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A escuta musical: um processo dialógico

Silvia Cordeiro NASSIF1


Jorge Luiz SCHROEDER2
Resumo: Este trabalho apresenta o recorte de uma pesquisa em andamento na
Universidade Estadual de Campinas, cujo tema é a escuta musical de não músi-
cos. Fundamentado nas ideias do Círculo de Bakhtin, em especial no conceito
de dialogia, coloca em discussão a importância de se tomar a apreciação mu-
sical como uma dimensão do ensino de música tão relevante quanto o fazer ou
o conhecimento teórico, por exemplo, frequentemente tidos como habilidades
musicais mais necessárias. Apresenta ainda alguns dados sobre os processos de
aproximação com a linguagem musical de alunos advindos de cursos de apre-
ciação musical ministrados pelos autores à comunidade externa à universidade.
Percebe-se, por esses dados, que as construções significativas realizadas pelos
alunos a partir das músicas passam por várias dimensões para além das puramen-
te estético-musicais, e podem tornar-se um campo fértil para o desenvolvimento
de uma percepção mais consciente da linguagem musical.

Palavras-chave: Escuta Musical. Apreciação Musical. Dialogia. Círculo de


Bakhtin.

1
Silvia Cordeiro Nassif. Doutora em Educação pela Universidade Estadual de Campinas (UNICAMP).
Licenciada em Letras e Bacharel em Música pela mesma instituição. Atualmente é docente da
Universidade Estadual de Campinas (UNICAMP). Tem experiência na área de Artes, com ênfase em
Música, atuando principalmente nos seguintes temas: Educação musical; Música e linguagem; Música
e desenvolvimento humano. E-mail: <silviacn@iar.unicamp.br>.
2
Jorge Luiz Schroeder. Doutor e Mestre em Educação pela Universidade Estadual de Campinas
(UNICAMP). Bacharel em Música - modalidade composição - pela mesma instituição. Atualmente é
professor participante do Programa de Pós-Graduação em Artes da Cena e professor pleno do Programa
de Pós-Graduação em Música, no Instituto de Artes da Unicamp; Profissional de Pesquisa na área
de apoio ao ensino, pesquisa e extensão no Instituto de Artes da Unicamp; coordenador do grupo de
pesquisa Musilinc (Música, Linguagem e Cultura) e pesquisador do Laborarte (Laboratório de Estudos
sobre Arte, Corpo e Educação) da Faculdade de Educação, na Unicamp. Tem experiência nas áreas de
Artes e Educação, na educação musical e nos estudos da música popular. Vem atuando principalmente
em pesquisas sobre os diálogos da música com a dança e sobre os processos de atribuição de sentidos e
apropriação musical. E-mail: <schroder@unicamp.br>.

Educação, Batatais, v. 6, n. 2, p. 143-161, jul./dez. 2016


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Musical listening: a dialogic process

Silvia Cordeiro NASSIF


Jorge Luiz SCHROEDER
Abstract: This work presents a section of an ongoing research in the University
of Campinas, which has as theme the musical listening of non-musicians.
Grounded in Bakhtin’s Circle ideas, especially in the concept of dialogism, it
brings into discussion the importance of having the musical appreciation as a
dimension of musical teaching as relevant as the performing or the theoretical
knowledge, for example, frequently seen as more necessary musical abilities.
It also presents some data on the processes of approximation to the musical
language of students that come from musical appreciation courses ministered
by the authors with the outside community of the university. It is noticeable, by
these data, that the significant constructions made by students out of the songs
go through several dimensions towards beyond the purely esthetical-musical
ones, and might become a fertile field for the development of a more consistent
perception of the musical language.

Keywords: Musical Listening. Musical Appreciation. Dialogism. Bakhtin’s


Circle.

