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Tania Rivera

Gesto analítico, ato criador.


Duchamp com Lacan*

Este ensaio explora ressonâncias entre a produção artística e psicanalítica no século


XX, buscando trazer elementos para uma reflexão sobre o sujeito na
contemporaneidade. Colocando o conceito lacaniano de ato analítico em paralelo
com a noção de ato criador proposta por Marcel Duchamp e encarnada em seus
ready-mades, ele propõe uma concepção de gesto, ligado à escrita, como central
tanto à arte quanto à psicanálise.
> Palavras-chave: Escrita, letra, ato analítico, criação artística

This paper explores the interplay between artistic and psychoanalytical production
in 20th century, seeking to put together some thoughts about the contemporary
subject. Through an articulation of Lacan’s analytical act and Marcel Duchamp’s
creative act (which generates his “ready-mades”), the concept of gesture, linked with
writing, is proposed as central to art as well as to psychoanalytical work.

artigos > p. 65-73


> Key words: Writing, letter, analytical act, creative act

A psicanálise não se debruça sobre a arte ambas se encontraram em um momento


como um terreno onde aplicar suas teorias, histórico específico, quando a psicanálise
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mas em busca de uma verdade sobre o ho- nascia no divã de Freud e, a arte moderna,
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mem de que as obras literárias e artísticas nas pinceladas de Paul Cézanne, no final do
se aproximariam mais do que a ciência. A século XIX, e ao longo das primeiras décadas
arte, por sua vez, não procura na psicanáli- do século XX.1 Houve entre elas encontros e
se explicações ou interpretações. É certo que desencontros, por vezes esbarrões meio

*> Uma primeira versão deste ensaio foi apresentada no Segundo Encontro Mundial dos Estados Gerais
da Psicanálise, no Rio de Janeiro, em outubro-novembro de 2003.
1> Para um panorama histórico e teórico deste encontro, ver Rivera, T., Arte e psicanálise.

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desajeitados, e é inegável que estes im- poente da vanguarda francesa que se valia
primiram em uma como na outra marcas abertamente de noções oriundas da psica-
indeléveis. Até hoje elas continuam even- nálise, vai a Viena visitar o mestre. Ele guar-
tualmente se esbarrando, de maneira me- da más recordações dessa tarde em que
nos facilmente localizável. Talvez uma Freud, sem compreender em absoluto o es-
possa buscar na outra, finalmente, a si pró- pírito revolucionário que seria em boa par-
pria, explorando suas ressonâncias próprias te responsável pela difusão de suas idéias
no questionamento contemporâneo sobre o na França, afirmou laconicamente que era
sujeito. bom poder contar com os jovens. Mas fo-
É bem sabido que Freud fez largo uso, na ram esses jovens franceses, precisamente,
construção de sua teoria, de material prove- que terminaram exercendo grande influên-
niente da arte, principalmente da literatura. cia em um psiquiatra novato com ares de
Édipo-Rei representa sem dúvida o momen- dândi, ninguém menos que Jacques Lacan.
to forte desse emprego, seu ápice. A obra de Élisabeth Roudinesco (1994) chega a afirmar
Sófocles é evocada, como sabemos, para que a obra deste teria sido influenciada em
apoiar a idéia – de alcance revolucionário – igual medida pela psiquiatria, pela psicaná-
da universalidade do complexo de Édipo. Se lise e pelo surrealismo, movimento organiza-
a tragédia é capaz de comover o público mo- do em torno de Breton.
derno tanto quanto os gregos do período Seja como for, Lacan freqüenta os surrealis-
clássico, diz Freud em A interpretação dos tas, publica artigos em revistas ligadas a
sonhos , isso se deve ao fato de que, como o esse movimento e escreve uma tese de dou-
próprio Sófocles (1997) afirma pela boca de torado fortemente influenciada por propos-
Jocasta, “muitos mortais em sonho já subi- tas de Salvador Dali. Os surrealistas, por sua
ram ao leito materno” (p. 68). É o efeito da vez, continuam se interessando pela psica-
obra, o efeito trágico, o efeito artístico de nálise, adotando freqüentemente como
Édipo-Rei sobre o público que serve ao pai tema a histeria ou o sonho. Mas talvez a ver-
da psicanálise como pilar de nada menos dadeira revolução operada na arte em res-
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que o núcleo da neurose, a pedra angular de sonância com a psicanálise, sulcando os


