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Os Passos Perdidos

Alejo Carpentier

Digitalização e Arranjo

Agostinho Costa

os Passos
PerdIdos

Alejo Carpentier

Título original: Los Pasos Perdidos

Tradução de António Santos

Índice

O autor.....................9/0
Capítulo Primeiro..........11/0
Capítulo Segundo...........37/1
Capítulo Terceiro..........67
Capítulo Quarto...........131
Capítulo Quinto...........155
Capítulo Sexto............195
Nota......................225

O AUTOR

Alejo Carpentier nasceu em Havana, em 1904. O pai era


um
arquitecto francês que chegara a Cuba, dois anos antes. Aos
17
anos, abandonou os seus estudos de Arquitectura, para se
dedicar ao jornalismo. Depois de dirigir a revista Carteles
e
de ter colaborado na fundação de outra, Avance, foi preso
por
motivos políticos, durante a ditadura de Machado. Na
prisão,
começou a escrever o seu primeiro livro, Ecué
Yamba-O, que será publicado em 1933. Entretanto, em 1928,
conseguiu embarcar clandestinamente para França, aí vivendo
até ao início da Segunda Guerra Mundial.
De regresso a Cuba, trabalhou na Rádio. Em 1945,
passou a
viver na Venezuela, voltando novamente a Cuba em 1959, após
o
triunfo da Revolução Cubana, para dirigir a Editora
Nacional e
participar na renovação cultural do seu país. Em 1960, foi
para Paris, na qualidade de adido cultural. Morreu na
capital
francesa em 1980.
Os verdadeiros protagonistas do romance são a paisagem
abrupta, quase primitiva, e as visões de lugares muito
raramente visitados pelo «homem civilizado».
O autor cria assim aquela atmosfera de magia e
sensualidade a que chamou o «real maravilhoso americano»,
atmosfera essa em que se situa a América, como o desafio de
um
Novo Mundo, de uma América entrevista apressadamente por
viajantes e poetas, mas poucas vezes correctamente
apreendida.

CAPÍTULO PRIMEIRO

E os céus que estão sobre a tua cabeça serão


de bronze; e a terra que está debaixo de ti
será de ferro.E tactearás ao meio-dia, como
o cego tacteia na escuridão.

Deuteronómio, 28-23-28

Havia quatro anos e sete meses que eu voltara a ver a


casa de colunas brancas, com o seu frontão ornado
de carrancudas molduras, que lhe dava um ar austero de
palácio de justiça, e agora, perante móveis e velhos trastes
colocados nos mesmos lugares, tinha a quase penosa sensação
de
que o tempo regredira. A mesma cortina cor de vinho, a mesma
gaiola vazia, a mesma roseira a trepar pela parede. Mais
além,
estavam os ulmeiros que eu ajudara a plantar nos dias de
grande euforia, quando todos nós colaborávamos na obra
comum;
junto ao tronco envelhecido, o banco de pedra que fiz
ressoar
como madeira, com o bater dos meus tacões. Por detrás, o
caminho do rio, com suas magnólias anãs, e o gradeamento de
intrincados arabescos à maneira de Nova Orleães. Como na
primeira noite, andei pelo átrio, ouvindo a mesma
ressonância
oca sob os meus passos e atravessei o jardim para chegar
mais
rapidamente aonde se moviam, em grupos, os escravos
marcados a
ferro, as amazonas de saias enroladas em volta do braço e os
soldados feridos, esfarrapados, com ligaduras mal atadas,
aguardando a sua hora no meio de sombras tenebrosas,
fedendo a
betume, a feltros velhos, a suores acumulados nas mesmas
labitas. Saí a tempo da zona iluminada,

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quando o disparo do caçador se fez ouvir e um pássaro tombou


no palco do segundo terço de bambolinas. A crinolina de
minha
mulher voou por cima da minha cabeça, pois encontrava-me
precisamente no local por onde ela entrava em cena,
estorvando-lhe a passagem já de si estreita. Por ser menos
penoso, dirigi-me ao seu camarim, e aí tomei consciência do
tempo: tudo demonstrava claramente que quatro anos e sete
meses não se passavam sem desgastar, desluzir e murchar. As
rendas dos remates estavam ruças; o cetim negro da cena do
baile perdera a bela rigidez que o fizera ranger em cada
reverência, como um revolutear de folhas secas. Até as
paredes
do aposento se tinham deteriorado, por serem sempre tocadas
nos mesmos sítios, mostrando assim as marcas da sua longa
convivência com os cosméticos, as flores retardadas e os
trajes da fantasia. Sentado agora no divã que de verde-mar
passara a verde-cinza, consternava-me pensar quão dura se
tornara, para Ruth, essa prisão de tábuas e artifícios, com
suas pontes volantes, suas teias de cordel, suas árvores
pintadas. Na altura da estreia dessa tragédia da Guerra da
Secessão, quando nos tocou a nós
ajudar o jovem autor, servido por uma companhia recém-saída
de
um teatro experimental, entrevíamos no máximo uma aventura
de
vinte noites. No entanto, atingimos as mil e quinhentas
representações, sem que as personagens, ligadas por
contratos
sempre prorrogáveis, tivessem alguma possibilidade de se
evadir da acção depois que os empresários, utilizando o
generoso ardor da juventude em proveito dos seus grandes
negócios, receberam a obra na sua sociedade. Assim, para
Ruth,
longe de ser uma porta aberta sobre o vasto mundo do Drama -
uma forma de evasão - este teatro era a Ilha do
Diabo. Suas breves fugas, quando se permitia tomar parte em
espectáculos de beneficência, sob o penteado de Porcia ou a
túnica de alguma Ifigénia, não lhe traziam grande
alívio,
pois por debaixo de um vestido diferente os espectadores
procuravam a rotineira crinolina, e na voz que pretendia
ser a
de Antígona, todos encontravam as inflexões de contralto da
Arabela, que agora, no palco aprendia com Booth - numa
situação que os críticos tinham por prodigiosamente
inteligente - a pronunciar correctamente o latim, repetindo
a
frase: Sic semper tyrannis. Seria necessário, no entanto,
ter
o génio de uma trágica incomparável, para se libertar
desse parasita que se alimentava do seu sangue; daquela
hóspede de seu próprio corpo, incrustada em sua carne
como um mal sem remédio. A vontade de romper com o
contrato não lhe faltava. Porém, essas revoltas pagavam-se,
no
ofício, com um longo
desemprego, e Ruth, que começara a dizer o texto com a idade
de trinta anos, via-se chegada aos trinta e cinco,

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repetindo os mesmos gestos, as mesmas palavras, todas as


noites da semana, todas as tardes de domingo, sábados e dias
feriados, sem contar com os espectáculos das digressões
estivais. O sucesso da obra aniquilava lentamente os seus
intérpretes, que iam envelhecendo à vista do público de
dentro
de suas roupas imutáveis, e quando um deles morrera dum
enfarte, certa noite, pouco depois de cair o pano, a
companhia, reunida no cemitério na manhã
seguinte, exibira - talvez sem se dar conta - uma aparatosa
roupa de luto que mais fazia lembrar um daguerreótipo. Cada
vez mais desgostosa, menos esperançada em atingir uma
carreira
que, apesar de tudo, amava por profundo instinto, minha
mulher
deixava-se arrastar pelo automatismo do trabalho imposto,
como
eu me deixava arrastar pelo automatismo da minha profissão.
Dantes, pelo menos, tentava manter a sua forma por uma
contínua releitura dos grandes papéis que sempre desejara
interpretar. Passava de Norah a Judith, de Medeia a Teza,
com
uma renovada ilusão; porém essa ilusão fora vencida,
finalmente, pela tristeza dos monólogos declamados frente ao
espelho. Na impossibilidade de fazer coincidir normalmente
as
nossas vidas - as horas da actriz não são as do empregado -,
acabámos por dormir cada um em seu lado. Ao domingo, pelo
fim
da manhã, eu costumava
passar uns momentos na sua cama, cumprindo com o que eu
considerava um dever de esposo, sem saber, no entanto, se na
realidade esse meu acto correspondia a um verdadeiro desejo
de
Ruth. Era provável que ela, por sua vez, se julgasse
obrigada
a entregar-se a essa prática física semanal em virtude de
uma
obrigação contraída no momento da assinatura do nosso
contrato
matrimonial. Eu, por meu lado, agia impulsionado pela ideia
de
que não devia ignorar a possibilidade de uma necessidade que
me era dado satisfazer, calando assim, por uma semana,
certos
escrúpulos de consciência. O certo era que esse amplexo,
ainda
que maquinal, voltara a apertar, uma vez mais, os laços
frouxos pela divergência das nossas actividades. O calor do
corpo restabelecia uma certa intimidade, que era como um
breve
regresso ao que fora nos primeiros tempos a nossa casa.
Regávamos o gerânio esquecido desde o domingo anterior;
mudávamos um quadro de lugar; fazíamos as contas dos gastos
domésticos. Porém os sinos de um carrilhão
vizinho advertiam-nos de que a hora da reclusão era
chegada. E
ao deixar minha mulher no palco, ao princípio da tarde,
tinha
a impressão de a devolver a uma prisão onde cumprisse uma
condenação perpétua. Ouvia-se o disparo, o falso pássaro
tombava do segundo terço de bambolinas, e dava-se por
terminado o Convívio do Sétimo Dia.

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Hoje, no entanto, alterara-se o preceito dominical, por


culpa daquele soporífero ingerido de madrugada para
conseguir
um
rápido sono - que não me chegava como dantes, quando vendava
os olhos, a conselho de Mouche. Ao despertar, dei-me conta
que
minha mulher tinha partido, e a confusão de roupas
meio-saídas
das gavetas da cómoda, os tubos de maquilhagem atirados para
um canto, as caixas de pó-de-arroz e os frascos de perfume
abandonados por toda a parte, denunciavam uma inesperada
viagem. Ruth regressava, agora, do palco, acompanhada por um
rumor de aplausos, desatando pressurosamente os colchetes de
seu corpete. Fechou a porta com um coice que, de tanto se
repetir, desgastara a madeira, e a crinolina, lançada por
sobre a sua cabeça,
esparramou-se na alcatifa de uma ponta à outra. Ao
libertar-se
dessas rendas, seu branco corpo causou-me uma agradável
revelação, e já me aproximava para o acariciar, quando
sobre a
sua nudez caiu um veludo que tinha o odor dos retalhos que
minha mãe guardava, na minha infância, nas profundezas da
sua
arca de mogno. Uma onda de cólera subiu-me à cabeça,
contra o estúpido papel que sempre se interpunha entre as
nossas pessoas como a espada do anjo das hagiografias;
contra
aquele drama que dividira a nossa casa, arrastando-me para a
outra - aquela cujas paredes se adornavam de símbolos
astrais
-, onde o meu desejo encontrava sempre um espírito propício
ao
abraço. E fora para favorecer essa carreira nos seus
difíceis
começos, para ver feliz aquela que então muito amava, que
dei
um rumo diferente à minha vida,
procurando a segurança material no ofício de que era
escravo,
assim como ela do seu! Agora, de costas para mim, Ruth
falava-me através do espelho, enquanto manchava o seu
inquieto
rosto com as cores gordurosas da maquilhagem: explicava-me
que,
depois da representação, a companhia empreenderia, de
seguida, uma digressão à outra costa do país e que por
essa razão trouxera as suas malas para o teatro.
Perguntou-me
distraidamente pelo filme apresentado na véspera. Ia
contar-lhe do êxito alcançado, lembrando-lhe que o fim
desse trabalho significava o começo das minhas férias,
quando
bateram à porta. Ruth pôs-se de pé, e eu vi-me perante quem,
uma vez mais, deixava de ser minha mulher para se
transformar em protagonista; prendeu uma rosa artificial à
cintura, e, com um ligeiro gesto de desculpa, encaminhou-se
para o palco, cujo pano à italiana acabava de abrir-se
levantando no ar um cheiro a poeira e a madeiras velhas.
Entretanto voltou-se para mim, num aceno de despedida, e
tomou
a vereda das magnólias anãs... Não me senti com
coragem de esperar pelo intervalo seguinte, em que o
veludo seria trocado pelo cetim, e uma nova

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camada de cosméticos se espalharia sobre a anterior.


Regressei
a nossa casa, onde a desordem da partida pressurosa revelava
ainda a presença da ausente. O peso de sua cabeça
imprimira-se
sobre a almofada; havia, na mesa de cabeceira, um copo com
água meio bebido, com um precipitado de gotas verdes, e um
livro aberto num fim de capítulo. Minha mão podia sentir a
mancha ainda
húmida de uma loção derramada. Uma folha de agenda, que eu
não vira quando entrara no quarto anteriormente,
informava-me
da inesperada viagem: «Beijos. Ruth. P. S. Há uma garrafa de
Xerês na secretária». Senti uma terrível sensação de
solidão.
Era a primeira vez, em onze meses, que me via sozinho, fora
da
cama, sem uma tarefa a cumprir no momento, sem ter de correr
para a rua com medo de chegar atrasado a algum sítio. Estava
longe do aturdimento e da confusão
dos estúdios, num silêncio que não era quebrado por músicas
mecânicas nem vozes
amplificadas. Nada
me afligia e, talvez por isso mesmo, sentia-me objecto de
uma
vaga ameaça. Nesse quarto abandonado, onde o perfume
revelava
ainda uma presença, encontrava-me como que desconcertado
pela
possibilidade de dialogar comigo mesmo. Surpreendia-me
falando-me a meia-voz. Novamente deitado, olhando o tecto,
rememorava os últimos anos passados: via-os rolar do Outono
à
Primavera, do vento gelado ao amolecimento do asfalto, sem
ter
o tempo de os viver - sabendo, repentinamente, pelos
anúncios
de um restaurante nocturno, do regresso dos patos selvagens,
do bom estado das ostras, ou do reaparecimento das
castanhas.
Sabia, às vezes, também, da passagem das estações pelos
sinos
de papel
vermelho em exposição nas vitrinas das lojas, ou pela
chegada
de camiões carregados de pinheiros cujo perfume deixava a
rua
como que transfigurada durante uns segundos. Havia enormes
lacunas de semanas e semanas na crónica da minha vida;
períodos que não me deixavam qualquer recordação que
valesse a
pena, alguma
marca de excepcional sensação, alguma emoção duradoira; dias
em que todos os gestos me causavam a obsessiva impressão de
os
ter feito já em circunstâncias idênticas - de me ter sentado
no mesmo recanto, de ter contado a mesma história, olhando o
veleiro aprisionado no cristal de um pesa-papéis. Quando se
festejava o meu aniversário no meio das mesmas caras, nos
mesmos lugares, com a mesma canção repetida em coro,
assaltava-me invariavelmente a ideia de que ele não diferia
do
aniversário anterior a não ser pelo aparecimento de mais uma
vela sobre um bolo cujo gosto era igual ao precedente.
Subindo
e descendo a encosta dos dias, com a mesma pedra aos ombros,
sustinha-me por meio de um impulso adquirido à força de
paroxismos - impulso esse que

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cederia mais tarde ou mais cedo, a uma data que talvez


figurasse no calendário do ano em curso. Mas evadir-me
disso,
no mundo que o destino me reservara, era tão impossível como
tentar reviver, na época actual, certas gestas santas ou
heróicas. Caíramos na era do Homem-Vespa, do Homem-Nada,
onde
as almas não se vendiam mais ao Diabo, mas ao Contabilista
ou
ao Carcereiro. Compreendendo que toda a revolta era vã, após
um desenraizamento que me fez viver duas adolescências - a
que
ficava do outro lado do mar e a que aqui se encerrara - não
via onde encontrar alguma liberdade fora da desordem das
minhas noites, em que tudo era um bom pretexto para me
entregar aos mais reiterados excessos. Minha alma diurna
estava vendida ao Contabilista - pensava eu, escarnecendo de
mim próprio -; mas o Contabilista ignorava que, de noite, eu
empreendia estranhas viagens pelos meandros de uma cidade
invisível para ele, cidade dentro da cidade, com moradas
para
esquecer o dia, como o Tienusberg e a Casa das Constelações,
quando um vicioso desejo, avivado pelo álcool, não me levava
aos secretos apartamentos, onde o nome se perde ao entrarmos
lá. Subjugado à minha técnica, entre relógios, cronógrafos,
metrónomos, em salas sem janelas, revestidas de feltros e
matérias isolantes, sempre iluminadas com luz artificial,
procurava, instintivamente, quando me encontrava todas as
tardes na rua já anoitecida, os prazeres que me faziam
esquecer a passagem das horas. De costas para os relógios,
bebia alegremente, até cair de borco ao pé de um
despertador,
invadido por um sono que eu
procurava adensar colocando sobre os olhos uma mascarilha
negra que me daria, adormecido, um ar de Fantomas em
repouso... Esta cómica imagem pôs-me de bom humor. Emborquei
um grande copo de Xerês, decidido a aturdir a voz da razão
que
se levantava na minha consciência; tendo recuperado, com
este
vinho, o calor que o álcool me comunicara na véspera,
pus-me à
janela do quarto de Ruth, cujos perfumes
começavam a recuar perante um persistente odor de
acetona. Depois dos cabelos grisalhos entrevistos ao
despertar, chegara o Verão, escoltado por sirenes de navios
que se respondiam de rio a rio por cima dos edifícios. Lá em
cima, entre as evanescências
de uma bruma morna, eram os píncaros da cidade: as
agulhas sem pátina das igrejas cristãs, a cúpula da
igreja ortodoxa, as grandes clínicas onde ficavam Eminências
Brancas, sob os
travejamentos clássicos, demasiado escorados por causa da
altura, daqueles arquitectos que, em princípios do
século, perderam o sentido dos estilos. Maciça e
silenciosa, a

agência funerária de infinitos corredores parecia uma


réplica
em cinzento - com a sua sinagoga e sala de concertos ao
centro
- da
imensa Maternidade, cuja fachada, despida de qualquer
ornamento, tinha uma fileira de janelas todas iguais, que eu
costumava contar aos domingos, da cama de minha mulher
quando
os temas de conversa escasseavam. Do asfalto das ruas
emanava
um calor azulado de gasolina, atravessado por vapores
químicos, que estagnava em pátios fedendo a detritos, onde
algum cão arquejante se estirava como se fosse um coelho
esfolado, para encontrar canteiros de frescura na mornidão
do
pavimento. O carrilhão martelava uma Avé-Maria. Tive a
insólita curiosidade de saber que santo se festejava nessa
data: 4 de Junho. São Francisco Caracciolodizia a edição
vaticana por onde eu estudara outrora os hinos gregorianos.
Totalmente desconhecido para mim. Procurei o livro da «Vida
dos Santos», impresso em Madrid, que minha mãe me
lera vezes sem conta, no meu país, durante as ditosas
enfermidades da infância que me livraram de frequentar a
escola. Nada constava de Francisco Caracciolo. Mas encontrei
algumas páginas com os seguintes títulos piedosos: Rosa
recebe
visitas do céu; Rosa luta contra o diabo; O fenómeno da
imagem
que sua. E uma guirlanda festonada, em que se misturavam
palavras latinas: Sanctae Rosae Limanae, Virginis, Patronae
principalis totius Americae Latinae. E esta estrofe da
santa,
apaixonadamente dedicada a seu Esposo:

Ai de mim! Ao meu amado


quem o detém?
Tarda, é meio-dia,
e ele que não vem.

Um travo amargo fincou-se-me na garganta ao evocar


através das palavras da minha infância, tantas recordações
acumuladas. Decididamente, estas férias amoleciam-me. Bebi o
que restava do Xerês e fui novamente para a janela. As
crianças que brincavam debaixo dos quatro abetos poeirentos
do
Parque Modelo abandonavam por vezes os seus castelos de
areia
cinzenta para olharem com inveja um grupo de fedelhos
metidos
na água de um tanque municipal, nadando entre pedaços de
jornais e pontas de cigarros. Isso sugeriu-me a ideia de ir
até a uma piscina fazer algum exercício. Não era nada
aconselhável ficar em casa sozinho. Porém, ao procurar o
fato
de banho, que não encontrei nos armários,
ocorreu-me que seria mais saudável apanhar um comboio e
descer
onde houvesse bosques, para assim respirar um pouco de ar
puro. Dirigia-me já para a estação do caminho de ferro,
quando
me detive frente ao Museu onde se inaugurava uma grande
exposição de arte abstracta, anunciada por móbiles suspensos

, 16 17

de mastros cujos cogumelos, estrelas e laços de madeira,


giravam num ar impregnado de cheiro de verniz. Preparava-me
para subir a escadaria quando reparei que o autocarro do
Planetarium, cuja visita, de repente, me pareceu
extremamente
necessária, para sugerir ideias a Mouche acerca da nova
decoração do seu
estúdio, estacionava ali mesmo ao pé. Mas como estava muito
demorada a sua partida, acabei por andar de um lado para o
outro, aturdido com tantas opções, parando na primeira
esquina
para seguir os desenhos traçados sobre o passeio, com giz de
cor, por um estropiado com o peito coberto de medalhas
militares. Quebrado o desenfreado ritmo de meus dias,
liberto,
por três semanas, da empresa alimentar que me comprara já
vários anos de vida, não sabia em que empregar esse tempo de
lazer. Estava como que doente do meu súbito repouso,
desorientado em ruas conhecidas, indeciso perante
incompletos
desejos. Tinha vontade de comprar a Odisseia ou os últimos
romances policiais, ou as Comédias Americanas de Lope,
expostas na montra de Brentanos, para voltar a encontrar-me,
ainda que só pudesse multiplicar e somar em espanhol
(contando
pelos dedos), com a língua que deixara de falar. Mas havia
também o Prometheus Unbound, que me afastou rapidamente dos
livros, pois o seu título estava demasiado ligado ao
velho projecto de uma composição que, depois de um prelúdio
rematado por um grande coral de metais, não passara, no
recitativo inicial de Prometeu, do soberbo grito de revolta:
«... regard this Earth / Made multitudinous with thy slaves,
whom thou / requitest for knee-worship, prayer and praise, /
and toil, and hecatombs of broken heart, / with fear and
self
contempt and barren hope.» (*) Na verdade, o ter tempo
disponível para olhar as montras das lojas, depois de um
afastamento de meses, tornava-as da maior importância para
mim. Podia ver-se, aqui, um mapa de ilhas rodeadas de
galeões
e
Rosas dos Ventos; mais adiante, um tratado de
organografia; acolá, um retrato de Ruth, reluzindo de
diamantes emprestados, para a propaganda de um joalheiro. A
recordação da sua viagem
produziu-me uma repentina irritação: era ela, na
realidade, quem eu perseguia agora; a única pessoa que eu
desejava ter a meu lado, nesta tarde sufocante e enevoada,
cujo céu
escurecia por detrás da monótona agitação dos primeiros
anúncios luminosos. Mas um texto, um palco, uma
distância, se interpunham, uma vez mais, entre os nossos
corpos, que já não

(*) «... contempla esta terra / povoada com os escravos a


quem / recompensas pela adoração e oração, pelo louvor / e
trabalho, e pelas hecatombes desesperantes, / povoada pelo
medo, desprezo e vã esperança.» (N. do E.)

18

voltavam a encontrar, no Convívio do Sétimo Dia, a alegria


das
primeiras relações. Era ainda muito cedo para ir a casa de
Mouche. Fatigado de ter de escolher um caminho entre a
multidão que caminhava em sentido contrário, rasgando papéis
prateados ou descascando laranjas com os dedos, desejei um
sítio onde houvesse árvores. E já me livrara de quem
regressava dos estádios mimando os jogos nas suas
discussões,
quando umas gotas geladas me salpicaram as mãos. Ao fim de
algum tempo cuja medida me escapara, agora, por causa da
aparente brevidade do seu percurso num processo de
dilatação e
de recorrência que então me fora insuspeitável, recordo
essas
gotas caindo sobre a minha pele em alfinetadas deliciosas,
como se fossem a primeira advertência - ininteligível para
mim, na altura - do encontro. Encontro trivial, de certo
modo,
como são, aparentemente, todos os encontros cujo verdadeiro
significado só se revelará mais tarde, na trama das suas
consequências... Devemos procurar o começo de tudo isto,
seguramente, na nuvem que se desfez em chuva naquela tarde,
com tão inesperada violência que os trovões pareciam
chegados
de outra latitude.

II

A nuvem desfizera-se em chuva, quando eu caminhava por


detrás da grande sala de concertos, sobre o longo passeio
que
não oferecia, ao tránseunte, o mais pequeno resguardo.
Recordei-me de que certa escada de ferro conduzia à entrada
dos músicos, e como alguns dos que passavam agora me eram
conhecidos, não
me foi difícil chegar ao palco, onde os componentes de um
coral famoso se agrupavam por vezes para em seguida ocuparem
as
bancadas. Um timbaleiro experimentava com as falanges de
seus
dedos a pele dos tambores que o calor fizera subir de tom.
Segurando o violino com o queixo, o concertista tirava um lá
do piano, enquanto as trompas, os fagotes, os clarinetes,
continuavam envolvidos no confuso fervilhar de escalas,
trinos
e afinações, que precede a ordenação das notas. Todas as
vezes
que eu via os instrumentos de uma orquestra sinfónica serem
colocados atrás da suas estantes, sentia uma aguda
expectativa
do momento em que o tempo deixava de transportar sons
incoerentes para se enquadrar, organizado, submetido a uma
prévia vontade humana, falando
pelos gestos do Medidor de seu Percurso. Este último
obedecia,

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frequentemente, a disposições tomadas um século, dois
séculos
antes. Mas sob os títulos das partituras estavam inscritas
em
forma de signos as ordens de homens que apesar de mortos,
jazendo em pomposos mausoléus ou de ossos perdidos na
sórdida
desordem
da vala comum, conservavam direitos de propriedade sobre o
tempo, impondo lapsos de atenção ou de fervor aos homens do
futuro. Acontecia às vezes - pensava eu - que esses póstumos
poderes sofriam alguma perda ou, pelo contrário, aumentavam
em
virtude do grande favor de uma geração. Assim, quem fizesse
um
balanço das execuções sinfónicas, poderia chegar à conclusão
de
que, em tal ou tal ano, o grande fruidor do tempo fora Bach
ou
Wagner, comparado com a magra contribuição de Telemann ou
Cherubini. Havia três anos, pelo menos, que eu não assistia
a
um concerto sinfónico: quando saía dos estúdios estava tão
saturado de má música ou de boa música utilizada com fins
detestáveis, que se me tornava absurda a ideia de mergulhar
num tempo feito quase tangível pela submissão a
enquadramentos
de fuga ou de forma-sonata. Pela mesma razão, encontrava o
prazer da novidade de me sentir levado, quase de surpresa,
para o canto sombrio das caixas dos contrabaixos, donde
podia
observar o que se passava sobre o palco nesta tarde de chuva
cujos trovões, apaziguados, pareciam rolar sobre os charcos
da
rua vizinha. E após o silêncio quebrado por um gesto, foi
uma
ligeira quinta de trompas, acompanhada de um frémito de
tresquiálteras pelos segundos violinos e violoncelos, sobre
a
qual se desenharam duas notas descendentes, como que caídas
dos primeiros arcos e violetas, com uma inapetência que se
tornou em angústia, em necessidade imperiosa de fuga,
perante o terrível assalto de uma força subitamente
desenfreada... Levantei-me aborrecido. No momento em que me
encontrava na melhor das disposições para ouvir
música, após um longo período de indiferença, é que havia
de surgir esta coisa que agora inflava em crescendo atrás de
mim.
Devê-lo-ia ter pressentido, ao ver entrar no palco os
elementos do coro. Mas podia tratar-se também dum
oratório clássico. Porque se soubesse que era a partitura da
Nona
Sinfonia, o que estava disposto nas estantes, teria seguido
o
meu caminho mesmo debaixo do aguaceiro. Pois se não
tolerava certas músicas ligadas à recordação da minha
infância, menos
suportaria o Freun, Scloner Gotterfunken Tochter aus
Elvsium! que eu evitara, desde então, como quem aparta os
olhos, durante anos, de certos objectos evocadores da morte.
Além disso, como muitos homens da minha geração,
detestava tudo o que tivesse um ar «sublime». A Ode de
Schiller era-me tão desagradável como a Ceia de Montsalvat
e a
Elevação do Graal... Agora encontro-me

20

novamente na rua, à procura de um bar. Se tivesse de andar


muito para beber um copo, ver-me-ia invadido rapidamente por
um
estado de depressão, que experimentei algumas vezes, e me
faz
sentir como que preso a um beco sem saída, desesperado por
não
poder modificar nada na minha vida, sempre dependente da
vontade de outrem, que me deixa apenas a liberdade, todas as
manhãs, de escolher a carne ou os cereais que eu prefiro
para
o pequeno-almoço. Deito-me a correr porque a chuva redobra
de
intensidade. Ao virar a esquina bato com a cabeça num
guarda-chuva aberto; o vento arranca-o das mãos do seu
proprietário e fica esmagado debaixo das rodas de um
automóvel, de maneira tão
cómica que solto uma gargalhada. E quando espero por um
insulto, uma voz cordial chama pelo meu nome: "Procurei-te",
disse, "mas perdera o teu endereço". E o Conservador, a quem
não via há mais de dois anos, diz-me que tem um presente
para
mimum presente extraordinário - naquela velha casa de
princípios do século, de vidros encardidos, cuja platibanda
coberta de cascalho se intercala neste bairro como um
anacronismo.
As molas do sofá, desirmanadamente distendidas,
incrustam-se agora na minha carne com rigores de cilício,
obrigando-me a uma posição forçada que não me é habitual.
Vejo-me, com o
empertigamento de uma criança levada em visita, no conhecido
espelho de espesso enquadramento rococó coroado pelo escudo
dos Esterhazy. Praguejando contra a sua asma, apagando um
cigarro que o asfixia para acender um outro, de estramónio,
que o faz tossir, o Conservador do Museu Organográfico
caminha
a
passos curtos pela pequena sala repleta de címbalos e
tamborins asiáticos, preparando as chávenas de um chá que,
felizmente, será acompanhado de rum martiniquenho. Entre
duas
estantes está
pendurada uma quena incaica; sobre a mesa de trabalho,
esperando a redacção de uma ficha, jaz um trombone do tempo
da
Conquista do México, preciosíssimo instrumento, cujo
pavilhão
é uma cabeça de tarasca ornada de escamas prateadas e olhos
de
esmalte, com as fauces abertas que estendem para mim uma
dupla
dentadura de cobre. "Pertenceu a Juan de San Pedro, trombeta
de câmara de Carlos V e famoso cavaleiro de Hernán Cortés",
explica-me o Conservador, enquanto verifica o grau da
infusão.
Depois enche os cálices de rum, com a prévia
advertênciacómica
se se pensar em quem a escuta - de que um pouco de álcool,
de
vez em quando, é coisa que o organismo agradece por
atavismo,
já que o homem, em todas as épocas e latitudes, sempre
arranjou maneiras de inventar bebidas capazes de o
embriagar.
Como o meu presente não se encontrava aqui, neste piso, mas
21

algures onde o foi buscar uma criada surda que caminha


lentamente, olho o meu relógio para simular uma repentina
inquietação pela lembrança de um encontro inadiável. Mas o
meu
relógio, ao qual não dei corda à noite - dou-me conta disso
agora - para melhor me acostumar à realidade do começo das
minhas férias,
parara às três e vinte. Pergunto as horas, em tom urgente,
mas
respondem-me que isso não tem importância; que a chuva
escurecera prematuramente esta tarde de Junho, que é das
mais
longas do ano. Levando-me de uma Pangelingua dos monjes de
St.
Gall à edição príncipe de um Tratado de Baixo Cifrado para
guitarra, passando, ocasionalmente, por uma rara edição do
Oktoechos de San Juan Damasceno, tenta o Conservador
ludibriar
a minha
impaciência, acrescida pelo aborrecimento de me ter deixado
atrair a este andar onde já nada tenho a fazer, entre tantos
berimbaus, rabecas, flautas doces, cravelhas soltas, braços
entalados, organilhos com os foles rotos, que vejo, em
confusão, pelos cantos mais escuros. Estou quase a ponto de
dizer, em tom cortante, que virei num outro dia buscar o
presente, quando a criada reaparece, descalçando as suas
galochas. O que ela me traz é um disco meio gravado, sem
etiqueta, que o Conservador coloca num gramofone, escolhendo
cuidadosamente uma agulha de ponta doce. Pelo
menos - penso eu - o aborrecimento será de pouca dura: uns
dois minutos, a julgar pela largura das faixas. Volto-me
para
encher o meu cálice quando oiço atrás de mim o gorgeio de um
pássaro. Surpreendido, olho para o velho que sorri com ar
suavemente paternal, como se acabasse de me fazer uma oferta
inestimável. Vou para o interrogar, mas ele reclama o meu
silêncio com um gesto do indicador em direcção ao
gira-discos.
Algo de diferente se vai escutar agora, sem dúvida. Mas não.
Estamos já a metade da gravação e continua esse gorgeio
monótono, cortado por breves silêncios, que parecem de
uma duração sempre igual. Não é sequer o canto de um
pássaro
muito musical, pois desconhece o trilo, o portamento, e só
emite três notas, sempre as mesmas, com um timbre que tem a
sonoridade de um alfabeto Morse na cabina de um
telegrafista.
O disco está quase no fim e não chego a perceber onde está o
presente tão apregoado por quem foi durante
algum tempo meu professor, nem posso imaginar o que tenho
eu a
ver com um documento interessante, quando muito, para um
ornitólogo. A audição absurda termina e o Conservador,
transfigurado por uma inexplicável alegria, pergunta-me:
"Entendes? Entendes. " E explica-me que o gorgeio não é de
pássaro, mas de um instrumento de barro cozido com que os
índios mais primitivos do continente imitam o canto de um
pássaro antes de o irem caçar,

22
num rito possessional de sua voz, para que a caça lhes seja
propícia: "É a primeira comprovação da tua teoria", diz-me o
velho, abraçando-me quase, num acesso de tosse. E como não
compreendo lá muito bem o que me quer dizer, perante o disco
que ressoa novamente, invade-me uma crescente irritação que
dois cálices emborcados a seguir vêm avivar ainda mais. O
pássaro que não é pássaro, com seu canto que não é canto,
mas
uma mágica
imitação, provoca uma intolerável ressonância em meu
coração,
recordando-me os trabalhos realizados por mim há tanto
tempo -
os anos não me assustavam, mas a inútil rapidez do seu
percurso - acerca das origens da música e da organografia
primitiva. Fora na época em que a guerra interrompera a
composição da minha
ambiciosa cantata sobre o Prometheus Unbound. No meu
regresso
sentia-me tão mudado que o prelúdio terminado e os guiões da
cena inicial ficaram empacotados dentro de um armário,
enquanto me voltava para as técnicas e os sucedâneos do
cinema
e da rádio. No ilusório ardor que punha na defesa dessas
artes
do século, afirmando que abriam infinitas perspectivas aos
compositores, procurava provavelmente uma consolação para o
complexo de
culpa perante a obra abandonada e uma justificação para o
meu
ingresso numa empresa comercial, depois que Ruth e eu
destruíramos, com a nossa fuga, a vida de um homem
excelente.
Quando esgotámos o tempo da anarquia amorosa convenci-me
rapidamente de que a vocação de minha mulher era
incompatível
com o género de vida comum que eu desejava. Por isso
arranjara
a
maneira de as suas ausências, motivadas pelas
representações e
temporadas teatrais, se me tornarem menos ingratas,
orientando-me em tarefas que pudesse levar a cabo aos
domingos
e dias feriados, sem a continuidade de projectos exigida
pela
criação. Assim, dirigira-me à casa do Conservador, cujo
Museu
Organográfico era o orgulho de uma venerável universidade.
Sob
este mesmo tecto travara eu conhecimento com os instrumentos
de percussão elementares, troncos perfurados, litófonos,
queixadas de animais, chocalhos, guizeiras, donde o homem
extraíra os mais variados sons nos longos primeiros dias da
sua aparição sobre um planeta ainda eriçado de ossaturas
gigantescas, ao empreender um caminho que o conduziria à
Missa
do Papa MarceTo e à Arte da Fuga. Impelido por essa forma
peculiar da preguiça que consiste numa entrega com vigorosa
energia a tarefas que não são exactamente aquelas que nos
deveriam ocupar, apaixonei-me pelos métodos de
classificação e
do estudo morfológico desses objectos em madeira, barro
cozido, cobre de caldeiraria, junco, tripa e pele de chibo,
antepassados dos modos de produzir sons que perduram,

23

com um vigor milenário, sob o prodigioso verniz dos mestres


cremonenses ou no sumptuoso tubo teológico do órgão. Em
desacordo com as ideias geralmente sustentadas acerca da
origem da música, eu começara a elaborar uma engenhosa
teoria
que explicava o nascimento da expressão rítmica primordial
pelo trabalho de imitar o andar dos animais ou o canto das
aves. Se tivermos em conta que as primeiras representações
de
renas e bisontes, pintadas nas paredes das cavernas, se
devem
a uma mágica astúcia de caça
- o tornar-se senhor da presa pela prévia possessão da sua
imagem -, não andava muito longe da verdade ao pensar que os
ritmos elementares foram os do trote, do galope, do salto,
do
gorgeio e do trino, procurados pela mão sobre um corpo
sonoro,
ou pelo sopro, nas cavidades feitas nos juncos.
Agora sentia-me quase colérico frente ao disco que
girava, ao pensar que a minha engenhosa - e talvez certa -
teoria se desterrava, como tantas outras coisas, para um
sótão
de sonhos que a época, com as suas quotidianas tiranias, não
me permitia realizar. Subitamente, um gesto levanta o
diafragma do sulco. O pássaro de barro cessa de cantar. E
acontece o que eu mais temia: o Cònservador, puxando-me
afectuosamente para um canto, pergunta-me como vão os meus
trabalhos, advertindo-me de que dispõe de todo o tempo para
me
escutar e discutir. Quer saber das minhas prospecções,
conhecer os meus novos métodos de
investigação, examinar as minhas conclusões acerca da origem
da música - segundo o estudo que eu projectara a partir da
minha engenhosa teoria do mimetismo-mágico-ritmico. Perante
a
impossibilidade de me escapar, começo a mentir, inventando
razõesjustificativas do atraso na elaboração da minha obra.
Mas, por não estar habituado a isso, é evidente que cometo
ridículos erros no emprego dos termos técnicos, enredo as
classificações, não encontro os dados essenciais que, no
entanto, julgava possuir. Tento apoiar-me em bibliografias,
para inteirar-me - graças à rectificação irónica do meu
auditorde que elas estão actualmente postas de parte pelos
especialistas. E quando me vou agarrar à suposta necessidade
de reunir certos cantos de primitivos recentemente gravados
por pesquisadores, parece-me que a minha voz soa de tal
forma
falsa, devolvida pelo cobre dos gongues, que me afundo
irremediavelmente a meio de uma frase sobre o
esquecimento indesculpável de uma desinência
organológica. O espelho
mostra-me a lamentável cara que eu faço neste instante, de
batoteiro surpreendido com cartas escondidas na manga.
Sinto-me tão feio que, de súbito, toda a minha vergonha se
transforma em ira, e me lanço contra o Conservador numa
explosão de truculentas palavras, perguntando-lhe se crê
possível que haja muita gente que possa viver, na nossa
época,
do estudo dos instrumentos primitivos. Ele sabia como eu
fora
desenraizado na adolescência, cego por falsos princípios,
levado ao estudo de uma arte que somente alimentava os
piores
mercadores de Tin-PanAlley, esfalfando-me seguidamente
através
de um mundo em ruínas, durante meses, como intérprete
militar,
antes de ser lançado novamente para o asfalto de uma cidade
onde a miséria era mais dura de enfrentar do que em qualquer
outra parte. Ah! Por ter experiência disso, eu conhecia a
terrível fase de miséria dos que lavam à noite a única
camisa
que têm, que caminham sobre a neve com os sapatos rotos,
fumam
piriscas de piriscas e cozinham nos armários, acabando por
ficar tão obcecados pela fome que a inteligência lhes fica
reduzida à mera ideia de comer. Aquela solução era tão
estéril, como a de vender, de sol a sol, as melhores horas
de
sua vida. "Além disso", gritava eu agora, "estou vazio!
Vazio! Vazio!"... Impassível, distante, o Conservador
olha-me
com uma frieza surpreendente, como se esta crise repentina
fosse para ele uma coisa esperada. Então volto a falar, mas
num tom surdo, num ritmo apressado, como que sustido por uma
exaltação sombria. E assim como o pecador esvazia perante o
confessor o negro saco das suas iniquidades e
concupiscências
- impulsionado por uma espécie de euforia de dizer mal de si
próprio que chega a atingir o execrável -, descrevo ao meu
professor, com as cores mais sombrias, as mais hediondas e
negras, a inutilidade de minha vida, a sua confusão durante
o
dia, a sua inconsciência durante a noite. As minhas palavras
oprimem-me a tal ponto como se fossem ditas por outra
pessoa,
por um juiz que estivesse dentro de mim sem eu o saber e se
servisse dos meus próprios meios físicos para se expressar,
que me apavoro, ao ouvir-me, com o difícil que é voltar a
ser
homem quando se deixou de o ser. Entre o Eu presente e o Eu
que aspirara a ser afundar-se-ia um dia em trevas o fosso
dos
anos perdidos. Parecia agora que eu estivera calado e o juiz
continuara a falar pela minha boca. Convivíamos num só
corpo,
ele e eu, sustentados por uma arquitectura secreta que era
já,
em nossa vida, em nossa carne, presença da nossa morte. No
ser
que se reflectia no enquadramento barroco do espelho
dialogavam neste momento o Libertino e o Predicador, que são
as primeiras personagens de toda a alegoria edificante, de
toda a moralidade exemplar. Para fugir ao espelho, a essa
imagem, o meu olhar dirigiu-se para a biblioteca. Mas ali,
no
espaço dedicado aos músicos renascentistas, sobressaía em
pele
de bezerro, junto aos volumes de Salmos da Penitência, o
título como que posto de propósito, da Reppresentazione di
anima e di corpo. Houve algo como que um

24 25

cair de pano, um apagar de luzes, quando se refez um


silêncio
que o Conservador cruelmente manteve. De súbito esboçou um
gesto estranho que me fez pensar num impossível poder de
absolvição. Levantou-se lentamente e, empunhando o telefone,
chamou o reitor da Universidade, em cujo edifício se
encontrava o Museu Organográfico. Com uma surpresa enorme,
sem
ousar levantar os olhos do chão, escutei grandes elogios
feitos à minha pessoa.
Apresentava-me como o colector indicado para conseguir
algumas
peças que faltavam à galeria de instrumentos de aborígenes
da
América - ainda incompleta, apesar de ser única já no mundo,
pela sua riqueza documental. Sem insistir sobre a minha
perícia, o meu professor sublinhava o facto de que a minha
resistência física, comprovada numa guerra, permitir-me-ia
fazer uma investigação em regiões de acesso muito difícil
para
velhos especialistas. Além disso, o espanhol fora o idioma
da
minha infância. Cada uma das razões alegadas devia
engrandecer-me na imaginação do interlocutor invisível,
dando-me a estatura de um Von Horbostel jovem. Apercebi-me
com
receio de que a confiança, em mim depositada, era para
conseguir que eu trouxesse, entre outros idiófonos raros,
uma
combinação de tambor e bastão de ritmo que Schaeffner e
Curt Sachs desconheciam, e a famosa jarra com duas
embocaduras
de cana, utilizada por certos índios nas suas cerimónias
fúnebres, que o Padre Servando de Castillejos descrevera, em
1651, no seu tratado De barbarorum Novi Mundi moribus, e não
figurava em nenhuma colecção organográfica, ainda que a
sobrevivência do povo que a fizera bramar ritualmente,
segundo
o testemunho do frade, implicasse a continuidade de um
hábito
apontado em datas recentes por pesquisadores e traficantes.
"O
Reitor espera-nos", diz o meu professor. De repente, a ideia
pareceu-me tão absurda, que me deu vontade de rir. Quis
encontrar uma saída airosa, invocando a minha actual
ignorância, o meu afastamento de toda a actividade
intelectual. Afirmei que desconhecia os últimos métodos de
classificação, baseados na evolução morfoloca dos
instrumentos
e não na sua ressonância e maneira de serem tocados. Mas o
Conservador parecia tão empenhado em enviar-me para onde eu
de modo algum queria ir, que recorreu a um argumento contra
o
qual eu nada poderia opor razoavelmente: o trabalho
encomendado podia ser levado a bom termo na altura das
minhas
férias. A questão estava em saber se me privaria da
possibilidade de subir um rio prodigioso por amor à
serradura
do chão dos bares. Na verdade não me restava alguma razão
válida para recusar a oferta. Iludido por um silêncio que
lhe
pareceu aquiescente, o Conservador dirigiu-se à sala
contígua
para buscar a sua capa, pois a chuva,

26

agora, fustigava fortemente os vidros. Aproveitei essa


oportunidade para me escapar dali. Tinha vontade de beber. O
meu único interesse, nesse momento, era o de chegar a um bar
das cercanias, cujas paredes estavam decoradas com
fotografias
de cavalos de corrida.

III

Havia um bilhete sobre o piano, no qual Mouche me dizia


que a esperasse. Para passar o tempo pus-me a brincar com as
teclas, combinando acordes ao acaso, com um copo pousado
mesmo
à
beira da última oitava. Cheirava a pintado de fresco. Por
detrás da caixa de ressonância, sobre a parede do fundo,
começavam a
definir-se as esboçadas figuras da Hidra, do Navio Argos, do
Sagitário e da Cabeleira de Berenice, que brevemente dariam
uma útil singularidade ao estúdio de minha amiga. Depois de
muito me rir com a sua competência astrológica, tivera de me
curvar perante o rendoso negócio de horóscopos que ela
elaborava por correspondência, tendo todo o tempo por sua
conta, dando uma ou outra consulta pessoal, favor solicitado
muito frequentemente, com a gravidade mais entusiástica.
Assim, de Júpiter no signo de Câncer a Saturno no signo da
Balança, Mouche, industriada por curiosos tratados, com seus
godés de guache e seus tinteiros, concebia uns Mapas de
Destinos que eram enviados para longínquas localidades do
país, adornados com signos do Zodíaco que eu a ajudara a
tornar mais impressionantes graças a um De Coeleste
Fisionomica, Prognosticum supercoeleste e outros títulos
latinos de bela aparência. Muito assustados deviam estar os
homens com a sua época - pensava eu às vezes -para consultar
tanto os astrólogos, contemplar com tal afinco as linhas das
suas mãos, o desenho da sua escrita, angustiarem-se perante
as
marcas de negros sinais, renovando as mais antigas técnicas
de
adivinhação, à falta de
terem maneira de ler nas entranhas dos animais sacrificados
ou
de observar o voo das aves com o bastão dos arúspices. A
minha
amiga, que acreditava piamente nas videntes de rosto
velado, e
que se formara intelectualmente no grande adelo surrealista,
encontrava prazer, para além do proveito, em contemplar o
céu
pelo espelho dos livros, misturando os belos nomes das
constelações. Era a sua maneira actual de fazer poesia, já
que
a sua única tentativa de a fazer com palavras, assinalada
numa
plaquette ilustrada com fotomontagens de monstros e
estátuas,
a desiludira - depois que o cheiro da tinta de imprensa
deixara de lhe subir à cabeça

27
quanto à originalidade de sua inspiração. Conhecera-a dois
anos antes, durante uma das muitas ausências profissionais
de
Ruth, e embora as minhas noites se tenham iniciado ou
acabado
na sua cama, entre nós poucas palavras carinhosas eram
pronunciadas. Lutávamos, às vezes, de maneira terrível, para
seguidamente nos abraçarmos com raiva, enquanto as nossas
caras, tãojuntas que se não viam, trocavam insultos que a
reconciliação dos corpos ia transformando em descarnados
elogios do prazer recebido. Mouche, que era bastante
comedida
e até parcimoniosa no falar, utilizava nesses momentos uma
linguagem de rameira, à qual era necessário responder nos
mesmos termos para que dessa excrescência da linguagem
surgisse, mais agudamente, o prazer. Mas era difícil de
saber
se era verdadeiro amor o que a ela me ligava. Exasperava-me
frequentemente com o seu dogmático apego a
ideias e atitudes muito em voga nas cervejarias de
Saint-Germain-des-Près, cuja estéril discussão me obrigava a
abandonar a sua casa com a ideia de não mais voltar. Mas na
noite seguinte
enternecia-me só de pensar nas suas insolências, e
regressava
à sua carne que me era necessária, pois encontrava na sua
intimidade a exigente e egoísta animalidade que tinha o
poder
de transformar o carácter da minha eterna fadiga, passando-a
do plano nervoso ao plano físico. Quando isto acontecia,
vinha-me, às vezes, um sono tão estranho e tão desejado que
se
me fechavam os olhos depois de um dia passado no campo -um
desses raros dias do ano em que o cheiro das árvores,
provocando um relaxamento em todo o meu ser, me deixava como
que entontecido. Cansado de esperar, ataquei furiosamente os
acordes iniciais de um grande Concerto romântico; mas nisto,
abriram-se as portas e o apartamento
encheu-se de gente. Mouche, cujo rosto estava rosado como
quando bebia um pouco, vinha de jantar com o pintor do seu
estúdio, dois dos meus assistentes, os quais não esperava
encontrar aqui, a decoradora do rés-do-chão, que andava
sempre
a bisbilhotar o que se passava entre as outras mulheres, e a
bailarina que preparava, nessa altura, um ballet sobre
simples
ritmos de bater de mãos. "Trazemos uma surpresa", anunciou a
minha amiga, rindo. E rapidamente ficou montado o projector
com a cópia do filme apresentado na véspera, cujo caloroso
êxito determinara o imediato começo das minhas férias.
Agora,
com todas as luzes apagadas, renasciam as imagens perante os
meus olhos: a pesca do atum, com o ritmo admirável das
almadrabas e a desesperada agitação dos peixes cercados por
barcos negros; as lampreias espreitando das cavidades das
suas
torres de rocha; o envolvente desprezo do polvo; a chegada
das
enguias e o vasto vinhedo cobreado do Mar

28

dos Sargaços. E depois, aquelas naturezas mortas de búzios e


anzóis, a floresta de corais e a alucinante luta dos
crustáceos, tão habilmente desenvolvida, que as lagostas
pareciam terríficos dragões couraçados. Tínhamos trabalhado
bem. Voltavam a ouvir-se as melhores passagens da partitura,
com os seus líquidos harpejos de celesta, os fluidos
portamentos de Martenot, a ondulação das harpas e o
desenfreamento do xilofone, piano e percussão, durante a
sequência do combate. Tudo isso custara três meses de
discussões, de perplexidades, de experiências e
aborrecimentos, mas o resultado era sürpreendente. O próprio
texto escrito por umjovem poeta, em colaboração com um
oceanógrafo, sob a vigilância dos especialistas da nossa
empresa, era digno de figurar numa antologia do género. E
quanto à montagem e supervisão musical, não encontrei
nenhuma
crítica a fazer-me. "Uma obra-prima", dizia Mouche na
escuridão. "Uma obra-prima", corroboravam os
outros fazendo coro. Quando se acenderam as luzes toda a
gente
me deu os parabéns pedindo que se passasse novamente o
filme.
E depois da segunda projecção, como chegassem ainda
convidados, solicitaram-me uma terceira. Mas de cada vez que
os meus olhos, após um novo exame à minha obra, alcançavam o
«Fim» floreado de algas desse trabalho exemplar, sentia-me
menos orgulhoso da minha realização. Uma verdade envenenava
o
meu primeiro contentamento: a de saber que todo aquele
encarniçado trabalho, os alardes de bom gosto, de domínio do
ofício, a escolha e coordenação dos meus colaboradores e
assistentes, tinham engendrado, no fim de contas, um filme
publicitário, encomendado à empresa
onde eu era empregado por uma Sociedade Pesqueira, metida
numa luta feroz com uma rede de cooperativas. Uma equipa de
técnicos e artistas extenuara-se durante semanas e semanas
em
salas escuras para lograr essa obra cinematográfica, cujo
único propósito era atrair a atenção de certo público para
os
recursos de uma actividade industrial capaz de promover, dia
após dia, a multiplicação dos peixes. Pareceu-me ouvir a voz
de meu pai, tal como nos dias cinzentos da sua viuvez,
quando
ele tanto gostava de citar as Escrituras: "Não se pode
endireitar o que é torto; aquilo que falta não pode ser
calculado". Andava sempre com esta sentença na boca,
aplicando-a em qualquer ocasião. A prosa do Eclesiastes
deixava-me agora um gosto amargo ao pensar que o
Conservador,
por exemplo, teria encolhido os ombros perante esse meu
trabalho, considerando, talvez, que podia comparar-se com um
traçar de letras no céu com fumo, ou a provocar, com um
magistral
desenho, a salivação de quem contemplasse ao meio-dia um
anúncio de quebradiços folhados. Considerar-me-ia como um
29

cúmplice dos desfiguradores de paisagens, dos coladores de


cartazes, dos apregoadores do Orvietano. Mas também -
pensava
eu com raiva
- o Conservador pertencia a uma geração intoxicada pelo
«sublime», que ia amar nos camarotes de Bayreuth, no meio de
uma penumbra com cheiro a velhos veludos vermelhos...
Chegavam
pessoas, cujas cabeças interceptavam a luz do projector. "É
na
publicidade que as técnicas evoluem!", gritou ao meu lado,
como que adivinhando o meu pensamento, o pintor russo que
trocara, havia pouco tempo, a pintura a óleo pela cerâmica.
"Os mosaicos de Ravena não eram mais do que publicidade",
disse o arquitecto que amava muito a arte abstracta. E eram
vozes novas as que agora emergiam da sombra: "Toda a pintura
religiosa é publicidade". "Como certas cantatas de Bach". "A
Gott der Herr, es Sonn und Schild parte de um autêntico
slogan". "o cinema é um trabalho de equipa; a pintura a
fresco
deve ser feita por equipas; a arte do futuro será uma arte
de
equipas". Outros convidados chegavam ainda; traziam
garrafas,
as conversas começavam a dispersar-se. O pintor mostrava uma
série de desenhos representando estropiados e escoriados,
que
tencionava transpor para os seus pratos e travessas, sob a
forma de «pranchas anatómicas em relevo», que simbolizariam
o
espírito da época. "A verdadeira música é uma mera
especulação
sobre frequências", dizia o meu assistente de gravação,
lançando os seus dados chineses sobre o piano, para
demonstrar
como podia obter-se pelo acaso um tema musical. Falávamos
todos aos berros quando um "Halt!" enérgico, lançado da
porta,
por uma voz de baixo, imobilizou cada um dos presentes, como
figura de museu de cera, em pleno gesto esboçado, a meio da
palavra pronunciada, no alento de uma baforada de fumo. Uns
estavam suspensos na arsis de um passo; outros tinham o seu
copo no ar, a meio caminho entre a mesa e a boca. ("Eu sou
eu.
Estou sentado num divã. Ia riscar um fósforo na lixa da
caixa.
Os dedos de Hugo recordaram-me o verso de Mallarmé. Mas as
minhas mãos iam acender um fósforo inconscientemente. Logo,
estava adormecido. Adormecido como todos os que me
rodeiam".)
Ouviu-se outra ordem do recém-chegado, e cada qual
terminou a frase, o gesto, o passo que ficara suspenso. Era
um
dos muitos exercícios que X. T. H. - nunca o tratávamos
senão
pelas suas iniciais, que o hábito da pronunciação
transformara
em Extieich - costumava impor-nos para nos "despertar",
dizia
ele, e pôr-nos em estado de consciência e de análise dos
nossos actos presentes, por insignificantes que eles fossem.
Invertendo, para uso próprio, um princípio filosófico que
nos
era comum, costumava dizer que quem se comportava "de uma
maneira automática era

30

"essência sem existência". Mouche, por vocação,


entusiasmara-se com os aspectos astrológicos de seu
ensinamento, cujos pontos de partida eram muito atraentes,
mas
aos quais se misturavam, de seguida, segundo a minha ideia,
muito das místicas orientais, do pitagorismo, dos «tantras»
tibetanos e não sei quantas coisas mais. O caso era que
Extieich conseguira impor-nos uma série de práticas
aparentadas com os «asamas» yogas, fazendo-nos respirar de
uma
certa maneira, contando o tempo das inspirações e expirações
por «matras». Mouche e seus amigos pretendiam chegar assim a
um maior domínio de si mesmos e adquirir poderes que me
pareciam sempre problemáticos, sobretudo em pessoas que
bebiam
diariamente para se defenderem contra o desânimo, as
angústias
do fracasso, o descontentamento de si próprias, o medo de
verem um manuscrito recusado, ou simplesmente da dureza
daquela cidade, do eterno anonimato dentro da multidão, da
eterna pressa, onde os olhares só se encontravam por
casualidade, onde o sorriso, quando vinha de um
desconhecido,
escondia sempre uma proposta. Extieich procedia, agora, ao
tratamento de uma súbita enxaqueca da bailarina, pela
imposição das mãos. Atordoado
pelas conversas cruzadas, que iam do «da-sein» ao boxe, do
marxismo à insistência de Hugo em querer modificar a
sonoridade do piano colocando pedaços de vidro, lápis,
papéis
de seda, caules de flores, debaixo das cordas, saí para o
terraço, onde a chuva da tarde limpara as tílias anãs de
Mouche da inevitável fuligem estival lançada por uma fábrica
cujas chaminés se erguiam na outra margem do rio. Sempre me
divertira muito nessas reuniões com o desenfreado girassol
de
ideias que, de repente, passavam da Kabala à Angústia, pelo
caminho dos projectos de quem pretendia instalar uma quinta
no
Oeste, onde a arte de alguns seria salvaguardada pela
criação
de galinhas Leghorn ou Rod-Island Red. Amara sempre esses
saltos bruscos do transcendente à raridade do teatro
isabelino
à Gnósis, do platonismo à acupunctura. Tinha ,
inclusivamente, a ideia de gravar um dia, por meio de um
dispositivo escondido debaixo de um móvel, essas
conversações
que demonstrariam quão vertiginoso é o processo elíptico do
pensamento e da linguagem. Nessas ginásticas mentais, nessa
alta acrobacia da cultura, encontrava eu a justificação,
entre
outras, de numerosas desordens morais que, em outras
pessoas,
seriam odiosas. Mas a escolha entre grupos de homens não era
muito problemática. De um lado estavam os mercadores, os
negociantes, para os quais trabalhava durante o dia, e que

sabiam gastar o dinheiro ganho em estúpidos divertimentos,
tão
desprovidos de imaginação que me sentia, forçosamente, um

31

animal de outro planeta. Do outro lado estavam os que aqui


se
encontravam, felizes por terem descoberto algumas garrafas
de
álcool, fascinados pelos Poderes que lhes prometia Extieich,
as cabeças fervilhando de projectos grandiosos. Na
implacável
ordenação da urbe moderna, praticavam uma forma de ascese,
renunciando aos bens materiais, passando fome e privações,
em
troca de um problemático encontro de si próprios na obra
realizada. E, no entanto, esta noite, estes homens
fatigavam-me tanto como os que se agarravam aos números e
aos
benefícios. É que, no fundo de mim mesmo, estava
impressionado
pela cena na casa do Conservador, e não me deixava enganar
pelo entusiasmo que tinha acolhido o filme publicitário que
tanto trabalho me dera a realizar. Os paradoxos emitidos
acerca da publicidade e da arte por equipas, não eram senão
maneiras de desancar o passado, procurando uma justificação
pelos parcos resultados obtidos por cada um em sua obra.
Tão-pouco me deixara satisfeito, pela sua irrisória
finalidade, o meu
recente trabalho, pois quando Mouche se acercou para me
elogiar,
mudei abruptamente de assunto, contando-lhe a minha
aventura
da tarde. Para minha grande surpresa abraçou-me, exclamando
que a notícia era formidable, pois corroborava o vaticínio
de
um
sonho recente em que se vira voando junto a grandes aves
de
plumagem cor de açafrão, o que significava
inequivocamente: viagem e êxito, mudança por transferência.
E
sem me dar tempo para corrigir o equívoco, entregou-se aos
grandes lugares-comuns do desejo de evasão, do apelo do
desconhecido, dos encontros fortuitos, num tom que fazia
pensar nos Sirgadores Alvejados e nas Incríveis Floridas do
Barco Ébrio. Interrompi-a rapidamente, contando-lhe como me
escapara da casa do Conservador sem aproveitar a oferta.
"Mas
isso é absolutamente idiota!" exclamou. "Podias ter pensado
em
mim!" Fiz-lhe notar que não dispunha do dinheiro suficiente
para lhe pagar uma viagem a tão longínquas paragens; que,
por
outro lado, a Universidade só custeava as despesas para uma
pessoa. Após um silêncio incomodativo, em que os seus olhos
fizeram uma feia expressão de despeito, Mouche desatou a
rir.
"E pensávamos nós que tínhamos aqui o pintor da Vénus de
Cranach!"... A minha amiga explica-me a ideia que
repentinamente lhe surgira: para chegar aonde viviam os
povos
que faziam soar o tambor-bastão e a jarra funerária, era
necessário que fôssemos, em primeiro lugar, à grande cidade
tropical, famosa pela beleza das suas praias e pelo colorido
da sua vida popular; tratava-se simplesmente de permanecer
lá,
com uma ou outra incursão às florestas mais próximas, e
deixarmo-nos viver descansadamente até onde desse o
dinheiro.
Ninguém estaria presente para saber se

32

eu seguia o itinerário imposto ao meu trabalho de colecção.