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1.  INTRODUÇÃO

Dentre as várias dimensões que compõem o que chamamos


de conhecimento musical3, a apreciação ou escuta talvez seja a que
menos atenção tem recebido do campo educacional4. De acordo
com a nossa visão, três hipóteses poderiam estar na base desse fato.
Em primeiro lugar, há a ideia, que permeia o senso comum
mas tem adeptos também em algumas teorias da arte, de que a mú-
sica (e a arte, por extensão) é uma evidência. Tecida a partir de
algumas concepções de arte, tais como a arte como expressão ou
a arte como linguagem dos sentimentos, mas também presente nas
concepções mais atuais, tais como na vanguarda moderna5, essa
noção propõe que a compreensão, a fruição, a contemplação ou
quaisquer outros processos de vínculo significativo com as obras de
arte podem se dar por meio exclusivamente do contato destas com
seus respectivos públicos ou audiência. Isso eliminaria a necessida-
de de qualquer tipo de aprendizagem sistematizada de escuta mu-
sical, por exemplo, já que a música “falaria por si só” e bastaria
apenas ouvir as músicas e contar com uma espécie de intuição (ou
“sensibilidade inata”) para bem fruí-la, apreciá-la e, enfim, amá-la.
Como segunda hipótese para essa impressão de certo desdém
com a questão da apreciação, podemos pensar na crença da autos-
3
Vários pensadores dividem o conhecimento musical em diferentes dimensões. Phillip Tagg (2011),
por exemplo, propõe uma divisão do conhecimento musical em duas subcategorias: música como
conhecimento (conhecimento de música) e Conhecimento Metamusical (conhecimento sobre música).
A primeira engloba tanto a competência poiética (composição, arranjo, performance etc.) quanto a
competência estésica. Na segunda, temos o metadiscurso musical (teoria musical, análise, estruturação
etc.) e o metadiscurso contextual (entendimento de como as práticas musicais se relacionam com o
contexto sociocultural). Já Swanwick (2003) propõe que o conhecimento musical deve passar por cinco
instâncias: execução, composição, apreciação, literatura e técnica.
4
Em uma consulta às edições da Revista da Abem dos últimos dez anos, encontramos alguns poucos
artigos versando sobre o tema da apreciação musical. De todos estes, apenas um (BARBOSA;
FRANÇA, 2009) aborda a apreciação nas mesmas chaves que nós. Os outros abordam a questão da
audição em contextos de discussão sobre gosto (QUADROS JR; LORENZO, 2013), julgamento de
valores musicais (DUARTE, 2011; SILVA, 2012) e sobre o efeito da prática musical na apreciação de
crianças (MENDONÇA; LEMOS, 2010).
5
Pierre Bourdieu se refere a essa questão como “ideologia carismática”: “Se a ideologia carismática
que transforma o encontro com a obra na ocasião de uma descida da graça (charisma) proporciona
aos privilegiados a mais ‘indiscutível’ justificação de seu privilégio cultural, fazendo esquecer que a
percepção da obra é necessariamente erudita – por conseguinte, aprendida –, os visitantes oriundos das
classes populares estão bem posicionados para saber que o amor pela arte nasce de um convívio bem
prolongado e não de um golpe repentino” (BOURDIEU; DARBEL, 2003, p. 90, grifos nossos).

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suficiência da teoria musical como fonte de conhecimento. Como


uma escuta musical consciente geralmente passa por algum co-
nhecimento sobre os princípios de organização formal da música,
acredita-se que um estudo teórico completo e bem realizado (o que
quer que isso signifique) levaria a um aprimoramento natural da
escuta musical. Sendo assim, seria desnecessário se preocupar com
uma questão que, a rigor, já estaria embutida em outra. Temos nos
referido a esse fenômeno como “efeito colateral”, ou seja, a apre-
ciação seria um “efeito colateral” da instrução teórica, que seria o
“princípio ativo”.
Ainda um terceiro argumento diretamente ligado à nossa se-
gunda hipótese, muito difundido no meio educacional da música,
sobrevaloriza o “fazer musical” que, ainda que apareça em várias
propostas atrelado também ao “apreciar” e ao “contextualizar”,
sempre se sobrepõe e se destaca das outras duas ações, colocando-
-as como coadjuvantes no processo de apropriação da linguagem
musical. Aqui é a prática musical que se mostra como “princípio
ativo” e a escuta novamente empurrada para o “efeito colateral”;
por isso temos a imbricação das duas últimas hipóteses.
Neste trabalho, pretendemos problematizar tanto a noção de
arte (ou música) como evidência, quanto a primazia do conheci-
mento gramatical e da prática musical para uma apreensão mais
consciente e significativa da música. Com esse intuito, e ancorados
sobretudo no pensamento do Círculo de Bakhtin – mas trazendo
contribuições também de pensadores da educação e da cultura –,
apresentaremos a ideia da música como um sistema simbólico cul-
turalmente estabelecido e dialógico por natureza, cujo processo de
apropriação passa necessariamente por processos sociais interati-
vos, e faremos ainda breves apontamentos sobre situações viven-
ciadas em experiências com aulas de apreciação musical.

2.  MÚSICA E DIALOGIA

Os pensadores soviéticos do início do século XX conhecidos


como Círculo de Bakhtin6 desenvolveram um pensamento com-
6
O Círculo de Bakhtin era composto, além do próprio Mikhail Bakhtin, por vários intelectuais, entre
eles, um filósofo, um biólogo, uma pianista, um estudioso de literatura, um advogado e educador e

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plexo sobre o funcionamento dos sistemas simbólicos e, embora


