância apenas para marcar a semelhança quanto ao nome. Ou seja, há entre
Sócrates e o Sócrates jovem uma falsa aparência de semelhança, produzida pela
equivocidade no âmbito do discurso. Disso temos que as aparências, que existem entre
os objetos físicos, também existem entre as noções inteligíveis. E assim como, através
delas, podemos nos confundir e enganar no âmbito sensível, também no discurso isso é
possível.

As questões do discurso estão fortemente presentes tanto no eleatismo quanto na


sofística. A sofística desenvolve-se e ganha grande importância nos tribunais, em meio
às práticas da contestação pública, onde podemos observar um discurso contradizendo o
outro. Desconfiando dos princípios e intenções que moviam essa prática, veremos
Platão acusá-la de valer-se das homonímias e equivocidades da linguagem para forjar
discursos falsos e convencer de que sua representação (sua imitação do real) é
verdadeira. Eis então, como a homonímia entre os dois Sócrates antecipa a necessidade
de investigar o falso, a imitação e a possibilidade da contradição.

Observando a personagem principal, podemos notar que o Estrangeiro de Eléia


representa, entre seus interlocutores, alguém diferente, por ser estrangeiro, e ao mesmo
tempo semelhante, por se tratar de um filósofo. Com isso, podemos dizer que Platão
marca a relação entre identidade e alteridade, que também será trabalhada neste diálogo.
Ao ser apresentada, essa personagem é recebida por Sócrates com uma referência a
Homero: “Embora haja outros deuses companheiros dos homens que reverenciam a
justiça, é especialmente o deus dos estrangeiros que melhor pode avaliar a disparidade
ou a equidade das ações humanas”( PLATÃO, O Sofista, 216 a-b).

A figura do estrangeiro remete ao culto ao Zeus Xênios protetor dos forasteiros e


dos peregrinos. A Xenía, relação entre anfitrião e hóspede, era considerada importante
tanto socialmente, pois os gregos aprenderam muito com outros povos (os egípcios, por
exemplo), como religiosamente.62 Dessa forma, o respeito e a atenção ao estrangeiro são

62
Há em Homero muitos exemplos de estima pela hospitalidade, incluindo passagens que mostram os
deuses recompensando quem a desse e castigando quem com ela faltasse: Quando Glauco e Diomedes se
encontram no campo de batalha e descobrem que suas famílias haviam construído laços de hospitalidade
decidem trocar suas armas e não lutarem entre si (Ilíada VI, 120-236); Quando Ulises chega a ilha de

93
marcas de valorização da alteridade, que por sua vez, é indispensável ao diálogo. Assim,
aqui está indicado que é através da prática da hospitalidade - de receber o outro como
amigo - que se torna possível o desenvolvimento da nova noção de dialética. Tal noção
se diferencia do modelo, então comum no mundo grego, do discurso enquanto jogo de
disputa. É frequente nos diálogos platônicos a idéia de que filosofia só se faz entre
amigos, é uma atividade para “almas dóceis”.

A passagem citada por Sócrates faz referência também a questão da justiça. O


hóspede, por ser um estrangeiro, pode possuir um julgamento privilegiado. Vimos com
Parmênides, no capítulo anterior, o quanto é importante a noção de justiça. É através do
nosso juízo, do nosso discernimento, que nos tornamos capazes de dizer e pensar com
verdade, ou seja, de trilhar o caminho do ser. Mas, se por um lado o hóspede é um
estrangeiro, por outro, ele é um eleata. Por isso Sócrates acrescenta: “Certamente quem
te acompanha é um desses seres superiores que virá observar e contradizer, como
refutador divino, a nós que somos fracos pensadores”. (PLATÃO, O Sofista, 216 b).

A questão que Sócrates aqui indica é para nós um dos principais problemas a se
investigar, uma vez que buscamos compreender o que é o eleatismo. O eleatismo diz
respeito ao divino, como indica o discurso da deusa no poema de Parmênides, ou diz
respeito a contradição, própria aos sofistas? O eleatismo é filosofia ou é sofística? Quem
é o Estrangeiro de Eléia? É ele um homem justo ou apenas um disputador que não se
interessa verdadeiramente pela justiça?

Teodoro assevera não se tratar de um “amigo da erística”, e reitera sua primeira


afirmação, feita logo na chegada, de que se trata de um filósofo. (PLATÃO, O Sofista,
216 b). Sócrates, então, faz ao Estrangeiro a pergunta condutora do diálogo: como “as
gentes de seu país”, ou seja os eleatas, distinguem o filósofo, o sofista e o político?
(PLATÃO, O Sofista, 217a). O político será tema do próximo diálogo, mas deve ser
enunciado também aqui, pois, uma vez que a política é uma atividade discursiva, ela
está intimamente relacionada as disputas filosóficas e sofísticas acerca do discurso. O
diálogo em questão trata do sofista, mas diz também quem é o filósofo, uma vez que,
buscando pelo primeiro, em dado momento, acaba por encontrar o segundo.

Polifemo pede para ser acolhido em nome de Zeus Xénios, mas o Ciclope não só recusa seu pedido como
zomba da hospitalidade e do deus. Depois, acaba encontrando seu castigo. (Odisséia IX, 266-370);
Quando o porqueiro Eumeo recebe Ulisses em sua humilde cabana, ele o agradece dizendo “Oh, meu
hóspede! Que Zeus e as outras deidades o concedam aquilo que ancíeis por essa acolhida” (Odisséia XIV,
53-54).

94
Quando o Estrangeiro é chamado a distinguir os três gêneros - o filósofo, o
sofista e o político - lhe é dada a escolha da forma através da qual realizará essa
empreitada: se pela via de uma longa exposição ou se pela interrogação. Esse ponto é
bastante importante, pois um discurso apresentado na forma de uma peça inteira, sem
interpelações, por ser fechado e coerente em si mesmo, apresenta-se mais facilmente
como razoável, tendo como consequência um maior poder de manipulação. 63 Além
disso, o Estrangeiro de Eléia, ao optar pelo método interrogativo – conforme, segundo
Sócrates, fazia o próprio Parmênides –, afirma que frente à opção contrária “valeria
mais a pena argumentar apenas para si mesmo”. (PLATÃO, O Sofista, 217c-d). Disso
temos que, se não formos como os loucos64 que falam sozinhos, o discurso é sempre
para o outro. Então, se falamos para o outro é justo que o deixemos participar da
discussão. Escolhida a forma que terá o discurso, um diálogo, inicia-se a busca pela
definição do sofista. Ao início, tem-se apenas o nome: “sofista”.

“Até aqui só concordamos, tu e eu, quanto ao seu nome, mas a função que,
por esse nome lhe cabe, poderia ser, para cada um de nós, uma noção toda
pessoal. Todavia em qualquer análise, é sempre indispensável, antes de tudo,
estar de acordo sobre o seu próprio objeto servindo-nos de razões que o
definam, e não apenas sobre o seu nome sem se preocupar com a definição”.
(PLATÃO, O Sofista, 218 c).

Partindo de um nome (ónoma) será preciso chegar a um lógos, um discurso


comum que sirva como definição. Como investigar o sofista é algo muito difícil, o
estrangeiro propõem ensaiar com o algo mais fácil de conhecer, mais próximo e
familiar. Toma-se, então, como modelo o pescador com o anzol (PLATÃO, O Sofista,
218 e).

Ao buscar a definição da pesca com anzol, o Estrangeiro primeiro inquire sobre


a arte que lhe é própria. Dividindo o conjunto das artes em dois, pergunta se pescar é
uma arte produtiva, como a agricultura, ou se é uma arte de aquisição, que não produz,
mas se apropria de algo, como por exemplo a caça. Tendo a resposta de Teeteto de que
a pesca se inclui entre as artes aquisitivas, o Estrangeiro a divide em duas, afinal é
possível adquirir algo tanto pela troca voluntária quanto pela captura. Depois divide a
captura em duas: pela luta, onde o que se faz, se faz as claras, e pela caça, que se vale de

63
Como os sofistas, é justamente assim que Trasímaco, na República, dá forma a seus discursos: “A
maneira de um banhista hábil, inundando os ouvidos com aquele jorro de palavras” (PLATÃO.
República. 344d).
64
Os loucos, ou delirantes, também são citados por Sócrates como um gênero com o qual podem se
confundir filósofos, sofistas e políticos (PLATÃO, O Sofista, 216 d).

95
armadilhas. Também a caça é dividida em duas: a caça ao gênero inanimado e a caça ao
gênero animado, chamada de caça aos seres vivos. Essa última, por sua vez, se divide na
caça aos seres vivos terrestres e na caça aos seres vivos aquáticos. O gênero de seres
vivos aquáticos é divido entre os que vivem na água e os que voam, mas também
nadam, desses últimos a caça é chamada caça as aves, enquanto a caça aos aquáticos é
chamada de pesca. A pesca, por sua vez, também é divida em dois gêneros: a que se faz
por cerco, como a pesca com redes, e a pesca vulnerante, que se faz por meio de arpão
ou anzol. A pesca vulnerante quando é feita a noite é chamada de caça ao fogo, mas
quando é feita de dia é chamada de caça por fisga. A caça por fisga também pode se
dividir em duas: a caça com o arpão, que fere a presa do alto para cima, e a caça com o
anzol, que traz a presa por tração ascendente. Eis então que o Estrangeiro alcança uma
definição e pode explicar o que é a pesca com o anzol. Trata-se de uma atividade
aquisitiva, de captura pela caça aos seres vivos aquáticos, feita de forma vulnerante, por
meio de uma fisga, puxando a presa pela boca, ou seja, através de um anzol. Temos, a
partir desse modelo, o método da diáiresis. Nesse método, parte-se de algo que seja
possível identificar no objeto buscado, no caso da pesca com anzol é fácil perceber que
trata-se de uma arte, e opera-se a divisão em dois conforme as articulações65.

De acordo com o exemplo que serve de modelo ao método da diairesis, a


filosofia de Parmênides não poderia admitir como conhecimento verdadeiro nenhuma
arte produtiva. Isso porque o caminho do ser é apartado de todo devir, donde nada pode
ser gerado. Assim, o sofista, que não cria, não produz, se apodera, com palavras e ações,
de coisas preexistentes, ou as defende contra quem delas queira se apossar (PLATÃO,
O Sofista, 219b), não estaria desobedecendo Parmênides. Com isso, já podemos notar a
filiação da sofística ao eleata.

Além disso, não seria o próprio método da divisão um simulacro do método


sofístico? Zenão, inventor da dialética erística, valia-se da divisão para produzir seus
paradoxos e antilogias. Mais a frente voltaremos a ele. Por ora, cabe-nos ressaltar que
pensar em divisão de gêneros é pensar em uma unidade que contém outras, é pensar em
multiplicidade e articulação. Platão, preocupado em não permitir que a questão do ser se

65
Quando, no Fedro, Sócrates fala sobre a arte do discurso, diz ser preciso “primeiro: concentrar numa
idéia única, por meio de uma visão de conjunto, os elementos dispersos, a fim de ressaltar pela definição,
em cada caso, o que se deseja comunicar”, depois, o segundo ponto consiste “em dividir as idéias pelas
articulações naturais, sem decepar nenhum dos seus elementos, como quem procedesse a maneira de um
açougueiro desajeitado”. (PLATÃO, Fedro, 265d 266a).

96
perca em meio a manipulação da linguagem, quer garantir a possibilidade da ontologia
depois da sofística. Para isso precisará dar lugar ao movimento e a alteridade na
investigação do ser, e não poderá mais pensá-lo a partir da unidade tautológica de
Parmênides.

Assim, temos que a problemática da sofística não é arbitrariamente associada ao


eleatismo. Ela tem estreita relação com as questões trabalhadas por Parmênides em seu
poema. Diz respeito ao voltar-se da linguagem sobre si mesma, e trata especialmente
dos assuntos referentes às contendas discursivas nos tribunais, onde está em questão a
justiça no julgamento e na decisão. Contudo, Platão duvida que a sofística esteja
realmente interessada na justiça e no conhecimento da verdade, parece-lhe antes que ela
somente se interessa pela contradição. Justamente por isso precisará investigar as
possibilidades de falseamento, confusão e engano no discurso, e confrontar Parmênides
investigando as vias por ele interditadas: a do não ser, que trata do engano, e a das
aparências capazes de falsear, que trata da contradição.

Para que possamos melhor compreender as aproximações entre eleatismo e


sofística, e saber se é possível distingui-los, seguiremos o Estrangeiro em sua busca por
realizar a tarefa que lhe foi dada. Será preciso também que tratemos, mesmo que
brevemente, dos demais eleatas, que ainda não foram investigados nesse trabalho, mas
que estão fortemente presentes na discussão em questão.

97
III.II – Uma breve investigação sobre a relação de Parmênides com a sofística a
partir do Tratado do Não-Ser de Górgias.

Ao buscar pelo sofista, o Estrangeiro de Eléia parte da semelhança que há entre


ele e o pescador com o anzol: “a mim, ambos parecem claramente caçadores”
(PLATÃO, O Sofista, 221d). A partir daí alcança algumas possibilidades de definição:
1) o sofista é um caçador interesseiro de jovens ricos, que recebe dinheiro para ensiná-
los (PLATÃO, O Sofista, 223b); 2) o sofista é um vendedor, que vai de cidade em
cidade trocando por dinheiro discursos e ensinos, produzidos por terceiros, que tratam
da virtude (PLATÃO, O Sofista, 224c-d); 3) sofista é aquele que comercializa essas
ciências relativas à alma também dentro da própria cidade (PLATÃO, O Sofista, 224d-
e); 4) é aquele que as produz para vender (PLATÃO, O Sofista, 224d-e); 5) e também
quem se lança nos embates públicos, nas contestações judiciárias, em prol de ganhar
dinheiro. Nessa definição tem-se por sofista o erístico (PLATÃO, O Sofista, 226a); por
fim, 6) o sofista é aquele que educa por meio da refutação constrangedora, expulsando,
assim, a ignorância da alma de seu interlocutor e purificando-a (PLATÃO, O Sofista,
231b). Essa atividade é considerada a sofística nobre e também é realizada pelo filósofo.
Em outros diálogos podemos encontrar, por várias vezes, Sócrates realizando a
refutação constrangedora.