E
para manter a honra, eu entregaria no meu regresso alguns
instrumentos «primitivos» - perfeitos, científicos,
autênticos
- impecavelmente executados, de acordo com os meus esboços e
medidas, pelo pintor amigo, grande amador das artes
primitivas, e tão diabolicamente hábil em trabalhos de
artesanato, cópia e reprodução, que vivia da falsificação
dos
grandes estilos, esculpia virgens catalãs do século XIV,
desdoiradas, picadas pelos insectos, rachadas, obtendo o seu
maior êxito com a venda de uma Vénus de Cranach ao
Museu de Glasgow, executada e envelhecida por ele em algumas
semanas. Tão suja, tão infame me pareceu a proposta, que a
repeli enojado. A Universidade ergueu-se no meu espírito
com a
majestade de um templo sobre cujas colunas brancas me
convidavam a despejar imundícies. Falei durante largo tempo,
mas Mouche não me escutava. Regressou ao seu estúdio, onde a
notícia da nossa viagem foi recebida com gritos de alegria.
E
agora, sem me ligar importância, ia de quarto em quarto,
numa
azáfama radiante,
arrastando malas, dobrando e desdobrando roupas, fazendo uma
lista de coisas a comprar. Perante tal à-vontade, mais
ofensivo que uma brincadeira, saí do apartamento batendo
com a
porta. Mas a rua pareceu-me particularmente triste, nesta
noite de domingo, temerosa já das angústias de
segunda-feira,
com seus cafés abandonados por aqueles que pensavam no dia
seguinte e procuravam as chaves das suas portas à luz de
candeeiros que lançavam feixes de estanho sobre o asfalto
molhado. Parei indeciso. Em minha casa aguardava-me a
desordem
deixada por Ruth na sua partida; a marca de sua cabeça na
almofada; os odores do teatro. E quando retinisse uma
campainha seria o despertar sem sentido, o medo de me
encontrar com uma personagem, retirada de mim próprio, que
costumava esperar-me todos os anos no umbral das minhas
férias. A personagem cheia de censuras e de razões amargas
que
eu vira aparecer horas antes no espelho barroco do
Conservador
para me esvaziar das minhas cinzas. A necessidade de rever
os
equipamentos de sincronização e de ordenar novos locais
revestidos de matérias isolantes facilitava, no começo de
cada
Verão, esse encontro que promovia uma mudança na natureza da
carga que eu transportava: lá onde eu lançava a minha pedra
de
Sísifo, o outro montava sobre os meus ombros ainda
esfolados,
e não saberia dizer se, às vezes, não chegava a preferir o
peso do granito ao peso da sentença. Um nevoeiro surgido dos
cais vizinhos levantava-se sobre os passeios, esbatendo as
luzes da rua em irisações que atravessavam, como
alfinetadas,
as gotas de nuvens baixas. As grades dos cinemas fechavam-se
sobre os pavimentos de longos vestíbulos,

33

polvilhados de tickets rasgados. Mais além teria de


atravessar
a rua deserta, friamente iluminada, e subir o passeio em
declive, em direcção ao Oratório envolto em sombras, cuja
grade tocaria com os dedos, contando cinquenta e duas
barras.
Encostei-me a um poste, pensando no vazio de três semanas
insignificantes, demasiado curtas para empreender o que quer
que fosse, e que seriam insuportáveis, à medida que o tempo
passasse, pelo sentimento da possibilidade desdenhada. Eu
não
dera um passo para a missão proposta. Viera tudo ao meu
encontro, e eu não era responsável pela exagerada
valorização
das minhas capacidades. O Conservador, no fim de contas,
nada
desembolsaria, e no que respeitava à Universidade, difícil
seria que seus eruditos, envelhecidos entre os livros, sem
contacto directo com os artesãos da selva, se apercebessem
da
fraude. Ao fim e ao cabo, os instrumentos descritos por Frei
Servando de Castillejos não eram obras de arte, mas objectos
devidos a uma técnica primitiva, ainda actual. Se os museus
guardavam mais que um Stradivarius suspeito, pouco mal
haveria, em suma, em falsificar um tambor de selvagens. Os
instrumentos requisitados podiam ser de fabrico antigo ou
recente... "Esta viagem estava escrita na parede", disse-me
Mouche, no meu regresso, apontando as figuras do Sagitário,
do
Navio Argos e da Cabeleira de Berenice, que se destacavam
melhor nos seus traços ocres, agora que alguém baixara a
luz.
De manhã, enquanto a minha amiga se ocupava das questões
consulares, fui à Universidade, onde o Conservador, que se
levantara muito cedo, consertava uma viola de amor, na
companhia de um luthier de tampo azul. Viu-me aparecer sem
surpresa, olhando-me por cima dos óculos. "Chegaste mesmo na
altura!" disse, sem que eu soubesse verdadeiramente se
queria
felicitar-me pela minha decisão, ou se pressentia que
naquele
momento eu podia ter em mente duas ideias, graças a uma
droga
que Mouche me ministrara ao despertar. Fui rapidamente
conduzido ao escritório do Reitor, que me fez assinar um
contrato, dando-me o dinheiro da minha viagem juntamente com
as instruções pormenorizadas sobre os
pontos principais da tarefa confiada. Um pouco aturdido
pela rapidez do acordo, sem ter no entanto uma ideia muito
clara do que me esperava, encontrei-me seguidamente numa
longa
sala deserta onde o Conservador me suplicou que aguardasse
um
momento, enquanto ia à Biblioteca, cumprimentar o Decano da
Faculdade de Filosofia, recém-chegado do Congresso de
Amesterdão. Observei com agrado que aquela galeria era um
museu de reproduções fotográficas e de moldes em gesso,
destinado aos estudantes de História de Arte. De súbito, a
universalidade de certas
imagens (uma Ninfa impressionista, uma família de Manet,
o misterioso olhar de Madame Rivière), transportou-me aos
dias
longínquos em que procurava dar alívio a uma angústia de
viajante decepcionado, de peregrino frustrado pela
profanação
de Lugares Santos, no mundo - quase sem janelas - dos
museus.
Era a época em que frequentava as lojas dos artesãos, os
camarotes de ópera, os jardins e cemitérios das estampas
românticas, antes de assistir com Goya às lutas do Dois de
Maio, ou de o acompanhar no Enterro da Sardinha, cujas
máscaras inquietantes mais pareciam de penitentes ébrios, de
diabos de autos-sacramentais, do que de fantasias
carnavalescas. Após um descanso entre os campónios de Le
Nain,
caía em pleno Renascimento, graças a algum retrato de
Condottiere, dos que montam cavalos mais mármore do que
carne,
entre colunas engalanadas de bandeirolas. Às vezes
agradava-me
conviver com os burgueses medievais, que bebiam
abundantemente
o seu vinho de especiarias, se faziam pintar com a Virgem
doada - para memória da doação -, que trinchavam
leitões de tetas chamuscadas, faziam combater os seus galos
flamengos, e metiam a mão no decote de galdérias de ceroso
semblante que, mais do que lascivas, pareciam alegres
moçoilas
de tarde de domingo, prontas a pecar uma vez mais pela
absolvição de um confessor. Uma fivela de ferro, uma bárbara
coroa eriçada de espetos martelados, transportaram-me de
repente à Europa merovíngia, de profundas florestas, de
terras
sem caminhos, de ratos migratórios, de feras célebres por
terem chegado espumejantes de raiva, em dia de feira, até à
Praça Principal de uma cidade. Depois, eram as pedras de
Micenas, os ornamentos sepulcrais, as pesadas olarias de uma
Grécia rude e aventureira, anterior aos seus próprios
classicismos, cheirando toda ela a reses assadas, a
tosquia, a
bosta, a suor de garanhões no cio. E assim, de degrau em
degrau, chegava aos armários repletos de raspadeiras,
machados
,
facas de sílex, ao pé dos quais me detinha, fascinado pela
noite do magdalenense, solutrense, prechelense, sentindo-me
chegado aos confins do homem, até ao limite do possível que
podia ter sido ,
segundo alguns cosmógrafos primitivos, a orla da terra
plana,
ali onde erguendo a cabeça sobre a vertigem sideral do
infinito, ver-se-ia o céu cá em baixo também... O Cronos de
Goya devolveu-me à nossa época, pelo caminho de vastas
cozinhas enobrecidas de naturezas-mortas. O síndico acendia
o
seu cachimbo com uma
brasa, a servente escaldava uma lebre na água fervente de um
grande caldeirão, e por uma janela aberta, podiam ver-se as
fiandeiras conversando no silêncio do pátio ensombreado por
um
olmo. Perante as conhecidas imagens interrogava-me se, em
34 35

épocas passadas, os homens teriam a nostalgia do passado,


como
eu, nesta manhã de estio, a nostalgia - por tê-los
conhecido -
de certos modos de vida que o homem perdera para sempre.

CAPÍTULO SEGUNDO

Ha! I scent life (*)

Shelley

IV

(Quarta feira, 7 de Junho)

Depois de alguns minutos, os nossos ouvidos


advertiram-nos de que estávamos descendo. Subitamente
apercebemo-nos que as nuvens nos rodeavam, e que
o voo do avião se tornava vacilante, como que desconfiado
de um ar instável que o soltava inesperadamente, o recolhia,
lhe deixava uma asa sem apoio, o abandonava em seguida ao
ritmo das ondas invisíveis. À direita erguia-se uma
cordilheira de um verde de musgo, esfumada pela chuva. Além,
em pleno sol, estava a cidade. O jornalista que se instalara
ao meu lado - pois Mouche dormia a toda a largura do assento
de trás -,
falava-me com uma mistura de indolência e ternura daquela
capital dispersa, sem estilo, anárquica em sua topografia,
cujas primeiras ruas se desenhavam já debaixo de nós. Para
continuar a crescer ao longo do mar, sobre uma estreita
faixa
de areia delimitada pelas colinas que serviam de base às
fortificações construídas por ordem de
Filipe II, a população tivera de mover uma guerra de séculos

* Ah, sinto o cheiro da vida!" (N. do T.)

36 37

aos pântanos, à febre amarela, aos insectos e à


imutabilidade
de
penhascos de rocha negra que se erguiam, aqui e além,
intransponíveis, solitários, polidos, como se fossem
aerólitos
lançados por uma mão celestial. Essas massas inúteis,
paradas
entre os edifícios, as torres das igrejas modernas, as
antenas, os campanários antigos, os zimbórios dos princípios
do século, falseavam as realidades da escala, estabelecendo
uma outra, que não era a do homem, como se fossem
edificações
destinadas a uma utilização desconhecida, obra de uma
civilização inimaginável, abismada em noites remotas.
Durante
séculos lutara-se contra raízes que levantavam os
pavimentos e
rachavam os muros; mas quando um rico proprietário se
deslocava a Paris por alguns meses, deixando a vigilância da
sua residência ao cuidado de criados negligentes, as raízes
aproveitavam o descuido de canções e sestas para se
arquearem
um pouco por toda a parte, acabando em vinte dias com os
melhores planos funcionais de Le Corbusier. Arrancaram as
palmeiras dos subúrbios traçados por eminentes urbanistas,
mas
as palmeiras ressurgiam nos pátios das casas coloniais,
delimitando com as suas colunas as avenidas mais centrais -
as
primeiras que traçaram, a ponta de espada, no local mais
apropriado, os fundadores da primitiva cidade. Dominando o
formigueiro das ruas de Bolsas e jornais, por sobre os
mármores dos Bancos, a riqueza dos Entrepostos, a brancura
dos
edifícios públicos, erguia-se sob um sol em constante
canícula
o mundo das balanças, caduceus, cruzes, génios alados,
bandeiras, trombetas da Fama, rodas dentadas, martelos e
vitórias, com que se proclamavam, em bronze e pedra, a
abundância e prosperidade da urbe administrada por leis
exemplares. Mas quando chegavam as chuvas de Abril nunca
eram
suficientes os esgotos, e as praças centrais inundavam-se, o
que ocasionava tal desordem no trânsito que os veículos,
levados para bairros desconhecidos, derrubavam estátuas,
perdiam-se em becos sem saída, estampando-se, às vezes, em
barrancos que não se mostravam aos forasteiros nem aos
visitantes ilustres, porque estavam habitados por gentes que
passavam a vida meio-despidas, dedilhando guitarra, tocando
tambor e bebendo rum em canecas de lata. A luz eléctrica
penetrava em todos os lados e a mecânica trepidava sob os
telhados cheios de goteiras. Aqui as técnicas eram
assimiladas
com surpreendente facilidade, adoptando-se como rotina
quotidiana certos métodos que eram cautelosamente
experimentados, ainda, pelos povos mais antigos. O progresso
reflectia-se no nivelamento da grama, na ostentação das
embaixadas, na multiplicação dos pães e dos vinhos, na
satisfação dos mercados, cujos decanos conheceram a terrível
época dos anófeles. No entanto, havia algo

38

como que um pólen maligno no ar - pólen feiticeiro,


caruncho impalpável, volátil bolor - que punha em acção
misteriosos desígnios, abrindo o que estava fechado,
fechando
o que estava aberto ,
confundindo os cálculos, alterando o peso dos objectos,
deteriorando os produtos garantidos. Uma manhã, as ampolas
de
soro de um hospital foram encontradas repletas de fungos; os
aparelhos de precisão desajustavam-se; certos álcoois
começaram a borbulhar dentro das garrafas; o Rubens do Museu
Nacional era atacado por um parasita desconhecido que
desafiava os próprios ácidos; as pessoas precipitavam-se
para
os guichets de um banco onde nada tinha acontecido,
apavoradas
com as palavras de uma velha negra que a polícia procurava
em
vão. Quando essas coisas ocorriam ,
havia somente uma explicação para os que estavam nos
segredos da cidade: "É o Verme!" Ninguém vira o Verme. Mas o
Verme existia, entregue às suas artes de semear a confusão,
surgindo donde menos se esperava, para desconcertar a mais
comprovada experiência. Além disso, frequentes trovões
riscavam o céu, sem desencadearem uma verdadeira tempestade
e,
de dez em dez anos, centenas de casas eram derrubadas por um
ciclone que iniciava a sua dança circular em algum lugar do
Oceano. Como já voávamos muito baixo, em direcção à pista de
aterragem, perguntei ao meu companheiro que casa enorme e
acolhedora era aquela, toda rodeada de jardins em terraços,
cujas estátuas e fontes desciam até à orla do mar. Soube que
ali vivia o novo Presidente da República, e que poucos dias
antes poderia ter assistido aos festejos populares, com
desfiles de Mouros e Romanos, que acompanharam a sua solene
investidura. Mas já desaparece a bela residência sob a asa
esquerda do avião. Depois é o agradável regresso à terra, o
deslizar sobre o solo firme e a saída dos passageiros
ensurdecidos para a secção dos passaportes, onde se responde
às perguntas com cara de culpado. Aturdido pela mudança de
ar,
esperando os funcionários que, sem pressa, vão examinar as
nossas malas, penso que ainda não me habituei à ideia de me
encontrar tão longe das minhas
ocupações habituais. E ao mesmo tempo há como que uma luz
reencontrada, um odor a esparto quente, a água do mar que o
céu parece penetrar em profundidade até ao coração dos seus
leitos mais verdes - e também certa mudança de brisa que
traz
o fedor de crustáceos apodrecidos em alguma socava da costa.
Ao amanhecer, quando voávamos entre nuvens sujas, estava
arrependido de ter empreendido a viagem; tinha desejos de
aproveitar a primeira escala para regressar quanto antes e
devolver o dinheiro à Universidade. Sentia-me preso,
sequestrado, cúmplice de algo execrável, no interior do
avião
cuja envergadura oscilava num ritmo a três

39

tempos, lutando contra um vento adverso que lançava, às


vezes,
uma ténue chuva sobre o alumínio das asas. Mas agora, uma
estranha voluptuosidade adormece os meus escrúpulos. E uma
força me penetra lentamente pelos ouvidos, pelos poros: a
língua. Eis aqui, pois, a língua que falei na minha
infância;
a língua que aprendi a ler e a solfejar; a língua embolorada
em meu espírito pela falta de uso, posta de lado como
ferramenta inútil, num país onde pouco me pudera servir.

Esto, Fabio, ay dolor! que ves agora...

Este verso retorna ao meu espírito após um longo


esquecimento: ele é citado como exemplo de interjeição numa
pequena gramática que deve estar guardada em alguma parte
com
um
retrato de minha mãe e uma madeixa de cabelo louro que me
cortaram quando tinha seis anos. E é a língua desse verso
que
agora vejo inscrita nos letreiros das casas comerciais
através
das janelas da sala de espera; que ri e se deforma no jargão
dos bagageiros negros; que se faz caricatura num Biva el
Precidente!, e para cujos erros ortográficos chamo a atenção
de Mouche, com o orgulho de quem, a partir deste momento,
será
seu guia e intérprete na cidade desconhecida. Esta repentina
sensação de superioridade sobre ela vence os meus últimos
escrúpulos. Não me arrependo de ter vindo. E penso numa
possibilidade que até agora não me passara pela cabeça:
devem
vender-se, em algum lugar da cidade, os instrumentos cuja
colecção me foi encomendada. Seria inacreditável que alguém
-
um vendedor de objectos curiosos, um pesquisador farto de
caminhadas -não tivesse pensado em tirar proveito de coisas
tão procuradas pelos estrangeiros. Eu saberia encontrar esse
alguém, e então reduziria ao silêncio o desmancha-prazeres
que
trazia dentro de mim. Pareceu-me tão boa a ideia que, quando
já nos dirigíamos para o hotel através de bairros populares,
fiz que o automóvel parasse defronte de um bric-à-brac que
seria talvez, quem sabe, a minha providência. Era uma casa
de
grades emaranhadas, com gatos velhos em todas as janelas, e
em
cujas varandas dormitavam uns papagaios de plumas eriçadas,
como que cobertos de poeira, parecendo uma vegetação musgosa
nascida da fachada verdinhenta. O quinquilheiro-antiquário
não
sabia nada dos instrumentos que me interessavam, e, para
chamar a minha atenção sobre outros objectos, mostrou-me uma
grande caixa de música em que umas borboletas douradas,
montadas em martelos, tocavam valsas e redovas numa espécie
de
saltério. Sobre mesas cobertas de vasos apoiados em mãos de
coralina havia retratos de
monjas professas coroadas de flores. Uma Santa de Lima,
emergindo do cálice de uma rosa numa rodopiante revoada de
querubins, ocupava uma parede conjuntamente com cenas de
tauromaquia. Mouche agradou-se de um hipocampo encontrado
entre camafeus e jóias de coral, ainda que eu a advertisse
de
que os havia iguais em qualquer parte. "É o hipocampo negro
de
Rimbaud!", respondeu-me ela, pagando aquela poeirenta e
literária coisa. Eu, por meu lado, pretendera adquirir um
rosário filigranado, de confecção colonial, que estava numa
vitrina; mas era demasiado caro para mim, pois a cruz era
toda
ornada de pedras preciosas. Ao sair da loja, sob a insígnia
misteriosa de Caminho de Zoroastro, a minha mão roçou numa
alfavaca plantada num pote. Detive-me, profundamente
emocionado, ao reencontrar o perfume que se exalava da pele
de
uma menina - Maria del Carmen, filha de um jardineiro... -
quando brincávamos aos casados no patamar de uma casa
ensombreada por um largo tamarindo, enquanto minha mãe
ensaiava ao piano alguma habanera recentemente
editada.

(Quinta feira, 8)

A minha mão trémula procurava, sobre o mármore da mesa


de cabeceira, o despertador que está retinindo, talvez, no
ponto mais alto do mapa, a milhares de quilómetros de
distância. E necessito reflectir um pouco, deitando um longo
olhar sobre a praça, através das persianas, para compreender
que os meus hábitos quotidianos foram ludibriados pelo bater
de ferrinhos de um vendedor ambulante. Ouve-se depois a
chamarela de um amola-tesouras, estranhamente combinada com
o
melismático pregão de um corpulento negro que leva à cabeça
um
cesto de lulas. As
árvores, agitadas, pela brisa matinal, nevam de branca
penugem
uma estátua de homem célebre que tem algo de Lord Byron pela
tortuosa ondulação da gravata de bronze, e algo também de
Lamartine, pelo modo de apresentar uma bandeira a um grupo
de
invisíveis amotinados. Ao longe repicam os sinos de uma
igreja
num ritmo de modesta paróquia, conseguido com o fazer-se
guindar das cordas, e que desconhecem os carrilhões
eléctricos
das falsas torres góticas do meu país. Mouche, adormecida,

40 41

atravessou-se na cama de tal maneira que quase não tenho


espaço para me deitar. Às vezes, incomodada por um calor
fora
do normal, afasta o lençol de cima dela, enrodilhando-o
entre
as pernas. Contemplo-a longamente, um pouco irritado pela
decepção da
véspera: aquela crise de alergia, devida ao perfume de uma
laranjeira vizinha, que nos atingiu neste quarto andar,
pondo
fim às grandes euforias físicas que eu me prometera para
aquela primeira noite passada com ela num clima novo.
Acalmei-a com um soporífero, recorrendo depois à venda negra
para afundar mais rapidamente o meu despeito no sono. Volto
a
olhar através das persianas. Para lá do Palácio dos
Governadores, com suas colunas clássicas sustentando um
cornijamento barroco, reconheço a
fachada Segundo Império do teatro onde, ontem à noite, à
falta
de espectáculos mais coloridamente locais, nos receberam,
debaixo de grandes lustres de cristal, as marmóreas túnicas
das Musas sob a vigilância dos bustos de Meyerbeer,
Donizetti,
Rossini e Herold. Uma escada em caracol, com floreados
rococó
no corrimão,
conduzira-nos à sala de veludos vermelhos, com franjas
douradas sobre os parapeitos dos balcões, onde se afinavam
os
instrumentos da orquestra, cobertos pelas ruidosas
conversações da plateia. Toda a gente parecia conhecer-se.
Os
risos propagavam-se, atingiam os camarotes, de cuja cálida
penumbra emergiam braços desnudos, mãos que agitavam
objectos
de outras épocas como binóculos de nácar, lunetas de cabo e
leques de plumas. A carne dos decotes, a atadura dos seios,
os
ombros, tinham uma certa opulência flácida e polvilhada que
evocava o camafeu e a camiseta de rendas. Pensava
divertir-me
com os aspectos ridículos da ópera que ia representar-se
dentro das grandes tradições da bravura, da coloratura, da
fioritura. Mas já se levantara o pano sobre ojardim do
castelo
de Lamermoore, sem que o antiquado de uma cenografia de
falsas
perspectivas, trompe-loeil e magias despertasse a minha
ironia. Sentia-me dominado principalmente por um indefinido
encanto, feito de recordações imprecisas, de nostalgias
fragmentadas e longínquas. Este grande anfiteatro de veludo,
com seus generosos decotes, os lenços de renda entre a
tepidez
dos seios, as profundas cabeleiras, o perfume por vezes
excessivo; esse palco onde os cantores sublimavam as suas
árias com as mãos levadas ao coração, no meio de uma
majestosa
vegetação de papel pintado; esse complexo de tradições,
comportamentos, maneiras de fazer, impossível de se
encontrar
já numa grande capital moderna, era o mundo mágico do
teatro,
tal como o teria conhecido a minha ardente e pálida bisavó,
a
de olhos ora sensuais ora velados, toda vestida de cetim
branco, no retrato de Madrazo que tanto me

42

fizera sonhar na minha infância, antes de meu pai o ter


vendido num período de grande necessidade. Uma tarde em que
me
encontrava sozinho em casa, descobri no fundo de um baú o
livro com capas de marfim e fechadura de prata onde a dama
do
retrato escrevera o seu diário de noiva. Numa página, sob
pétalas de rosa que o tempo tornara cor de tabaco,
encontrei a
maravilhosa descrição de uma Gemma di Iergy cantada num
teatro
de Havana, que devia corresponder absolutamente ao que eu
contemplava esta noite. Os cocheiros negros de botas altas e
cartolas com roseta já não esperavam lá fora; os faróis das
corvetas não se balançariam no porto, nem haveria «cantoria»
em fim de festa. Mas, no entanto, o público apresentava os
mesmos rostos enrubescidos de prazer perante a representação
romântica; era a mesma desatenção perante as árias que as
primeiras figuras não cantavam, e que, apenas saídas de
páginas bem conhecidas, só serviam de fundo
melodioso a uma vasta conspiração de olhares intencionais,
de
olhadelas vigilantes, de cochichos por detrás dos leques, de
risos abafados, de novidades trocadas, de boas palavras,
desdéns e simulacros, jogo cujas regras me eram familiares,
mas que eu observava com a inveja de uma criança excluída de
um grande
baile de máscaras.
Chegado o intervalo, Mouche manifestara-se incapaz de
aguentar mais tempo, pois aquilo - dizia ela - era algo
assim
como "a Lucia vista por Madame Bovary em Rouenn". Ainda que
a
observação não estivesse isenta de alguma razão, fiquei
irritado, subitamente, por uma presunção muito habitual da
minha amiga, que a levava a tomar uma atitude hostil logo
que
estivesse em contacto com algo que desconhecesse as palavras
de ordem de certos ambientes artísticos frequentados por ela
na Europa. Não desprezava a ópera, neste momento, porque
alguma coisa tivesse chocado realmente a sua escassa
sensibilidade musical, mas porque se tornara um hábito da
sua
geração desprezar a ópera. Vendo que de nada servia a
argúcia
de evocar a Ópera de Parma na época de Stendhal para
conseguir
que ela voltasse para o seu lugar, saí do teatro
contrariadíssimo. Sentia necessidade de discutir com ela
agressivamente, para me antecipar a um tipo de reacções que
podiam estragar-me os melhores prazeres desta viagem. Queria
neutralizar de antemão certas críticas previsíveis para mim
que conhecia as questões, sempre imbuídas de preconceitos
intelectuais, que em sua casa se processavam. Mas logo nos
veio ao encontro uma noite mais profunda que a noite do
teatro: uma noite que se nos impôs pelos seus valores de
silêncio, pela solenidade da sua presença carregada de
astros.

43

podia rompê-la momentaneamente qualquer estridência do


trânsito, mas logo se incorporava, invadindo vestíbulos e
portões, adensando-se em casas de janelas abertas que
pareciam
desabitadas, caindo sobre as ruas desertas, de grandes
arcadas
de pedra. Um rumor fez-nos parar, assombrados,
obrigando-nos a
caminhar de um lado para o outro para comprovar a maravilha:
os nossos passos ressoavam no passeio fronteiro. Numa praça,
frente a uma igreja sem estilo, toda feita de sombras e
estuques, havia uma fonte de tritões na qual um cão felpudo,
soerguido nas patas traseiras, enfiava a língua com
deleitoso
gorgulejar. Os ponteiros dos relógios arrastavam-se
lentamente, marcando as horas a seu belprazer, desde
vetustos
campanários a frontispícios municipais. Descendo a encosta,
em
direcção ao mar, adivinhava-se a agitação dos bairros
modernos; por mais que ao longe estremecessem, em caracteres
luminosos, os invariáveis anúncios dos estabelecimentos
nocturnos, era bem evidente que a realidade da urbe, seu
temperamento e personalidade, se expressava aqui na sua vida
diária e na sua arquitectura. Ao fundo da rua encontrámo-nos
frente a um casarão de grandes
arcadas e musgoso telhado, cujasjanelas se abriam sobre um
salão adornado com velhos quadros de molduras douradas.
Metemos a cara entre as grades, descobrindo que junto a um
magnífico general de barretina e galões, ao lado de uma
pintura esquisita representando três damas passeando num
coche, havia um retrato da senhorita Taglioni, com pequenas
asas de libélula no decote. As luzes cintilavam nos cristais
lapidados e não se lobrigava, no entanto, uma presença
humana
nos corredores que conduziam a outras salas iluminadas. Era
como se um século antes se tivesse preparado tudo para um
baile ao qual jamais alguém assistira. De súbito, num piano
a
que os trópicos deram uma sonoridade de
espineta, soou a pomposa introdução de uma valsa tocada a
quatro mãos. Depois, a brisa agitou as cortinas e o salão
inteiro deu a impressão de se desvanecer numa revoada de
tules
e rendas. Quebrado o sortilégio, Mouche declarou que estava
fatigada. Quanto mais me deixava arrastar pelo encanto dessa
noite que me revelava o significado exacto de certas
recordações vagas, a minha amiga destruía as delícias de uma
paz esquecida do tempo, que pudera levar-me até à madrugada
sem cansaço algum. Além, por cima do
telhado, as estrelas presentes desenhavam talvez os vértices
da Hidra, do Navio Argos, do Sagitário e da Cabeleira de
Berenice, com que se adornaria o estúdio de Mouche. Mas fora
inútil
perguntar-lhe, pois ela ignorava como eu, o lugar exacto das
constelações, salvo o das Ursas. Ao reparar agora no
burlesco
desse desconhecimento para quem vivia dos astros, desatei a
44

rir, voltando-me para a minha amiga. Ela abriu os olhos sem


acordar, olhou-me sem me ver, suspirou profundamente e
virou-se para a parede. Tive vontade de me deitar novamente;
mas pensei que seria bom, enquanto ela dormia, aproveitar
esse
momento para iniciar a busca dos instrumentos indígenas - a
ideia tornava-se-me obsessiva - tal como pensara na véspera.
Sabia que ao ver-me tão empenhado nessa questão
chamar-me-ia,
pelo menos, ingénuo. Por isso mesmo, vesti-me
apressadamente e
saí sem a acordar.
O sol invadindo as ruas, irradiando sobre os vidros,
lançando seus raios inquietos sobre a água dos tanques, era
para mim tão estranho, tão novo, que para o enfrentar tive
de
comprar óculos escuros. Depois tomei a direcção do bairro do
casarão colonial, em cujos arredores haveria adelos e lojas
de
antiguidades. Subindo uma rua de passeios estreitos
detinha-me, às vezes, para contemplar a exposição de
pequenos
artigos, cujo aspecto fazia lembrar o artesanato de outrora;
eram as letras floreadas do Cosmorama, a Bota de Ouro, o Rei
Midas e a Harpa melodiosa, junto ao Planisfério pendurado
num
alfarrabista, que girava ao sabor da brisa. Numa esquina, um
homem abanava um fogareiro sobre o qual
assava uma perna de vitela, eriçada de alhos, cuja gordura
expelia uma fumarada acre, sob uma camada de oregãos, limão
e
pimenta. Mais além serviam-se sangrias e carapinhadas, sobre
as manchas de azeite deixadas pelo peixe frito. Subitamente,
um calor de fogaças mornas, de massa recém-saída do forno,
brotou dos respiradoiros de uma cave, em cuja penumbra se
afanavam, cantando, vários homens, brancos dos pés à cabeça.
Detive-me com deleitosa surpresa. Há muito tempo já que essa
presença da farinha, pela manhã, não me era lembrada, lá
onde
o pão, amassado sabe Deus
onde, transportado de noite em camiões fechados, como uma
mercadoria vergonhosa, deixara de ser o pão que se parte com
as mãos, o pão que o padre reparte depois de ser benzido, o
pão que se deve agarrar num gesto respeitoso antes de se
partir a sua côdea sobre a grande tijela cheia de sopa de
alhos-porros ou de o aspergir com azeite e sal, para
reencontrar um sabor que, mais que sabor a pão com azeite e
sal, é o grande mediterrânico que já levavam
agarrado à língua os companheiros de Ulisses. Este
reencontro
com a farinha, a descoberta de uma montra que exibia
gravuras
com mestiços dançando a marinera, destraíam-me do objectivo
da
minha deambulação por ruas desconhecidas. Aqui, detinha-me
perante um fuzilamento de Maximiliano; além, folheava uma
velha edição dOs Incas de Marmontel, cujas ilustrações
tinham
algo de estética maçónica da Flauta Mágica. Escutava um

45
mambrú cantado pelas crianças que brincavam num pátio com
odor
a natas. E assim, atraído agora pela frescura matinal de um
velho cemitério, caminhava à sombra dos seus ciprestes,
entre
tumbas que estavam como que abandonadas no meio de ervas e
campânulas. Às veses, atrás de um vidro encardido pelos
fungos, aparecia um velho retrato do defunto que ali jazia
sob
o mármore: um estudante de olhos febris, um veterano da
Guerra
das Fronteiras, uma poetisa coroada de loureiros. Eu
contemplava o monumento às vítimas de um naufrágio fluvial,
quando o ar foi rasgado, em alguma parte, como papel
encerado,
por uma descarga de metralhadoras. Eram os alunos de uma
escola militar, sem dúvida, que se adestravam no manejo das
armas. Fez-se um silêncio; e depois voltaram a enredar-se
novamente os arrulhos das pombas que inflavam o papo em
redor
dos vasos romanos.

Estos, Fabio, ay dolor!, que ves agora,


campos de soledad, mustio collado,
fueron un tiempo Itálica famosa.

Repetia e tornava a repetir estes versos que me vinham


aos pedaços desde a minha chegada, até que se
reconstituíssem
na
minha memória, quando se ouviu novamente, com mais força, o
matraquear das metralhadoras. Uma criança passou a toda a
pressa, seguida de uma mulher espavorida, descalça, que
levava
uma quantidade de roupas molhadas nos braços, e parecia
fugir
de um grande perigo. Uma voz gritou algures, por detrás dos
taipais: "Já começou! Já começou!" Um pouco inquieto, saí do
cemitério
em direcção à zona moderna da cidade. Depressa me apercebi
de
que as ruas estavam vazias de transeuntes e que as lojas
tinham fechado as portas e corrido as suas cortinas
metálicas
com uma rapidez que nada de bom augurava. Retirei o meu
passaporte do bolso, como se os carimbos impressos entre as
capas tivessem alguma eficácia protectora, quando uma
gritaria
me deteve, verdadeiramente assustado, junto de uma coluna.
Uma
multidão vociferante, fustigada pelo medo, desembocou de uma
avenida, derrubando tudo para escapar a uma grossa
fuzilaria.
Choviam pedaços de vidro. As balas embatiam no metal dos
postes eléctricos, fazendo-os vibrar como tubos de órgão que
recebessem uma saraivada de pedras. A chicotada de um
cabo de alta-tensão acabou por esvaziar a rua, cujo asfalto
se
incendiou em vários sítios. Perto de mim, um vendedor de
laranjas caiu de bruços, deixando rolar as frutas que se
desviavam e saltavam quando uma bala as atingia ao
rés-do-solo. Corri em direcção à esquina mais próxima,
para me refugiar num átrio de cujos pilares pendiam bilhetes
de lotaria abandonados na altura da fuga. Só um mercado de
pássaros me separava, agora, das traseiras do hotel.
Pressionado pelo zumbir de uma bala que, depois de passar
sobre o meu ombro, esburacara a montra de uma farmácia,
desatei a correr. Saltando por cima das gaiolas, atropelando
canários, calcando colibris, derrubando poleiros de
piriquitos
espavoridos, acabei por chegar a uma das portas de serviço
que
ficara aberta. Um tucano, que arrastava uma asa quebrada,
vinha saltando atrás de mim, como que pedindo a minha
protecção. Pousada sobre o guiador de uma bicicleta
abandonada, uma magnífica arara permanecia no meio da praça
deserta, sozinha, aquecendo-se ao sol. Subi ao nosso quarto.
Mouche continuava dormindo, abraçada a uma almofada, com a
camisa pelas ancas e os pés enrodilhados nos lençóis.
Tranquilizado a seu respeito, desci ao hall para me
informar.
Falava-se de uma revolução. Mas isto pouco significava para
quem, como eu, desconhecia a história daquele país antes da
Descoberta, da Conquista e das viagens de alguns frades que
comentaram os instrumentos musicais dos seus primitivos
habitantes. Pus-me então a interrogar todos aqueles que, a
julgar pelos seus numerosos comentários e o calor dos seus
discursos, pareciam estar bem informados. Mas logo reparei
que
cada pessoa dava uma versão diferente dos acontecimentos,
mencionando personalidades cujos nomes, evidentemente, nada
significavam para mim. Tratei então de conhecer as
tendências,
as aspirações dos partidos em questão, sem conseguir chegar
a
resultados concretos. Quando julgava compreender que se
tratava de um movimento de socialistas contra conservadores
ou
radicais, de comunistas contra católicos, as cartas
baralhavam-se, ficavam invertidas as posições, e voltavam a
mencionar-se os nomes, como se tudo o que acontecia fosse
mais
uma questão de pessoas do que de partidos. De cada vez que
me
interrogava era devolvido à minha ignorância pela relação
dos
factos que me pareciam histórias de guelfos e gibelinos,
pelo
seu surpreendente aspecto de questão familiar, de querela de
irmãos inimigos, de luta entre gente que ainda ontem estava
unida. Quando me aproximava do que podia ser, segundo a
minha
maneira de raciocinar, um conflito político próprio da nossa
época, caía em algo que mais se assemelhava a uma guerra de
carácter religioso do que qualquer outra coisa. As
rivalidades
entre aqueles que pareciam representar a tendência avançada
e
a posição conservadora a igurava-se-me, pelo espantoso
desajuste cronológico das opiniões, como uma espécie de
batalha desatada, para lá do tempo, entre homens que viveram
em séculos diferentes.

46 47

"É muito justo" respondia-me um advogado de labita,


antiquado, que parecia aceitar os acontecimentos com uma
surpreendente calma; "pense que, por tradição, nós estamos
habituados ao
convívio de Rousseau com o Santo-Ofício, e dos estandartes
com
as insígnias da Virgem com o Capital..." Entretanto, Mouche
apareceu muito angustiada, pois fora acordada pelas sirenes
das ambulâncias que passavam, agora, cada vez em maior
quantidade, desembocando em pleno mercado de pássaros, onde,
ao depararem subitamente com o falso obstáculo das gaiolas
amontoadas, os condutores travavam brutalmente, esmagando
com
um solavanco as últimas pegas e verdilhões que restavam.
Perante a desagradável perspectiva da forçada clausura, a
minha amiga irritou-se grandemente contra os acontecimentos
que transtornavam todos os seus planos. No bar, os
estrangeiros jogavam às cartas e aos dados com mau humor,
bebendo e resmungando contra os países mestiços que
tinham sempre uma desordem de reserva. Soubemos, entretanto,
que vários criados do hotel tinham desaparecido. Vimo-los
passar, pouco depois, sob as arcadas fronteiras, armados de
Mausers, com várias cartucheiras em bandoleira. Ao vermos
que
ainda conservavam os casacos brancos de serviço, rimo-nos do
seu aspecto marcial. Mas, ao chegarem à esquina mais
próxima,
os dois que iam à frente, dobraram-se, de repente, atingidos
no ventre por uma rajada de metralhadora. Mouche soltou
um grito de terror, levando as mãos ao seu próprio
ventre.
Recuámos todos em silêncio para o fundo do hall, sem
conseguirmos retirar os olhos daqueles corpos estendidos
sobre
o asfalto ensanguentado, insensíveisjá às balas que neles
penetravam ainda, deixando novas marcas sangrentas na
brancura
do cotim. Agora, a risota feita um pouco antes
pareceu-nos abjecta. Se nestes países se morria por paixões
que me eram incompreensíveis, não era por esse motivo que
a
morte
deixava de ser menos morte. À beira de ruínas contempladas
sem
orgulho de vencedor, eu pusera o pé, mais que uma vez,
sobre corpos de homens mortos por defenderem causas que não
podiam ser piores do que as invocadas aqui. Nesse momento
passaram vários carros blindados - refugo da nossa guerra
-, e
quando o ruído das suas cremalheiras deixou de se ouvir,
pareceu-me que o combate na rua recobrara uma maior
intensidade. Nas
imediações da fortaleza de Filipe II, as descargas
fundiam-se
por momentos num fragor compacto que não permitia ouvir já
as
detonações isoladas, estremecendo o ar com uma ininterrupta
deflagração que se aproximava ou afastava conforme a
direcção do vento, como ondas de mar quebrando-se ao
fundo. Às vezes, no entanto, havia uma trégua repentina.
Parecia
que tudo terminara.

48

Ouvia-se o choro de uma criança doente na vizinhança, um


galo cantava, uma porta batia. Mas, subitamente, uma
metralhadora entrava em acção e os estrondos retornavam,
aumentados com os uivos desgarrados das ambulâncias. Um
morteiro acabava de
abrir fogo perto da antiga Catedral, em cujos sinos uma bala
batia às vezes com sonora martelada. "Eh, bien, c'est gai!",
exclamou a nosso lado uma mulher de voz melodiosa e grave,
com
acento um pouco afectado, que se apresentou como canadiana e
pintora, divorciada de um diplomata da América Central.
Aproveitei a oportunidade para deixar Mouche a conversar, e
ir
beber um copo que me fizesse esquecer a presença, tão
próxima,
dos cadáveres que acabavam de se tornar rígidos, junto ao
passeio. Depois de um almoço de carnes frias que não
augurava
nenhum futuro banquete, as horas da tarde passaram com
incrível rapidez, entre leituras desordenadas, partidas de
cartas, conversas desligadas de qualquer assunto, que não
conseguiam esconder a angústia geral. Quando chegou a noite,
Mouche e eu começámos a beber desaforadamente, fechados em
nosso quarto, para não pensarmos demasiado nos
acontecimentos;
finalmente, encontrada a disponibilidade necessária,
entregámo-nos aos jogos dos corpos, sentindo uma
estranha e viva voluptuosidade ao abraçarmo-nos, enquanto
outros, à nossa volta, se entregavam a jogos de morte. Havia
algo do frenesim que anima os amantes de danças macabras no
desejo de nos estreitarmos mais - de levar a minha
possessão a
um grau quase impossível - quando as balas zuniam por detrás
das persianas, ou se incrustravam, quebrando o estuque,
sobre
a cúpula que coroava o edifício. Por fim adormecemos sobre o
claro tapete que cobria o soalho. E foi essa a primeira
noite,
depois de muito tempo, em que descansámos sem mascarilha nem
drogas.

VI

(Sexta feira, 9)

No dia seguinte, impedidos de sair, tratámos de nos


adaptar à realidade de cidade sitiada, de barco de
quarentena,
que nos impunham os acontecimentos. Mas, longe de nos
incitar
à
preguiça, a trágica situação que reinava nas ruas
traduzia-se,
entre estas paredes que nos defendiam do exterior, numa
necessidade de fazer qualquer coisa. Quem tinha uma
profissão
tratava de arranjar um atelier ou um escritório, como que
para
demonstrar aos outros que nas situações

49

anormais era necessário agarrar-se a ocupações duradoiras.


Sobre o estrado de música da sala de jantar, um pianista
executava os trilos e requebros de um rondó clássico,
procurando sonoridades de cravo sob as teclas demasiado
duras.
As segundas bailarinas de uma companhia de ballet faziam
barras ao longo do bar, enquanto a estrela aprimorava lentos
arabescos sobre o encerado do pavimento, entre as mesas
encostadas às paredes. Retiniam máquinas de escrever por
todo
o edifício. Na sala de correspondência, os negociantes
manuseavam o conteúdo de grandes carteiras de pele de
bezerro.
Frente ao espelho do seu quarto, o Kappelmeister austríaco,
convidado pela Sociedade Filarmónica da cidade, dirigia o
Requiem de Brahms com gestos magníficos, dando as entradas
de
uma fuga a um vasto coro imaginário. No quiosque não havia
uma
única revista, um romance policial, qualquer leitura que
distraísse. Mouche foi à procura do seu fato de banho,
depois
abriram-se as portas de um pátio resguardado, onde alguns
inactivos tomavam banhos de sol em redor de uma fonte de
mosaicos, entre arecas metidas em potes e rãs de cerâmica
verde. Verifiquei com inquietação que os hóspedes precavidos
tinham feito provisão de tabaco, esgotando os cigarros da
tabacaria do hotel. Aproximei-me da entrada do hall, cuja
grade de bronze estava fechada. Lá fora, o tiroteio
diminuíra
de intensidade. Dava a impressão de haver como que pequenos
grupos, guerrilhas, que se enfrentavam em diferentes
bairros,
desencadeando pequenas batalhas, mas implacáveis, ajulgar
pelas detonações precipitadas. Nos telhados e terraços
ouviam-se tiros isolados. Havia um grande incêndio na parte
norte da cidade: dizia-se que era um quartel que estava a
arder. Como os nomes que pareciam dominar os acontecimentos
nada significavam para mim, renunciei a fazer perguntas.
Embrenhei-me na leitura de velhos jornais, distraindo-me com
as notícias de regiões longínquas, que frequentemente se
referiam a tempestades, cetáceos arrojados às praias e
feitiçarias. Deram as onze horas - momento que eu
esperava com certa impaciência - e reparei que as mesas
do bar
continuavam encostadas às paredes. Soube-se então que os
últimos criados fiéis tinham partido, pouco depois da
madrugada, para se juntarem à revolução. Esta notícia,
que
não me pareceu muito alarmante, teve o efeito de produzir
um verdadeiro pânico entre os hóspedes. Abandonando as
suas
ocupações, acorreram todos ao hall, onde o gerente
tentava acalmar os ânimos. Ao saber que não haveria pão
nesse dia,
uma mulher desatou a chorar. Entretanto, uma torneira
aberta expeliu um gargarejo enferrujado, aspirando depois
uma
espécie de tirolesa que circulou por todos os canos

50

do edifício. Ao ver cair o jorro que brotava da boca do


tritão, no meio da fonte, compreendemos que a partir
daquele momento só poderíamos contar com as nossas
reservas de água, que eram escassas. Falou-se de
epidemias, de
calamidades, que seriam agravadas pelo clima tropical.
Alguém tentou comunicar com o seu Consulado: os telefones
estavam cortados, a corrente faltava, o que lhes dava um
ar de manetas, com o seu único auscultador pendurado no
gancho, e tão inúteis no seu mutismo, que muitas das
pessoas,
irritadas, abanavam-nos, batiam com eles nas mesas, para
os fazer falar. "É o Verme", dizia o gerente, repetindo o
gracejo que, na capital, acabara por ser a explicação de
todas
as catástrofes. "É o Verme." E eu pensava no muito que o
homem se exaspera, quando as suas máquinas deixam de lhe
obedecer
,
enquanto andava à procura de um escadote, para subir até ao
postigo de uma casa de banho do quarto andar, do qual se
podia
olhar para o exterior sem perigo. Cansado de ver um panorama
de telhados, reparei que algo de surpreendente se passava ao
nível dos meus sapatos. Era como se uma vida subterrânea se
tivesse manifestado, subitamente, retirando das sombras uma
multidão de bestiolas estranhas. Pelos tubos sem água,
cheios
de soluços remotos, chegavam insectos bizarros, cochinilhas
de
carapaças mosqueadas, e, como que engulosinadas pelo sabão,
umas centopeias pequenas, que se enrolavam ao menor ruído,
imobilizando-se no pavimento como uma diminuta espiral de
cobre. Das torneiras surgiam antenas que espreitavam,
desconfiadas, sem mostrarem o corpo que as movia. Os
armários
enchiam-se de ruídos quase imperceptíveis, papel roído,
madeira raspada, e quem abrisse uma porta, de
súbito, provocaria fugas de insectos ainda inábeis em correr
sobre a madeira encerada, que ao mais pequeno resvalo
ficavam
de patas para o ar, fazendo-se de mortos. Um frasco contendo
uma poção açucarada, deixado sobre uma mesa de cabeceira,
atraía uma caravana de formigas vermelhas. Havia alimárias
debaixo dos tapetes e aranhas que espreitavam pelo buraco
das
fechaduras. Algumas horas de desordem, de desatenção do
homem
pela sua obra, bastaram, nesta cidade, para que os seres do
húmus, aproveitando a falta de água dos canos interiores,
invadissem a praça sitiada. Uma explosão muito próxima
fez-me
esquecer os insectos. Voltei ao hall, onde o nervosismo
estava
no auge. O Kappelmeister apareceu no alto da escadaria,
batuta
na mão, atraído pelo barulho das discussões. Perante a sua
cabeça despenteada, o seu olhar severo e sombrio, fez-se um
silêncio. Olhávamo-lo com uma confiante
expectativa, como se fora investido de extraordinários
poderes
para aliviar a nossa angústia. Usando de uma autoridade à
qual

51

a sua profissão o havia acostumado, o maestro censurou a


pusilaminidade dos alarmistas, e exigiu a nomeação imediata
de
uma comissão de hóspedes, encarregada de tomar conta da
situação,
quanto à existência de alimentos no edifício; em caso
contrário, ele, habituado a dirigir, imporia o
racionamento. E
para acalmar os ânimos, terminou invocando o sublime exemplo
do Testamento de Heiligenstadt. Algum cadáver, algum animal
morto, estava apodrecendo ao sol, perto do hotel, pois um
fedor de carne putrefacta penetrava pelas clarabóias do bar,
únicas janelas exteriores que podiam ter-se abertas sem
perigo, no rés-do-chão, por estarem mais acima da mísula que
rematava os revestimentos de mogno. Além disso, desde manhã,
parecia que as moscas se tinham multiplicado, voando com
exasperante insistência em redor das cabeças. Cansada de
permanecer no pátio, Mouche entrou no hall, atando o cordão
da
sua bata de felpo, queixando-se de que lhe tinham dado
apenas
meio balde de água para o duche, depois do banho de sol.
Acompanhava-a a pintora canadiana de voz melodiosa e grave,
não muito bonita, mas atraente apesar de tudo, que nos fora
apresentada na véspera. Conhecia o país e encarava os
acontecimentos com uma despreocupação que tinha a virtude de
amenizar a contrariedade da minha amiga, afirmando que a
situação se resolveria rapidamente. Deixei Mouche com a sua
nova amiga e, respondendo ao apelo do Kappelmeister, desci à
cave com os membros da Comissão para proceder a um
inventário
das subsistências. Verificámos rapidamente que era possível
resistir ao cerco durante umas duas semanas, com a condição
de
não abusar daquilo que havia. O gerente, auxiliado pelo
pessoal estrangeiro do hotel, comprometia-se a preparar para
cada refeição um guisado simples de que nós próprios nos
servíamos nas cozinhas. Caminhávamos sobre uma serradura
húmida e fresca e a penumbra que reinava nessa dependência
subterrânea, com seus odores de gordura, convidava à
moleza. Bem dispostos, fomos inspeccionar a adega onde havia
garrafas e tonéis para muito tempo... Ao notarem que
demorávamos a
regressar, os outros desceram aos corredores da cave,
encontrando-nos ao pé das vasilhas, bebendo por todos os
recipientes que tínhamos à mão. A nossa informação
suscitou
uma alegria contagiosa. Toda a gente se pôs a encher
garrafas e o álcool invadiu o edifício, desde as caves ao
primeiro andar, provocando a substituição das máquinas de
escrever pelos gramofones. A tensão nervosa das últimas
horas transformara-se, para a maior parte, num desenfreado
desejo de beber, enquanto o fedor da carne putrefacta se
tornava mais penetrante e os insectos estavam por todos os
sítios. Somente o Kappelmeister continuava

52
de má catadura, amaldiçoando os agitados que, com a sua
revolução, haviam impedido os ensaios do Requiem de Brahms.
No seu despeito evocava uma carta em que Goethe cantava a
natureza domesticada, "liberta para sempre das suas loucas e
febris comoções".
"Aqui, a selva!", rugia ele, estendendo os seus
compridíssimos braços, como quando arrancava um fortissimo
som
à sua orquestra. A palavra «selva» fez-me olhar para o pátio
das arecas em potes, que tinham algo de grandes palmeiras
quando vistas através da penumbra, na reverberação de
paredes fechadas, em cima, por um céu sem nuvens que
traçava, às vezes, o voo de um abutre atraído pela carne
putrefacta. Julgava que Mouche tinha voltado para o seu
canapé; ao não a ver ali, pensei que estaria a vestir-se.
Mas
também não estava no nosso quarto. Depois de a esperar algum
tempo, o álcool bebido manhã cedo, em grandes quantidades,
levou-me a procurá-la. Saí do bar como quem decide um
importante empreendimento, subindo a escada que partia do
hall, entre duas cariátides de aspecto marmóreo e solene.
Uma aguardente local com sabor a mel, misturada a outros
álcoois vulgares, dera ao meu rosto uma expressão falsamente
impassível; subitamente bêbado, fui do corrimão à parede,
tacteando como um cego na escuridão. Quando me vi sobre
degraus mais estreitos, numa espécie de falso mármore
amarelo,
apercebi-me de que já tinha ultrapassado o quarto andar,
depois de muito ter andado, sem ter a menor ideia de onde se
encontrava a minha amiga. Mas continuava o meu caminho,
alagado de suor, obstinado, com uma tenacidade que não
chegava
a distrair aqueles que se afastavam ironicamente para me
deixar passar. Percorria intermináveis corredores sobre uma
passadeira vermelha, da largura de um carreiro, perante
portas
numeradas - intoleravelmente numeradas - que ia contando na
passagem, como se isso fizesse parte do trabalho imposto. De
súbito, uma forma conhecida fez-me deter, titubeando, com a
sensação estranha de que não tinha viajado, de que sempre
estivera além, em alguma das minhas deslocações quotidianas,
em alguma casa sem estilo e impessoal. Eu conhecia este
extintor de metal vermelho, com a sua placa de instruções;
eu
conhecia, há muito tempo também, a passadeira que pisava, os
modilhões do tecto, e esses algarismos de bronze por detrás
dos quais estavam os mesmos móveis, os mesmos utensílios, os
mesmos objectos dispostos de idêntica maneira, junto de
alguma
gravura representando a Jungfrau, o Niagara ou a Torre de
Pisa. Essa ideia de não me ter mudado fez passar sobre o meu
corpo a
contracção do rosto. Regressado a um mundo de colmeias,

53

senti-me oprimido, comprimido, entre estas duas paredes


paralelas, onde as vassouras abandonadas pelos serventes
pareciam
ferramentas deixadas por degredados em fuga. Era como se
estivesse cumprindo a atroz condenação de passar toda uma
eternidade entre números, folhas de um grande calendário
fixadas nas paredes - cronologia de labirinto, que podia ser
da minha vida, com a sua eterna obsessão do tempo, dentro de
uma precipitação que apenas servia para me devolver, cada
manhã, ao ponto de partida da véspera. Não sabia já quem
procurava, naquele alinhamento de quartos, onde os homens
não
deixavam qualquer recordação da sua passagem. Angustiava-me
a
quantidade de degraus que tinha de subir ainda, para chegar
ao
andar onde o edifício se despia de gessos e ornatos em forma
de acantos, feito de cimento cinzento com pedaços de papel
colado sobre os vidros quebrados, para proteger os criados
das
intempéries. O absurdo desta minha diligência fez-me
lembrar a
Teoria do Verme, única explicação do trabalho de Sísifo, que
eu estava cumprindo, com uma pedra-fêmea às costas. O riso
que
me provocou esta ideia afastou da minha cabeça o desejo de
procurar Mouche. Eu sabia que quando ela bebia se tornava
particularmente vulnerável a toda a solicitação dos sentidos
e, ainda que isto não significasse uma vontade real de
aviltar, podia levá-la ao limite das curiosidades mais
equívocas. Mas isto deixava de interessar-me perante o
pesado
odre que as minhas pernas arrastavam. Voltei ao nosso quarto
imerso em penumbra e deixei-me cair sobre a cama, de bruços,
afundando-me num sono que imediatamente se transformou em
pesadelos cuja ideia central era o calor e a sede.
Tinha a boca seca, de facto, quando ouvi que me chamavam.
Mouche estava de pé, a meu lado, juntamente com a pintora
canadiana que conhecêramos no dia anterior. Pela terceira
vez
voltava a encontrar-me com essa mulher de corpo um tanto
anguloso cujo rosto de nariz direito sob uma fronte
obstinada
tinha uma certa impassibilidade de estátua que contrastava
com
uma boca insuficientemente desenvolvida, gulosa, de
adolescente. Perguntei à minha amiga onde estivera durante
aquele meio dia. "Acabou a revolução", disse, a modos de
resposta. Parecia, de facto, que as estações de rádio
estavam anunciando a vitória do partido vencedor e o
aprisionamento dos membros do anterior governo, pois aqui,
segundo me disseram, a passagem do poder à prisão era muito
frequente. Ia alegrar-me com o fim da nossa clausura, quando
Mouche me avisou que durante um tempo indefinido
haveria toque de recolher obrigatório, dado às seis da
tarde, com severíssimas sanções para quem fosse encontrado

54

nas ruas depois dessa hora. Perante este contratempo, que


impedia toda a
diversão da nossa viagem, pensei num regresso imediato que,
além do mais, permitir-me-ia apresentar perante o
Conservador
com as mãos vazias, providencialmente dispensado de
devolver o
dinheiro gasto na vã empresa. Mas a minha amiga estava já
informada de que as companhias de aviação, extravasando de
pedidos semelhantes,
não poderiam conceder-nos passagens antes de uma semana,
pelo
menos. Além disso, não me pareceu que estivesse muito
contrariada e perante os factos, atribuí essa resignação à
impressão de alívio que produz, forçosamente, o desfecho de
qualquer situação violenta. Foi então que a pintora,
respondendo a uma palavra de Mouche, me pediu que
passássemos
alguns dias na sua casa de Los Altos, aprazível povoação de
veraneio, muito frequentada pelos estrangeiros, por causa do
seu clima e dos seus ourives, na qual, por isso mesmo, os
regulamentos da polícia eram aplicados com uma certa
brandura.
Tinha ali o seu estúdio, numa casa do século XVII, adquirida
por uma bagatela, cujo pátio principal parecia uma réplica
do
pátio da Pousada de la Saugre, em Toledo. Mouche aceitara
já o
convite, sem me consultar, e falava de alamedas floridas de
hortênsias silvestres, de um convento que tinha altares
barrocos, magníficos tectos de caixotões, e uma sala onde os
professores se flagelavam, ao pé de um Cristo negro, frente
à
horripilante relíquia da língua de um bispo, conservada em
álcool para lembrança da sua eloquência. Permaneci indeciso,
sem responder, não por falta de vontade, mas por estar
irritado com o desembaraço da minha amiga, e, como tinha
passado o perigo, abri ajanela sobre um crepúsculo
anoitecido.
Notei então que as duas mulheres se tinham vestido
aparatosamente para descerem à sala de jantar. Ia rir-me
disso
quando vi na rua algo que me interessou bastante: uma
mercearia, que me chamou a atenção pelo seu curioso nome de
La
Fe en Dios, com résteas de alhos pendurados nas vigas,
abria a
sua porta mais pequena para dar passagem a um homem que se
aproximava rente às paredes, com uma cesta enfiada no braço.
Pouco depois saía, carregado de pães e garrafas, com um
charuto na boca, aceso. Como tinha acordado com uma
lancinante
vontade de fumar e não havia tabaco no hotel, chamei a
atenção
de Mouche para isso, ela que estava prestes a aproveitar as
piriscas. Desci as escadas e, com medo de que a loja
fechasse,
atravessei a praça numa correria. Já tinha vinte maços de
cigarros nas mãos quando rebenta um tiroteio à entrada da
rua
mais próxima. Alguns franco-atiradores, postados sobre a
vertente interior de um telhado, responderam com
espingardas e
pistolas por cima da linha de fogo. O dono da loja fechou

55

apressadamente a porta, colocando grossas trancas por detrás


das ombreiras. Sentei-me num banco, desnorteado,
apercebendo-me da imprudência cometida ao confiar nas
palavras
da minha amiga. A revolução tinha
acabado, talvez, no que se referia à tomada dos centros
vitais
da cidade; mas continuava a perseguição aos grupos rebeldes.
Nas traseiras da loja, várias vozes de mulheres murmuravam o
rosário. Um odor a badejo em salmoura ficou-me atravessado
na
garganta. Virei umas cartas deixadas sobre o balcão,
reconhecendo os paus, copas, ouros e espadas dos jogos
espanhóis, cujas cores tinha esquecido. Agora os disparos
tornavam-se mais espaçados. O merceeiro olhava-me em
silêncio,
fumando um charuto, sob uma litografia simbolizando a
miséria
de quem vendeu a crédito, e a feliz opulência de quem
vendeu a
pronto.
A calma que reinava dentro desta casa, o perfume
dos jasmins que cresciam debaixo de uma romãzeira no pátio
interior, a
gota de água filtrada por um velho cântaro, deixavam-me
imerso
numa espécie de modorra: um dormir sem dormir, entre
cabeceamentos que me devolviam à realidade por alguns
instantes. Deram as oito no relógio de parede. Já não se
ouviam tiros. Entreabri a porta e olhei na direcção do
hotel.
No meio das trevas que o rodeavam brilhava por todas as
clarabóias do bar e os lustres do hall que se apercebiam
através das grades da porta encimada por um toldo. Ouviam-se
aplausos. Ao escutar seguidamente os primeiros compassos de
Les Barricades Mystérieuses, percebi que o pianista estava
executando algumas das peças estudadas naquela manhã ao
piano
da sala de jantar, e com muitos copos bebidos, sem dúvida,
pois os dedos falhavam-lhe constantemente nos adornos e
appogiaturas. Na sobreloja, por detrás das persianas de
ferro,
dançava-se. Todo o edifício estava em festa. Apertei a mão
ao
merceeiro e decidi-me a correr, quando soou um tiro - um
apenas - e uma bala zuniu a poucos metros, a uma altura que
podia ser a do meu peito. Recuei, com um medo atroz. Eu
tinha conhecido a guerra, naturalmente; mas a guerra, vivida
como intérprete do Estado Maior, era uma coisa diferente: o
risco repartia-se entre muitos e o recuar não dependia de um
só. Aqui, em contrapartida, a morte esteve prestes a
pregar-me uma rasteira, por culpa minha. Mais de dez minutos
se passaram sem que uma detonação rasgasse a noite. Mas
quando me interrogava se sairia novamente, ouviu-se outro
disparo. Havia como que alguém de atalaia, postado em algum
sítio, que, de quando em quando, despejava a sua arma - uma
velha arma, de vareta, certamente - para manter a rua
deserta.
Não levaria mais do que uns segundos para atingir o passeio
em
frente; mas esses segundos bastariam para que eu

56
desencadeasse um terrível jogo de azar. Pensava, por uma
inesperada
associação de ideias, no jogador de Buffon que lança um
alfinete sobre o soalho, com a esperança de que não se cruze
com as suas paralelas. Aqui as paralelas eram balas
disparadas
ao acaso, alheias aos meus desígnios, que fendiam o espaço
exterior quando menos se esperava, e aterrava-me pensar que
poderia ser eu o alfinete do jogador, e que, num ponto, num
ângulo de possível incidência, o meu corpo se encontraria na
trajectória do projéctil. Por outro lado, a presença de uma
fatalidade não intervinha nesse cálculo de probabilidades,

que dependia de mim o risco de tudo perder e nada ganhar. Eu
devia reconhecer, ao fim e ao cabo, que não era o desejo de
regressar ao hotel que me tinha desesperado no outro lado da
rua. Repetia-se o que me havia impulsionado horas antes, na
minha bebedeira, a caminhar através daquele edifício de
imensos corredores. A minha impaciência de agora era devida
à
pouca confiança que eu depositava em Mouche. Pensando nela
daqui, neste lado do fosso, sobre o detestável palco das
probabilidades, julgava-a capaz das piores perfídias
físicas,
ainda que jamais tivesse podido formular uma acusação
concreta
contra ela, desde que nos conhecíamos. Eu não tinha em que
fundamentar as
minhas suspeitas, o meu eterno receio; mas sabia muito bem
que
a sua formação intelectual, rica em ideias que justificavam
tudo, em argumentações - pretextos, podia incitá-la a
prestar-se a qualquer experiência insólita, favorecida pela
anormalidade do meio que esta noite a envolvia. Pensei que,
por essa razão, não valia a pena enfrentar a morte só para
me
ver livre de uma simples dúvida. E, no entanto, não podia
suportar a ideia de a saber ali, naquele edifício habitado
pela embriaguez, liberta do peso da minha vigilância. Tudo
era
possível naquela casa da confusão, com suas adegas sombrias
e
seus inumeráveis quartos, acostumados a todo o tipo de
relações que não deixam marca. Não sei por que razão se
insinuou no meu espírito a ideia de que este leito da rua,
que
se alargava a cada tiro disparado, esse fosso profundo que
cada bala tornava mais irrecuperável, era como uma
advertência, como uma prefiguração de acontecimentos
futuros.
Naquele momento aconteceu qualquer coisa de estranho no
hotel.
As músicas e os risos pararam simultaneamente. Ouviram-se
gritos, choros, apelos, em todo o edifício. Apagaram-se as
luzes, acenderam-se outras. Havia como que uma surda comoção
ali dentro; um pânico irremediável. E de novo rebenta a
fuzilaria à entrada da rua mais próxima. Mas desta vez vi
aparecer várias patrulhas de infantaria, com espingardas e
metralhadoras. Os soldados começaram a avançar lentamente,
por
detrás das colunas das arcadas, atingindo o local onde

57

estava implantada a mercearia. Os franco-atiradores tinham


abandonado o telhado e as tropas regulares cobriam agora o
troço de rua que me faltava atravessar. Fazendo-me
acompanhar
por um sargento, cheguei finalmente ao hotel. Quando
abriram a
grade e entrei no hall, parei estupefacto: sobre uma grande
mesa de nogueira transformada em catafalco, jazia o
Kappelmeister, com um crucifixo entre as lapelas do seu
fraque. Quatro candelabros de prata, ornados de pâmpanos,
sustinham - à falta de outros mais apropriados - as velas
acesas: o maestro fora abatido por uma bala perdida,
recebida
numa das têmporas, ao aproximar-se
imprudentemente da janela do seu quarto. Olhei as caras que
o
rodeavam: caras com a barba por fazer, sujas, amolecidas por
uma bebedeira que havia espantado a própria morte. Os
insectos
continuavam a entrar pelos canos e os corpos cheiravam a um
suor acre. Em todo o edifício reinava um fedor de latrinas.
Emagrecidas, macilentas, as bailarinas pareciam espectros.
Duas delas, vestidas ainda com os tules e malhas do adágio
que
tinham dançado momentos antes, afundaram-se soluçando nas
sombras da grande escadaria de mármore. As moscas agora
tinham
invadido tudo, zumbindo em redor das luzes, correndo pelas
paredes, pousando nas cabeleiras das mulheres. Lá fora, o
odor
da carne putrefacta aumentava. Encontrei Mouche caída sobre
a
cama do nosso
quarto, com uma crise de nervos. "Levá-la-emos para Los
Altos
quando for dia", disse a pintora. Os galos começaram a
cantar
nos pátios. Em baixo, sobre o passeio de granito, os
candelabros das cerimónias fúnebres estavam a ser
descarregados de um camião
negro com bandas prateadas por homens vestidos de negro.