tivessem como centro das reflexões a linguagem verbal e a litera-
tura, entendiam que suas formulações eram extensíveis aos demais
sistemas simbólicos, ou seja, a todo o mundo da cultura. Trata-se de
um pensamento, na verdade, que é considerado, por muitos pesqui-
sadores atuais do Círculo, mais do que uma filosofia da linguagem
em si, mas efetivamente uma filosofia da cultura (FARACO, 2009;
GEGe, 2011; GARDINER, 2010; STAM, 2010). Isso nos deixa ra-
zoavelmente tranquilos para nos apropriarmos das ideias do Círcu-
lo com o objetivo de olhar a arte em geral, e a música em particular.
De acordo com esse pensamento, a dinâmica que rege o uni-
verso simbólico (ou “ideológico”, palavra preferida por Bakhtin
para designar tudo que é dotado de sentido e valor) pode ser carac-
terizada por meio da metáfora do diálogo: “O universo da cultura é
intrinsecamente responsivo, ele se move como se fosse um grande
diálogo” (FARACO, 2009, p. 59, grifo do autor). Isso significa que
cada enunciado7 proferido, seja ele uma fala cotidiana ou uma gran-
de obra de arte, é sempre um elo numa “[...] corrente ininterrupta
de comunicação sociocultural” (FARACO, 2009, p. 59). Não há,
pois, a ideia de criação ideológica, em qualquer nível ou contexto,
de algo que seja totalmente inaugural, que não se vincule de algum
modo ao que veio antes e ao que virá depois. Essa dialogicidade
inerente a todo enunciado, na verdade, pode ser pensada em três
dimensões (FARACO, 2009, p. 59): a) uma orientação para o já
dito, ao qual de alguma forma responde (para o que veio antes);
b) uma orientação para uma resposta futura esperada (para o que
virá depois); c) uma dialogicidade interna, na medida em que todo
enunciado “[...] é uma articulação de múltiplas vozes sociais” (FA-
RACO, 2009, p. 60), ou seja, todo enunciado faz ecoar, de diversas
maneiras e em diversos graus, fragmentos de discursos alheios.
Dessa forma, podemos pensar também as criações musicais
como permeadas de dialogicidade nos mesmos três níveis: a) toda
música é sempre uma resposta a outras músicas que vieram antes;
b) de um lado, leva em conta as prováveis respostas (sejam elas
o linguista e músico Valentin N. Voloshinov, um dos seus principais coautores. Esse grupo se reuniu
regularmente em Nevel e depois em Vitebsk entre 1919 e 1929 (FARACO, 2009, p. 13).
7
A noção de enunciado, é importante frisar, também transcende o enunciado verbal e pode ser estendida
aos enunciados (ou obras) artísticos.

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favoráveis ou contrárias) no momento mesmo de sua elaboração


e, de outro lado, certamente receberá em algum momento uma ou
mais respostas (musicais ou não); e c) por mais original e inovadora
que seja, sempre ressoa, internamente no seu modo de construção,
enunciados musicais já usados anteriormente.
As relações dialógicas são, em síntese, para Bakhtin e seu
Círculo, relações de sentido que se estabelecem entre enunciados,
quer os seus enunciadores tenham consciência disto ou não (muitas
vezes uma obra artística faz ressoar outras sem que o autor tenha
tido a intenção ou mesmo se dado conta dessas relações). O fato de
um enunciado desconhecer seus interlocutores anteriores e poste-
riores não invalida, porém, o intercâmbio sociocultural que se esta-
belece, já que o ponto crucial aqui é o plano do sentido:
Dois enunciados, separados um do outro no espaço e no
tempo e que nada sabem um do outro, revelam-se em re-
lação dialógica mediante uma confrontação do sentido,
desde que haja alguma convergência de sentido (ainda que
seja algo insignificante em comum no tema, no ponto de
vista etc.) (BAKHTIN, 2000, p. 354).
É interessante, também, nessa questão da dialogia inerente
aos sistemas simbólicos, que não apenas os processos de criação,
mas também os processos de apropriação ou leitura do universo
da cultura acontecem a partir dessas mesmas relações dialógicas.
Para entender essa questão, vamos retomar a distinção que Bakhtin
(2000, p. 329) estabelece entre “texto” e “fenômeno natural”. Se-
gundo esse autor, o conceito de texto é tomado num sentido am-
plo de “conjunto coerente de signos” e, portanto, toda a esfera das
ciências humanas e artes de algum modo sempre lida com textos.
Os textos, por envolverem signos socialmente compartilhados, ne-
cessitam serem interpretados, compreendidos, e implicam sempre
uma relação dialógica entre pelo menos dois sujeitos. Já os fenôme-
nos naturais têm uma existência objetal, independente dos sujeitos,
e necessitam apenas ser descritos. A descrição é de natureza mono-
lógica. Nas palavras do autor:
Um fenômeno natural não comporta uma “significação”,
apenas os signos (inclusive as palavras) têm uma signifi-
cação. É por isso que qualquer estudo, seja qual for o pro-

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cedimento adotado, começa necessariamente pela compre-