sua teoria. caminhos a serem explorados pela arte con-
Quase duas décadas mais tarde, é também temporânea, tenha se dado já na segunda
um certo efeito – o de estranheza (o década do século XX com Marcel Duchamp,
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Unheimliche) que Freud alça à condição de que gravitava em torno das mesmas ten-
noção estética apta a fazer face, talvez, à dências que Breton e seus colegas dadaístas.
tão decantada quanto problemática catego- “Em 1913”, conta Duchamp, “tive a feliz idéia
ria do Belo (cf. Freud, 1919). Pouco tempo de fixar uma roda de bicicleta sobre um ban-
depois o poeta francês André Breton, ex- co de cozinha e vê-la girar” (1994a, p. 191).2

2> Eu traduzo esta e as demais citações.

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O Hi-ato Criador tica radical à própria noção de autoria; elas
Nascia o que Duchamp chamará algum tem- operam uma torção pela qual o autor do ges-
po depois ready-made. Qualquer objeto pode to é posto em questão, no mesmo movimen-
tornar-se uma obra de arte, basta um gesto to que faz do objeto uma obra. Essa reversão
do artista. Um quarto de giro, por exemplo, é indicada pelo próprio Duchamp, em uma
e um urinol de banheiro público torna-se a conferência intitulada “The creative act”,
“Fonte”. Um objeto comum, cotidiano, torna- proferida em 1957. Em primeiro lugar,
se de repente, por um simples gesto, algo Duchamp insiste aí em alargar a concepção
estranho, um familiar-estranho. da criação para além dos limites da técnica
O gesto mostra-se aí mais fundamental do e da subjetividade do artista. Este não só
que o produto. Octavio Paz (1997) insiste, não é capaz de descrever objetivamente
em seu belo ensaio “Marcel Duchamp ou o suas decisões durante o processo de criação,
Castelo da Pureza”, na força desse gesto do nota ele, como “não desempenha papel al-
artista: “Duchamp exalta o gesto, sem cair gum no julgamento do próprio trabalho”
nunca, como tantos artistas modernos, na (1994b, p. 188). O contemplador assume, na
gesticulação” (p. 19). Tal gesto criador exige obra, um papel fundamental, complemen-
uma espécie de ascese por parte do artista, tando o do próprio artista. O ato, escreve
para que ele não se afogue na “gesticula- Duchamp, “não é executado pelo artista so-
ção”. Duchamp fez poucos ready-mades e zinho; o público estabelece o contato entre
levava uma vida singular: chegou a trabalhar a obra de arte e o mundo exterior, decifran-
como bibliotecário e professor de francês e do e interpretando suas qualidades intrínse-
dedicou sua vida, sobretudo, a jogar xadrez, cas e, desta forma, acrescenta sua
tendo chegado a fazer parte da seleção na- contribuição ao ato criador” (ibid., p. 189).
cional francesa. Mas se o gesto parece obri- Mas o próprio ato é esburacado; o que o faz
gar a uma certa economia na produção de artístico é o conflito, o hiato que o constitui.
objetos, condição para que ele mantenha Ainda nas palavras do grande artista, há
sua força de transformação de um objeto uma “falha”, uma “inabilidade” necessária do
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qualquer em uma obra, ele vai além disso. artista em “expressar integralmente sua in-
Talvez seja intrínseco ao gesto um certo exí- tenção”, e nesse descompasso entre o que
lio do artista. Ao produzi-lo Duchamp não só se queria realizar e o que se produziu resi-
ataca o mundo da arte, provocativo, forçan- de o “‘coeficiente artístico’ pessoal contido
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do seus limites até a anti-arte, designando na obra” (ibid.). Se tal coeficiente é “pes-