Temos, então, seis definições. Acontece que muitas definições não são definição
nenhuma. Isso já havíamos visto com Parmênides no capítulo anterior: é preciso que
determinada forma conceitual mantenha-se no resguardo de seus limites como uma
unidade homogênea, ou não chegaremos a conhecê-la, e estaremos apenas opinando
sobre aparências. O Estrangeiro de Eléia, como um bom representante de sua tradição,
retoma esse ensinamento justamente após apresentar as seis possíveis definições:

“Não crês, que, quando um homem se nos apresenta dotado de múltiplos


misteres, ainda que para designá-lo baste o nome de uma única arte, trata-se
apenas de uma aparência, que não é uma aparência verdadeira, e que ela,
evidentemente, só se impõem, a propósito de uma determinada arte, porque
não sabemos nela encontrar o centro em que todos esses misteres vêm
unificar-se, ficando nós, dessa forma, obrigados a dar, a quem for assim
dotado, vários nomes em lugar de um só?” (PLATÃO, O Sofista, 232a).

Dito isso, o Estrangeiro busca encontrar, entre as múltiplas definições, a que


melhor seja capaz de revelar o sofista. Atentando para todas as seis, podemos notar, que
três atividades se destacam: o comércio, a educação e a controvérsia nos discursos. Ao
que parece ao estrangeiro, a atividade central é a controvérsia (PLATÃO, O Sofista,

98
232b), pois é justamente a habilidade em discutir que leva os jovens a procurar pelos
sofistas, para aprender com eles a fazer o mesmo, e para isso oferecem dinheiro. Como
os sofistas pretendem formar contraditores acerca de todas as coisas, e é impossível
saber de tudo, eles na verdade, podem apenas trazer “uma falsa aparência de ciência
universal, mas não a realidade” (PLATÃO, O Sofista, 233c). Tendo encontrado na
sofística uma atividade capaz de produzir uma falsa aparência de conhecimento sobre
tudo o que há, o Estrangeiro de Eléia a associa às artes imitativas:

“Assim o homem que se julgasse capaz, por uma única arte, de tudo produzir,
como sabemos, na realidade não fabricaria, afinal, senão imitações e
homônimos das realidades. Hábil na sua técnica de pintar, ele poderá,
exibindo de longe os seus desenhos, aos mais ingênuos meninos, dar-lhes a
ilusão de que poderá igualmente criar a verdadeira realidade, e tudo o que
quiser fazer (...) Não devemos admitir que também o discurso permite uma
técnica por meio da qual se poderá levar aos ouvidos de jovens ainda
separados por uma longa distância da verdade das coisas, palavras mágicas, e
apresentar, a propósito de todas as coisas, ficções verbais, dando-lhes assim a
ilusão de ser verdadeiro tudo o que ouvem e de que, quem assim lhes fala,
tudo conhece melhor que ninguém?” (PLATÃO, O Sofista, 234b-c).

A arte da sofística é, portanto, conforme às artes miméticas, porém imita a


realidade no âmbito do discurso. As artes miméticas podem oferecer cópias da
realidade, como a pintura, que mantém as proporções do objeto que busca reproduzir; e
também podem oferecer simulacros, como a escultura, que altera as proporções do
objeto que reproduz com o objetivo de fazê-lo parecer proporcional a algum espectador
desprivilegiado. Assim, a imitação desenvolve meios de fazer parecer real algo que não
é. Do mesmo modo, imitar no discurso significa manipular aparências com o objetivo
de fazê-las parecer corresponder a realidade. Ou seja, significa dizer o que não é,
parecendo dizer o que é. Assim, o sofista parece um sábio que a tudo conhece, quando
apenas oferece uma aparência de conhecimento que não corresponde à verdade. Ele é,
então, compreendido por Platão como um falsário. Mas, admitir a possibilidade de um
discurso falso é admitir a possibilidade da contradição:

“Pois, mostrar e parecer sem ser, dizer algo, sem, entretanto, dizer com
verdade, são maneiras que trazem grandes dificuldades, tanto hoje, como
ontem e sempre. Que modo encontrar, na realidade, para dizer e pensar que o
falso é real sem que, já ao proferi-lo, nos encontremos enredados na
contradição? (...) A audácia de uma tal afirmação é supor o não-ser como ser;
e, na realidade, nada de falso é possível sem essa condição”. (PLATÃO, O
Sofista, 236e-237a).

Há aqui o início de uma mudança fundamental com relação ao modo


parmenídeo de compreender o não-ser. Vimos com Parmênides que o não-ser é uma via
investigativa que transforma em princípios condutores do pensamento as

99
indeterminações que aparecem na physis. Agora, o Estrangeiro de Eléia nos diz que o
não-ser é o falseamento do ser no discurso, que permite a contradição.

Parmênides já havia interditado a via contraditória, mostrando-nos que ela diz


respeito às opiniões de mortais acríticos e confusos. Tal via sequer poderia ser
considerada um pensamento, pois nela os homens não distinguem o âmbito intelectivo
do âmbito sensível, bem como não distinguem ser e não-ser. O pensamento da physis,
por outro lado, não era chamado acrítico, porque possuía critérios para julgar. Contudo,
eram critérios que domavam não seres a serem, e por isso eram equivocados. Em
Parmênides a contradição diz respeito ao engano ou a ignorância. Ela é consequência de
uma má decisão tomada por conta de um mal julgamento, ou pela ausência de
julgamento.

A contradição, conforme nos fala o Estrangeiro de Eléia, não está mais associada
àqueles que, mesmo através de um pensamento criterioso, caíram no erro; e nem
àqueles que, justamente pela falta de critérios para julgar, eram incapazes de discernir.
Quando fala da sofística, Platão, através de seu personagem, aponta para uma atividade
que falseia a realidade deliberadamente, tendo em vista iludir. Não se trata de não saber
julgar ou decidir. Ao contrário, a contradição, a arte da controvérsia, está inserida
justamente nos tribunais, onde o que está em questão é o julgamento e a decisão. No
entanto, tal arte não tem por interesse descobrir ou alcançar a verdade, mas forjá-la. Não
é necessário indicar o ser, mas o que parece ser, tendo em vista manipular o juízo e a
decisão de outra pessoa para vencer a disputa discursiva66.

Iludir no discurso, diferentemente de iludir através de uma pintura ou de uma


estátua, rompe a identidade entre ser, pensar e dizer que, conforme nos mostrou
Parmênides, é necessária para o conhecimento da verdade. Ao imitar algo que é em
tecido, barro ou mármore, um pintor ou escultor oferece aos nossos sentidos algo sobre
o qual nosso pensamento terá autonomia para julgar. Se confundirmos uma estátua com
um homem de verdade, a responsabilidade será nossa, do mesmo jeito que seria caso
confundíssemos um homem com outro que lhe parece, com seu irmão, por exemplo. Ao
falsear não-ser em ser no discurso, o sofista interfere em nossa autonomia para julgar, e

66
Investigando as artes oratórias, Sócretes, no diálogo Fedro, nos diz o seguinte: “Que fazem as partes
nos tribunais? Não contesta cada orador as afirmações de seus opositores? (...) A respeito do justo e do
injusto? (...) Sendo assim, quem obtém esse mesmo resultado por meio da arte, não fará parecer ora justas
ora injustas as mesmas coisas às mesmíssimas pessoas, conforme entender?” (PLATÃO, Fedro, 261 c-d).

100
pode levar-nos a cometer injustiças. Podemos incriminar um inocente acreditando agir
conforme a verdade, e sequer poderemos ser responsáveis por isso, uma vez que fomos
persuadidos, por alguém que dizia-se conhecedor da verdade, de que era correto julgar
de tal maneira. Mas como é possível que exista tal arte capaz de persuadir-nos a tomar o
falso pelo verdadeiro?

A reflexão que Platão nos propõem é diferente da que faz Parmênides.


Parmênides está buscando uma via de investigação para alcançar a verdade, excluindo
completamente as vias que possam desviá-lo dela, e para não desviar-se de modo
algum, chega a aceitar que não há conhecimento possível sobre a physis. Platão, por
outro lado, sem se desinteressar da investigação parmenídea sobre o ser e a verdade,
quer saber por que a natureza permite ser falseada; e por isso pergunta-se sobre como é
possível que existam as artes, e seus produtos, que imitam, duplicam, copiam e simulam
aquilo que é. Assim, devemos buscar compreender o que tem a ver o falso com a physis.
Contudo, antes de Platão nos colocar essa questão, ou seja, antes dele pensar sobre o
problema ontológico do falso e acusar o sofista de produzir falsos discursos, a sofística,
partindo de uma abordagem estritamente lógica, considerou o falso algo não existente.

Herdeiros de Parmênides, os sofistas são os primeiros intérpretes do poema do


eleata. Parmênides nos diz que somente o ser é, e é necessário que seja; nos diz que ele
tem uma relação de identidade com o pensar e o dizer, ou seja, o ser pertence ao âmbito
inteligível, ao âmbito da linguagem; e por fim, nos diz que só há verdade sobre o ser.
Ora, é completamente plausível dizer, com base nisso, que o ser é um efeito do discurso,
que qualquer coisa pensável e dizível é, e que se é, é verdade. Assim, se eu conto uma
ficção, se penso e falo sobre sereias, quimeras, e seres fantásticos, então eles são
verdadeiramente. Com isso, ao contrário de romper a relação necessária entre ser,
pensar e dizer, pode-se interpretar que é próprio ao pensamento sofístico tomá-la ao pé
da letra, julgando verdadeiro tudo o que o discurso for capaz de produzir.

Dentre os mais importantes sofistas, encontramos Górgias, que, assim como


Xenófanes e Parmênides, também faz parte da Escola Eleática, foi associado a ela como
seu principal crítico, mas também como um de seus principais herdeiros. Górgias
escreveu um tratado intitulado “Peri phyeseos”, o mesmo nome do poema de
Parmênides. O tratado de Górgias reproduz as premissas principais do poema

101
detalhadamente, conforme uma imagem no espelho. Porém, ao modo do reflexo no
espelho, o tratado inverte o que diz o poema.

Parmênides diz: O ser é, o não-ser não é; Górgias diz: nada é. Parmênides diz: o
mesmo é o que é e o pensamento de que é, assim o ser é a única via de conhecimento.
Górgias diz: se é, é incognoscível. Parmênides diz: o mesmo é ser, pensar e dizer, e
também que é forçoso dizer o ser, pois nada não há. Górgias diz: se é, e se é
cognoscível, não pode ser comunicado67.

Quando Parmênides diz que o ser é e o não ser não é, instaura a krísis, a
separação entre os dois caminhos. Górgias, ao dizer que nada é, rompe justamente com
a distinção entre ser e não ser. Isso porque, atento a estrutura sintática do enunciado
parmenídeo, percebe que antes de podermos negar o não-ser é necessário afirmar que
ele é, pois para negá-lo é preciso tomá-lo como sujeito, e tomando-o como sujeito já
afirmamos sua existência. (CASSIN, B. 2005, pág. 32).

“Pois se o não ser é não ser, o não-ente seria não menos que o ente: com
efeito, o não-ente é não-ente assim como o ente, ente, de modo que são, não
mais do que não são, as coisas efetivas”. (Pseudo-Aristóteles, De Melisso,
Xenófanes e Górgias, in. CASSIN, B. 2005, pág. 278 3- 25).

Neste primeiro momento, podemos notar que, ao afirmar a existência do não-ser,


Górgias imediatamente quer recuperar a possibilidade de falar sobre as coisas efetivas
(ta pragmata), os objetos da physis, que por nascerem e morrerem foram considerados
por Parmênides não-entes. Assim, encontramos na sofística o interesse de tomar a
linguagem usada pela deusa para falar do ser e usá-la para falar do mundo e das coisas
do mundo. Essa perspectiva permite aproximar Górgias de Protágoras, sofista cuja
teoria foi apresentada por Sócrates no diálogo Teeteto.

No Teeteto, buscando pela definição de conhecimento (episteme), a primeira


hipótese a ser investigada, foi proposta pelo personagem homônimo ao diálogo, nos
seguintes termos:

“Minha opinião (dokei), pois, é que quem sabe (epistamenos) alguma coisa
sente (asthanestai) o que sabe. Assim, o que me parece (phainetai) neste
momento é que conhecimento (episteme) não é mais que sensação
(aisthesis)”. (PLATÃO, Teeteto, 151 d-e).

Aqui são apresentados em uma relação íntima, como que “confundidos”, quatro
termos muito importantes: doxa (opinião, parecer), aisthesis (perceber, sentir), phainetai

67
Crf. nota 13.

102
(aparecer, aparência) e episteme (conhecimento) 68 . Ao longo do Teeteto, buscar-se-á
desfazer essa confusão. Mas, o que aqui nos interessa é apenas essa primeira tese,
segundo a qual conhecimento é sensação, pois ela é imediatamente associada por
Sócrates à doutrina do homem-mesura de Protágoras.

De acordo com Protágoras “o homem é a medida de todas as coisas, das que são,
que são, das que não são, que não são” (PLATÃO, Teeteto, 152 a). Sócrates mostra que
a tese de Teeteto é como a de Protágoras, pois ambas propõem uma identificação entre
ser e aparecer, e entre aparecer e sentir. Assim, se as coisas são como aparecem, a mim
ou a alguém, aparecer é o mesmo que ser sentido ou percebido. Com isso, entende-se
que as coisas que são percebidas são realmente, pois não é possível perceber algo que
não é (não aparece), então não há opiniões falsas e tudo o que percebemos (sentimos) é
conhecimento.