ensão (BAKHTIN, 2000, p. 341).
Nesse sentido, podemos pensar que a música, enquanto um
“texto”, um conjunto de signos, não pode ser confundida com uma
evidência, como algo que existe por si mesmo, independente de
qualquer consciência e que pode apenas ser monologicamente des-
crito8. Ao contrário, a música tem uma existência totalmente dia-
lógica e sua apreensão significativa passa necessariamente pela
compreensão da rede de significações que lhe perpassa em todas
as direções, no tempo e no espaço. E essa rede – é importante res-
saltar – envolve tanto as relações dialógicas internas (estruturais)
aos enunciados musicais, quanto contextuais (culturais, históricas);
tanto as relações com o universo da música e da arte, quanto com
outras esferas da cultura.
Se a escuta/apreensão/apreciação musical passa necessaria-
mente por um processo interpretativo dialógico, podemos concluir
que não basta apenas identificar/reconhecer elementos, como pro-
põe a gramática musical, mas é preciso buscar relações de sentido,
construir caminhos, puxar fios que possam fazer conexões, enfim,
colocar as músicas em diálogo. O conhecimento teórico musical,
portanto, embora nos ajude no reconhecimento dos aspectos reite-
ráveis e invariáveis (que Bakhtin, 2000, vai denominar “sinais”),
pouco pode nos dizer sobre a criação artístico-musical (que lida
com “signos”, que precisam ser interpretados) e muitas vezes nos
leva a buscar nas músicas apenas aquilo que já sabemos estar lá:
É mais fácil estudar, no criado, o que é dado (por exem-
plo: a língua, os elementos já prontos, e de um modo mais
geral, os elementos de conjunto de uma visão de mundo,
os fenômenos refletidos na realidade, etc.) do que estudar
o criado. Toda a análise científica se resume, no mais das
vezes, a descobrir o que já estava dado, já presente e pronto
antes da obra (o preexistente que o artista aproveitou e não
o que criou) (BAKHTIN, 2000, p. 349, grifos do autor).
8
Muito embora um fenômeno natural (mesmo um produto ou um instrumento) possa, em certas
condições, se tornar um signo, como Volochinov exemplifica com a foice e o martelo na União Soviética
(instrumentos) ou o pão e o vinho como símbolos religiosos (produtos), estes transformam-se em signos
e acabam, além de existirem como parte de uma realidade tais como o fazem os fenômenos naturais,
por refletir e refratar uma outra realidade, tais como o fazem os textos (BAKHTIN; VOLOCHÍNOV,
2009, p. 32).

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Portanto, a nossa hipótese sobre o equívoco da evidência


musical pode ser melhor explicada quando se denuncia a confusão
entre a dimensão concreta e material da música, que todo signo
também possui, e a dimensão do sinal que não remete a nenhuma
outra realidade fora dele mesmo. Nessa confusão, o signo musical
passa a ser equivocadamente considerado como portador apenas da
dimensão sinalética (a concreticidade identificável), tendo excluí-
da sua mais importante característica: a de ser também um signo,
que remete sempre a uma outra realidade.
Como podemos perceber, trabalhar no campo do sentido,
perseguir as redes de significações engendradas pelas músicas,
não é uma atividade “neutra”, mas, muito pelo contrário, envolve
necessariamente uma relação valorativa (ou “axiológica”, palavra
utilizada pelo Círculo). Os signos, quando pensados apenas em re-
lação ao sistema teórico da música, não possuem qualquer carga
valorativa e, em tese, podem assumir qualquer papel ideológico.
Entretanto, quando inseridos numa criação musical, esses mesmos
signos adquirem especificidades axiológicas únicas, que somente
naquele contexto específico seriam daquela forma. O juízo de va-
lor9, desse modo, é inerente a qualquer processo de escuta musical
dialogicamente orientado.
Além do componente valorativo, Bakhtin e Volochínov
(2002) dão especial atenção, na questão da compreensão de um
enunciado, ao seu aspecto ativo e responsivo. O processo de com-
preensão/interpretação de um conjunto de signos organizado leva,
necessariamente, a uma resposta por parte do interlocutor:
Compreender a enunciação de outrem significa orientar-
se em relação a ela, encontrar o seu lugar adequado no
contexto correspondente. A cada palavra da enunciação
que estamos em processo de compreender, fazemos
corresponder uma série de palavras nossas, formando uma
réplica. Quanto mais numerosas e substanciais forem,
mais profunda e real é a nossa compreensão (BAKHTIN;
VOLOCHÍNOV, 2002, p. 132).
9
É importante esclarecer que “juízo de valor” aqui não diz respeito, como no senso comum, a uma
avaliação absoluta do tipo: “esta música é boa ou ruim”, mas ao valor que os signos assumem nas
músicas; ao valor que assumem as músicas em relação a outras músicas e ao contexto etc. Portanto, aqui
não se considera o juízo de valor em abstrato, mas por meio das possíveis relações que se estabelecem
entre eventos, participantes e campo sociocultural.

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Nesse sentido, o processo de compreensão de um enunciado


é sempre ativo, embora muitas vezes esse ativismo não implique
necessariamente algum tipo de movimento. Assim, em se tratando
de educação musical, não faz sentido privilegiar o “fazer” (no sen-
tido de tocar ou cantar, por exemplo) em detrimento do “apreciar”,
já que ambos envolvem uma postura ativa do sujeito. A ênfase no
“fazer”, a nosso ver, reduz o ativismo presente em todo contato sig-
nificativo a apenas um tipo de “ação” específica (tocar ou cantar),
excluindo todas as outras possíveis (desenhar, dançar, rir, se emo-
cionar, se concentrar, silenciar etc.).
É importante assinalar ainda, que, de acordo com esse ponto
de vista, a resposta pode ser tanto imediata quanto retardada, tanto
na mesma linguagem do enunciado quanto em qualquer outra for-
ma de linguagem. O importante é que o interlocutor, em resposta a
uma elaboração simbólica, seja capaz de algum tipo de elaboração
também simbólica10. No caso de uma escuta musical ativa, esse as-
pecto responsivo pode se dar, por exemplo, como veremos mais
adiante, por meio da linguagem verbal.