58

VII

(Sábado, 10)

Tínhamos chegado a Los Altos, pouco depois do meio-dia,


no pequeno comboio de via estreita, parecido com um comboio
de
parque de diversões, e tanto me agradava o lugar que, pela
terceira vez nessa tarde, me debruçara da pequena ponte da
torrente para contemplar no seu conjunto o que já percorrera
palmo a palmo, vistoriando indiscretamente as casas, nos
meus
anteriores passeios. Nada do que se oferecia ao olhar era
monumental ou notável; nada disso figurava ainda nos
bilhetes
postais, nem era recomendado nos guias turísticos. E, no
entanto, neste recanto de
província, onde cada esquina, cada porta cravejada,
correspondia a um modo de viver particular, encontrava eu um
encanto que, nas cidades-museus, as pedras demasiado
manuseadas, demasiado
fotografadas, haviam perdido. Vista de noite, a cidade dava
a
impressão de um presépio engastado numa montanha, com
figuras
divinas e figuras infernais retiradas das trevas pelos focos
dos candeeiros de iluminação pública. Mas aqueles quinze
focos, sempre rodeados por nuvens de insectos, tinham a
função
isoladora dos lampiões de retábulos, dos reflectores de
teatro, mostrando em plena luz as estações do sinuoso
caminho
que conduzia ao Cimo do Calvário. Como os maus ardem sempre
por debaixo, em toda a alegoria da vida recta e da vida
dissipada, o primeiro foco iluminava a taberna dos arrieiros
cheia de aguardente de uva, de cana, de agrião e de amora,
lugar de má-fama, com bêbados adormecidos sobre os barris da
entrada. O segundo foco deslizava sobre a casa de Lola, onde
Carmen, Ninfa e Esperanza aguardavam vestidas de branco, de
rosa e de azul, sob lanternas chinesas, sentadas no divã de
veludo coçado que pertencera a um Auditor de Real Audiência.
No espaço do terceiro foco giravam os camelos, leões e
avestruzes de um carrocel, enquanto as cadeiras suspensas de
uma estrela giratória subiam para as sombras e delas
regressavam pois a luz não atingia tais alturas - no espaço
de
tempo que levava a dobrar-se o cartão perfurado da valsa dos
Patinadores. Como caída do céu da Fama, a claridade do
quarto
foco envolvia a estátua do Poeta, filho insigne da cidade,
autor de um laureado Hino à Agricultura, que continuava a
versejar sobre uma folha de mármore com uma pluma que
destilava azebre, guiado pelo indicador de uma Musa maneta.
Sob o quinto foco nada havia de especial, para além de dois
burros adormecidos. O sexto foco alumiava a Gruta de Lurdes,
trabalhosa construção de cimento e pedras trazidas de muito
longe, obra tanto mais notável se se pensar que, para a
fazer,
fora necessário tapar uma gruta verdadeira que existia
naquele
local. O sétimo foco incidia sobre o pinheiro verde escuro
e a
roseira que trepava por um pórtico sempre fechado. Depois,
era
a catedral de espessos contrafortes cujo oitavo foco lhe
acentuava os relevos: ele estava à altura do mostrador do
relógio onde os ponteiros dormiam havia quarenta anos, e
além
disso, segundo as vozes das beatas e fingidas, marcavam as
sete e meia de um próximo Juízo Final em que as mulheres sem
vergonha da vizinhança prestariam as suas contas. O nono
foco
correspondia ao Ateneu destinado às manifestações culturais
e
às comemorações patrióticas, com seu pequeno museu onde se

59

conservava uma argola na qual estivera presa, uma noite, a


cama de rede do herói da Campanha dos Penhascos, um grão de
arroz sobre o qual se copiaram vários parágrafos de Don
Quijote, um retrato de Napoleão feito com a letra x de uma
máquina de escrever e uma colecção completa de serpentes
venenosas da região, conservadas em frascos. Fechado,
misterioso, enquadrado por duas colunas salomónicas de cor
cinzenta-escura que sustinham um Compasso aberto de um
capitel
a outro, o edifício da Loja ocupava todo o campo do décimo
foco. Depois, era o Convento das Recolhidas, com sua alameda
mal definida pelo décimo primeiro foco, invadido de insectos
mortos. Em frente era o quartel, que compartilhava a luz do
foco seguinte com o coreto em estilo dórico cuja cúpula fora
fendida por um raio, mas que servia ainda para os concertos
de
Verão, enquanto a juventude se passeava, rapazes de um lado,
raparigas do outro. No cone do décimo terceiro foco
empinava-se um cavalo verde, montado por um chefe militar de
bronze deslavado, cuja espada desembainhada cortava a
neblina
em duas correntes tranquilas. Depois, era a faixa negra,
tremelicante, de velas e fogareiros, das cabanas índias, com
suas pequenas estampas de nascimentos e de velórios. Mais em
cima, no penúltimo foco, um pedestal de cimento aguardava o
gesto sagitário do Bravo Arqueiro, matador de
conquistadores,
que os franco-maçons e comunistas encomendaram em
pedra-talha
para irritar os padres. Depois, era a noite cerrada. E na
sua
extremidade, tão em cima que parecia de outro mundo, a luz
do
alto que iluminava três cruzes de madeira, plantadas em
montículos de calhaus, onde o vento soprava com mais força.

terminava o presépio urbano, com fundo de estrelas e de
nuvens, salpicado de luzes diminutas que apenas se
apercebiam.
Tudo o resto era barro de telhados confundindo-se na sombra
com o barro da montanha. Transido pelo frio que caía das
alturas, eu regressava agora, andando por ruas tortuosas, à
casa da pintora. Devo dizer que essa personagem, à qual não
prestara grande atenção nos dias anteriores -aceitando o
acaso
deste convívio como teria aceitado qualquer outro -,
tornava-se-me cada vez mais irritante, depois da saída da
capital, por causa da maneira como ela se insinuava no
espírito de Mouche. Tendo-me parecido ao princípio uma
figura
pouco relevante, transformara-se a pouco e pouco num ser
incomodativo. Uma lentidão estudada, que dava peso às suas
palavras, conferia às mais pequenas decisões que nos diziam
respeito aos três uma autoridade apenas formulada e no
entanto
tenaz, à qual a minha amiga se rendia com uma doçura
imprópria
do seu carácter. Ela, que gostava tanto que os seus desejos
fossem acatados, dava
sempre razão a quem nos albergava, ainda que minutos
antes estivesse de acordo comigo em renunciar ao que
agora empreendia com um prazer quase ostentório. Saindo
quando eu queria ficar, repousando quando eu falava em
subir até às brumas da montanha, ela demonstrava, assim, o
desejo de agradar constantemente à outra, observando as suas
reacções e enaltecendo-as. Era evidente que Mouche concedia
a
essa nova amizade uma importância que revelava o quanto ela
lamentava - ao fim de tão pouco tempo uma certa ordem de
realidades que deixáramos para trás. Enquanto as mudanças de
altitude, a limpidez do ar, a alteração dos meus hábitos, o
reencontro com a língua da minha infância, estavam operando
em
mim uma espécie de regresso, ainda hesitante mas já
sensível,
a um equilíbrio perdido há muito tempo, nela pressentiam-se
-
ainda que o não demonstrasse - indícios de aborrecimento.
Nada
do que até agora tínhamos visto correspondia, evidentemente,
àquilo que ela quisera encontrar nesta viagem, no caso de
ter
querido encontrar alguma coisa, na realidade. E, no entanto,
Mouche costumava falar inteligentemente da viagem que fizera
através da Itália, antes do nosso encontro. Por essa razão,
ao
observar de que maneira eram infelizes as suas reacções
perante este país que nos apanhara de surpresa, ignorantes
do
seu passado, sem informação livresca a seu respeito,
começava
a
perguntar-me se, no fundo, as suas observações penetrantes
acerca da misteriosa sensualidade das janelas do Palácio
Barberini, a obsessão dos querubins nos tectos de São João
de
Latrão, a quase feminina intimidade de São Carlos das Quatro
Portas, com seu Claustro repleto de curvas e recantos
penumbrosos, não eram apenas citações oportunas, postas em
dia, de coisas lidas, ouvidas, ingurgitadas em pequenas
doses
nas fontes mais conhecidas. No momento, os seus juízos
correspondiam sempre a uma ideia estética do momento. Ela
interessava-se pelos musgos ou pelas sombras se fosse
considerado novidade falar-se disso; mas posta perante um
objecto desconhecido, um facto dificilmente associável, um
tipo de arquitectura que nenhum livro tivesse revelado, eu
via-a, de repente, como que desconcertada, hesitante,
incapaz
de formular uma opinião válida, comprando um hipocampo
poeirento, por literatura, onde pudera adquirir uma rústica
miniatura religiosa de Santa Rosa com sua palma florida.
Como
a pintora canadiana fora amante de um poeta muito conhecido
por seus ensaios sobre Lewis e Ana Radcliff, Mouche,
alvoraçada, voltava a mover-se em terrenos de surrealismo,
astrologia, interpretação dos sonhos, com tudo o que isto
acarretava consigo. Cada vez que se encontrava - e não era
frequente, no entanto - com uma

60 61
mulher que, segundo a sua expressão, "falava a mesma
língua".
entregava-se a essa nova amizade com uma dedicação
desmesurada, uma delicadeza tal, um desassossego, que
chegava
a desesperar-me. Não lhe duravam muito tempo essas crises
efusivas; acabavam tão depressa como tinham começado. Mas
enquanto se mantinham, chegavam a despertar em mim as mais
intoleráveis suspeitas. Agora, como de outras vezes, era um
simples pressentimento, uma inquietação, uma dúvida; nada me
provava haver algo de repreensível. Mas uma ideia lancinante
apoderara-se de mim na tarde anterior, depois do enterro do
Kappelmeister. No regresso do cemitério, onde fora com uma
comissão de hóspedes, ainda restavam pétalas de flores
mortuárias - demasiado perfumadas neste país -sobre o
pavimento do hall. Os varredores de ruas procediam à remoção
da carne putrefacta cujo fedor se fizera sentir tão
abominavelmente durante o nosso isolamento, e como as patas
do
cavalo, descarnadas pelos abutres, não cabiam no carro,
cortavam-nas à machadada fazendo voar os cascos, com ossos e
ferraduras, por entre nuvens de moscas verdes que
revolutavam
sobre o asfalto. No interior, regressados da revolução como
de
um estado de coisas normal, os criados colocavam os móveis
no
seu lugar e davam brilho aos puxadores das portas com peles
de
camurça. Mouche, aparentemente, saíra com a sua amiga.
Quando
ambas reapareceram, passado o toque de recolher, declarando
terem andado pelas ruas, perdidas entre a multidão que
celebrava o triunfo do partido vitorioso, tive a impressão
que
qualquer coisa de estranho se passava com elas. As duas
tinham
um não sei quê de fria indiferença perante tudo, de
suficiênciacomo de gente que regressasse de uma viagem a
domínios defendidos -, que não lhes era habitual. Eu
observara-as insistentemente para lhes surpreender algum
olhar
de entendimento; pesava cada frase dita por uma ou outra
parte, procurando-lhes um sentido oculto e revelador;
esperava
surpreendê-las com perguntas desconcertantes,
contraditórias,
mas sem o menor resultado. A minha prolongada frequência de
certos lugares, o meu alardeado cinismo, mostravam-me que
este
comportamento era grotesco. E, no
entanto, sofria de qualquer coisa muito pior que os ciúmes:
a
insuportável sensação de ter sido deixado de fora de umjogo
que por não ser mais do que isso se tornava detestável. Não
podia tolerar essa perfídia, a simulação, a representação
mental dessa «coisa» oculta e deliciosamente urdida nas
minhas
costas por um pacto entre duas fêmeas. De súbito, a minha
imaginação dava uma forma concreta às mais idiosas
possibilidades físicas e, apesar de me ter repetido mil
vezes
que era uma habituação dos sentidos e
não amor o que me unia a Mouche, sentia-me disposto a
comportar-me como um marido de melodrama. Eu sabia que
quando passasse a tormenta e confiasse essas torturas à
minha
amiga, ela encolheria os ombros, afirmando que era demasiado
ridículo para provocar a sua cólera, e atribuiria o machismo
de tais reacções à minha primeira educação, decorrida num
meio
hispano-americano. Mas uma vez mais, na quietude destas ruas
desertas, as suspeitas me assaltaram. Acelerei o passo para
chegar a casa quanto antes, ora com temor ora com desejo de
uma evidência. Mas lá o inesperado aguardava-me: havia uma
tremenda balbúrdia no estúdio, com muitos copos à mistura.
Três jovens artistas tinham chegado momentos antes,
fugindo, como nós, de um toque de recolher que os obrigava a
encerrarem-se nas suas casas a partir do fim da tarde. Era
tão
branco o músico, tão índio o poeta, tão negro o pintor, que
não pude deixar de pensar nos Reis Magos ao vê-los rodear a
cama-de-rede em que Mouche, preguiçosamente recostada,
respondia às perguntas que lhe faziam, como que
prestando-se a
uma espécie de adoração. O tema era um só: Paris. E eu
observava agora que estes jovens interrogavam a minha amiga
como os cristãos da Idade Média podiam interrogar o
peregrino
que regressava dos Lugares Santos. Não se cansavam de pedir
pormenores acerca de como era o físico de tal chefe de
escola
que Mouche se gabara de conhecer; queriam saber se
determinado
café era ainda frequentado por tal escritor; se dois outros
se
tinham reconciliado depois de uma polémica acerca de
Kierkegaard; se a pintura não-figurativa continuava a ter os
mesmos defensores. E quando o seu conhecimento de francês e
de
inglês não chegavam para entender tudo o que lhes contava a
minha amiga, eram olhares implorantes na direcção da pintora
canadiana para que se dignasse traduzir alguma anedota,
alguma
frase cuja preciosa essência se podia perder para eles.
Agora
que, tendo-me intrometido na conversa com a maligna
intenção de impedir Mouche de brilhar (eu interrogava esses
jovens sobre a história do seu país, os primeiros balbuceios
de sua literatura colonial, suas tradições populares), podia
observar como lhes era pouco agradável o desvio da conversa.
Perguntei-lhes então, para não deixar a palavra à minha
amiga,
se tinham experiência da selva. O poeta índio respondeu,
encolhendo os ombros, que nada havia para ver nesses sítios,
por mais longe que se andasse, e que tais viagens eram para
os
estrangeiros ávidos de coleccionar arcos e aljavas. "A
cultura" -afirmava o pintor negro, "não se encontrava na
selva". Segundo o músico, o artista actual não podia viver
senão onde o pensamento e a criação estivessem mais

62 63

activos. E evocava mentalmente a cidade cuja topografia


intelectual estava no espírito dos seus companheiros, muito
dados, segundo a própria confissão, a sonhar acordados
perante
uma
Carte Taride, cujas estações de «metro» estavam
representadas
em espessos círculos azuis: Solferino, Oberkampf; Corvisard,
Mouton-Duvernet. Entre esses círculos, por cima do desenho
das
ruas, cortando várias vezes a clara artéria do Sena, estavam
as próprias linhas, entrelaçadas como malhas de uma rede.
Nela
cairiam os jovens Reis Magos, guiados pela estrela
cintilante
do grande presépio de Saint-Germain-des-Prés. Segundo o
estado
do tempo falar-lhes-iam do desejo de evasão, das vantagens
do
suicídio, da necessidade de esbofetear cadáveres ou de
disparar sobre o primeiro transeunte. Algum professor em
delírio far-lhes-ia abraçar o culto de um Dioniso, «deus do
êxtase e do espanto, da selvajaria e da liberdade; deus
louco
cuja simples aparição põe os seres vivos em estado de
delírio», ainda que sem lhes dizer que o invocador desse
Dioniso, o oficial Nietzsche, se fizeram retratar uma vez
com
o uniforme da Reichsweher, com um sabre na mão e o capacete
pousado sobre uma mesinha de estilo muniquense, como
agoirenta
prefiguração do deus do terror que se desencadearia, na
realidade, sobre a Europa da Nona Sinfonia. Via-os
enfraquecer
e empalidecer nos seus estúdios sem luz nem aquecimento -
esverdeado o índio, sisudo o negro, pervertido o branco -,
cada vez mais alienados do Sol deixado para trás, tratando
desesperadamente de fazer o que os outros faziam, por
direito
próprio, debaixo da rede. Anos mais tarde, depois de terem
perdido a sua juventude, regressariam aos seus países de
olhar
vazio, o entusiasmo quebrado, sem forças para empreender a
única tarefa que me pareceu oportuna no meio que,
presentemente, me vai revelando aos poucos a natureza dos
seus
valores: a tarefa de Adão dando um nome às coisas. Esta
noite
eu percebia, ao olhá-los, todo o mal que me fizera um
desenraizamento prematuro do meio em que vivi até à
adolescência; quanto contribuíra para me desorientar o fácil
brilho dos homens da minha geração, levados por teorias aos
mesmos labirintos intelectuais, para se deixarem devorar
pelos
mesmos Minotauros. Certas ideias fatigavam-me, agora, de
tanto
as utilizar, e sentia um obscuro desejo de dizer qualquer
coisa que não fosse o quotidianamente dito aqui, além, por
quantos se consideravam «ao corrente» de coisas que seriam
negadas, detestadas, dentro de quinze anos. Uma vez mais me
chegavam aqui as discussões que tanto me divertiam, às
vezes,
na casa de Mouche. Mas debruçado nesta varanda, sobre a
corrente, agitada surdamente no fundo da ravina, respirando
um
64

ar cortante que cheirava a feno molhado, tão próximo das


criaturas da terra que rastejavam debaixo das verdes
luzernas
com reflexos avermelhados contendo a morte nas suas presas,
neste momento, quando a noite me era quase palpável, certos
temas da «modernidade» tornavam-se-me intoleráveis. Quisera
silenciar as vozes que se manifestavam atrás de mim para
encontrar o diapasão das rãs, a tonalidade aguda do grilo, o
ritmo de uma carroça com as rodas chiando, para lá do
Calvário
envolto pelas névoas.
Irritado contra Mouche, contra todo o mundo, com vontade
de escrever qualquer coisa, de compor algo, saí de casa
descendo em direcção às margens da corrente, para voltar a
contemplar as estações do retábulo da cidade. Em cima, no
piano da pintora, iniciou-se uma tentativa de acordes.
Depois,
o jovem músico - a dureza da pulsação revelava a presença do
compositor por detrás dos acordes - começou a tocar. Por
brincadeira contei doze
notas, sem nenhuma repetida, até regressar ao mi bemol
inicial
daquele andante crispado. Teria apostado: o atonalismo já cá
chegara; já se conheciam as suas receitas neste país.
Continuei descendo até à taberna para beber uma aguardente
de
amoras. Envoltos nas suas mantas, os arrieiros falavam de
árvores que sangravam quando eram feridas pelo machado em
Sexta-Feira Santa, e também de cardos que nasciam do ventre
das vespas
mortas pelo fumo de certa lenha dos montes. De súbito, como
que saído da noite, um harpista aproximou-se do balcão.
Descalço, com o seu instrumento a tiracolo, o chapéu na mão,
pediu licença para compor um pouco de música. Vinha de muito
longe, de uma aldeia do distrito das Tembladeras, onde fora
cumprir, como em outros anos, a promessa de tocar frente à
igreja no dia da festa da Invenção da Cruz. Agora, como
recompensa da sua arte, só queria reconfortar-se com uns
bons
copos de aguardente de piteira. Fez-se um silêncio, e com a
gravidade de quem oficia um rito, o harpista colocou as mãos
sobre as cordas, entregando-se à inspiração de um prelúdio,
para desentumescer os dedos, que me encheu de admiração.
Havia
nas suas escalas, nos seus recitativos de desenho rigoroso,
interrompidos por acordes majestosos e amplos, algo que
evocava a festiva grandeza dos preâmbulos de órgão da Idade
Média. Ao mesmo tempo, pela afinação arbitrária do
instrumento
rústico, que obrigava o executante a manter-se dentro de uma
gama isenta de certas notas, tinha-se a impressão de que
tudo
obedecia a um magistral manejo dos modos antigos e dos tons
eclesiásticos, atingindo-se, pelos caminhos de um
primitivismo
verdadeiro, as procuras mais válidas de certos compositores
da
nossa época.

65

Aquela improvisação de grande fôlego evocava as tradições


do órgão, da viola e do alaúde, retirando um novo frémito de
vida da caixa de ressonância, de forma cónica, que se
encaixava entre os tornozelos descarnados do músico. Depois,
foram danças. Danças de um vertiginoso movimento, em que os
ritmos binários passavam com uma incrível desenvoltura sob
compassos a três tempos, tudo dentro de um sistema modal que
jamais se vira submetido a semelhantes provas. Deu-me
vontade
de ir a casa e trazer o jovem compositor arrastado por uma
orelha, para que aprendesse uma lição. Entretanto,
apareceram
os polícias com suas capas de
oleado e lanternas de ronda, ordenando o fecho da taberna.
Fui
informado de que aqui também seria obrigatório, durante
vários
dias, o toque de recolher até ao pôr do Sol. Essa
desagradável
evidência que viria a estreitar ainda mais a nossa - para
mim
ingrata - vida em comum com a canadiana, fez-me tomar, de
súbito uma decisão que era o ponto culminante de todo um
processo de reflexões e recapacitações. De Los Altos partiam
os autocarros que conduziam ao porto, do qual havia maneira
de
atingir, por rio, a grande Selva do Sul. Não continuaríamos
a
viver a vigarice imaginada pela minha amiga, apesar das
circunstâncias se lhe oporem a cada momento. Graças à
revolução, o meu dinheiro
havia aumentado muito no câmbio com a moeda local. O mais
simples, o mais honesto, o mais interessante, em suma, era
empregar o tempo de férias que me restava cumprindo com o
Conservador e com a Universidade, levando a cabo,
honestamente, a tarefa encomendada. Para não voltar atrás
com
o que decidira, comprei ao taberneiro dois bilhetes para o
autocarro de madrugada. Não me importava com o que Mouche
fosse pensar: pela primeira vez sentia-me capaz de lhe
impor a
minha vontade.

66

CAPÍTULO TERCEIRO

... este será o tempo de encontrar o caminho,


de desatar o rosto, de falar, de vomitar
o que se tragou, de descarregar o pesado fardo.

O Livro de Chilam-Balam

VIII

(11 de Junho)

A discussão durou para lá da meia-noite. Mouche


sentiu-se, de repente, constipada; fez-me tocar a sua
fronte, que estava bem fresca, queixando-se de arrepios;
tossiu até
irritar a garganta e acabar por tossir de verdade. Fechei as
malas sem Lhe ligar importância, e não era ainda madrugada
quando nos instalámos no autocarro, cheiojá de gente envolta
em mantas, com toalhas de feltro à laia de cachecol. Até ao
último momento a minha amiga não deixou de falar com a
canadiana, marcando encontros na capital para quando
regressássemos da viagem, que duraria, pelo menos, umas duas
semanas. Por fim começámos a rodar sobre uma estrada que se
enfiava na montanha por uma ravina tão coberta de névoa que
os
seus choupos não eram mais que sombras no amanhecer. Sabendo
que Mouche se fingiria doente durante várias horas, pois era
das que acreditavam nas próprias mentiras, fechei-me sobre
mim
mesmo, resolvido a gozar solitariamente tudo o que houvesse
para ver, esquecido dela, ainda que estivesse a dormitar
sobre

67

o meu ombro com queixosos suspiros. Até agora o percurso da


capital a Los Altos fora, para mim, uma espécie de retorno
ao
tempo da minha infância e à aurora da minha adolescência,
graças a um
reencontro com maneiras de viver, sabores, palavras, coisas,
que me marcaram mais profundamente do que eu pensava. A
romãzeira e a talha por onde se filtrava a água, os ouros e
as
espadas das cartas de jogar, o pátio das alfavacas e a porta
de batentes azuis
despertaram-me a alma. Mas agora começava para lá das
imagens
que se apresentavam ao meu olhar, quando deixasse de
conhecer
o mundo apenas pelo tacto. Quando saíssemos da bruma
opalescente que se ia esverdeando com a madrugada,
iniciar-se-ia, para mim, uma espécie de Descobrimento. O
autocarro subia, subia com tal esforço, gemendo nos eixos,
tossindo no vento gelado, inclinado sobre os precipícios,
que
cada encosta vencida parecia ter custado sofrimentos
indizíveis a toda a sua oscilante carroçaria. Era uma pobre
coisa, com o tejadilho pintado de vermelho que subia, subia,
agarrando-se com as rodas, fincando-se nas pedras, entre as
vertentes quase a pique de um barranco; uma coisa cada vez
mais pequena, no meio das montanhas que cresciam. Porque as
montanhas cresciam. Agora que o Sol clareava os seus cumes,
podiam ver-se de um lado e de outro, cada vez mais
estirados,
mais foscos, como imensos machados negros, de gumes parados
contra o vento que deslizava pelos desfiladeiros com um
rugido
interminável. Todas as coisas em volta aumentavam de escala
numa esmagadora afirmação de novas proporções. Ao fim
daquela
subida de inumeráveis viragens, quando julgávamos ter
chegado
a um cimo aparecia outra encosta, mais abrupta, mais
sinuosa,
entre picos gelados que sobrepunham as suas alturas
magnificentes às alturas anteriores. O veículo, em sua
ascenção tenaz, tornava-se insignificante no fundo dos
desfiladeiros, mais irmão dos insectos do que das rochas,
empurrando-se com as redondas patas traseiras. Era já de
dia,
e entre os austeros cumes, com asperezas de sílex talhado,
rodopiavam as nuvens num céu transtornado pelo sopro vindo
das
profundezas. Quando, por sobre os negros machados, os
quebra-ventos e os mais altos degraus, apareceram os
vulcões,
cessou o nosso prestígio humano, como cessara há muito
tempo o
prestígio da vegetação. Éramos seres ínfimos, mudos, de
olhar
gelado, num alto deserto onde apenas subsistia a presença
foliácea de um cacto de feltro cinzento, agarrado ao solo já
sem terra, como um líquen, como uma flor de ulha. Atrás de
nós, lá muito em baixo, ficaram as nuvens que davam sombra
aos
vales; e menos em baixo outras nuvens que os homens jamais
veriam, por estarem acima das nuvens conhecidas, e andarem
num
mundo à sua medida. Estávamos sobre o espinhaço das Índias
Fabulosas, numa das suas vértebras, ali onde os gumes
andinos,
em meia-lua entre os
seus flancos agudos, como bocas de peixes sorvendo as
neves, quebravam e dizimavam os ventos que tentavam
passar de um Oceano ao outro. Agora chegávamos aos bordos
das crateras cheias de destroços geológicos, de negros
abismos pavorosos, ou eriçados de rochedos tristes como
animais petrificados. Um medo silencioso apoderara-se de mim
perante o grande número de cumes e precipícios. Cada
mistério de névoa descoberto de uma parte e de outra desta
incrível estrada sugeria-me a possibilidade de que, sob a
sua
evanescente consistência, haveria um vazio tão profundo
como a
distância que nos separava de nossa terra. Porque a terra,
pensada daqui, do alto dos blocos imóveis de gelo que
embranqueciam os picos, parecia qualquer coisa de diferente,
de alheio ao que nós víamos, com os seus animais, as suas
árvores e as suas brisas: um mundo feito para o homem, onde
não bramariam, todas as noites, em gargantas e abismos, os
órgãos das tormentas. Uma zona de nuvens separava este
deserto
de calhaus negros do nosso verdadeiro solo. Agoniado pela
surda ameaça telúrica que se entranhava em cada forma, sobre
estas faldas de lava, de limalha de cumes ,
observei com enorme alívio que a pobre coisa em que
rodávamos
penava um pouco menos, virando para a primeira descida que
eu
vira em várias horas. Já estávamos na outra vertente da
cordilheira quando uma travagem brutal nos deteve a meio de
uma pequena ponte de pedra estendida sobre uma torrente de
tão
profundo leito que não se viam as suas águas, se bem que
fossem atroadores os borbotões da sua queda. Uma mulher
estava
sentada sobre um
marco de pedra, com uma trouxa de roupa e um guarda-chuva
pousados no chão, envolta numa manta azul. Falavam-Lhe e ela
não respondia, como que estupefacta, com o olhar velado e os
lábios trementes, mexendo levemente a cabeça mal coberta por
um lenço vermelho cujo nó, sob o queixo, estava desatado. Um
dos que viajavam connosco aproximou-se dela e pôs-lhe na
boca
um caramelo apertando-lhe os maxilares para a obrigar a
comer.
Como tendo percebido, a mulher começou a mastigar
lentamente,
e os seus olhos, pouco a pouco, adquiriram alguma
expressão.
Parecia regressar de muito longe, descobrindo o mundo com
surpresa. Olhou-me como se a minha cara lhe fosse familiar,
e
pôs-se de pé, com um grande esforço, sem deixar de se apoiar
no marco. Naquele instante, uma avalancha longínqua retúmbou
sobre as nossas cabeças, fazendo rodopiar as brumas que
irrompiam, do fundo de uma cratera, como que impelidas
bruscamente. A mulher pareceu despertar repentinamente; deu
um
68 69

um grito e agarrou-se a mim, implorando, com a voz quebrada


pelo ar
rarefeito, que a não deixassem morrer novamente. Fora
trazida
até aqui, imprudentemente, por gentes que seguiam outra
direcção, pensando que ela sabia dos perigos que havia em
deixar-se adormecer a tal altitude, e só agora compreendia
que
estivera quase morta. Com passos trôpegos deixou-se levar
até
ao autocarro, onde acabou de comer o caramelo. Quando
descemos
um pouco
mais e o ar se tornou mais denso, deram-lhe um gole de
aguardente que lhe fez desaparecer, rapidamente, toda a
angústia por que passara. O autocarro encheu-se de histórias
de gentes vitimadas pelas alturas, mortas nesse mesmo
desfiladeiro, acontecimentos que eram narrados
prazenteiramente, como se se tratasse de percalços da vida
diária. Alguém afirmara mesmo que perto da cratera daquele
vulcão que ocultava os mais pequenos cumes se encontravam,

meio século, metidos dentro do seu próprio gelo, como que
dentro de vitrinas, os oito membros de uma missão
científica, surpreendidos pelo mal. Ali estavam, sentados em
círculo, em atitude suspensa, tal como os imobilizara a
morte,
os olhares fixos sob o cristal que lhes cobria os rostos
como
transparentes máscaras funerárias. Agora descíamos
rapidamente. As nuvens que deixáramos em baixo quando
ascendíamos estavam
novamente por cima de nós, e a névoa desprendia-se em
flocos,
deixando aperceber os vales ainda distantes. Regressava-se à
terra dos homens e a respiração recuperava o seu ritmo
normal
após ter sentido as picadas frias de agulhas. De súbito
apareceu uma aldeia, colocada sobre um pequeno planalto
circular, rodeado de torrentes, que me pareceu de um
surpreendente aspecto castelhano, apesar da igreja demasiado
barroca, com os seus telhados agrupados ao redor da praça,
na
qual desembocavam, ao fundo de estreitas veredas, tortuosos
caminhos de mulas. O zurrar de um burro recordou-me uma
vista
de El Toboso - com um burro em primeiro plano - que
ilustrava
uma lição do meu terceiro livro de leitura, e que se
assemelhava espantosamente ao burgo que eu agora
comtemplava.
"En un lugar de La Mancha, de cuyo nombre no quiero
acordarme,
no ha mucho que vivia um hidalgo de Dios de lanza en
astillero, adarga antigua, rocín flaco y galgo corredor..."
Sentia-me
orgulhoso por recordar o que o professor com tanto trabalho
ensinara a recitar aos vinte rapazes da classe a que eu
também
pertencia. No entanto, já soubera de cor o parágrafo
completo, e agora não conseguia passar para além do galgo
corredor. Irritava-me perante este esquecimento, voltando
repetidamente ao lugar de La Mancha, para ver se a frase
seguinte me vinha à memória, quando a mulher que havíamos

70

retirado das brumas, assinalou uma grande curva sobre o


flanco
da montanha que íamos atravessar, afirmando que a região
se chamava La
Hoya. Una olla de algo más vaca que carnero, salpicón Ias
más noches, duelos y quebrantos los sábados, lentejas los
viernes y algun palomino de anadidura los domingos consumian
las tres partes de su hacienda... Não podia passar de
ali. Mas a minha atenção fixava-se agora naquela que
pronunciara tão oportunamente a palavra Hoya, olhando-a com
simpatia. Do lugar onde me encontrava apenas conseguia ver
menos da metade do seu rosto, de pómulo muito saliente sob
um
olhar fendido até à têmpora, que desaparecia na
sombra profunda debaixo da voluntariosa arcada da
sobrancelha.
O perfil era de um desenho muito puro, desde a fronte ao
nariz
,
mas, inesperadamente, sob os gestos impassíveis e
orgulhosos a boca tornava-se espessa e sensual, atingindo
uma
face delgada, que se desviava para a orelha, que
denunciava fortemente o modelado daquele rosto enquadrado
por
uma espessa cabeleira negra, presa, aqui e ali, por
travessões
de celulóide. Era evidente que várias raças se encontravam
misturadas nessa mulher, índia pelo cabelo e as maçãs do
rosto, mediterrânica pela fronte e o nariz, negra pela
sólida
redondez dos ombros e uma peculiar largura de ancas, que
acabava de notar ao vê-la levantar-se para pôr a sua trouxa
de
roupa e o guarda-chuva na rede das bagagens. De facto, essa
forte mistura de raças tinha raça. Ao ver os seus
surpreendentes olhos sem matizes, profundamente negros,
evocava as figuras de certos frescos arcaicos, que olham
fixamente, tanto de frente como de lado, com um círculo de
tinta desenhado na têmpora. Essa associação de imagens
fez-me
pensar na Parisiense dos frescos de Knossos, levando-me a
considerar que essa viajante surgida do desértico planalto e
da névoa não tinha mais misturas de sangue que as raças que
durante séculos se mestiçaram na bacia mediterrânica. Mais
ainda: chegava a perguntar-me se certas amálgamas de raças
menores, sem transplante das cepas, não seriam preferíveis
aos
formidáveis encontros que tiveram lugar nos grandes centros
de
reunião da América, entre celtas, negros, latinos, índios e
até «cristãos novos». Porque aqui não se tinham vasado, na
realidade, povos consanguíneos, como os que a história
malaxara em certas encruzilhadas do mar de Ulisses, mas as
grandes raças do mundo, as mais separadas, as mais
diferentes,
as que durante milénios permaneceram ignoradas mutuamente
sobre o planeta.
A chuva começou a cair de repente, com monótona
intensidade, embaciando os vidros. O regresso a uma
atmosfera
quase normal afundara os passageiros numa espécie de
modorra.
Depois de comer alguma fruta, dispus-me a dormir também,

71

notando de passagem que ao fim de uma semana de viagem


recuperara a
faculdade de dormir a qualquer hora, tal como na minha
adolescência. Quando despertei, ao cair da tarde,
encontrávamo-nos numa aldeia de casas de pedra calcária,
encostadas à cordilheira, sob uma vegetação sombria de frias
florestas, na qual as únicas clareiras destinadas às
culturas
pareciam como que estagnadas na espessura. Das copas das
árvores pendiam grossas lianas que se balançavam sobre os
caminhos, aspergindo-os com o orvalho da névoa que as
cobria.
Precedida pelas sombras que se alongavam ao pé das
montanhas,
a noite invadia já os cimos. Mouche
agarrou-se-me molemente ao braço, afirmando que a viagem se
tornara extenuante por causa das mudanças de altitude. Tinha
dores de cabeça, sentia-se febril e queria deitar-se logo,
após ter tomado algum medicamento. Deixei-a num quarto
caiado
com
cal, onde todo o luxo consistia num jarro e numa bacia e
dirigi-me à sala de jantar da pousada, que não era mais que
um
prolongamento e dependência da cozinha, onde ardia, numa
grande lareira, um fogo de lenha. Depois de comer uma sopa
de
milho e um
queijo montanhês seco com odor a bode, sentia-me
descontraído
e feliz defronte do lume da fogueira. Contemplava o jogo das
chamas, quando uma silhueta se fez sombra à minha frente,
sentando-se do outro lado da mesa. Era a personagem da
manhã,
e como agora nos aparecia toda aperaltada, diverti-me a
apreciar os seus graciosos atavios. Não estava bem nem mal
vestida. Estava vestida fora da época, fora do tempo, com
intrincada construção de bordados, franzidos e fitas, em
cru e
azul, tudo muito limpo e engomado, teso como um baralho, com
algo de caixa de costura romântica e arca de
prestidigitador.
Tinha um laço de veludo"de um azul mais escuro, preso por
corpete. Pediu pratos cujos nomes me eram desconhecidos, e
começou a comer lentamente, sem falar, sem erguer os olhos
da
toalha de oleado, como que dominada por uma preocupação
penosa. Passado um momento atrevi-me a
interrogá-la, e soube então que teria de fazer um bom pedaço
de caminho connosco, levada por um piedoso dever. Vinha da
outra extremidade do país, atravessando desertos e
planaltos,
lagos cobertos de ilhas, florestas e planícies, para levar a
seu pai, que estava muito doente, uma imagem dos Catorze
Santos Auxiliares, a cuja devoção a família devia
verdadeiros
milagres, e que estivera até agora confiada à guarda de uma
tia com suficientes meios para a expor em altares melhor
iluminados. Como ficáramos sozinhos na sala de jantar, ela
dirigiu-me a uma espécie de armário, do qual se exalava um
agradável odor a ervas silvestres, cuja presença, neste
canto,
excitava a minha curiosidade. Sobre as gavetas, junto

72

de frascos repletos de diversas infusões, estavam inscritos


os
nomes das plantas. A jovem aproximou-se de mim e, pegando em
folhas secas, musgos e giestas, para as desfazer na planta
da
mão, começou a enaltecer as suas propriedades,
identificando-as com o perfume. Era o Aloés Calmante, para
aliviar as opressões do peito, e uma Liana Rosa para atar os
cabelos; era a Betónica para a tosse, a Alfavaca para
esconjurar a má morte, e a Erva de Urso, a Angelónia, a
Piteira e o Botão da Rússia, para os males que não me
lembro.
Essa mulher referia-se às ervas como se se tratasse de seres
sempre despertos num reino próximo ainda que misterioso,
guardado por inquietantes dignitários. Pela sua boca as
plantas punham-se a falar, proclamando os seus próprios
poderes. A floresta tinha um senhor, que era um génio que
saltava sobre um pé, e nada do que crescesse à sombra das
árvores podia ser arrancado sem se pagar. Quando se entrava
na
espessura da floresta para procurar os rebentos, os
cogumelos
ou as lianas que curavam, era preciso saudar e colocar
moedas
entre as raízes de um velho tronco, pedindo permissão para
isso. E era necessário, ao sair, voltar-se com deferência, e
saudar novamente, pois milhões de olhos vigiavam os nossos
gestos de entre as cascas e folhagens. Não saberia dizer por
que razão essa mulher me pareceu tão bela quando, de súbito,
lançou à lareira um punhado de ervas acremente cheirosas, e
os
seus gestos foram denunciados em poderoso relevo pelas
sombras. Ia fazer-lhe qualquer elogio banal quando ela,
bruscamente, me deu as boas-noites, afastando-se das chamas.
Fiquei sozinho contemplando o fogo. Há muito tempo já que
isso
não me acontecia.

IX

(Mais tarde)

Pouco depois de ficar sozinho frente ao fogo ouvi algo


como que um sussurro de vozes num canto da sala. Alguém
havia
deixado ligado um velho aparelho de rádio, entre espigas de
milho e pepinos que estavam sobre uma mesa de cozinha. Ia
apagá-lo
quando soou dentro daquela caixa escalavrada, uma quinta de
trompas que eu conhecia muito bem. Era a mesma que me fizera
fugir de uma sala de concertos não havia ainda muito tempo.
Mas esta noite, perto das achas que se desfaziam em
faúlhas,
73
com os grilos cantando entre as vigas pardacentas do tecto,
essa
remota execução readquiria um misterioso prestígio. Os
executantes sem rosto, desconhecidos, invisíveis, eram como
expositores abstractos da música escrita. O texto, caído ao

destas montanhas, depois de voar por sobre os cumes,
chegava-me não se sabia de onde com sonoridades que não eram
notas mas ecos encontrados em mim
mesmo. Aproximando a cara, escutei. Já a quinta de trompas
era
acompanhada de um frémito de tresquiláteras pelos segundos
violinos e violoncelos; duas notas descendentes desenhadas
como que caídas dos primeiros arcos e das violetas, com uma
inapetência que logo se fez angústia, uma necessidade de
fuga,
perante uma força subitamente desencadeada. E foi, num
rompimento de sombras tormentosas, o primeiro tema da Nona
Sinfonia. Julguei respirar de alívio ao sentir afirmar-se
uma
tonalidade, mas um rápido apagar-se das cordas, mágico
derrube
do edificado, devolveu-me ao desassossego da frase em
gestação. Ao fim de tanto tempo sem querer saber da sua
existência, a ode musical era-me devolvida com o caudal de
recordações que em vão tentava separar do crescendo que
agora
se iniciava, hesitante ainda e como que inseguro do seu
caminho. Cada vez que a sonoridade metálica de uma
trompa apoiava um acorde, julgava ver o meu pai, com a sua
barbicha pontiaguda, avançar o perfil do seu rosto para ler
a
partitura, com essa peculiar atitude do executante que
parece
ignorar, quando toca, que os seus lábios se colam à
embocadura
da grande voluta de cobre que dá um aspecto de capitel
coríntio a toda a sua pessoa. Com esse mimetismo singular
que
torna magros e secos os oboístas, alegres e bochechudos os
trombones, meu pai acabara por ter um som de voz acobreado,
que vibrava nasalmente quando, sentando-me numa cadeira de
vime, a seu lado, ele me mostrava gravuras em que estavam
representados os antepassados do seu nobre instrumento:
olifantes de Bizâncio, buzinas romanas, anafis sarracenos e
as
tubas de prata de Frederico Barbarruiva. Segundo ele, as
muralhas de Jericó só podiam ter caído com o
apelo terrível do horn, cujo nome, pronunciado como erre
rolado, se tornava na sua boca pesado como bronze. Formado
em
conservatórios da Suíça alemã, proclamava a superioridade da
trompa de timbre bem metálico, filho da trompa de caça que
ressoara em todas as Florestas Negras, opondo-o àquele que
em
tom pejorativo, chamava em francês Le cor, pois acreditava
que
a técnica ensinada em Paris assimilava o seu másculo
instrumento às femininas madeiras. Para o demonstrar
voltava o
pavilhão do instrumento e lançava o tema de Siegfried por
cima
dos muros medianeiros do pátio com impetuosidade de um
arauto

74

do Juízo Final. O facto é que o meu nascimento deste lado de


cá do Oceano se devia a uma cena de caça da Raymunda de
Glazounoff. Meu pai fora surpreendido pelo atentado de
Sarajevo no melhor de uma temporada wagneriana do Teatro
Real
de Madrid, e, irritado pelo inesperado belicismo dos
socialistas e franceses, havia renegado o velho
continente apodrecido, aceitando o lugar de primeira
trompa numa tournée de Anna Pawlova às Antilhas. Um
matrimónio cuja trama sentimental me parecia obscura fez que
eu gatinhasse as minhas primeiras aventuras num pátio
ensombreado por um grande tamarindo, enquanto minha mãe,
atarefada com a negra cozinheira, cantava a história do
Senhor
Gato, sentado numa cadeira de ouro, a quem
perguntam se quer casar com uma gata selvagem, sobrinha de
um
gato pardo. O prolongamento da guerra, e o escasso sucesso
de
um instrumento que apenas se utilizava em temporadas de
ópera,
quando sopravam os ventos do norte no Inverno, levou o meu
pai
a abrir uma pequena casa de instrumentos musicais. Às vezes,
apanhado pela nostalgia dos conjuntos
sinfónicos em que havia tocado, tirava uma batuta do
armário,
abria a partitura da Nona Sinfonia e começava a dirigir
orquestras imaginárias, imitando os gestos de Nikisch ou de
Mahler, cantando a obra inteira com as mais tremendas
onomatopeias dos instrumentos de percussão, os baixos e os
metais. Minha mãe fechava apressadamente as janelas para
que o
não julgassem louco, aceitando, no entanto, com velha
mansidão
hispânica, que tudo o que ele fizesse (ele que não bebia nem
jogava), devia ser tomado como coisa louvável, ainda que
pudesse parecer um pouco estapafúrdio. Meu pai gostava muito
de frasear de maneira nobre, com a sua voz de barítono, o
movimento ascendente, por vezes dolente, fúnebre e triunfal,
da coda que agora se iniciava sobre um estremecimento
cromático da profundeza do registo grave. Duas rápidas
escalas
desembocaram no uníssono de uma exortação arrancada à
orquestra como que a soco. Depois fez-se silêncio.
Um silêncio logo reconquistado pelo estrídulo rumor dos
grilos e o crepitar das brasas. Mas eu esperava,
impaciente, o
sobressalto inicial do scherzo. E já me deixava levar,
envolver, pelo endiabrado arabesco que desenhavam os
segundos
violinos, alheio a tudo o que não fora música, quando o
«dobrado» de trompas, de tão peculiar sonoridade, imposto
por
Wagner à partitura beethoveniana para corrigir um erro de
escrita, voltou a dar-me a ilusão de estar sentado ao lado
de
meu pai, na época em quejá não estava entre nós aquela que
tanto me cantara a história do Senhor Gato, o romance de
Mambrú e o pranto de Alfonso XII pela morte de Mercedes:
"Cuatro dugues la llevaban, por las calles de Aldavi",

75

com a sua caixa de costura em veludo azul. Os serões agora


eram consagrados à leitura da velha Bíblia luterana que o
catolicismo da minha mãe escondera, durante anos, no fundo
de
um armário.
Entristecido pela viuvez, amargurado por uma solidão
irremediável, meu pai rompera com tudo o que o prendera à
cidade cálida e buliçosa onde eu nascera, partindo para a
América do Norte, onde reiniciou o seu negócio com muito
pouco
êxito. A meditação do
Eclesiastes e dos Salmos associavam-se no seu espírito a
imprevisíveis nostalgias. Foi então quando começou a
falar-me
dos trabaLhadores que, no seu país, escutavam a Nona
Sinfonia.
O seu fracasso neste continente traduzia-se, cada vez mais,
na
saudade de uma Europa contemplada na sua grandeza, na sua
apoteose, nos seus festivais. Aquilo a que chamavam o Novo
Mundo, tornara-se para ele um hemisfério sem história,
alheio
às grandes tradições mediterrânicas, terra de índios e de
negros, povoado pela escória das grandes nações europeias,
sem
esquecer as clássicas rameiras embarcadas para Nova Orleães
por gendarmes de tricórnio, ao
som de marchas de pífaro - pormenor que me parecia devido à
recordação de uma ópera do repertório. Ele evocava, por
contraste, as pátrias do velho continente, com fervor,
edificando perante os meus olhos extasiados uma Universidade
de Heidelberga que eu imaginava toda verdejante de
veneráveis
heras. Em imaginação passava eu das tiorbas do concerto
angélico às insignes ardósias da Gewandhaus, dos concursos
de
minnesangers aos concertos de Potsdam, aprendendo os nomes
de
cidades cujo aspecto gráfico fazia nascer no meu espírito
miragens em ocre, em branco, em bronze - como Bona -, em
penugem de cisne - como Siena. Mas meu pai, para quem a
afirmação de certos princípios constituía a aquisição
suprema
da civilização, insistia, sobretudo, no respeito que lá se
tinha pela sagrada vida do homem. Falava-me de escritores
que
fizeram tremer uma monarquia, na tranquilidade do seu
escritório, sem que ninguém se atrevesse a importuná-los. As
evocações de Jaccuse, das campanhas de Rathenau, filhas da
capitulação de Luís XVI perante Mirabeau, desembocavam
sempre
nas mesmas considerações acerca do progresso irrefreável, da
socialização gradual, da cultura colectiva, chegando-se ao
tema dos trabalhadores instruídos que, na sua cidade natal,
perto de uma catedral do século XIII, ocupavam os seus
tempos
livres nas bibliotecas públicas e aos domingos, em vez de se
embrutecerem na missa - pois lá o culto da ciência estava
substituindo as superstições - levavam as suas famílias a
ouvir a Nona Sinfonia. E assim os tinha visto eu, desde a
adolescência, com os olhos da imaginação, esses
trabalhadores
vestidos de blusa azul e calça de bombazina,
76

nobremente comovidos pelo sopro genial da obra de Beethoven,


escutando talvez este mesmo trio, cuja frase tão cálida, tão
envolvente, subia agora pelas vozes dos violoncelos e das
violetas. E o sortilégio dessa visão fora tal que, depois da
morte de meu pai, consagrei o pouco dinheiro da sua magra
herança, fruto de um leilão de sonatas e partituras, ao
trabalho de conhecer as minhas origens. Um belo dia
atravessei
o Oceano, convencido de que jamais regressaria. Mas passada
a
primeira surpresa, aquilo que eu classificaria mais tarde,
por
brincadeira, de adoração das fachadas, foi o encontro com
realidades que contrariavam singularmente os ensinamentos de
meu pai. Longe de se voltarem para a Nona Sinfonia, as
inteligências estavam como que ávidas de marcar o passo em
desfiles que passavam sob arcos de triunfo de madeira e
mastros totémicos ornados de velhos símbolos solares. A
transformação do mármore e do bronze das antigas apoteoses
em gigantescos cavacos de pinheiro, tábuas de um dia, e
emblemas de cartão dourado, teria feito mais desconfiados
aqueles que escutavam palavras demasiado amplificadas por
altifalantes, pensava eu. Mas não parecia que assim fosse.
Cada qual se julgava investido de um terrível poder e havia
muitos que se sentavam à direita de Deus para julgar os
homens
do passado pelo delito de não terem adivinhado o futuro. Eu
vira já, realmente, um metafísico de Heidelberga fazendo de
tambor-mor de uma parada de jovens
filósofos que marchavam de ancas soltas, para votar pelos
que
escarneciam de tudo o que fosse qualificado de intelectual.
Eu
observara os casais ascender, em noites de solstício, ao
Monte
das Bruxas para acender os antigos fogos votivos,
desprovidos
já de todo o sentido. Mas nada me havia impressionado tanto
como essa citação do tribunal, o castigo póstumo e a
profanação da
tumba de quem rematara uma sinfonia como coral da Confissão
de
Augsburgo, ou de aquele outro que havia clamado, com uma voz
puríssima, perante as ondas verde-cinzentas do Grande Norte:
«Amo o mar como a minha alma!» Fatigado por ter de recitar o
Intermezzo em voz baixa e ouvir falar de cadáveres
recolhidos
nas ruas, de próximos terrores, de novos êxodos,
refugiei-me,
como quem se recolhe num asilo, na penumbra acolhedora dos
museus, empreendendo longas viagens através do tempo. Mas
quando saí das pinacotecas as coisas iam de mal a pior. Os
jornais convidavam ao massacre. Os crentes tremiam, debaixo
dos púlpitos, quando os seus bispos erguiam a voz. Os
rabinos
escondiam a Thorah, enquanto os pastores eram expulsos dos
seus templos. Assistia-se à dispersão dos ritos e ao
desrespeito pelo Verbo. De noite, nas praças públicas, os
alunos de reputadas Faculdades queimavam

77

livros em grandes fogueiras. Não se podia dar um


passo naquele continente sem ver fotografias de crianças
mortas nos bombardeamentos de cidades abertas, sem ouvir
falar
de sábios desterrados nas salinas, de raptos inexplicáveis,
de
perseguições e defenestrações, de camponeses fuzilados nas
praças de touros. Eu espantava-me - despeitado,
profundamente
ferido - da diferença que existia entre o mundo evocado por
meu pai e aquele que me era dado conhecer. Aonde eu
procurava
o sorriso de
Erasmo, o Discurso do Método, o espírito humanístico, a
fáustica aspiração e a alma apolínea, dava de caras com o
auto-de-fé, o tribunal de algum Santo Ofício, o processo
político, ordálios de um novo género. Já não se podia
contemplar um timbale ilustre, um campanário, uma gárgula,
um
anjo sorridente, sem se ouvir dizer que eles representavam
os
partidos do presente e que os pastores de Presépios adoravam
algo que não era, em suma, o que verdadeiramente os
iluminava.
A época deixava-me cada vez mais cansado. E era terrível
pensar que não havia saída possível, fora do imaginário,
naquele mundo sem esconderijos, de natureza domesticada
desde
há séculos, onde a sincronização quase total das vidas
centrara as lutas em torno de dois ou três problemas
palpitantes. Os discursos tinham substituído os mitos; as
palavras de ordem os dogmas. Enfastiado do lugar comum
fundido
em ferro do texto expurgado e do ensino abandonado, abordei
de
novo o Atlântico com a intenção do atravessar agora em
sentido
inverso. E, dois dias antes da minha partida, contemplei uma
esquecida dança macabra que desenvolvia os seus motivos
sobre
as traves do ossário de São Sinforiano, em Blois. Era uma
espécie de pátio de quinta, invadido pelas ervas, de uma
tristeza secular, sobre cujos pilares se conjugava, uma vez
mais, o inesgotável tema da vaidade das pompas humanas, do
esqueleto encontrado sob a carne luxuriosa, das costelas
apodrecidas debaixo da casula do prelado, do tambor batido
com
duas tíbias num concerto de ossos martelados como xilofones.
Mas aqui, a pobreza do estábulo que rodeava o eterno
Exemplo,
a proximidade do rio revolto e turvo, a vizinhança de
quintas
e fábricas, a presença de porcos grunhindo como o cerdo de
Santo Antão, ao pé das caveiras esculpidas numa madeira
acinzentada por chuvas sem conta, davam um singular vigor a
esse retábulo do pó, da cinza, do nada, situando-o dentro da
nossa época. E os timbales que tanto percutem no scherzo
beethoveniano tomavam uma fatídica ressonância enquanto eu
os
associava no meu espírito à visão do ossário de Blois, à
entrada do qual me surpreenderam, os jornais da tarde com a
notícia da guerra. Os toros estavam queimados. Numa
encosta,
78

mais acima do telhado e dos pinheiros, um cão uivava na


bruma.
Afastado da música pela própria música, regressava a ela
pelo
caminho
dos grilos, esperando um si bemol que já cantava em meu
ouvido. E já nascia, de um lento convite de fagote e
clarinete, a frase admirável do Adágio, tão profunda dentro
do
pudor de seu lirismo. Esta era a única passagem da Sinfonia
que minha mãe - mais habituada à leitura de habaneras e
selecções de ópera - conseguia tocar às vezes, graças ao seu
tempo pausado, sobre uma transcrição para piano que ela
retirava de uma gaveta da loja. Ao sexto compasso,
placidamente rematado por um eco de madeiras, acabo eu de
chegar do colégio, depois de muito correr para deslizar
sobre
os pequenos frutos dos álamos que juncam os passeios. A
nossa
casa possui um amplo átrio de colunas caiadas, colocado como
um degrau de escada, entre os átrios vizinhos, um mais alto,
outro mais baixo, todos eles atravessados pelo plano
inclinado
da calçada que sobe até à igreja de Jesus do Monte, que se
ergue além à altura dos telhados, com suas árvores plantadas
sobre um terraço fechado por uma balaustrada. A casa
pertenceu
em tempo a uma grande família; conserva vastos móveis de
madeira negra, profundos armários e um lustre de cristais
biselados que se enche de pequenos arco-íris ao receber o
último raio de Sol vindo das vidraças azuis, brancas,
vermelhas, que fecham o arco da entrada como um grande leque
de vidro. Sento-me, as pernas esticadas, numa cadeira de
baloiço, demasiado alta e larga para uma criança, e abro o
Epítome de Gramática da Real Academia, que tenho que
rever esta tarde:

Estos, Fabio ay dolor!, que ves agora...

A negra, entre a fuligem das suas janelas, canta algo em


que se fala dos tempos da Colónia e dos bigodes da Guarda
Civil. E eis minha mãe que não acaba nunca, como de costume,
de tentar fazer subir no piano, a tecla do fa sempre
encravada. Ao fundo da casa há um quarto de janela gradeada
à
qual se enreda um caule de abóbora. Chamo por Maria del
Carmen, que brinca entre os potes das arecas, das roseiras
em
tachos, dos viveiros de cravos, dos jarros, dos girassóis do
pátio traseiro de seu pai, o jardineiro. Desliza por uma
brecha de cerca de cactos e deita-se a meu lado, na cesta da
lavandaria em forma de barca onde nós viajamos. Envolve-nos
o
odor a esparto, a fibra vegetal, a feno, desta cesta
trazida,
todas as semanas, por um gigante coberto de suor, que devora
enormes pratos de favas, a quem chamam Baudilio. Não me
canso
de a abraçar apertadamente. O seu calor comunica-me

79

um feliz bem-estar que eu gostaria de manter


indefinidamente.
Como se aborrece de estar assim, sem se mover, sossego-a
dizendo-lhe que estamos no mar e que falta pouco para chegar
ao cais, que será aquele baú de tampo redondo, coberto de
folha-de-flandres de muitas cores, a cuja peça se amarram os
navios. No colégio falaram-me de sujas relações entre
machos e
fêmeas.
Contestei-as com indignação, sabendo que eram porcarias
inventadas pelos adultos para escarnecer dos mais pequenos.
No
dia em que mo disseram não me atrevi a olhar a minha mãe de
frente. Pergunto agora a Maria del Carmen se quer ser minha
mulher, e como responde que sim, aperto-a um pouco mais,
imitando com a voz, para que não se aparte de mim, o ruído
das
sirenes dos barcos. Respiro mal, o meu coração bate, e este
mal-estar é tão agradável, no entanto, que não comprendo por
que a negra, quando nos
surpreende assim, nos retira da cesta, a lança sobre um
armário e grita que estou muito crescido para essas
brincadeiras. No entanto, nada conta a minha mãe. Acabo por
me
queixar a ela que me
responde que são horas de estudar. Volto ao Epitome de
Gramática, mas o odor a fibra vegetal, a vime, a esparto,
persegue-me. Esse odor cuja recordação vem do passado, às
vezes com tal realismo que todo eu estremeço. Esse odor que
torno a encontrar esta noite; junto ao armário das ervas
silvestres, quando o Adagio termina sobre quatro acordes
pianissimo, o primeiro harpejado, e um estremecimento,
perceptível através da transmissão, que agita a massa coral
cuja entrada se aproxima. Adivinho o gesto enérgico do
maestro
invisível, pelo qual se entra, de chofre, no drama que
prepara
o advento da Ode de Schiller. A tempestade de bronzes e de
timbales que se desata para encontrar, mais tarde, um eco de
si própria, enquadra uma recapitulação dos temas já
escutados.
Mas esses temas aparecem quebrados, lacerados, feitos
farrapos, lançados a uma espécie de caos que é gestação do
futuro, de cada vez que pretendem erguer-se, afirmarem-se,
tornarem a ser o que foram. Essa espécie de sinfonia em
ruínas
que agora se atravessa na sinfonia total, poderia ser -
penso eu, na minha deformação profissional - o
acompanhamento dramático de um documentário elaborado sobre
os
caminhos que eu tivera de percorrer como intérprete
militar no final da guerra. Eram os caminhos do Apocalipse,
traçados entre paredes escavacadas de tal maneira que
pareciam
os caracteres de um alfabeto desconhecido; caminhos cheios
de covas atulhadas até pedaços de estátuas, que atravessavam
abadias sem tecto, e ladeadas de anjos decapitados, que se
desviavam frente a uma Última Ceia abandonada às
intempéries pelos obuses, desembocando no pó e na cinza
do que fora, durante séculos, o arquivo

80

supremo do canto ambrosiano. Mas os horrores da guerra são


obra do homem. Cada época deixou os seus, burilados sobre o
cobre ou gravados em sombrias cores de água-forte. O novo
aqui, o inédito, o moderno, era aquele antro de horror,
aquela
chancelaria do horror, aquele couto vedado do horror que nos
fora dado conhecer na nossa caminhada: a Mansão do Calafrio,
onde tudo era testemunho de torturas, extermínios em massa,
cremações,
entre muralhas salpicadas de sangue e de excrementos,
montões
de ossos, dentaduras humanas empilhadas aos cantos às
pázadas,
sem falar das mortes piores, executadas a frio, por mãos com
luvas de borracha, na brancura asséptica, limpa, luminosa,
das
salas de operações. A dois passos daqui, uma humanidade
sensível e cultivada - sem fazer caso do fumo abjecto de
certas chaminés, pelas quais haviam brotado, um pouco antes,
orações ululadas em
yddish - continuava coleccionando selos, estudando as
glórias
da raça, tocando pequenas músicas nocturnas de Mozart,
lendo A
pequena sereia de Andersen às crianças. Isto também era
novo,
sinistramente moderno, pavorosamente inédito. Algo se
desmoronou em mim na tarde em que saí do abominável parque
de
iniquidades que me esforçara por visitar para me certificar
da
sua existência, com a boca seca e a sensação de ter engolido
pó de gesso. Jamais pudera imaginar uma falha tão absoluta
do
homem ocidental como a que aqui se demonstrava em resíduos
de
terror. Em criança tinham-me aterrorizado as histórias que
então corriam acerca das atrocidades cometidas por Pancho
Villa, cujo nome se associava na minha memória à sorzibra
felpuda e fantástica de Satã. "Cultura obriga", costumava
dizer o meu pai perante as fotografias de fuzilamentos que
então a imprensa divulgava, exprimindo com essa divisa de
uma
nova cavalaria do espírito, a sua fé no desaparecimento da
iniquidade pela virtude dos Livros. Maniqueísta à sua
maneira,
via o mundo como o campo de uma luta entre a luz da
imprensa e
as trevas de uma animalidade original, propiciadora de toda
a
crueldade naqueles que ignoravam a instrução, a música e os
laboratórios. O Mal, para ele estava personificado por quem,
ao encostar os seus inimigos ao paredão das execuções,
renovava, ao fim de séculos, o gesto do príncipe assíro
cegando os seus prisioneiros com uma lança, ou de feroz
cruzado que emparedara os cátaros nas cavernas do Monte
Segur.
O Mal, de que estava já liberta a Europa de Beethoven,
possuía
o seu último reduto no Continente-de-pouca-História... Mas,
após
ter-me encontrado na Mansão do Calafrio, neste campo
imaginado, criado, organizado por gente que sabia de tantas
coisas nobres, arremetidas dos Charros de Oro, as cidades
tomadas à porfia, os comboios

81

descarrilados entre cactos e figueiras-da-índia, os


revólveres
disparados em noites de festa, pareciam-me alegres estampas
de
romances de aventuras, cheias de sol, de
cavalgadas, de atitudes viris, de mortes limpas sobre a pele
suada das montadas, junto ao baile das viandeiras
recém-paridas nas margens do caminho. E o pior foi que, na
noite do meu encontro com a mais fria barbárie da história,
os
carrascos e guardas, e também os que levavam os algodões
ensanguentados em baldes, e os que anotavam nos seus
cadernos
forrados de percalina negra, que estavam presos num hangar,
começaram a cantar depois do rancho. Sentado sobre a minha
tarimba, retirado do sono pelo espanto, ouvia-os cantar a
mesma coisa que cantava agora o coral motivado por um gesto
longínquo do maestro:

Freunde, schoner Gotterfunken,


Tocltter aus Elysium!
Wir betreten feuertrunken,
Himmlische, dein Heiligtum.