Sócrates, após ter relacionado a tese do conhecimento como sensação à doutrina


do homem-mesura de Protágoras, associa ambas ao mobilismo, e reúne Protágoras,
Heráclito, Empédocles, Homero, e todos os sábios com exceção de Parmênides
(PLATÃO, Teeteto,152e). De acordo com Sócrates, identificar o ser com o que aparece
implica em excluir a possibilidade de que as coisas sejam unas em si mesmas, pois se o
mesmo ora aparece como branco, ora como preto, ora como alto, ora como baixo, então
tudo o que há é múltiplo, e nada pode ser denominado acertadamente com segurança.
Além disso, dizer que todas as coisa são apenas na medida em que aparecem e são
percebidas, implica dizer que nada existe, mas tudo devém e se forma em movimento e
relação. Quanto a isso, Sócrates apresenta uma detalhada teoria da percepção, como
sensação, que permite reconhecer na tese de Protágoras uma ontologia fenomenológica.

Mas a tese de Protágoras também implica que, se qualquer sentiente é a medida


de todas as coisas, então não existem homens sábios e ignorantes, pois todas as opiniões
são verdadeiras, particulares e incomparáveis. E se é assim, elas não são passíveis de
serem refutadas69. Isso o faria cair em contradição consigo mesmo, uma vez que ele
próprio, se julgava um sábio. Quanto a isso, Sócrates diz, em defesa de Protágoras, que
afirmar que o valor de verdade de todas as opiniões é o mesmo, não implica dizer que

68
Cfr. FLAKSMAN, A. Considerações iniciais sobre o Teeteto in. Aspectos da Recepção de Heráclito
por Platão, 2009, págs.71 -151.
69
Essa é uma posição comum entre os chamados sofistas quanto a teoria da linguagem. Antístenes a
resume da seguinte forma: “Pois todo discurso assevera (aletheuei); de fato, aquele que diz diz algo; ora
aquele que diz algo diz o ente; ora, aquele que diz o ente assevera”. (CASSIN, B. 2005, pág.40).

103
todas são verdadeiras, pois, uma vez que nada existe, a verdade também não existe.
Mas, no entanto, é possível que existam homens sábios e homens ignorantes, pois sábio
não é aquele que conhece a verdade, e sim aquele que é capaz de perceber da melhor
maneira aquilo que lhe aparece. Sabedoria é uma questão de medida: a percepção ou
sensação do homem, e consequentemente seu estado da alma, pode ser melhor ou pior.
Assim, a teoria de Protágoras também pode ser interpretada como um empirismo
subjetivista.

Fizemos essa digressão para mostrar que a confusão entre ser, aparecer,
perceber, sentir e opinar torna inevitável que o discurso esteja sempre associado às
coisas sensíveis. Contudo, os sofistas não são physikoi, eles não estão preocupados em
conhecer tais coisas. Ao invés disso, seu objetivo é mundanizar a linguagem, ou melhor,
humanizar a linguagem, assumir que ela serve ao homem e aos assuntos do homem. Ou
seja, que ela diz respeito a vida prática, e que o próprio lógos é algo efetivo (ta
pragmata).

De volta a investigação sobre Górgias, podemos dizer que ele não quer domar
não seres (sensíveis) a serem (enquanto lógos). Diferente disso, quer mostrar que
logicamente não é possível distinguir ser e não-ser, pois essa distinção, que é o
fundamento da metafísica e que pretende tornar possível conhecer o ser enquanto ser,
não passa de um efeito da linguagem, e que, na linguagem, ente e não-ente são ao
mesmo modo.

“... torna-se impossível, quando se enuncia apenas o verbo “é”, saber se o


sujeito, qualquer que seja, com o qual lidamos, nas frases como no mundo, ta
pragmata, é como é o ente ou como é o não-ente, se ele é mais não-ente do
que ente (...). Impossível então saber se o caminho no qual estamos engajados
é de fato o do “é” ou apenas o do “não é”. (CASSIN, B. 2005, pág. 32).

Górgias assume que, ao modo como quer Parmênides em seu poema, nada é,
porque, na prática, a separação entre ser e não-ser é impossível. Se não é possível
distinguir “ser”, nada pode “ser” enquanto sujeito, então “não é verdade que exista ser”
(CASSIN, B. 2005, pág 21), e “se ‘ser’ e ‘não-ser’ não tem existência, então eles nunca
poderão servir de verbo em uma frase”. (CASSIN, B. 2005, pág. 22). Assim, não seria
possível conhecer nem tampouco falar sobre o ser. O que Górgias nos mostra é que:

“Com ‘o ser é ser’, a diferença entre sujeito e predicado é imperceptível,


como que anestesiada, já que as duas sequências ‘o ser é’ e ‘o ser é ser’ se
confirmam, até mesmo se confundem, assim como os dois sentidos,
existência e cópula, do ‘é’. (...) somente o caso do não-ser permite tomar

104
consciência do curso do discurso e da diferença normalmente inscrita no
enunciado de identidade: é o ‘não é’ que deve se tornar a regra do ‘é’.
(CASSIN, B. 2005, pág. 33-34).

Quando dizemos “o não ser é não ser” a estrutura sintática da proposição fica
evidente. É nesse sentido que ele deve se tornar a regra da linguagem. E também no
sentido de que mesmo se ele não for, ele é, porque pode ser predicado ainda que para
negá-lo, e isso o torna pensável e dizível. A partir disso, devemos notar que quando
dizemos “o ser é” ou “o ser é ser”, o “é” ou o “é ser”, enquanto predicados, não são a
mesma coisa que “o ser” enquanto sujeito. Mas a separação entre sujeito e predicado
serve apenas ao esclarecimento da articulação necessária entre ambos. Isoladamente,
fora da relação, como diria Protágoras, ou fora da articulação discursiva, como talvez
dissesse Górgias, nada há. De um sujeito impredicável não se pode afirmar nem mesmo
a existência. No discurso, ser e não-ser, como sujeitos opostos, são passíveis de receber
o mesmo predicado: “o ser é”, “o não-ser é”, donde o predicado “é” nem é nem não é,
pois não diz respeito somente ao ser ou ao não-ser. Do mesmo modo, o sujeito “ser”
pode receber predicados contraditórios: “é uno”, “é múltiplo”, “é”, “não é”, donde,
“ser”, enquanto sujeito, nem é uno, nem é múltiplo, nem é, nem não é. Assim, enquanto
tal, nada é nem não é. Mas pode ser e não ser conforme a predicação.

Porém, quando Parmênides diz que aquele que tentar pronunciar o não-ente não
poderá fazê-lo, porque o que não é, não é declarável, isso significa que o não-ser não
pode ser colocado sobre nada, ou seja, não pode ser sujeito. Se nos lembrarmos da
função da palavra na narrativa poética e de seu poder de presentificação, lembraremos
também que a palavra “se colava” sobre as coisas, tornava-se uma unidade com o
sujeito que indicava. É nesse sentido que o não-ser não é, pois ele não pode ser aplicado
a nada. Por outro lado, quando a linguagem começa a ser investigada, as palavras se
descolam do sujeito, perdendo seu poder de presentificação para assumir maiores
possibilidades de indicá-lo no encadeamento discursivo. Porém, para Parmênides, nem
mesmo no encadeamento discursivo é possível dizer o que não é. Isso porque, assim
como ser é pensamento, não-ser é imediatismo, é fala sem pensamento. Assim, quando
os mortais acríticos dizem o não-ser, eles o fazem a partir de nomes (ónoma) sem
embasamento, que não passam de glossa, sons que não significam. “O fato de que falar
seja dizer o ser é portanto a ‘decisão’ que se encontra no fundamento da tese de
Parmênides”. (AUBENQUE, apud. CASSIN, 2005, pág. 37). Contudo, Parmênides
precisa enunciar o não-ser para negá-lo, donde, segundo as suas próprias regras, incorre

105
em uma contradição. Além disso, ao valer-se da homonímia e da anfibolia, gerando uma
confusão entre sujeito e predicado no enunciado do ser, “ser” torna-se algo
completamente indistinto, tanto sintática como semanticamente, assim, Parmênides
pode ser acusado, ele próprio, de fazer uma glossa, ou seja, falar sem significar.

Se é a mesma coisa pensar e ser, e se quando contamos uma ficção ou uma


mentira elas podem ser pensadas e significam, então, “uma mentira, um erro, uma
ficção, existem tanto quanto o verdadeiro tão logo o proferimos”. (CASSIN, 2005, pág.
38). Assim, “tudo o que é, é no modelo do não ser, aquele que passa a ser simplesmente
porque o enunciam” (CASSIN, B. 2005, pág. 36).

“Se então nada é, as demonstrações dizem tudo sem exceção. Pois é preciso
que o representado seja e que o não-ente, se pelo menos não é, tampouco seja
representado. Mas se é assim ninguém diz que uma falsidade nada seria, diria
mesmo que as carruagens lutam em pleno mar, porque o que é visto e ouvido
é pela única razão de ser a cada vez representado”. (Pseudo-aristóteles, De
Melisso, Xenófanes e Górgias, 9 in. CASSIN, B. 2005, pág. 281).

“As demonstrações fazem assim passar do ‘nada’ à ‘tudo sem excessão’”.


(CASSIN, B. 1980, pág. 532). Não há realidade para além da discursiva, tudo o que é, é
porque é representado. Assim, se o único referencial para o ser é a sua representação
discursiva, qualquer coisa pensável, ou perceptível (vista, ouvida), é na medida em que
é dita, e uma vez dita é verdade. O pensar noético, puro, a parte do âmbito sensível, dá
lugar, com os sofistas, ao pensar entendido de forma mais ampla, como percepção,
abrangendo, dessa forma, tudo o que apreendermos com nossos sentidos e pudermos
representar. No entanto, os objetos sensíveis por si só, nada são. O discurso é o que
determina sua realidade. Uma vez dito, tudo “é” ao mesmo modo. Assim, o ser
“ontológico” de Parmênides é substituído por um ser puramente “lógico”. “Uma vez
que nada é da maneira que (se) faz crer a ontologia, não há outra consistência se não a
de ser argumentada”(CASSIN, B. 2005, pág. 39).

Na sequência, Górgias afirma que “mesmo se são, as coisas efetivas seriam,


decerto incognoscíveis para nós”. (Pseudo-ARISTÓTELES, De Melisso, Xenófanes e
Gorgias 9 in. CASSIN, B. 2005, pág. 281). Neste segundo momento, Górgias recua sua
primeira tese, a de que nada é, e considera, como hipótese, a tese parmenídea de que o
ser existe, e é sua existência que fundamenta a linguagem, e não a linguagem que
fundamenta sua existência. Contudo, o ser, que poderia servir de fundamento para a
linguagem, não é pensado por Górgias ao modo de Parmênides, como um ente

106
metafísico, mas como “coisas efetivas”. Isso porque o âmbito metafísico é o âmbito
discursivo, e no discurso é o próprio discurso que se fundamenta. Para além do discurso
o que há é a physis, mas se o “ser” da physis é em algum ponto distinto do “ser”
discursivo, torna-se então impossível conhecer esse “ser”. Aqui, Górgias aceita,
juntamente com a tese de que “o ser é”, a separação entre o âmbito discursivo e o
âmbito sensível.

Depois de afirmar sua primeira tese, que nada é, e operar esse primeiro recuo,
para apresentar a sua segunda tese, que se algo for é impossível conhecer, Górgias opera
um segundo recuo para apresentar sua terceira tese: ele aceita, como hipótese, a
possibilidade do conhecimento, e diz:

“Assim, se há algo cognoscível, ninguém poderia mostrá-lo a outrem, porque


as coisas não são dizeres, e ninguém tem na idéia a mesma coisa que um
outro”. (Pseudo-ARISTÓTELES, De Melisso, Xenófanes e Górgias 11 in.
CASSIN, B. 2005, pág. 282).

Se é possível conhecer algo, enquanto uma “coisa efetiva”, não é possível


comunicar, porque apenas podemos comunicar dizeres. Se há algo para além do
discurso, jamais poderá ser conhecido por meio do discurso.

“Assim, aquilo do que ninguém tem idéia, como perguntaria a um outro por
meio de um dizer, ou ainda como poderia ter idéia por meio de um qualquer
signo da coisa que é outra – senão, se é uma cor, vendo-a, e se é um ruído
ouvindo-o? Pois, para começar, ele [o discurso] não diz uma cor, mas um
dizer. De modo que não ocorrem nem o conceber nem o ver da cor, assim
como do ruído, há apenas o escutar”. (pseudo-ARISTÓTELES, De Melisso,
Xenófanes e Górgias 10 in. CASSIN, B. 2005, pág. 282).

Górgias leva a distinção, que o lógos parmenídeo busca operar por meio da
identidade, para o âmbito da percepção sensível. Assim, os olhos não podem conhecer
os sons, mas conhecem as cores; os ouvidos não podem conhecer as cores, mas apenas
os sons. Se o discurso diz um dizer, e não pode levar a visão a conceber nenhuma
imagem, então ele será apenas um ruído para ouvidos que são capazes de perceber
somente sons.

“A incomunicabilidade é, pura e simplesmente, um efeito da distinção


parmenideana: assim como o ser não se mistura com o não-ser, o lógos
propriamente dito é por si só seu próprio campo, nada tem a ver com a doxa
dos mortais, de tal modo que não se relaciona mesmo com os sons que se
pode ouvir. A distinção entre lógos e ruído passa finalmente entre aquele que
fala e aquele que ouve: aquele que diz diz um dizer (...) mas aquele que ouve
ouve apenas sons (...). Entre aquele que fala e aquele que ouve não se
estabelece qualquer diálogo”. (CASSIN, B. 2005, pág. 48).

107
Temos então que nada é, e basta. Porque se fosse não seria cognoscível e nem
comunicável. O nada, que não é uma “coisa efetiva” (ta pragmata), torna-se no
discurso. O discurso é algo efetivo capaz de mudar o nada em tudo. É porque o discurso
pode produzir seres, que para além dele não-são, representando percepções sensíveis,
imitando-as e misturando-as, que é possível ser, conhecer e dizer (mas não ao modo de
Parmênides, para quem conhecer é conhecer a verdade). Assim, não há o falso, pois se
apenas o discurso é, tudo o que ele for capaz de dizer é verdade. O discurso afirma.
Mesmo quando nega, afirma a negação. E como não é possível distinguir ser e não-ser,
tudo o que for afirmado igualmente é. Assim, “todos os discursos como todas as
sensações valem e se equivalem”. (CASSIN, B. 2005, pág. 40). Eis que, a partir dessas
conclusões podemos retomar a investigação acerca da preocupação platônica em relação
à sofística.