3.  MÚSICA E SISTEMAS SIMBÓLICOS

Para aprofundar um pouco mais essa concepção, cuja com-


preensão, para nós, é essencial, devemos enfatizar a grande impor-
tância dos sistemas simbólicos na existência “civilizada” humana.
Tal como nos afirma Medviédev, “a consciência humana não toca
a existência diretamente, mas através do mundo ideológico que a
rodeia” (MEDVIÉDEV, 2012, p. 56). Segundo o autor, participante
ativo do Círculo de Bakhtin, as pessoas estão rodeadas de “fenô-
menos ideológicos”, de “objetos-signos”, dos mais diversos tipos
e categorias,
[...] de palavras realizadas nas suas mais diversas formas,
pronunciadas, escritas e outras; de afirmações científicas;
de símbolos e crenças religiosas; de obras de arte, e assim
por diante. Tudo isso em seu conjunto constitui o meio ide-

Uma reação puramente fisiológica ou emotiva, nesse sentido, embora possa ser o primeiro passo para
10

uma posterior elaboração simbólica, o embrião de uma atitude responsiva, por si só ainda não constitui
uma compreensão ativa.

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ológico que envolve o homem por todos os lados em um


círculo denso (MEDVIÉDEV, 2012, p. 56).
Por fenômenos ideológicos o Círculo de Bakhtin entende
todos os fenômenos significativos, ou seja, tudo aquilo que exi-
ge interpretação e adquire valor social. E os modos de interpreta-
ção e valoração surgem de forma coletiva, das interações entre as
pessoas, das formas compartilhadas de atribuição e de apropriação
de sentidos. Desse modo, podemos considerar o conceito de fenô-
menos ideológicos do Círculo muito próximos à ideia da cultura,
pelo menos no que diz respeito aos autores dos chamados estudos
culturais.
É Stuart Hall que chamamos para nos esclarecer melhor essa
proximidade de noções:
Os seres humanos são seres interpretativos, instituidores
de sentido. A ação social é significativa tanto para aqueles
que a praticam quanto para os que a observam: não em
si mesma mas em razão dos muitos e variados sistemas
de significado que os seres humanos utilizam para definir
o que significam as coisas e para codificar, organizar e
regular sua conduta uns em relação aos outros. Estes siste-
mas ou códigos de significado dão sentido às nossas ações.
Eles nos permitem interpretar significativamente as ações
alheias. Tomados em seu conjunto, eles constituem nossas
“culturas”. Contribuem para assegurar que toda ação so-
cial é “cultural”, que todas as práticas sociais expressam
ou comunicam um significado e, neste sentido, são prá-
ticas de significação (HALL, 1997, p. 16, grifos nossos).
É, portanto, nessa dimensão da significação – ou na dimen-
são da cultura, como escreve Hall, ou ideológica como definem os
pensadores do Círculo – que mergulhamos os eventos musicais, as
músicas desde seus processos de concepção e construção até os de
recepção e fruição. Ora, mas é nesse mesmo caldo cultural de sig-
nificação que nós mesmos nos encontramos mergulhados, portanto
é a partir de eixos de significação e valor (semântico-axiológicos)
que organizamos nossa compreensão.
As dificuldades se encontram no fato aparentemente simples
de que nem sempre partilhamos os mesmos eixos semântico-
axiológicos. Segundo nossos autores, que prezam pela diversidade

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cultural, esses eixos de interpretação do mundo se originam, e


de certa forma equivalem, a certos campos de atividades sociais.
Volochinov explicita esse fato quando aborda o princípio social da
constituição das consciências individuais:
Não basta colocar face a face dois homo sapiens quaisquer
para que os signos se constituam. É fundamental que esses
dois indivíduos estejam socialmente organizados, que for-
mem um grupo (uma unidade social): só assim um sistema
de signos pode constituir-se. A consciência individual não
só nada pode explicar, mas, ao contrário, deve ela própria
ser explicada a partir do meio ideológico e social. A cons-
ciência individual é um fato socioideológico (BAKHTIN;
VOLOCHÍNOV, 2009, p. 34-35, grifos do autor).
Até aqui já deu para o leitor perceber o caminho que estamos
propondo. Tentamos desconstruir inicialmente a concepção, a nos-
so ver equivocada, que coloca a música (e todos os outros sistemas
de signos) como evidência, concreticidade sonora para a qual basta
sermos “humanos” para podermos desfrutá-la “adequadamente”.
Essa forma de naturalização de uma construção cultural resulta fre-
quentemente em exclusão, distinção, desclassificação, diminuição
daquelas pessoas que não demonstram portar as ferramentas-chave
para a decodificação de certas obras musicais: faltam-lhes palavras
adequadas para descrever ou valorizar as músicas; percepção dis-
criminativa para identificar peculiaridades; habilidades para iden-
tificar filiações e derivações das grandes tendências artísticas às
quais podem estar atreladas, ou estar em oposição às músicas ouvi-
das; conhecimento de artistas, obras ou tendências consagradas que
servem de marcos ou modelos para apreciação etc.
Nesse sentido, Pierre Bourdieu oferece uma larga discus-
são, apoiada em grandes pesquisas empíricas (BOURDIEU, 2007;
BOURDIEU; DARBEL, 2003), sobre os modos cruéis de distinção
de gostos que os estratos dominantes (ou “cultos”) da sociedade –
que de certa forma elaboram e divulgam os cânones artísticos mais
“legítimos” do ponto de vista da distinção de classe – praticam com
os gostos considerados “banais”, ou mesmo com as manifestações
artísticas consideradas “vulgares”.