a si próprio como um anti-artista. Ele se sub- soal”, ele não confirma, contudo, a pessoa do
trai e quase desaparece. Do gesto do artis- artista, muito pelo contrário: ele despersona-
ta, Duchamp nos faz passar, nas palavras liza, na medida em que desbanca a intenção
de Roland Barthes (1990) acerca de outro ar- e a expressão do artista. O ato criador mos-
tista, o americano Cy Twombly, ao qual vol- tra-se então hi-ato: descontinuidade entre
taremos em breve, ao “artista como gesto” intenção e ação do artista que se reproduz,
(p. 146). em ato, no “olhador” da obra.
As apropriações de Duchamp fazem uma crí- Em contraponto ao hi-ato explorado por
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Duchamp, a obra de arte modernista muitas ainda que surjam explicitamente de uma vi-
vezes apresentou-se em continuidade com sada expressiva (“Eu posso controlar o flu-
seu autor e em medida de confirmar sua au- xo da pintura” [Pollock, s/d.], ele afirma),
toria. A Action Painting do artista america- não deixam de colocar seu autor em ques-
no Jackson Pollock (1912-1956) nos oferece tão. Pollock ele mesmo parece entrever isto
um exemplo tardio porém vigoroso, no con- quando diz, por exemplo: “uma pintura tem
texto do expressionismo abstrato. A ação, uma vida própria, eu tento deixá-la viver”
aí, aparece como uma tentativa de reafirmar (ibid.).
o eu do artista. Em uma declaração famosa, Já o ready-made vem de saída, e na linha-
Pollock afirma querer “expressar” seus “sen- gem da colagens cubistas, radicalizar a crí-
timentos, mais do que ilustrá-los” (Pollock, tica à autoria, na medida em que se apropria
s/d.). A abstração mostra aí, de forma para- de algo já dado, pondo em questão tanto a
lela ao ready-made, uma primazia do gesto mestria técnica quanto a noção moderna de
artístico, em detrimento do valor represen- originalidade. O ready-made até hoje gera
tacional da obra. São célebres as imagens de controvérsia. Um exemplo atual é o dos ir-
Pollock jogando tinta sobre enormes telas mãos Chapman, artistas ingleses da nova
dispostas no chão, em uma espécie de coreo- geração, que recentemente causaram furor
grafia libertadora que realiza suas obras dos ao interferirem diretamente sobre gravuras
anos 1950 (após um período em que uma fi- de Goya, inserindo caras de macaco em
guração com elementos arquetípicos parecia pranchas da série “Desastres da Guerra”
ressoar o tratamento analítico que o artista (Monachesi, 2003).
fazia com um junguiano). O renomado críti- Nesse tipo de produção, que Duchamp cha-
co Harold Rosemberg chega a afirmar que o mava de “ ready-made retificado”, basta um
artista estaria “vivendo na tela” (apud Warr gesto: poucos golpes de lápis sobre uma
e Jones, 2000, p. 193.). Se a tela é sua casa, obra-prima, por exemplo, para desestabilizar
entre autor e obra haveria uma continuida- sentidos, de forma chocante ou iconoclasta.
de sem falhas, na qual Rosemberg parece Por vezes o gesto é profundamente irônico,
artigos

piamente acreditar, quando escreve: como os bigodes colocados na Gioconda em


Uma pintura que é um ato é inseparável da bio- L.H.O.O.Q . , de 1919, título que se deixa ler
grafia do artista. A pintura é ela mesma um como “elle a chaud au cul” (algo como: ela
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“momento” na adulterada mistura de sua vida tem – com o perdão da expressão – fogo no
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– onde “momento” se refere seja aos minutos rabo).