108
III.III – “Não me tomes por um parricida”, mas será preciso desobedecer
Parmênides e investigar o não-ser.

Essa sessão buscará acompanhar a leitura platônica da tese parmenídea. Aqui


será discutida a necessidade de desobedecer Parmênides, buscando compreender o não-
ser, justamente para poder obedecê-lo, ou seja, para que se possa trilhar o caminho do
ser, da verdade e do conhecimento. Na perspectiva platônica, a sofística, com sua tese
de que não há o falso, libera a via da contradição, e pode levar-nos ao engano e a
injustiça. Além disso, impede o conhecimento verdadeiro e sua transmissão. Platão,
para garantir a possibilidade do conhecimento e da verdade nos discursos, terá que
tornar possível distinguir verdade e falsidade, tendo, então, que assumir a existência do
falso e a possibilidade de dizê-lo. Para realizar tal tarefa, será preciso investigar o não-
ser, visto que apenas nos enganamos quando o confundimos e o misturamos com o ser.

A investigação inicia-se com o Estrangeiro de Eléia citando Parmênides:


“Jamais obrigarás os não-seres a ser; Antes, afasta teu pensamento desse caminho de
investigação”. A partir dessa citação, o Estrangeiro questiona sobre a possibilidade de
proferir algo que não é, coisa que a deusa do poema de Parmênides, conforme o verso
citado testemunha, não deixa de fazer. Acaba por concluir que “não se poderia atribuir o
não-ser a qualquer ser que se considere” (PLATÃO, O Sofista, 237d). Isso, após ter
explicado que o nome “não-ser” não se aplica a nenhum objeto (ou seja, a nenhum
sujeito), nem a nenhuma qualidade (ou seja, a nenhum predicado). Com isso, temos que:
falar é colocar a palavra sobre a coisa e também acrescentar qualidades, predicados a
um sujeito (CASSIN, B. 2005, pág.36). Isso indica o caminho da crítica que Platão fará
ao discurso parmenidico-sofistico.

Na sequência, a impossibilidade de aplicação do “não-ser” se estende ao


“qualquer”, uma vez que o nome “qualquer” sempre se aplica ao ser. Se estende
também ao número, já que quando dizemos “qualquer” dizemos “qualquer um”, e
sempre que dizemos “quaisquer” dizemos vários (PLATÃO, O Sofista, 237e). Desse
modo, o Estrangeiro de Eléia insere o problema do plural e do singular. Como
poderíamos, referindo-nos a nada, atribuir-lhe um número? Primeiro, não deveríamos
conceder em enunciar o não-ser, já que enunciá-lo é nada dizer. Segundo, não devemos
aplicar ao não-ser nem o plural nem o singular, visto que o número é ser, donde
enunciar “não-ser” no singular, ou “não-seres” no plural é, além de nada dizer, operar a

109
união entre ser e não-ser. Assim, o Estrangeiro de Eléia mostra que o próprio
Parmênides incorreu em contradições.

A argumentação retorna, então, ao sofista, dizendo que: enquanto não se


encontrar alguém que seja capaz de fornecer um enunciado correto a respeito do não-
ser, sem uni-lo ao ser, nem a unidade, nem a pluralidade numérica, dir-se-á que o sofista
“se escondeu num refúgio inextrincável”. (PLATÃO, O Sofista, 239 c). Isso porque, se
até mesmo para fornecer as regras do caminho do conhecimento Parmênides precisou
contradizer-se, misturando ser e não-ser, não é possível realmente destruir o refúgio do
sofista, ou seja, o não-ser e a contradição. Dito isso, o Estrangeiro continua a criticar o
sofista, afirmando que “se ele possui uma arte de simulacro, o emprego de tais fórmulas
lhe tornaria fácil a resposta”, pois ele “voltaria contra nós as nossas próprias fórmulas”.
(PLATÃO, O Sofista, 239 c-d).

Ora, mas não foi o próprio Parmênides quem ao dizer “o ser é” valeu-se da
homonímia que confunde mais que esclarece, e se utilizou “do equivoco do ‘é’ para
erigi-lo como regra”? (CASSIN, B. 2005, pág. 33-34). O próprio surgimento da
ontologia é indissociável da sofística. Assim, a sofística não deve ser pensada como
uma parte distinta da filosofia, como se ela se preocupasse apenas com a retórica, por
exemplo. A filosofia dos sofistas é necessária, inclusive, para que Platão possa realizar a
investigação que agora opera.

Mas, como dizia o Estrangeiro, o sofista seria capaz de fornecer uma definição
do não-ser, porque, provavelmente, se valeria de simulacros e da contradição que
provocaria em nós. Frente a isso, poderíamos chamá-lo de “produtor de imagens”, ao
que ele iria querer saber o que chamamos de imagens. (PLATÃO, O Sofista, 239d).
Teeteto fornece, então, exemplos de imagens: das águas, dos espelhos, das pinturas, das
gravuras... Ao que o Estrangeiro replica:

“Bem se vê, Teeteto, que jamais vistes um sofista (...) Ele te parecerá um
homem que fecha os olhos ou que, absolutamente não tem olhos (...) Quando
assim lhe responderes, ao lhe falar do que se forma nos espelhos, ou do que
as mãos amoldem, ele [o sofista] se rirá de seus exemplos, destinado a um
homem que vê. Fingirá ignorar espelhos, águas e a própria vista e te
perguntará, unicamente, o que se deve concluir de tais exemplos”.
(PLATÃO, O Sofista, 239 e 240 a).

Mais uma vez o procedimento do sofista não se diferencia do procedimento do


filósofo. Sócrates, em vários diálogos, inclusive no anterior, recusa os exemplos como

110
definição. Pois bem, Teeteto dá ao Estrangeiro uma definição de imagem: trata-se de
“um segundo objeto igual, copiado do verdadeiro”. Mas, esse segundo objeto não pode
ser realmente igual, por não ser “um ser real” e nem tampouco “verdadeiro”. Assim,
seria apenas semelhante, e teria que ser “um não-ser irreal”. Frente a afirmação de que
“o que parece é um não-ser irreal”, Teeteto intervém e diz: “entretanto há algum ser”
(PLATÃO, O Sofista, 240b), donde na própria tentativa de definir a imagem enreda-se
no entrelaçamento de ser e não-ser.

O sofista, como produtor de imagens e simulacros, é então chamado de


ilusionista e acusado de ser capaz de forjar em nossa alma opiniões falsas. (PLATÃO, O
Sofista, 240d). As opiniões falsas, por sua vez, são compreendidas, em acordo com
Parmênides, como opiniões segundo as quais os não-seres de algum modo são. Nesse
caso, mesmo esse discurso, que busca denunciar a mistura de ser e não-ser operada pelo
sofista, pode também ser considerado falso, pois pronunciou o “não-ser”, que antes
havia afirmado ser impronunciável, e, ao pronunciá-lo, o fez no singular ou no plural,
ou seja, misturando-o ao ser. Assim, o sofista poderia acusá-los de incorrer no mesmo
erro sobre o qual eles acusam o sofista.

“Como não compreender que ele nos acusará de dizer agora o contrário do
que então dizíamos, nós que temos a audácia de afirmar que há falsidade
tanto nas opiniões como nos discursos? Na verdade, isso mesmo nos leva a
unir o ser ao não ser em muitas fórmulas, quando havíamos concordado na
sua impossibilidade, a mais absoluta”. (PLATÃO, O Sofista, 241a-b).

Com isso, enfim chegamos ao momento em que Platão, por afirmar a existência
do falso, terá que tratar diretamente da necessidade de abandonar a tese parmenídea, e
defender que em certo sentido o não-ser é. A partir desse momento ele apresentará o
eleatismo como uma escola de pensamento que relaciona “ser”, “uno” e “todo”, e
discutirá o que implica a imbricação desses três conceitos. Com isso temos que, não
apenas o problema do não-ser, mas também a questão do número, que já foi antecipada,
sobre a forma do “algum”, “alguns” e do “um” e “vários” na discussão sobre singular e
plural, deverá ser analisada. Vimos na sessão anterior, quando falamos sobre a
referência a Protágoras que Sócrates faz no Teeteto, que os sofistas e todos os
pensadores com exceção de Parmênides, que aqui serão chamados de mobilistas, além
do movimento (devir) defendiam também a multiplicidade. Por causa disso foram
acusados de tornar impossível que as coisas sejam unas em si mesmas e,
consequentemente, teriam também tornado impossível nomeá-las acertadamente.

111
(PLATÃO, Teeteto,152e). Por isso, Platão dá à unidade e à totalidade, consideradas por
Parmênides como sinais do ser, grande atenção em sua discussão com o eleatismo. Mas
depois, terá que tratar também dos mobilistas e buscar articular as duas teses. Vejamos
como isso acontece.

Abandonando a tese de Parmênides o Estrangeiro pede a Teeteto que não o tome


por um parricida (PLATÃO, O Sofista, 241d), e justifica-se dizendo:

“Enquanto não houvermos feito esta contestação, nem essa demonstração [de
que o não-ser em certa medida é], não poderemos, de forma alguma, falar
nem de discursos falsos nem de opiniões falsas, nem de imagens, de cópias,
de imitações ou de simulacros, e muito menos de qualquer das artes que deles
se ocupam, sem cair, inevitavelmente, em contradições ridículas” (PLATÃO,
O Sofista, 241e).

Se Parmênides, ao fazer ontologia fez também sofística, usando homonímia,


anfibolia e criando regras para a linguagem que ao mesmo tempo em que negam a
contradição nos levam a inevitavelmente cair nela, então, reconhecer tais problemas na
linguagem de Parmênides visando corrigi-los, não é cometer parricídio. Ao contrário, se
é preciso falar do falso justamente para desviar-se dele e poder caminhar pela verdade,
então, o que Platão está fazendo aqui, através de seu Estrangeiro de Eléia, é reivindicar
para si a filiação ao eleata.

Inicia-se então a discussão sobre o não-ser através das antigas teorias do ser. O
ponto de partida é a pergunta sobre quantos e quais são o ser ou os seres:

“A meu ver, Parmênides e todos os que com ele empreenderam discernir e


determinar o número e a natureza dos seres, assim fizeram sem proceder a
uma análise cuidadosa”. (PLATÃO, O Sofista, 242c).

O Estrangeiro diz que todos lhe dão a impressão de contar “fábulas” (mythos),
“como faríamos a crianças” (PLATÃO, O Sofista, 242c), e passa a enumerar
resumidamente algumas teorias quanto ao número e a qualidade do ser. Nos conta
então, que há quem diga que existem três seres, e que eles guerreiam entre si, casam-se
e tem filhos. Dizendo isso, nos parece referir-se a Hesíodo e aos princípios Kháos, Gaia
e Eros. Depois, diz que também há quem acredite que os seres são dois, o úmido e o
seco ou o quente e frio, indicando-nos a tese de Anaximandro. Logo em seguida vem a
frase que nos conduziu ao longo deste trabalho, e que agora podemos repetir em seu
contexto próprio: “Entre nós, os eleatas, vindos de Xenófanes e mesmo de antes dele,
admitem que o que chamamos o Todo é um único ser” (PLATÃO, O Sofista, 242d).

112
Como vimos no capítulo anterior a unidade é para Parmênides apenas mais um
dos sinais do ser e não uma definição do ser. Xenófanes, por sua vez, pode ter tratado da
unidade enquanto deus, mas não deixou de diferenciar o âmbito divino do humano,
donde da unidade do deus não se pode necessariamente inferir a unidade do todo. Por
que, então, Platão atribui aos eleatas a tese de que “o todo é um único ser”?

Bem, quanto a Parmênides podemos dizer que todos os sinais do “ser” são “ser”,
pois são as marcas que nos permitem apontá-lo e reconhecê-lo. O “ser”, não pode ser se
não apresentar todos os seus sinais, assim, podemos afirmar, a partir do sinal da
unidade, que não é “ser” aquilo que não puder se apresentar como uma unidade em si.
Além disso, outros eleatas, como Melisso e Zenão, trabalham sobre os sinais
apresentados no poema de Parmênides dando especial atenção à unidade e buscando
reafirmá-la.

Melisso tratou da unidade a partir de uma perspectiva cosmológica. Por isso,


Aristóteles chegou a dizer que ele “compreendeu o um segundo a matéria”
(ARISTÓTELES, Metafísica A, 986b 20). Desse modo, é possível inferir que Melisso
tratava do ser como algo corpóreo. No entanto, um dos fragmentos atribuídos a ele
atesta algo diferente disso: “Se, pois, <o ser> é, deve ser uno; e sendo uno, não deve
possuir corpo. Mas se tivesse espessura teria partes e já não seria uno”. (DK 9)

Com isso, podemos interpretar que a unidade defendida por Melisso tem por
objetivo falar do ser como uma totalidade. Isso faz com que sua filosofia possa
representar literalmente a crença atribuída por Platão a todos os eleatas. Por conta disso,
Platão foi acusado contemporaneamente de “inventar” a Escola Eleática, misturando as
teses de todos os filósofos que são ditos fazer parte dela, e olhando para Parmênides
“com óculos de Melisso”70. No entanto, ainda que saibamos que a frase Platônica é
responsável por reunir esses filósofos na identidade de uma escola, não acreditamos que
isso tenha sido feito desse modo arbitrário. Para que possamos compreender em que
sentido Platão, quando trata do eleatismo, privilegia a unidade dentre os demais sinais
do ser, vejamos também a posição de Zenão quanto a isso.

70
CORDERO, N. 1991, págs. 91-124.

113
No diálogo intitulado Parmênides, Platão mostra Sócrates ouvindo os
argumentos de Zenão, e diz que eles pretendem provar o seguinte:

“Que se os seres são múltiplos, então é preciso que eles sejam tanto
semelhantes quanto dessemelhantes, mas que isso é impossível, pois nem as
coisas dessemelhantes podem ser semelhantes, nem as semelhantes,
dessemelhantes (...). Então, (...) é também impossível haver múltiplas
coisas”. (PLATÃO, Parmênides, 127e).