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De certo modo, a desconstrução da ideia de evidência da


música também poderia servir para argumentar contra a primazia
do conhecimento da “gramática” musical sobre quaisquer outros
tipos de conhecimento musical. Isso porque a ideia da existência
de vários eixos de significação e valor derivados de variados cam-
pos de atuação social – que servem como formas de interpretação
do mundo e, o que nos interessa mais de perto, como formas de
apropriação das músicas – abre as portas para tomarmos consciên-
cia da existência também de várias formas distintas de concepção,
percepção e produção de músicas. Formas estas que podem tanto
se aparentarem, se fundirem ou se derivarem quanto podem se dis-
tanciarem, se repelirem ou se anularem mutuamente. O mecanismo
de trocas simbólicas é sempre dinâmico.

4.  AUDIÇÕES DIALÓGICAS

Cônscios desse dinamismo no mundo das trocas simbólicas


e embasados na filosofia do Círculo de Bakhtin, elaboramos uma
proposta de apreciação (que preferimos denominar “escuta”) que
visa fazer com que pessoas, mesmo sem nenhuma formação musi-
cal, desenvolvam uma compreensão ativa das músicas; sejam capa-
zes de responder ao universo musical de uma maneira que as ajude
a ampliar suas possibilidades de escuta.
Essa proposta de escuta musical para não músicos, denomi-
nada “Conversas sobre Música”, surgiu no início dos anos 2000,
quando ambos cursávamos o doutorado na Faculdade de Educação
da Unicamp. Inicialmente um pequeno ciclo de palestras voltadas
para a comunidade da FE/Unicamp, o projeto foi se ampliando e
hoje consiste em um programa de rádio, veiculado pela Web Radio
Unicamp11, e dois cursos de extensão, um realizado no Departamen-
to de Música do Instituto de Artes da Unicamp e outro no Programa
UniversIDADE12, também na Unicamp, e voltado especificamente
para a terceira idade.

11
Disponível em: <http://www.rtv.unicamp.br/?audio_cat=conversas-sobre-musica>. Acesso em: 5 set.
2016.
12
Para maior informação sobre o programa, acesse o site disponível em: <http://www.programa-
universidade.unicamp.br/>. Acesso em: 5 set. 2016.

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Fundamentadas no amplo conceito bakhtiniano de dialogia,


as nossas conversas sobre música têm na significação seu princi-
pal eixo condutor e, nesse sentido, nos aproximamos de algumas
outras propostas de apreciação musical que também entendem que
uma escuta mais consciente passa necessariamente pelo adentra-
mento no campo do sentido, tomado em suas várias dimensões13.
Ao mesmo tempo, distanciamo-nos de outras abordagens que se
concentram em aspectos exclusivamente contextuais14 ou mesmo
técnicos15. Em termos bakhtinianos, buscamos uma proposta de na-
tureza “centrífuga”, que fuja das verdades únicas e leve em conta
as múltiplas possibilidades de interpretação das músicas, evitando
a todo o custo atitudes “centrípetas”, que visam “[...] impor uma
das verdades sociais (a sua) como a verdade; [...] monologizar (dar
a última palavra); tornar o signo monovalente (deter a dispersão
semântica); finalizar o diálogo” (FARACO, 2009, p. 53)16.
Nosso objetivo principal nos cursos é levar os alunos a uma
audição musical que privilegie aspectos estéticos, ou seja, procura-
mos fazer com que eles, partindo de suas percepções primeiras (ge-
ralmente de natureza mais emotiva ou marcadas por referências a
universos simbólicos não musicais: “música forte, emoções fortes”,
“o sentimento de retorno às origens”, “emociona muito porque fala
do amor e do tempo”17), possam criar relações entre essas percep-
ções e a realidade concreta sonora das músicas. Esse movimento,
porém – e talvez essa seja uma das nossas maiores dificuldades –,
exige certo grau de afastamento em relação às músicas, que nem
sempre é possível para todos. Nosso público é constituído, em sua
grande maioria, por verdadeiros “amantes da música”, pessoas que
13
É o caso, por exemplo, de Stefani (1987, p. 18) que propõe uma abordagem da escuta musical do
ponto de vista da comunicação social, reconhecendo que “[...] a música pode ser entendida em muitos
níveis [...]: códigos gerais de percepção, práticas sociais, técnicas musicais, estilo, obra”. Ou ainda
Copland (2013), que, adotando o ponto de vista do compositor e privilegiando o conhecimento musical,
propõe três planos de audição (sensível, expressivo e puramente musical) e entende que, embora as
palavras nem sempre sejam adequadas, a busca por significados de algum modo deve guiar a audição.
14
Como, por exemplo, a proposta Miranda e Justus (2003).
15
Como, por exemplo, em Maron (2003).
16
Assinala-se que sobretudo as propostas de caráter mais formalista, por se aterem a aspectos
gramaticais, acabam caindo numa postura totalmente monológica, pois consideram os signos musicais
apenas em relação ao sistema, não levando em conta, por exemplo, o contexto da audição (quem ouve,
onde, quando, com que propósito etc.).
17
Algumas respostas dos nossos alunos a um questionário respondido no início do curso. Pedimos que
nomeassem uma música de preferência e depois explicassem o porquê da preferência.

