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Mocimboa.

A sombra do jihadismo paira sobre Moçambique

Na noite de 4 para 5 de Outubro, há meio ano, a cidade de Mocimboa da Praia, no norte de


Moçambique, foi palco da primeira grande investida de natureza islâmica a ter o país como palco.
Seis meses depois, a calma parece ter regressado à região, mas a tranquilidade é aparente: uma série
de misteriosos raptos têm espalhado o pânico no litoral norte da pérola do Índico.

Agência France Press

Aninhada ao fundo de um emaranhado de ruelas, a mesquita de Nanduadua, na cidade


moçambicana de Mocimboa da Praia, no extremo norte do país, não é mais do que um monte de
escombros. Um grupo de mulheres, cobertas com veú, estugam o passo quando passam pelo local,
sem deitarem sequer um olhar ao que resta do templo.
“Era a mesquita dos criminosos”, diz à frente dos despojos do edifício Ussene Amisse, morador de
uma das casas que ladeiam a mesquita. “A mesquita daqueles que tinham um coração de pedra”,
complementa.
O Governo de Maputo ordenou a sua destruição em Outubro, no rescaldo de um ataque mortífero
atrribuído a um grupo de jovens muçulmanos radicais que fizeram de Nanduadua o seu quartel-
general.
A primeira grande investida islâmica a ter Moçambique como palco soou como um trovão
inesperado num país mergulhado numa crise financeira profunda e ainda assombrado de quando em
quando pelas convulsões de uma longa guerra civil. Até Outubro último a antiga possessão
portuguesa na costa do Índico não pontificava em nenhum dos mapas com que as organizações
internacionais sinalizam a ameaça jihadista.
Na parte norte do país, de maioria muçulmana, o ataque semeou, no entanto, ventos de inquietude
que tardam a amainar, nutridos por novos incidentes armados e por uma misteriosa vaga de raptos.
A ameaça jihadista abateu-se sobre Mocimboa e sobre alguns dos seus mais de 40 mil habitantes na
noite de 4 para 5 de Outubro: “Por volta das três da manhã, ouvimos gritos e o som de disparos.
Encaramos os acontecimentos com normalidade, até porque era dia de festa”, recorda um morador
da cidade, Juma Tuaibo. “Rapidamente percebemos que os jovens da mesquita estavam na origem
dos incidentes. Muitos de nós tomaram a decisão de se refugiarem nas aldeias dos arrabaldes”.
Conhecidos sob a designação de “al shabab” - “os jovens” em árabe – dezenas de homens armandos
tomaram de assalto o comissariado da polícia, o aquartelamento do exército e um posto da guarda
florestal. Numa questão de horas tinham a cidade inteiramente sob o seu controlo.

“Bandidos”

“Fomos apanhados de surpresa”, reconhece, a coberto do anonimato, um responsável local. “Foram


necessários dois dias de combate e o apoio de reforços vindos de todo o distrito para expulsar os
bandidos da cidade”.
O balanço dos acontecimentos é pesado. Dois agentes da polícia, um dirigente local e catorze
“insurgentes” mortos. Cautelosas, as autoridades recusam-se a falar em “terrorismo”. Evocam antes
um “grupo” cujos objectivos passariam por “subverter a ordem estabelecida”. Mas, asseguram, não
há qualquer ligação com os “al shabab” que semeiam o terror na Somália através do recurso a
elaborados atentados.
Ultrapassado o primeiro choque, o Governo moçambicano reagiu com invulgar assertividade. Numa
questão de semanas, mais de três centenas de muçulmanos foram detidos e inúmeras mesquitas
encerradas. O presidente de Moçambique, Filipe Nyusi, demitiu ainda os responsáveis pelo Exército
e pelos serviços secretos, por não terem sido capazes de antecipar o ataque e de fazer soar os
alarmes.
Em Mocimboa, no entanto, a eclosão de uma franja radical no seio da comunidade muçulmana era
conhecida de todos: “Tudo começou há volta de três anos, quando cerca de meia centena de jovens
começaram a clamar que não éramos verdadeiros muçulmanos”, explica à agência AFP Ussene
Amisse, professor numa escola corânica. “Alguns familiarizaram-se com este discurso na Somália.
Foi quando voltaram à cidade que começaram a criar problemas”, explica.
Nos sermões que proferiam, exigiam às pessoas que deixassem de enviar as crianças às escolas, que
não votassem e que desobedecessem às autoridades: “Seguiram os maus exemplos dos
fundamentalistas de outris países”, lamenta um dos líderes da comunidade muçulmana de
Mocimboa, Amadi Mboni.