Socrátes nota a semelhança da proposta de Zenão com a de Parmênides,


dizendo que enquanto o segundo afirma que o todo é um, o primeiro afirma não haver
múltiplas coisas. A isso, o Zenão platônico responde:

“Na verdade, esses escritos prestam uma assistência ao argumento de


Parmênides contra os que tentam caricaturá-lo, <dizendo que>, se um é,
resulta para o argumento ser afetado por coisas múltiplas e ridículas, e
mesmo contrárias a ele próprio. Assim sendo, esse escrito contesta os que
dizem <haver> o múltiplo, e lhes devolve na mesma moeda, com juros, ao
querer demonstrar que a hipótese deles, de que há múltiplas coisas, seria
afetada por coisas ainda mais ridículas do que <a hipótese> de que um é, se
elas fossem desenvolvidas suficientemente. Foi devido a um tal espírito de
controvérsia que foi escrito por mim, quando jovem”. (PLATÃO,
Parmênides,128c-d).

Além de buscar afirmar a unidade do ser, o Zenão platônico atesta que seus
argumentos também foram motivados pela controvérsia. Com isso, podemos notar que
Platão indica a relação de Zenão com a sofística. No diálogo Fedro, quando começa a
falar das artes oratórias, Platão se refere a Zenão da seguinte maneira:

“E do Palamedes de Eléia, não sabemos ter sido de tão arrebatadora


eloquência, que as mesmas coisas pareciam aos seus ouvintes iguais ou
dessemelhantes, unas e múltiplas, em repouso e em movimento?” (PLATÃO,
Fredro, 261d).

Aqui Zenão aparece como um antilógico, motivo pelo qual foi considerado por
Aristóteles o pai da dialética. Não da dialética aos moldes platônicos, mas uma dialética
erística71. Sabemos que Zenão era defensor da unidade e da imobilidade, como atestam
seus argumentos da flecha e da tartaruga, dos quais falamos no primeiro capítulo, no
momento em que o apresentamos. Contudo, agora podemos notar que, embora
defendesse a unidade e a imobilidade, Zenão o fazia de forma paradoxal, levando-nos a
entrar em total desacordo com nossas percepções sensíveis, donde as mesmas coisas
poderiam ora parecer unas, ora parecer múltiplas, ora em movimento, ora em repouso.

71
“Aristóteles disse que Zenão foi o inventor da dialética, como Empédocles da retórica”. (DK 29A1) Na
origem da filosofia grega o uso do termo dialética se referia a arte da discussão (COLLI, 2006, pág. 27)
nada incomum em uma cultura como a grega, que manifestava “uma tendência particular pela discussão
por ela mesma” (COLLI, 2006 pág. 28). Assim, a dialética dita zenoniana aparece geralmente associada à
disputa e a contradição.

114
Dito isso, retornemos a Platão. Após anunciar o que, segundo ele, constitui o
éthos eleático, ou seja, a tese de que o Todo é um único ser, o Estrangeiro continua a
sua lista e diz, por fim, que posteriormente houve quem buscasse combinar as duas teses
e assumir que “o ser é ao mesmo tempo uno e múltiplo, mantendo-se a sua coesão pelo
ódio e pela amizade”. Ao dizer isso provavelmente referia-se a Empédocles, mas
atribuiu este pensamento a “certas musas da Jônia e da Sicília”. Finda essa lista,
podemos observar que, com exceção dos chamamos eleatas, todos falaram do ser
através da multiplicidade, ora assumindo-a completamente, ora buscando relacioná-la à
unidade. Os que trataram do ser apenas como uno o fizeram, em acordo com
Parmênides, para pensá-lo absolutamente, sem nenhuma alteridade, como ordena o
principio de identidade. Por isso, consideraram o ser um todo indivisível e imóvel.
“Todo”, porque não há algo de outro que não ele, então deve ser inteiro e homogêneo;
“indivisível”, porque caso se dividisse isso geraria a multiplicidade, e nem a
multiplicidade nem a geração são admitidas por Parmênides no caminho do ser. A
“imobilidade” por sua vez, embora não esteja presente no enunciado platônico que
define o ethos eleático, é também trabalhada por eles, pois é necessária ao “ser” para
que ele seja constante, e além disso não haveria outro lugar para o qual o “ser” pudesse
se locomover, pois não há nada para fora dele. Vimos tudo isso com Parmênides no
capítulo anterior. Agora, porque assumimos que essas teses estão imbricadas, são
codependentes, podemos dizer que resumi-las na associação entre ser, unidade e
totalidade é algo legitimo, pois a partir dessas noções podemos chegar a todas as outras.
Assim como agora chegamos a necessidade da “imobilidade”. Entretanto, há uma razão
especial para Platão privilegiá-las: ele precisa reformular a linguagem de Parmênides
para admitir a existência do não-ser, e consequentemente da alteridade, da
multiplicidade e do movimento, mas sem, no entanto, perder a conquista parmenídea da
unidade que permite que as coisas sejam nelas mesmas, e por isso torna possível
“nomear acertadamente” e conhecer a verdade. Podemos, então, dizer que embora a tese
segundo a qual “o todo é um único ser” seja muito antiga, e possa estar presente entre
filósofos que não são considerados eleatas, e mesmo entre os eleatas não pode sempre
ser tomada “ao pé da letra”, reuni-los em torno de tal tese, considerando a relação entre
ser, unidade e totalidade a partir dos problemas da linguagem, não deve ser considerado
uma invenção arbitrária.

115
Retornando ao texto platônico, na sequência da apresentação das doutrinas dos
antigos, o Estrangeiro inicia sua investigação sobre o ser citando primeiro o método que
usará e, logo em seguida, a confusão feita por aqueles que admitem que o ser é múltiplo:

“Aí esta, pois, ao que creio, o método que se impõe a nossa pesquisa. Nós os
suporemos presentes, pessoalmente, e lhes proporemos estas perguntas: “que
devereis vós todos, para quem o Todo é o quente e o frio ou algum par desta
espécie, entender por esse vocábulo que aplicais ao par quando dizeis que
tanto o par como cada um de seus termos ‘é’? Que pretendeis fazer-nos
entender por esse ‘é’? Devereis nele ver um terceiro termo somado aos dois
outros, ou deveremos, segundo acreditais, admitir que o Todo é três, e não
mais dois? Pois se chamardes de ser a um dos dois, não podeis mais dizer que
os dois igualmente ‘são’; e nesse caso, teríamos em rigor, uma maneira dupla
de fazer com que apenas um seja, mas nenhuma maneira de fazer com que
dois ‘sejam’(...) Seria, pois, ao par, que pretendes chamar de ser? (...) Mas
então, amigo (...) ainda nesse caso se afirmaria muito claramente que dois é
um”. (PLATÃO, O Sofista, 243d 244a).

Além do método de pretender que os antigos filósofos estejam presentes para


interrogá-los, esses primeiros questionamentos tratam de apontar para as seguintes
questões: é preciso diferenciar os nomes sobre os quais dizemos que é do próprio ser; é
preciso atentar para a função do ser como cópula que permite relacionar diferentes
termos, e também para a confusão que podemos fazer dessa função com a existencial,
por exemplo; é preciso atentar para a equivocidade provocada pela afirmação de que ser
é algo de outro (outro nome) que não ser; e também para a equivocidade que se pode
gerar quando predicamos muitos de um, afirmando assim, contraditoriamente, que o
uno é múltiplo. Após apontar para essas questões o Estrangeiro se volta para os que
disseram que o todo é uno, ou seja, para os eleatas, e trata de analisar a equivocidade
entre ser e um:

“Bem, pelo nome de ser entendes vós alguma coisa? (...) E sendo essa coisa o
mesmo que o uno, empregais dois nomes para um mesmo e único objeto, ou,
que deveremos nós pensar?” (PLATÃO, O Sofista, 244 b-c).

No livro I de sua Física, Aristóteles inicia sua crítica aos eleatas do mesmo
modo: acusando-os de tomar “ser” e “um” equivocamente, como se fossem dois nomes
para a mesma coisa (ARISTÓTELES, Física I, 1 184b). Façamos uma pequena
digressão para conferir o que ele diz sobre isso.

De acordo com Aristóteles o “ser se diz de muitos modos”, e também o “um”


se diz de muitos modos, o que faz com que ele interprete que ao dizer “ser é um”,
Parmênides estaria pensando que o “ser” se diz de apenas uma maneira, e confundindo-
o com a “unidade.” Aristóteles busca, então, saber se ao dizer “ser”, Parmênides queria

116
dizer uma qualidade, uma quantidade ou uma substância, e se ao dizer “um” ele queria
dizê-lo enquanto contínuo, indivisível ou como a unidade significativa de uma
definição. Ao fazer essas distinções, ele mostra que nenhuma delas pode ser assumida
por si só como uma unidade absoluta. Pois no caso do “ser”, tanto a qualidade como a
quantidade só podem ser se atreladas a uma substância, o que já implicaria uma
multiplicidade. E se adotássemos a substância como o único sentido de “ser”, ela
também não poderia estar articulada a nada de outro, e então seria completamente
indiferenciada. No caso de assumirmos a continuidade como sendo a única coisa que é,
sua divisibilidade ao infinito levaria a multiplicidade. No caso da indivisibilidade, o
resultado seria novamente a indeterminação, visto que nada poderia ser uma quantidade
ou uma qualidade. E no caso de tudo o que é ser “um” pela definição, a consequência
seria novamente a impossibilidade de diferença e articulação. Assim, se tomássemos o
homem como “ser”, dizer que o homem é branco seria o mesmo que dizer que o homem
é não-homem.

Além da acusação de que a premissa que diz “o ser é um” seria falsa,
Aristóteles quer mostrar também que o argumento do qual Parmênides se utiliza não é
válido. Para tanto, ele diz:

“... o argumento, por sua vez, é inconcludente porque, se fossem assumidos


apenas os brancos, e se o branco significasse algo único, não menos seriam
muitos os brancos, e não um só, pois o branco não seria um nem por
continuidade nem por definição, pois seriam distintos o ser para branco e o
ser para receptáculo. Nem precisaria haver nenhum outro item separado à
parte do branco, pois o branco e aquilo a que ele se atribui seriam distintos
não pelo branco, mas pelo ser”. (ARISTÓTELES. Física, I, 186a 22-30)

Com base no exemplo aristotélico, o argumento eleático pode ser reconstituído


do seguinte modo: (1) o ente é/existe; (2) o ente tem um único significado; assim (3)
ente é uma coisa só. Contudo, ele nos chama a atenção de que a primeira premissa não
se mostra indispensável à conclusão, e com isso “Parmênides teria entendido que da
premissa (2), conclui-se a (3), ou seja, que a unidade do significado é condição
suficiente para acarretar a unidade daquilo a que o termo se refere” (ANGIONI, L. 2009
Pág. 100).

Aristóteles não pode aceitar que tudo o que tem o mesmo significado seja uma
coisa só. Contra isso, seu argumento acima citado nos mostra que mesmo se existisse
apenas o branco, com um único significado, seriam muitos os brancos, pois se o branco
fosse uma continuidade ele “se aplicaria a uma multiplicidade de coisas não contínuas

117
entre si, como uma parede e um cavalo” (ANGIONI, L. 2009, pág. 100). E isso
implicaria em uma “espécie de fragmentação semântica do branco” (ANGIONI, L.
2009, pág. 100). Além disso, mesmo que não houvesse coisas não contínuas, ou seja,
que houvesse apenas o branco, “haveria uma diversidade entre o ser branco e o ser uma
coisa que tem a propriedade de ser branca” (ANGIONI, L. 2009, pág. 100). Entretanto,
essa última parte do argumento pressupõe uma teoria da predicação que não poderia ter
sido conhecida por Parmênides. Além disso, o exemplo escolhido por Aristóteles (o
branco) corresponde dentro da linguagem de suas próprias categorias a um acidente, ou
seja, a algo que necessariamente deve ser dito de algo, e, assim, deve funcionar como
um predicado. No entanto, nos parece que o que Aristóteles pretende com isso é nos
mostrar que é necessário distinguir, por um lado, o “ser”, e por outro, as coisas que têm
a propriedade de “ser”. Mas como o próprio Aristóteles diz “Parmênides ainda não tinha
percebido isso” (ARISTÓTELES, Física, I, 186a 30-31), ou seja, ele não falava por
intermédio dessas categorias.

Retornando a Platão, veremos que a distinção entre o nome que se aplica ao ser;
e o nome que se atribui a ele como seu predicado, tem seu início neste momento,
quando o Estrangeiro de Eléia analisa a tese atribuída por Platão ao eleatismo. As
categorias usadas por Aristóteles, e sistematizadas a partir dessa distinção – qualidade,
quantidade, substância, continuidade, divisibilidade, quididade – começam a ser
discutidas aqui, donde temos que: de Parmênides a Aristóteles, passando pelas
descobertas platônicas, podemos observar um gradual desenvolvimento das categorias e
de toda a teoria da predicação.

A questão da equivocidade entre “ser” e “um” é o ponto de partida tanto de


Platão como de Aristóteles na busca por desenvolver a linguagem. Ambos querem
torná-la capaz de dizer todas as coisas: tanto as que são, quanto as que não-são; tanto as
que dizem respeito apenas ao âmbito inteligível, como as que dizem respeito às
aparências e à physis, tanto os nomes que podem se “colar” sobre algo, quanto os nomes
que devem sempre serer ditos sobre ou em relação a esses primeiros nomes.