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vivem-na intensamente, dedicam considerável tempo de suas vidas


a ela18. O olhar estético, entretanto, pressupõe uma visão de fora –
para a qual Bakhtin (2010, p. 132) usa o termo “exotopia”. A vida é
sempre inacabada, e tudo o que flui nela também. Retirar algo que
faz parte do fluxo da vida das pessoas, como é o caso da música, e
as obrigar a verem esse elemento de fora nem sempre é tranquilo.
Para algumas pessoas exige um tempo maior, para outras não chega
a ser possível, pelo menos num curso de curta duração como são os
nossos (temos cursos de 12 e 24 horas).
Buscar essa relação com o vivido, entretanto, para nós não
é apenas uma estratégia didática para chegar a um conhecimento
musical propriamente dito, mas concordamos com Geraldi (2010,
p. 95), quando diz que ela “[...] é a base da aprendizagem”. Assim,
as respostas primeiras que nossos alunos trazem (que podem ser
impressões, associações, lembranças, estranhamentos, emoções di-
versas etc.) são as camadas de sentido sobre as quais tentaremos
fazer com que eles construam os significados estético-musicais.
Algumas situações ocorridas nos cursos deixarão mais clara essa
questão.
Uma música que costumamos colocar nas aulas é o 1º
Movimento da Suíte Peer Gynt nº 119, conhecido como “Amanhe-
cer”, de Edward Grieg. A remissão à natureza é uma constante nas
opiniões de nossos alunos sobre essa música, já tendo ocorrido em
vários contextos e públicos diversos. Entre as remissões mais co-
muns, costumam aparecer: “mata”; “vegetação”; “natureza”; “bor-
boletas”; “flores”; “paisagem” e mesmo o “amanhecer” sugerido
pelo autor. São associações, num primeiro momento, aparentemen-
te ingênuas, mas, quando os alunos são instigados a falarem sobre
quais elementos sonoros lhes levaram a tais associações, começa-
mos a perceber que muitos aspectos musicais mais específicos fo-
ram percebidos, tais como o tema principal, que passa por vários
instrumentos, o movimento crescente da peça em direção a um clí-
max na entrada do tema principal nas cordas, o movimento de de-
saceleração da segunda parte da peça etc. As paisagens imaginadas
18
Nossos dados parciais apontam: nos 34 questionários devolvidos, 28 dizem ouvir música todos os
dias, 2 quase todos os dias e apenas 4 esporadicamente (de 1 a 3 vezes na semana).
19
A música pode ser ouvida na página disponível em: <https://www.youtube.com/
watch?v=kzTQ9fjforY>. Acesso em: 5 set. 2016.

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por eles muitas vezes estavam acompanhando de perto o discurso


musical, só que de uma outra forma, a partir de uma linguagem de
caráter mais visual.
Um caso bastante interessante em relação a isso ocorreu em
uma aula quando da audição da Variação XVIII das “Variações para
piano e orquestra sobre um tema de Paganini”, de Rachmaninov20.
Uma aluna, imediatamente após a apresentação da peça, disse ter
ouvido “o ciclo da vida”. Convidada a desenvolver essa ideia, a
aluna explicou que “a vida começa aos poucos, vão acontecendo
cada vez mais coisas, tem um ponto alto e depois vai acabando”.
Com efeito, a estrutura da peça reflete de modo bastante próximo
essa fala, uma vez que o tema se inicia de modo suave no piano,
passa para as cordas com um pouco mais de intensidade, tem um
ponto culminante em um tutti da orquestra e depois a peça vai se
recolhendo (típica “narrativa romântica”21). Vemos, portanto, que,
embora a aluna não dispusesse de vocabulário musical adequado
para expressar o que havia ouvido e tivesse que lançar mão de uma
metáfora, sua percepção estética foi bastante precisa e ficou muito
fácil passar de uma estrutura (existencial, por assim dizer) para ou-
tra (musical).
Trabalhar numa perspectiva de diálogo, de troca de ideias,
de aceitação de modos de audição divergentes dos nossos implica,
entre outras coisas, permitir que o inesperado seja considerado e, se
possível, transformado em conhecimento musical. Embora nossas
aulas tenham temas específicos e escolhamos as músicas visando
a algum conhecimento predeterminado, nem sempre o que acon-
tece é o que esperávamos. Certa ocasião, estávamos trabalhando a
ideia de contraste e ouvimos a “Dança” da Suíte Carmina Burana,
de Carl Orff22. Nossa intenção era que os alunos percebessem a
estrutura ABA da peça, na qual a parte B é bastante contrastante
em termos de andamento e densidade instrumental (o trecho é toca-
do apenas por uma flauta transversal e tímpanos). Aconteceu, po-
20
A música pode ser ouvida na página disponível em: <https://www.youtube.com/
watch?v=ETVwI1VMszI>. Acesso em: 5 set. 2016.
21
De acordo com, Agawu (2012, p. 162), é possível falar em uma “[...] curva narrativa romântica que
começa em um nível modesto, se eleva a um clímax e chega rapidamente a um desfecho” (tradução
livre).
22
A música pode ser ouvida na página disponível em: <https://www.youtube.com/
watch?v=OjhzYjPaqUU>. Acesso em: 5 set. 2016.