Por fim conseguira a Nona Sinfonia, motivo da minha viagem


anterior, ainda que não verdadeiramente onde o meu pai a
situara. "Alegria! O mais belo esplendor divino, filha do
Eliseo. Ébrios do seu fogo penetramos, oh Celestial!, em teu
santuário... Todos os homens serão irmãos lá onde se gera o
teu suave voo." As estrofes de Schiller laceravam-me
sarcasticamente. Eram a culminação de uma ascensão de
séculos
durante a qual se caminhara sem parar em direcção à
tolerância, à bondade, à compreensão mútua. A
Nona Sinfonia era a doce bonomia de Montaigne, o azul de
Voltaire no processo de Calais. Agora crescia, cheio de
júbilo, o "alle Menschen werden bruder wo dein sanfter
Flügel
weildt" (*), como naquela noite em que perdi a fé naqueles
que
mentiam quando falavam dos seus princípios, invocando textos
cujo profundo sentido estava esquecido. Para pensar menos na
Dança Macabra que me envolvia, assumi uma mentalidade de
mercenário, deixando-me arrastar pelos meus companheiros de
armas para as suas tabernas e bordéis. Comecei a beber como
eles, afundando-me numa espécie de inconsciência sem
atingir,
no entanto, a completa bebedeira, o que me permitiu
terminar a
campanha sem me entusiasmar por palavras ou factos. A nossa
vitória deixava-me vencido. Não conseguiu impressionar-me
sequer a noite passada na secção

(*) "Por onde as tuas suaves asas adejam, todos os homens


se tornam irmãos" (N. do T.)

82

de acessórios do teatro de Bayreuth, sob uma


wagneriana zoologia de cisnes e cavalos suspensos do
tecto, junto a um Fafner comido pelo caruncho, cuja
cabeça parecia procurar amparo debaixo da minha tarimba
de invasor. E foi um homem sem esperança quem regressou à
grande cidade e entrou no primeiro bar para se couraçar
de antemão contra qualquer intento idealista. Um homem que
quis provar a sua força roubando a mulher alheia, para
tornar,
no fim de contas, à solidão do leito não compartilhado. Um
homem com nome de Homem que, na manhã anterior, aceitava no
entanto a ideia de vigarizar com instrumentos de fancaria
quem
nele depositara toda a confiança... E eis que, de repente,
esta Nona Sinfonia me aborrece, com as suas promessas não
cumpridas, as suas ambições messiânicas sublinhadas pelo
arsenal de feira da «música turca» que tão vulgarmente se
desata no prestissimo final. Não espero o majestoso Tochter
aus Elysium! Freude schoner Gotterfunken do exórdio. Corto a
transmissão
perguntando-me como pude executar a partitura quase
completa,
com alguns momentos de esquecimento de mim próprio, quando
as associações de lembranças não me absorviam demasiado. A
minha mão procura um pepino cuja frialdade parece sair-lhe
por
detrás da pele; a outra sopesa o verdor de um pimento que o
polegar penetra cobrindo-se de um suco que a boca logo
recolhe
com prazer. Abro o armário das plantas e retiro um punhado
de
folhas secas, que aspiro longamente. Na lareira uma última
brasa palpita ainda, negra e rubra, como coisa viva.
Ponho-me
à janela: as árvores mais próximas perderam-se na névoa. O
ganso do pátio traseiro desenfia a cabeça de entre a asa e
entreabre o bico, sem acordar completamente. Na noite, um
fruto tombou.

(Terça feira, 12)

Quando Mouche saiu do quarto, pouco depois de madrugada,


parecia mais cansada do que na véspera. As incomodidades de
um
dia de viagem por estradas difíceis, o leito duro, a
necessidade de levantar cedo, de submeter o corpo a uma
disciplina, bastaram para provocar uma espécie de
empalidecimento da sua pessoa. Ela, que lá se mostrara
sempre
fresca e bem disposta nas nossas noites desordenadas, era
aqui
a própria imagem do tédio.

83

Parecia que o brilho da sua pele se tinha embaciado, e nem


um
lenço conseguia prender os seus cabelos que saíam em
madeixas
despenteadas de um louro quase esverdeado. O seu ar de
descontentamento envelhecia-a de uma forma surpreendente,
adelgaçando-Lhe os lábios com formação de pregas aos cantos
e
que os maus espelhos e a luz escassa não permitiam pintar
devidamente. Durante o pequeno almoço, para a distrair,
falei-lhe da passageira que eu conhecera na noite anterior.
Entretanto, a aludida pessoa aparece toda agitada, rindo-se
da
sua agitação, pois fora com as mulheres da casa a uma fonte
próxima fazer a sua toillete. Os seus cabelos, entrançados
em
torno da cabeça, gotejavam ainda sobre o rosto de cor mate.
Dirigiu-se a Mouche com familiaridade, tratando-a por tu
como
se a conhecesse há muito tempo, com perguntas que eu ia
traduzindo. Quando subimos para o autocarro, as duas
mulheres
tinham arranjado uma linguagem de gestos e palavras soltas
que
lhes bastava para se entenderem. A minha companheira,
novamente fatigada, descansou a cabeça
sobre o ombro daquela que - sabíamo-lo agora - se chamava
Rosario, e que escutava as suas queixas acerca dos
inconvenientes de uma viagem tão inconfortável com uma
solicitude quase maternal, onde se podia vislumbrar, no
entanto, uma ponta de ironia. Satisfeito por estar um pouco
desembaraçado de Mouche,
empreendi alegremente a viagem, sozinho, num lugar espaçoso.
Nessa mesma tarde chegaríamos ao porto fluvial de onde
partiam
embarcações para a orla da Selva do Sul, e de curva em
curva,
seguindo encostas, descendo sempre, íamos no pino do Sol.
Parávamos às vezes em aldeias aprazíveis, de poucas janelas
abertas, rodeadas por uma vegetação cada vez mais tropical.
Aqui apareciam trepadeiras floridas, cadus, bambús; além uma
palmeira brotava de um pátio, abrindo-se em forma de leque
sobre o telhado de uma casa onde as cerzideiras
trabalhavam à sombra. Tão cerrada e contínua foi a chuva
que tombou sobre nós ao meio-dia que, até ao fim da
tarde, não conseguia ver coisa alguma através dos vidros
embaciados pela água. Mouche retirou um livro da sua
carteira.
Rosario, para a imitar, procurou um na sua trouxa. Era um
volume impresso em mau papel, cheio de grânulos, cuja capa
em tricromia mostrava uma mulher coberta de peles de urso
ou algo parecido, que era abraçada por um magnífico
cavaleiro à entrada de uma gruta, sob o olhar complacente
de uma gazela de longo pescoço: História de Genoveva de
Brabante. No meu espírito
estabeleceu-se um contraste cómico entre este livro e o
famoso romance moderno que Mouche tinha entre mãos, e que
eu havia deixado no terceiro capítulo, deprimido por uma
espécie de vergonha triste perante um chorrilho de
obscenidades ali descritas. Inimigo de toda a continência
sexual, de toda a hipocrisia no que concerne ao jogo dos
corpos, irritava-me, no entanto,
qualquer literatura ou vocabulário que emporcalhasse o amor
físico, por meio de chacota, de sarcasmo ou grosseria.
Parecia-me que o homem devia evitar, no amor, a simples
impulsividade, o espírito ligeiro, próprios do cio dos
animais, entregando-se alegremente ao acto voluptuoso,
sabendo
bem, que a intimidade do quarto, a ausência de testemunhas,
a
cumplicidade na procura do prazer, excluíam tudo quanto
pudesse promover a ironia ou a graçola pelo desajustamento
dos
corpos, pela animalidade de certas práticas - nas relações
do
par que não se podia contemplar a si próprio pelos olhos de
outrem. Pela mesma razão, a pornografia era-me tão
insuportável como certas histórias obscenas, certas
desinências sujas, certos verbos metaforicamente aplicados à
actividade sexual, e não podia considerar sem repulsa uma
determinada literatura, muito apreciada na nossa época, que
parecia empenhada em degradar e desfear tudo aquilo que o
homem, em momentos difíceis de desalento, encontrasse como
compensação
para os seus fracassos, sentindo plenamente, na carne
partilhada, a mais forte afirmação da sua virilidade. Eu lia
por cima dos ombros das duas mulheres, experimentando seguir
simultaneamente os dois textos, a prosa negra e a prosa
rosa;
mas depressa se me tornou impossível o jogo, pela rapidez
com
que Mouche virava as páginas, e a lentidão de leitura de
Rosario, que levava os olhos, pausadamente, do princípio ao
fim das linhas, com o movimento de lábios de quem soletra,
encontrando aventuras apaixonantes na sucessão de palavras
que
nem sempre se ordenavam como ela
quisera. Às vezes detinha-se perante uma infâmia feita à
desventurada Genoveva, com um pequeno gesto de indignação;
voltava a ler o parágrafo, duvidando de que tanta maldade
fosse possível. E passava novamente por sobre o penoso
episódio, como que consternada da sua impotência perante os
factos. O seu rosto reflectia uma profunda ansiedade, agora
que se concretizavam os sombrios desígnios de Golo. "São
contos de outros tempos", disse-lhe, para a fazer falar.
Sobressaltada, virou-se para mim ao aperceber-se que eu
estivera a ler por cima do seu ombro. "O que os livros
dizem é
verdade", respondeu. Olhei para o livro de Mouche, pensando
que se era verdade o que ali se contava, numa prosa que o
editor, aterrado, tivera de amputar várias vezes, nem por
isso
se estava mais liberto - apesar de laboriosos esforços - de
obscenidades que os escultores hindus ou os simples oleiros
incas tinham situado num plano de autêntica grandeza. Agora
84 85

Rosario fechava os olhos. "O que os livros dizem é


verdade." É
provável que,
para ela, a história de Genoveva tivesse algo de actual:
algo
que se desenrolava, ao ritmo da sua leitura, num país da
nossa
época. O passado não é imaginável para quem ignora o
vestuário, o décor e o armazém dos acessórios da história.
Assim, ela devia imaginar os castelos de Brabante como as
ricas fazendas daqui, rodeados de muros com ameias. Os
costumes da caça e as montadas
perpetuavam-se nestas terras, onde os veados e os cabritos
eram entregues à perseguição das matilhas. Quanto aos
trajes,
Rosario devia ver o seu romance como certos pintores do
primeiro Renascimento viram o Evangelho, vestindo as
personagens da Paixão à maneira dos notáveis do seu tempo,
lançando ao inferno, de
cabeça para baixo, algum Pilatos com aparência de magistrado
florentino... Caiu a noite e a luz tornou-se tão precária
que
cada qual se encerrou em si próprio. Houve um prolongado
rolar
na escuridão e, de súbito, na volta de um penhasco,
irrompemos
sobre a vastidão esbraseada do Vale das Chamas.
Certas pessoas já me tinham falado, durante a viagem, da
povoação nascida lá em baixo, em poucas semanas, ao brotar o
petróleo sobre uma terra pantanosa. Mas essa referência não
me
sugerira a possibilidade do espectáculo prodigioso que agora
se ampliava em cada volta do caminho. Sobre uma planície
pelada era um vasto bailar de labaredas que restolhavam ao
vento como as bandeiras anunciadoras de alguma cólera
celeste.
Confundidas com a fuga de gases dos poços, elas agitavam-se,
estremeciam, enrolando-se em si mesmas, girando, ora livres,
ora retidas, a curta distância das mechas - hastes desse
fogo
enxame, desse fogo árvore agarrado ao solo, que voava sem
poder voar, numa estridência de púrpuras exasperadas. O ar
transformava-as, de súbito, em luzes de extermínio, em
fachos
enfurecidos, para as reunir em seguida num feixe de
archotes,
num só tronco vermelho e negro que se agitava tremulamente
numa ondulação de torso humano;
mas logo essa massa se quebrava, e o ardente corpo sacudido
por amarelas convulsões, se enroscava na sarça ardente,
eriçada de chispas, sonora de rugidos, antes de se estender
em
direcção à cidade, em mil chicotadas zumbidoras, como para
castigar uma população ímpia. Junto a essas piras
aprisionadas
prosseguiam o seu trabalho de extracção, incansáveis,
regulares, obsessivas, umas máquinas cujo volante tinha o
perfil de uma grande ave negra, com um bico que se fincava
na
terra com um movimento isócrono de pássaro perfurando um
tronco. Havia algo impassível, obstinado, maléfico, nessas
silhuetas que se mexiam sem se queimarem como salamandras
nascidas do fluxo e refluxo das labaredas que o vento

86

encrespava, em marulhadas, até ao horizonte.


Apetecia pôr-lhes nomes de demónios e divertia-me a
chamar-lhes Corvo-Magro, Abutre-de-Ferro, ou Mau-Tridente,
quando a nossa viagem terminou num pátio onde uns porcos
negros, afogueados pelo resplendor das chamas, chapinhavam
em
charcos cujas águas tinham crostas jaspeadas e manchas de
óleo. A sala de jantar do albergue estava repleta de homens
que falavam aos gritos, como que enevoados pelo fumo dos
grelhados. Com as máscaras antigás penduradas ainda por
debaixo do queixo, e com as roupas do trabalho por tirar
parecia que sobre eles se tinham incrustado, em forma de
colagens, de borrões ou de gorduras, as mais negras
exsudações
da terra. Todos bebiam desaforadamente com as garrafas
empunhadas pelo gargalo, em mesas cobertas de cartas e
fichas.
Mas, de repente, a bisca ficou suspensa e os jogadores
voltaram-se para o pátio numa alegre gritaria. Processava-se
ali um golpe de teatro: trazidas não se sabe por que
veículo,
tinham aparecido mulheres de traje de baile, com sapatos de
tacão alto, reflexos no cabelo e no colo, cuja presença
naquele curral lodoso, orlado de manjedouras, me pareceu
alucinante. Além disso, a escumilha, as contas e as pérolas
de
vidro que enfeitavam os vestidos, reflectiam ao mesmo tempo
as
labaredas de cada vez que o vento dava uma nova direcção à
sua
ronda de esplendores. Essas mulheres enrubescidas corriam e
azafamavam-se entre os homens enfarruscados, levando
embrulhos
e malas, numa algaraviada que acabava por atordoar,
juntamente
com o espantamento dos burros e o despertar das galinhas
adormecidas nas traves dos alpendres. Soube então que no dia
seguinte seria a festa do patrono da aldeia, e que aquelas
mulheres eram prostitutas que viajavam assim todo o ano, de
lugar para lugar, de feiras a procissões, de minas a
romarias,
para aproveitarem os dias em que os homens se mostravam mais
generosos. Assim, seguiam o itinerário dos campanários,
fornicando por São Cristóvão, por Santa Lúcia, pelos Fiéis
Defuntos ou pelos Santos Inocentes, à beira dos caminhos,
junto aos muros dos cemitérios, sobre os taludes dos grandes
rios ou nos quartos exíguos, com uma bacia no chão que
alugavam na loja
traseira das tabernas. O que mais me espantava era a boa
disposição com que as recém-chegadas eram acolhidas pela
gente
séria, sem que as mulheres honestas da casa, a esposa, a
jovem
filha do estalajadeiro, tivessem o menor gesto de desprezo.
Parecia-me que eram olhadas um pouco como os bobos, ciganos
ou
loucos engraçados, e as criadas da cozinha riam ao vê-las
saltar, com os seus vestidos de baile, por sobre os porcos e
os charcos, transportando as suas trouxas com a ajuda de
alguns mineiros decididos a fruirem as suas

87
primícias. Eu pensava que essas prostitutas
errantes, que vinham ao nosso encontro, introduzindo-se na
nossa época, eram primas das galdérias da Idade Média, das
que
iam de Bremen a Hamburgo, de Anvers a Gand, na altura das
feiras, para tratar dos maus humores de mestres e
aprendizes,
aliviando de passagem algum peregrino de Compostela, com a
permissão de elas beijarem a concha trazida de tão longe.
Depois de recolherem as suas coisas, as mulheres entraram na
sala de jantar do albergue com grande alvoroço. Mouche,
deslumbrada, convidou-me a segui-las, para observar melhor
os
seus vestidos e penteados. Ela, que até agora tinha
permanecido indiferente e sonolenta, estava como que
transfigurada. Há seres cujos olhos se iluminam quando
sentem
a proximidade do sexo. Insensível, queixosa desde a
véspera, a
minha amiga parecia reviver na primeira atmosfera turva que
se
lhe deparava. Declarando agora que essas prostitutas eram
formidáveis, únicas, de um estilo que se perdera, começou a
aproximar-se delas. Ao ver que se sentava num dos bancos do
fundo, junto de uma mesa que as recém-chegadas ocupavam,
procurando conversar por gestos com uma das mais vistosas,
Rosario olhou-me com surpresa, como querendo dizer-me alguma
coisa. Para evitar uma explicação que provavelmente não
entenderia, peguei na bagagem e fui à procura do nosso
quarto.
Sobre os muros do pátio dançava o resplendor das chamas.
Estava a fazer contas das últimas despesas quando me pareceu
que Mouche me chamava com voz angustiada. Pelo espelho do
armário via-a passar, no outro extremo do corredor,
parecendo
fugir de um homem que a perseguia. Quando cheguei ao pé
deles,
o homem agarrara-a pela cintura e
empurrava-a para dentro de um quarto. Ao agredi-lo com um
murro, voltou-se de repente e o seu golpe projectou-me sobre
uma mesa coberta de garrafas vazias que se despedaçaram ao
cair. Agarrei-me ao meu adversário e rebolámos no chão,
sentindo os vidros que se cravavam nas mãos e nos braços. Ao
cabo de alguns minutos de luta, em que o outro me deixou sem
forças, vi-me preso entre os seus joelhos, de costas no
chão,
sob dois grandes punhos que se erguiam para melhor cairem,
como uma maça, sobre o meu rosto. Naquele instante, Rosario
entrou no quarto, seguida pelo estalajadeiro. "Yannes!"
gritou, "Yannes!" Agarrado pelos pulsos, o homem levantou-se
lentamente, como que envergonhado pelo seu acto. O
estalajadeiro explicava-lhe qualquer coisa que, devido à
minha
excitação nervosa, não consegui ouvir. O meu adversário
parecia humilde; agora falava-me num tom comovido: "Eu não
sabia... Equívoco... Devia dizer tinha marido". Rosario
limpava-me a cara com um pano embebido em rum: "A culpa foi
88

dela; estava misturada com as outras". O pior de tudo era


que
não sentia uma verdadeira cólera contra ele, que me
batera, mas sim contra Mouche que, com efeito, por um
aparato muito próprio do seu carácter, fora sentar-se ao
lado das prostitutas. "Não aconteceu nada... Não
aconteceu nada", afirmava o estalajadeiro aos curiosos que
chegavam ao corredor. E Rosario, como se, com efeito,
nada se tivesse passado, fez-me apertar a mão ao que agora
se
desfazia em desculpas. Para me acalmar, falava-me dele
afirmando que o conhecia há muito tempo, pois não era
daquele
lugar mas sim de Puerto Anunciación, a povoação próxima da
Selva del Sur, onde a esperava o pai enfermo com o remédio
da
estampa milagrosa. O título de Explorador de Diamantes, para
aquele que pouco antes me agredira, pareceu-me logo
interessante. Em breve estávamos na adega, com meia garrafa
de
aguardente bebida, já esquecidos da luta absurda. De ombros
largos, corpo esguio, com algo de ave de rapina no olhar, o
mineiro tinha o rosto sombreado por um fio de barba que
podia
ter-se desprendido de um arco de triunfo pelo traço
decidido e
grave do perfil. Ao saber que era grego - explicando-se
assim
a tremenda eliminação de artigos que caracterizava o seu
modo
de falar - estive tentado a perguntar-lhe, por graça, se era
um dos Sete contra Tebas. Mas entretanto apareceu Mouche,
com
ar de indiferença, como se ignorasse a luta que nos deixara
as
mãos repletas de golpes. Censurei a sua atitude por meias
palavras que expressavam insuficientemente a minha
irritação.
Ela sentou-se do outro lado da mesa, sem fazer caso, e
pôs-se
a examinar o grego - agora tão respeitoso que afastara o seu
banco para não estar muito perto da minha amiga - com um
interesse que, naquele momento, me pareceu um insulto. Às
desculpas do Explorador de Diamantes, que se qualificava a
si
mesmo um «maldito idiota», respondi que o sucedido não tinha
importância. Voltei-me para Rosario. Olhava-me de soslaio,
com
certa gravidade irónica que eu não sabia como interpretar.
Quis iniciar uma conversa qualquer que nos afastasse do
presente, mas as palavras não me vinham à boca. Entretanto,
Mouche aproximara-se do
grego com um sorriso tão insinuante e nervoso que a ira me
queimou as têmporas. Acabáramos de ultrapassar este
contratempo que pudera ter tido consequências lamentáveis e

se divertia a conquistar o mineiro que meia hora antes a
tratara como uma prostituta. Essa atitude era tão literária,
devia tanto ao espírito que exaltara, nesse tempo, a taberna
de marinheiros e os cais enevoados, que a considerei
terrivelmente grotesca pela sua incapacidade de se desligar,
perante qualquer realidade, dos lugares-comuns da sua
geração.
Tinha de escolher um hipocampo, por pensar

89

em Rimbaud, onde vendiam toscos relicários de


artesanato colonial; havia de zombar da ópera romântica no
teatro que, precisamente, devolvia a sua fragrância ao
jardim
de Lamermoor, e não via que a prostituta das novelas da
Evasão
se transformara, aqui, numa mescla de feirante oportuna e de
egípcia sem reputação de santidade. Olheia-a de forma tão
ambígua que Rosario, inquieta, pensando talvez que ia
voltar a
discutir, me interceptou para me acalmar com uma frase
obscura
que tinha algo de provérbio e de máxima: "Quando o homem
luta, que seja para defender a sua casa". Não sei o que
Rosario entendia por «minha casa», mas se pretendia dizer
aquilo que eu quis compreender, tinha razão: Mouche não era
«a minha casa». Era, pelo contrário, aquela fêmea desordeira
das Escrituras, cujos pés não podiam estar em casa. Com esta
frase criava-se uma ponte sobre a ampla mesa, entre Rosario
e
eu, e senti, naquele momento, o apoio de uma simpatia que se
compadecera, talvez, ao ver-me novamente vencido. Além do
mais, a jovem tornava-se, a meus olhos, mais importante à
medida que o tempo passava, ao estabelecer com o ambiente
certas relações que se me tornavam cada vez mais
perceptíveis.
Mouche, pelo contrário, afastava-se brutalmente de mim,
dentro
de um crescente desajuste entre a sua pessoa e tudo o que
nos
rodeava. Uma aura de exotismo condensava-se em torno dela,
estabelecendo distâncias entre a sua figura e as demais,
entre
o seu comportamento, as suas maneiras e as formas de actuar
que aqui eram normais. Tornava-se, pouco a pouco, algo
distante, mal situada, excêntrica, que chamava a atenção,
como
antigamente o turbante dos embaixadores da Sublime Porta
chamava a atenção nas cortes cristãs. Rosario, pelo
contrário, era como a Cecília ou a Lúcia que volta a
engastar-se nos seus cristais quando se acaba de restaurar
um
vitral. Da manhã para a tarde e da tarde para a noite,
tornava-se mais autêntica, mais verdadeira, mais cabalmente
delineada numa paisagem que fixava as suas constantes à
medida
que nos aproximávamos do rio. Entre a sua carne e a terra
que
se pisava estabeleciam-se relações escritas nas peles
sombreadas pela luz, na semelhança das cabeleiras visíveis,
na
unidade de formas que dava aos corpos, aos ombros, às coxas,
uma configuração comum de
obra saída de um mesmo forno. Sentia-me cada vez mais perto
de
Rosario, que hora a hora se tornava mais bela, em oposição à
outra que se esfumava na sua presente distância, aprovando
tudo o que dizia e expressava. E, contudo, ao olhar a mulher
como mulher, sentia-me inábil, coibido, consciente do meu
próprio exotismo, perante uma dignidade inata que parecia
negada de antemão à aproximação fácil. Não eram apenas

90

garrafas que se erguiam ali, formando uma barreira de vidro


entre nós: eram os mil livros lidos por mim, ignorados por
ela, eram crenças
dela, costumes, superstições, noções, que eu desconhecia e
que, no
entanto, alentavam razões de viver tão válidas como as
minhas.
A minha formação, os seus preconceitos, aquilo que lhe
haviam
ensinado, aquilo que sobre ela pesava, eram outros tantos
factores que, naquele momento, me pareciam inconciliáveis.
Repetia para mim mesmo que nada disto obstava à sempre
possível união de um corpo de homem e um corpo de mulher e,
não obstante, reconhecia que toda uma cultura, com as suas
deformações e exigências, me separava deste rosto atrás do
qual não devia haver sequer uma noção muito clara da
esfericidade da Terra nem da disposição dos países sobre o
mapa. Isso pensava eu ao recordar as suas crenças sobre o
espírito unipedal dos bosques. E ao ver a pequena cruz de
ouro
que trazia ao pescoço, apercebi-me de que o único campo de
entendimento que podíamos ter em comum, o da fé em Cristo,
tinha sido abandonado pelos meus antepassados paternos havia
muito tempo: desde que, huguenotes expulsos da Sabóia pela
revogação do Édito de Nantes, passados para a Enciclopédia
por
um tetravô meu, amigo do barão de Holbach, conservaram
Bíblias
na família, sem acreditarem já nas Escrituras, unicamente
porque não estavam isentas de uma certa poesia... A taberna
foi invadida pelos mineiros de outro turno. As mulheres
ruivas
regressavam dos quartos do pátio, guardando o dinheiro dos
primeiros encontros. Para terminar com a situação falsa que
nos deixava incomodados em volta da mesa, propus que
fôssemos
até ao rio. O Explorador de Diamantes estava como que
inibido
perante a insinuante deferência de Mouche, que o obrigava a
contar nas suas andanças na selva, embora não lhe prestasse
atenção, num francês de tão poucas palavras que nunca
conseguia terminar uma frase. Em face da minha proposta de
sair, comprou garrafas de cerveja gelada, como que
aliviado, e
levou-nos por uma rua recta que se perdia na noite,
afastando-se das chamas do vale. Depressa chegámos à margem
do
rio que corria na sombra, com um ruído forte, continuado,
profundo, de massa de água dividindo as terras. Não era o
deslizar agitado das pequenas correntes, o chapinhar das
torrentes, nem a fresca placidez das ondas que tantas vezes
ouvira de noite noutros lugares: era o impulso suavizado, o
ritmo genésico de uma descida iniciada centenas e centenas
de
léguas mais acima, nas confluências de outros rios vindos
ainda de mais longe, com todo o seu peso de cataratas e
mananciais. Na obscuridade, parecia que a água, que sempre
impelira a água, nunca tivera outra margem e que o seu rumor
se perpetuava até aos confins do

91

mundo. Caminhando em silêncio, chegámos a uma enseada


melhor, um remanso - que era cemitério de velhos barcos
abandonados, com os seus lemes deixados ao garrado e os
porões
repletos de rãs. Ao centro, encalhado no limo, havia um
antigo
veleiro, de aspecto muito nobre, com proa em forma de
máscara,
que era uma Anfitrite de madeira talhada, cujos seios nus
surgiam de véus alargados até aos escovéns, em movimento de
asas.
Detivemo-nos perto do casco, quase junto à figura que
parecia
voar sobre nós quando de súbito era encandescida por uma
labareda tornadiça. Anestesiados pela frescura da noite e o
ruído perene do rio em movimento, acabámos por nos encostar
ao
cascalho da margem. Rosario soltou o cabelo e começou a
penteá-lo lentamente, com um gesto tão íntimo, tão sabedor
da
proximidade do sonho, que não me atrevi a falar-lhe. Mouche,
pelo contrário, contava banalidades, interrogava o grego,
celebrava as suas respostas com risadas em diapasão agudo,
sem
se aperceber, aparentemente, de que estávamos num lugar
cujos
elementos compunham uma dessas cenografias inesquecíveis
que o
homem
muito poucas vezes encontra no seu caminho. A máscara, as
labaredas, o rio, os barcos abandonados, as constelações:
nada
disto parecia emocioná-la. Creio que foi nesse momento que a
sua presença começou a pesar sobre mim como um fardo que
cada
jornada carregaria com novas lastras.

92
XI

(Quarta feira, 13)

Silêncio é palavra do meu vocabulário. Tendo trabalhado a


música, useia-a mais do que os homens de outros ofícios. Sei
como se pode especular com o silêncio; como se pode medi-lo
e
enquadrá-lo. Mas agora, sentado nesta pedra, vivo o
silêncio.
Um silêncio vindo de tão longe, espesso de tantos silêncios,
que a palavra adquirira nele o fragor de criação. Se eu
dissesse alguma coisa, se eu falasse sozinho, como faço
amiúde, assustar-me-ia a mim próprio. Os marinheiros ficaram
lá em baixo, na margem,
cortando pasto para os touros sementais que viajavam
connosco.
As suas vozes não me alcançam. Sem pensar neles, contemplo
esta planície imensa, cujos limites se dissolvem num leve
escurecimento circular do céu. Do ponto em que me situo,
abarco, na sua quase totalidade, uma circunferência que é
parte cabal, inteira, do planeta em que vivo. Não tenho
sequer
de erguer os olhos para ver uma nuvem: aqueles cirros
imóveis,
que parecem ter estado ali desde sempre, estão à altura da
mão
que dá sombra às minhas
pálpebras. De longe em longe, ergue-se uma árvore copada e
solitária, sempre acompanhada por um cacto que é como um
grande candelabro de pedra verde, sobre o qual descansam os
gaviões, impassíveis, pesados, como pássaros de heráldica.
Nada faz ruído, nada bate em nada, nada roda, nada vibra.
Quando uma mosca esbarra, no seu voo, com uma teia de
aranha,
o zumbido do seu horror adquire o valor de um estrondo. Mas
depressa tudo volta a estar em silêncio, de extremo a
extremo,
sem um ruído. Fico aqui mais de uma hora, sem me mexer,
consciente de quão inútil é andar, se sempre se fica no
centro
daquilo que se contempla. Muito longe, assoma um veado entre
osjuncos de um olho de água que se detém, com a cabeça
nobremente erguida, tão imóvel sobre a planície que parece
ter
algo de monumento e algo também de emblema totémico. É como
um
antepassado mítico de homens por
nascer, como fundador de um clã que fará brasão, hino e
bandeira da sua cornadura cravada num pau. Ao sentir-me,
afasta-se compassadamente, sem pressa, deixando-me só com o
mundo. Volto-me para o rio. O seu caudal é tão vasto que as
correntes e redemoinhos, que agitam a sua perene descida, se
fundem na unidade de um pulso que lateja continuadamente,
com
os mesmos descansos e paroxismos, desde antes de o Homem ser
inventado. Embarcámos hoje, ao amanhecer, e passei largas
horas olhando as ribeiras, sem afastar muito a vista da
relação de Frei Servando de Castillejos, que trouxe as suas
sandálias para aqui há três séculos. A prosa antiga continua
válida. Onde o autor assinalava uma pedra com perfil de
sáurio, erguida na margem direita, vi a pedra com perfil de
sáurio, erguida na margem direita. Onde o cronista se
assombrava perante a presença de árvores gigantescas, vi
árvores gigantescas, filhas daquelas, nascidas no mesmo
lugar,
habitadas pelos mesmos pássaros, fulminadas pelos mesmos
raios. No espaço que os meus olhos abarcam, o rio entra por
uma espécie de corte feito no horizonte, a ocidente;
alarga-se
à minha frente até esfumar a sua margem oposta numa névoa
verdecida pelas árvores e sai da paisagem tal como entrou,
abrindo o horizonte a oriente para desembocar na outra
vertente, onde começa a proliferação das suas inúmeras
ilhas,
a cem léguas do Oceano. Junto a ele, que é celeiro,
nascente e
caminho, não existem agitações humanas nem se tomam em conta
as pressas particulares. Os carris e as estradas ficaram
para
trás. Navega-se contra ou a favor da corrente. Em ambos os
casos, há que se ajustar os tempos imutáveis. Aqui, as

93

viagens do homem regem-se pelo Código das Chuvas.


Apercebo-me
agora de que eu, maníaco medidor do tempo, atento ao
metrónomo
por vocação e ao cronógrafo por ofício, deixei há dias de
pensar nas horas, relacionando a altura do Sol com o apetite
ou o sono. A descoberta de que o meu relógio está sem corda
faz-me rir sozinho, estrondosamente, nesta planície sem
tempo.
Há uma agitação de codornizes à minha volta: o dono do
Manati
reclama-me a bordo, com gritos que parecem celeumas,
levantando grasnidos em toda a parte. Volto a deitar-me
sobre
os fardos de forragem, sob o grande toldo de lona, com os
sementais de um lado e as cozinheiras negras do outro.
Devido
às negras suadas que pisam alhos, enquanto cantam, aos
touros
no cio e ao perfume acre das alfavacas, reina, aqui onde me
encontro, um odor que me
embriaga. Nada há neste odor que possa qualificar-se de
agradável. E, no entanto, tonifica-me, como se a sua
autenticidade respondesse a uma necessidade oculta do meu
organismo. Faz-me lembrar o caso do camponês que regressa à
granja paterna, depois de passar alguns anos na cidade, e
começa a chorar de emoção ao sentir no ar o cheiro a
esterco.
Havia algo semelhante a isto - recordo-me agora - nos tempos
da minha infância: também havia uma negra suada que pisava
alhos, enquanto cantava, e havia reses que pastavam mais
longe. E havia sobretudo - sobretudo! - aquela cesta de
esparto, barco das minhas viagens com María del Carmen, que
tinha o mesmo cheiro que esta alfavaca em que agora afundo o
rosto com um desassossego quase doloroso. Mouche, cuja rede
está suspensa onde se sente mais a brisa, conversa com o
mineiro grego, sem prestar atenção a este lugar que, para
ela,
é um desvão ou esconderijo. Rosario, pelo contrário,
recosta-se amiúde no monte de fardos, nada incomodada por
algumas gotas de água que caem da lona, refrescando o pasto
recém-cortado. Deita-se a alguma distância de mim e sorri,
trincando um fruto. Admiro o valor dessa mulher que realiza
sozinha, sem hesitações nem medos, uma viagem que os
directores do Museu, para quem trabalho, consideram uma
empresa muito arriscada. Esta grande coragem das mulheres
parece ser aqui muito corrente. Na popa, deitando baldes de
água sobre o vestido às flores, lava-se uma mulata com corpo
de adolescente que vai ter com o seu amante, descobridor de
ouro nas cabeceiras de um afluente quase inexplorado. Outra,
vestida de luto, vai tentar a sorte como prostituta - com a
esperança de passar de prostituta a «comprometida» - numa
aldeia próxima da selva, onde, todavia, se conhecem fomes
nos
meses de cheias e inundações. Cada vez me arrependo mais de
ter trazido Mouche para esta viagem. Gostaria de me
integrar
94

mais entre a tripulação, comendo as provisões que crêem


demasiado toscas
para paladares apurados. Gostaria de conviver mais de
perto com estas mulheres sólidas e resolutas,
pedindo-lhes que me contassem as suas histórias. Porém,
gostaria sobretudo de me aproximar mais livremente de
Rosario, cuja profunda essência escapa aos meus medos de
indagação agravados pelo trato das mulheres, bastante
semelhante entre si, que até agora me foi dado conhecer.
Receio a cada passo ofendê-la, molestá-la, ir demasiado
longe na familiaridade ou torná-la objecto de atenções que
possam parecer-Lhe tolas ou pouco viris. Por vezes penso
que, num momento de isolamento entre os estreitos currais
dos animais, lá onde ninguém nos pode ver, ela necessita
uma aproximação brutal da minha parte; tudo parece
propício a isso, e no entanto, não me atrevo. Apercebo-me
,
contudo, de que a bordo os homens tratam as mulheres com
uma espécie de rudeza irónica que parece agradar-lhes.
Mas esta gente tem regras, santos e sinais, maneiras de
falar, que eu ignoro. Ontem, ao ver uma camisa de alta
costura, que eu comprara numa das lojas mais famosas do
mundo, Rosario começou a rir afirmando que era mais própria
para mulher. Perto dela assalta-me continuamente o medo do
ridículo, ridículo perante o qual de nada serve pensar que
os
outros «não sabem, já que são eles os que
sabem.» Mouche ignora que se ainda pareço observá-la, se
simulo que me importam as suas conversas com o grego, é
porque
imagino que Rosario me crê no dever de vigiar um pouco quem
compartilha comigo os acasos da viagem. Por vezes chego a
pensar que um olhar, um aceno, uma palavra cujo sentido não
parece claro ,
têm por objectivo um encontro. Encosto-me aos fardos e
espero,
mas é uma espera vã. Bramem os touros no cio e cantam as
negras para desafiar e provocar os marinheiros. O cheiro da
alfavaca embriaga-me. Com as têmporas e o sexo a latejar
fecho
os olhos p ,
para cair no desespero absurdo dos sonhos eróticos.
Ao pôr do Sol, atracámos junto a um molhe tosco de
estacas enterradas no lodo. Ao entrar numa povoação, onde
muito se falava de coleadas (*) e manganas (**), apercebi-me
de que tinha chegado às Terras do Cavalo. Era sobretudo esse
odor a pista de circo, a suor de ijares, que por tanto tempo
andou pelo mundo apregoando a cultura com o relincho. Foi
esse
martelar de som mate que me anunciou a proximidade do
(*) Coleadas - Acto de derrubar uma rês puxando-Lhe pela
cauda (N. do E.).
(**) Manganas - Laço que se atira às patas de um cavalo
ou touro, para o fazer cair e o prender (N. do E.) .

95

ferreiro, ainda atarefado sobre as suas bigornas e foles,


com
o seu mandil de couro, em frente das chamas da frágua. Era a
agitação da
ferradura ao rubro apagada na água fria, e a canção que
ritmava a batida dos cravos no casco. Depois era o trotar
nervoso do cavalo calçado de novo, ainda receoso de resvalar
nas pedras, e o empinar provocado pelo puxar das rédeas,
diante de uma jovem assomada à sua janela, exibindo uma fita
nos cabelos. Com o cavalo havia reaparecido a correaria,
perfumada de couros, fresca de cordovões, com os seus
operários atarefados sob colgaduras de cilhas, estribos
vaqueiros, loros de guadameci e cabeçadas para domingos com
tachinhas
prateadas na correia. Nas Terras do Cavalo, parecia que o
homem era mais homem. Voltava a ser dono de técnicas
milenárias que punham as suas mãos em contacto directo com o
ferro e o couro, lhe ensinavam as artes de domar e de
montar,
desenvolvendo destrezas físicas para ostentar em dias de
festa, perante as mulheres admiradas, de quem tanto sabia
apertar com as pernas, de quem tanto sabia fazer com os
braços. Renasciam os jogos masculinos de amansar o garanhão
relinchante e de rabejar e derrubar o touro, o animal solar,
fazendo rodar a sua arrogância no pó. Uma misteriosa
solidariedade estabelecia-se entre o animal de testículos
bem
pendurados, que penetrava as suas fêmeas mais profundamente
do
que nenhum outro, e o homem, que tinha por símbolo de
coragem universal aquilo que os escultores de estátuas
equestres tinham de modelar e fundir em bronze ou talhar em
mármore, para que o corcel respondesse pelo Herói
sobre ele montado, fazendo boa sombra aos enamorados que
passeavam nos parques municipais. Reuniam-se muitos
homens nas casas, em cujos pátios cabeceavam muitos
cavalos; mas onde um só cavalo aguardava na noite, meio
oculto
entre as moitas, cujo dono devia ter tirado as esporas para
entrar mais silenciosamente na casa em que uma sombra o
aguardava. Parecia-me interessante observar agora, que
depois
de ter sido a fortuna máxima do homem europeu, a sua máquina
de guerra, o seu veículo, o seu mensageiro, o pedestal dos
seus próceres, o adorno das suas métopas e dos seus arcos de
triunfo, o cavalo aumentava na América a sua grande
história,
pois só no Novo Mundo continuava a desempenhar cabalmente em
tão grande escala os seus ofícios
seculares. Se não fossem assinaladas nos mapas, como as
terras
desconhecidas da Idade Média, as Terras do Cavalo seriam uma
mancha branca correspondente a uma quarta parte do
hemisfério,
evidenciando-se a magna presença da Ferradura num âmbito em
que a Cruz de
Cristo fizera a sua entrada a cavalo, não arrastada, mas
sim erecta, levada ao alto por homens que foram tomados por
centauros.

96

XII

(Quinta feira, 14)

Retomamos a navegação com Lua cheia, pois o patrão tinha


de embarcar um capucho no porto de Santiago de los
Aguinaldos, na margem oposta do rio, e queria atravessar uma
zona de caudais particularmente impetuosos durante a manhã,
aproveitando a tarde para fazer qualquer alijação. Cumprido
o
propósito, com magistral manejo do timão e uma ou outra
rocha
evitada a varapau, encontrei-me numa prodigiosa cidade em
ruínas. Eram grandes ruas desertas, de casas
desabitadas com as portas podres, reduzidas às jambas, cujos
telhados musgosos se abatiam, por vezes, ao meio, seguindo a
ruptura de uma viga mestra, roída pelo
caruncho, escurecida pelos fungos. Restava a colunata de um
átrio com os restos de uma cornija rebentada pelas raízes de
uma figueira. Havia escadas sem princípio nem fim,
como que suspensas no vácuo, e varandas penduradas de um
caixilho de janela aberta sobre o céu. As matas de sinos
brancos davam uma leveza de cortinas à vastidão dos salões
que
ainda conservavam os seus ladrilhos rachados, e havia outros
velhos de acácias, encarnado de flores de Natal nos cantos
escuros e cactos de braços em candelabro que tremiam nos
corredores, no eixo das correntes de ar, como que levantados
pelas mãos de invisíveis servidores. Havia cogumelos nos
umbrais e cardos nas chaminés. As árvores trepavam ao longo
dos paredões, fixando ganchos nas fendas da alvenaria, e de
uma igreja queimada restavam alguns contrafortes e
arquivoltas
e um arco monumental, prestes a cair, em cujo tímpano se
divisavam ainda, em confuso relevo, as figuras de um
concerto
celestial ,
com anjos que tocavam fagote, tiorba, órgão de teclas,
viola e
maracas. Isto deixou-me tão admirado que quis regressar ao
barco para ir buscar lápis e papel, para revelar ao Curador,
por meio de alguns croquis, esta rara referência
organográfica. Mas, nesse instante, soaram tambores e agudas
flautas e vários Diabos apareceram numa esquina da praça,
dirigindo-se a uma mísera igreja, de gesso e azulejo,
situada
em frente da catedral incendiada. Os dançantes tinham as
caras
ocultas por panos negros, como os penitentes de confrarias
cristãs; avançavam lentamente, em passos curtos, atrás de
uma
espécie de chefe que poderia ter servido de Balzebú do
Mistério da Paixão, de Tarasca e de Rei dos Loucos, devido à
sua máscara de demónio com três cornos e focinho de porco.
Uma
sensação de medo desfigurou-me perante aqueles homens sem

97

rosto, como que cobertos pelo véu dos parricidas; ante


aquelas
máscaras, saídas do mistério dos tempos, para perpertuar a
eterna afeição do homem pelo Falso Semblante, o disfarce, o
fingir-se animal, monstro ou espírito nefando. Os estranhos
dançantes chegaram à porta da igreja e bateram repetidas
vezes
com a aldraba. Estiveram, durante muito tempo, de pé em
frente
da porta
fechada, chorando e soluçando. Mas de súbito, os batentes
abriram-se com estrépito e, numa nuvem de incenso, apareceu
o
Apóstolo Santiago, filho de Zebedeu e Salomé, montado num
cavalo branco que os fiéis levavam aos ombros. Os diabos
espavoridos retrocederam ao ver a sua coroa de ouro, como
que
atacados de convulsões, tropeçando uns nos outros, caindo,
rolando no chão. Por detrás da imagem soara um hino,
apoiado,
na velha
sonoridade de sacabuxa e charamela, por um clarinete e um
trombone:

Primus ex apostolis
Martir Jerosolimis
Jacobus egregio
Sacer est martirio.

Um sino era voltado para cima por várias crianças


encavalitadas no campanário, que impulsionavam com
pontapés. A
procissão deu lentamente a volta à igreja, sempre levada
pelo
falsete nasal do pároco, enquanto os diabos, imitando
tormentos de exorcizados, retrocediam em grupo gemente sob
aspersões do hissope. Por fim, a figura de Santiago
Apóstolo,
o de Campus Stellae, sob a sombra de um pálio de veludo
coçado, voltou a entrar no templo, cujas portas se fecharam
com um forte encontrão dos batentes sobre um trémulo
escarcéu
de luminárias e círios. Então, os diabos que ficaram de fora
começaram a correr, a rir e brincar, passando de demónios a
bobos, e perderam-se entre as ruínas da cidade, perguntando
pelas janelas, com gritos grosseiros, se ali as mulheres
continuavam a parir. Os fiéis dispersaram-se. E fiquei só no
meio da praça triste, cujo pavimento estava levantado e
rebentado pelas raízes das árvores. Rosario, que fora
acender
uma vela pelo restabelecimento de seu pai, apareceu pouco
depois em companhia do capucho barbudo que ia embarcar
connosco e que se me apresentou como frei Pedro de
Henestrosa.
Usando de muito poucas palavras, numa fala sentenciosa e
lenta, o frade explicou-me que era costume ali tirar o
Santiago na festa do Corpus porque na tarde de Corpus havia
chegado a esta vila, recentemente fundada, a imagem do Santo
tutelar e, desde então, observava-se a tradição.

98

Depressa sejuntaram a nós, dois dedilhadores negros, de


bandola a tiracolo, que se queixaram de que este ano a festa
se reduzira a meras salvas e procissões, prometendo não
regressar. Soube ,
então, que aquela cidade tivera já todas as arcas
repletas e os armários cheios de lençóis da Holanda; mas os
contínuos saques de uma grande guerra local haviam
arruinado os seus palácios e herdades, pendurando a hera dos
brasões. Quem pôde emigrou, desfazendo-se das casas
solarengas
por qualquer preço. Depois foi a calamidade das pragas
surgidas de arrozais que, por abandono ,
se tornaram pântanos. Dessa vez, a morte acabou por
entregar os palácios às ervas daninhas, iniciando-se a
ruína dos arcos, tectos e dintéis. Agora era apenas uma
povoação de sombras, na sombra do que fora, antes, a rica
vila
de Santiago de los Aguinaldos. Muito interessado pelo relato
do missionário, estava eu a pensar em cidades arruinadas por
guerras de Barões, assoladas pela peste, quando os
dedilhadores, convidados por Rosario a distrair-nos com um
pouco de música, começaram a tocar as bandolas. E, de
súbito,
o seu canto levou-me muito para lá das minhas evocações.
Aqueles dois jograis de caras negras cantavam décimas que
falavam de Carlos Magno, de Rolando, do bispo
Turpin, da traição de Ganelão e da espada que trespassara
mouros em Roncesvalles. Quando chegámos ao atracadouro,
começaram a evocar a história de uns Infantes de Lara, que
me
era desconhecida, mas cuja tonalidade antiga tinha algo de
surpreendente ao pé de tantos paredões fendidos e cobertos
de
fungos, como os de antigos castelos abandonados. Finalmente
zarpámos quando o crepúsculo aumentou as sombras das
ruínas. Apoiada na borda, Mouche disse que a vista
daquela cidade fantasmagórica exalava mistério, sugeria o
maravilhoso, o melhor que poderiam imaginar os pintores que
mais estimava entre os modernos. Aqui os temas da arte
fantástica eram coisas de três dimensões; eram palpáveis,
eram
vividas. Não eram arquitecturas imaginárias, nem peças de
quinquilharia poética: andava-se nos seus labirintos reais,
subiam-se as suas escadas com os patamares destruídos,
aumentadas por um qualquer corrimão sem balaústres que
mergulhava na noite de uma árvore. Não eram tolas as
observações de Mouche, mas eu havia atingido, em relação a
ela, o ponto de saturação em que o homem, cansado de uma
mulher, se aborrece até de a ouvir dizer coisas
inteligentes.
Com o seu carregamento de touros bramantes, galinhas em
capoeiras, porcos soltos na coberta, que corriam sobre a
rede
do capucho, enredando-se no seu rosário de sementes; com o
canto das cozinheiras negras, o riso do negro dos
diamantes, a
prostituta de vestido de luto que se molhava na proa, o

99

alvoroço dos dedilhadores que faziam dançar os marinheiros,


este nosso barco
fazia-me pensar na Nave dos Loucos do Bosque: nave de loucos
que se afasta, agora, de uma ribeira que não podia situar-se
em parte alguma, pois, ainda que as raízes do visto se
vincassem em estilos, razões, mitos, que me eram facilmente
identificáveis, o resultado do todo, a árvore nascida neste
solo parecia-me tão desconcertante e nova como as árvores
enormes que começavam a fechar as margens e que, reunidas em
grupos às entradas dos ribeiros, se delineavam sobre o
poente
- redondas como lombas nas ramagens e com algo de focinho
canino nas copas - como concílios de gigantescos
cinocéfalos.
Eu identificava os elementos da cenografia, certamente. Mas
na
humidade deste mundo, as ruínas eram más ruínas, as
trepadeiras deslocavam as pedras de forma diferente, os
insectos tinham outras manchas e os diabos eram mais diabos
quando, sob os seus cornos, gemiam dançantes negros. Um
anjo e
uma maraca não eram coisas novas em si. Mas um anjo
maraqueiro, esculpido no tímpano de uma igreja incendiada
era
algo que nunca vira noutros locais. Perguntava para mim se o
papel destas terras na história humana não seria o de tornar
possíveis, pela primeira vez, certas simbioses de culturas,
quando fui distraído das minhas reflexões por algo que me
soava a uma coisa simultaneamente muito próxima e
longínqua. A
meu lado, para refrescar a memória no dia do Corpo de
Cristo,
frei Pedro de Henestrosa salmodeava a meia voz um canto
gregoriano que se imprimia em neumas sobre páginas amarelas,
picadas de insectos, de um Liber Usualis de grande
história:
Sumite psalmum, et date tympanum:
Psalterium jocundun cum citara.
Buccinate in Neomenia tuba
In insigni dei solemnitatis vestrae.
XIII

(Sexta feira, 15 de Junho)

Quando chegámos a Puerto Anunciación - à cidade húmida,


sempre assediada por vegetações a que dava, desde há
centenas
de anos, uma guerra sem vantagens - compreendi que havíamos
deixado para trás as Terras do Cavalo para entrarmos nas

100

terras do Cão. Aí, por detrás dos últimos telhados,


erguiam-se
as primeiras árvores da selva ainda distante, suas
avançadas,
suas sentinelas soberbas, mais obeliscos do que árvores, mas
espalhadas, afastadas umas das outras sobre a vastidão
fragosa do bosque, cheio de ervas daninhas, cuja rasteira
fecundidade fazia desaparecer os caminhos numa noite. O
cavalo
nada tinha a fazer num mundo já sem caminhos. E, para além
da
verde massa que encerrava as sendas do Sul, as veredas
estavam
cobertas por um piso tal, de ramos, que não admitiam a
passagem de um ginete. Por seu lado o Cão, cujos olhos
estavam
à altura dos joelhos do homem, via o que se ocultava ao pé
das
malangas (*) enganadoras, no oco dos troncos caídos, entre
as
folhas podres, o Cão de
focinho tenso, de olfacto agudo, em cujo lombo se escrevia o
perigo em sinais de pêlo eriçado, mantivera, através dos
tempos, os termos da sua primeira aliança com o Homem.
Porque
era já um pacto o que ligava aqui o Cão ao Homem: um mútuo
complemento de poderes que os fazia trabalhar
fraternalmente. O Cão contribuía com os sentidos que o
seu companheiro de caça tinha atrofiados, os olhos do seu
nariz, o seu andar sobre quatro patas, o seu auxiliar
aspecto
de animal perante os outros animais, em troca do espírito de
iniciativa, das armas, do remo, da verticalidade que
pertenciam ao outro. O Cão era o único ser que partilhava
com
o Homem os benefícios do fogo, arrogando-se, nesta
aproximação
com Prometeu, o direito de tomar o partido do
Homem em qualquer guerra com o Animal. Por isso, aquela
cidade
era a Cidade do Ladrido. Nos saguões, atrás dos arados,
debaixo das mesas, os cães esticavam as patas, farejavam,
esgaravatavam, avisavam. Sentavam-se na proa dos barcos,
corriam pelos telhados, vigiavam o ponto dos assados,
assistiam a todas as reuniões e actos colectivos, iam à
igreja: e tanto iam que um velho estatuto colonial, nunca
observado porque a ninguém interessava, estabelecia um cargo
de perreiro para que afastassem os cães do templo "em todos
os
sábados e nas vigílias de festas que as tivessem". Em
noites de lua, os cães entregavam-se à sua adoração num
vasto
coro de uivos quejá não
se interpretava, por costume, como lúgubre presságio,
aceitando-se o consequente desvelo com a tolerância
resignada
que se deve ter face aos ritos algo embaraçosos dos parentes
que praticam uma religião diferente da nossa.

(*) Malanga - Planta hortence de Cuba (N. do E.)

101

O lugar a que chamavam estalagem, em Puerto Anunciación,


era um antigo quartel de paredes com fendas, cujos quartos
davam para um pátio cheio de lodo onde se arrastavam grandes
tartarugas, ali presas como prevenção para dias de penúria.
Dois catres e um banco de madeira constituíam todo o
mobiliário, com um
bocado de espelho pendurado na porta com três pregos
enferrujados. Como a Lua acabava de aparecer sobre o rio,
voltara a levantar-se, depois de um descanso, a ululante
antifonia dos cães
- desde as gigantescas árvores prateadas da missão
franciscana
até às ilhas pintadas de preto - com inesperadas respostas
da
outra margem. Mouche, de péssimo humor, não se resolvia a
admitir que tínhamos deixado a electricidade atrás de nós,
que
aqui se estava antes na época da lamparina e da vela e que
não
havia sequer uma farmácia onde comprar coisas úteis para o
cuidado da sua pessoa. A minha amiga tinha a astúcia de não
revelar as atenções que dispensava constantemente ao seu
semblante e ao seu corpo, para que os estranhos a
considerassem acima de tais vaidades femininas, indignas de
uma intelectual, com o que dava a entender que a sua
juventude
e natural beleza lhe bastavam para ser atraente. Conhecendo
esta sua estratégia, divertira-me muitas vezes a observá-la
de
cima dos fardos de esparto, notando com maligna ironia
quantas
vezes se examinava num espelho, franzindo o sobrolho com
despeito. Então admirava-me de como a própria matéria da sua
figura, a carne de que era feita, parecia ter murchado
desde o
início daquela última jornada de navegação. A cútis,
maltratada pelas águas violentas, tornara-se avermelhada,
descobrindo zonas de poros demasiado abertos no nariz e nas
fontes. O cabelo parecia de estopa, de um loiro esverdeado,
desigualmente matizado, revelando-me o muito que o seu
habitual tom acobreado devia à utilização de inteligentes
colorações. Sob uma blusa manchada de resinas raras, caídas
das lonas, o seu busto parecia menos firme e o verniz mal se
aguentava numas unhas partidas por se agarrarem
constantemente
a algo, o que nos era imposto pela vida numa coberta cheia
de
baldes e barris, a arrecadação flutuante que fora o nosso
barco. Os seus olhos, de um castanho lindamente jaspeado de
verde e amarelo, reflectiam um sentimento que era um misto
de
aborrecimento, cansaço, asco em relação a tudo, e cólera
latente por não poder gritar até que ponto lhe
parecia intolerável esta viagem empreendida por ela, no
entanto, com frases de alto júbilo literário. Porque na
véspera da nossa partida -recordava-o agora - tinha
evocado o desejo de evasão, destinando a grande palavra
Aventura com todas as suas implicações de «convite à
viagem», fuga do quotidiano, encontros

102

fortuitos, visões de Incríveis Floridos de poeta


alucinado. E até agora - para ela que permanecia alheia às
emoções que tanto me deleitavam cada dia,
devolvendo-me sensações esquecidas desde a infância -, a
palavra Aventura só tinha significado um encerramento
forçoso
no hotel da cidade, a visão de panoramas de uma grandeza
monótona e repetida, uma mudança sem peripécias,
arrastando-se na fadiga das noites sem lâmpadas de
cabeceira, e sonos interrompidos pelo canto dos galos. Agora
abraçada aos seus joelhos, pouco incomodada com a desordem
de
suas roupas em desalinho, mexia-se suavemente no meio do
catre, tomando pequenos sorvos de aguardente de um jarro de
folha-de-flandres. Falava das pirâmides do México e das
fortalezas dos Incas - que só conhecia por imagens - das
escadas do Monte Albán e das
aldeias de argila dos Hopi, lamentando que, neste país, os
índios não tivessem erguido maravilhas semelhantes. Depois,
adoptando a linguagem «informada», categórica, povoada de
termos técnicos, tão utilizada pelas pessoas da nossa
geração
- e que eu classificava de «tom economista» - começou a
elaborar um processo do modo de vida da gente de cá, dos
seus
preconceitos e crenças, do atraso da sua agricultura, das
falácias da exploração mineira, o que a levou,
imediatamente,
a falar da mais-valia e da exploração do homem pelo homem.
Para a contrariar, disse-lhe que se alguma coisa me estava a
maravilhar nesta viagem era, precisamente, a descoberta de
que
ainda existiam terras no mundo cujos habitantes viviam
alheados das febres da época, e que aqui, embora muitos
indivíduos se contentassem com um tecto de fibra, uma
alcarraza, um budare (*), uma rede e uma viola, existia
neles
um certo animismo, uma consciência de tradições muito
velhas,
uma recordação viva de certos mitos que eram, em suma, a
presença de uma cultura mais honrada e válida,
provavelmente,
do que a
nossa. Para um povo, interessava mais conservar a memória da
Canção de Rolando do que ter água quente em casa.
Agradava-me
que ainda existissem homens pouco dispostos a trocar a sua
alma profunda por qualquer dispositivo automático que, ao
abolir o gesto da lavadeira, levava também as suas canções,
acabando, de chofre, com um folclore milenário. Fingindo que
não me tinha ouvido ou que as minhas palavras não tinham o
menor interesse, Mouche afirmou que aqui não havia nada que
merecesse ser visto ou estudado, que este país não tinha
história nem carácter, e, considerando a sua decisão como
sentença, falou de partir amanhã
(*) Budare (Termo venezuelano) - Prato ou travessa
própria para se cozer o pão de milho. (N. do T.)