Assim, o Estrangeiro nos diz que se fosse o caso de “ser” e “um” serem dois
nomes para a mesma coisa, então eles deveriam significar a mesma coisa e não haveria
multiplicidade. Mas, ao mesmo tempo, se além da unidade há o ser, deve haver
multiplicidade ao menos porque existem esses dois nomes. Donde “admidir que há dois

118
nomes quando se acabou de afirmar que só existe o Uno, e nada mais, é um pouco
ridículo” (PLATÃO, O Sofista, 244c). Contudo, isso provoca o questionamento quanto
a existência e a natureza do nome. Então, o Estrangeiro nos mostra que afirmar que o
nome é diferente da coisa é dizer que há duas coisas: o nome (que existe apenas no
âmbito da linguagem e representa a coisa para significá-la) e a coisa (o objeto sensível
significado pelo nome). Por outro lado, afirmar que o nome é idêntico a coisa é
necessariamente afirmar que há apenas a coisa, e nesse caso o nome não significa nada,
ou é a coisa que não passa de nome, e assim o nome é, na verdade, idêntico ao próprio
nome. Se for esse o caso, “o nome só será nome de um único nome e de nenhum outro”.
A partir disso o estrangeiro conclui que: “sendo o uno, unidade apenas de si mesmo, não
será, ele mesmo, se não a unidade de um nome” (PLATÃO, O Sofista, 244d). Com essa
frase, separa-se, por um momento, o nome e o significado de “unidade” de todas as
demais coisas.

A discussão segue em direção ao “todo”: “mas, que dizer do Todo? Afirmarão


eles que é diferente do Uno, ou que é idêntico a ele?” (PLATÃO, O Sofista, 244d).
Aceitando a identidade entre os dois, o Estrangeiro volta a citar Parmênides:

“Se, então, ele é um Todo, como o diz o próprio Parmênides: ‘semelhante à


massa de uma esfera bem redonda, em todas as suas partes. Do centro,
igualmente distante, em todos os sentidos. Pois, é impossível que de um lado
seja maior ou menor do que do outro’, o ser que assim é tem meio e
extremidades; e, desse fato, necessariamente tem partes, não é certo?”
(PLATÃO, O Sofista, 244e).

Aqui, Platão aplica sobre o exemplo de Parmênides uma interpretação


condizente com sua própria teoria de que o nome deve se dizer a respeito de algo.
Tomando o nome por si só, nesse caso “o todo” como um sujeito, ele ainda não pode ser
considerado uma qualidade de algo dito por outro nome. Sendo, então, “algo”, o “todo”,
conforme é descrito, seria divisível. Contudo, quando tratamos acerca dessa questão em
Parmênides no capítulo anterior, vimos que dizer que “o todo é semelhante à massa de
uma esfera bem redonda”, não é o mesmo que dizer que “o todo é a massa de uma
esfera bem redonda”. O que Parmênides faz é oferecer uma imagem para representar o
que não é o mesmo que o que ele fala. Como Platão neste momento ainda não havia
alcançado a legitimação para falar da imagem, ele simplesmente a toma literalmente.
Além disso, a imagem oferecida por Parmênides serve justamente ao sentido que será
debatido por Platão: Parmênides quer falar sobre inteireza e homogeneidade, para negar
a multiplicidade e a relação: “não pode ser menor ou maior do que”. Platão precisa

119
garantir a inteireza de cada coisa com ela mesma, para que possam ser pensadas como
“algo”, mas não pode admitir uma inteireza absoluta que impede a relação, pois desse
modo não avançaria no desenvolvimento da linguagem que pretende operar.

Por outro lado, dividir é justamente o método adotado por Zenão para negar o
movimento e a articulação das partes. Por isso, Platão não apenas deve admitir a divisão
de partes de uma dada totalidade (hólon), como também deve assumir “uma unidade
que se sobreponha ao conjunto de suas partes” e que seja “não apenas total, mas
também una” (PLATÃO, O Sofista, 245a). Ora, a unidade entendida como se
sobrepondo a um conjunto, e não apenas a uma totalidade indivisível, torna possível a
relação. Por outro lado, prejudica a definição própria a esse mesmo conceito, donde o
Estrangeiro diz:

“Mas, o que assim é não pode ser em si mesmo o próprio Uno, não é? (...)
Porque o verdadeiro Uno, corretamente definido, só pode ser absolutamente
indivisível. (...) E um Uno assim constituído de várias partes não
corresponderia, absolutamente, a esta definição” (PLATÃO, O Sofista, 245a-
b).

Com isso, após isolar a unidade em seu nome e significação, ou seja, em seu
conceito, o Estrangeiro quer sobrepor essa unidade a uma totalidade divisível, para
poder identificá-la ao todo compreendido como “um algo”. Mas isso tornaria a própria
unidade divisível, e consequentemente múltipla, prejudicando-a em sua definição.
Entretanto, se distinguíssemos essa unidade relativa e divisível, própria ao todo, da
unidade enquanto definição, e aceitássemos aplicá-la ao ser, então, o ser não poderia ser
idêntico ao uno, enquanto tal. Assim, dizer que o ser é um todo, implicaria dizer que há
uma totalidade (divisível e múltipla) maior que o um. (PLATÃO, O Sofista, 245b).
Desse modo, se admitíssemos que o ser é um todo, não poderíamos admitir que ele é, ao
mesmo tempo, uno. Por outro lado:

“Se, pois, o ser não é o Todo, em virtude desse caráter de unidade que
recebeu do Uno, e se o Todo absoluto existe em si mesmo, segue-se que o ser
falta a si mesmo”. (PLATÃO, O Sofista, 245c).

Isso é assim porque, se dissermos que o todo absoluto (compreendido como


divisível e múltiplo) é, existe; e se ele é maior que a unidade; ao dizer que o ser é uno,
estaríamos dizendo que o ser é menor que o todo, ou seja, menor que algo que ele
mesmo é. Como consequência teríamos que “o ser, assim privado de si mesmo, não
seria ser” (PLATÃO, O Sofista, 245c).

120
Assim, se o ser fosse um todo (múltiplo) ele não poderia ser uno. Mas como é
possível ser mais de um sem antes ser um? Além disso, haveria também o problema de
que estamos falando do ser, e não dos seres, de forma que, sem o um, nem o ser nem o
todo poderiam ser. Por outro lado, se o ser fosse uno não poderia ser todo, donde se o
todo existisse mesmo assim, o ser se faltaria e não poderia ser. Mas se o todo não
existisse, a unidade também não poderia existir, porque “o que não for um Todo não
poderá ter nenhuma quantidade, pois o que tiver alguma quantidade, seja ela qual for,
necessariamente a terá como um todo” (PLATÃO, O Sofista, 245d). O Estrangeiro
conclui, então que: “surgirão, em cada caso, milhares e intermináveis dificuldades a
quem definir o ser como um par ou como uma unidade” (PLATÃO, O Sofista, 245 d-e).

Dizer que o ser é um todo único, tomando por todo algo inteiro, homogêneo e
indivisível, é negar toda possibilidade de diferença, multiplicidade e relação. Isso teria
por consequência a impossibilidade de até mesmo pronunciar tal tese, uma vez que ela é
dita através da articulação de diferentes nomes. Por outro lado, se o todo for tomado
como algo divisível, e consequentemente múltiplo, então a tese eleática mostra-se
insuficiente para explicar como devemos articular unidade e multiplicidade Assim, após
mostrar todos os problemas da tese atribuída ao eleatismo, o Estrangeiro de Eléia afirma
que “não é nada mais fácil dizer o que é o ser do que o que é o não-ser” (PLATÃO, O
Sofista, 246a). Precisa, então, continuar a sua investigação do ser até que possa
encontrar um maneira de compreendê-lo, para que também possa compreender o não-
ser, e por fim possa descobrir como eles se relacionam.

Antes que sigamos o Estrangeiro em sua análise das demais teorias, é preciso
reiterar que não consideramos a refutação da tese parmenídea como um abandono de
Platão ao eleatismo. Ao contrário, acreditamos que ele quer levar à frente o projeto de
Parmênides, e desenvolver uma linguagem capaz de nos permitir julgar, decidir, pensar
e dizer o ser com verdade. Com isso, discutir a relação entre ser, uno, e todo é algo
necessário ao desenvolvimento da linguagem. Como vimos, mesmo Aristóteles, quando
busca aplicar as categorias da linguagem desenvolvidas por ele em uma ciência da
natureza, precisa começar discutindo a equivocidade entre ser e um. Porém, para que
Platão possa iniciar essa tarefa, sem cair em contradições, é preciso reconhecer que o ser
é muito mais que um efeito da linguagem, e que a linguagem apenas pode se
fundamentar no ser porque o ser é o fundamento de tudo. O ser é fundamento do que

121
aparece na physis, como matéria sensível, múltipla e em devir, e também do que é
invisível e pertence ao âmbito intelectivo das formas de pensamento imóveis e unas.

Em sua busca por desenvolver soluções para os problemas levantados por


Parmênides e pelos sofistas, Platão pode realizar grandes descobertas. Para que
possamos perceber o caminho que ele nos indica, sigamos acompanhando o Estrangeiro
de Eléia.

122
III.IV - As descobertas platônicas: é preciso querer tudo ao mesmo tempo, a
unidade e a multiplicidade, o repouso e também o movimento, mas é preciso saber
articulá-los corretamente.

Esta sessão tem por objetivo apontar o caminho que Platão começa a construir
quando abandona as regras criadas por Parmênides para linguagem. A partir desse
momento, ele seguirá seu estudo sobre o ser com base nas teorias antigas, até descobrir
meios de legitimar novas formas de articulação na linguagem: estabelecendo os gêneros
supremos - ser, movimento, repouso, mesmo e outro - como estruturas fundamentais da
linguagem e indicando qual ciência é capaz de ordenar as articulações entre eles: a
dialética. Feito isso, Platão poderá resignificar a noção de não-ser, compreendendo-a, a
partir da comunidade do ser com o outro, enquanto alteridade. Todas essas questões
apresentam grande complexidade, e não poderemos aprofundá-las aqui. Nosso objetivo
é simplesmente apontar o caminho das soluções platônicas para as questões levantadas
por Parmênides e pelos sofistas. Nos interessam principalmente as questões que dizem
respeito à teoria da predicação e ao problema do falso no discurso, que põe em risco a
possibilidade de falar sobre o ser com verdade.

Dando continuidade à sua investigação sobre as teses dos antigos, o Estrangeiro


busca resumir o combate de gigantes sobre o ser, a gigantomakía perì tes ousías,
dividindo os filósofos e suas teses em: materialistas e amigos das formas, e também
mobilistas e estáticos.

Os materialistas são ditos acreditarem que apenas existe o que tem corpo,
enquanto os amigos das formas recusam aos corpos o ser, e vêem neles apenas um
móvel devir, assumindo que o ser verdadeiro diz respeito a certas formas inteligíveis e
incorpóreas. Para contestá-los, visando a necessidade de articular o que é corpóreo com
o que é incorpóreo, o Estrangeiro sugere uma definição provisória de ser:

“o que naturalmente traz em si um poder qualquer ou para agir sobre não


importa o que, ou para sofrer a ação, por menor que seja, do agente mais
insignificante, e não por uma única vez, é um ser real; pois afirmo, como
definição capaz de definir os seres, que eles não são senão um poder”.
(PLATÃO, O Sofista, 247e).

Após sugerir essa definição, que é aceita por Teeteto, representando os amigos
das formas, o Estrangeiro associa os amigos das formas aos estáticos, porque ambos
separam o devir do ser. Para os amigos das formas, é pela alma e por meio dos

123
pensamentos que estamos em comunhão com o ser, que é idêntico a si mesmo e
imutável. Por outro lado, eles acreditam que o corpo e as sensações nos colocam em
relação com o devir. Com base nisso, e na definição de ser acima proposta, o
Estrangeiro questiona a tese dos estáticos e amigos das formas dizendo que: se eles
concordam que a alma conhece e o ser é conhecido, e se admitem que conhecer é agir, a
consequência inevitável é que o objeto a ser conhecido sofre ação. Pela mesma razão o
“ser”, ao ser conhecido pelo ato de conhecimento, será movido, e não poderá ser
conhecido se sempre se mantiver em repouso. (PLATÃO, O Sofista 248e). Dito isso, o
Estrangeiro nos mostra que “se os seres são imóveis, não há inteligência em parte
alguma, em nenhum sujeito e para nenhum objeto”. (PLATÃO, O Sofista, 249b). Mas
ele não pode aceitar isso:

“Mas como? Por Zeus! Deixar-nos-emos, assim, tão facilmente, convencer de


que o movimento, a vida, a alma, o pensamento, não tem realmente lugar no
seio do ser absoluto; que ele nem vive nem pensa e que, solene e sagrado,
desprovido de inteligência, permanece estático sem poder movimentar-se?”
(PLATÃO, O Sofista, 248e 249a).

Assim, será necessário admitir que há ser no devir, uma vez que é preciso
reconhecer o ser no que move e no que é movido. Mas, por outro lado, se admitimos
que tudo está em movimento, então estaremos pondo em risco a existência da própria
inteligência, pois a inteligência necessita de alguma permanência para que possa ser.
Assim, aqueles que prezam pela ciência, pela inteligência e pelo pensamento claro,
devem

“(...) recusar a doutrina da imobilidade universal que professam os defensores


ou do Uno ou das formas múltiplas, bem como não ouvir aos que fazem o ser
mover-se em todos os sentidos. É preciso que imite as crianças que querem
ambos ao mesmo tempo, admitindo tudo o que é imóvel e tudo o que se
move, o ser e o Todo, ao mesmo tempo” (PLATÃO, O Sofista, 249 c-d).

Contudo, admitir que o ser é movimento e repouso ao mesmo tempo, leva-nos de


volta aos problemas do quente e do frio. Isso porque, se repouso e movimento são
contrários, mas, ao mesmo tempo são “ser” do mesmo modo, então ambos, repouso e
movimento, deveriam estar em movimento, ou ambos, repouso e movimento deveriam
estar em repouso, assim, movimento e repouso seriam uma maneira dupla de dizer uma
mesma unidade. Mas se não é esse o caso, então o “ser” é um terceiro. E se o ser é um
terceiro, diferente do movimento e do repouso, então, “por sua própria natureza (…) não
está nem imóvel nem em movimento”. (PLATÃO, O Sofista, 250c). Esse raciocínio
causa um estado de perplexidade, pois como seria possível que algo que não está em

124
movimento, não estivesse em repouso, e algo que não estivesse em repouso também não
se encontrasse em movimento? Esse problema traz consigo a necessidade de investigar
como uma única e mesma coisa pode ser designada por uma pluralidade de nomes.
(PLATÃO, O Sofista 251a).