que ele passa marcando a tela, seja à inteira No trabalho analítico, a interpretação não
duração de um drama lúcido conduzido em lin- visaria justamente produzir, de forma seme-
guagem sígnica. (Ibid.)
lhante, uma oscilação desestabilizadora da
Sabemos, contudo, que mesmo aí a obra re- fala do analisando? Apesar de não apresen-
siste a uma assimilação completa à vida do tar uma intenção provocativa ou irônica, a
artista (ela mesma, como nota o próprio intervenção do analista é precisamente o
Rosemberg, sendo concebida como uma que não vem acrescentar um novo sentido
“adulterada mistura”). As telas de Pollock, ao que é falado, mas chacoalhar o sentido
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da fala, pondo em questão seu autor. Aque- analisando se conclui, fazendo-se eventual-
le que proferiu a fala se estranha. Duchamp mente eficaz. Se, para Duchamp, “os olhado-
nos ensina que o ato criador não é bem res fazem o quadro” (1994b, p. 247), para a
uma criação ex-nihilo, mas um gesto míni- psicanálise, poder-se-ia dizer, o analisando
mo, um traço capaz de subverter algo já faz a interpretação. É o domínio do incons-
dado, uma discreta inscrição sobre um ciente, do que insiste em escapar, o que
texto constituído. Da mesma forma, a fala realmente opera um trabalho analítico, des-
do analista deve agir sobre o fantasma, de- de que o analista permita, graças à sua pró-
sestabilizando-o e fazendo surgir um sujei- pria análise, que ele o faça. O analista, “é
to problemático e efêmero, posto que é as- por não pensar que ele opera”, diz Lacan
sujeitado ao fantasma, e não propriamente (2001a, p. 377).
seu autor. O objeto de arte não mais refle- Em seu Seminário 5, Lacan nota que o ato e
te em espelho uma apaziguadora imagem do o acting out resistem à teorização. O ato
sujeito autor/contemplador, mas lhe reenvia analítico e o acting out formam, sem dúvi-
a inquietante pergunta sobre sua própria da, uma série que inclui também o ato falho,
determinação. que, desde muito cedo na obra de Freud,
A obra de Duchamp marca o século XX pon- aparece como brecha pela qual se perfila o
do em questão, dessa forma, nosso olhar – inconsciente.3 Mas o ato leva a teoria, assim
sobre a arte e sobre nós mesmos. como a clínica analítica, aos seus limites, a
um ponto em que ambas tendem a fracassar
Ato analítico e escrita – e talvez o fracasso, a falha, seja inerente
Em uma estranha ressonância, apenas al- ao ato. Lacan afirma justamente, no
guns anos depois de Duchamp ter proferido “Discours à L’École Freudienne de Paris”,
sua conferência nos EUA, Lacan propõe que que o ato não é efetivo senão na medida
a intervenção do analista também seria em que ele fracassa.4 Mas se o ato analítico
fundamentalmente ato . Ele chama a aten- é simétrico ao ato falho e ao acting out, nós
ção para o fato de que a fala é ato, e sem diríamos que ele se diferencia por poder
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que o analista se aperceba, muitas vezes transmutar-se em gesto. O analista “falha” à


está em jogo e é efetiva mais a sua enuncia- maneira do artista segundo Duchamp, e gra-
ção do que seu enunciado. Ao contrário do ças à brecha assim aberta um gesto se pro-
que suporia a idéia da existência de uma duzirá, gesto transformador que faz o
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técnica analítica capaz de guiar as interpre- analista, o situa como tal, apenas depois do
tações a serem fornecidas pelo analista, o ato ter-se produzido junto ao analisando. O
ato supõe uma certa “inabilidade” (para fa- ato analítico é, portanto, criador como o de
lar como Duchamp) do analista, o ato é o Duchamp, é hi-ato. Ele põe em questão os
que lhe escapa e que só na participação do eus do analista e do analisando, fazendo

3> Devo a lembrança de que o ato falho completa a série de atos a uma discussão com Ricardo
Goldenberg.
4> No original: Il “ne réussit jamais si bien qu’à rater” (Lacan, 2001b, p. 265).