103

de madrugada, já com o nosso barco, navegando desta vez a


favor da corrente. Podia fazer a viagem de regresso em pouco
mais de um dia. Mas agora os seus desejos pouco me
importavam.
E como isto era novidade para mim, quando lhe declarei que
pensava cumprir o que a Universidade me pedira, chegando até
onde
pudesse encontrar os instrumentos musicais, cuja procura me
fora encomendada, a minha amiga ficou, de súbito,
encolerizada,
chamando-me burguês. Esse insulto - já bem meu conhecidoera
uma recordação da época em que muitas mulheres com a sua
formação se declaravam revolucionárias para gozarem a
intimidade de uma militância que arrastava muitos
intelectuais
interessantes, e para se entregarem a desaforos sexuais
contrários a ideias filosóficas e sociais, depois de o terem
feito ao abrigo das ideias estéticas de certas obras
literárias. Sempre atenta ao seu bem-estar, colocando acima
de
tudo os seus prazeres e pequenas paixões, Mouche parecia-me
o
arquétipo da burguesa. Contudo, classificava de burguês,
como
supremo insulto, todo aquele que tentasse impor, a seu
critério, algo que pudesse estar vinculado a certos deveres
ou
princípios incómodos, não transigisse em certas liberdades
físicas, tivesse preocupações de carácter religioso ou
reclamasse uma ordem. Uma vez que me empenho em ficar bem
com
o Curador e, por conseguinte, com a minha consciência,
atravessava-me no seu caminho, pelo que tinha, forçosamente,
de me classificar de burguês. E levantava-se agora do catre,
com as farripas para a cara, erguendo os seus pequenos
punhos
à altura das minhas fontes, numa gesticulação enraivecida
que
eu via pela primeira vez. Gritava que queria estar em Los
Altos quanto antes, que precisava do frio dos cumes para se
recompor, que ali passaríamos o tempo que me restava de
férias. De súbito, o nome de Los Altos enfureceu-me, ao
recordar-me da estranha solicitude com que a pintora
canadiana
rodeara a minha amiga. E, embora eu evitasse proferir
palavras
excessivas nas discussões com ela, nesta noite, feliz por
vê-la feia à luz da lamparina, sentia uma nervosa
necessidade
de feri-la, de espancá-la, para libertar uma quantidade de
velhos rancores acumulados no mais profundo do meu ser. À
laia
de começo, insultei a canadiana, classificando-a de algo que
teve o efeito de actuar sobre Mouche como uma picada de
alfinete ao rubro. Deu um passo atrás e atirou-me o jarro de
aguardente à cabeça. Assustada com o que fizera, dirigia-se

para mim com as mãos arrependidas, mas as minhas palavras,
autorizadas pela sua violência, tinham cortado as amarras:
gritei-lhe que tinha deixado de a amar, que a sua presença
me
era intolerável, que até o seu corpo me provocava asco. E
tão
tremenda Lhe deve ter soado essa voz desconhecida,

104

surpreendente para mim mesmo, que fugiu a correr para o


pátio,
como se algum castigo se seguisse às
palavras. Mas, esquecendo-se do lodo, escorregou
brutalmente e
caiu no charco cheio de tartarugas. Ao sentir-se sobre as
carapaças molhadas, que começaram a mover-se como armaduras
de
guerreiros, deu um grito de terror que despertou as matilhas
momentaneamente caladas. No meio do mais monumental concerto
de ladridos, meti Mouche no quarto, tiropu, tirei-Lhe as
roupas cheias de lodo e lavei-a dos pés à cabeça com um
grande
pano
roto. E depois de lhe ter dado de beber um bom trago de
aguardente, deitei-a bem agasalhada no seu catre e saí para
a
rua sem ligar aos seus chamamentos e soluços. Queria -
precisava - de me esquecer dela por algumas horas.
Numa taberna, encontrei o grego a beber em companhia de
um homenzinho de sobrancelhas emaranhadas, que me apresentou
como o Adiantado, advertindo-me de que o cão amarelo que a
seu
lado lambia cerveja numa tijela era um notável sujeito que
dava pelo nome de Gavião. O mineiro celebrava então a sorte
que me punha tão facilmente em contacto com um indivíduo que
pouco se via em Puerto Anunciación. Cobrindo territórios
imensosexplicava-me - encerrando montanhas, abismos,
tesouros,
povos nómadas, vestígios de civilizações desaparecidas, a
selva era, contudo, um mundo compacto, inteiro, que
alimentava
a sua fauna e os seus homens, modelava as suas próprias
nuvens, armava os seus meteoros, elaborava as suas chuvas:
nação escondida, vasto país vegetal de muito poucas portas.
"Algo semelhante à Arca de Noé,
onde se abrigaram todos os animais da Terra, mas que só
tinha
uma pequena porta", acrescentou o homenzinho. Para penetrar
nesse mundo, o Adiantado tivera de conseguir as chaves das
secretas entradas: só ele conhecia certa passagem, entre
dois
troncos, única em cinquenta léguas, que conduzia a uma
estreita escada de lajes pela qual se podia descer ao vasto
mistério dos barroquismos telúricos. Só ele sabia onde
ficava
a galeria de cipós que permitia andar por debaixo da
cascata,
a porta secreta de folhagem, a passagem para a caverna dos
petróglifos, a enseada oculta, que conduziam aos corredores
praticáveis. Ele decifrara o código dos ramos dobrados, das
incisões nas cascas, do ramo-não-caído-mas-colocado.
Desaparecia durante muitos meses e, quando já quase não se
lembravam dele, surgia por uma fenda aberta na muralha
vegetal, trazendo coisas. Era um carregamento de borboletas
ou
peles de lagartos, sacos cheios de penas de garça, pássaros
vivos que silvavam de forma estranha, ou peças de olaria
antropomorfa, cestarias estranhas que podiam interessar a
algum forasteiro.

105

Certa vez, reaparecera, depois de uma longa ausência,


seguido de vinte índios que traziam orquídeas. O nome de
Gavião
devia-se à habilidade do cão em apanhar aves que levava ao
dono sem lhes arrancar uma pena, a fim de ver se
apresentavam
algum interesse para o negócio comum. Aproveitando a ocasião
em que o Adiantado, chamado da rua, se separara de nós para
saudar o Pescador de Toninhas, que andava de diligências
como
alguns dos seus quarenta e dois filhos naturais, o grego,
falando depressa, disse-me que, segundo a opinião geral,
aquela extraordinária personagem encontrara, nas suas
andanças, um prodigioso jazigo de ouro, cujo caminho, desde
logo, tinha em grande segredo. Ninguém sabia porquê, mas
quando aparecia com carregadores, estes regressavam com mais
mantimentos do que os necessários para o sustento de poucos
homens, levando, além disso, algum porco de cria, tecidos,
pentes, açúcar e outras coisas de pouca utilidade para quem
navega em ribeiros remotos. Esquivava-se às perguntas de
quantos o interrogavam a esse respeito e voltava a meter os
seus índios nas moitas, aos gritos, sem os deixar vaguear
pela
povoação. Dizia-se que devia estar a explorar um filão com a
ajuda de gente perseguida pela justiça ou que se valia de
presos comprados a uma tribo guerreira, ou que se tornara o
rei de um palenque (*) de negros fugidos para o monte há
trezentos anos que, segundo alguns afirmavam, tinham uma
aldeia defendida por estacas, onde sempre retumbava um
trovão
de tambores. Mas já regressava o Adiantado, e o mineiro,
para
mudar rapidamente de conversa, falou do projecto da minha
viagem. Habituado a lidar com pessoas animadas por
propósitos
singulares, amigo de um estranho herborizador chamado
Montsalvatje, de quem fazia grandes elogios, o Adiantado
disse-me que poderia encontrar os instrumentos pretendidos
nas
primeiras aldeolas de uma tribo que vivia, a três dias do
rio,
nas margens de um ribeiro chamado El Pintado pela sempre
mutável cor das suas águas revoltas. Como o interroguei
sobre
certos ritos primitivos, enumerou-me todos os objectos para
fazer música de que se recordava, fazendo soar, com
onomatopeias afinadas pela aguardente e gestos de quem
tocava,
uma série de tambores de tronco, flautas de osso, trompas de
corpo e crânio, jarras-para-tocar-em-funerais e pandeiros de
medicina. Estávamos nisso, quando apareceu frei Pedro de
Henestrosa com a notícia de que o pai de Rosario acabava de
morrer. Algo afectado pela brusquidão da notícia, embora
estimulado também pelo desejo de ver ajovem,

(*) Palenque - Terreno cercado de estacas. (N. do T.)


106

de quem nada sabia desde a nossa chegada, dirigi-me até lá,


por ruas em cujo centro corriam riachos turvos, em companhia
do grego, do capucho e do Adiantado, seguidos do Gavião que
nunca faltava a um velório quando estava na povoação. Na
minha
boca, tinha ainda o sabor avelanado da aguardente que
acabava
de provar na taberna cuja insígnia floreada ostentava um
nome
graciosamente absurdo: Los Recuerdos del Porvenir (*).

XIV

(Noite de sexta feira)

Naquele casarão de oito janelas gradeadas, a morte


continuava a trabalhar. Estava em toda a parte, diligente,
solícita, ordenando as suas pompas, agrupando os prantos,
acendendo os círios, velando para que apareça toda a
povoação
a contemplar a sua obra. Já se erguia, sobre um túmulo de
velhos veludos consumidos pelos fungos, o ataúde ainda
ressonante das marteladas, cheio de grandes pregos
prateados,
recém-trazido pelo Carpinteiro, que nunca falhava em lhe
dar a
medida exacta de um defunto, pois a sua memória acautelada
conservava a medida
humana de todos os vivos que moravam na vila. De noite
surgiam
flores demasiado perfumadas, que eram flores de pátios, de
parapeitos de janelas, de jardins recuperados pela selva -
nardos e jasmins de pétalas pesadas, lírios silvestres,
cerosas magnólias, apertadas em ramos, com fitas que antes
adornaram penteados de baile. No alpendre, no vestíbulo, os
homens, de pé, falavam uns com os outros em voz grave,
enquanto as mulheres, nos quartos, rezavam em coro, com a
obsessiva repetição por todas elas da antífona Avé Maria,
cheia de Graça, o Senhor é convosco; bendita sois vós entre
as mulheres, cujo rumor se espraiava pelos cantos escuros,
entre imagens de santos e rosários pendurados de mísulas,
avolumando-se para depois enfraquecer, ao ritmo invariável
de
ondas calmas e amenas rolando sobre recifes pedregosos.
Todos
os espelhos, em cuja profundidade o morto vivera, tinham
sido
cobertos com linhos e crespões. Estavam lá diversos
notáveis:
o Prático de Torrentes, o Alcaide e o Professor, o Pescador
de
Toninhas, o Curtidor de Peles, que acabavam de se inclinar

(*) Los Recuerdos del Porvenir - As recordações do


futuro. (N. do T.)

107

sobre o cadáver, depois de deitarem as beatas de tabaco


para o
chapéu. Naquele momento, uma rapariga muito magra, vestida
de
preto, deu um grito agudo e caiu por terra, como que
sacudida
por convulsões. Foi levada em braços para fora de casa. Mas
era agora Rosario quem se aproximava do caixão. Toda de
luto,
com os
lustrosos cabelos apertados em volta da cabeça, os lábios
profundamente pálidos, pareceu-me de uma surpreendente
beleza.
Olhou para todos, com os seus grandes olhos dilatados pelo
pranto, e, de súbito, como se uma dor lancinante lhe
trespassasse as entranhas, crispou as mãos junto à boca e
lançou um prolongado lamento,
um uivo inumano, de animal ferido, de parturiente, de
possessa, abraçando-se ao ataúde. Gritava agora em voz
rouca,
entrecortada de estertores, afirmando que rasgaria os
vestidos, que arrancaria os olhos, que não continuaria a
viver, que iria deitar-se no túmulo para que a cobrissem de
terra. Quando quiseram
desprendê-la, resistiu furiosamente, ameaçando aqueles que
procuravam soltar-lhe os dedos do veludo negro,
imprecando-os
numa linguagem misteriosa, arrepiante, como que saída das
profundezas da vidência e da profecia. Com a garganta
entrecortada de soluços, falava de grandes desgraças, do fim
do mundo, do Juízo Final, de pragas e expiações. Finalmente,
lá acabaram por conseguir tirá-la do quarto, levando-a como
que desmaiada, as pernas inertes, a cabeleira desfeita. As
suas meias negras, rasgadas durante a crise, os seus sapatos
recém-tingidos, de saltosjá gastos, arrastados pelo chão com
as pontas voltadas para dentro, tudo isso me causou uma dor
atroz, dilacerando-me o coração. Mas já outra das suas irmãs
abraçava agora o ataúde... Impressionado pela violência
dessa
dor, pensei, de repente, na tragédia antiga. Nessas famílias
tão numerosas, onde cada um tinha as suas roupas de luto
guardadas na arca, a morte era algo bastante vulgar. As mães
de numerosa progénie recebiam frequentemente a sua visita.
Mas
essas mulheres, que repartiam entre si as costumeiras
tarefas
neste tipo de transes, que desde pequenas sabiam vestir
defuntos, velar espelhos, rezar as orações apropriadas,
protestavam mesmo assim perante a morte, cumprindo com um
antiquíssimo ritual. Porque isto era, antes do mais, uma
espécie de desesperado protesto, um protesto cominatório,
quase mágico, ante a presença da Morte dentro de casa.
Frente
ao cadáver, essas camponesas clamavam em diapasão de
coéforas
(*), soltando as suas espessas cabeleiras,

(*) Referência à tragédia de Ésquilo; «Coéforas», nome


que designa as escravas que acompanham Electra ao túmulo de
seu pai. Para além de carregarem os presentes e vasos
funerários, são também elas que formam o Coro. (N. do T)

108

como véus negros, sobre terríveis rostos de filhas de reis:


fêmeas sublimes, troianas ululantes, expulsas dos seus
palácios incendiados. A persistência desse desespero, o
admirável sentido dramático com que as nove irmãs - pois
eram
nove - foram
aparecendo, surgindo ora pela porta da direita, ora pela
porta
da esquerda de modo a prepararem a entrada de uma Mãe que,
qual Hécuba (*) portentosa, amaldiçoou a sua solidão,
soluçando sobre as ruínas do lar desfeito, gritando que já
não
tinha Deus, levaram-me a suspeitar de que havia em tudo
aquilo
uma boa dose de teatro. Um parente sinceramente admirado,
observou - muito perto de mim -que essas mulheres choravam
pelo seu morto com um tal fervor que dava gosto ver. E, não
obstante, eu sentia-me envolvido, arrastado, como se tudo
aquilo
despertasse em mim obscuras lembranças de ritos funerários
outrora observados pelos homens que me precederam no reino
deste mundo. E, emergindo dos recônditos da minha memória,
vinha-me agora à mente um verso de Shelley, repetindo-se a
si
mesmo, como que enovelado no seu próprio sentido:

.. How canst thou hear


Who knowest not the lenguage of the dead? (**)

Os homens das cidades em que eu sempre vivera já não


conheciam, com efeito, o sentido dessas vozes, dado terem
esquecido totalmente a linguagem daqueles que sabem falar
com
os mortos. A linguagem daqueles que sabem do horror último
de
ficar sós e adivinham a angústia dos que imploram que não os
deixem sós em tão incerta caminhada. Ao gritarem que se
lançariam sobre o
túmulo do pai, as nove irmãs cumpriam com uma das mais
nobres
formas do rito milenar segundo o qual se dão coisas ao
morto,
prometendo-lhe impossíveis, no intuito de lhe iludir a
solidão põem-se-lhe moedas na boca, rodeiam-no de
representações de servos, de mulheres, de músicos;
dão-se-Lhe
santos e senhas, credenciais, salvo-condutos, para
Barqueiros
e Senhores da Outra Margem, cujas tarifas e exigências nem
sequer se conhecem. Lembrava-me, ao mesmo tempo, de como a
morte se tornara em

(*) Hécuba - Mulher de Príamo, mãe de Páris e Heitor.


Durante a guerra de Tróia, perdeu o marido e quase todos os
filhos, vindo depois a cegar Polimnestor, rei da Trácia,
que a
levara consigo como escrava. (N. do T)
(**) ... Como podes tu ouvir / Tu, que não conheces a
linguagem dos mortos? (N. do T )

109

algo de tão profundamente mesquinho e medíocre para os


homens
da minha Margem - a minha gente -, com as suas grandes
cerimónias, frias e apáticas, de bronzes, pompas e
discursos,
que dificilmente ocultavam, por detrás da frialdade das
grinaldas e dos leitos gelados, uma mera agremiação de
preparadores enlutados, com obsequiosas solenidades,
objectos
já usados por muitos
outros, e algumas mãos estendidas sobre o cadáver, à espera
de
moedas. Alguns poderiam sorrir perante a tragédia aqui
representada. Mas, através dela, atingiam-se os ritos
primordiais do homem. E estava eu a pensar nisto, quando o
Pesquisador de Diamantes se me dirigiu com uma expressão
singularmente maliciosa, aconselhando-me a ir ter com
Rosario,
que estava na cozinha, absolutamente só, a aquecer café para
as mulheres. Incomodado pelo tom irónico das suas palavras,
respondi-lhe que não me parecia ser este o momento mais
oportuno para a ir distrair da sua dor. "Vai até lá dentro e
não te perturbes", disse então o grego, com ar de quem
recita
uma lição, "que o homem, se for audaz, é sempre mais
afortunado naquilo que empreende, e isto mesmo quando vem de
outra terra". Estava para lhe responder que não necessitava
de
tão chocante conselho, quando o mineiro, num tom de súbita
declamação, acrescentou: "Ao entrares na sala, depararás
primeiro com a rainha, cujo nome é Arete e descende daqueles
que também engendraram o rei Alcínno". E, para pôr
termo à minha estupefacção perante palavras que me tinham
apanhado de surpresa, olhou-me de frente, pousando em mim os
seus olhos de ave, posto o que concluiu, rindo: Homer
Odisseus, empurrando-me depois energicamente em direcção à
cozinha. Ali, entre tinas e poiais, tachos de barro e
fogões a
lenha, estava Rosario, atarefada a deitar água a ferver
sobre
um grande cone de pano escurecido pelos muitos anos de
borras.
Parecia como que aliviada da dor pela violência da crise de

pouco. Em voz calma,
explicou-me que a oração aos Catorze Santos Auxiliares
chegara
demasiado tarde para poder salvar seu pai. Falou-me depois
da
doença dele, descrevendo-a em termos tão fantásticos, termos
de autêntica lenda, que revelavam bem um certo conceito
mitológico da fisiologia humana. Tudo começara com uma
desavença com
um compadre, agravada por um excesso de sol ao atravessar o
rio, o qual promovera uma subida de humores ao cérebro,
paralisada a meio caminho por uma corrente de ar, que lhe
deixara metade do corpo sem sangue, contribuindo tudo isto
para Lhe provocar uma inflamação das coxas e das partes,
que,
finalmente, acabara por se transformar, após uma febre de
quarenta dias, num endurecimento das paredes do coração. À
medida que Rosario falava, eu ia-me

110

aproximando dela, atraído por uma espécie de calor que se


desprendia do seu corpo, atingindo-me a pele
através da roupa. Ela estava encostada a uma enorme tina
assente no chão, com os cotovelos apoiados nas suas
bordas, de tal modo que a curvatura do barro lhe arqueava
a cintura, erguendo-a na minha direcção. A chama dos
fogões batia-lhe de frente, bailando-lhe remotamente nos
olhos sombrios em fugitivos fulgores. Envergonhando-me de
mim mesmo, senti que a desejava com uma ânsia já esquecida
desde a minha adolescência. Não sei se em mim já começara a
tomar forma o abominável jogo, assunto de tantas fábulas,
que nos leva a apetecer a carne viva na proximidade da
carne que não voltará a viver, mas tão demorado deve ter
sido o olhar que a desnudou dos seus lutos, que Rosario
interpôs a tina entre nós ,
rodeando-a num passo um pouco oblíquo, como quem se
comprime de encontro ao muro de um poço, e voltou a apoiar
os
cotovelos nas bordas, mas desta vez olhando-me de frente,
desde a outra margem de um abismo negro, cheio de água, que
dava às
nossas vozes um eco de nave de catedral. De vez em quando,
deixava-me só, indo até à sala do velório, para regressar
depois, secando as lágrimas, aonde eu a esperava com uma
impaciência de amante. Pouco falávamos. Ela deixava-se
contemplar, por sobre a água da tina, com uma passividade
agradada que tinha algo de entrega. Há pouco, os relógios
anunciaram o amanhecer, mas, curiosamente, ainda não
amanheceu. Espantados, saímos todos para a rua, para os
pátios. Onde o Sol devia erguer-se, o céu achava-se
coberto por uma estranha nuvem avermelhada, como que de
fumo,
como que de cinzas esbraseadas, como que de um pólen
pardacento que subisse rapidamente, estendendo-se de uma
ponta
à outra do horizonte. Quando a nuvem nos atingiu, passando
por
sobre as nossas cabeças, começaram a chover mariposas,
caindo
sobre os tectos, sobre as vasilhas, sobre os nossos ombros.
Eram pequenas mariposas, de um roxo carregado, estriadas de
violeta, que tinham levantado voo em míríades e míríades
,
em algum ignoto lugar do continente, por detrás da selva
imensa ,
talvez espantadas, expulsas, na sequência da sua vertiginosa
multiplicação, por um qualquer cataclismo, por um qualquer
formidável sucesso, sem história nem testemunhas. O
Adiantado
disse-me que estas passagens de mariposas não eram novidade
na
região, e que, quando ocorriam, era pouco provável que ainda
se pudesse ver o Sol nesse dia. O enterro do pai far-se-ia,
pois, à luz dos círios, numa noite diurna, pontilhada de
asas
encandecidas. Assim, neste rincão do mundo, conheciam-se
ainda
as grandes migrações, semelhantes àquelas outras, narradas
por
111

cronistas de anos obscuros em que o Danúbio se tornou negro


sob uma invasão de ratos, ou quando os lobos, em alcateias,
entraram pelo mercado das
cidades. Na semana passada - diziam-me -, um enorme jaguar
tinha sido morto pelos vizinhos no adro da igreja.

XV

(Sábado, 16 de Junho)

Meio invadido pelo tojo que levara de vencida os seus


muros, o cemitério onde enterrámos o pai de Rosario é algo
assim como uma espécie de dependência, de prolongamento da
igreja, unicamente separado desta por um tosco portão e um
pavimento ladrilhado que serve de base a um pedestal com uma
cruz pesada, de braços curtos, em cuja pedra cinzenta
surgem,
esculpidos a cinzel, os diversos episódios da Paixão. A
igreja
é baixa, de paredes grossíssimas, com pedras de grande
volume
postas a descoberto pela profundidade dos arcos abobadados
e a
rigidez de contrafortes que mais parecem muralhas de antigas
fortalezas. Os seus arcos são baixos e toscos: o tecto de
madeira, com vigas apoiadas em mísulas meramente atersoadas,
evoca o das primitivas igrejas românicas. Lá dentro, desde o
meio da manhã, reina uma penumbra encandecida pelo êxodo das
mariposas, pairando ainda entre a Terra e o Sol. Assim,
rodeados pelos seus círios e luminárias, os velhos santos
que
aparecem entregues aos seus Misteres, como se o templo fosse
antes de tudo uma enorme oficina, parecem-se mais com
personagens de retábulos, com figuras. de aleluia: Isidro, a
quem puseram uma enxada na mão para que possa lavrar
realmente
o seu pedestal coberto de grama fresca e talos de milho;
Pedro, que carrega um enorme chaveiro, no qual todos os dias
penduram uma nova chave; Jorge trespassando o dragão com tal
fúria que a arma com que voa sobre o inimigo mais parece uma
garrocha do que uma lança; Cristóvão, segurando uma palma,
cuja gigantesca estatura é de tal ordem que o Menino mal
chega
a medir de altura a distância que lhe vai do ombro à orelha;
Lázaro, sobre cujos cães colaram autêntico pêlo de cão para
que fosse mais real a sensação de estes lhe estarem a lamber
as chagas. Ricos nos poderes atribuídos, vergados sob o peso
das exigências, pagos em vulgar moeda de ex-votos, levados
em
procissão a qualquer hora, estes santos revestiam, na vida
quotidiana da povoação a categoria de funcionários divinos,
de
intercessores contratados, de burocratas celestiais, sempre
disponíveis numa espécie de Ministério de Rogos e
Reclamações. Recebiam diariamente presentes e velas que
eram, regra geral, outros tantos pedidos de perdão por uma
qualquer blasfémia das grandes. Punham-lhes questões:
submetiam-lhes problemas de reumatismos, de quedas de
granizo,
de extravio de animais. Os jogadores invocavam-nos ao
lançarem uma carta na mesa, as prostitutas acendiam-Lhes
uma vela num dia particularmente lucrativo. Isto - que me
contava, rindo, o Adiantado - reconciliava-me com um mundo
divino que, com o empalidecer das lendas áureas em
capelas de metal, com os amaneiramentos plásticos do
vitral moderno, acabara por perder toda a vitalidade nas
cidades de onde eu vinha. Ante o Cristo de madeira negra
que
parecia
esvair-se em sangue sobre o altar-mor, eu descobria a
atmosfera de auto sacramental, de mistério, de hagiografia
tremebunda, que certa vez me supreendera numa velhíssima
capela de feitura bizantina, ante imagens de mártires com
alfanjes
espetando-lhes o crânio de orelha a orelha, de bispos
guerreiros cujos cavalos assentavam as ferraduras
ensanguentadas sobre cabeças de pagãos. Noutra altura, eu
ter-me-ia demorado um pouco mais naquela igreja rústica,
primitiva, mas a penumbra envolvente das mariposas
começava a ter sobre mim o efeito enervante de um eclipse
que
já se prolongava para além do admissível. Isto, a par das
fadigas da noite, levaram-me até ao albergue onde Mouche,
julgando que ainda não amanhecera, continuava a dormir,
abraçada a uma almofada. Quando despertei, ao cabo de
algumas
horas, ela já não estava no quarto, e o Sol findo o grande
êxodo pardacento, acabara finalmente por reaparecer.
Satisfeito por me ter livre de uma provável discussão,
encaminhei-me para casa de Rosario, desejando ardentemente
que
ela já estivesse acordada. Ali tudo voltara ao ritmo
quotidiano. As mulheres, vestidas de luto, entregavam-se
placidamente aos seus afazeres - com o velho hábito de
continuar a viver após o natural percalço da
morte. No pátio, repleto de cães adormecidos, o Adiantado
combinava com frei Pedro a iminente entrada na selva. Nesse
interim, surgiu Mouche, seguida pelo grego. Parecia já ter
esquecido a sua vontade de regressar, tão furiosamente
expressa na noite anterior. Bem pelo contrário: havia na sua
expressão uma espécie de alegria maligna e provocadora, que
Rosario atarefada na costura das roupas de luto, observou ao
mesmo tempo que eu. A minha amiga julgou-se na obrigação de
explicar que se encontrara com Yannes no embarcadouro,
junto à
canoa à vela de uns seringueiros que se preparavam para
subir
o rio, esquivando-se aos rápidos de Piedras

112 113

Negras através de um pequeno ribeiro, estreito nas navegável


naquela época. Ela pedira ao mineiro que a levasse a
contemplar essa barreira de granito, limite último de toda a
navegação de grande porte desde que os primeiros
descobridores
choraram de raiva frente à sua pavorosa realidade de abismos
espumosos, de águas impetuosas, lançando-se em jorros
dantescos, de troncos atravessados em redemoinhos
ululantes. E
já começava a fazer literatura à volta do grandioso
espectáculo, mostrando umas flores raras, uma espécie de
lírios selvagens, que afirmava ter colhido na margem das
fragorosas gargantas, quando o Adiantado, que
nunca ligava atenção àquilo que as mulheres diziam,
interrompeu o discurso - que, aliás, não entendia - num
gesto
de impaciência. Na sua opinião, devíamos aproveitar a barca
dos seringueiros para avançar o mais possível, navegando
assim
com maior comodidade. Yannes assegurava que poderíamos
alcançar a mina de diamantes dos seus irmãos nessa mesma
noite. E, contra todas as minhas expectativas, Mouche, ao
ouvir falar de «mina de diamantes» - deslumbrada, creio eu,
pela visão de uma gruta rutilante de gemas -, aceitou
alvoraçada a ideia. Pendurou-se depois ao pescoço de
Rosario,
pedindo-lhe que nos acompanhasse nesta etapa da nossa
viagem,
tão fácil, de resto. Ámanhã descansaríamos no local da
mina. E
aí poderia esperar pelo nosso regresso, quando seguíssemos
adiante.
Quer-me parecer que Mouche, na realidade, desejava
inteirar-se
daquilo com que agora podíamos contar em matéria de
dificuldades, sem outros riscos para além de uma curta
jornada, assegurando-se assim de poder ter companhia para
voltar a Puerto Anunciación, caso optasse por abandonar a
partida. De qualquer maneira, era-me sumamente grato que
Rosario nos acompanhasse. Olhei-a e vi-a de olhos suspensos
por sobre a mesa de costura, como se estivesse à espera de
saber qual a minha vontade. Ao deparar com a minha
aquiescência, reuniu-se de imediato com as suas irmãs, que
armaram uma enorme algazarra, protestando pelos quartos e
cozinhas, pois achavam que semelhante propósito era uma
loucura. Mas ela, sem fazer caso, apareceu daí a pouco com
uma
trouxa de roupa e um lenço grosso. Aproveitando o
facto de Mouche ir a andar à nossa frente pelo caminho da
estalagem, disse-me rapidamente, como quem revela um grande
segredo, que as flores trazidas pela minha amiga não
cresciam
nos penhascos de Piedras Negras, mas sim numa ilha frondosa,
primitiva sede de uma missão abandonada, que me apontou com
a
mão. Ia a
pedir-lhe mais esclarecimentos, mas ela, a partir desse
instante, e até nos termos instalado a bordo da canoa dos
seringueiros, evitou ficar a sós comigo. Depois de
ultrapassado o ribeiro com a ajuda

114
de uma comprida vara, a barca avançava agora rio acima,
bordejando um pouco para se esquivar ao poderoso ímpeto da
corrente. Sobre a vela triangular, vela de galera antiga,
bastante afastada do mastro, reflectiam-se as luzes do
poente. Nesta antecâmara da selva, a paisagem
apresentava-se simultaneamente solene e sombria. Na margem
esquerda, viam-se colinas negras, de argila xistosa,
estriadas
de humidade, ressumando uma avassaladora tristeza. Nas
suas faldas, jaziam blocos de granito em forma de
sáurios, de antas, de animais petrificados. Uma mole de três
corpos erguia-se na quietude de um estuário com aspecto de
cenotáfio bárbaro, rematada por uma formação oval que se
assemelhava a uma gigantesca rã prestes a saltar. Tudo
transpirava a mistério naquela paisagem mineral, quase
orfã de árvores. De quando em quando, surgiam amontoados
basálticos, monólitos quase rectangulares, caídos entre
arbustos escassos e dispersos, que lembravam ruínas de
templos antiquíssimos, de dólmens e menhires - restos de uma
necrópole perdida, onde tudo era silêncio e imobilidade. Era
como se uma civilização estranha, de homens distintos dos
que
conhecemos, tivesse florescido ali, deixando, ao perder-se
na
noite dos tempos, os vestígios de uma arquitectura criada
com
fins ignorados. E acontece que uma geometria cega viera a
intervir na dispersão dessas lajes erguidas ou tombadas
que desciam em diversas filas até ao rio: filas
rectangulares,
filas planas, em linha recta ,
filas mistas, unidas entre si por caminhos de ladrilhos
pontuados de obeliscos rachados. Havia ilhas, no meio da
corrente, que se assemelhavam a amontoados de blocos
errantes,
como punhados de inconcebíveis pedregulhos deixados um pouco
por toda a parte por um fantástico despedaçador de
montanhas.
E cada uma dessas ilhas reavivava em mim o peso latente de
uma
ideia fixa - deixada pelos parcos esclarecimentos de
Rosario.
Finalmente, com um ar distraído acabei por perguntar pela
ilha
da missão abandonada. "É Santa Prisca", disse frei Pedro,
com
um ligeiro rubor. "Deviam chamar-lhe São Príapo" (*),
galhofou
daí a pouco o Adiantado
por entre as gargalhadas dos seringueiros. Soube assim que,
hájá alguns anos, as paredes arruinadas do antigo centro
franciscano tinham passado a albergar os pares que, no
povoado, não achavam lugar onde pudessem entregar-se aos
prazeres da carne. E tinham sido tantas as fornicações que
se
sucederam naquele lugar - afirmava o timoneiro - que o
simples
facto de se aspirar o odor

(*) Priapo - Deus romano que veio a simbolizar o


erotismo, a sensualidade, o amor carnal. Nas festas em sua
honra, uma representação de um falo era solenemente levada
em
procissão. (N. do T.)
115

a humidade, a fungos, a lírios selvagens ali reinante, era


quanto bastava para excitar qualquer homem, por mais austero
que ele fosse, até mesmo um capuchinho. Dirigi-me para a
proa,
para junto de Rosario, que parecia estar a ler a história de
Genoveva de Brabante. Mouche, deitada num saco de
sarapilheira, no meio da barca, e nada tendo ouvido do que
fora dito, ignorava que acabara de acontecer algo gravíssimo
para o futuro da nossa vida em comum. E a verdade é que eu
não
só não me sentia agastado, como nem sequer tinha vontade -
pelo menos naquele momento - de a castigar pelo sucedido.
Pelo
contrário: nesse anoitecer invadido pelo canto dos sapos,
elevando-se de entre os juncos, envolto no zumbido dos
insectos que se substituíam aos que enxameavam a claridade
diurna, sentia-me leve, solto, aliviado pelo conhecimento da
infâmia, como um homem que acaba de lançar por terra um
peso que já carrega há demasiado tempo. Na margem, as flores
de uma magnólia recortaram-se na penumbra. Pensei no caminho
que a minha esposa percorria todos os dias. Mas a sua figura
não conseguiu desenhar-se-me claramente na memória,
diluindo-se em formas imprecisas, como que esfumadas. O
regaço
embalador da barca lembrava-me a cesta que, na minha
infância,
fizera as vezes de uma verdadeira barca em portentosas
viagens. Do braço de Rosario, quase ao pé do meu,
desprendia-se um calor que o meu braço aceitava com uma
estranha e deleitada sensação de ardor.
XVI

(Noite de sábado)

No modo como constrói a sua habitação, revela o homem


toda a sua prosápia. A casa dos gregos foi feita com os
mesmos
materiais de que os índios se servem para erguer as suas
cabanas, e essa fibra, essa folha de palmeira, esse
bahareque,
em função da sua resistência, ditou as normas a seguir, tal
como aconteceu em todas as arquitecturas do mundo. Mas
bastou
uma menor inclinação dos beirais, uma maior largura das
vigas
de apoio, para que a empena adquirisse um tom de fachada e
se
inventasse assim a arquitrave. Para servir de pilastras,
escolheram-se troncos com um maior diâmetro de base, em
virtude de uma instintiva vontade de imitar o fuste dórico.
A
paisagem pedregosa que nos rodeia contribui também para
avolumar ainda mais este inesperado helenismo ambiental.
Quanto aos três irmãos de Yannes, que só agora

116

conheço, eles reproduzem, em rostos praticamente da mesma


idade, o exacto perfil de baixo-relevo para um arco de
triunfo. Comunicam-me que numa choça ali perto, a qual,
durante a noite ,
serve para abrigar as cabras, se encontra o doutor
Montsalvatje - de quem o Adiantado já me falara na véspera
-,
ordenando e refrescando as suas colecções de plantas
raras. E já este cientista aventureiro vem ao nosso
encontro, gesticulando, falando com pronunciado sotaque,
denodado colector de curare, de yopo, de peiotes e de
quantos venenos e estupefacientes selvagens, de acção
ainda mal conhecida, pretende estudar e experimentar. Sem
se
interessar lá muito em saber quem somos, o herborizador
sufoca-nos sob uma torrente de terminologia latina
destinada à
classificação de cogumelos nunca antes vistos, triturando
uma
amostra com os dedos, enquanto nos explica porquejulga
tê-los baptizado acertadamente. De repente, dá-se conta de
que
não somos botânicos ,
ri-se de si mesmo, qualificando-se de Senhor-dos-Venenos,
e pede notícias do mundo donde vimos. Dou-lhe algumas
respostas, mas torna-se evidente - noto-o na desatenção
dos restantes - que as minhas novidades não interessam a
ninguém daqui. O doutor
Montsalvatje na realidade, só estava interessado em saber
de factos relacionados com a própria vida do rio. Engole
agora
um comprimido de quinino que pediu a frei Pedro de
Henestrosa. Na segunda-feira, irá até Puerto Anunciación
com os seus herbários ,
devendo regressar logo a seguir, pois acabou de descobrir
uma clavária desconhecida cujo cheiro é suficiente para
produzir alucinações visuais, e bem assim uma crucífera cuja
proximidade contribui para encher de bolor certos metais. Os
gregos levam o indicador à testa, como buscando a pedra
da loucura. O Adiantado troça da estranha sonoridade que
certos vocábulos indígenas ganham na sua boca. Os
seringueiros, em contrapartida, afirmam tratar-se de um
grande médico, e falam de uma bolsa de humores que ele
abriu e
tratou com a ajuda da ponta romba de uma faca. Rosario
conhece-o, considerando o seu inesgotável desejo de falar
,
após enormes e prolongados períodos de silêncio, como
extremamente característico da personagem. Mouche, que lhe
pôs
a alcunha de Senhor Macbeth, entendendo-se com ele em
francês,
acaba por se cansar das suas histórias de plantas e pede a
Yannes que lhe pendure a rede dentro de casa. Frei Pedro
explica-me que o herborizador, sem ter nada de louco, é
muito
dado a fantasias, forma natural de compensar os seus muitos
meses de solidão na espessura da selva, tendo vindo a forjar
uma divertida linhagem de alquimistas e herejes que o leva a
proclamar-se descendente directo de Raimundo Lulio - a quem
teima em chamar Ramón Llull -

117

afirmando que a obsessão da árvore, nos tratatos do Doutor


Iluminado, revelava já, nos dias do Ars Magna, a tendência
natural da família. Mas o alvoroço da chegada e dos
primeiros
encontros aquieta-se em torno das toscas bandejas de palha
em
que os mineiros trazem o queijo das suas cabras, os rábanos
e
os tomates da sua pequena horta, a par do cassabe (*), do
sal
e da aguardente que começam primeiro por oferecer - em
lembrança, talvez inconsciente, do rito secular do sal, do
pão
e do vinho. E estamos agora sentados à volta da fogueira,
unidos pela necessidade ancestral de ver o fogo a arder no
meio da noite. Uns apoiam-se num cotovelo, outros apoiam o
queixo nas mãos, o capuchinho embrulha-se no seu hábito, as
mulheres deitam-se numa manta, Gavião queda-se com a língua
de
fora, junto a Polifemo, o dogue zarolho dos gregos: todos
olhamos as chamas que se elevam a intervalos de entre os
ramos
demasiado húmidos, morrendo aqui em tons de
amarelo para renascerem além, num galho um pouco mais
propício, em brilhantes tons de azul, enquanto na sua base
os
primeiros cavacos se começam já a transformar em brasas. Na
ladeira xistosa onde agora estamos, as grandes lajes imóveis
ganham uma fantástica dimensão de estelas, de cipós, de
monólitos, erguendo-se numa escadaria cujos degraus
superiores
se perdem entre as trevas. A jornada foi cansativa. E,
contudo, ninguém se decidiu a dormir. Estamos aqui, como que
enfeitiçados pelo fogo, um pouco ébrios do seu calor, cada
qual encerrado em si mesmo, pensando sem pensar, solidário
dos
restantes por uma sensação de bem-estar, de tranquilidade,
que
compartilhamos e gozamos por uma razão primordial. A pouco e
pouco, sobre o horizonte de blocos errantes, desenha-se uma
claridade fria, após o que a Lua emerge de trás de uma
árvore
de grande copa, de frondosas ramagens, onde os grilos
iniciam
um verdadeiro concerto. Grasnando, passam dois pássaros
brancos, em voo rasteiro, um pouco inclinado. Uma vez
estabilizado o fogo, soltam-se as línguas, irrompem as
palavras: um dos gregos queixa-se de que a mina parece
estar a
esgotar-se. Mas Montsalvatje encolhe os ombros, afirmando
que
mais adiante, na direcção das Grandes Mesetas, há diamantes
em
todos os leitos fluviais. Com os seus óculos de grandes
aros,
a sua calva
queimada pelo Sol, as suas mãos curtas, cobertas de sardas,
de
dedos carnudos que têm algo de estrelas-do-mar, o
Herborizador
torna-se numa espécie de espírito da terra, de gnomo
guardião
de cavernas, na minha imaginação excitada pelas suas
palavras.
Fala do Ouro, e, de imediato, todos se calam, porque falar
de

(*) Cassahe - Torta de farinha feita com raiz de mandioca


(N. do T.)

118

tesouros é agradável para o homem. O narrador - narrador


junto
ao fogo, como é da praxe - estudou em longínquas
bibliotecas tudo aquilo que se refere ao ouro deste
mundo. E em breve
surge, remota, banhada pelo luar, a miragem do El Dorado.
Frei Pedro sorri, indolente e trocista. O Adiantado
escuta com ar carrancudo, enquanto atira mais alguns
gravetos para o lume. Para o recolector de plantas, o
mito é tão só o reflexo de uma realidade. Onde se andou em
busca da cidade de Manoa, um pouco mais acima ou um pouco
mais abaixo, na imensidão abarcada pela sua vasta e
fantasmal província há diamantes no lodo das margens e ouro
no
fundo das águas. "Aluviões", objecta Yannes. "Logo",
argumenta Montsalvatje, "existe um maciço central ainda
desconhecido, um laboratório de alquimia telúrica no
imenso escalonamento de montanhas de estranhas formas,
todas engalanadas de cascatas, que cobrem esta zona - a
menos explorada do planeta -, em cujo limiar estamos
neste momento. Existe aquilo a que Walter Ralei h chamou "o
filão original", pai de todos os filões, gerador da
inesgotável torrente de cascalho, jorrada em centenas de
rios,
onde jazem as pedras preciosas". O nome daquele a quem os
espanhóis chamavam Serguaterale, leva de imediato o
Herborizador a invocar os testemunhos de prodigiosos
aventureiros, que surgem das sombras, chamados pelos seus
nomes, para virem aquecer as suas cotas e saiotes nas
chamas do nosso fogo. São os Federmann, os Balalcázar, os
Espira, os Orellana, seguidos pelos seus capelães,
timbaleiros
e sacabuxas; escoltados pela nigromante companhia dos
algebristas, herbolários e guardadores de defuntos. São os
alemães ruivos e de barbas encrespadas, os estremenhos
magros, de barbas de chibo, envoltos no adejar dos seus
estandartes, cavalgando corcéis que, como os de Gonçalo
Pizarro, ganharam ferraduras de ouro maciço mal assentaram
os
cascos na movediça superfície do El Dorado. E é sobretudo
Felipe de Hutten, o Urre dos castelhanos, que, numa tarde
memorável, contemplou alucinado, desde o cimo de um morror a
grande cidade de Manoa e os seus portentosos alcáceres, mudo
de estupor, no meio dos seus homens. Desde então, a notícia
espalhou-se, pelo que durante um século foi um tremebundo
tactear pela selva, um trágico fracasso de sucessivas
expedições, um extraviar-se, andar em círculos, correr as
montanhas, sorver o sangue dos cavalos, um reiterado exalar
de
Sebastião trespassado de dardos. Isto quanto às expedições
conhecidas já que as crónicas esqueceram os nomes daqueles
que, em
pequenas surtidas, tinham vindo a queimar-se no fogo do
mito,
deixando o esqueleto dentro da armadura, no sopé de qualquer
inacessível muralha de rochas. Erguendo-se da sombra junto
às
119

chamas, o Adiantado aproximou do fogo um machado que já


naquela tarde me chamara a atenção pela estranheza do seu
perfil: tratava-se de um seguro de ferro castelhano, com um
cabo de oliveira que, apesar de enegrecido, não chegara a
soltar-se do metal. Nessa madeira, era ainda visível uma
data
gravada à ponta de faca por um qualquer soldado camponês -
data que era dos tempos dos Conquistadores. Enquanto
passávamos a arma uns
para os outros, silenciados por uma estranha emoção, o
Adiantado contou-nos como viera a encontrá-la na parte mais
densa e cerrada da selva, à mistura com ossadas humanas,
junto
a uma lúgubre desordem de morriões, espadas e arcabuzes,
agora
propriedade das raízes de uma árvore que enlaçando-os,
continuavam a suster uma alabarda à altura de um homem, de
tal
modo que esta parecia ainda segura por mãos ausentes. A
frialdade do seguro deixava-nos nas pontas dos dedos uma
atmosfera de prodígio. E deixámo-nos envolver pelo
maravilhoso, anelantes de maiores portentos. E já apareciam
junto ao fogo, chamados por Montsalvatje, os curandeiros que
saravam feridas recitando o Ensalmo de Bogotá, a Rainha
gigante Cicanocohora, os homens anfíbios que dormiam no
fundo
dos lagos e aqueles que se alimentavam apenas do perfume das
flores. E até já estávamos dispostos a aceitar os Cães
Carbúnculos que tinham entre os olhos uma pedra preciosa, de
brilho resplandecente, a Hidra vista pela gente de
Federmann,
a Pedra Bezoar, de prodigiosas virtudes, descoberta nas
entranhas dos veados, os tatunachas, sob cujas orelhas
podiam
abrigar-se até cinco pessoas, ou aqueles outros selvagens
cujas pernas terminavam em patas de avestruz - segundo o
relato fidedigno de um santo prelado. Durante dois séculos,
os
cegos do Caminho de Santiago tinham cantado as façanhas de
uma
Harpia Americana, exibida em Constantinopla, onde morreu
espumando e rugindo... Frei Pedro de Henestrosa julgou-se
obrigado a endossar tais fábulas à acção do Maligno, quando
as
narrações, por serem de frades, apresentavam um tom de maior
seriedade, e ao afã de difundir patranhas, quando se tratava
de histórias narradas por soldados. Mas Montsalvatje
armou-se
então em Advogado dos Prodígios,
afirmando que a realidade do reino de Manoa tinha sido
aceite
por missionários que foram à sua procura em pleno Século das
Luzes. Setenta anos antes, num relatório científico, um
afamado geógrafo afirmava ter divisado, na zona das Grandes
Mesetas, algo de semelhante à fantástica cidade outrora
contemplada pelo Urre. As Amazonas tinham existido: eram as
mulheres dos varões mortos pelos caraíbas, na sua misteriosa
migração até ao Império do
Milho. Da selva dos Maias, surgiam escadarias,
atracadouros,
120

monumentos, templos repletos de portentosas pinturas,


representando cultos de sacerdotes-peixes e de
sacerdotes-lagostas. Umas cabeças enormes apareciam de
repente, por detrás das árvores tombadas, olhando os que
acabavam de achá-las com olhos de pálpebras caídas, mais
terríveis ainda do que duas pupilas fixas, pela sua
contemplação interior da Morte. Noutro lado, havia longas
Avenidas de Deuses, erguidos frente a frente, lado a lado,
cujos nomes ficariam para sempre ignorados - deuses
caídos, fenecidos, depois de, durante séculos e séculos,
terem
sido a imagem de uma imortalidade negada aos homens. Nas
costas do Pacífico ,
descobriam-se uns gigantes desenhos, de tamanha vastidão
que desde sempre os homens tinham transitado sobre eles
sem se darem conta da sua presença sob os passos que
davam, traçados como para serem vistos de um outro
planeta pelos povos que sempre tinham escrito na base da
figuração castigando toda a invenção de alfabetos com a pena
máxima. Todos os dias apareciam na selva novas pedras
talhadas; a Serpente Emplumada surgia pintada em longínquos
recônditos alcantilados, e ninguém conseguira ainda decifrar
os milhares de petróglifos que, nas margens dos Grandes
Rios,
continuavam a falar na sua linguagem de representações
animais, de figurações astrais, de signos misteriosos. O
doutor Montsalvatje, de pé junto à fogueira, assinalava as
mesetas distantes, que se recortavam na profundidade azulada
para onde a Lua rumava lenta e grave: "Ninguém sabe o que
existe por detrás dessas Formas", afirmava, num tom que nos
devolveu uma emoção olvidada desde a infância. Todos
sentimos
desejos de nos preparar, de começar a andar, de chegar antes
do alvorecer à porta dos prodígios. As águas da Laguna de
Parima voltavam a rebrilhar. Dentro de nós, os alcáceres de
Manoa voltavam a erguer-se. A possibilidade da sua
existência
voltara a ser posta, já que o seu mito vivia na imaginação
de
quantos moravam nas redondezas da selva - quer dizer: do
Desconhecido. E não pude deixar de pensar que o Adiantado,
os
mineiros gregos, os dois seringueiros e todos aqueles que,
em
cada ano, finda a época das chuvas, tomavam o rumo da Selva
cerrada e densa, eram não só os buscadores do El Dorado,
como
também os primeiros a
marcharem sob o conjuro do seu nome. O doutor destapou um
tubo de cristal, cheio de pequenas pedras negras que, daí a
pouco, uma vez nas nossas mãos, rebrilharam com um fulgor
amarelado à claridade do fogo. Palpámos o Ouro.
Aproximámo-lo
dos olhos
para o ver aumentar. Sopesámo-lo com gestos de alquimista.
Mouche provou-o com a língua, para lhe conhecer o sabor. E
quando as suas pepitas voltaram ao cristal, o próprio fogo

121

pareceu enfraquecer, a noite tornar-se mais fria. Enormes


rãs
bramiam no rio. De súbito, frei Pedro lançou o seu bastão ao
fogo, e o bastão tornou-se vara de Moisés ao erguer-se a
serpente que
acabava de matar.

XVII

(Domingo, 17 de Junho)

Regresso agora da mina e regozijo-me de antemão, a pensar


na decepção de Mouche quando vir que a caverna maravilhosa,
rutilante de gemas, o tesouro de Agaménon que seguramente
esperava encontrar, é o leito côncavo, escavado e revolvido
de
uma torrente. Um lodaçal que as pás cortaram lateralmente,
em
profundidade, de cima abaixo, voltando vinte vezes ao lugar
do
primeiro achado, na esperança de ter deixado no barro, por
um
mero desvio da mão, por uma margem de milímetros, a
portentosa
Pedra da Riqueza. O mais jovem dos pesquisadores de
diamantes
fala-me, pelo caminho, das grandes misérias do ofício, das
desilusões de cada dia e da extraordinária fatalidade que
leva
o descobridor de uma gema grande a regressar, pobre e
endividado, ao lugar em que a encontrou. Todavia, a ilusão
reaviva-se sempre que surge da terra um diamante singular e
o
seu futuro fulgor, adivinhado antes da talha, salta por cima
de selvas e cordilheiras, desacompanhando o vigor daqueles
que, ao cabo de uma jornada infrutuosa, sacodem do corpo a
crosta de lama que o cobre. Pergunto pelas mulheres e
dizem-me
que estão a banhar-se num rio próximo, em cujas poças não se
albergam alimárias perigosas. No entanto, eis que se ouvem
as
suas vozes. Vozes que, ao aproximarem-se, me fazem sair de
casa, surpreso pela violência de tom e pelo inexplicável da
gritaria. Pensámos imediatamente que alguém as surpreendera
nuas na margem ou as abordara com fins malévolos. Mas eis
que
Mouche aparece, com a roupa empapada, pedindo auxílio,
como que a fugir de algo terrível. Antes que pudesse dar um
passo, vejo a Rosario, mal coberta por um grosso refajo (*),
que chega junto da minha amiga, atira com ela ao chão com um
só empurrão e lhe bate barbaramente com uma estaca. De
cabelos
caídos sobre os ombros, cuspindo insultos, dando-lhe
pontapés,

(*) Refajo - Saia curta e rodada, usada pelas mulheres de


certos povoados. (N. do T.)

122

batendo-lhe com o pau e a mão livre, dá-nos uma tal imagem


de
ferocidade que todos corremos a agarrá-la. Apesar disso,
ela debate-se, dá pontapés, morde quem a submete, com um
furor
traduzido em grunhidos roucos, em bufidos, à falta de
palavras. Quando levanto Mouche, esta dificilmente
consegue manter-se de pé. Uma pancada partiu-Lhe dois
dentes.
Sangra pelo nariz, cheia de arranhadelas e esfoladelas. O
Dr.
Montsalvatje leva-a para a cabana dos ervanários, a fim
de ser tratada. Entretanto, cercando Rosario, procurámos
saber o que acontecera. Mas ela reduzira-se a um mutismo
obstinado, recusando-se a responder. Ficou sentada numa
pedra, de cabeça caída, repetindo, com uma insistência
exasperante, um gesto de denegação que atira com a sua
cabeleira negra de um lado para o outro, cerrando-lhe
cada vez mais o semblante já enfurecido. Dirijo-me para a
cabana, Farmácia hedionda, cheia de esperadrapos. Mouche
geme na hamaca (*) do herborizador. Às minhas perguntas,
responde que ignora o
motivo da agressão; que a outra ficara quase louca e, sem
insistir mais nisto, desata a chorar, dizendo que quer
regressar imediatamente, que não aguenta mais, que esta
viagem
a esgota, que se sente à beira da demência. Agora suplica.
Sei
que, até há bem
pouco, a súplica, por inabitual na sua boca, teria
conseguido
tudo de mim. Mas, neste momento, junto dela, vendo o seu
corpo
sacudido pelos soluços de um desespero aparentemente
sentido,
permaneço frio, encouraçado por uma dureza que me admira e
que
aprecio, como podia apreciar, por oportuna e firme, uma
vontade alheia. Nunca teria pensado que Mouche, ao fim de
uma
tão prolongada convivência, chegaria a parecer-me tão
distante. Extinto o amor que tive talvez por ela - até me
assaltavam agora as dúvidas acerca da realidade desse
sentimento -, poderia ter subsistido, ao menos, o vínculo de
uma amistosa ternura. Contudo, os retornos ,
as mudanças, as recordações que se tinham sucessivamente
operado em mim, em menos de duas semanas, acrescidos à
descoberta da véspera, tornavam-me insensível aos seus
rogos.
Deixando-a gemer o seu desconforto, regressei à casa dos
gregos, onde Rosario, já um pouco acalmada, estava encolhida
como um novelo, silenciosa, de braços cruzados sobre o
rosto,
deitada num Chinchorro (**). Uma espécie de mal-estar
carregava o semblante dos homens, embora parecessem pensar
noutra coisa. Os gregos mostravam demasiado

(*) Hamaca - Rede balouçante, vulgar nos países da


América Latina. (N. do E.)
(**) Chinchorro -. Rede de balouço usada como cama pelos
índios da Venezuela. (N. do E.)

123

nervosismo no preparo de uma sopa de peixe que fervia numa


enorme panela de barro, discutindo em falsete acerca do
azeite, do pimento e do alho. Os seringueiros
remendavam as alpergatas em silêncio. O Adiantado dava banho
ao Gavião, que se havia deliciado com uma carne que já não
estava fresca - e o cão, como se sentisse incomodado com as
xícaras de água que lhe caíam em cima, mostrava os dentes
aos
que o observavam. Frei Pedro desfiava as contas do seu
rosário
de sementes. E eu sentia, em todos eles uma tácita
solidariedade com Rosario. Aqui, o factor de perturbação,
que
todos repeliam instintivamente era Mouche. Todos adivinhavam
que a violenta reacção da outra se devia a algo que lhe
conferia o direito de agredir com tal fúriaalgo que os
seringueiros, por exemplo, podiam atribuir ao despeito de
Rosario, talvez apaixonada por Yannes e excitada pelo
insinuante comportamento da minha amiga. Decorreram várias
horas de sufocante calor, durante as quais cada um se fechou
em si mesmo. À medida que nos aproximávamos da selva, eu
pressentia nos homens uma tendência maior para o silêncio.
Isto devia-se, porventura, ao tom sentencioso, quase
bíblico,
de certas reflexões formuladas com muito poucas palavras.
Quando alguém falava, fazia-o de modo pausado, cada qual
escutando o outro e tirando uma conclusão antes de
responder.
Quando a sombra das pedras começou a adensar-se, o Dr.
Montsalvatje trouxe-nos da cabana dos ervanários a mais
inesperada das notícias: Mouche tiritava de febre. Ao sair
de
um sono profundo, tinha-se soerguido, para logo cair numa
inconsciência estremecida pelas tremuras. Frei Pedro,
autorizado pela larga experiência das suas andanças,
diagnosticou uma crise de paludismo - enfermidade a que em
geral não se
atribui grande importância nestas paragens. Meteram
comprimidos de quinino pela boca da enferma abaixo e
permaneci
a seu lado resmungando de raiva. A duas jornadas do fim da
minha empresa, quando pisávamos as fronteiras do
desconhecido
e o ambiente se tornava mais belo com a proximidade de
possíveis maravilhas, logo havia a Mouche de ter sido assim,
estupidamente, picada por um insecto que a escolhera a ela,
a
menos apta para suportar tal enfermidade. Em poucos dias,
uma
natureza forte, profunda e dura, divertira-se a desarmá-la,
a
cansá-la, a desembelezá-la, a enfraquecê-la, assestando-lhe
de
repente o golpe de misericórdia. Ficava estupefacto perante
a
rapidez da derrota, que me parecia uma exemplar desforra do
justo e do autêntico. Mouche, aqui, era como que uma
personagem absurda, tirada de um futuro em que o denso
bosque
fora substituído pela alameda. O seu tempo, a sua época eram
outros. Para aqueles que conviviam agora conosco

124
a fidelidade ao varão, o respeito pelos pais, a rectidão de
procedimento, a palavra dada, a honra que obrigava e as
obrigações que honravam eram valores constantes, eternos,
impossíveis de ignorar, que excluiam qualquer
possibilidade de discussão. Faltar a certas leis era perder
o
direito à estima alheia, ainda que matar por honradez não
constitua uma culpa maior. Como nos mais clássicos dos
teatros, as personagens eram, neste grande cenário presente
e
real, as talhadas numa peça em que entravam o Bom e o Mau, a
Esposa Exemplar e a Amante Fiel, o Vilão e o Amigo Leal, a
Mãe
Digna ou Indigna. As canções ribeirinhas cantavam, em
décimas
de romance, a trágica história de uma esposa violada e morta
de vergonha e a fidelidade da zambo (*) que, durante dez
anos,
esperou o regresso do marido que todos consideravam que
tinha
sido comido pelas formigas, no mais remoto da selva. Era
evidente que Mouche estava a mais em tal cenário, coisa que
eu
devia reconhecer, a menos que renunciasse a toda a
dignidade, a partir do momento em que tinha sido avisado da
sua ida à ilha de Santa Prisca, na companhia do grego. No
entanto, agora que ela tinha sido prostrada pela crise
palúdica, o seu regresso implicava o meu - o que equivalia a
renunciar à minha única obra, a regressar endividado, de
mãos
vazias, envergonhado perante a única pessoa cuja estima me
era
preciosa. E tudo isto por cumprir uma louca função de
escolta junto de um ser que agora me aborrecia. Adivinhando
talvez a causa da tortura que certamente se reflectia no meu
semblante, Montsalvatje proporcionou-me o mais providencial
dos alívios, dizendo que não haveria inconveniente em levar
Mouche, amanhã. Levá-la-ia até onde ela pudesse aguardar-me
com toda a comodidade: forçá-la a ir mais longe, débil como
estaria depois do primeiro acesso, era pouco menos que
impossível. Ela não era mulher para tais andanças. Anima,
vagula, blandula - concluiu ironicamente. Respondi-lhe com
um
abraço. A Lua voltou a erguer-se. Além, ao pé de uma
pedra grande o fogo que reuniu os homens às primeiras horas
da
noite. Mouche suspira mais do que respira e o seu sono
febril
povoa-se de palavras que mais parecem estertores e
rouquidão.
Uma mão pousa sobre o meu ombro: Rosario senta-se a meu
lado,
na esteira, sem falar. Compreendo, contudo, que está
iminente
uma explicação, e espero em silêncio. O grasnar de um
pássaro
que voa na direcção do rio, despertando as cigarras do
tecto,
parece decidi-la. Começando com uma voz tão tímida que mal a
oiço, conta-me aquilo de que suspeito demasiado.

(*) Zambo - Filho de índio e de negra ou vice-versa. (N.


do E.)

125

O banho na margem do rio. É Mouche, que se orgulha da beleza


do seu corpo e nunca perde a oportunidade de mostrá-lo, que
incita Rosario, com fingidas dúvidas quando à dureza da sua
carne, a despojar-se do refajo mantido por pudor aldeão.
Assim, a insistência, o hábil
desafio, a nudez que se mostra, os elogios à firmeza dos
seios, o brilho do ventre, o gesto de ternura, e o gesto a
mais que revela a Rosario, subitamente, uma intenção que
ultrapassa os seus instintos mais profundos. Mouche, sem
imaginá-lo, fez uma ofensa que é, para as mulheres daqui,
pior
que o pior dos epítetos, pior que o insulto à mãe, pior que
maldizer a casa, pior que cuspir nas entranhas que pariram,
pior que duvidar da fidelidade ao marido, pior que o nome de
cadela, pior que o nome de puta. De tal modo se inflamam os
seus olhos na sombra ao recordar a rixa daquela manhã que
chego a temer uma nova irrupção de violência. Agarro Rosario
pelos pulsos para a manter quieta, e, com a brusquidão do
gesto, o meu pé derruba uma das cestas em que o Herborizador
guarda as suas plantas secas, entre camadas de folhas de
malanga. Um feno espesso e crepitante está por cima de nós,
envolvendo-nos em perfumes que me recordou,
simultaneamente, a
cânfora, o sândalo e o açafrão. Uma repentina emoção
deixa-me
o fôlego em suspenso: assim - quase assim cheirava a cesta
das
viagens mágicas, onde eu abraçava a Maria del Carmen, quando
éramos crianças,
perto dos canteiros em que o pai dela semeava a alfavaca e a
hortelã-pimenta. Olho para a Rosario muito de perto,
sentindo-Lhe nas mãos o palpitar das veias e, de súbito,
vejo
algo de ansiedade, de entrega, de impaciência no seu
sorriso -
mais do que sorriso, riso contido, crispação de expectativa
-
que o desejo me atira sobre ela, com uma vontade alheia a
tudo
quanto não seja o gesto de posse. É um abraço rápido e
brutal,
sem ternuras, que mais parece uma luta de quebrar e vencer
do
que um enlace deleitoso. Mas quando voltamos a
encontrar-nos lado a lado, ainda arquejantes, e tomamos
consciência cabal do que se passou, invade-nos uma grande
satisfação, como se os corpos tivessem assinado um pacto
que constituísse o começo de um novo modo de viver. Jazemos
sobre as ervas espalhadas, sem mais consciência que a do
nosso deleite. A claridade da Lua que entra na cabana pela
porta sem ombreira sobe lentamente pelas nossas pernas:
passou pelos tornozelos e agora atinge as curvas de
Rosario, que já me acaricia com mão impaciente. É ela,
que desta vez, se lança sobre mim, arqueando o corpo com
ansioso constrangimento. Todavia, ainda procuramos a
melhor posição, quando uma voz rouca, quebrada, cospe
insultos junto dos nossos ouvidos, desenlaçando-nos com

126

brusquidão. Tínhamos rodado até debaixo da hamaca,


esquecidos
daquela que gemia ali tão próximo. E a cabeça de Mouche
aparecera por cima de nós, crispada, sardónica, babada,
fazendo lembrar a cabeça de Górgona com os cabelos
desalinhados e caídos sobre a fronte. "Porcos!" grita.
"Porcos! No chão, Rosario dá pontapés na hamaca, para a
fazer calar. E logo a voz de cima se desvia em divagações de
delírio. Os corpos desunidos voltam a encontrar-se e, entre
a
minha cara e o rosto mortiço de Mouche, que sai da rede
juntamente com um braço inerte, atravessa-se em espessa
queda
a cabeleira de Rosario, que finca os cotovelos no chão para
me
impor o seu ritmo. Quando voltamos a ter ouvidos para o que
nos cerca, já em nada nos importa a mulher que geme na
obscuridade. Poderia morrer agora mesmo, uivando de dor, sem
que a sua agonia nos comovesse. Somos dois, num mundo
diferente. Estendo-me por baixo do tufo de pêlos que
acaricio
com mão de amo, e o meu gesto encerra uma aprazível
confluência de sangues que se encontraram.