Assim, a investigação do ser finalmente leva Platão ao momento em que terá que
desenvolver sua teoria da predicação. Será preciso descobrir como e em que medida as
coisas podem se articular; apresentar os elementos fundamentais que permitem as
articulações; e a ciência capaz de distinguir o que pode e o que não pode se relacionar.

O Estrangeiro parte de um exemplo:

“Como sabes, ao falarmos do “homem” damos-lhe múltiplas denominações.


Atribuímos-lhe cores, formas, grandeza, vícios e virtudes; em todos esses
atributos, como em inúmeros outros, não afirmamos apenas a existência do
homem, mas ainda do bom, e de outras qualificações em número ilimitado. O
mesmo se dá com todos os objetos: afirmamos, igualmente, que, cada um
deles é um, para logo a seguir considerá-lo múltiplo e designá-lo por uma
multiplicidade de nomes” (PLATÃO, O Sofista, 251a-b).

A partir disso, nos conta que há quem defenda que somente é possível chamar de
bom o bom, e de homem o homem, e a esses critica duramente. Isso porque não admitir
a articulação tem como consequência o impedimento da linguagem, e assim, do
pensamento, da fala e do conhecimento. De acordo com essa perspectiva nem mesmo o
nome poderia significar, pois não poderia haver um pequeno discurso que lhe servisse
como definição. O Estrangeiro decide, então, não discutir apenas com esses
contentadores e colocar a questão para todos os que falaram sobre o ser. Diz ele:

“Ser-nos-á vedado unir o ser ao repouso e ao movimento, assim como unir


uma a outra quaisquer coisas que sejam, e, considerando-as, ao contrário,
como inalienáveis, como incapazes de participação mútua, tratá-las como tais
em nossa linguagem? Ou as uniremos todas supondo-as capazes de se
associarem mutuamente? Ou, enfim, diremos que algumas possuem essa
capacidade e outras não?” (PLATÃO, O Sofista, 251d).

Após apresentar três questões ao mesmo tempo, O Estrangeiro começa a analisá-


las separadamente. Quanto a primeira questão, a que diz ser impossível a articulação,
quem concordar com ela terá que abandonar a sua teoria sobre o ser, pois todas elas
atribuem ao ser ou a mobilidade ou a imobilidade. Além disso, os que dizem que o ser é
um todo uno, ou que ele é divisível, “nada dizem, desde que nada pode associar-se”
(PLATÃO, O Sofista, 252b). Mas, por outro lado, se todas as coisas pudessem associar-
se “o movimento se tornaria repouso absoluto e o próprio repouso, por sua vez, mover-
se-ia no momento em que eles se unissem um ao outro”. (PLATÃO, O Sofista, 252d).

125
Assim, a segunda hipótese também é excluída. Com isso, assume-se como verdadeira
apenas a hipótese que afirma que “há algo que se presta e algo que não se presta a
mútua associação” (PLATÃO, O Sofista, 252e).

Ao assumir que há a comunidade entre nomes e coisas diferentes, mas que eles
não se associam sempre e nem de qualquer maneira, o Estrangeiro nos leva a pensar
que, assim como há a necessidade da arte da gramática, para que possamos articular
corretamente as letras, e da arte da música, para que possamos saber quais sons
combinam entre si e quais não combinam, do mesmo modo, há também a necessidade
de que haja uma ciência capaz de nos orientar quanto a associação dos gêneros no
discurso. “Dividir assim por gêneros, e não tomar por outra, uma forma que é a mesma,
nem pela mesma uma forma que é outra, não é essa, como diríamos, a obra da ciência
dialética?” (PLATÃO, O Sofista, 253a).

Ao encontrar a dialética, o estrangeiro diz que, eles que procuravam pelo sofista,
acabaram por descobrir o filósofo (PLATÃO, O Sofista, 253c). Nesse momento, o
Estrangeiro afirma que o filósofo, assim como o sofista, é difícil de ser visto com
clareza, mas não pelos mesmos motivos:

“Este [o sofista] se refugia na obscuridade do não-ser, aí se adapta a força de


ai viver ; e é à obscuridade do lugar que se deve o fato de ser difícil alcançá-
lo plenamente, não é verdade ? (…) Quanto ao filósofo, é à forma do ser que
se dirigem perpetuamente seus raciocínios, e é graças ao resplendor dessa
região que ele não é, também, de todo fácil de se ver. Pois os olhos da alma
vulgar não suportam, com persistência, a contemplação das coisas divinas”.
(PLATÃO, O Sofista, 254 a b).

Ao que nos parece esse modo de distinguir o sofista do filósofo confirma a


pretensão platônica de ser o filho legítimo de Parmênides. O filósofo é quem pensa
voltado para “o ser”. Aqueles que sacrificam a distinção entre “ser” e “não-ser”,
tornando tudo indistinto e igualmente verdadeiro, não podem ser os reais herdeiros do
eleata. Além disso, o Estrangeiro diz também que o dom dialético não deve ser
atribuído a nenhum outro “senão àquele que filosofa com toda pureza e justiça”
(PLATÃO, O Sofista, 253e). Ora, com isso ele nos diz que a dialética, além de servir
somente àquele que pensa a partir e em direção ao “ser”, apenas pode ser atribuída a
quem busca a justiça. Assim, podemos novamente reconhecer em Platão a procura por
seguir o caminho de Parmênides: um caminho que quer fundamentar a possibilidade de
um bom julgamento. Com isso, podemos dizer que se o bom julgamento, ou a filosofia
com justiça, está associado à dialética, então o conhecimento das possibilidades de

126
articulação entre os gêneros é o caminho assumido por Platão como o caminho do ser,
capaz de levar à verdade. Mas que gêneros são esses?

Quando falava sobre a necessidade das artes, como a gramática e a música, para
orientar a articulação, das letras e dos sons, o Estrangeiro deu o exemplo das vogais.
Segundo ele, “as vogais certamente se distinguem das outras letras, pelo fato de
circularem como laços através de todas; além disso, sem uma delas é impossível que as
outras se combinem uma a uma” (PLATÃO, O Sofista, 253a). Com esse exemplo o
estrangeiro adianta o que são os gêneros supremos: tratam-se das formas fundamentais
que “circulam como laços” através de todas as outras e que possibilitam a combinação
entre elas (PLATÃO, O Sofista, 254c).

As formas mais fundamentais são o ser, o movimento e o repouso, sobre as quais


o Estrangeiro já havia debatido. Anteriormente, ele nos mostrou que não podemos
relacionar movimento e repouso sob pena de reduzir um ao outro, de forma a restar-nos
apenas movimento ou repouso. Mas agora ele nos diz que o ser, como um terceiro
elemento, pode se associar aos dois, pois os dois são, sem que necessariamente tenha
que reduzi-los a serem o mesmo. Com isso ele acrescenta uma diferença fundamental
em relação aos debates precedentes: cada um é outro com relação aos que restam e o
mesmo que ele próprio (PLATÃO, O Sofista, 254e). Tem-se então, além do “ser”, do
“movimento” e do “repouso”, também o “mesmo” e o “outro” como gêneros supremos.
O Estrangeiro, então, nos mostra como eles se relacionam. Tomando o “movimento”
como exemplo, diz que ele é absolutamente “outro” que o repouso e que, por isso,
movimento não é repouso. Mas isso não significa que ele não seja absolutamente, ele é,
pois participa do “ser”. Também diz que ele é outro que o “mesmo”, pois não é o
“mesmo”, mas que deve participar do “mesmo” como tudo o que é. Assim, ele conclui
afirmando o seguinte: “o movimento é o mesmo e não o mesmo: é necessário convir
nesse ponto sem nos afligirmos, pois, quando dizemos o mesmo e não o mesmo, não
nos referimos as mesmas relações” (PLATÃO, O Sofista, 256 a b).

Esse mesmo raciocínio nos mostra que o movimento é “ser” e “não-ser”. É “ser”
porque participa do “ser”, e é “não-ser” porque não é o “ser” enquanto tal, nesse sentido
é “outro” que não o “ser”.

“Segue-se, pois, necessariamente, que há um ser do não-ser, não somente no


movimento, mas em toda a série dos gêneros; pois na verdade, em todos eles
a natureza do outro faz cada um deles outro que não o ser e, por isso mesmo,

127
não ser. Assim, universalmente, por essa relação, chamaremos a todos,
corretamente, não-ser; e ao contrário, pelo fato de eles participarem do ser,
diremos que são seres” (PLATÃO, O Sofista, 256 b c).

Do mesmo modo, quando tomamos não mais o gênero do “movimento”, mas o


gênero do “ser”, para averiguar sua comunidade com os demais, temos que, na mesma
medida em que todos os outros gêneros são, o “ser” não é. Isso porque, ele apenas é o
mesmo que si mesmo quando participa do “mesmo”, quando participa dos outros, ele
próprio é outro em relação a si. Mas ser outro em relação a si não significa negar-se
absolutamente, no sentido de uma oposição que anula.

“Quando falamos no não-ser isso não significa, ao que parece, qualquer coisa
contrária ao ser, mas apenas outra coisa qualquer que não o ser (...) Não
podemos, pois, admitir que a negação signifique contrariedade, mas apenas
admitimos nela alguma coisa de diferente. Eis o que significa o “não” que
colocamos como prefixo dos nomes que seguem a negação, ou ainda das
coisas designadas por esses nomes” (PLATÃO, O Sofista, 257 b c).

Assim, Platão desenvolve uma estrutura de linguagem capaz de admitir que o ser
em certa medida não é. Não é, todas as vezes em que participa de outra forma, como por
exemplo o gênero do movimento, que não é o mesmo que o ser. Também não é, quando
participa diretamente do outro. Mas, ao mesmo tempo, e pelos mesmos argumentos, ele
não deixa de ser, pois é o ser quem participa do que lhe é diferente. Assim, quando
dizemos que o não belo é uma parte do outro que se diferencia diretamente do belo,
estamos admitindo que o não-belo é um ser que separamos do gênero outro e opomos ao
gênero belo, que por sua vez também participa do ser. Assim, “o não-belo se reduz, pois
a uma oposição determinada de ser a ser” (PLATÃO, O Sofista, 257e). Do mesmo
modo, devemos considerara que o não-justo “é” tanto quando o justo. “O mesmo se dirá
de todo o resto, pois que a natureza do outro, pelo que vimos, se inclui entre os seres; e
se ela é, é necessário considerar as suas partes como seres pela mesma razão que o que
quer que seja” (PLATÃO, O Sofista, 258a).

Ao estabelecer a possibilidade da comunidade entre os gêneros, e com isso


conquistar um modo de dizer que o não-ser é, o Estrangeiro de Eléia retorna a
Parmênides e relembra a proibição feita por ele de jamais obrigar os não-seres a ser. O
condutor do diálogo diz, então, que foi muito além dos limites por Parmênides
interditados (PLATÃO, O Sofista, 258b), pois, não apenas demonstrou que os não-seres
são, mas também nos falou sobre o que consiste a forma do não-ser. O não-ser está
presente entre os gêneros supremos na forma do outro. Mas, é preciso ressaltar que

128
definir o não-ser como alteridade do ser não é dizer que ele é ao mesmo modo do ser
enquanto tal. Trata-se de uma relação.

“Há uma associação mútua dos seres. O ser e o outro penetram através de
todos e se penetram mutuamente. Assim, o outro, participando do ser, é, pelo
fato dessa participação, sem no entanto, ser aquilo de que participa, mas o
outro, e por ser outro que não o ser, é, por manifesta necessidade não ser. O
ser, por sua vez, participando do outro, será pois, outro que não o resto dos
gêneros. Sendo outro que não eles todos, não é, pois, nenhum deles tomado à
parte, nem a totalidade dos outros, mas somente ele mesmo; de sorte que o
ser, incontestavelmente, milhares e milhares de vezes não é, e os outros, seja
individualmente, seja em sua totalidade, são sob múltiplas relações, e, sob
múltiplas relações não são”. (PLATÃO, O Sofista, 259a).

Ao admitir a comunidade entre os gêneros, a possibilidade de articulação entre


nomes e coisas diferentes, Platão torna-se um defensor da diferença e não da simples
contradição. Ao ter compreendido o não-ser como alteridade, e assim permitido que ele
não apenas seja, mas seja enquanto forma, Platão não o doma a ser enquanto “ser”. Ele
apenas aceita que o não-ser é em uma dada relação. Assim, o seu modo de dizer que o
não ser é, não se trata de uma simples mistura, que torna “ser” e “não-ser” indistintos e
equivalentes. Através das noções de participação e comunidade, Platão encontra uma
maneira de relacionar mantendo as diferenças, sem que a associação de algo com o que
lhe é outro reduza ambos a uma homogeneidade indistinta. Platão quer dizer que o não
ser é, mas não quer, ao modo dos sofistas, abandonar a separação, a krísis, operada por
Parmênides, pois é a partir dela que se desenvolvem os critérios para o juízo. Assim,
ainda que haja uma possibilidade infinita de relações, elas devem ser pensadas
separadamente. Mais importante que ganhar a possibilidade de dizer que o não-ser é, é
saber discernir em que relação, de que maneira, quando e porque esse é o caso. Com
isso, o Estrangeiro explicita porque seu método não deve ser tomado como o mesmo
dos mobilistas e dos sofistas. Segundo ele, é preciso:

“... mostrar-se capaz de seguir a marcha de uma argumentação, criticando-a


passo a passo, e, quer ela afirme ser o mesmo sob uma certa relação o que é
outro, ou outro o que é mesmo, discuti-la de acordo com sua própria relação e
o ponto de vista que ela considera em uma ou outra dessas assertivas. Mas,
mostrar não importa como, que o mesmo é outro, e o outro, o mesmo; o
grande, pequeno; o semelhante, dessemelhante, sentido prazer em apresentar
perpetuamente essas oposições nos argumentos, isso não constitui a
verdadeira crítica: é apenas, evidentemente, o fruto prematuro de um
primeiro contato com o real”. (PLATÃO, O Sofista, 259 c-d).