Educação, Batatais, v. 6, n. 2, p. 143-161, jul./dez. 2016


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rém, que alguns alunos consideraram a pequena introdução da peça


como uma parte. Com efeito, embora muito rápida, a introdução é
bastante contrastante em relação ao tema principal, mas nossos ou-
vidos de músicos viciados em ouvir formas esperadas (o dado) se
recusaram a ouvir essa introdução tão pequena e a ignoraram (não
demos importância ao criado). Já os alunos, não dispondo de um
conhecimento prévio sobre formas, estiveram atentos aos contras-
tes e seccionaram a peça em quatro partes. Além disso, perceberam
que a repetição da parte A (o tema principal que, para alguns, era
a parte B) foi mais vibrante, acrescida de maior peso instrumental
dos metais e percussão. Considerando que trabalhamos sob o ponto
de vista do ouvinte (e não da composição) e, desse ponto de vista,
a fragmentação do discurso nem sempre coincide com a gramática
(AGAWU, 2012), a audição dos alunos, embora inesperada, foi ex-
tremamente pertinente. Dessa forma, os comentários não esperados
se transformaram em uma boa ocasião para falar de diversos assun-
tos que não estavam previstos, como a noções de introdução, coda
e variação. É importante assinalar que esse aproveitamento dos
imprevistos em sala de aula, que Geraldi (2010) denomina “aula
como acontecimento” (em oposição à ideia de aula como “repeti-
ção do mesmo”), faz parte de uma abordagem dialógica do ensino,
em qualquer instância. Por mais planejado que esteja um conteúdo,
quando os alunos têm voz ativa e são efetivamente ouvidos, esse
planejamento costuma sofrer constantes atualizações no decorrer
das aulas.
Algumas vezes, porém, esse “inesperado” fica aquém das ex-
pectativas, e temos aprendido a lidar com isso também. Em várias
ocasiões vivenciadas em aula, nas quais tentávamos, por exemplo,
levar a discussão para os efeitos sonoros produzidos por pequenas
mudanças em uma mesma música, só recebíamos como resposta:
“a segunda é mais lenta”; “entrou um instrumento que não tinha”;
“primeiro piano, depois violão”. Observa-se, nesse tipo de respos-
ta, que as pessoas não conseguiram sair do nível sinalético (per-
cepção de sinais) e construir algum tipo de interpretação para essas
mudanças (não conseguiram atingir os signos musicais presentes
na obra)23. O plano da sinalidade, é importante assinalar, embora
23
Para uma discussão muito interessante e aprofundada sobre a transformação de um conteúdo
gramatical em conteúdo significativo no ensino da língua russa, que, para nós, tem homologia com o
ensino da música, ver Bakhtin (2013).

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insuficiente, é também parte da significação (FARACO, 2009) e


muitas vezes a única forma de iniciar um contato com a obra. A fun-
ção do professor, nesse sentido, é tentar fazer com que esse plano
seja superado por uma compreensão significativa efetiva.

5.  CONSIDERAÇÕES FINAIS

Pretendemos, com estas reflexões, de alguma forma deslocar


a questão da escuta musical daquele lugar na qual comumente ela é
colocada: a de coadjuvante da teoria e da prática na educação musi-
cal. Tentamos enfatizar a importância que a escuta pode adquirir sob
o ponto de vista da apropriação e da atribuição de sentidos às músi-
cas. Nesse sentido, a escuta pode ser o campo de atividades no qual
é possível estimular ou ativar a atitude responsiva dos participantes
em relação aos enunciados musicais apresentados. Estes funcionam
como disparadores para o estabelecimento inicial de uma rede de
sentidos que cada participante tem a oportunidade de colocar em
funcionamento, tendo como ponto de convergência a compreensão
ativa musical. Ainda que se possa considerar a fruição musical (e
artística) como um evento eminentemente “subjetivo”, lembramos
que, sob o ponto de vista da dialogia bakhtiniana, o “subjetivo” se
apresenta como um matiz individual, uma configuração particular
dos valores coletivos que circulam nos vários mercados de trocas
simbólicas pelas quais cada pessoa trafega. E é por isso que acre-
ditamos que nossas conversas coletivas sobre música têm a pro-
priedade de movimentar as considerações mais individuais sobre
música que cada participante traz para os cursos, embora esse mo-
vimento não esteja garantido pela proposta. Contudo, continuamos
muito atentos às respostas! Sejam elas quais forem.

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