XVIII

(Segunda feira, 18 de Junho)

Despachámos Mouche com aquela concertada ferocidade dos


amantes que acabam de descobrir-se, ainda inseguros da
maravilha, insaciados de si mesmos, e se decidem a romper
com
tudo quanto possa opor-se à sua próxima cópula. Metê-mo-la
na
canoa
de Montsalvatje, envolta numa manta, a chorar, quase
inconsciente, fazendo-lhe crer que a sigo noutra embarcação.
Dei ao Herborizador muito mais dinheiro que o necessário
para
lhe acudir, para Lhe pagar todas as despesas, para a
instalar
e lhe custear todos os tratamentos indispensáveis,
reservando
para mim apenas umas notas sujas e algumas moedas - que,
aliás, de nada servem na selva, onde todo o comércio se
reduz
à troca de objectos simples e úteis, tais como agulhas,
facas,
sovelas. Na liberalidade da minha dádiva há, além disso, um
secreto ritual de adormecimento do
último escrúpulo de consciência: de todos os modos, Mouche
não
pode seguir connosco e assim, de forma concreta, cumpro o
meu
último dever. É muito provável, por outro lado, que, na
solicitude de Montsalvatje em levar a enferma consigo, haja
uma malévola esperança de se aliviar, com uma mulher nada
feia, de vários meses de continência.

127

Esta ideia não só me deixa indiferente como


também deploro, com os meus botões, que o fraco préstimo
físico do botânico o vá deprimir com um falhanço. O barco
desapareceu
agora à distância, num esteiro, encerrando com a sua partida
uma fase da minha existência. Jamais me sentira tão leve,
tão
bem instalado no meu corpo, como esta manhã. A palmada
irónica
que dou a Yannes, que me parece melancólico, leva-o a
interrogar-me com uma expressão de dúvida e inquietação,
que é
uma nova
desculpa para o meu rigor. Quanto ao mais, toda a gente se

conta de que Rosario - como aqui se diz - se comprometeu
comigo. Ela rodeia-me de cuidados, trazendo-me de comer,
ordenhando as cabras para mim, limpando-me o suor com panos
frescos, estando atenta às minhas palavras, à minha sede, ao
meu silêncio ou ao meu repouso, com uma solicitude que me
faz
ter orgulho da minha condição de homem: aqui, sim, a fêmea
«serve» o varão no mais nobre sentido do termo, criando a
casa com cada gesto. Porque, embora Rosario e eu não
tenhamos
tecto próprio, as suas mãos são já a minha mesa e a xícara
de
água que aproxima da minha boca, que logo limpa de uma folha
caída nela, ela é a vasilha marcada com as minhas iniciais
de
amo. "Vamos a ver quando é que ele assenta com uma mulher",
murmura frei Pedro atrás de mim, dando-me a entender que,
com
ele, de nada servem as dissimulações pueris. Desvio a
conversa
para não confessar que já estou casado e por um rito herege.
Acerco-me do grego, que reúne as suas coisas para seguir
connosco rio acima. Certo de que já está esgotado aquele
jazigo, e vendo-se uma vez mais burlado pela fortuna, quer
empreender uma viagem de prospecção para
além do El Pintado, numa zona montanhosa muito pouco
conhecida. Reserva o melhor lugar do seu fato para o único
livro que leva consigo para todo o lado: uma modesta edição
bilinge de A Odisseia, forrada com oleado negro, cujas
páginas
ficaram manchadas de verde pela humidade. Antes de
separar-se
novamente do livro, os seus irmãos, que sabem de cor largos
trechos do texto, procuram a versão castelhana na página em
frente, lendo fragmentos com um sotaque anguloso e duro.
Numa
pequena escola de Kalamata ensinaram-lhes os nomes dos
trágicos e o sentido dos mitos, mas uma obscura afinidade de
caracteres aproximou-os do aventureiro Ulisses, visitante de
países portentosos, nada inimigo do ouro, capaz de ignorar
as
sereias para não perder a sua propriedade de Ítaca. Ao cão
dos
mineiros, que ficara trôpego por causa de um vaqueiro,
puseram
o nome de Polifemo, em memória do
cíclope cuja lamentável história leram cem vezes, em voz
alta,
à beira da fogueira dos acampamentos. Pergunto a Yannes por
128

que deixou a terra a que o liga um sangue cujos remotos


mananciais ele conhece. O mineiro suspira, e faz do mundo
mediterrânico uma paisagem de ruínas. Fala do que deixou
para trás, tal como poderia falar das muralhas de Micenas,
dos
túmulos vazios, dos peristilos habitados pelas cabras. O mar
sem peixes, os múrices, a confusão dos mitos, e uma
grande esperança perdida. Depois o mar, secular remédio dos
seus: um mar mais vasto, que levava mais longe.
Conta-me que, quando avistou a primeira montanha ,
deste lado do oceano, se pôs a chorar, pois era uma
montanha vermelha e dura, parecida com as suas ásperas
montanhas de cardos e abrolhos. Mas então foi tomado pelo
apego aos metais preciosos, o apelo dos negócios e do
fausto, que tanto fizera navegar os seus antepassados. No
dia
em que encontrar a gema com que sonha, construirá, à
beira-mar e onde haja montanhas de encostas abruptas, uma
casa
de fachada com colunas -afirma - como um templo de Poseidon.
Volta a lamentar-se pelo destino do seu povo, abre o
livro no princípio e exclama: "Ah, miséria! Escutai como os
mortais ajuízam dos deuses. Dizem que é de nós que provêm os
seus males, quando são eles quem, pela sua loucura , agravam
as desditas que o destino lhes marca". Zeus fala, conclui o
mineiro e, prontamente, deixa o livro, pois os seringueiros
trazem pendurado de um ramo, um estranho animal ungulado que
tinham morto havia pouco. Creio, por um instante, que se
trata
de um porco selvagem de grande tamanho. "Uma
danta! Uma danta!" grita frei Pedro, juntando as mãos em
assombrado ademane, antes de se pôr a correr na direcção dos
caçadores com um júbilo que revela o seu enjoo pela mandioca
desfeita em água com que se alimenta
habitualmente na selva. Depois, é a festa do acender da
fogueira; o chamuscar do animal e o seu esquartejamento; a
vista dos pernis, miúdos e lombos, que atiça em nós o
apetite
desenfreado, habitualmente atribuído aos selvagens. De torso
nu, pondo toda a sua seriedade na tarefa, o mineiro
parece-me, de repente, tremendamente arcaico. O seu gesto de
atirar para o fogo alguns pêlos da cabeça do animal tem um
sentido propiciatório que talvez pudesse explicar-me uma
estrofe da Odisseia. O modo de espetar as carnes e, em
seguida, untá-las com gordura; o modo de as servir numa
tábua
e depois regá-las com aguardente corresponde a tradições
mediterrânicas tão antigas que, quando me é oferecido o
melhor
naco, vejo, por um segundo, Yannes transfigurado no
porqueiro
Eumeu... Não tínhamos ainda terminado o festim, quando o
Adiantado se levanta e desce o rio, com grandes passadas,
seguido por Gavião, que ladrava alvoroçado. Duas canoas
muito
primitivas - dois troncos escavados - descem a corrente,

129

conduzidas por remadores índios. Aproxima-se o momento da


partida e cada um junta a sua roupa aos fardos. Levo a
Rosario
à cabana, onde nos abraçamos mais uma vez no chão de terra,
que
Montsalvatje, ao ordenar as suas colecções, deixou coberto
de
plantas secas que exalavam o áspero e enervante perfume que
ontem sentimos. Desta vez, corrigimos as imperfeições e
precipitações dos primeiros encontros, tornando-nos mais
senhores da sintaxe dos nossos corpos. Os membros vão-se
ajustando melhor; os braços atingem uma acomodação mais
correcta. Estamos a escolher e a fixar, com maravilhosas
tentativas, as atitudes que irão determinar, no futuro, o
ritmo e a maneira da junção dos nossos corpos. Com a mútua
aprendizagem que implica o forjar de um par, nasce a sua
linguagem secreta. Vão já surgindo do deleite aquelas
palavras
íntimas, proibidas pelos outros, que serão o idioma das
nossas
noites. É a invenção a duas vozes, que inclui termos de
posse,
de acção de graças, designações dos sexos, vocábulos
imaginados
pela pele, ignorados apodos - ontem imprevisíveis, que
agora,
daremos um ao outro, quando ninguém puder ouvir-nos. Hoje,
pela primeira vez, Rosario chamou-me pelo meu nome,
repetindo-o muito, como se as suas sílabas tivessem de
voltar
a ser modeladas - e o meu nome, na sua boca, alcançou uma
sonoridade tão singular, tão inesperada, que me sinto como
que
enaltecido pela palavra que melhor conheço, ao ouvi-la tão
nova como se acabasse de ser criada. Vivemos o júbilo ímpar
da
sede compartilhada e saciada, e quando voltamos ao que nos
rodeia julgamos recordar um país de sabores novos.
Lanço-me à água para me libertar das ervas secas que o
suor me colou nos ombros e rio ao pensar que certa
tradição é contrariada por aquilo que agora acontece, visto
que, para nós, o tempo do ciúme passou a meio do Verão. Mas
a
minha amante desce já para as embarcações. Despedimo-nos
dos seringueiros e é a partida. Na primeira canoa,
encolhidos entre as bordas, seguiam o Adiantado, Rosario e
eu.
Na outra, frei Pedro, com Yannes e os fardos.
"Vamos com Deus!" diz o Adiantado, ao sentar-se ao lado de
Gavião, que fareja o ar com o focinho de carranca de proa.
De
agora em diante, ignoraremos a navegação à vela. O Sol, a
Lua,
a fogueira - e por vezes o raio - serão as únicas luzes que
iluminarão os nossos rostos.

130

CAPÍTULO QUARTO

Não haverá senão silêncio, imobilidade, ao pé


das árvores, dos cipós? Bom é, pois, que haja
guardiões.

Popol-Vuh

XIX

(Tarde de segunda feira)

O fim de duas horas de navegação entre bancos, ilhas


de bancos, promontórios de bancos, que conjugam
as suas geometrias com uma diversidade de invenção que já
deixou de nos assombrar, uma vegetação média, tremendamente
densa - rigidez de gramíneas, dominada
pela constante, em ondulação e dança, do maciço de
bambus - substitui a presença da pedra pela interminável
monotonia do verde fechado. Divirto-me com um jogo pueril
retirado das maravilhosas histórias contadas, junto ao fogo,
por Montsalvatje: somos Conquistadores que vamos em busca do
Reino de Manoa. Frei Pedro é o nosso capelão, a quem
pediremos
confissão se
ficarmos feridos à entrada. O Adiantado bem pode ser Felipe
de
Urre. O grego é Micer Codro, o astrólogo. Gavião passa a ser
Leoncio, o cão de Balboa. E eu outorgo-me no empreendimento,
as tarefas do corneteiro João de São Pedro, com mulher
amarrada com um cabo no saque de uma povoação. Os índios são

131

índios e mesmo que pareça estranho, habituei-me à rara


distinção de
condições feita pelo Adiantado, sem pôr nisso, por certo, a
menor malícia, quando, ao contar uma das suas andanças,
disse
muito naturalmente: "Éramos três homens e doze indios".
Julgo
que uma questão de baptismo rege esse reparo, e isto dá a
aparência de realidade à novela que, pela autenticidade do
cenário, estou a forjar. Agora os campos de bambus cederam a
margem esquerda, que bordejamos, a uma espécie de selva
baixa,
sem manchas de cor, que funde as suas raízes na água,
erguendo
um valado intransponível, absolutamente direito, direito
como
uma paliçada, como uma infindável muralha de árvores
erguidas,
tronco a tronco, até ao limite da corrente, sem um passo
aparente, sem uma fenda, sem uma greta. Sob a luz do Sol que
se esfuma em exalações sobre as folhas húmidas, aquela
parede
vegetal prolonga-se até ao absurdo, acabando por parecer
obra
de homens, feita com teodolito e prumo. A canoa vai-se
aproximando cada vez mais dessa margem densa e áspera, que o
Adiantado parece examinar palmo a palmo, com
atenção pressurosa. Parece-me impossível que estejamos à
procura de qualquer coisa naquele lugar e, no entanto, os
índios remam cada vez mais devagar, e o cão, com o lombo
eriçado, põe os olhos onde os fixa o dono. Adormecido
pela espera e pelo balancear do barco, fecho as
pálpebras. Imediatamente me desperta um grito do Adiantado:
"Ali está a porta!"... Havia, a dois metros de nós, um
tronco
igual aos outros: nem mais largo, nem mais
escamoso. Mas na sua casca estampava-se um sinal semlhante a
três letras V sobrepostas verticalmente, de tal modo que uma
dentro da outra, uma servindo de encaixe à segunda, num
desenho que poderia repetir-se até ao infinito, mas que só
se
multiplicava aqui ao reflectir-se nas águas: junto daquela
árvore abria-se um passadiço abobadado, tão estreito, tão
baixo, que me pareceu impossível meter a canoa por ali. E,
no
entanto, a nossa embarcação introduziu-se naquele túnel
estreito, com tão pouco espaço para deslizar que os cantos
rasparam duramente algumas raízes retorcidas. Com os remos,
com as mãos tínhamos de afastar obstáculos e
barreiras para levar adiante aquela incrível navegação, no
meio do tojal alagado. Um madeiro pontiagudo caiu sobre o
meu
ombro com a violência de uma paulada, fazendo sair sangue do
meu pescoço. Das ramagens chovia sobre nós uma
intolerável fuligem vegetal, por vezes impalpável, como um
plâncton errante no espaço - pesado, por vezes, como bocados
de limalha que alguém tivesse atirado de cima. Com isto, era
uma perene descida de filamentos que
queimavam a pele, de frutos mortos, de sementes velosas que
faziam chorar, de imundície, de poeiras cuja fetidez

132

enrugava as caras. Um empurrão da proa provocou o súbito


desmoronamento de um ninho de caruncho, rasgado numa
avalancha
de areia escura. Mas o que estava em baixo era talvez pior
do
que as coisas que faziam sombra. Entre duas águas
mexiam-se grandes folhas esburacadas, semelhantes a véus de
veludo, que eram plantas de engodo e camuflagem. Flutuavam
cachos de borbulhas sujas, endurecidas por um verniz de
pólen
avermelhado, que um salto próximo fazia afastar-se,
imediatamente, pelo regueiro de um estancadouro, com
indecisa navegação de holotúria. Mais adiante eram como
gaze, opalescentes, espessas, detidas nas socavas de uma
pedra
larvada. Desenrolava-se uma guerra surda nos fundos eriçados
de fateixas barbudas - ali onde tudo parecia um
imundo arrevesado de cobras. Estalidos inesperados,
ondulações súbitas, bofetadas sobre a água, denunciavam
uma fuga de seres invisíveis que deixavam atrás de si uma
esteira de podridões turvas - redemoinhos grisalhos,
erguidos
ao pé das cascas negras pintalgados de lêndeas.
Adivinhava-se
a proximidade de toda uma fauna rompante, do lodo eterno, da
glauca fermentação debaixo daquelas águas escuras que
cheiravam acidamente, como um lodo que
tivesse sido amassado com vinagre e carniça, e sobre cuja
superfície caminhavam insectos criados para andar sobre o
líquido: parasitas quase transparentes, pulgas brancas,
moscas
de patas quebradas, pequenos mosquitos que eram apenas um
ponto vibrátil na luz verde - pois tanto era o verdor
atravessado por alguns raios de Sol, que a claridade se
mantinha, ao baixar das folhagens de uma cor de musgo que se
tornava cor de fundo de pântanos ao procurar as raízes das
plantas. Ao fim de algum tempo de navegação naquele ribeiro
secreto, produzia-se um fenómeno parecido ao que conhecem os
montanheses extraviados nas neves: perdia-se a noção da
verticalidade, dentro de uma espécie de desorientação, de
enjoo dos olhos. Já não se sabia o que pertencia à árvore e
o
que pertencia ao reflexo. Já não se sabia se a claridade
vinha
de baixo ou de cima, se o tecto era de água, ou a água solo;
se as torneiras abertas na folhagem não eram poços luminosos
conseguidos no
alagado: como os madeiros, os paus, as lianas, reflectiam-se
em ângulos abertos ou fechados, acabava-se por acreditar em
passos ilusórios, em saídas, corredores, margens
inexistentes.
Com o transtorno das aparências, nessa sucessão de pequenos
espelhismos ao alcance da mão, crescia em mim uma sensação
de
desconcerto, de extravio total que resultava angustiosamente
indizível. Era como se me fizessem dar voltas sobre mim
mesmo,
para me aturdir, antes de me situar nos umbrais de uma
residência secreta. Já me perguntava se os remadores
conservavam uma noção cabal das

133

esloras (*). Começava a ter medo. Nada ameaçava. Todos


pareciam tranquilos em torno de mim; mas um medo
indefinível,
saído dos fundos do instinto, fazia-me respirar a fundo, sem
nunca encontrar o ar suficiente. Além disso, agravava-se o
desagrado da humidade agarrada às roupas, à pele, aos
cabelos;
uma humidade cálida, pegajosa, que penetrava tudo, como uma
gordura, tornando ainda mais exasperante a contínua picada
de
pernilongos, mosquitos, insectos sem nome, donos do ar à
espera dos anófeles que chegariam com o crepúsculo. Um sapo
que caiu sobre o meu rosto deixou-me, depois do sobressalto,
uma quase deleitosa sensação de frescura. Se não soubesse
que
era um sapo, mantinha-o preso no côncavo da mão, para me
aliviar as frontes com a sua frieza. Agora eram pequenas
aranhas vermelhas que se desprendiam do alto sobre a canoa.
E
eram milhares de teias de aranha que se abriam por toda a
parte, a rasar a água entre os ramos mais baixos. A cada
embate da canoa, as bordas enchiam-se daqueles fungões
grisalhos enredados de vespas secas, restos de élitros,
antenas, carapaças meio chupadas. Os homens estavam sujos,
ensebados; as camisas ensombrecidas de dentro pelo suor,
tinham recebido escarros de barro, resinas, seivas; as caras
já tinham a cor da cera, de mau assoalhamento, dos
semblantes
da selva. Quando desembocámos num pequeno tanque interno,
que
morria ao pé de um banco amarelo, senti-me como preso,
apertado por todos os lados. O Adiantado chamou-me a pouca
distância de onde tinham atracado as canoas, para fazer-me
olhar uma coisa horrenda: um caimão morto, de carnes
putrefactas, debaixo de cujo couro se metiam, em enxames, as
moscas verdes. Era tal o zumbido que ressoava dentro da
carniça que, por momentos, atingia uma afinação de queixa
demasiado adocicada, como se alguém - uma mulher chorosa,
talvez - gemesse pelas fauces do sáurio. Fugi do atroz,
procurando o calor da minha amante. Tinha medo. As
sombras já se fechavam num crepúsculo prematuro e, mal
conseguimos montar um acampamento improvisado, caiu a noite.
Cada um se isolou no espaço em cunha da sua rede. E o coaxar
de
enormes rãs invadiu a selva. As trevas estremeciam com
sustos
e deslizamentos. Alguém, não se sabia onde, começou a
experimentar a boca de um oboé. Um cobre grotesco rompeu a
rir
no fundo de um ribeiro. Mil flautas de duas notas, afinadas
diferentemente, responderam-me através das ramagens. E foram
pentes de metal, serras que mordiam madeiros, linguetas de
(*) Esloras - Madeiros que se colocam endentados nos vaus
com o fim de reforçar o assento das cobertas. (N. do T.)

134

harmónicas tremulantes e rasca-rasca de grilos, que pareciam


cobrir a terra
inteira. Houve como que gritos de pavão real, burburinhos
errantes, silvos que subiam e desciam, coisas que passavam
debaixo de nós, pegadas no solo; coisas que mergulhavam com
ímpeto, martelavam ,
rangiam, uivavam como crianças, relinchavam no alto das
árvores , agitavam chocalhos no fundo de uma cova. Estava
aturdido, assustado, febril. As fadigas da jornada, a espera
nervosa, tinham-me extenuado. Quando o sono venceu o receio
pelas ameaças que me rodeavam, estava prestes a capitular -
de
clamar o meu medo -, para ouvir vozes de homens.

XX

(Terça féira, 19 de Junho)

Quando houve luz outra vez, compreendi que passara a


Primeira Prova. As sombras levaram os receios da véspera. Ao
lavar o peito e a cara num remanso do ribeiro, junto a
Rosario
que limpava com areia os utensílios do meu
pequeno-almoço, pareceu-me que compartilhava neste momento,
com os milhares de homens que viviam nas inexploradas
cabeceiras dos Grandes Rios, a primordial sensação de
beleza,
de beleza fisicamente percebida, gozada igualmente pelo
corpo
e pelo entendimento, que nasce de cada renascer de Sol -
beleza cuja consciência, em tais paragens, se transforma
para
o homem em orgulho de proclamar-se dono do mundo, supremo
usufrutuário da criação. O amanhecer da selva é muito
menos formoso, se pensamos em cores, do que o crepúsculo.
Sobre um solo que exala uma humidade milenária, sobre a água
que divide as terras, sobre uma vegetação que se envolve em
neblinas, o amanhecer insinua-se com grisalhas de chuva,
numa
claridade indecisa que nunca parece augurar um dia
despejado.
Há que esperar várias horas antes que o Sol, já alto,
libertado pelas copas, possa lançar um raio de luz aberta
sobre os infinitos arvoredos. E,
no entanto, o amanhecer da selva renova sempre o júbilo
entranhado, atávico, levado em veias próprias, de ancestros
que, durante milénios, viram em cada madrugada o término dos
seus espantos nocturnos, o retrocesso dos rugidos, o
desaparecimento das sombras, a confusão dos espectros, o
deslindar do malévolo. Com o início da jornada, sinto como
uma
necessidade desculpar-me diante de Rosario pelas poucas
oportunidades de estar sós que esta fase

135

da viagem nos oferece. Ela põe-se a rir,


cantarolando qualquer coisa que deve ser um romancilho: Eu
sou
a recém-casada - que chorava sem parar - de ver-me tão mal
casada sem o poder remediar. E ainda soavam as suas coplas
maliciosas, cheias de alusões à continência que a viagem nos
impunha,
quando, já a navegar outra vez, desembocámos num ribeiro
estreito que se internava no que o Adiantado me anunciou
como
a selva verdadeira. Como a água, saída do seu leito,
inundava
imensas porções de terra, certas árvores retorcidas, de
lianas
mergulhadas no lodo, tinham qualquer coisa de naves
ancoradas,
enquanto outros troncos, de um vermelho dourado, se
alargavam
em espelhismos de profundidade, e os de antiquíssimas selvas
mortas, esbranquiçadas, mais mármore do que madeira,
emergiam
como
os obeliscos cimeiros de uma cidade abismada. Atrás dos
sujeitos identificáveis, das palmeiras, dos bambus, dos
anónimos sarmentos marginais, era a vegetação fértil,
entretecida, trabalhada em intenções ocultas nos cipós, nas
matas, nas trepadeiras, nas fateixas, nos mata-paus que, por
vezes, o couro escuro de uma anta rompia aos empurrões, em
busca de um ribeiro onde refrescar a tromba. Centenas de
garças, empinadas nas suas patas, mergulhando o pescoço
entre
as asas, esticavam o bico à beira das lagoas, quando um
garção
mal-humorado, caído do céu, não
encurvava o costado. Imediatamente, uma ramalhada empinada
azulava-se no alvoroço de um voo grasnador de papagaios, que
lançavam pinceladas violeta sobre a acre sombra em baixo,
onde
as espécies estavam empenhadas numa milenária luta para se
treparem umas sobre as outras, ascender, sair para a luz,
alcançar o Sol. O desmedido estiramento de certas
palmeiras esquálidas, o despontar de certas madeiras que só
conseguiam assomar uma
folha, em cima, depois de ter sorvido a seiva de vários
troncos, eram fases diversas de uma batalha vertical de cada
instante, dominada serenamente pelas árvores maiores que
jamais vira. Árvores que deixavam muito em baixo, como
pessoas
rastejantes, as plantas mais espigadas pelas
penumbras, e se abriam a céu aberto, por cima de toda a
luta,
armando com os seus ramos boscagens aéreos, irreais, como
que
suspensos no espaço, de onde pendiam musgos transparentes,
semelhantes a encaixes lacerados. Por vezes, depois de
vários
séculos de vida, uma dessas árvores perdia as folhas, secava
os seus líquenes, apagava as suas orquídeas. As madeiras
encaneciam-na, tomando uma consistência de granito rosa, e
ficava erguida, com a sua ramagem monumental em silenciosa
nudez, revelando as leis de uma arquitectura quase mineral,
que tinha simetrias, ritmos, equilíbrios de cristalizações.

136

Malhada pelas chuvas, imóvel nas tempestades, permanecia


ali,
durante mais alguns séculos, até que, um belo dia, o raio
acabava por a derrubar sobre o inconsistente mundo de baixo.
Então, o colosso, nunca saído da pré-história, acabava
por se desmoronar, uivando por todas as lascas, lançando
paus
aos quatro ventos, rachado em dois, cheio de carvão e de
fogo
celestial, para melhor romper e queimar tudo o que estava a
seus pés. Cem árvores pereciam na sua queda, esmagadas,
derrubadas, desgalhadas, esticando lianas, que, ao rebentar,
disparavam para o céu como cordas de arcos. E acabava por
jazer no húmus milenário da selva, tirando da terra umas
raízes tão intrincadas e longas que dois ribeiros, sempre
alheios, se viam unidos, imediatamente, pela extracção
daqueles arados profundos que saíam das suas trevas
destroçando ninhos de térmitas, abrindo crateras aos que
acodiam a correr, com a língua melosa e as fateixas de fora,
os lambedores de formigas.
O que mais me espantava era o mimetismo interminável,
infindável da natureza virgem. Aqui tudo parecia outra
coisa,
criando-se um mundo de aparências que ocultava a realidade,
pondo muitas verdades em interdição. Os caimões que
espreitavam nos fundos baixos da selva alagada, imóveis, com
as fauces em espera, pareciam madeiros apodrecidos, vestidos
de roseiras bravas; os cipós pareciam répteis e as
serpentes pareciam lianas, quando as suas peles não tinham
nervuras de madeiras preciosas, olhos de asa de falena,
escamas de ananás ou anéis de coral; as plantas aquáticas
apertavam-se num tapete espesso, escondendo a água que lhes
corria por baixo, fingindo-se vegetação de terra muito fina;
as cascas caídas ganhavam depressa uma consistência de
loureiro em salmoura, e os cogumelos eram como carreiros de
cobre, como polvilhados de enxofre, junto à falsidade de um
camelão demasiado ramo, demasiado lápis-lazúli, demasiado
chumbo estriado de um amarelo intenso, simulação, agora, de
salpicos de sol caídos através de folhas que nunca deixavam
passar o sol inteiro. A selva era o mundo da mentira, da
armadilha e do falso semblante; ali tudo era disfarce,
estratagema, jogo de aparências, metamorfoses. Mundo do
lagarto-cogombro, de castanha-ouriço, da crisália-centopeia,
da larva com carne de cenoura e do peixe eléctrico que
fulminava desde a quietude das linhaças. Ao passar perto das
margens, as penumbras conseguidas por vários tectos vegetais
lançavam baforadas de frescura até às canoas. Bastava
deter-se
uns segundos para que este alívio se transformasse num
intolerável fervor de insectos. Por toda a parte parecia
haver
flores; mas as cores das flores eram aldrabadas, quase
sempre,
pela vida de folhas em diferente grau de madureza ou
decrepitude.

137

Parecia haver frutos; mas a redondez, a madureza das


frutas, eram enganadas por bolbos suados, veludos hediondos,
vulvas de plantas insectívoras que eram como pensamentos
orvalhados de calda de açúcar espessa, cactáceos
sarapintados
que erguiam, a um
palmo do chão, uma tulipa de esperma azafranado. E quando
aparecia uma orquídea, lá muito alto, mais acima dos bambus,
mais acima dos iopos, fazia-se qualquer coisa de tão irreal,
tão inalcançável, como o mais vertiginoso edelweiss
alpestre.
Mas também estavam as árvores que não eram verdes, e
balizavam
as margens de maciços de amaranto ou brilhavam com amarelos
de
sarça ardente. Até o céu mentia por vezes, quando,
invertendo
a sua altura no azougue das lagoas, mergulhava em
profundidades celestemente abissais. Só as aves estavam em
hora de verdade, dentro da clara identidade das suas
plumagens. Não mentiam as garças quando inventavam a
interrogação com o arco do pescoço, nem quando, ao grito do
garção vigilante, levantavam o seu
espanto de plumas brancas. Não mentia o martinho-pescador de
barrete encarnado, tão frágil e pequeno naquele universo
terrível, que apenas a sua presença, junto à prodigiosa
vibração do colibri, era coisa de milagre. Tão-pouco
mentiam,
no eterno baralhar-se das aparências e dos simulacros,
naquela
barroca proliferação de lianas, os alegres macacos araguatos
que, de repente, escandalizavam as ramagens com as
travessuras, indecências e caretas de grandes meninos de
cinco
mãos. E acima de tudo, como se o
assombroso da parte de baixo fosse pouco, eu descobria um
novo
mundo de nuvens: aquelas nuvens tão diferentes, tão
próprias,
tão esquecidas dos homens, que no entanto se amassam sobre a
humidade das imensas selvas, ricas em água como os primeiros
capítulos do Génese; nuvens feitas como de um mármore
desgastado, direitas na base, e que se desenhavam até
grandes
alturas, imóveis, monumentais, com formas que eram as da
matéria em que começa a esboçar-se a forma de uma ânfora
quando o torno do oleiro girou um pouco. Aquelas nuvens,
muito
raramente enlaçadas
entre si, estavam paradas no espaço, como que edificadas no
céu, semelhantes a si mesmas, desde os tempos imemoriais em
que tinham presidido à separação das águas e ao mistério das
primeiras confluências.

138

XXI
(Tarde de terça feira)

Aproveitando-se de nos termos detido, ao meio-dia, numa


enseada com arvoredo, para dar um pouco de descanso aos
remadores e desentorpecer as pernas, Yannes afastou-se de
nós
com a intenção de reconhecer o leito de uma torrente que,
segundo ele, deve ter diamantes. Mas já há duas horas que o
chamamos aos
gritos, sem ter outras respostas para além do eco das nossas
vozes nas voltas do leito lamacento. Na crescente
inquietação
da espera, frei Pedro açoita aqueles que se deixam cegar
pela
febre das pedras e do metal precioso. Oiço as suas palavras
com certo mal-estar, pensado que o Adiantado - a quem se
atribui o achado de uma jazida fabulosa - acabará por ficar
ofendido. Mas o homem sorri sob as suas sobrancelhas
emaranhadas, e pergunta dissimuladamente ao missionário
porque
brilham tanto o ouro e a pedraria nas custódias de Roma.
"Porque é justo" - respondeu frei Pedro "que as mais
formosas matérias da Criação sirvam para honrar quem as
criou". A seguir, para me demonstrar que se pede pompas
para o
altar, exige humildade ao oficiante, investe com dureza
contra
os párocos mundanos, a quem classifica de novos vendedores
de
indulgências, ruminantes de nunciaturas e tenores de
púlpito.
"A eterna rivalidade entre a infantaria e a cavalaria",
exclama o Adiantado rindo-se. É evidente - penso eu - que
certo clero urbano deve parecer singularmente ocioso, para
não
dizer tarado, a um ermitão com quarenta anos de apostolado
na
selva; e querendo agradar-lhe dou comigo a apoiar o que diz
com exemplos de sacerdotes indignos e mercadores do templo.
Mas frei Pedro corta-me a palavra com tom abrupto: "Para
falar
dos maus, há que saber dos outros". E começa a contar-me
sobre gente desconhecida para mim; de padres despedaçados
pelos índios do maranón (*); de um beato Diego barbaramente
torturado pelo último Inca; de um Juan de Lizardi,
trespassado
pelas setas paraguaias, e de quarenta frades degolados por
um
pirata hereje, a quem a Doutora de Ávila, em visão estática,
vira chegar ao céu, com passo pesado, assustando os anjos
com
as suas terríveis caras de santos. Refere-se a tudo isto
como
se tivesse acontecido ontem; como se tivesse o poder de
andar
pelo tempo para trás e para a frente. "Talvez

(*) Maranón - Designa uma árvore da América do Sul; o


tema, no texto, designa a selva onde existem muitas árvores
da
espécie. (N. do T.)

139

porque a sua missão se cumpra numa paisagem sem tempo",


digo a
mim mesmo. Mas agora, frei Pedro acautela-se porque o Sol se
oculta atrás das árvores, e interrompe a sua hagiografia
para
chamar Yannes, de novo, num grito cominatório que não
exclui o
epíteto dos arieiros quando procuram um animal fugido. E
quando o grego reaparece, são tais as bastonadas que o frade
dá a um banco que, de imediato, vemo-nos encolhidos nas
canoas. Ao reiniciar-se a navegação, compreendo a causa da
inquietação de frei Pedro pela demora do mineiro. Agora o
ribeiro estreita-se cada vez mais entre ribas inatingíveis
que
são como alcantilados negros, anunciadores de paisagens
diferentes. E, imediatamente, a corrente lança-nos a toda a
largura de um rio amarelo que desce, atormentado de
torrentes
e redemoinhos, para o Rio Mayor, em cujo costado ficará
preso,
levando-lhe o caudal de torrentes de toda uma vertente das
Grandes Mesetas. A força da água aumenta hoje,
perigosamente,
com o peso de chuvas caídas em qualquer parte. Fazendo de
guia, frei Pedro, com um pé fincado em cada borda, vai
dirigindo as canoas com o bastão. Mas a resistência é
tremenda
e a noite cai-nos em cima sem que tenhamos saído do mais
difícil da luta. De súbito, há uma turbamulta no céu: desce
um
vento frio que levanta ondas tremendas, as árvores soltam
torvelinhos de folhas mortas, aparece uma onda de ar, e,
sobre
a selva rugidora, estala a tormenta. Tudo se ilumina em
verde.
O raio martela com tal frequência que ainda uma faísca não
deixou de iluminar o horizonte quando já outra se desprende
em
frente dela, abrindo-se em ramagens que mergulham atrás dos
montes aparecidos de novo. A pestanejante claridade que vem
de
trás, de frente, dos lados, por vezes deslindada pela
tenebrosa silhueta de ilhas cujos emaranhados de árvores se
erguem sobre as águas buliçosas -aquela luz de cataclismo,
de
chuva de aerólitos, produz-me um espanto repentino, ao
mostrar-me a proximidade dos obstáculos, a fúria das
correntes, a pluralidade dos perigos. Não há salvação
possível
para quem caia no tumulto que golpeia,
levanta, ciranda, a nossa embarcação. Perdida toda a razão,
incapaz de sobrepor-me ao medo, abraço Rosario, procurando o
calor do seu corpo, já não com gesto de amante, mas de
menino
que se pendura ao pescoço da mãe, e deixo-me ficar no chão
da
canoa, metendo o rosto no seu cabelo, para não ver o que
acontece e escapar, nela, ao furor que nos circunda. Mas é
difícil esquecê-lo, com o meio palmo de água morna que
começa
a salpicar, para
dentro da própria canoa, de proa a proa. Mal dominando o
equilíbrio das embarcações, vamos de caudal em caudal,
picando
de proa nos pailones, subindo a penhas redondas, saltando
para

140

a frente, obliquando-nos de modo vertiginoso para agarrar um


rápido de meio lado, sempre à beira do desastre, rodeados de
espuma, sobre estas madeiras torturadas que chiam por toda a
quilha. E para cúmulo começa a chover. O meu horror aumenta,
agora, com a visão do capuchinho, de barbas desenhadas a
negro
sobre os relâmpagos, que já não dirige a embarcação, mas
reza.
Com os dentes apertados, protegendo a minha cabeça como se
protege o crânio do filho recém-nascido num momento
perigoso,
Rosario parece ser de uma surpreendente integridade. Deitado
de bruços no chão, o Adiantado agarra os nossos índios pelos
seus cinturões, para impedir que um embate os atire à água e
possam continuar a defender-nos com os seus termos. A
terrível
luta continua por algum tempo, que a minha angústia faz
interminável. Compreendo que o perigo passou quando frei
Pedro
volta a
colocar-se na proa, fincando os pés nas bordas. A tormenta
leva os seus últimos raios, tão depressa como os trouxe,
fechando a tremebunda sinfonia das suas iras com o acorde de
um trovão muito rodeado e prolongado, e a noite enche-se de
rãs que cantam o seu júbilo em todas as margens.
Desenrugando
o lombo, o rio continua o seu caminho até ao Oceano remoto.
Esgotado pela tensão nervosa, adormeço sobre o peito de
Rosario. Mas a seguir a canoa descansa num varadouro de
areia,
e ao saber-me novamente sobre terra firme, a que salta frei
Pedro com um "Graças a Deus", compreendo que passei a
Segunda
Prova.

141

XXII

(Quarta feira, 20 de Junho)

Depois de um sono de muitas horas, agarrei num cântaro e


bebi muita da sua água. Ao deixá-lo de lado, ao ver que
ficava
ao nível da minha cara, compreendi, ainda mal desperto, que
me
encontrava no solo, deitado sobre uma esteira de palha muito
fina. Cheirava a fumo de lenha. Havia um tecto em cima de
mim.
Recordei então o desembarque numa enseada, a caminhada até à
aldeia dos índios, a sensação de esgotamento e de resfriado
que levara o Adiantado a fazer-me engolir vários sorvos de
uma
aguardente tremendamente forte - daquela que aqui chamam
estômago de fogo -, que só provara como remédio. Atrás de

141
mim, amassando o casabe (*), havia várias índias com o peito
nu, com o sexo apenas escondido por uma tanga branca,
amarrada
à
cintura com um cordão passado por entre as nádegas. Das
paredes de
folhas de palmeira, pendiam arcos e flechas de pesca e de
caça, zarabatanas, aljavas com dardos envenenados,
recipientes
de curare, e umas paletas em forma de espelho de mão que
serviam - saberia depois - para a maceração de uma semente
dispensadora de embriaguez, cujos pós se aspiravam por
canudos
feitos com esternos de pássaros. Em frente à entrada, entre
ramos ensarilhados, três grandes peixes vermelho-violeta
tostavam sobre um leito de brasas. As nossas redes, postas a
secar, recordaram-me porque dormíamos no chão. Com o corpo
um
pouco dorido saí da churuata, olhei, e parei estupefacto,
com
a boca cheia de exclamações que nada podiam livrar-me do meu
assombro. Além, atrás das
árvores gigantescas, erguiam-se enormes volumes de pedras
negras, enormes, maciças, com flancos verticais, como
tiradas
com prumo, que eram presença e verdade de monumentos
fabulosos. A minha memória tinha de ir ao mundo do Bosco, às
Babéis imaginárias dos pintores do fantástico, dos mais
alucinados ilustradores de tentações de santos, para
encontrar
qualquer coisa de semelhante ao que estava a contemplar. E
mesmo quando encontrava uma analogia, tinha de renunciar a
ela, por uma questão de proporções. Isto que agora olhava
era
qualquer coisa como uma cidade titânica - cidade de
edificações múltiplas e espaçadas -, com escadarias
ciclópicas, mausoléus metidos nas nuvens, esplanadas imensas
dominadas por estranhas fortalezas de obsidiana, sem ameias
nem bombardeiras, que pareciam estar ali para defender a
entrada de algum reino proibido ao homem. E além, sobre
aquele
fundo de cirros, afirmava-se a Capital das Formas: uma
incrível catedral gótica, com uma milha de altura, com as
duas
torres, a nave, a ábside e notaréus, erguida sobre um
penhasco
cónico feito de uma matéria estranha, com sombrias irisações
de hulha. Os
campanários eram varridos por névoas espessas que se
atorvelinhavam ao ser rompidas pelos gumes do granito. Nas
proporções daquelas Formas rematadas por vertiginosos
terraços, flanqueados por tubos de órgão, havia algo tão
fora
do real - morada de deuses, tronos e escadarias destinados à
celebração de algum Juízo Final - que o espírito, pasmado,
não
procurava a menor interpretação daquela desconcertante
arquitectura telúrica, aceitando sem raciocinar a sua beleza
vertical e inexorável. O Sol, agora, punha reflexos de
mercúrio sobre o impossível templo mais pendurado

(*) asabe - Torta de farinha da raiz de mandioca. (N. do T)


142

do céu do que preso à terra. Em planos de evanescências, que


se definiam pelo maior ou menor escurecimento dos seus
valores, divisavam-se outras Formas, da mesma
família geológica, de cujos extremos se desprendiam
cascatas de cem rebotes, que acabavam por se quebrar em
chuva antes de chegar às copas das árvores. Quase
angustiado por tal grandeza, resignei-me, ao fim de um
momento, por baixar os olhos ao nível da minha estatura.
Várias choças marginavam um remanso de águas negras. Uma
criança
aproximou-se de mim, mal parada sobre as suas pernas
inseguras, mostrando-me uma pequena pulseira de peónias.
Ali, onde corriam grandes aves negras de bico alaranjado,
apareceram vários índios, trazendo pescado enfiado num
pau pelas guelras. Mais longe, com os filhos pendurados nos
seios, algumas mães teciam. Ao pé de uma árvore grande,
Rosario, rodeada de velhas que
pilavam tubérculos leitosos, lavava roupas minhas. Pela sua
maneira de ajoelhar-se junto à água, com o cabelo solto e o
osso de esfregar na mão, adquiria uma silhueta ancestral
que a
punha muito mais próximo das mulheres daqui do que das que
contribuíram com o seu sangue, em gerações passadas, para
aclarar a sua pele. Compreendi agora porque é que a que era
agora minha
amante me dera uma tal impressão de raça, no dia em que a
vira
regressar da morte para a beira de um caminho alto. O seu
mistério era emanação de um mundo remoto, cuja luz e cujo
tempo não me eram conhecidos. Em torno de mim, cada um
estava
entregue às ocupações que Lhe eram próprias, num concerto
aprazível de
tarefas que eram as de uma vida submetida aos ritmos
primordiais. Aqueles índios que eu sempre vira através dos
relatos mais ou menos fantasiosos, considerando-os como
seres
situados à margem da existência real do homem, apareciam-me,
no seu âmbito ,
no seu meio, absolutamente donos da sua cultura. Nada era
mais
alheio à sua realidade do que o absurdo conceito de
selvagem.
A evidência de que desconheciam coisas que eram para mim
essenciais e necessárias, estava muito longe de vesti-los de
primitivismo. A soberana precisão com que aquele frechava
peixes no remanso , a prestreza de coreógrafo com que o
outro metia a zarabatana à boca, a técnica conjunta daquele
grupo que recobria com fibras o madeirame de uma casa comum,
revelavam-me a presença de um ser humano chegado a mestre na
totalidade dos ofícios
propiciados pelo teatro da sua existência. Sob a autoridade
de
um velho tão enrugado que já não lhe sobrava carne lisa, os
moços
exercitavam-se com disciplina severa no manejo do arco. Os
varões movimentavam potentes dorsais esculpidos pelos remos;
as mulheres tinham ventres para a maternidade, com coxas

143

fortes que demarcavam uma púbis larga e levantada. Havia


perfis de uma singular nobreza, devido aos narizes
aquilinos e
à espessura das cabeleiras. No restante, o desenvolvimento
dos
corpos
estava feito em função da utilidade. Os dedos, instrumentos
para agarrar, eram fortes e ásperos; as pernas, instrumentos
para andar, tinham sólidos tornozelos. Cada um levava o
esqueleto dentro envolto em carnes eficientes. Pelo menos,
aqui não havia ofícios inúteis, como os que desempenhei
durante tantos anos. Pensando nisto dirigi-me para onde
estava
Rosario, quando o Adiantado apareceu à porta de uma cabana,
chamando-me com alegres exclamações. Acabava
de dar com o que eu procurava nesta viagem: com o objecto e
o
término da minha missão. Ali, no chão, junto a uma espécie
de
fogareiro portátil, estavam os instrumentos musicais cuja
colecção me fora encomendada no princípio do mês. Com a
emoção
do
peregrino que alcança a relíquia pela qual tivesse
percorrido
a pé vinte países estranhos, pus a mão sobre o cilindro
ornamentado ao fogo, com punho em forma de cruz, que
assinalava a passagem do bastão de ritmo ao mais primitivo
dos
tambores. Vi logo a maraca ritual, atravessada por um ramo
emplumado, as cornetas de corno de veado, os chocalhos de
adorno e a trombeta de barro para chamar os pescadores
extraviados nos pântanos. Ali estavam os jogos de flautas,
na
sua condição primordial de antepassados do órgão. E ali
estava, sobretudo, dotada de certa gravidade desagradável
que
reveste tudo aquilo que de perto toca a morte, a jarra de
som
rouco e sinistro, já com qualquer coisa de ressonância de
sepultura, com as duas canas encaixadas nas costas, tal como
estava representada no livro que a descrevera pela primeira
vez. Ao concluir as permutas que me puseram em poder daquele
arsenal de coisas criadas pelo mais nobre instinto do homem,
pareceu-me que entrava num novo ciclo da minha existência. A
missão estava cumprida. Exactamente em quinze dias
alcançara o
meu objectivo de forma realmente admirável e, orgulhoso
disso,
apalpava deleitosamente os troféus do dever cumprido. O
resgate da jarra sonora - peça magnífica -, era o primeiro
acto excepcional, memorável, que se inscrevera até agora na
minha existência. O objecto crescia na minha própria
estimação, ligado ao meu destino, abolindo, naquele
instante,
a distância que me separava de quem me confiara aquela
tarefa, e talvez pensasse em mim agora, sopesando algum
instrumento primitivo com um semblante parecido com o meu.
Permaneci em silêncio durante algum tempo que o
contentamento interior libertou de qualquer medida. Quando
regressei à ideia que decorria, com desprezo de dormente que
abre os olhos, pareceu-me que qualquer coisa, dentro de
144

mim amadurecera enormemente, manifestando-se sob a forma


singular de um grande contraponto de Palestrina, que
ressoava na minha cabeça com a presente majestade de
todas as suas vozes.
Ao sair da cabana em busca de lianas para atar, observei
que um alvoroço pouco habitual perturbara o ritmo das
tarefas da aldeia. Frei Pedro movimentava-se com
ligeireza de dançarino, entrando e saindo da churuata,
seguido de Rosario, no meio de um círculo de índias que
cantavam. Em frente da entrada dispusera, sobre uma mesa
de ramos entretecidos, um mantel com desenhos, muito
rasgados, remendado com fios de diferentes grossuras, entre
duas vasilhas transbordantes de flores amarelas. A meio
colocou a cruz de madeira negra que lhe pendia ao
pescoço. Depois, de uma maleta de couro escuro, muito
coçado, que levava sempre consigo, tirou os ornamentos e
objectos litúrgicos -alguns muito estragados -, mordidos por
ferrugens negras, que esfregava com a saliência das mangas,
antes de dispô-los sobre o altar. Eu via com crescente
surpresa como o Cálice e a Hóstia se desenhavam sobre a
Pedra
de Ara; como o Purificador se abria sobre o Cálice, e o
Corporal, se situava entre as duas luminárias rituais. Tudo
aquilo, em tal lugar, parecia-me ao mesmo tempo absurdo e
surpreendente. Sabendo que o Adiantado era de espírito
forte,
interroguei-o com o olhar. Como se se tratasse de uma coisa
diferente, que pouco tivesse a ver com a religião, falou-me
de
uma missa prometida em acção de graças durante a tempestade
da
noite anterior. Aproximou-se do altar diante do qual se
encontrava Rosario. Yannes, que devia ser homem de ícones,
passou a meu lado resmungando qualquer coisa acerca de
Cristo
ser um só. Os índios, a certa distância, olhavam. O Chefe da
Aldeia, a meio caminho ,
observava numa atitude respeitosa - todo enrugado no meio
dos
seus colares de dentes. As mães faziam calar os gritos dos
seus filhos. Frei Pedro voltou-se para mim: "Filho: estes
índios recusam o baptismo; não queria que te vissem
indiferente. Se não o quiseres fazer por Deus, fá-lo por
mim".
E apelando à mais universal das dúvidas, acrescentou, com
acento mais áspero: "Lembra-te de que estavas nas mesmas
barcas e também tiveste medo". Houve um longo silêncio.
Depois: In nomine Patris, et Filiae et Spiritus Sancti.
Amén.
Uma dolorosa secura apareceu na minha garganta. Aquelas
palavras imutáveis, seculares, ganhavam uma portentosa
solenidade no meio da selva -como saídas dos subterrâneos da
cristandade primeira, das irmandades do começo -,
encontrando
outra vez, sob estas árvores jamais podadas, uma função
heróica anterior aos hinos entoados nas naves das catedrais
triunfantes, anterior aos campanários erguidos à luz do
dia.
145

Sanctus, Sanctus, Sanctus. Dontinus Deus Sabaoth... Os


troncos
eram as altas colunas que faziam sombra aqui. Sobre as
nossas
cabeças
pesavam folhagens cheias de perigos. E à nossa volta estavam
os gentios os adoradores de ídolos, contemplando o mistério
desde o seu nártex de lianas. Ontem, eu divertira-me,
fingindo
que éramos Conquistadores em busca de Manoa. Mas de súbito,
deslumbra-me a revelação de que nenhuma diferença existe
entre
esta missa e as missas que os Conquistadores do El Dorado
ouviram em semelhantes
lonjuras. O tempo retrocedeu quatro séculos. Esta é uma
missa
de Descobridores, recém-chegados a limites sem nome, que
plantam os sinais da sua migração solar para o Oeste,
perante
o assombro dos Homens de Milho. Aqueles dois - o Adiantado e
Yannesque estão ajoelhados ambos ao lado do altar, fracos
enegrecidos, um com cara de labrego estremenho, outro com
perfil de algebrista recém-assentado nos Livros de la Casa
de
la Contratación, são soldados da Conquista, feitos de carne
magra e de bebidas rançosas, curtidos pelas febres, mordidos
por alimárias, orando com estampa de doadores junto ao
morrião
deixado entre as ervas de seivas acres. Miserere nostri
Domine
miserere nostri. Fiat misericordia - salmoniza o capelão da
Entrada, com acento que detém o tempo. Talvez decorresse o
ano
de 1540. As nossas naves foram açoitadas por uma tempestade
e
o monge conta-nos agora, ao
estilo da sagrada escritura, como foi feito no mar tão
grande
movimento que o barco se cobria de ondas; mas Ele dormia e
chegando-lhe os seus discípulos despertaram-no, dizendo:
Senhor, salva-nos que morremos; e Ele disse-lhes: Por que
temeis, homens de pouca fé? e então, levantando-se,
repreendeu os ventos e o mar e foi uma grande bonanza.
Talvez
decorra o ano de 1540. Mas não é certo. Os anos ficam,
diluem-se, esfumam-se, em vertiginoso retrocesso do tempo.
Ainda não entrámos no século XVI. Vivemos muito antes.
Estamos
na Idade Média. Porque não é o homem
renascentista quem realiza o Descobrimento e a Conquista,
mas
o homem medieval. Os alistados na magna empresa não saem do
Velho Mundo por portas de colunas tomadas ao Palladio, mas
passando sob o arco românico, cuja memória levaram consigo
ao
edificar os seus primeiros templos do outro lado do Mar
Oceano, sobre o sangrante evasamento da coluna dos teocáli.
A
cruz românica, vestida de tenalhas, pregos e lanças, foi a
escolhida para lutar com os que usavam utensílios
semelhantes,
de holocausto, nos seus sacrifícios. Medievais são os jogos
de
diabos, passeios de tarascas, danças de Pares de França,
romances de Carlos Magno, que tão
fielmente perduram em tantas cidades que atravessámos
recentemente. E cuido agora desta verdade assombrosa: desde
a

146

tarde do Corpus em Santiago de los Aguinaldos, vivo na


prematura Idade Média. Pode pertencer a outro calendário
um
objecto, uma roupa, um remédio. Mas o ritmo de vida, os
modos de navegação, a
candeia e a panela, o alargamento das horas, as funções
transcendentais do Cavalo e do Cão, o modo de reverenciar os
Santos, são medievais -medievais como as prostitutas que
viajam de paróquia em paróquia em dias de feira, como os
patriarcas enérgicos, orgulhosos em reconhecer quarenta
filhos de diferentes mães que Lhes pedem a bênção quando
passam. Compreendo agora que convivi com os burgueses de bom
trago, sempre prontos a provar a carne de alguma moça de
serviço, cuja vida
jocunda me fizera sonhar tantas vezes nos museus;
trinchei os leitõezinhos de tetas chamuscadas, das suas
mesas,
e dividi a desmedida dedicação pelas especiarias que os
fizeram procurar os novos caminhos das Índias. Em cem
quadros
conhecera as suas casas de toscos tijolos vermelhos, as suas
cozinhas enormes, os seus portões
cravejados. Conhecia aqueles hábitos de levar o dinheiro
preso
no cinturão, de dançar danças de parelha solta, de preferir
os
instrumentos de plectro, de pôr os galos a lutar, de armar
grandes bebedeiras em volta de um assado. Conhecia os cegos
e
os inúteis das suas ruas ,
os emplastros, solimões e bálsamos curandeiros com que
aliviavam as suas dores. Mas conhecia-os através do verniz
das
pinacotecas, como testemunho de um passado morto, sem
recuperação possível. E aqui, eis que esse passado, de
súbito, se torna presente. Apalpo-o e aspiro-o. Vislumbro
agora a estupefaciente possibilidade de viajar no tempo,
como
outros viajam no espaço... Ite misa est, Benedicamos
Domino. Deo Gratias. Concluíra a missa, e com ela o
Medievo. Mas as datas continuavam a perder algarismos. Em
fuga
desaforada, os anos esvaziavam-se, destranscorriam,
apagavam-se, preenchendo calendários, devolvendo as luas,
passando dos séculos de três números ao século dos números.
O
Graal perdeu o seu encanto, caíram os cravos da cruz, os
mercadores voltaram ao templo, apagou-se a estrela da
Natividade e foi o Ano Zero, em que regressou o Anjo da
Anunciação. E voltaram a
crescer as datas do outro lado do Ano Zero - datas de
dois, de três, de cinco números - até que alcançámos o tempo
em que o
homem, cansado de errar sobre a terra, inventou a
agricultura
ao fixar as suas primeiras aldeias nas margens dos rios, e,
necessitado de mais música, passou do bastão de ritmo ao
tambor que era um cilindro de madeira ornamentada ao fogo,
inventou o órgão ao soprar uma cana oca, e chorou aos seus
mortos fazendo bramir uma ânfora de barro. Estamos na Era
Paleolítica. Quem dita leis aqui, quem tem direito de vida e
de morte sobre nós, quem tem o segredo

147

dos alimentos e das peçonhas, quem inventa as


técnicas, são homens que usam a faca de pedra e rascador de
pedra, o anzol de espinha e o dardo de osso. Somos intrusos,
forasteiros ignorantes - metecos de pouca estadia -, numa
cidade que nasce na aurora da História. Se o fogo que agora
as
mulheres abanam se apagasse imediatamente, seríamos
incapazes
de acendê-lo outra vez apenas com a diligência das nossas
mãos.

XXIII

(Quinta Feira, 21 de Junho)

Conheço o segredo do Adiantado. Confiou-mo ontem, junto


do fogo, tratando de que Yannes não nos pudesse ouvir. Falam
das suas descobertas de ouro; julgam-no rei de antigos
escravos fugitivos, atribuem-lhe escravos; os outros
imaginam
que tem várias múlheres num gineceu selvático, e que as suas
viagens solitárias se devem à vontade de que as suas amantes
não vejam outros homens. A verdade é muito mais formosa.
Quando me foi revelada em poucas palavras, fiquei
maravilhado
pelo vislumbre de uma possibilidade nunca imaginada - estou
seguro disso - por
homem algum da minha geração. Antes de adormecer na noite do
telheiro, em que o leve balancear das nossas redes arranca
um
rangido compassado às cordas, digo a Rosario, através dos
estambres, que prosseguiremos a viagem durante alguns dias.
E
quando receio encontrar alguma canseira, algum desalento, ou
uma pueril preocupação por regressar, responde-me um
consentimento corajoso. A ela não lhe importa onde vamos,
nem
parece inquietar-se com comarcas próximas ou remotas. Para
Rosario não existe a
noção estar longe de qualquer lugar prestigioso,
particularmente propício à plenitude da existência. Para
ela,
que cruzou fronteiras sem deixar de falar o mesmo idioma e
que
nunca pensou em
atravessar o Oceano, o centro do mundo está onde o Sol, ao
meio-dia, a ilumina desde cima. É mulher de terra, e
enquanto
ande sobre terra, e coma, e tenha saúde, e tenha homem a
quem
servir de molde e de medida com a recompensa daquilo que
chama
«o gosto do corpo», cumpre um destino que mais vale não
analisar demasiado, porque é regido por «coisas grandes»
cujo mecanismo é obscuro, e que, em todo o caso, rebaixam a
capacidade de interpretação do ser humano. Por isso,
costuma
148

dizer que "é mau pensar em certas coisas". Ela chama-se a si


mesma Tua mulher ,
referindo-se a ela na terceira pessoa: "Tua mulher
estava a dormir; Tua mulher estava à tua procura"... E nessa
constante reiteração do possessivo encontro como
uma solidez de conceito, uma cabal definição de
situações, que nunca me daria a palavra esposa. Tua
mulher é afirmação anterior a qualquer contrato, a qualquer
sacramento. Tem a verdade primeira dessa matriz que os
tradutores hipócritas da Bíblia substituem por entranhas,
sobejando fragor a certos gritos proféticos. Além disso,
esta
definidora simplificação do léxico é habitual em Rosario.
Quando faz alusão a certas intimidades da sua natureza que
não
devo ignorar como amante, emprega expressões ao mesmo tempo
inequívocas e pudorosas que lembram os «costumes de
mulheres» invocados por Raquel perante Labão. Tudo o que Tua
mulher te pede esta noite é que eu a leve comigo para onde
vá.
Agarra a sua roupa e segue o varão sem fazer mais
perguntas. Sei muito pouco dela. Não compreendo se tem falta
de memória ou se não quer falar do seu passado. Não esconde
que viveu com outros homens. Mas estes marcaram fases da sua
vida cujo segredo defende com dignidade - ou talvez porque
julgue pouco delicado deixar-me supor que qualquer coisa
ocorrida antes do nosso encontro possa ter alguma
importância.
Este viver no presente, sem possuir nada, sem arrastar o
ontem, sem pensar no amanhã, resulta assombroso para mim. E,
no entanto, é evidente que aquela disposição de espírito
deve
ampliar consideravelmente as horas dos seus trânsitos de
sol a
sol. Fala de dias que foram muito longos e de dias que foram
muito curtos, como se os dias se sucedessem em tempos
diferentes -tempos de uma sinfonia telúrica que também
tivesse
os seus
andantes e adágios, entre jornadas levadas em movimento
presto. O surpreendente é que - agora que nunca me preocupa
a
hora - percebo por meu turno os diferentes valores dos
lapsos,
a dilatação de algumas manhãs, a parcimoniosa elaboração de
um
crepúsculo, atónito diante de tudo que cabe em certos tempos
desta sinfonia que estamos a ler ao contrário, da direita
para
a esquerda, contra a clave de sol, retrocedendo até aos
compassos do Génese. Porque, ao entardecer, caímos no
habitat
de uma povoação de cultura
muito anterior à dos homens com que convivemos ontem. Saímos
do Paleolítico - das indústrias paralelas às magdalenenses e
aurignacenses, que tantas vezes me fizeram parar ao lado de
certas colecções de utensílios líticos com um "não vai mais"
que me
situava no começo da noite das idades - para entrar num
âmbito
que fazia retroceder os confins da vida humana ao mais
tenebroso da noite das idades. Estes indivíduos com pernas
e
149

braços que vejo agora, tão semelhantes a mim; estas mulheres


cujos seios são úberes flácidos que pendem sobre ventres
inchados; estas
crianças que se estiram e encolhem com gestos felinos; estas
pessoas que ainda não adquiriram o pudor primordial de
ocultar
os órgãos da geração, que estão nuas sem o saber, como Adão
e
Eva antes do pecado, são homens, no entanto. Contudo não
pensaram em valer-se da energia da semente; não se
estabeleceram, nem imaginam o acto de semear; andam em
frente
de si, sem rumo, comendo corações de palmeiras, que disputam
aos macacos, lá em cima, pendurando-se dos tectos da selva.
Quando as águas em crescente os isolam durante meses nalguma
região entre rios, e pelaram as árvores como térmites,
devoram
larvas de vespa, retouçam formigas e lêndeas, escavam a
terra
e comem os vermes e as lombrigas que lhes caem debaixo das
unhas, antes de amassar a terra com os dedos e comerem a
própria terra. Mal conhecem os recursos do fogo. Os seus
cães
esquivos, com olhos de raposas e de lobos, são cães
anteriores
aos cães. Contemplo os semblantes sem sentido para mim,
compreendo a inutilidade de qualquer palavra, admitindo de
antemão que nem sequer poderíamos encontrar a coincidência
de
uma gesticulação. O Adiantado agarra-me pelo braço e faz-me
assomar a um vão lamacento, espécie de pocilga hedionda,
cheia
de ossos roídos, onde vejo erguer-se as mais horríveis
coisas
que os meus olhos conheceram: são como dois fetos vivos, com
barbas brancas, em cujas bocas de lábios grossos choraminga
qualquer coisa de semelhante ao vagido de um recém-nascido;
anões enrugados, de ventres enormes, cobertos de veias azuis
como figuras de pranchas anatómicas, que sorriem
estupidamente, com qualquer coisa de temeroso e de servil no
olhar, metendo os dedos entre dentes. Tal é o horror que me
produzem aqueles seres, que lhes volto as costas, movido, ao
mesmo tempo, pela repulsa e pelo espanto. "Cativos" -
disse-me
o Adiantado, sarcástico -, "cativos dos outros que se têm
pela
raça superior, única dona legítima da selva". Sinto uma
espécie de vertigem perante a possibilidade de outros níveis
de retrocesso, ao pensar que aquelas larvas humanas, de
cujas
virilhas pende um sexo eréctil como o meu, não sejam ainda o
último. Que possam existir, em qualquer parte, cativos
desses
cativos, erigidos por sua vez em espécie superior,
predilecta
e autorizada, que não saibam roer já nem os ossos deixados
pelos seus cães, que disputem carniça aos abutres, que
uivem o
seu cio, nas noites de cio, com uivos de animal. Não há nada
de comum entre estes entes e eu. Nada. Tão-pouco tenho que
ver
com os seus amos, os comedores de vermes, os lambedores de
terra, que me rodeiam... E, contudo, no meio das redes
apenas
150

redes - berços de lianas, de preferência -, onde dormem e


fornicam e procriam, há uma forma de barro endurecida ao
sol:
uma espécie de jarra sem asas, com dois buracos abertos de
lado a lado, na borda superior, e um umbigo desenhado na
parte
convexa com a pressão de um dedo apoiado na
matéria, quando ainda estava mole. Isto é Deus. Mais que
Deus:
é a Mãe de Deus. É a Mãe,
primordial de todas as religiões. O princípio fêmea,
genésico, matriz, situado no prólogo secreto de todas as
teogonias. A Mãe, de ventre avultado, ventre que é ao
mesmo tempo úbere, vaso e sexo, primeira figura que os
homens
modelaram quando das mãos nasceu a possibilidade do Objecto.
Tinha diante de mim a Mãe dos Deuses Meninos, dos tótens
dados
aos homens para que fossem ganhando o hábito de tratar a
divindade, preparando-se para o uso dos Deuses Maiores. A
Mãe,
«solitária, fora do espaço e mais ainda do tempo», de quem
Fausto pronunciara o único
enunciado de Mãe, por duas vezes, com terror. Vendo agora
que
as anciãs de púbis enrugado, os trepadores de árvores e as
fêmeas emprenhadas me olham, esboço um torpe gesto de
reverência em direcção à
vasilha sagrada. Estou em morada de homens e devo respeitar
os
seus Deuses... Mas de repente todos deitam a correr. Atrás
de
mim, sob uma porção de folhas penduradas de ramos que servem
de tecto, acabam de estender o corpo inchado e negro de um
caçador mordido por um crótalo. Frei Pedro disse que morreu

várias horas. No entanto, o Feiticeiro começa a sacudir uma
cabeça cheia de sementes - único instrumento que esta gente
conhece - para tratar de afugentar os mandatários da Morte.

um silêncio ritual, preparador do salmo, que leva a
expectativa dos que esperam o seu remate. E na grande selva
que se enche de espantos nocturnos, surge a palavra que já é
mais do que palavra. Uma palavra que imita a voz de quem
disse, e também a que se atribui o espírito que possui o
cadáver. Uma sai da garganta do salmista; a outra, do seu
ventre. Uma é grave e confusa como um subterrâneo fervor de
lava; a outra, de timbre médio, é colérica e desregrada.
Alternam-se. Respondem-se. Uma ralha quando a
outra geme; a do ventre faz sarcasmo quando a que surge da
garganta parece obrigar. Há como que transportes guturais,
prolongados em uivos; sílabas que, de imediato, se repetem
muitas vezes, chegando a criar um ritmo; há trinados
cortados
de súbito por quatro notas que são o embrião de uma melodia.
Mas a seguir é o vibrar da língua entre os lábios, o ronco
para dentro, o arquejo a contratempo sobre a maraca. É
qualquer coisa situada muito além da linguagem, e que, no
entanto, está ainda muito longe do canto. Qualquer coisa que
ignora a vocalização, mas já é qualquer coisa
151

mais do que a palavra. Ao prolongar um pouco, fica


horrível, pavoroso, aquele grito sobre um cadáver rodeado de
cães mudos. Agora, o Feiticeiro encara-o, vocifera, bate com
os calcanhares no chão, no mais desgarrado de um furor
imprecatório que já é a verdade profunda de toda a tragédia
-
tentativa primordial de lutar contra as potências de
aniquilamento que se atravessam nos cálculos do homem. Trato
de manter-me fora disto, de manter distâncias. E, contudo,
não
posso subtrair-me à horrenda fascinação que esta cerimónia
exerce sobre mim... Diante da teimosia da Morte, que se
nega a
soltar a sua presa, a Palavra, imediatamente, abranda e
desanima. Na boca do Feiticeiro, do órfico salmista,
estertora
e cai, convulsivamente, o Canto Fúnebre, pois isto e não
outra
coisa é um canto fúnebre -, deixando-me deslumbrar com a
revelação de que acabo de assistir ao Nascimento da Música.