Após desenvolver uma teoria da linguagem capaz de relacionar diferenças sem


perder seu caráter crítico, e encontrar, a partir dela, a possibilidade de dizer o não-ser,
sem que para isso esteja necessariamente em contradição, será preciso compreender de

129
que modo é possível distinguir o falso e o verdadeiro no discurso. Para realizar tal
tarefa, O Estrangeiro de Eléia chega, em fim, aos problemas da predicação.

Ao salvaguardar a possibilidade de articulação, Platão assegurou a existência do


discurso, pois, se todas as coisas estivessem isoladas e jamais se combinassem entre si,
então jamais poderíamos pensar ou falar. Mas, para que possamos não apenas pensar e
falar, mas pensar e falar com verdade, é preciso ainda descobrir se o não-ser se associa a
opinião e ao discurso.

“Se ele não se associa, segue-se necessariamente que tudo é verdadeiro. Mas,
uma vez que a ele se associe, então, a opinião falsa e o discurso falso serão
possíveis. O fato de serem não-seres o que se enuncia ou se representa, eis o
que constitui a falsidade, quer no pensamento, quer no discurso. (...) Ora, se
há falsidade há engano. (...) E desde que há engano, há em tudo,
inevitavelmente, imagens, cópias e simulacros. (...) Ora, como dissemos, é
exatamente neste abrigo que o sofista se refugiou, e, uma vez ali, negou
obstinadamente a própria existência da falsidade...” (PLATÃO, O Sofista 260
b-d).

Buscando identificar a natureza do discurso, o Estrangeiro de Eléia propõe que


consideremos os nomes do mesmo modo como antes havíamos feito com as letras:
considerando-os capazes de concordar entre si em determinadas relações e em outras
não. O que determina a concordância é a capacidade da ordenação de produzir sentido.
Assim, os nomes “cuja sequência não forma sentido nenhum, não concordam”.
(PLATÃO, O Sofista, 261d).

Para verificar que tipo de sequência faz sentido, o Estrangeiro separa dois
gêneros de sinais através dos quais exprimimos vocalmente o ser: os nomes e os verbos
(ónoma e rhema). Já havíamos falado sobre essa distinção operada por Platão
anteriormente, no capítulo sobre Parmênides. Aqui, Platão nos diz que os nomes que
não estão associados com algum verbo não formam um discurso. O discurso é, então
definido, como uma combinação que, no mínimo, articula um nome e um verbo, sendo,
por exemplo “o homem aprende”, um discurso breve, que, por isso, pode ser
considerado simples e primeiro. (PLATÃO, O Sofista, 262c). Assim, mesmo o discurso
mais simples e breve é sempre sobre alguma coisa. Este é um momento fundamental. A
partir daqui, o Estrangeiro pede a Teeteto que diga, sobre os seguintes discursos, a
propósito de quem e sobre o que eles discorrem: “Teeteto está sentado” e “Teeteto, com
quem agora converso, voa”. Ambos são discursos breves que Teeteto reconhece como
sendo a propósito dele e sobre ele. (PLATÃO, O Sofista, 263a). Temos, então, uma
primeira distinção entre sujeito e predicado.

130
“Na medida em que Teeteto é nomeado, em que é, se preferirmos, o sujeito
do discurso, então trata-se de um lógos ‘de Teeteto’ (no genitivo de pose sem
preposição), mas na medida em que se trata de um predicado, ‘voa’ ou ‘está
sentado’, que fazemos gravitar em torno de Teeteto, trata-se ao mesmo tempo
de um lógos ‘a propósito de Teeteto’ (peri e o genitivo)”. (CASSIN, B. 2005,
pág.42).

Acontece que nomear um sujeito, ou seja, proferir o nome ‘Teeteto’, não é um


discurso, é apenas um nome sem articulação. A qualidade de verdadeiro ou falso cabe
apenas aos discursos e não aos nomes isolados. Isso porque a qualidade da verdade
aparece aqui como dizer sobre algo ou alguém o que é tal como é (PLATÃO, O Sofista,
263b). Assim, um discurso falso é um discurso que diz coisas que são, mas não aquelas
que são a respeito do que ele diz. Por exemplo, “voar” não é algo falso por si só. Se
disséssemos que as aves voam, estaríamos dizendo a verdade, pois voar é uma ação
própria as aves, que são o sujeito em questão. Mas dizer que Teeteto voa não
corresponde a realidade, uma vez que voar não é uma atividade própria a Teeteto, que
na verdade, estava sentado. Assim, é a ênfase sobre o peri, o dizer acerca de, que
permite tanto a verdade quanto a falsidade (CASSIN, B. 2005, pág. 42), donde podemos
afirmar que apenas é possível julgar determinada relação, e nunca coisas isoladas.

“Assim, o conjunto formado de verbos e de nomes, que enuncia, a teu


respeito, o outro como sendo o mesmo, e o que não é como sendo, eis,
exatamente, ao que parece, a espécie de conjunto que constitui, real e
verdadeiramente, um discurso falso” (PLATÃO, O Sofista, 263d).

Contudo, a possibilidade de julgarmos se a afirmativa “Teeteto voa” corresponde


ou não ao real, exige que possamos articular nosso pensamento às nossas percepções
sensíveis. Para tanto, O Estrangeiro fornece uma breve explicação sobre a relação entre
pensamento, opinião, discurso, imaginação e sensação.

“Pensamento e discurso são, pois, a mesma coisa, salvo que é ao diálogo


interior e silencioso da alma consigo mesma, que chamamos pensamento (...)
Mas a corrente que emana da alma e sai pelos lábios em emissão vocal, não
recebeu o nome de discurso? (...) Sabemos, além disso, que há no discurso
(...) afirmação e negação (...) Quando, pois, isso se dá na alma, em
pensamento, silenciosamente, haverá outra palavra para designá-lo além de
opinião? (...) Quando, ao contrário, ela se apresenta, não mais
espontaneamente, mas por intermédio da sensação, este estado de espírito
poderá ser designado por imaginação, ou haverá ainda outra palavra?”
(PLATÃO, O Sofista, 263e 264a).

Com isso, o Estrangeiro assume que uma opinião é uma afirmação ou negação
que fazemos em um discurso com nossa própria alma, de forma totalmente apartada do
âmbito sensível; ou, pode ser também uma afirmação ou negação que fazemos por
intermédio das sensações, quando uma sensação é espelhada, ou tornada imagem no

131
discurso. Assim, o discurso é o meio pelo qual expressamos, silenciosamente ou através
de sons, nossas opiniões, que podem ser o resultado de um pensamento, mas também
podem estar combinadas às sensações, e se for esse o caso, nosso discurso não será um
puro diálogo da alma com ela mesma, mas terá um caráter de imagem, de representação,
e será o resultado de uma percepção sensível. A imaginação é, então, uma opinião,
afirmativa ou negativa, acerca de uma sensação. Essa perspectiva permite articular o
discurso às sensações mantendo a separação feita por Parmênides entre o âmbito
intelectivo, do pensamento puro, e o âmbito sensível. Assim, Platão ganha a
possibilidade de investigar novamente as coisas que se manifestam na physis (que se
dão a perceber), sem que para isso tenha que sacrificar o conhecimento adquirido no
âmbito intelectivo. É essa possibilidade de articular sensível e inteligível, sem confundi-
los, que permite a existência de discursos falsos e verdadeiros, e também a distinção
entre eles. Mais tarde, com Aristóteles, a noção de verdade encontrará entre suas
possíveis definições a adequação entre o intelecto e as coisas. Promover essa adequação
foi exatamente o que o Estrangeiro pediu que Teeteto fizesse, para distinguir entre as
afirmações de que ele estava sentado e de que ele voa qual delas era a verdadeira.

Certamente essas descobertas platônicas levantam muitos problemas, e não


poderemos trabalhá-los aqui com a profundidade que lhes é devida. Nosso intuito foi
apenas o de indicar a grandiosidade das questões que Platão foi capaz de desenvolver ao
reivindicar para si a herança de Parmênides, reformulando sua teoria e desenvolvendo
novos meios de buscar caminhar pela verdade.

Acreditamos que a investigação platônica do eleatismo nos permite caminhar


por toda a história da filosofia até então. Como vimos, as noções de “ser”, “unidade” e
“totalidade” podem ser encontradas nas questões que se apresentam desde a origem da
filosofia, com os physikói, até se tornarem os princípios fundamentais das investigações
da linguagem, com Parmênides, os sofistas e Platão. Ao que nos parece, o eleatismo
opera, em um primeiro momento, uma distinção entre a linguagem e os entes sensíveis
da physis, afastando-se dessa última para investigar um conhecimento apenas possível
no âmbito puramente intelectivo do pensamento. Depois, em um segundo momento,
passa a considerar que o discurso que serve aos homens é sempre uma imagem ou
representação de suas percepções sensíveis, que por sua vez apenas existem no discurso.
Essa indistinção entre percepção sensível e pensamento torna tudo inevitavelmente
verdadeiro. Por fim, Platão precisa reformular a distinção operada por Parmênides, para

132
tornar possível a articulação entre movimento, repouso, unidade, multiplicidade,
sensível e inteligível, sem que para isso tenha que aceitar qualquer discurso como
verdadeiro. Dito de outra maneira, Platão visa recuperar a possibilidade de falar sobre a
physis, sem que essa fala esteja condenada a nunca levar a verdade, como dizia
Parmênides. Ele acredita que através da dialética é possível de fato conhecer a verdade
de um discurso, independente desse discurso articular sujeito e predicado em âmbito
inteligível ou sensível.

Visto dessa maneira, não acreditamos, como Platão, que os sofistas devem ser
distinguidos dos filósofos. Ao contrário, nos parece que a sofística desenvolve uma
filosofia que, apesar de dirigir o poema de Parmênides para uma leitura oposta à leitura
platônica, é fundamental ao platonismo. Ao que nos parece, Platão, apesar de querer
diferenciar-se dos sofistas, pelas discordâncias éticas nas quais implicam ambas as
teorias, reconhece a importância filosófica dos mesmos. Assim, podemos dizer que
tanto os sofistas como Platão são filhos legítimos de Parmênides, e nesse sentido, estão,
de igual modo, imersos na tradição eleática. Por isso, a recepção platônica do eleatismo
é, a um só tempo, a recepção de Parmênides; de seus sucessores imediatos: Melisso e
Zenão; e dos sofistas, dentre os quais Górgias e Protágoras se destacam.

133
Conclusão:

Como no poema de Borges, que introduziu nosso trabalho, acreditamos que a


linguagem é como uma bússola: ao mesmo tempo em que o ponteiro indica o norte, e
por isso deve ter algo de relógio, alguma precisão, não pode deixar de tremular, como
uma ave dormida, que voa incerta e um tanto cambaleante. É pela linguagem que
construímos a história do mundo. Ela nos torna capazes de conhecer e colher os
impressionantes frutos de nossa razão, a ponto de nos lançarmos ao mar do pensamento
em busca de nos aproximarmos do horizonte, tendo somente a ela, a linguagem, como
bússola. Mas ao mesmo tempo, é também através dela que se manifestam todas as
incertezas de nosso espírito, todas as opiniões inconsistentes, nossos erros, equívocos e
ilusões. A linguagem é um espelho do real, e o real é o todo, o ser absoluto, que
perpassa todas as coisas, mesmo as que, em um primeiro momento, possam nos parecer
contraditórias.

Este trabalho nos levou a considerar a Escola Eleática como uma tradição de
pensamento que investiga a noção de “ser” de forma intimamente relacionada a
investigação da linguagem. No entanto, vimos que a investigação do “ser” tem sua
origem junto a própria história da filosofia, e mesmo antes, com tradição poética. Na
poesia antiga, assim como entre os primeiros filósofos da natureza, o “ser” era
compreendido como a própria physis. Por isso, logo no início da filosofia, as primeiras
cosmologias passaram a considerar a physis diretamente, visando esclarecê-la sem o
necessário intermédio das figuras mitológicas divinas. Isso culminou, com Heráclito,
em um uso da linguagem que trazia em si todas as ambiguidades da physis. Tratava-se
de um lógos katà physin.

Buscando desfazer os equívocos, estabelecer uma linguagem mais criteriosa e


fornecer aos homens um método, um caminho, para pensar sem contradições,
Parmênides passou a investigar o “ser” diretamente, a partir da noção de einai. Contudo,
isso gerou uma separação entre sensível e inteligível, que condenou todo o pensamento
sobre a physis à impossibilidade do conhecimento. Como consequência, surgiram os
sofistas, que consideraram o “ser” um efeito do discurso e abandonaram a separação
entre “ser” e “não-ser”, aceitando que tudo o que pudesse ser dito poderia ser
considerado igualmente verdadeiro. Essa indistinção traz implicações éticas bastante
problemáticas, pois as questões de justiça passam a ser disputadas por quem é capaz de

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defender a mesma perspectiva e seu contrário acreditando em igual medida na validade
de ambas.

Esses problemas serão recebidos por Platão com a necessidade de reformular a


maneira de distinguir e articular “ser” e “não-ser”. Diferente de Parmênides, ele não
pôde aceitar uma separação total entre os dois, que nega completamente o não-ser, e
lança toda a investigação da physis em uma disputa de opiniões fadadas a jamais
alcançarem a verdade. Diferente dos sofistas, ele também não pôde aceitar uma
indistinção total entre “ser” e “não-ser”, que os mistura e os confunde de forma a
prejudicar nossa capacidade de julgar.

Este trabalho buscou apontar para a tarefa a ser realizada por Platão, observando
o caminho que as questões, que serão trabalhadas por ele, trilharam antes de alcançá-lo.
Acreditamos que o diálogo com os predecessores nos torna capazes de acompanhar os
problemas investigados de maneira orgânica, reconhecendo suas raízes. Nosso objetivo
é que essa perspectiva oriente o desenvolvimento de nossas pesquisas futuras, para que
possamos pensar a filosofia platônica sem perder de vista aquilo que ela mesma
reconhece como sua tradição.

135
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