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surgir um sujeito desse ato, ou melhor, um na escritura um elemento importante, mui-
ato-sujeito, um gesto-sujeito, um sujeito que tas vezes como um rabisco quase desajeita-
não é mais que um gesto – parafraseando do, de aparência infantil, ou uma palavra
Barthes: um sujeito-artista enquanto gesto. solta remetendo a todo um campo cultural:
Talvez o ato de Pollock esteja mais próximo, Virgil (Virgílio), por exemplo, em uma obra da
neste sentido, do acting out, na medida em qual Barthes não traz o título. O artista, ou
que visaria figurar uma identidade, a refazer melhor, sua obra, afirmaria, segundo Barthes
do eu uma imagem estável, ainda que esta (1990), “... que a essência da escritura não
se fragmente um tanto e seja mil vezes re- é nem uma forma nem um uso, mas apenas
coberta, mais ou menos ao acaso. O acting um gesto, o gesto que a produz, deixando-a
out remonta o sintoma e nisso figura o eu. correr: Um rabisco, quase uma mancha, uma
Já o ato de Duchamp reinstala e suscita o negligência” (p. 144; grifos do autor). O en-
hi-ato, possibilitando um gesto que subver- saísta francês distingue o gesto do ato, sus-
te o sujeito e o re-produz lábil, sujeito a uma tentando que o primeiro é um complemento
mobilidade poética, sujeito-gesto. do segundo. O ato visaria suscitar um obje-
Nisso poderíamos todos ser ready-mades, a to ou um resultado, enquanto o gesto diz
cada momento: na clínica analítica, na arte. respeito aos efeitos – intencionais ou não,
Jean Baudrillard (1994) afirma que hoje, no pouco importa –, que são “inversos, derra-
mundo do “simulacro”, “nós nos tornamos mados”, escapam ao artista, mas “voltam a
todos ready-mades” (p. 50). O filósofo e fo- ele e provocam, então, modificações, des-
tógrafo francês vê aí, contudo, um acting out vios, leveza do traço” (ibid., p. 146). Se o ato
(como é curioso que ele use também essa remete, no pensamento lacaniano, em últi-
expressão!), um ato pelo qual o homem ex- ma instância ao ato sexual, sua dimensão
pulsaria a si mesmo, em prol de um mero si- de gesto é, posto que a relação sexual não
mulacro. Creio, porém, que o hi-ato criador se completa, uma certa elegância do que aí
opera o inverso disso. Ele não produz ho- resta: o gesto é como as roupas jogadas num
mens “feitos às pressas” como aqueles que canto, displicentemente, para o ato de amor.
artigos

o presidente Schreber via por aí, depois de Como se, nas palavras de Barthes sobre
seu mundo ter colapsado. Um gesto-sujeito Twombly, “da escritura, ato erótico desgas-
se configura de forma sempre singular, mo- tante, restasse o cansaço amoroso: essa rou-
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mentaneamente, para se estranhar, efême- pa caída, atirada a um canto da folha” (ibid.,


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ro, e esboçar novas escritas. p. 144).


Ou melhor: o gesto é escrita. É comentando Escrita e corpo encontram-se fortemente
a obra de Cy Twombly, nascido em 1928 nos articulados na psicanálise. A obra de Freud
Estados Unidos e um dos primeiros artistas indica bastante claramente a concepção de
a se interessar pelo graffiti, que Barthes nos marcas pelas quais a pulsão se inscreve no
auxilia a melhor delimitar esse gesto como corpo, delimitando em um mapa improvável
escrita. As telas de Twombly de fins dos anos as zonas erógenas (cf. Freud, 1905). Com La-
1960 trazem uma dispersão de traços discre- can, a noção de letra vem retomar essa ar-
tos, desenhos sutis e cores esmaecidas e têm ticulação de forma dupla. Ela permite, em
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primeiro lugar, que se proceda a uma firme do: há traços inacessíveis à consciência, na
amarração entre literatura e pintura em tor- medida em que pode ser rompido o contato
no de um mesmo gesto de escrita pictórica entre a camada de cera (o inconsciente, que
do qual a caligrafia chinesa oferece o mode- recebe as inscrições de forma duradoura) e
lo. O gesto implica o corpo, e ele tem supre- a superfície do aparelho que representa o
macia sobre a distinção tradicionalmente sistema percepção/consciência. Essa escrita
vigente no ocidente entre a literatura e as é permanente, e a principal limitação do blo-
artes, o escrito e o pictórico, a linguagem e co mágico como ilustração do aparelho psí-
a imagem. Em segundo lugar, e mais funda- quico reside no fato de ele não apresentar
mentalmente, a letra encarna tal escrita, um movimento progrediente de inscrições a
sublinhando sua natureza de marca de gozo. partir da camada de cera em direção à super-
Devemos nos remeter a Freud em “Além do fície, para permitir que se reproduza, tornan-
princípio do prazer” (1920) para conceber na do-se novamente consciente, algo aí
repetição uma escrita sempre retomada, gravado (cf. Freud, 1905). Isso se relaciona
uma evocação do roteiro fantasmático que ao trabalho analítico pois coloca, implicita-
é, a um só tempo, tentativa de inscrição e de mente, a questão de como a análise seria
apagamento no corpo. capaz de reavivar tais traços. Seria a análi-
O acting out mostra de forma gritante essa se uma leitura dessa escrita antiga?
tentativa paradoxal, sob o funcionamento Se “o inconsciente é o que se lê”,5 como afir-
da compulsão à repetição. Ele ocorre no do- ma Lacan de acordo com essa concepção
mínio da transferência – que é, como sabe- freudiana, devemos conceber que a transfe-
mos, definida peremptoriamente por Freud rência estabelece o trabalho analítico não
como um “agir” –, ainda que venha justa- como uma leitura, mas como escrita. Pode-
mente tentar rasgá-la, estabelecer-se fora ríamos dizer tratar-se aí de transcrição, tra-
(out) do setting analítico. Há uma íntima re- dução dos sulcos originários para o registro
lação entre ato analítico e o acting out. O consciente; a insistência de Freud no valor
primeiro, como chega a dizer Lacan (2001a), da construção, contudo, lembra que o in-
artigos