XXIV

(Sábado, 23 de Junho)

Há dois dias que andamos sobre a armação do planeta,


esquecidos da História e até das obscuras migrações das eras
sem crónicas. Lentamente, subindo sempre, navegando trechos
de
torrentes entre uma cascata e outra cascata, ribeiros calmos
entre um salto e outro salto, obrigados a erguer as barcas
ao
compasso de cantigas de degrau em degrau, alcançámos o chão
em
que se erguem as
Grandes Mesetas. Lavadas das suas vestimentas - quando as
tiveram - por milénios de chuvas, são Formas de rocha nua,
reduzidas à grandiosa elementaridade de uma geometria
telúrica. São os primeiros monumentos que se ergueram sobre
a
crosta terrestre, quando ainda não havia olhos que os
pudessem
contemplar, e a sua própria vetustez, a sua descendência
ímpar, confere-lhes uma majestade esmagadora. Há os que
parecem imensos cilindros de bronze, pirâmides incompletas,
longos cristais de quartzo parados entre as águas. Há os
mais
abertos em cima do que na base, todos fendidos com alvéolos,
como gigantescas madrepérolas. Há os que têm uma misteriosa
solenidade de Portas de Qualquer Coisa - de Qualquer Coisa
desconhecida e terrível - a que devem conduzir aqueles
túneis
que se afundam nos flancos, a cem palmos sobre as nossas
cabeças. Cada meseta apresenta-se com uma morfologia
própria,
feita de arestas, de cortes bruscos, de perfis direitos ou
152

quebrados. A que não se adorna com um obelisco encarnado,


com
um farelhão de basalto, tem um terraço flanqueante,
recorta-se
em biséis, afia os seus ângulos, ou se coroa de cipós
estranhos que parecem figuras em procissão.
Imediatamente, rompendo com aquela severidade do criado, um
arabesco da pedra, uma fantasia geológica,
confabula-se com a água para dar um pouco de movimento a
este
país do inalterável. É, além, uma montanha de granito quase
vermelho, que solta sete cascatas amarelas pelas ameias de
uma
cornija cimeira. É um rio que se lança ao vazio e se
desfaz em arco-íris sobre a encosta petrificada, limitada de
árvores. As espumas de uma torrente bulem sob enormes arcos
naturais
,
aumentados por ecos atroadores, antes de se dividir e
cair numa sucessão de tanques que se derramam uns nos
outros. Adivinha-se que em cima, nos cumes, no
escalonamento das últimas planícies lunares, há lagos
vizinhos das nuvens que mantêm as suas águas virgens em
solidões nunca calcadas por uma planta humana. Há orvalho ao
amanhecer, fundos gelados, margens opalescentes e
profundidades que se enchem de noite antes do crepúsculo. Há
monólitos parados à beira dos cumes, agulhas, sinais, fendas
que respiram as suas névoas; penhascos enrugados, que são
como
coágulos de lava - meteoritos, porventura, caídos de outro
planeta. Não falamos. Sentimo-nos surpreendidos perante o
fausto das magnas obras, perante a pluralidade dos perfis, o
alcance das sombras, a imensidão das esplanadas. Vemo-nos
como
intrusos Prontos a ser lançados de um domínio vedado. O que
se
abre perante os nossos olhos é o mundo anterior ao homem. Em
baixo ,
nos grandes rios, ficaram os sáurios monstruosos, as
anacondas
,
os peixes com tetas, laulaus cabeções, os esqualos de água
doce, os gimnotos e os lepidossirenes, que ainda carregam
com
a sua figura de animais pré-históricos, legados das
dragonadas
do Terciário. Aqui, ainda que fuja qualquer coisa sob os
fetos
arborescentes ,
ainda que a abelha trabalhe nas cavernas, nada parece saber
de
seres vivos. Acabam de afastar-se as águas, a Seca
apareceu, a
erva verde está feita, e pela primeira vez, experimentam-se
os
fogaréus que hão-de senhorear no dia e na noite. Estamos no
mundo do Génese, ao fim do Quarto Dia da Criação. Se
retrocedêssemos um pouco mais, chegaríamos aonde começou a
terrível solidão do
Criador - a tristeza sideral dos tempos sem incenso e sem
louvores, quando a terra era desordenada e vazia, e as
trevas
estavam sobre a face do abismo.

153

CAPÍTULO QUINTO

Cânticos foram para mim os teus estatutos

Salmo 119

XXV

(Domingo, 24 de Junho)

O Adiantado levantou o braço, assinalando o rumo do


Ouro, e Yeannes despede-se de nós para procurar
o tesouro da terra. Solitário há-de ser o mineiro
que não quer dividir a sua descoberta; avarento no
seu comportamento, mentiroso no que diz, apagando o caminho
atrás de si como o animal que limpa as suas pegadas com a
cauda. Há um instante de emoção quando nos abraçamos com
aquele
camponês de perfil acaiano, conhecedor de Homero, que
parecia
ter-se apegado tanto a nós. Hoje, guia-o a cobiça do metal
precioso que fazia de Micenas uma cidade de ouro, e
empreende
a rota dos aventureiros. Quer dar-nos um presente, e não
tendo
mais que a roupa que leva vestida, estende-nos, a Rosario e
a
mim, o tomo de A Odisseia. Alvoroçada, Tua mulher agarra-o
julgando que é uma História Sagrada e que nos trará boa
sorte.
Antes que eu a possa desenganar, Yannes afasta-se de nós, a
caminho da sua barca, de torso nu ao amanhecer, levando o
seu
remo ao ombro com uma surpreendente semelhança com Ulisses.
Frei Pedro benze-o, e prosseguimos a nossa navegação nas
águas
de um estreito ribeiro que nos conduzirá ao cais da Cidade.
Porque, agora que o grego se foi embora, pode falar-se em
voz
155

alta do segredo: o Adiantado fundou uma cidade. Não me canso


de
repeti-lo a mim próprio, desde que isto de uma cidade me
fora
confiado, há poucas noites, acendendo mais corpos luminosos
na
minha
imaginação do que os nomes das gemas mais cobiçadas. Fundar
uma cidade. Eu fundo uma cidade. Ele fundou uma cidade. É
possível conjugar semelhante verbo. Pode-se ser Fundador de
uma Cidade. Criar e governar uma cidade que não apareça nos
mapas, que se subtraia aos horrores da Época, que nasça
assim,
da vontade de um homem, neste mundo do Génese. A primeira
cidade. A cidade de Henoch, edificada quando ainda não
nascera
Tubalcaim, o ferreiro, nem Jubal, o tangedor da harpa e do
órgão... Encosto a cabeça ao regaço de Rosario, pensando nos
imensos
territórios, nas serras inexploradas, nas mesetas sem conto,
onde se poderiam fundar cidades neste continente de natureza
ainda não vencida pelo homem; o compassado chape da voga,
acalenta-me e mergulho numa sonolência feliz, no meio das
águas vivas, perto de plantas que já adquirem fragrâncias de
montanha, respirando um ar delgado que ignora as
exasperantes pragas da selva. As horas passam com calma,
bordejando-se as mesetas, passando-se de um curso para outro
por pequenos labirintos de águas mansas que, de
imediato, nos fazem voltar as costas ao Sol, para o receber
de
frente, depois, na volta de um farelhão revestido de heras
raras. E cai a tarde quando, por fim, se amarra a barca e
posso assumar ao portento de Santa Mónica de los Venados.
Mas
a verdade é que me detenho, desconcertado. O que ali vejo, a
meio do pequeno vale, é um espaço de cerca de duzentos
metros
de lado, limpo à catana, em cuja extremidade se vê uma casa
grande, de paredes de bahareque, com uma porta e quatro
janelas. Há duas vivendas mais pequenas, semelhantes à
primeira quanto à construção, situadas em ambos os lados de
uma espécie de armazém ou estábulo. Também se vêem umas
dez choças índias, de cujas fogueiras se ergue um fumo
esbranquiçado. O Adiantado disse-me, com um tremor de
orgulho na voz: "Esta é a Praça Maior... Aquela, a Casa do
Governo... Ali vive o meu filho Marcos... Além, as minhas
três
filhas... Na nave temos grãos e utensílios, e alguns
animais... Atrás, o bairro dos índios..." E acrescenta,
voltando-se para frei Pedro: "Em frente da Casa do
Governo ergueremos a Catedral". Ainda não acabou de
indicar-me a horta, as plantações de milho, o cercado em que
se começa uma criação de porcos e de cabras, graças aos
varrões e aos chibos trazidos, com incríveis dificuldades,
desde Puerto Anunciación, quando a vizinhança perde as
estribeiras, arma-se uma gritaria de boas-vindas, e
acodem as esposas índias, e as filhas mestiças, e o filho
alcaide, e todos os índios, para receber

156

o seu Governador, acompanhado do primeiro Bispo.


"Santa Mónica de los Venados" - adverte-me frei Pedro -,
"porque esta é terra do veado vermelho; e Mónica chamava-se
a
mãe do fundador: Mónica, aquela que pariu Santo Agostinho,
santa que fora mulher de um só varão, e que por si mesma
criara os seus filhos". Confesso-Lhe, no entanto, que a
palavra cidade me sugerira qualquer coisa de mais importante
ou raro. "Manoa?" pergunta-me o frade com indolência. Não é
isso. Nem Manoa, nem El Dorado. Mas eu pensava em qualquer
coisa de diferente.
"Eram assim, nos primeiros anos, as cidades fundadas por
Francisco Pizarro, Diego de Losada ou Pedro de Mendoza",
observa frei Pedro. O meu silêncio aquiescente não exclui,
contudo, uma série de interrogações novas que os
preparativos
de um festim de pernas assadas num fogo de lenha me impede
de
formular de imediato. Não compreendo como é que o Adiantado,
com uma oportunidade ímpar de fundar uma povoação fora da
Época, lança em cima de si o estorvo de uma igreja que lhe
traz o tremendo fardo dos seus cânones, interditos,
aspirações
e intransigências, tendo-se em conta, sobretudo, que não
acalenta uma fé muito sólida e
aceita as missas, preferentemente quando se dizem em acção
de
graças por perigos vencidos. Mas não há muitas
oportunidades,
agora, de fazer perguntas. Deixo-me invadir pela alegria de
ter chegado a qualquer parte. Ajudo a assar a carne, vou à
lenha, interesso-me pelo canto dos que cantam, e amacio as
articulações com uma espécie de licor borbulhante, com
sabor a
terra e a resina, que todos bebem em chícaras passadas de
boca
em boca... E mais tarde, quando já todos se tiverem fartado,
quando dormirem os do casario índio e quando as filhas do
Fundador se recolherem no seu gineceu, ouvirei, junto do
domicílio da Casa do Governo, uma história que é história de
rumos. "Pois, senhor" - disse o Adiantado, atirando um ramo
ao
fogo -, "chamo-me Pablo e o meu apelido é tão corrente como
chamar-se Pablo, e se o título de Adiantado soa a grandes
feitos, dir-lhe-ei que apenas se trata de uma alcunha que me
deram uns mineiros, ao ver que me adiantava sempre aos
outros
em fazer passar pela minha bateia as areias de um rio..."
Sob
o emblema do caduceu, um homem de vinte anos, com o peito
despedaçado com uma tosse rebelde, olha a rua através
das bolas de cristal, cheias de água tingida, de uma
farmácia
de velhos. Até ali é a província das matinas e rosários, das
pastas de mel e folhados de freiras; passa o padre com a
coberta, e no entanto há orvalho que canta por Marias
Santíssimas a hora em noite
nublada. Mais além são as Terras do Cavalo, durante
jornadas e
157

jornadas; depois, os caminhos que sobem, e a cidade de casas


crescidas, onde o adolescente não encontrou senão ofícios de
sombras, de sótãos, de carvoeiras e de fossas. Vencido e
doente, ofereceu-se para trabalhar em botica, a troco de
remédios e albergue. Ensinaram-lhe qualquer coisa de
macerações, e confiam-lhe as receitas de prescrição caseira,
na base de noz vómica, raiz de alteia ou tártaro emético. E
à
hora da sesta, quando ninguém
transita à sombra dos beirais, o moço encontra-se sozinho no
laboratório, de costas para a rua, e ocorre que as mãos
adormecem-lhe sobre a linhaça, contemplando, por entre as
pequenas mós e os almofarizes, o lento correr de um rio
largo
cujas águas vêm das terras do ouro. Por vezes, trazidos por
barcos tão velhos que levam uma imagem de outros tempos,
descem no
desembarcadouro próximo uns homens de andar inclinado, que
experimentam com bastões as tábuas apodrecidas do cais, como
se ao chegar ao porto desconfiassem ainda das armadilhas e
do
lodaçal da terra. São mineiros palúdicos, caucheiros que
coçam
as sarnas, leprosos das missões abandonadas, que acodem à
farmácia, quer por quinino, quer por chalmugra, quer por
enxofre, e ao falar das comarcas onde julgam ter contraído
as
suas pragas, vão descorrendo, diante do passante obscuro, as
cortinas de um mundo ignorado. Chegam os vencidos, mas
chegam,
também, os
que arrancaram ao barro uma gema mirífica e, durante oito
dias, fartar-se-ão de mulheres e de músicas. Passam os
que não encontraram nada, mas trazem os olhos enebriados
pelo
pressentimento de um tesouro possível. Esses não
descansam nem perguntam onde há mulheres. Fecham-se à
chave nos seus aposentos, examinando as amostras que
trazem em frascos e, mal estejam curados de uma chaga ou
aliviados de um furúnculo, partem, de noite, à hora em
que todos dormem, sem revelar o segredo do seu rumo. O
jovem
não inveja os da sua idade que, cada segunda-feira do ano,
depois de terem ouvido uma última missa na igreja do
púlpito carcomido, saem com as suas roupas de domingo,
para partirem para a cidade longínqua. Fornecendo frascos
a receituários, aprende a falar de jazidas novas; conhece
os nomes daqueles que encomendam vasilhas de água
aromatizada
para banhar as suas índias; volta a lembrar os estranhos
nomes de rios ignorados pelos livros; obcecado pela
percuciente sonoridade do Cataniapo ou do Cunucunuma, sonha
em
frente dos mapas, contemplando incansavelmente as zonas
coloridas de verde, nuas, onde não aparecem nomes de
povoações. E um dia, de madrugada sai por uma janela do seu
laboratório, em direcção ao embarcadouro onde os mineiros
içam a vela da sua barca, e oferece remédios em troca de
ser levado.

158

Durante dez anos partilha as misérias, desenganos, rancores,


insistências mais ou menos afortunadas, dos pesquisadores.
Nunca favorecido, aventura-se mais longe, cada vez mais
longe,
cada vez mais só, já habituado a falar com a sua própria
sombra. E uma manhã assoma ao mundo das Grandes Mesetas.
Caminha durante
noventa dias, perdido entre montanhas sem nome, comendo
larvas
de vespas, formigas, saltões, como fazem os índios em meses
de
fome. Quando desemboca neste vale, uma chaga com vermes
está
a deixar-lhe uma perna no osso. Os índios do lugar - gente
estabelecida, de uma cultura semelhante aos fabricantes da
jarra funerária - curam-no com ervas. Só viram um homem
branco
antes dele, e pensam, como os de muitas povoações da selva,
que somos os últimos rebentos de uma espécie industriosa mas
débil, muito numerosa noutros tempos, mas que está agora em
vias de extinção. A sua longa convalescença torna-o
solidário
das penúrias e trabalhos daqueles homens que o rodeiam.
Encontra algum ouro ao pé daquela penha que a Lua, esta
noite,
torna em estanho. Ao voltar de o trocar em Puerto
Anunciación,
traz sementes, ovos e alguma ferramenta de cultivo e de
carpintaria. De regresso da segunda viagem traz uma parelha
de
porcos atados pelas patas no fundo da barca. Depois, é a
cabra
prenhe e o bezerro desmamado, para o qual os índios têm de
inventar um nome, como Adão, pois nunca viram semelhante
animal. Pouco a pouco, o Adiantado vai-se interessando pela
vida que prospera aqui. Quando toma banho ao pé de uma
cascata, à tarde, as moças índias atiram-lhe pequenas
pedrinhas brancas em sinal de contentamento. Um dia toma
mulher, e há grande folguedo ao pé das rochas. Pensa, então,
que se continua a aparecer em Puerto Anunciación com algum

de ouro nos bolsos, não tardarão os mineiros em seguir-lhe o
rasto, invadindo este vale ignorado para o transtornar com
os
seus excessos, rancores e apetites. Com o espírito de
enganar
as suspeitas, comercia ostensivamente com pássaros
embalsamados, orquídeas, ovos de tartaruga. Um dia descobre
que se fundou uma cidade. Sente, provavelmente, a surpresa
que
eu próprio tive ao compreender que era conjugável o verbo
«fundar» ao falar-se de uma cidade. Posto que todas as
cidades nasceram assim, há motivos para esperar que Santa
Mónica de los Venados, no futuro, chegue a ter monumentos,
pontes e arcadas. O Adiantado traça o contorno da Praça
Maior.
Levanta a Casa do Governo. Assina uma acta, e
enterra-a debaixo de uma lápide num lugar visível. Assinala
o
lugar do cemitério para que a própria morte se faça coisa de
ordem. Agora sabe onde há ouro. Mas o ouro já não o atrai.
Abandonou a procura de Manoa, porque já a terra lhe
interessa
159

muito mais, e, sobre ela, o poder de legislar por conta


própria. Ele não pretende que isto seja qualquer coisa
semelhante ao Paraíso Terrestre dos antigos cartógrafos.
Aqui
há doenças, calamidades, répteis venenosos, insectos, feras
que devoram os animais trabalhosamente criados; há dias de
inundação e dias de fome, e dias de impotência diante do
braço
que gangrena. Mas o homem, por um atavismo muito longo, está
destinado a ultrapassar estes males. E quando sucumbe, é
travado numa luta primordial que figura entre as mais
autênticas leis do jogo de existir. "O ouro - disse o
Adiantado - é para os que regressam para ali". E esse ali
soa
na sua boca com um timbre de desprezo - como se as
ocupações e
empenhamentos dos de ali fossem próprios de gente inferior.
É
indubitável que a natureza que aqui nos circunda é
implacável,
terrível, apesar da sua beleza. Mas os que a meio dela vivem
consideram-na má, mais tratável do que os espantos e
sobressaltos, as crueldades frias, as ameaças sempre
renovadas, do mundo de ali. Aqui, as pragas, os padecimentos
possíveis, os perigos naturais, são aceitáveis de antemão:
formam parte
de uma Ordem que tem os seus rigores. A criação não é
qualquer
coisa de divertido, e todos o admitem por instinto,
aceitando
o papel, designado a cada um na vasta tragédia do criado.
Mas
é tragédia com unidades de tempo, de acção e de lugar, onde
a
mesma morte opera por acção de mandatários conhecidos, cujos
trajes de veneno, de escama, de fogo, de miasmas, se
acompanham do raio e do trovão que continuam a usar, em dias
de ira, os deuses de mais longa residência entre nós. À luz
do
Sol ou ao calor da fogueira, os homens que aqui vivem os
seus
destinos contentam-se com coisas muito simples, encontrando
motivo de júbilo na calidez de uma manhã, numa pesca
abundante, na chuva que cai depois da seca, com explosões de
alegria colectiva, de cantos e de tambores, promovidos por
acontecimentos muito simples como foi o da nossa chegada.
"Aqui devia viver-se na cidade de Henoch", penso eu, e
neste
momento volta à minha mente uma das interrogações que me
assaltaram ao desembarcar. Neste momento saímos da Casa do
Governador para aspirar o ar da noite. O Adiantado mostra-me
então, num paredão de rocha, uns sinais traçados a grande
altura por artesãos desconhecidos - artesãos que deviam ter
sido içados até ao nível da sua tarefa por um andaime
impossível em tais trânsitos da sua cultura material. À luz
da
Lua desenham-se
figuras de escorpiões, serpentes, pássaros, entre outros
animais sem sentido para os meus olhos, que talvez tenham
sido
figurações astrais. Uma explicação inesperada vem, de
imediato, ao encontro dos meus escrúpulos: um dia, ao
regressar de uma viagem - conta o fundador,

160
-, o seu filho Marcos, então adolescente, deixou-o atónito
ao
contar-lhe a história do Dilúvio Universal. Na sua ausência,
os índios tinham ensinado ao moço que aqueles
petróglifos que contemplávamos agora, foram traçados em dias
de gigantesca crescente, quando o rio crescera até ali, por
um
homem que, ao ver subir as águas, salvou uma parelha de cada
espécie animal numa grande canoa. E depois choveu durante um
tempo que podia ter sido de quarenta dias e quarenta noites,
ao fim do qual, para saber se a grande inundação acabara,
despachou uma rata que
voltou para ele com uma maçaroca de milho entre as patas. O
Adiantado não quis ensinar a história de Noé -por ser
patranha
- aos seus filhos; mas ao ver que a sabiam sem outra
variante
que a de uma rata posta em lugar de pomba, e uma maçaroca de
milho em lugar do ramo de oliveira, confiou o segredo desta
cidade nascente a frei Pedro, a quem considerava um homem,
porque era dos que viajavam sozinhos por regiões
desconhecidas
e sabia fazer curas e distinguir as ervas. "Já que ao fim e
ao
cabo lhes contarão as mesmas histórias, que as aprendam
como eu as aprendi". Pensando nos Noés de tantas religiões,
ocorre-me objectar que o Noé índio parece-me mais ajustado à
realidade destas terras, com a maçaroca de milho, do que a
pomba com o seu ramo de oliveira, já que ninguém nunca viu
uma
oliveira na selva. Mas o frade
interrompe-me abruptamente, com tom agressivo,
perguntando-me
se esqueci o facto da Redenção: "Alguém morreu pelos que
nasceram aqui, e era mister que a notícia lhes fosse dada".
E
atando dois ramos em cruz com uma liana, planta-a de modo
quase raivoso, no lugar onde começará a erguer-se, amanhã, a
choça redonda que será o primeiro templo da cidade de
Henoch.
"Além disso, vem semear cebolas", adverte-me o Adiantado à
guisa de desculpa.

XXVI

(27 de Julho)
Amanhece sobre as Grandes Mesetas. As névoas da noite
permanecem entre as Formas, estendendo véus que se
adelgaçam e
aclaram quando a luz se reflecte num alcantilado de granito
rosa e desce ao nível das imensas sombras recostadas. Ao pé
dos paredões verdes, cinzentos, negros, cujos cumes parecem
diluir-se entre brumas, os fetos sacodem o leve aquilão que
os
aformoseia.

161
assomado a um vão em que apenas se poderia esconder uma
criança, contemplo uma vida de líquenes, de musgos de
pigmentos, de
ferrugens vegetais, que é, em escala minúscula, um mundo tão
complexo como o da grande selva de baixo. Há tanta vegetação
diferente, num palmo de humidade, quantas as espécies que
disputam além o espaço que deveria ser suficiente para uma
árvore. Este plâncton da terra é como uma pátina que se
torna
espessa ao pé de uma cascata caída de muito alto, cujo
constante fervor de espumas cavou um reservatório na rocha.
Aqui é onde tomamos banho nus, os da Parelha, em água que se
agita e corre, brotando de altos já iluminados pelo Sol,
para
cair em branco verde, e derramar-se, mais abaixo, em caudais
que as raízes do tanino tingem de ocre. Não há alarde, não

fingimento edénico, nesta nudez limpa,
muito diferente daquela que arqueja e se vence nas noites da
nossa choça, e que libertamos aqui com uma espécie de
travessura,
espantados por ser tão agradável sentir a brisa e a luz em
partes do corpo que a gente de além morre sem ter exposto
alguma vez ao ar livre. O Sol enegrece-me a franja das ancas
às coxas que os nadadores do meu país mantêm brancas, ainda
que se tenham banhado em mares de sol. E o Sol entra-me pelo
meio das pernas, aquece-me os testículos, trepa para a minha
coluna vertebral, rebenta-me pelos peitorais, escurece as
minhas
axilas, cobre a minha nuca de suor, possui-me, invade-me, e
sinto que no seu ardor endurecem-se os meus canais seminais
e
volto a ser a tensão e o latejar que as obscuras pulsações
de
entranhas caladas no mais profundo procuram, sem encontrar
limite para um desejo de me integrar que se torna nostalgia
do
útero. E imediatamente, é a água outra vez, em cujo fundo
desembocam mananciais gelados que vou buscar com a cara,
metendo as mãos numa areia grossa, que é como limalha de
mármore. Mais tarde virão os índios e banhar-se-ão em pêlo,
sem outro vestuário que não seja as mãos abertas sobre o
pénis. E ao meio-dia será frei Pedro, sem sequer cobrir os
pêlos brancos do seu sexo, ossudo e enxuto como um São João
pregando no deserto... Hoje tomei a grande decisão de não
regressar para além. Tratarei de aprender os simples ofícios
que se praticam em Santa Mónica de los Venados e que já se
ensinam a quem observe as obras da edificação da sua igreja.
Vou subtrair-me ao destino de Sísifo que o mundo de onde
venho
me impôs, fugindo das profissões insignificantes, do girar
do
esquilo preso em tambor de arame, do tempo medido e dos
ofícios de trevas. As segundas-feiras deixarão de ser, para
mim, segundas-feiras de cinza, nem haverá motivo para
lembrar
que a segunda-feira é segunda-feira, e a pedra que eu
carregava será de quem quiser dobrar-se ao seu peso inútil.

162

Prefiro empunhar a serra e a enxada a continuar a aviltar a


música em ofício de pregoeiro. Digo-o a Rosario, que
aceita o meu propósito com alegre docilidade, como
receberá sempre a
vontade de quem aceitar como varão. Tua mulher não
compreendeu que esta determinação é, para mim, muito mais
grave do que parece, posto que implica uma renúncia a
tudo o que é de além. Para ela, nascida nos limites da
selva, com irmãs amigadas com mineiros, é normal que um
homem prefira a vastidão do remoto ao amontoamento das
cidades. Além disso, não julgo que para se habituar a mim
tenha feito tantos
ajustes intelectuais como eu. Ela não me vê como um homem
muito diferente dos outros que conheceu. Eu, para a amar
- pois julgo amá-la profundamente, agora -, tive de
estabelecer uma nova escala de valores, ao ponto a que
deve apegar-se um homem da minha formação a uma mulher
que é toda uma mulher
,
sem ser mais do que uma mulher. Fico-me, pois, com toda
a
consciência do que faço. E ao repetir para mim mesmo que
fico, que as minhas claridades serão agora as do Sol e as
da
fogueira, que todas as manhãs mergulharei o corpo na água
desta cascata, e que uma fêmea cabal e inteira, sem
evasivas,
estará sempre ao alcance do meu desejo, invade-me uma imensa
alegria. Encostado a um banco de areia, enquanto Rosario, de
seios negligentes, lava os seus cabelos na corrente, agarro
a
velha Odisseia do grego, tropeçando, ao abrir o tomo, com um
parágrafo que me faz sorrir: aquele em que se fala dos
homens
que Ulisses manda para o país dos lotófagos e que, ao
provarem a fruta que nascia ali,
esqueciam-se de regressar à pátria. "Tive de os trazer à
força, chorosos - conta o herói - e prendê-los com
cadeias debaixo dos bancos, no fundo dos seus navios".
Sempre
me aborrecera, no maravilhoso relato, a crueldade de quem
arranca os seus companheiros à felicidade encontrada, sem
lhes
oferecer outra recompensa senão a de o servir. Neste mito,
vejo como que um reflexo da irritação que sempre causam à
sociedade os actos daqueles que encontram, no amor, no
desfrutar de um privilégio físico, num dom inesperado, o
modo
de subtrair-se às fealdades, proibições e vigilâncias
padecidas pelos outros. Dou meia volta sobre a pedra
cálida, e
isto faz-me olhar para onde vários índios, sentados em volta
de Marcos, o primogénito do Adiantado, trabalham em
obras de cestaria. Penso agora que a minha velha teoria
acerca
das origens da música era absurda. Vejo como são vãs as
especulações daqueles que pretendem situar-se nos alvores de
certas artes ou instituições do homem, sem conhecer, na sua
vida quotidiana, nas suas práticas curativas e religiosas, o
homem pré-histórico, nosso contemporâneo. Era muito
engenhosa
a minha ideia de equiparar o propósito

163

mágico da plástica primitiva - a representação do


animal, que outorga poderes sobre esse animal - com a
fixação
primeira do ritmo musical, devida ao afã de imitar o galope,
trote, passo, dos animais. Mas eu assisti, há dias, ao
nascimento da música. Pude ver mais além do canto fúnebre
com
que Ésquilo
ressuscita o imperador dos persas; mais além da ode com que
os
filhos de Autolicos detêm o sangue negro que sai das feridas
de Ulisses; mais além do canto destinado a preservar o
faraó.
Unidos pelas mordeduras de serpentes, na sua viagem de
além-túmulo. O que vi confirma, desde logo, as teses
daqueles
que disseram que a música tem uma origem mágica. Mas aqueles
chegaram a tal raciocínio através dos livros, dos tratados
de
psicologia, construindo hipóteses arriscadas acerca da
sobrevivência, na tragédia antiga, de práticas derivadas de
uma feitiçaria já remota. Eu, pelo contrário, vi como a
palavra empreendia o seu caminho até ao canto, sem chegar a
ele; vi como a repetição de um mesmo monossílabo originava
um
ritmo certo, vi, no jogo da voz real e da voz fingida que
obrigava o salmista a alternar duas alturas de tom, como
podia
originar-se um tema musical de uma prática extramusical.
Penso
nas tolices ditas por quem chegou a sustentar que o homem
pré-histórico encontrou a música no afã de imitar a beleza
do
gorjeio dos pássaros - como se o trinado da ave tivesse um
sentido
musical-estético para quem o ouve constantemente na selva,
dentro de um concerto de rumores, gemidos, rumores de água,
fugas, gritos, coisas que caem, águas que brotam,
interpretado
pelo caçador como uma espécie de código sonoro, cujo
entendimento é parte importante do ofício. Penso noutras
teorias falazes e ponho-me a sonhar na polvorosa que as
minhas
observações levantariam em certos meios musicais aferrados a
teses livrescas. Também seria útil recolher alguns dos
cantos
índios deste lugar, muito belos dentro da sua
elementaridade,
com as suas escalas singulares, destruidoras dessa outra
noção
geral segundo a qual os índios só sabem cantar em escalas
pentáfonas... Mas, de imediato, aborreço-me comigo mesmo, ao
ver-me entregue a tais cavilações. Tomei a decisão de ficar
aqui e devo deixar de lado, de uma vez para sempre, essas
vãs
especulações de tipo intelectual. Para libertar-me delas
ponho
a pouca roupa que uso aqui e vou reunir-me com os que estão
a
acabar de construir a igreja. É uma cabana redonda, ampla,
com
tecto pontiagudo como o das churuatas, de folhas de palmeira
sobre vigas de ramos, rematada por uma cruz de
madeira. Frei Pedro empenhou-se para que as janelas tivessem
uma figura gótica, com arco quebrado, e o repetido encontro
de
duas linhas curvas numa parede de bahareque é, nestes
confins,
164

uma premonição de cantochão. Penduramos um tronco oco no


campanário de uma só parede, pois, com falta de sinos, o que
soará aqui é uma espécie de teponaxtle idealizado por mim. A
fabricação daquele instrumento foi-me sugerida pelo
tambor-bastão-de-ritmo que está na choça, e preciso de
confessar que o estudo do seu princípio ressonante
acompanhou-se de uma prova dolorosa. Quando, dois dias
antes, desatei as lianas que sujeitavam as esteiras
protectoras, estas inchadas pela humidade, entesaram-se de
repente, lançando a jarra funerária, os guizos, as flautas,
a
rolar pelo chão. Vi-me imediatamente rodeado de
objectos-credores, e de nada me serviu pô-los a um canto,
como
a crianças castigadas, para esquecer a sua presença
acusadora.
Vim a estas selvas, larguei o meu fardo, encontrei mulher,
graças ao dinheiro que devo a estes instrumentos que não me
pertencem. Para evadir-me estou amarrando, desde aqui, o meu
fiador. E digo que o estou a amarrar, porque o Curador
aceitará certamente a responsabilidade da minha deserção,
devolvendo os fundos que me entregaram, à custa de
compromissos, sacrifícios e, talvez, de empréstimos
usurários.
Eu seria feliz, serenamente feliz, se junto à cabeceira da
minha rede não se encontrassem aquelas peças de museu, numa
exigência perpétua de fichas e vitrinas. Devia tirar estes
instrumentos daqui talvez parti-los, enterrar os seus restos
ao pé de uma pedra qualquer. Não posso fazer isso, no
entanto,
porque a minha consciência voltou ao local desertado, e
tanto
a tive ausente que me voltou cheia de desconfiança e de
inquietações. Rosario assopra numa das canas da vasilha
ritual
e soa um bramido rouco ,
como de animal caído nas trevas de um poço. Afasto-a com um
gesto tão brusco, que ela se afasta, magoada, sem
compreender.
Para desenrugar o seu cenho, conto-lhe a razão do meu
aborrecimento. Ela não demora em dar com a solução mais
simples: enviarei aqueles instrumentos para Puerto
Anunciación, dentro de alguns meses, quando o Adiantado
fizer
a sua viagem habitual para abastecer-se de remédios
indispensáveis e repor qualquer instrumento danificado pelo
muito uso. Ali encarregar-se-á uma irmã sua de os fazer
descer
pelo rio até onde haja correio. A minha consciência deixa de
torturar-me, pois no dia em que os pacotes se puserem a
caminho terei pago as chaves da evasão.

165

XXVII

Súbi ao monte dos petróglifos com frei Pedro, e agora


descansamos sobre um solo de xistos, acidentado, com penhas
negras erguidas contra o vento por todos os seus gumes, ou
derrubadas a modos de ruínas, de escombros, entre vegetações
que parecem
recortadas em feltro cinzento. Há qualquer coisa de remoto,
lunar, não destinado ao homem, neste terraço que conduz às
nuvens, e que um arroio de água gelada sulca, que não é água
de mananciais, mas água de névoas. Sinto-me vagamente
inquieto
- um pouco
intruso, para não dizer sacrílego - ao pensar que com a
minha
presença se rompe o arcano de uma teratologia do mineral,
cuja
grandiosa aridez, obra de uma erosão milenária, põe a nu um
esqueleto de montanhas que parece feito com pedras de
enxofre,
lavas, calcedónias moídas, escórias plutonianas. Há
cascalhos
que me fazem pensar em mosaicos bizantinos que se tivessem
desprendido das suas paredes em talude, e que recolhidos a
pazadas, tivessem sido lançados aqui, ali, a modos de uma
ventania de quartzo, ouro e cornalinas. Para chegar até aqui
atravessámos durante duas jornadas - por caminhos cada vez
mais limpos de répteis, ricos em orquídeas e em árvores em
flor - as Terras da Ave. De sol a sol, fomos escoltados
pelos
papagaios faustosos e pelos periquitos cor-de-rosa, com o
tucano de grave olhar, luzindo o seu peito de esmalte
verde-amarelo, o seu bico mal soldado à cabeça - o
pássaro teológico que nos gritou: Deus te vê!, à hora do
crepúsculo, quando os maus pensamentos melhor solicitam o
homem. Vimos os colibris, mais insectos que pássaros,
imóveis, na sua vertiginosa suspensão fosforescente, sobre a
sombra parcimoniosa dos paújes (*) vestidos de noite;
erguendo os olhos, conhecemos a percuciente azáfama dos
carpinteiros listados de escuro o alvoroço dos assobiadores
e
gorjeadores metidos nos tectos da selva, assustados de todo,
mais acima das mexeriquices de pericos () e de
catalnicas (**), e de tantos pássaros feitos com todo o
pincel, que à falta de nome conhecido - disse-me frei Pedro
-
foram chamados «indianos girassóis» pelos homens de
armaduras.
Assim como outros povos tiveram civilizações marcadas pelo
símbolo do cavalo ou do touro, o índio com perfil de ave pôs
as suas civilizações sob a evocação da ave. O deus volante,
o
deus pássaro, a serpente emplumada, estão no centro das suas
mitologias, e tudo quanto é belo para ele

(*) Paújes - Espécie de peru silvestre da América


Central. (N.
do T)
(**) Pericos: Catalnicas - Espécie de periquitos. (N. do
T).

166

adorna-se com penas. De penas foram as tiaras dos


imperadores
de Tenochtitlán, como hoje são de penas os ornamentos das
flautas, os objectos de jogo, o vestuário festivo e ritual
dos
que conheci aqui. Admirado pela revelação de que vivo agora
nas Terras da Ave, emito qualquer fácil
opinião sobre a provável dificuldade de encontrar, nas
cosmogonias desta gente, qualquer mito coincidente com os
nossos. Frei Pedro pergunta-me se li um livro chamado o
Popol-vuh, cujo nome até me era desconhecido. "Nesse texto
sagrado dos antigos quichés", afirma o frade, "já se
inscreve, com trágica adivinhação, o mito do robot; mais
ainda: creio que é a única cosmogonia que pressentiu a
ameaça da máquina e a tragédia do Aprendiz de Feiticeiro".
E,
surpreendendo-me com uma linguagem de estudioso, que devia
ter
sido a sua antes de endurecer na selva, conta-me um capítulo
inicial da Criação, em que os objectos e utensílios
inventados
pelo homem, e usados com ajuda do fogo, se rebelam contra
ele
e matam-no; as tinas, os comales (*), os pratos, as panelas,
as pedras de moer, e as próprias casas, em pavoroso
apocalipse
que atroam com os seus latidos os cães enraivecidos e
sublevados, aniquilam uma geração humana... Ainda me fala
disso quando
ergo os olhos, e me vejo ao pé do paredão de rocha cinzenta
em
que aparecem profundamente cavados os desenhos que se
atribuem
ao demiurgo vencedor do Dilúvio e repovoador do mundo, por
uma
tradição que chegou aos ouvidos dos mais primitivos
habitantes da selva, em baixo. Estamos aqui no Monte Ararat
deste vasto mundo. Estamos onde chegou a Arca e encalhou com
surdo embate, quando as águas começaram a retirar-se e a
rata
regressou com uma maçaroca de milho entre as patas. Estamos
onde o demiurgo lançou pedras pelas costas, como Deucalião,
para fazer nascer uma nova geração humana. Mas nem
Deucalião,
nem Noé, nem «napishtim», nem os Noés chineses ou egípcios,
deixaram a sua rubrica fixada no lugar de chegada. Aqui,
pelo
contrário, há enormes figuras de insectos, de serpentes,
seres
do ar, animais das águas e da terra, figurações de luas,
sóis
e estrelas, que alguém cavou ali, com ciclópico pincel,
mediante um processo que não atinamos em explicar. Mesmo
hoje
seria impossível levantar em tal lugar o andaime gigantesco
que um exército de talhadores ergueu até onde puderam
atacar o
paredão de rocha com as suas ferramentas, deixando-o tão
firmemente marcado como está...
Agora frei Pedro leva-me para a outra extremidade dos
Sinais

(*) Comales - Disco de barro usado na América Latina para


cozer tortas de milho. (N. do T.)
167

e mostra-me, daquele lado da montanha, uma espécie de


cratera,
de recinto fechado, em cujo fundo medram pavorosas ervas.
São
como gramíneas membranosas, cujas ramificações têm uma
mórbida
redondez de braço e de tentáculo. As folhas enormes, abertas
como mãos, parecem ser de flora submarina, por causa das
suas
texturas de madrepérola e de alga, com flores bulbosas, como
faróis de plumas, pássaros pendurados de uma veia, maçarocas
de larvas, pistlos sanguinolentos, que lhes saem pelas
bordas
por um processo de erupção e dilaceramento, sem conhecer a
graça de um talo. E tudo isto, ali em baixo, enrevesa-se,
emaranha-se, ata-se em nós, num vasto movimento de
possessão,
de acoplamento, de
incestos, monstruosos e orgiásticos ao mesmo tempo, que é
suprema confusão de formas. "Estas são as plantas que
fugiram
do homem num começo - disse-me o frade. As plantas rebeldes,
negadas a servir-lhe de alimento, que atravessaram rios,
escalaram cordilheiras, saltaram sobre os desertos, durante
milénios e milénios, para se esconderem aqui, nos últimos
vales da Pré-História". Com mudo espanto dou comigo a
contemplar o que noutras partes é fóssil, pinta-se no vazio
ou
dorme, petrificado, nas veias de hulha, mas continua a viver
aqui, numa primavera sem data, anterior aos tempos humanos,
cujos ritmos não são, por acaso, os do ano solar, lançando
sementes que germinam em horas, ou, pelo contrário, levam
meio
século em preparar uma árvore. "Esta é a vegetação diabólica
que rodeava o Paraíso Terrestre antes da
Culpa". Inclinado sobre a caldeira demoníaca, sinto-me
invadir pela vertigem dos abismos; sei que se me deixasse
fascinar pelo que vejo aqui, mundo do pré-natal, do que
existia quando não havia olhos, acabaria por lançar-me, por
mergulhar, naquela tremenda espessura de folhas que
desaparecerão do planeta, um dia, sem terem sido
denominadas,
sem terem sido recriadas pela Palavra-obra, talvez, de
deuses
anteriores aos nossos deuses, deuses à prova, inábeis em
criar, ignorados porque nunca foram designados, porque não
ganharam contorno nas bocas dos homens... Frei Pedro
arranca-me à minha quase alucinada contemplação, dando-me um
ligeiro golpe no ombro com o seu cajado. As sombras dos
obeliscos naturais encurtam-se cada vez mais com a
proximidade
do meio-dia. Temos de começar a descer antes de que a tarde
nos surpreenda neste cume, desçam as nuvens e nos vejamos
perdidos entre neves frias. Depois de passar novamente
diante
das rubricas do demiurgo, alcançamos o limite da fenda em
que
se iniciará a nossa descida. Frei Pedro detém-se, respira
profundamente e contempla um horizonte de árvores, de que
emerge, em volumes de ardósias, uma cordilheira de gumes
quebrados, que é como uma presença dura,

168

sombria, hostil, na surpreendente beleza dos confins do


Vale.
O frade assinala com o bastão cheio de nós: "Ali vivem os
únicos índios perversos e sanguinários que há
nestas regiões, - disse. - Nenhum missionário regressou de
lá.
Creio que, naquele instante, permiti-me uma consideração
trocista sobre a inutilidade de se aventurar em paragens tão
ingratas. Em
resposta, dois olhos cinzentos, imensamente tristes,
fixaram-se em mim de maneira singular, com uma expressão ao
mesmo tempo tão
intensa e resignada, que me senti desconcertado,
perguntando a
mim mesmo se lhes causara algum aborrecimento, ainda que não
encontrasse os motivos de tal aborrecimento. No entanto,
vejo
o semblante enrugado do capuchinho, a sua longa barba
emaranhada, as suas orelhas cheias de pêlos, as suas fontes
de
veias pintadas em azul, como qualquer coisa que deixasse de
lhe pertencer e de ser carne da sua pessoa: a sua pessoa,
naquele momento, eram aquelas pupilas velhas um pouco
arroxeadas por uma conjuntivite crónica, que olhavam, como
se
fossem feitas com um esmalte embaciado, ao mesmo tempo
dentro
e fora de si mesmas.

XXVIII
Sentado atrás de uma mesa estendida de esteio a esteio,
tendo ao alcance da mão um caderno escolar em cuja capa se
lê:
Caderno de... Pertencente a... quase nu por causa do calor
que
acentuou muito nestes últimos dias, o Adiantado está a
legislar, em presença de frei Pedro, do Capitão de Índios e
de
Marcos, que é o Responsável da Horta. Gavião está sentado ao
lado do seu amo, com um osso guardado entre as patas
traseiras. Trata-se de chegar a um certo número de acordos
em
proveito da comunidade e deixá-los consignados por escrito.
Tendo comprovado que, na sua ausência, se caçaram corças, o
Adiantado institui a proibição absoluta de matar o que chama
«o veado fêmea e ruminantes, salvo força
maior de fome, e mesmo assim, o levantamento da interdição
será objecto de uma disposição de emergência, submetida ao
critério dos presentes. A emigração de certas manadas, a
caça
descontrolada, a acção das feras, diminuiram a existência do
veado vermelho na comarca, justificando-se a medida». Depois
de todos terem jurado acatá-la e respeitá-la, a Lei fica
assentada no Livro de Actas do Cabido e passa-se a
considerar
uma questão de obras públicas. Aproxima-se a época das
chuvas,
e Marcos informa que os canteiros feitos

169

sob a direcção de frei Pedro nos últimos dias têm


uma orientação discutida por ele, que terá por efeito
canalizar as águas de uma vertente próxima, inundando,
provavelmente, o local do armazém de grãos. O Adiantado olha
severamente para o frade, pedindo explicações. Frei Pedro
informa que o trabalho realizado respondia a uma tentativa
de
cultivar cebola, a qual exige terrenos em que a água não
fique
estancada nem haja demasiada humidade, coisa que só se podia
conseguir traçando os canteiros com o escoadouro virado
para a
vertente. O perigo assinalado pelo Responsável da Horta
poderia ser conjurado com o levantamento de um valado de
terra, de três palmos mais ou menos, entre a horta e o
armazém
de grãos. Reconhece-se logo, por unanimidade, a conveniência
de executar a obra, e fixa-se o seu início para amanhã
mesmo,
mobilizando-se toda a população de Santa Mónica de los
Venados, pois o céu está a carregar-se de nuvens e o calor
torna-se mais difícil de suportar num meio-dia que se cobre
de
vapores pesados e nos importuna com uma exasperante invasão
de
moscas, saídas não se sabe de onde. Frei Pedro recorda, no
entanto, que a edificação da igreja não está acabada e que
isto também devia ser objecto de uma medida de urgência. O
Adiantado responde em
tom cortante que a boa conservação dos grãos é uma questão
de
interesse mais imediato do que os latins, e conclui o exame
das questões anotadas na ordem do dia com uma disposição
sobre
o
corte e o transporte de troncos para um cercado, e a
necessidade de colocar gente para vigiar o aparecimento de
certos cardumes que, este ano, estão a subir o rio antes do
tempo. Da reunião capitular de hoje ficaram vários acordos
para realizar obras imediatas e uma Lei - uma lei cuja
infracção «será castigada», reza a prosa do Adiantado. Esta
última questão inquieta-me de tal modo que pergunto ao
homenzinho se já teve o horroroso dever de instituir
castigos
na Cidade. "Até agora", responde-me, "castiga-se o culpado
de
uma falta com não dirigir-lhe a palavra durante um certo
tempo, fazendo-se-lhe sentir a reprovação geral; mas
chegará o
dia em que seremos tão numerosos que precisaremos de
castigos
maiores". Mais uma vez me espanto diante da gravidade dos
problemas colocados nestas comarcas, tão desconhecidas como
as
Terras Incógnitas dos antigos cartógrafos, onde os homens de
além só
vêem sáurios, vampiros, serpentes de mordidela fulminante e
danças de índios. Durante todo o tempo que tenho viajado por
este mundo virgem, vi muito poucas serpentes - uma
cobra-coral, uma veludo, outra que talvez fosse um crótalo
-,
e só soube das feras pelo rugido, apesar de ter atirado
pedras, mais do que uma vez, ao caimão astuto, disfarçado de
tronco podre na traiçoeira paz de um remanso.

170
Pobre é a minha história quanto a perigos enfrentados - se
deixarmos de lado a tormenta dos caudais. Mas, em troca,
encontrei em toda a parte a solicitação
inteligente, o motivo de meditação, formas de arte, de
poesia,
mitos, mais instrutivos para compreender o homem do que
centenas de livros escritos nas bibliotecas por homens
jactanciosos de conhecer o Homem. Não só o Adiantado fundou
uma cidade, como sem o
suspeitar, está a criar, dia a dia, uma polis que acabará
por
se apoiar num código assentado solenemente no Caderno de...
Pertencente a... E chegará um momento em que terá de
castigar
severamente quem matar o animal vedado, e bem vejo que então
este homenzinho de fala pausada, que nunca levanta a voz,
não
vacilará em condenar o culpado a ser expulso da comunidade
e a
morrer de fome na selva, a não ser que institua qualquer
castigo impressionante e espectacular, como aquele dos povos
que condenam o parricida a ser lançado ao rio, fechado num
saco de couro com um cão e uma víbora. Pergunto ao Adiantado
que faria se
visse aparecer em Santa Mónica, imediatamente, um
pesquisador
de ouro, daqueles que mancham qualquer terra com a sua
febre.
"dava-lhe um dia para se ir embora", responde-me. "Este não
é
lugar para essa gente", sublinha Marcos, com um súbito
acento
de rancor na voz. E fico a saber que o mestiço foi além, há
algum tempo, contra a vontade do pai, mas dois anos de maus
tratos e humilhações por parte daqueles de quem se queria
aproximar,
amistoso, dócil, fizeram-no regressar um dia com ódio a
tudo o
que viu no mundo recém-descoberto. E mostra-me, sem
explicações, as marcas dos grilhões que lhe rebitaram num
remoto posto fronteiriço. Agora, pai e filho calam-se; mas
por
trás daquele silêncio adivinho que ambos aceitam sem
reticências uma dura possibilidade criada pela Razão de
Estado: a do Pesquisador, empenhado em regressar ao Vale das
Mesetas, e que nunca voltará da segunda viagem - "por se ter
perdido na selva", julgarão logo aqueles que possam
interessar-se pelo seu destino. Isto acrescenta um tema de
reflexão aos muitos que compartem o meu espírito a todos os
momentos. E é que depois de vários dias de uma tremenda
preguiça mental, durante os quais fui um homem físico,
alheio
a tudo o que não fosse sensação, queimar-me ao Sol,
divertir-me com
Rosario, aprender a pescar, habituar-me a sabores de uma
desconcertante novidade para o meu paladar, o meu cérebro
pôs-se a trabalhar, como depois de um repouso necessário,
num
ritmo
impaciente e ansioso. Há manhãs em que gostaria de ser
naturalista, geólogo, etnógrafo, botânico, historiador, para
compreender tudo, anotar tudo, explicar na medida do
possível.
171

Certa tarde, descobri com assombro que os índios daqui


conservavam a
memória de uma obscura epopeia que frei Pedro está a
reconstituir com fragmentos. É a história de uma migração
caraíba, em marcha
para o Norte, que arrasa tudo à sua passagem e baliza com
prodígios a sua marcha vitoriosa. Fala-se de montanhas
erguidas pela mão de heróis portentosos, de rios desviados
do
seu curso, de combates singulares em que intervieram os
astros. A portentosa unidade dos mitos afirma-se nesses
relatos, que encerram raptos de princesas, inventos de ardis
de guerra, duelos memoráveis, alianças com animais. Nas
noites
em que se embebeda ritualmente com um pó sorvido por ossos
de
pássaros, o Capitão dos Índios torna-se bardo e, da sua
boca,
o missionário recolhe pequenas porções do cantar de gesta,
da
saga, do poema épico, que vive obscuramente - anterior à sua
expressão escrita - na memória dos Notáveis da Selva... Mas
não devo pensar demasiado. Não estou aqui para pensar. Os
trabalhos de cada dia, a vida rude, a parca alimentação à
base
de tapioca, peixe e cassabe, emagreceram-me, ajustando a
minha
carne ao esqueleto: o meu corpo tornou-se conciso, preciso,
de
músculos cingidos à estrutura. As más gorduras que trazia, a
pele branca e flácida, os sobressaltos, as angústias
emotivas,
os pressentimentos de desgraças por ocorrer, as
apreensões, o latejamento do plexo solar, desapareceram. A
minha pessoa, metida no seu contorno cabal, sente-se bem.
Quando me aproximo da carne de Rosario, brota em mim uma
tensão que,
mais do que apelo do desejo, é um incontível constrangimento
para um zelo primordial: tensão do arco armado, entesado,
que,
depois de disparar a flecha, volta ao descanso da forma
recobrada. Tua mulher está perto. Chamo-a e acorre. Não
estou aqui para pensar. Não devo pensar. Antes de mais
sentir
e ver. E quando de ver se passa a olhar, acendem-se raras
luzes e tudo adquire uma voz. Assim, descobri,
imediatamente,
num segundo fulgurante, que existe uma Dança das Árvores.
Nem todos conhecem o
segredo de dançar ao vento. Mas os que possuem a graça,
organizam rodas de folhas ligeiras, de ramos, de vergônteas,
em torno do seu próprio tronco estremecido. E é todo um
ritmo que se cria nas ramagens; ritmo ascendente e inquieto,
com encrespamentos e retornos de folhas, com brancas pausas,
descansos, cansaços, que se alvoroçam e são torvelinho, de
repente, numa música prodigiosa do verde. Não há nada de
mais
formoso do que a dança de um maciço de bambus na brisa.
Nenhuma coreografia humana
possui a euritmia de um ramo que se desenha sobre o céu.
Depois pergunto-me por vezes se as formas superiores da
emoção estética não consistirão, simplesmente, num supremo

172

entendimento do criador. Um dia, os homens descobrirão um


alfabeto nos olhos das calcedónias, nos veludos escuros da
falena, e então se
saberá com assombro que cada caracol manchado era desde
sempre, um poema.

XXIX

Chove sem parar desde há dois dias. Houve uma longa


abertura de trovões baixos que pareciam rolar sobre o
próprio
solo,
entre as mesetas, pendurando-se nos vãos, retumbando nas
socavas, e, de súbito, foi a água. Como as palmas do tecto
estavam muito secas, passámos a primeira noite a mudar as
redes de um lugar para o outro, numa inútil procura de um
lugar sem goteiras. Depois, uma torrente enlamaçada começou
a
correr debaixo de
nós, sobre o solo, e, para salvar os instrumentos
recolhidos,
tive de os pendurar das vigas que sustentam o tecto. O
amanhecer
encontrou-nos a todos desconcertados, com as roupas húmidas,
rodeados de lodo. Mal se acendiam as fogueiras e as
habitações
enchiam-se de um fumo acre que fazia chorar. Meia igreja
caiu,
devido aos efeitos da chuva sobre o bahareque ainda
inconsistente, e frei Pedro, com o hábito atado à cintura e
uma simples tanga posta sobre o sexo, trata de escorar o
que é
escorável, com a ajuda de alguns índios. O seu péssimo humor
cobre o Adiantado de
invectivas, por não o ter ajudado a terminar a obra com o
ditado de uma medida de emergência. Depois volta a chover,
e é
chuva, e mais chuva e nada mais do que chuva, até ao
entardecer. E depois é a noite outra vez. Nem o consolo,
sequer, de poder abraçar Rosario, que «não pode», e quando
isto acontece torna-se arisca, intratável, parecendo que
qualquer gesto de carinho lhe é odioso. Durmo com
dificuldade,
do ruído universal e constante da água que corre por toda a
parte, cobrindo qualquer ruído que não seja ruído de água,
como se tivessemos chegado aos tempos das quarenta árduas
noites... Ao fim de algum tempo de sono - a manhã ainda deve
estar longe - desperto com uma esquisita sensação de que, na
minha mente, acaba de realizar-se um grande trabalho:
qualquer
coisa como o amadurecimento e compacidade de elementos
informes, desagregados, sem sentido ao estar dispersos, e
que,
imediatamente, ao ordenar-se, ganham um significado preciso.
Construiu-se uma obra no meu espírito; é «coisa» para os
meus
olhos abertos ou fechados, soa nos meus ouvidos,
espantando-me

173

pela lógica da sua ordenação. Uma obra inscrita dentro de


mim
mesmo, e que poderia fazer sair sem dificuldade, tornando-a
texto, partitura, coisa que todos apalpassem, lessem,
ouvissem. Muitos anos atrás deixara-me levar, certa vez,
pela
curiosidade de fumar ópio: lembro-me de que o quarto
cachimbo,
me produziu uma
espécie de euforia intelectual que trouxe uma repentina
solução para todos os problemas de criação que então me
atormentavam. Via tudo claro, medido, feito. Quando saísse
da
droga, não teria mais do que agarrar o papel pautado e em
algumas horas nasceria da minha caneta, sem dor nem
vacilações, um Concerto que então projectava, com uma
incómoda
incerteza acerca do tipo de escritura a adoptar. Mas no dia
seguinte, quando saí do sono lúcido e quis de verdade
agarrar
na caneta, tive a mortificante revelação de que nada do que
pensara, imaginara, resolvera, sob os efeitos do Benares
fumado, tinha o menor valor: eram fórmulas vulgares, ideias
sem consistência, invenções descabidas, transferências
estéticas de plástica a sons impossíveis, que as gotas
borbulhantes, trabalhadas entre duas agulhas, sublimaram ao
calor da lâmpada. O que me ocorre esta noite, aqui, na
escuridão, rodeado pelo ruído das goteiras que caem em todas
as partes, é muito semelhante ao que iniciou, para mim,
aquela
delirante elocubração; as próprias ideias procuram uma
ordem,
e já há, no meu cérebro, uma mão
que risca, emenda, delimita, sublinha. Não tenho de
regressar
das torpezas de uma embriaguez para poder concretizar o meu
pensamento: só preciso esperar pelo amanhecer, que me trará
á
claridade necessária para fazer os primeiros esboços do
Canto
Fúnebre. Porque o título Canto Fúnebre foi o que se impôs à
minha imaginação durante o sono.
Antes de cair nas estúpidas actividades que me teriam
afastado da composição - a minha preguiça de então, a minha
fraqueza diante de qualquer inclinação para o prazer não
eram,
no fundo, senão formas do medo de criar sem estar seguro de
mim mesmo - meditara muito sobre certas possibilidades novas
de unir a palavra com a música. Para melhor focar o problema
revira, desde logo, a longa e formosa história do
recitativo, nas suas funções litúrgicas e profanas. Mas o
estudo de recitativo, dos modos de recitar cantando, de
cantar dizendo, de procurar a melodia nas inflexões do
idioma,
de enredar a palavra dentro do acompanhamento ou de
libertá-la, pelo contrário, do apoio harmónico; todo este
processo que tanto preocupa os compositores modernos, como
Mussorgsky e Debussy, chegando-se aos êxitos exasperados,
paroxísticos, da escola vienense, não era, na realidade, o
que
me interessava. Eu procurava, de preferência, uma expressão

174

musical que surgisse da palavra nua, da palavra anterior à


música -
não da palavra feita música por exageração e estilização das
suas inflexões, à maneira impressionista -, e que passasse
do
falado ao cantado de modo quase insensível, o poema
tornando-se música, encontrando a sua própria música na
escansão e na prosódia,
como aconteceu provavelmente com a maravilha do Dies Irae,
Dies Ille do cantochão, cuja música parece nascida dos
ascentos naturais do latim. Eu imaginara uma espécie de
cantata, em que uma personagem com funções de corifeu se
adiantasse para o
público e, num silêncio total da orquestra, depois de
reclamar com um gesto a atenção do auditório, começava a
dizer um poema
muito simples, feito de vocábulos de uso corrente,
substantivos como homem, mulher, casa, água, nuvem, árvore,
e
outros que pela sua eloquência primordial não precisarão
do adjectivo. Aquilo seria como um verbo-génese. E, pouco a
pouco, a própria repetição das palavras, os seus acentos,
iriam dando uma entoação peculiar a certas sucessões de
vocábulos, que se teria o cuidado de fazer regressar a
distâncias medidas, ao jeito de um estribilho verbal. E
começaria a afirmar-se uma melodia que tivesse - eu
desejava-a
assim - a simplicidade linear, o desenho centrado em poucas
notas, de um hino ambrosiano - Aeterne rerum conditor - que
é,
para mim, o estado da música mais próximo da palavra.
Transformado o falar em melodia, alguns instrumentos da
orquestra entrariam discretamente, ao jeito de uma pontuação
sonora, a enquadrar e delimitar os períodos normais do
recitado,
afirmando-se, nestas intervenções, a matéria vibrante de que
cada instrumento fosse feito: presença da madeira, do cobre,
da corda, da pele esticada, a modos de um enunciado de
ligações possíveis. Por outro lado, impressionara-me muito,
naqueles dias remotos, a revelação de um tropo compostelano
-
Congaudeant Catholici
-, em que uma segunda voz era situada sobre a do cantus
firmus
com o papel de a adornar, de lhe dar melismas, as luzes e
sombras que não seria decente agregar directamente ao tema
litúrgico, cuja pureza, assim, ficava salvaguardada: espécie
de grinalda pendurada de uma coluna severa, que nada lhe
ficava da sua signidade, mas acrescentava-lhe um elemento
ornamental, flexível, ondulante. Eu via as entradas
sucessivas
das vozes do coro, sobre o canto primicial do corifeu, à
maneira como estas se ordenavam - elemento masculino,
elemento
feminino - no tropo compostelano. Isto, desde logo, criava
uma
sucessão de acentos novos cujas constantes engendravam um
ritmo geral: ritmo que a orquestra, com os seus meios
sonoros,
diversificava e coloria. Agora, por via do desenvolvimento,
o
elemento melismático passava ao terreno

175

instrumental, procurando planos de variação harmónica e


oposições entre os timbres puros, enquanto o coro, compacto
por fim, podia entregar-se a uma espécie de invenção da
polifonia, dentro de um enriquecimento crescente do
movimento
contrapontístico. Assim pensava eu conseguir uma
coexistência
da escritura polifónica e a de tipo harmónico, concertadas,
embutidas, segundo as leis mais autênticas da música, dentro
de uma ode vocal e sinfónica, em constante aumento de
intensidade expressiva, cuja concepção geral era, à primeira
vista, bastante sensata. A simplicidade do enunciado
prepararia o ouvinte para a percepção de uma simultaneidade
de
planos que, a ser-Lhe apresentada de repente, resultaria
intrincada e confusa para ele, tornando-se-lhe possível
seguir, dentro da lógica indiscutível do seu processo, o
desenvolvimento de uma palavra-célula através de todas as
suas
implicações musicais. Havia, desde logo, que desconfiar da
possível desordem de estilos engendrada por essa espécie de
reinvenção da música que, no instrumental, implicava
incitações arriscadas. Da última pensava defender-me
especulando com os timbres puros, e citava-me a mim mesmo,
como referência, uns surpreendentes diálogos de
flautim e contrabaixo, de oboé e trombone, que encontrara em
obras de Alberic Magnard. Quanto à harmonia, pensava
encontrar
um elemento de unidade no uso habilidoso dos modos
eclesiásticos, cujos recursos inexplorados começam a ser
aproveitados, desde há muito poucos anos, por alguns dos
músicos mais inteligentes do momento... Rosario abre a
porta e
a luz do dia surpreende-me em deleitosa reflexão. Ainda não
recobrei do meu espanto: o Canto Fúnebre estava dentro de
mim,
mas a sua
semente foi semeada e começou a crescer na noite do
Paleolítico, mais lá em baixo, nas margens do rio povoado de
monstros,
quando ouvi como uivava o feiticeiro sobre um cadáver
enegrecido pelo veneno de um crótalo, a dois passos de uma
pocilga onde estavam os cativos prostrados sobre os seus
excrementos e urinas. Naquela noite foi-me dada uma grande
lição pelos homens que
não quis considerar como homens; por aqueles mesmos que me
fizeram ufanar da minha superioridade, e que, por sua vez,
se
julgavam superiores aos dois anciãos babosos que roíam ossos
deixados pelos cães. Diante da visão de um autêntico canto
fúnebre, renasceu em mim a ideia do Canto Fúnebre, com o seu
enunciado da palavra-célula, o seu exorcismo verbal que se
transformava em música ao necessitar de mais uma entoação
vocal, de mais uma nota, para alcançar a sua forma -forma
que
era, nesse caso, a reclamada pela sua função mágica, e que,
pela alternância de duas vozes, de duas maneiras de
grunhir,
176

era, em si, um embrião de Sonata. Eu, o músico que


contemplava
a cena
,
estava a acrescentar o resto: obscuramente intuía o que
havia
já de futuro nele e o que lhe faltava ainda. Ganhava
consciência da música transcorrida e da não transcorrida...
Agora vou a correr, debaixo da chuva, a casa do Adiantado,
para lhe pedir um dos seus cadernos; um desses em cuja capa
se
lê: Caderno de... Pertencente a... - que me dá, certamente,
com alguma má vontade -, e começo a esboçar ideias musicais
sobre pentagramas que eu próprio traço, servindo-me, como
regra, do flanco quase direito da lâmina de uma catana.