Em cheque

“Nós sabiamos o que se estava a passar e informamos as autoridades em relação ao perigo,


prossegue Mboni. “Ainda assim, não conseguimos evitar que os nossos filhos e os nossos netos se
juntassem a eles”, complementa.
De acordo com dados oficiais, 17 por cento dos moçambicanos são muçulamos, mas o número
poderá ser bem superior, de acordo com os responsáveis pela comunidade islâmica no país. A
FRELIMO, partido quer governa o país desde que Moçambique se tornou independente, orgulha-se
da coexistência perfeita entre a comunidade islâmica e as outras religiões.
O norte de Moçambique passou, ainda assim, amplamente ao lado da expansão económica dos anos
2000 e a população da área ressente-se de não ter recebido mais do que as migalhas da chuva de
petrodólares que se abateu sobre o país na sequência da concessão das jazidas de gás natural da
região de Palma, a norte de Mocimboa.
Foi neste contexto que o discurso radical dos “al shabab” encontrou seguidores atentos: “É uma
zona de grande influência muçulmana, onde o poder do Estado é frágil”, explica o colunista da
oposição Fernando Lima.
Excepção feita a um par de veículos blindados estacionados em permanência à frente das
instalações da polícia, Mocimboa recuperou, meio ano depois dos incidentes de Outubro, a sua
actividade habitual: “A situação está calma e sob controlo”, reitera o porta-voz da polícia
moçambicana, Augusto Guta.
“A vida regressou ao normal e já retomamos o trabalho”, explica, não sem orgulho, o presidente da
câmara de Mocimboa, Fernando Neves. “Esta gente utilizou o Islão para nos separar, mas não
conseguiram”, assinala o autarca.
As barreiras policiais montadas pelas forças da ordem desapareceram e os moradores de Mocimboa
participaram às centenas, a 7 de Março, na festa anual da cidade. Os avisos com que a polícia
confronta turistas e visitantes contam toda uma outra história.

Sequestros

Em Mocimboa ou em Maputo, as autoridades recusam-se terminantemente a avançar com o mínimo


detalhe relativamente ao número ou à actividade dos “al shabab”. No entanto, e de acordo com
numerosos testemunhos, alguns militantes responsáveis pela investida de Outubro refugiaram-se em
zonas florestais mais densas, a partir das quais continuam a espalhar o terror.
Na semana passada um ataque armado contra a aldeia de Chitolo vitimou um morador. Os atacantes
incendiaram ainda várias casas, de acordo com a rádio estatal moçambicana: “Depois dos ataques,
ninguém se atreve a viajar para as outras localidades se não for na companhia do exército”, confia à
AFP Amisse Oumar, autarca de Quelimane, cidade que fica situada a apenas uma dezena e meia de
quilómetros a norte de Mocimboa.
“As pessoas deixaram de poder trabalhar nos campos e a população não tem alimentos”, lamenta o
septuagenário. “Em Outubro, uma mulher de uma aldeia próxima foi raptada quando trabalhava no
campo na companhia de um sobrinho. Noutra ocasião, capturaram um homem e decapitaram-no”,
remata.
As ruas de Mocimboa fervilham com numerosos relatos de sequestros feitos em condições similares
pelos “al shabab”. O número ainda não se aproxima do volume de raptos, praticados à escala
industrial, pelo grupo islamista Boko Haram, na Nigéria, mas o modus operandi é furiosamente
parecido: “Foi no dia 1 de Janeiro”, recorda Momadi Mfaoume. “Estava no campo com a minha
mulher quando vi homens armados na floresta. Começamos a correr, mas a minha mulher acabou
por ser capturada”.
“Outras mulheres que conseguiram escapar disseram-me que eles obrigaram-na a casar de novo”,
explica Mfaoume, inconsolável.
As autoridades da região, por sua vez, garantem que não “foram informadas” de quaisquer
desaparecimentos: “A zona é segura”, repete Fernando Neves. “Mas estes bandidos não são apenas
jovens a quem deram a ver cassetes de propaganda islamita”, diz, ainda assim, o autarca. “Não
sabemos quem os lidera, quem os armou ou que ligações têm eles com o estrangeiro. Não temos
outra solução senão permanecer vigilantes”.

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