está sempre “à mercê do acting out” (p. 380). consciente está longe de se constituir como
O acting out é tentativa de marcar e de apa- um texto passível de transcrição. Assim
gar, novamente, o que já estaria inscrito, como o ready-made, as formações do incons-
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supõe-se, oculto na camada mais profunda ciente, apesar de serem passíveis de inter-
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do bloco mágico (para empregar a metáfora pretação, veiculam uma opacidade à


freudiana que faz do aparelho psíquico indu- significação – figurada por Freud como o
bitavelmente um aparelho de escrita e leitu- “umbigo do sonho”, por exemplo. O caráter
ra). No texto de 1925 em que Freud toma fragmentário dos traços primordiais aponta,
como modelo esse brinquedo infantil, o re- assim, para os limites do trabalho analítico,
calcamento encontra-se claramente figura- ao mesmo tempo em que desenha sua con-

5> Assim ficou estabelecido um dos subtítulos de “La fonction de l’écrit”, Sessão III (Lacan, 1975, p. 29).

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dição de possibilidade: é necessário um tra- tes. O gesto analítico suscita essa escrita
balho de escrita que seja ao mesmo tempo sutil, essa retomada da letra que, tal como
fiel a tais vestígios e capaz de retraçá-los de a arte, sublinha um hiato, e opera uma ver-
maneira a retorcê-los, modificá-los minima- dadeira subversão. Aí a análise atingiria seu
mente. Em transferência, o acting out bus- alvo, permitindo, ainda que de maneira fu-
ca, como já dissemos, retomar tal escrita, gaz, o surgimento de um sujeito, ou melhor,
repetir essa marca, ao mesmo tempo em que fazendo, para evocar ainda uma expressão
tenta apagá-la. O ato analítico também deve de Lacan (2001a), “da castração sujeito”
ser concebido como visando tal inscrição. (p. 380).
Mas é preciso que esse ato renuncie a si pró-
prio, à intenção de escrita que ele carrega, Referências
para que ele torne-se analítico. Ele deve B ARTHES , Roland. O óbvio e o obtuso. Rio de Ja-
transmutar-se em gesto, deixando cair a neiro: Nova Fronteira, 1990.
pretensão de refazer o ato de escrita, de B AUDRILLARD , Jean. L’écriture atomatique du
tornar-se senhor do trauma, de decifrar monde. In: Le crime parfait. Paris: Galilée, 1994.
completamente as marcas ou apagar os ves- p. 45-57.
tígios. Pegando no vôo o acting out, que tor- D UCHAMP, Marcel. À propos des ready-mades. In:
na a marca um espetáculo, o gesto analítico Duchamp du signe. Paris: Flammarion, 1994a.
o reduz a um discreto tracejamento. “Nas p. 191-192.
ilhas da Noruega”, gostava de repetir Barthes
_____ . Le processus créatif. In: Duchamp du
(1990) citando Chateaubriand, “... estão de-
signe. Paris: Flammarion, 1994b. p. 187-189.
senterrando algumas urnas gravadas com
caracteres indecifráveis. A quem pertencem F REUD, Sigmund (1905). Três ensaios sobre a
essas cinzas? Os ventos não sabem” (p. 145). teoria da sexualidade. In: Edição Standard Bra-
Sob a primazia da letra, a escrita de que se sileira das Obras Psicológicas Completas de
trata em análise mostra-se escrita pictórica, Sigmund Freud . Rio de Janeiro: Imago, 1996. v.
VII, p. 119-229.
gesto de “rasura”, como formula Lacan
artigos

(2001c), “de nenhum traço que esteja antes” _____ (1919). O estranho. In: Edição Standard
p. 16). Escrita feita de traços descontínuos, Brasileira das Obras Psicológicas Completas de
traços inclassificáveis como os que consti- Sigmund Freud . Rio de Janeiro: Imago, 1996. v.
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tuem a obra de Twombly, na concepção de XVII, p. 275-314.


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Barthes (1990): traços repetidos, porém ini- _____ (1920). Além do princípio do prazer.
mitáveis, que unem “a inscrição e o apagar, In: Edição Standard Brasileira das Obras Psico-
a infância e a cultura, a deriva e a inven- lógicas Completas de Sigmund Freud. Rio de
ção” (p. 150). Ao tornar-se ato analítico, ou Janeiro: Imago, 1996. v. XVIII, p. 17-85.
seja, ao ser tomada no âmbito da transfe- _____ (1925[1924]). Uma nota sobre o Bloco
rência, essa escrita torna-se um leve trace- Mágico. In: Edição Standard Brasileira das
jamento que remete ao corpo – o que a Obras Psicológicas Completas de Sigmund
qualifica como ato erótico e permite trazer à Freud . Rio de Janeiro: Im ago, 1996. v. XIX.,
baila o gozo para melhor sublinhar seus limi- p. 253-259.

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LACAN, Jacques. La fonction de l’écrit. In: Le feature/pollock/process3qt.shtm. Acesso em:
Séminaire. Livre XX. Encore. Paris: Seuil, 1975. 23 de fevereiro de 2005.
_____ L’acte psychanalytique. In: Autres RIVERA, Tania. Arte e psicanálise. Rio de Janei-
écrits. Paris: Seuil, 2001a. p. 375-383.. ro: Jorge Zahar, 2002. (Passo-a-Passo).
_____ Discours à l’École Freudienne de Paris. ROUDINESCO, Élizabeth. Jacques Lacan. Esboço de
In: Autres Écrits. Paris: Seuil, 2001b. p. 261-281. uma vida, história de um sistema de pensa-
_____ Lituraterre. In: Autres Écrits. Paris: mento. São Paulo: Companhia das Letras, 1994.
Seuil, 2001c. p. 11-20. SÓFOCLES. Édipo Rei. In: Trilogia Tebana. Trad.
MONACHESI, Juliana. Vandalismo conceitual. Fo- Mário da Gama Kury. Rio de Janeiro: Jorge
lha de S. Paulo, Caderno Mais!, São Paulo, 13 Zahar, 1997.
julho 2003, p. 4-5. WARR, Tracey e JONES, Amelia. The Artist‘s Body.
PAZ , Octavio. Marcel Duchamp ou O castelo da Londres/Nova York: Phaidon, 2000.
pureza. São Paulo: Perspectiva, 1997.
POLLOCK, Jackson. Depoimento sobre seu proces-
so de pintura. (s/d.). National Gallery of Art of Artigo recebido em março de 2005
Whashigton D.C. Online, http://www.nga.gov/ Aprovado para publicação em outubro de 2005

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