XXX

Num primeiro impulso, por fidelidade a um velho projecto


de adolescência, gostaria de ter trabalhado sobre o Prometeu
Libertado, de Shelley, cujo primeiro acto oferece por si só
-
tal como o terceiro do Segundo Fausto - um maravilhoso tema
para uma
cantata. A libertação do agrilhoado, que associo
mentalmente à
minha fuga de lá, tem implícito um sentido de ressurreição,
de
regresso do mundo das sombras, profundamente conforme à
concepção original do canto fúnebre, que começou por ser um
canto mágico destinado a ressuscitar os mortos. Certos
versos
que agora me ocorrem teriam correspondido admiravelmente ao
meu desejo de trabalhar sobre um texto feito de palavras
simples e directas: Ah me! Alas, pain, pain pain ever, ,for
ever! - No change, no pause, no hope! Yet I endure! (*) E,
de
imediato, esses coros de montanhas, de nascentes, de
tormentas: dos elementos que agora me rodeiam,
tornando-se-me
sensíveis. Essa voz da terra, da terra que é Mãe,
simultaneamente argila e molde, como as Mães dos
Deuses que ainda reinam na selva. E essas «Cadelas do
inferno»
- hounds of hell - que irrompem no drama e ululam num tom
que
é mais de ménades do que de fúrias. Ah, I scent life! Let me
but Iook into his eves! (**). Mas não. É absurdo excitar a
imaginação com semelhante hipótese, visto que não tenho o
texto de Shelley nem nunca o terei, aqui só há três livros:
a
Genoveva de Brabante, de
(*) «Ai de mim! Infelicidade, dor, dor, dor contínua, dor
eterna! - Nenhuma mudança, nenhuma pausa, nenhuma esperança!
E, contudo, continuo a resistir!» (N. do T.)
(**) «Ah, sinto o cheiro da vida! Deixai-me ao menos
olhá-la nos olhos!» (N. do T.)

177

Rosario, o Liber Usualis, cujos textos se adequam ao


ministério de frei Pedro, e A Odisseia, de Yannes. Ao
folhear
Genoveva de Brabante, descubro com surpresa que o assunto do
conto, se o despojarmos do estilo, um estilo absolutamente
intolerável, não é muito pior do que os outros de excelentes
óperas, parecendo-se bastante com o de Péleas. Quanto à
prosa
cristã, esta afastar-me-ia muito da ideia do Cântico
Fúnebre,
dando um estilo versicular, bíblico, a toda a cantata.
Resta-me, pois, A Odisseia, cujo texto está em espanhol.
Nunca
pensar em compor música para qualquer poema escrito neste
idioma, o qual, por si mesmo, constituiria um eterno
obstáculo
à execução de uma obra coral em qualquer
grande centro artístico. Mas repugna-me, de imediato, essa
inconsciente confissão de um desejo de «ver-me executado». A
minha renúncia nunca seria verdadeira enquanto continuasse a
incorrer em semelhantes vícios. Eu era o poeta da ilha
deserta
de Rainer Maria, e como tal devia criar, sentir a
necessidade
profunda de criar. Além disso, qual era o meu verdadeiro
idioma? Sabia o alemão, por parte do meu pai. Com Ruth,
falava
em inglês, o
idioma dos meus estudos secundários; com Mouche, as mais das
vezes em francês; com Rosario, o espanhol do meu Compêndio
de
Gramática - Estos, Fabio... Mas este último idioma era
também
o das vidas de Santos, encadernadas em veludo roxo, que a
minha mãe tantas vezes me lera: Santa Rosa de Lima, Rosario.
Na coincidência matriz vejo como que um sinal propiciatório.
Volto, pois, sem mais hesitações, à Odisseia, de Yannes. A
sua
retórica começava por me desencorajar, pois recuso-me a usar
fórmulas invocatórias do tipo «Filho de Cronos, meu pai,
suprema majestade», ou «Filho de Laertes, descendente de
deuses, Ulisses das mil astúcias». Nada poderia haver de
mais
oposto ao género de texto de que necessito. Leio e releio
algumas passagens, impaciente por começar a escrever.
Detenho-me repetidamente no episódio de Polifemo, mas, ao
fim
e ao cabo, acho-o demasiado movimentado, cheio de
peripécias.
Saio de casa irritado e ponho-me a andar de cá para lá,
debaixo da chuva, ante o espanto de Rosario. Mal respondo,
Tua
mulher que se alarma de me ver tão nervoso; mas depressa
desiste de fazer perguntas, admitindo que o varão tem «dias
maus» e que não tem qualquer obrigação de dar conta do
porquê
do seu ar sombrio. Para não incomodar, senta-se a um
canto, atrás de mim, pondo-se a lim ar as orelhas de Gavião
que se lhe encheram de carraças, com a ponta de um rebento
de
bambú. Mas, a pouco e pouco, volta-me a boa disposição. A
solução do problema era simples: bastava aligeirar o texto
homérico de todo o palavreado supérfluo para conseguir
captar
178

a simplicidade desejada. De imediato, no episódio da


evocação
dos mortos, encontro o tom mágico, primordial,
simultaneamente preciso e solene: «Faço três libações aos
mortos. Libação de leite e mel, libação de vinho e
libação de água pura. Derramo a farinha e prometo que
assim que regressar a Ítaca sacrificarei sobre o fogo do
altar a melhor das minhas vacas, para além de dar a Tirésias
um carneiro negro, o melhor que houver nos meus
rebanhos!... Degolei as bestas, derramei o seu sangue, e eis
que vejo aparecer as sombras dos que dormem o sono da
morte!» À medida que o texto ganha a consistência
requerida, começo a conceber a estrutura do discurso
musical. A união entre a palavra e a música dar-se-á
quando a voz do corifeu se enternecer, quase
imperceptivelmente, na estrofe em que se fala das virgens
enlutadas e dos guerreiros caídos sob os golpes das
lanças. O elemento melismático que terei de colocar na
primeira voz trair-se-á com o lamento de Elpenor, que
chora por não ter «o seu túmulo na terra, à beira dos
caminhos». No próprio poema fala-se de um longo queixume que
interpretarei com uma vocalização, prelúdio da sua súplica:
«Não me abandones sem lágrimas nem funerais: queima-me com
todas as minhas armas e ergue o meu túmulo à beira-mar para
que todos saibam da minha desgraça. Coloca sobre os meus
despojos o remo com que costumava remar convosco». O
aparecimento de Anticleia dará o tom de contralto ao
edifício
vocal que se vai definindo cada vez melhor no meu espírito,
entrando como uma espécie de contraponto no descanto de
Ulisses e Elpenor. Um acorde muito aberto da orquestra, com
uma sonoridade de pedal de órgão,
anunciará a presença de Tirésias. Mas fico-me por aqui. A
necessidade de escrever música é tão imperiosa que começo a
trabalhar sóbre os apontamentos rascunhados, vendo renascer
os
símbolos musicais, há tanto tempo esquecidos, sob a mina do
meu lápis. Após terminar uma primeira página de esboços,
detenho-me
maravilhado ante esses toscos pentagramas, irregularmente
traçados, de linhas mais convergentes do que paralelas,
sobre
as quais se inscrevem as notas de um começo homofónico que
tem, no seu próprio grafismo, algo de ensalmo, de invocação,
de uma música bem diferente daquela que tenho escrito até
agora. Isto em nada se assemelhava à rebuscada escrita
daquele
desgraçado «Prelúdio» para o Prometeu Agrilhoado, bem ao
gosto
da moda de então, em que, como tanta gente, eu procurava
voltar a encontrar a energia e a espontaneidade da arte
artesanal - começar a obra numa
quarta-feira para vir a ser cantada na missa de domingo -,
retomando as suas fórmulas, as suas receitas
contrapontísticas, a sua retórica, mas não o seu espírito,
de
recuperação impossível. Não eram as

179

dissonâncias, os pontos mal colocados sobre outros pontos,


as
asperezas dos instrumentos intencionalmente situados nos
registos mais ríspidos e ingratos, aquilo que ia permitir
assegurar a perdurabilidade de uma arte de imitação, de
confecção a frio, em que apenas o cadáver herdado - a forma
e
as receitas para «desenvolver» - era actualizado, e isto em
obras que esqueciam com demasiada frequência, esquecendo-a,
aliás, intencionalmente, a força genial dos tempos lentos, a
sublime inspiração das árias, para se dedicarem a
malabarismos
em meio do atordoamento
geral, à pressa, à corrida, aos «allegros». Uma espécie de
ataxia motora afligira durante anos os autores de Concerti
Grossi, em que dois movimentos em colcheias e semicolcheias
-
como se nunca tivessem existido notas brancas ou redondas -,
desenquadrados por acentuações marteladas fora do seu devido
lugar, contrários à própria respiração da música, corriam
trepidantes de ambos os lados de um ricercare cuja pobreza
de
ideias se dissimulava sobre o contraponto mais mal soante
que
possa imaginar-se. E também eu, como tantos outros, me
deixara
impressionar por instruções de «regresso à ordem», de
necessidade de pureza, de geometria, de assepsia, calando em
mim todo o canto que lutava por se fazer ouvir. Agora, longe
das salas de concertos, do infindável aborrecimento das
polémicas sobre arte, invento música com uma facilidade que
me
assombra, como se as ideias, descendo do cérebro, me fossem
enchendo a mão, atropelando-se umas às
outras na pressa de sairem através da ponta do lápis. Sei
que
devo desconfiar de tudo aquilo que é criado sem dor. Mas
haverá muito tempo para corrigir, para criticar, para
sintetizar. No meio da chuva que cai ininterrupta, escrevo
com
uma alegre impaciência, como que impelido por um manancial
de
energia interior, reduzindo muitas vezes a minha escrita a
uma
espécie de taquigrafia que só eu poderia decifrar. Esta
noite,
quando me for deitar os primeiros andamentos do Cântico
Fúnebre já terão enchido todo o Caderno de... Pertencente
a...

XXXI

Acabo de ter uma desagradável surpresa. O Adiantado, a


quem fui pedir outro caderno, perguntou-me se eu os comia.
Expliquei-Lhe porque é que precisava de mais papel. "Este é
o
último que te dou", disse-me, de mau humor, explicando-me

180

depois que estes livrinhos se destinavam ao levantamento de


actas, à consignação de contratos, a apontamentos
utilitários, pelo que não podiam de modo algum ser
desperdiçados em músicas. Para acalmar o meu despeito,
oferece-me então a viola do seu filho Marcos. Pelo que
vejo, não estabelece qualquer relação entre o acto de
compor e a necessidade de escrever. Todas as músicas que
conhece são de harpistas, de tocadores de bandolim, de
gentes
que se servem do plectro, continuando a ser os eternos
menestréis da Idade Média, como aqueles que vieram nas
primeiras caravelas, e que não têm qualquer necessidade
de partituras, nada sabendo sequer de papéis pautados.
Agastado, fui queixar-me a frei Pedro. Mas ele achou que
o Adiantado tinha toda a razão, acrescentando que este,
além disso, parece esquecer-se de que em breve terão de se
arranjar Livros de Baptismo e Livros de Enterros para a
Comunidade, sem esquecer ainda o Registo de Casamentos. E,
de
súbito, voltando-se para mim, pergunta-me se penso
continuar a
viver em concubinato pelo resto da vida. Não estando nada à
espera disto, balbucio qualquer coisa totalmente alheia à
questão. Frei Pedro vitupera agora aqueles que se consideram
pessoas cultas e sensatas mas que, não obstante, Lhe
começam a
dificultar o trabalho de evangelização, dando maus exemplos
aos índios. Afirma que
tenho obrigação de me casar com Rosario, pois as uniões
santificadas e legais devem ser a base da ordem que terá de
se
instaurar em Santa Mónica de los Venados. Repentinamente,
ponho um ar
sério e reajo ironicamente, dizendo-lhe que se vivia muito
bem
ali sem o seu ministério. A cara do frade torna-se
sanguínea,
com todas as veias momentaneamente salientes; iracundo,
grita-me, com a violência de quem insulta ou profere
impropérios, que não admite dúvidas acerca da legitimidade
do
seu ministério, justificando a sua presença com uma frase em
que Cristo falava das ovelhas que não eram do seu rebanho e
que tinham de ser reunidas para que ouvissem a sua voz.
Surpreendido com a ira de frei Pedro, que golpeia o solo
com o
seu cajado, encolho os ombros e olho para o lado, guardando
para mim o que lhe ia dizer. Aqui está para que serve uma
igreja. Já começaram a emergir, reluzentes, as cadeias até
agora ocultas sob o burel samaritano. Já dois corpos não
podem
deitar-se e gozar sem que uns dedos de unhas negras tracem
sobre eles o sinal da cruz. Terão de aspergir-se de água
benta
as esteiras em que nos abraçamos, num domingo em
que tenhamos consentido em ser as personagens de uma
edificante estampa. O quadro nupcial parece-me tão ridículo
que rompo
numa gargalhada e saio da igreja, cuja parede cheia de
rachas
foi temporariamente calafetada com grandes folhas de
malanas,
181

pelas quais escorre a chuva, tamborilando em surdina. Volto


à
nossa choça, tendo então de confessar para comigo que o meu
ar
trocista, o meu riso de desafio, mais não eram do que fáceis
reacções de quem buscava, em mui literários princípios de
liberdade, uma forma de ocultar a incómoda verdade: já sou
casado. Mas isto pouca importância teria se eu não amasse
Rosario tão profunda e apaixonadamente. A bigamia, a uma tal
distância do meu país e dos seus tribunais, seria um delito
impossível de comprovar. Poderia, pois, sujeitar-me à
comédia
exemplar exigida pelo frade e assim todos ficariam
contentes.
Masjá lá vão os tempos das burlas e enganos. Pelo mesmo
motivo
que me fez voltar a sentir um homem, sinto-me agora proibido
de recorrer à mentira; e já que a lealdade demonstrada por
Rosario relativamente a tudo aquilo que me respeita é algo
que
estimo acima de todas as coisas, revolta-me a ideia de a
enganar - para mais numa matéria a que a mulher atribui
instintivamente tanta importância, quando levada a buscar
casa
onde albergar o fruto vivo da sua gravidez sempre possível.
Não poderia aceitar o espectáculo atroz de vê-la guardar
entre
as roupas, talvez com uma alegria de menina endomingada, o
registo, assente em papel de bloco-notas, em que nos
declarassem «marido e mulher» perante Deus. A consciência da
minha consciência impede-me já semelhantes canalhices. Pelo
mesmo
motivo, receio as prováveis tácticas fradescas: firme nos
seus
propósitos, Pedro de Henestrosa irá actuar sobre o ânimo de
Tua mulher, para que seja ela quem acabe por já não
conseguir
aguentar mais, de tal modo lhe irá moer a paciência. E
ver-me-ei então perante o dilema de confessar a verdade ou
mentir. A verdade, se a disser - pôr-me-á numa situação
difícil
perante o missionário, envenenando ao mesmo tempo a harmonia
simples e plácida da minha vida com Rosario. A mentira - se
a
aceitar -deitará por terra, com toda a gravidade que isso
implica, a rectidão de comportamento que impus a mim mesmo
como lei inquebrantável nesta minha nova vida. A fim de
fugir
à angústia que me invadia, à tenaz perseguição de todas
estas
obsessões, procuro concentrar-me no trabalho da minha
partitura, acabando finalmente por o conseguir após alguns
árduos esforços. Estou na altura, sumamente difícil, do
aparecimento de Anticleia, que faz que a voz de Ulisses
passe
para um plano de simples descanto, por detrás do lamento
melismático de Elpenor, introduzindo assim o primeiro
episódio
lírico da cantata - episódio cuja matéria passará para as
mãos
da orquestra aquando da entrada de Tirésias, servindo de
tema
para o primeiro desenvolvimento de tipo instrumental, por
detrás de uma polifonia que se estabelece no plano das
vozes... No fim do dia, e apesar de ter apertado

182

apertado até onde me foi possível, constato que já enchi a


terça parte do segundo caderno. É evidente que tenho de
descobrir urgentemente um modo de resolver o
problema. Alguma matéria deve haver na selva, tão pródiga em
tecidos naturais, em jutas estranhas, em palmas, em
invólucros
fibrosos, em que seja possível escrever. Mas não pára de
chover. Não há nada seco em
todo o Vale das Mesetas. Aperto um pouco mais o grafismo,
com
astúcias de calígrafo, a fim de aproveitar cada milímetro de
papel; mas essa preocupação mesquinha, avara, contrária à
generosidade da inspiração, coíbe-me o discurso, levando-me
a
pensar em ponto pequeno aquilo que devo ver em ponto grande.
Sinto-me manietado, diminuído, ridículo, e acabo assim por
abandonar o trabalho, um pouco antes do crepúsculo, com
amargurado despeito. Nunca pensei que a imaginação pudesse
alguma vez esbarrar num escolho tão estúpido como a falta de
papel. E precisamente
quando estou mais exasperado, Rosario pergunta-me a quem é
que estou a escrever cartas, uma vez que aqui não há
correio.
Essa confusão, a imagem da carta feita para viajar e que não
pode viajar, faz-me pensar de súbito na futilidade de tudo
aquilo que desde ontem ando a fazer. Pois de nada serve a
partitura que nunca há-de vir a ser executada. A obra de
arte
destina-se aos outros, e a música muito em particular, pois
dispõe dos meios para poder alcançar as mais vastas
audiências. Esperei pelo momento em que se consumou a minha
evasão dos lugares onde poderia ser ouvida uma obra minha,
para começar então a compor de verdade. É absurdo,
insensato,
risível. E, não obstante, bem posso prometer, jurar para mim
mesmo em voz baixa que o Cântico
Fúnebre ficará por aqui, que não passará do primeiro terço
do
segundo livrinho: pois sei que amanhã de manhã a força que
me
possui me levará a pegar no lápis e a esboçar a página do
aparecimento de Tirésias, que soa já aos meus ouvidos com a
sua sonora festividade de órgão: três oboés, três
clarinetes,
um fagote, duas trompas, um trombone. Não importa que o
Cântico Fúnebre
nunca venha a ser executado. Devo escrevê-lo e
escrevê-lo-ei,
dê lá por onde der: nem que seja para demonstrar a mim mesmo
que não estou vazio, totalmente vazio - como pretendi
fazê-lo
crer, um dia destes, ao Curador. Um pouco mais calmo,
recosto-me na minha rede. E ponho-me novamente a pensar no
frade e na sua exigência. Tua mulher está atrás de mim, a
acabar de assar umas espigas de milho numa fogueira que
muito
Lhe custou a acender, por causa da humidade. Do ponto onde
se
encontra, não pode ver o meu rosto na sombra, nem poderá
sequer observar a minha
expressão quando lhe falar. Finalmente, decido-me a

183

perguntar-lhe, num tom de voz que não me soa lá muito firme,


se ela
acha útil ou desejável que nos casemos. E quando julgo que
vai
aproveitar a oportunidade para me tornar no protagonista de
um
belo quadro dominical para uso de catecúmenos, oiço-a dizer,
assombrado, que o matrimónio não lhe interessa de forma
alguma. De tal modo que a minha surpresa acaba por se
transformar num assombro de despeito e ciúme. Dirijo-me a
Rosario, com ar
dolente, pedindo-lhe explicações. Mas ela deixa-me
desconcertado com uma argumentação que é a das suas irmãs,
que
foi, sem
dúvida, a da sua mãe, e que é provavelmente a razão do
recôndito orgulho destas mulheres que nada temem: na sua
opinião, o casamento, a união legal, tira à mulher todo e
qualquer recurso para se defender do homem. A única arma que
assiste à mulher frente ao companheiro que sai dos eixos, é
a
faculdade de o abandonar a qualquer momento, de o deixar só,
sem que ele tenha meios para fazer valer quaisquer
direitos. A
esposa legal, para Rosario, é uma mulher a quem podem mandar
buscar, enviando guardas na sua peugada, quando ela
abandona a
casa em que o marido entronizou o engano, as sevícias ou as
desordens do álcool. Casar-se é cair sob o peso de leis que
foram os homens a fazer, não as mulheres. Em contrapartida,
numa livre união - afirma sentenciosamente Rosario -, "o
varão sabe que do seu comportamento depende ter ou não ter
quem Lhe dê prazer e atenções". Confesso que a lógica
camponesa deste conceito me deixa desarmado. Frente à vida,
é
evidente que Tua mulher se move num mundo de noções, de
usos e
costumes, de princípios, que não é o meu. E, não obstante,
sinto-me humilhado, num plano de incómoda inferioridade,
porque agora sou eu quem gostaria de a obrigar a casar-se;
sou
eu quem aspira a ver-se retratado na edificante estampa
nupcial, ouvindo frei Pedro pronunciar a fórmula ritual do
casamento ante a multidão dos índios ali reunidos. Mas há um
papel assinado e legalizado, lá, no mundo distante, que me
tira toda a força moral. Lá, onde sobre o papel que aqui
tanta
falta faz... Nesse momento, um grito de Rosario, seguido de
um
arquejo de terror, fez-me olhar para trás. E o que apareceu
ali, emoldurado pela janela, foi a lepra; a grande lepra da
Antiguidade, a lepra clássica, esquecida já por tantos
povos,
a lepra do Levítico, que no fundo destas selvas continua
ainda
a ter os seus horríveis representantes. Debaixo de um gorro
pontiagudo, vê-se um resíduo, um resto de semblante, uma
escória de carne ainda presa em torno de um buraco negro,
aberto em simulacro de garganta, perto de dois olhos sem
expressão, que exibem algo como um pranto endurecido,
igualmente prestes a dissolver-se, a liquefazer-se no meio
da
designação do ser
que os move, emitindo pela traqueia uma espécie de ronco
embrutecido, designando com um mão cor-de-cinza as espigas
ali
arrumadas. Não sei que fazer frente a esse pesadelo, a esse
corpo presente a esse cadáver que gesticula já tão perto,
agitando farrapos de dedos, mantendo Rosario enrodilhada no
chão, muda de pavor. "Vai-te, Nicasio!" - diz a voz de
Marcos, que se aproxima sem demonstrar repugnância. "Vai-te,
Nicasio! Vai-te!" E
empurra-o suavemente com um ramo em ponta de forquilha,
procurando afastá-lo da janela. Em seguida, entra na nossa
choça, rindo, e, pegando numa espiga, atira-a ao miserável
que, depois de a guardar num alforge, se afasta em direcção
à
montanha, mais a arrastar-se do que propriamente a andar.
Sei
agora quejá vi Nicasio, um pesquisador de ouro que o
Adiantado
encontrou ao chegar aqui, já muito doente, vivendo agora
numa
caverna distante, à espera de uma morte que teima em
esquecê-lo. Ele está proibido de vir até à povoação. Mas
como
há já muito tempo que não se
atrevia a aproximar-se, hoje não houve maiores sanções.
Horrorizado com a ideia de que o leproso possa voltar,
convido
o filho do Adiantado para compartilhar da nossa refeição.
Correndo
debaixo da chuva, apressa-se a ir buscar a sua velha viola
de
quatro cordas - a mesma que se fez ouvir a bordo das
caravelas
- e, num ritmo que faz correr sangue negro por sob a melodia
do romance, começa a cantar:
Sou filho do rei Mulato
e da rainha Mulatina;
aquela que comigo casar
mulata virá a ficar.

XXXII

Ao saber que tencionava escrever em folhas de palma, em


cascas de árvores, inclusive na pele de veado que alcatifa
um
canto da nossa choça, o Adiantado, compadecendo-se, deu-me
outro
caderno, avisando-me, contudo, de que era o último. Assim
que
terminarem as chuvas, propõe-se ir a Puerto Anunciación por
alguns dias, e então diz que me trará todos os livrinhos que
eu quiser. Mas até lá passar-se-ão ainda mais de oito
semanas
de chuva, para além de que, antes de partir, será necessário
acabar a construção da igreja, reparando tudo aquilo que
tiver
184 185
sido danificado pela humidade, e bem assim proceder às
sementeiras
próprias da estação. Continuo, pois a trabalhar, sabendo
que,
ao cabo de sessenta e quatro folhinhas cheias de esboços,
estes permanecerão onde estão. Agora quase receio voltar a
sentir a maravilhosa excitação imaginativa do começo, e,
correndo frequentemente à borracha do pápis - quer dizer:
dedicando-me a algo que não aumenta o consumo de papel -
passo
os dias a corrigir e a aligeirar os primitivos guiões. Não
voltei a falar com Rosario acerca do matrimónio; mas a sua
recusa da outra tarde é algo que, a bem dizer, me entristece
profundamente. Os dias são intermináveis. Chove demasiado. A
ausência do Sol, que aparece ao meio-dia como um disco
esfumado, acima das nuvens que passam de cinzentas a brancas
por umas horas, mantém como que num estado de constante
asfixia esta natureza necessitada de sol para poder reanimar
as suas cores e voltar a mover as suas sombras por sobre o
solo alagado. Os rios estão sujos, arrastando troncos,
montes
de folhas podres, destroços da selva, animais afogados.
Formam-se diques de coisas arrancadas, despedaçadas,
rapidamente desfeitos pelo choque de uma árvore que cai,
inteira, desprendendo-se pela raiz, mergulhando do alto de
uma
cascata, envolta em borbotões de lodo e lama. Tudo cheira a
água; tudo soa a água e em todo o lado as mãos encontram
água.
Em cada uma das minhas surtidas em
busca de algo onde pudesse escrever, acabei sempre por rolar
pelo lodo, enterrando-me até aos joelhos em covas cheias de
ceno, mal dissimuladas por ervas traiçoeiras. Tudo o que
vive
da humidade cresce e rejubila; nunca as folhas das malangas
foram mais verdes e espessas; nunca os cogumelos se
multiplicaram tanto ou os musgos treparam tão alto, nunca os
sapos cantaram melhor ou as ferviLhantes criaturas que
enxameiam as madeiras podres foram mais numerosas. Sobre as
pontas escarpadas das mesetas, as infiltrações desenham
grandes manchas negras. Cada fenda, cada prega, cada dobra
da
pedra é agora um leito de torrente. É como se estas mesetas
estivessem a executar a gigantesca tarefa de orientar as
águas
para as terras que lhes ficam por debaixo, dando assim a
cada
comarca o seu caudal de chuva. Não se pode levantar uma
tábua
caída por terra sem se deparar com a fuga desarvorada das
multidões de percevejos cinzentos que jazem debaixo dela. Os
pássaros abandonaram a paisagem e ontem mesmo Gavião chegou
a detectar a presença de uma boa na parte alagada da horta.
Os
homens e as mulheres passam este tempo, encarando-o como uma
crise necessária da natureza, metidos nas suas choças,
tecendo, fazendo cordas, aborrecendo-se terrivelmente. Mas
suportar as chuvas é outra das regras do jogo, assim como
admitir que, uma vez se páre cheio de dores,

186

se deve cortar a mão direita, caso uma cobra venenosa nela


tenha cravado as suas
presas, com um manchete brandido pela mão esquerda. Isto é
necessário à vida, e a vida tem mister de muitas coisas que
não são fáceis nem agradáveis. Chegaram depois os dias da
agitação do húmus, da fermentação do pus, da maceração das
folhas mortas, de acordo com a lei segundo a qual tudo
aquilo
que há-de gerar-se, gerar-se-á paredes meias com a
excreção, num plano em que os órgãos geradores se
confundem com os urinários, pelo que aquilo que irá nascer,
nascerá envolto em baba, serosidades e sangue - tal como do
esterco nascem a pureza dos espargos e a frescura da
hortelã-pimenta. Houve uma noite em quejulgámos que as
chuvas
tinham acabado. Houve como que uma trégua, em que os tectos
deixaram de ressoar sob as bátegas, e todo o vale soltou um
grande suspiro de alívio. Ouviram-se os rios que corriam ao
longe, e uma bruma densa, branca e fria, apoderou-se do
espaço
entre as coisas. Rosario e eu buscámos o nosso calor num
longo
abraço. Quando, despertando do deleite em que nos
isoláramos,
voltámos a ter consciência do mundo envolvente, estava outra
vez a chover. "No tempo das chuvas é que as mulheres
engravidam", disse-me Tua mulher ao ouvido. Pus-lhe uma mão
sobre o ventre num gesto
propiciatório. Pela primeira vez, sinto um enorme desejo de
acariciar uma criança por mim gerada, de lhe pegar ao colo,
de
ver como irá dobrar osjoelhos sobre o meu antebraço,
chuchando
nos dedos... Descubro-me perdido nestas divagações, o lápis
detido num diálogo entre uma trompa e um corne inglês,
quando
um grito me faz sair porta fora. Aconteceu qualquer coisa no
casario dos índios, visto que eles estão todos a berrar e a
gesticular à roda da choça do Chefe. Rosario, toda
embrulhada
na roupa, o lenço a tapar-lhe a cara, desata a correr sob o
aguaceiro. Aquilo que lá aconteceu é perfeitamente atroz:
uma
menina, para aí de uns oito anos, regressou há pouco do rio,
banhada em sangue desde as virilhas aos joelhos. Quando foi
possível entendê-la, no tumulto das palavras entrecortadas
pelas convulsões do choro e do pavor, soube-se que Nicasio,
o
leproso, tratara de a violar, rasgando-lhe o sexo com as
mãos.
Frei Pedro está agora a estancar a hemorragia com bocados de
pano, enquanto os homens, armados de garrotes, empreendem
uma
batida pelos arredores. "Eu bem disse que esse lazarento
estava aqui a mais", lembra o Adiantado ao frade, como se
nestas palavras se contivesse uma censura desde há muito
latente. O capuchinho não responde e, recorrendo à sua velha
experiência de remédios da selva, coloca um tampão de teias
de
aranhas entre as pernas da menina, enquanto lhe esfrega a
187
púbis com unguento sublimado. O asco e a indignação que me
invade
perante semelhante agressão é indizível: é como se eu, o
homem, todos os homens, fôssemos igualmente culpados do
repugnante atentado, pelo simples facto de a posse, ainda
que
consentida, deixar sempre o varão numa atitude agressiva. E
apertava ainda os punhos enfurecidos quando Marcos me meteu
uma espingarda
debaixo do braço: era uma dessas espingardas maquiritares de
dois canos, dois canos incrivelmente longos, com a marca dos
armeiros de Demerara, que, nestas terras longínquas,
continuam
a manter vivas as técnicas das primitivas armas de fogo.
Levando o indicador aos lábios, a fim de não chamar com
palavras a atenção de frei Pedro, o moço fez-me sinal para o
seguir. Envolvemos a espingarda em trapos e começámos a
andar
em direcção ao rio. As águas, turbulentas e enlameadas,
arrastavam o cadáver de um
veado, tão inchado que o seu ventre branco mais parecia uma
pança de manatim. Chegámos depois ao local da violação, onde
as ervas estavam espezinhadas e sujas de sangue. Na lama
viam-se marcas de passos, marcas profundamente cavadas.
Marcos, debruçado para a frente, começou a seguir as
pegadas.
Andámos durante muito tempo. Quando começou a escurecer,
estávamos já ao pé do Cerro dos Petróglifos sem termos
conseguido achar o leproso. E preparávamo-nos para regressar
quando o mestiço me assinalou um trilho recém-aberto no tojo
molhado. Avançámos
um pouco mais e, de repente, o meu guia deteve-se. Nicasio
está ali, ajoelhado no meio de uma clareira, olhando-nos com
os seus horríveis olhos. "Aponta-lhe à cara", disse Marcos.
Levantei a arma e coloquei a mira ao nível do buraco aberto
no
semblante do miserável. Mas o meu dedo não se decidia a
premir
o gatilho. Da garganta de Nicasio saía uma palavra
ininteligível, algo assim como: "onjijão... onjijão...
onjijão." Baixei a arma: aquilo que o criminoso pedia era a
confissão antes de morrer. Voltei-me para Marcos. "Dispara",
repetiu prontamente. "É melhor que o cura não se meta
nisto". Voltei a apontar. Mas ali havia dois olhos: dois
olhos sem pálpebras, quase sem vida, mas dois olhos
continuavam a olhar-nos. E da pressão do meu dedo dependia
apagá-los. Apagar dois olhos. Dois olhos de homem. Aquilo
era
imundo; aquilo era culpado da mais repugnante agressão,
aquilo
tinha destroçado a carne de uma criança, contaminando-a
talvez
com o seu mal. Aquilo tinha de ser suprimido, eliminado,
deixado para pasto das aves de rapina. Mas havia em mim uma
força que se recusava a fazê-lo, como se a partir do
instante
em que premisse o gatilho algo tivesse de mudar,
inevitavelmente e para sempre. Há actos que erguem muros,
barreiras, estigmas, marcando toda uma existência.

188

E eu tinha medo do tempo que iria começar para mim a partir


do
exacto segundo em que me tornasse num Executor.
Marcos, num gesto colérico, arrancou-me a espingarda das
mãos.
"Arrasam uma cidade a partir do céu mas não se atrevem a
isto! Nunca estiveste numa guerra?..." A espingarda
maquiritare tinha uma bala no cano esquerdo e uma carga de
chumbo miúdo no
direito. Soaram dois disparos tão seguidos que quase se
confundiram, ouvindo-se depois o eco do estampido
ricocheteando de rocha em rocha, de vale em vale... E ainda
os
ecos andavam no ar quando me forcei a olhar: Nicasio
continuava ajoelhado no
mesmo lugar, mas o seu rosto começava a tornar-se difuso, a
desagregar-se, perdendo todo e qualquer contorno humano. Não
passava agora de uma mancha vermelha que se desintegrava a
pouco e pouco, escorrendo-lhe ao longo do peito, sem
pressas,
como uma qualquer matéria cerosa que se estivesse a
derreter.
O fluxo de sangue acabou finalmente por parar, após o que o
torso caiu para a frente sobre a erva molhada. Subitamente,
a
chuva redobrou de intensidade e veio a noite. Era agora
Marcos
quem levava a espingarda.

XXXIII

Foi como um enorme trovão ribombante a entrar no Vale


pelo norte e a passar-nos por cima. Levanto-me da rede de
balouço com tamanha precipitação que quase a faço rodopiar.
Por sob o avião que volteia, indo e vindo, os homens do
Neolítico fogem aterrorizados. O Adiantado apareceu à porta
da
Casa do Governo, seguido de Marcos; ambos olham, pasmados,
enquanto frei Pedro grita para as mulheres índias, que uivam
de medo nas suas choças, que aquilo é "coisa de brancos" mas
não representa perigo algum para ninguém. O avião está
talvez
a uns cento e cinquenta metros do solo, por sob um tecto de
nuvens prestes a desfazerem-se novamente em chuva; mas não
são
apenas cento e cinquenta metros que separam a máquina
voadora
do Chefe dos Índios, que, de arco em punho, a olha
desafiante:
são, sim, cento e cinquenta mil anos. Nestas terras
longínquas, soa pela primeira vez um motor de explosão; e é
a
primeira vez que o ar é removido por uma hélice, pelo que,
na
repetição paralela das voltas por si descritas, girando num
domínio até então reservado aos passados, ela traz-nos, nada
mais nada menos, que a invenção da roda. Contudo, o avião

189

parece voar de um modo algo titubeante. Reparo que o piloto


nos observa como se procurasse algo ou estivesse à espera de
um sinal. Por isso, desato a correr até ao meio do largo,
agitando o lenço de Rosario. O meu júbilo é tão contagioso
que
os índios também
começam agora a aparecer, saltando alvoroçados, pelo que
frei
Pedro tem de os afastar com o seu cajado para desimpedir o
campo. O avião afasta-se em direcção ao rio, desde um pouco
mais, e, de repente, dá uma curva apertada, dirigindo-se
para
nós como que a vacilar em toda a extensão das asas, cada vez
mais baixo. E, de imediato, dá-se o contacto com o solo;
rola
perigosamente em direcção à cortina de árvores, mas, após
uma
oportuna viragem, refreia finalmente o impulso que ainda
tinha. Saem dois homens de dentro do aparelho: dois homens
que
me chamam pelo nome. E o meu espanto aumenta ao saber que,
desde há mais de uma semana, andam vários aviões à minha
procura. Alguémnão sabem dizer-me quem - disse por lá que eu
ando perdido na selva, talvez mesmo prisioneiro de índios
sanguinários. Criou-se uma atmosfera de romance à volta da
minha pessoa, onde se inclui a insidiosa hipótese de eu ter
sido torturado. Repete-se comigo o caso de Fawcett, e os
meus
relatos, publicados na imprensa, trazem de novo à baila a
história de Livingstone. Um grande jornal diário oferece um
vultuoso prémio a quem me resgatar. No seus voos, os pilotos
orientaram-se pelas informações do Curador, que foi quem
delimitou a área de dispersão dos índios cujos instrumentos
musicais eu vim procurar. E estavam já para abandonar a
busca
quando, esta manhã, se viram obrigados a afastar-se dos
rumos
até agora seguidos para evitarem uma tempestade. Ao passarem
por sobre as Grandes Mesetas, espantaram-se ao divisarem um
aglomerado de habitações onde só esperavam poder observar
solos virgens de quaisquer vestígios humanos, pelo que
pensaram, ao ver-me agitar o lenço, ser eu o desaparecido de
que andavam à procura. Admiro-me ao saber que esta cidade de
Henoch (*), ainda destituída de forjas, onde eu talvez seja
o
sacerdote de Jubal (*), está apenas a três horas de avião da
capital, voando em linha recta. Quer dizer que os cinquenta
e
oito séculos que medeiam entre o quarto capítulo do Génese
e a
data do ano que decorre para os de lá, podem

(*) Henoch - Nome de duas personagens do Antigo


Testamento, uma, filho de Caim, a outra, pai de Matusalém.
(N.
do T.)
(**) Jubal - Personagem bíblica anterior ao Dilúvio,
filho de Lamech e descendente de Caim. O Génese apresenta-o
como «o pai daqueles que tocam cítara e outros
instrumentos».
(N. do T)

190

cruzar-se em cento e oitenta minutos, regressando-se assim à


época que alguns identificam com o presente - como se o de

também não fosse o presente -, passando por sobre cidades
que
são hoje, neste mesmo dia, da Idade Média, dos tempos da
Conquista, da época da
Colonização ou do período Romântico.
Começam agora a tirar do avião um volume envolto em
tecidos impermeáveis. o qual me teria sido lançado de
pára-quedas no caso de me terem encontrado num local onde
não
lhes fosse possível aterrar, e entregam a Marcos e ao
frade medicamentos, conservas, facas e ligaduras. O piloto
separa um grande cantil de alumínio, desenroscando a
tampa, e oferece-me de beber. Desde a noite da
tempestade, à deriva no rio caudaloso, que eu não provava
uma
gota de aguardente. Agora, no meio da humidade universal
envolvente, este álcool produz-me subitamente uma espécie de
lúcida embriaguês, inundando-me as entranhas de apetites já
esquecidos. Não só desejava beber mais, sendo por isso que
olho com invejosa impaciência o Adiantado e o filho, ambos a
beberem igualmente da minha aguardente, como também sinto
ânsias de
mil e um sabores que me tentam o paladar. São prementes
anelos
do chá e do vinho, do aipo e do marisco, do vinagre e do
gelo.
E é também esse cigarro que renasce na minha boca, cujo
odor é
igual ao dos cigarros de tabaco louro que fumava na minha
adolescência, às escondidas de meu pai, durante o caminho
para
o Conservatório. Dentro de mim mesmo, há como que o
agitar-se
de um outro que também sou eu, mas que não consegue
ajustar-se
à sua própria imagem; ele e eu sobrepomo-nos algo
incomodamente, à semelhança dessas pranchas móveis
litograficamente impressas em que o homem amarelo e o homem
vermelho não conseguem sair coincidentes - como coisas que
fossem contempladas por uns olhos sãos através de umas
lentes
de míope. Este líquido
ardente que me desce pela garganta desconcerta-me e
acalma-me.
Sinto-me simultaneamente desabitado e mal habitado. E neste
preciso momento, encolho-me acobardado sob as montanhas, sob
as
nuvens que voltam a adensar-se, sob as árvores que as chuvas
tornaram mais frondosas. Há como que diversos cenários a
fecharem-se à minha volta. Determinados elementos da
paisagem
tornam-se-me estranhos - os planos confundem-se uns nos
outros, aquele caminho deixa de me ser familiar, o ruído das
cascatas aumenta ensurdecedoramente. No meio dessa infinda
queda de água, ouço a voz do piloto como algo distinto da
linguagem
usada: é algo que tinha de acontecer, um acontecimento agora
apenas verbalizado, uma convocatória inadiável que tinha
forçosamente de me alcançar, estivesse eu onde estivesse.

191

Diz-me que junte as minhas coisas para partir com eles sem
demora, pois a chuva começa outra vez a ameaçar e só estão à
espera de que a bruma
liberte o topo de uma meseta para porem o motor em marcha.
Faço um gesto de recusa. Mas nesse mesmo momento soa dentro
de
mim, com festiva e enérgica sonoridade, o primeiro acorde da
orquestra do Cântico Fúnebre. Recomeça o drama da falta de
papel para escrever. E vem a seguir a ideia do livro, da
necessidade de alguns livros. Pois em breve se me tornará
imperioso o desejo de trabalhar no Prometheus Unbound - Ah,
me! Alas, pain, pain ever,,for ever! O piloto volta a falar,
de costas para mim. E aquilo que diz, que é sempre o mesmo,
desperta em mim a lembrança de outros versos do poema: I
heard
a sound of voices; not the voice which I grave, forth (*). O
idioma dos homens do ar, que foi o meu idioma durante tantos
anos, colide esta manhã na minha mente com o idioma
original -
o da minha mãe, o de Rosario. Mal
consigo pensar em espanhol, como tinha voltado a fazer,
perante a sonoridade de vocábulos que lançam a confusão no
meu
espírito. No entanto, não me quero ir embora. Mas admito que
careço aqui de algumas coisas que se podem resumir em duas
palavras: papel, tinta. Consegui chegar a prescindir de tudo
aquilo que me era habitual noutros tempos: abandonei
objectos,
sabores, telas, prazeres, como quem se liberta de um lastro
desnecessário, acabando por alcançar a suprema simplicidade
da
rede, do corpo lavado com cinza e do prazer sentido em roer
espigas assadas na brasa. Mas não posso ter falta de papel e
tinta: de coisas que se expressam ou podem expressar-se
através do papel e da tinta. A três horas daqui há papel e
tinta, há livros feitos de papel e tinta, há cadernos, há
resmas de papel, há frasquinhos, garrafas, garrafões de
tinta.
A três horas daqui... Olho para Rosario. Há no seu semblante
uma expressão fria e ausente, que não expressa desgosto,
angústia ou dor. É inegável que se dá conta da minha
indecisão, pois os seus olhos, que evitam os meus, exibem um
ar duro, altivo, de quem quer demonstrar perante todos que
em
nada lhe importa aquilo que possa acontecer. Nesse interim,
chega Marcos com a minha velha mala de mão enverdecida pelos
fungos. Volto a fazer um gesto de recusa, mas a minha mão
abre-se para receber os Cadernos de... Pertencentes a... que
nelas colocam. A voz do piloto, a quem muito deve agradar a
recompensa oferecida, soa energicamente para me apressar. O
mestiço sobe agora ao avião, levando consigo os instrumentos
musicais que deveriam estar na posse do Curador. Começo por
lhe dizer que não, mas depois acabo por

(*) Ouvi um som de vozes; não a voz que trago gravada no


coração. (N. do T.)

192

concordar, pensando que o bastão cerimonial, os guizos e a


jarra funerária, ao partirem envoltos nas suas esteiras de
fibra, me libertarão das presenças que continuavam a
perturbar-me o sono das minhas noites na cabana. Bebo o
resto
que ficou no cantil de alumínio. E, de repente, decido-me:
irei comprar as poucas coisas que me são necessárias para
poder levar aqui uma vida tão cheia quanto aquela que os
demais conhecem. Todos eles, com as suas mãos, com a sua
vocação, cumprem um destino. O caçador caça, o
frade doutrina, o Adiantado governa. E agora sou eu quem
também deve ter um ofício - o legítimo - à margem dos
ofícios
que requerem aqui o concurso do esforço comum. Dentro de
alguns dias voltarei para ficar, depois de ter enviado os
instrumentos ao Curador e de me ter posto em contacto com
Ruth para lhe explicar lealmente a situação e pedir-lhe
um rápido divórcio. Compreendo agora que a minha
adaptação a esta vida foi talvez demasiado brusca; o meu
passado exigia o cumprimento de um último dever, com a
ruptura do vínculo legal que continua a atar-me ao mundo de
lá. Ruth não fora uma má esposa, mas tão só uma vítima da
sua
malograda vocação. Estou certo de que aceitará todas as
desculpas quando compreender a inutilidade de criar
obstáculos ao divórcio ou de reclamar coisas impossíveis
a um homem que conhece os caminhos da evasão. E, dentro de
três ou quatro semanas, poderei estar de volta a Santa
Mónica
de los Venados, com todo o material necessário para
trabalhar
durante vários anos. Quanto à obra já produzida, o Adiantado
se encarregaria de a levar a Puerto Anunciación quando lhe
calhasse descer ao povoado, ficando o resto ao cuidado do
correio fluvial: os maestros e músicos amigos a quem se
destinava depois se entenderiam com ela, executando-a ou
não.
Sentia-me curado de toda a vaidade a esse respeito, ainda
que
agora me julgasse capaz de expressar ideias e inventar
formas
que permitirão purificar a música do meu tempo de inúmeros
desvios. Ainda que não me devesse envaidecer com aquilo que
agora sabia - sem buscar a vaidade oca do aplauso -, não
devia
calar aquilo que sabia. Pois talvez houvesse em algum lugar
umjovem à espera da minha mensagem, para que, indo ao
encontro
da minha voz, pudesse achar em si mesmo o rumo libertador. A
criação não está completa enquanto não for vista por outrem.
Mas bastava que um só homem a olhasse para a criação ser um
facto, para se tornar verdadeira criação em virtude da
simples
palavra de um Adão
enunciador.
O piloto pousa-me a mão no ombro num gesto imperioso.
Rosario parece alheia a tudo. Explico-lhe, então, em poucas
palavras, o que acabo de decidir. Ela não responde,

193

limitando-se a encolher os ombros com uma expressão que


passou
a ser de despeito. Mostro-lhe então, à guisa de prova, os
apontamentos do Cântico Fúnebre. Digo-lhe que, para mim,
esses
cadernos são a coisa mais valiosa depois dela. "Podes
levá-los", diz-me num tom rancoroso, sem me olhar. Beijo-a,
mas ela esquiva-se num gesto rápido, fugindo aos braços que
a
agarravam, e afasta-se, sem virar a cabeça, com algo de
animal
que não quer que o acariciem.
Chamo-a, falo-Lhe, mas o motor do avião arranca nesse
preciso
instante. Os índios irrompem numa alegre gritaria. Da cabina
de comando, o piloto faz-me um último sinal. E uma porta
metálica fecha-se nas minhas costas. Os motores soam com um
estrépido que não me deixa pensar. E, de imediato, dá-se a
ida
até ao
extremo do largo; depois a meia-volta, seguida de uma
imobilidade trepidante em que as rochas parecem querer
enterrar-se no solo lamacento. E já as copas das árvores
começam a ficar para trás; passamos em voo rasante sobre a
Meseta dos Petróglifos, posto o que giramos sobre Santa
Mónica
de los Venados, cuja Grande Praça foi novamente invadida
pelos
seus habitantes. Vejo frei Pedro a fazer molinetes com o
cajado. Vejo o Adiantado, de mãos na cintura, a olhar para
cima, com Marcos a seu lado, que agita o seu chapéu de
palha.
Avançando pelo caminho que conduz a nossa casa, Rosario
caminha sem erguer os olhos do chão, e eu estremeço ao notar
que a sua cabeleira negra, caindo-lhe de ambos os lados da
cabeça - dividida por uma risca cujo odor um tanto animal me
volta deleitosamente às narinas -, tem algo de véu de viúva.
Ao longe, no lugar onde caiu Nicasio, uma revoada de abutres
volteia no ar. Uma nuvem adensa-se debaixo de nós, pelo que,
buscando bonança, subimos até uma névoa opalescente que
nos isola totalmente do exterior. Avisado de que voaremos
por
muito tempo sem visibilidade, deito-me no chão do avião e
adormeço, algo aturdido pela aguardente e pela grande
altitude
que estamos a alcançar.

CAPÍTULO SEXTO

Aquilo a que chamas morrer é acabar


de morrer, aquilo a que chamas nascer
é começar a morrer e aquilo a que chamas
viver é morrer, vivendo.

Quevedo - Los Suenos

XXXIV

(18 de Julho)

Acabamos de atravessar uma ténue camada de nuvens


sobre a qual, todavia, era visível - através de arcos
incompletos, de obeliscos carcomidos, de colossos
envoltos em fumo - a claridade do dia, para descobrir, em
baixo, o crepúsculo da cidade cujas luzes começam a
acender-se. Alguns divertem-se num estádio, num parque, numa
avenida principal, entre tantas geometrias luminosas,
passando
os indicadores pelos cristais das janelinhas. Enquanto
outros
se alegram de chegar, eu aproximo-me com angustiosa
apreensão
desse mundo que deixei há mês e meio, segundo cálculo feito
pelos calendários em uso, quando na realidade vivi a
espantosa
dilatação de seis intermináveis semanas que escaparam às
cronologias deste clima. A minha mulher deixou o teatro para
desempenhar um novo papel: o papel de esposa. É essa a
terrível novidade que me tem feito sobrevoar casas de
subúrbios que nunca pensei voltar a ver, em vez de estar a
preparar já a volta a Santa Mónica de los Venados, onde Tua
mulher me aguarda com os apontamentos do

194 195

Canto Fúnebre, que já terão resmas e resmas de papel para se


desenvolver. Ainda por cima, as pessoas que me rodeiam, e
para
as quais fui a grande atracção da viagem, parecem
invejar-me:
todas me mostraram recortes de publicações em que Ruth
aparece, na nossa casa, rodeada de jornalistas, ora exibindo
um perfil triste perante as vitrinas do Museu Organográfico,
ora observando um mapa com expressão dramática no
apartamento
do Curador. Uma
noite, quando estava em cena - contam-me -, teve um
pressentimento. Desatou a soluçar a meio da representação e,
saindo do palco pouco antes de iniciar o diálogo com Booth,
foi directamente à redacção de um grande diário, revelando
que
não tinha notícias minhas, que eujá devia ter regressado no
princípio do mês e que o meu professor de música - que fora
vê-la naquela tarde, estava de facto inquieto por não saber
nada de mim. Depressa despertou a imaginação dos repórteres,
se evocaram as figuras de exploradores, viajantes, sábios,
cativos de tribos sanguináriasdesde logo com Fawcett em
primeiro lugar -, e Ruth, no auge da emoção pediu ao jornal
que exigisse o meu resgate, dando um
prémio a quem me encontrasse na grande mancha verde,
inexplorada, que o Curador havia assinalado como zona
geográfica do meu destino. Na manhã seguinte, Ruth era uma
patética figura de actualidade e o meu desaparecimento,
ignorado na véspera, era então notícia de um interesse
nacional. Todas as minhas fotografias foram publicadas,
inclusive a da minha primeira comunhãoprimeira comunhão essa
aceite de má vontade pelo meu pai -, em frente da igreja de
Jesus del Monte, as de uniforme, nas ruínas de Monte
Cassino,
e a outra, em frente da Villa Wahnfried, com os soldados
negros. O Curador explicou à imprensa, com grandes elogios,
a
minha teoria - que hoje me parece tão absurda! - do
mimetismo-mágico-ritmico, enquanto a minha mulher apresentou
um esboço harmonioso e plácido da nossa vida conjugal. Mas

algo mais, que me irrita sobremaneira: ojornal, que tão
generosamente acaba de premiar os aviadores pelo meu
resgate,
muito dado a congraçar-se com o lar e a família, insiste em
apresentar-me aos seus leitores como uma personagem
exemplar.
Uma temática persistente torna-se demasiado audível através
da
prosa dos artigos que se referem a mim: sou um mártir da
investigação científica, que volta ao regaço da esposa
admirável; também no mundo do
teatro e da arte se pode encontrar a virtude conjugal; o
talento não é desculpa para infringir as normas da
sociedade;
vejam a Pequena Crónica de Ana Magdalena, evoquem o
aprazível
lar de Mendelssohn, etc. Quando me vou apercebendo de tudo o
que fizeram para me tirar da selva, sinto-me envergonhado e
irritado. Custei ao país uma verdadeira fortuna:

196

mais do que o necessário, para assegurar uma existência


folgada a várias famílias para uma vida inteira. No meu
caso,
tal como no de Fawcett, surpreende-me o absurdo de uma
sociedade capaz de suportar friamente o espectáculo de
certos
subúrbios - como estes que agora sobrevoamos, com as
crianças
amontoadas sob pranchas de aço -, enquanto se enternece e
sofre pensando que um explorador, etnógrafo e caçador se
possa
ter perdido ou estar cativo de bárbaros no desempenho de
funções livremente aceites, que incluem riscos nas suas
regras, tal como o toureiro está na contingência de receber
uma cornada. Milhões de seres humanos puderam esquecer, por
algum tempo, as guerras que ameaçam a cidade, para se
preocuparem com notícias minhas. E os que agora se dispõem a
aplaudir-me ignoram que vão aplaudir um mentiroso. Porque
tudo, neste voo que agora se faz à pista, é mentira. Estava
eu
no bar do hotel onde tínhamos velado o Kappelmeister quando,
vinda do outro extremo do hemisfério, ouvi a voz de Ruth
pelo
telefone. Chorava, ria, e estava rodeada de tanta gente que
mal entendi o que me queria dizer. Em resumo, foram
expressões
de amor e a notícia de que abandonara o teatro para estar
sempre a meu lado, pelo que tomaria o primeiro avião para se
me juntar. Horrorizado com este propósito, que a traria
para o
meu campo, precisamente no limiar da minha evasão, ali onde
o
divórcio era tão demorado e difícil em virtude de leis muito
hispânicas, que incluiam rogativas ao Tribunal de la Rota,
gritei-lhe que ficasse em nossa casa e que quem tomaria o
avião naquela mesma noite seria eu. Na despedida confusa,
entrecortada por sons parasitários, pareceu-me ouvir algo
acerca de que queria ser mãe. Porém, logo em seguida,
passando
mentalmente tudo o que de inteligível emergira da conversa,
parei com o auscultador em suspenso, perguntando-me se teria
dito que queria ser mãe ou que ia ser mãe. Esta última, para
mal dos meus pecados, estava dentro das possibilidades, já
que
tivera relações com ela, pela última vez, em rotineiro rito
dominical, havia menos de seis meses. Esse foi o momento em
que aceitei a soma considerável, oferecida pelo jornal, do
meu
resgate para lhe reservar a exclusividade de inumeráveis
mentiras - já que são cinquenta cadernos de mentiras o que
vou
vender agora. Com efeito, não posso revelar o que a minha
viagem teve de maravilhoso, já que isso equivaleria a pôr os
piores visitantes a caminho de Santa Mónica e do Valle de
las
Mesetas. Por sorte, os pilotos que me encontraram apenas se
referiram nas suas notícias a uma missão, pelo hábito verbal
de chamar «missão» a todo o lugar afastado onde um frade
plantou uma cruz. E como as missões não inspiram grande
curiosidade ao público, posso chamar-lhe muitas

197

coisas. Aquilo que venderei será, pois, uma patranha que fui
imaginando durante a viagem: prisioneiro de uma tribo mais
desconfiada do que cruel, consegui evadir-me, percorrendo
sozinho centenas de quilómetros através da selva; por fim,
perdido e esfomeado, cheguei à «missão» onde me encontraram.
Tenho na minha pasta uma novela famosa de um escritor
sul-americano, onde são mencionados nomes de animais e de
árvores, referindo-se a lendas indígenas, acontecimentos
antigos, e tudo o necessário para dar um ar de veracidade ao
meu relato. Receberei pela minha prosa e, com uma soma de
dinheiro que pode assegurar a Ruth uns três anos de vida
aprazível, proporei o meu divórcio com menos remorsos.
Porque
é indiscutível que o
meu caso se agravou, no plano moral, com esta dúvida acerca
da
sua gravidez -gravidez que explicaria a sua brusca deserção
do
teatro e a necessidade de se aproximar de mim. Sinto que
terei
de combater a mais terrível das tiranias: a que os que amam
costumam exercer sobre a pessoa que não quer ser amada,
ajudados pela tremenda força de uma ternura e uma humildade
que desarmam a violência e acalmam as palavras de repúdio.
Não
há pior adversário, numa luta como a que vou travar, do que
aquele que aceita todas as culpas e pede perdão antes que
lhe
indiquem a porta.
Logo que desço as escadas do avião, a boca de Ruth vem ao
meu encontro e o seu corpo procura-me na inesperada
intimidade
criada pelos casacos abertos, que se tornam num só de ambos
os
lados dos nossos corpos; reconheço o contacto dos seus
seios e
do ventre sob o fino tecidos que os cobre e há logo um
prorromper de soluços sobre o meu ombro. Estou cego pelos
mil
relâmpagos que são como espelhos partidos ao entardecer do
aeródromo. Porém, chega logo o Curador, que me abraça
emocionado; chega também a delegação da Universidade,
encabeçada pelo Reitor e os Decanos das Faculdades; vários
altos funcionários do governo e do município, o director do
jornal - também não estava lá Extieich com o pintor das
cerâmicas e a bailarina? - e, finalmente, o pessoal do meu
estúdio de sincronização, com o presidente da empresa e o
comissário de relações públicas - já completamente ébrio. De
entre a confusão e o atordoamento que me envolvem, vejo
surgir, como que vindos de muito longe, rostos quejá
esquecera: rostos de tantos e tantos que convivem
estreitamente connosco durante anos, pela prática comum de
um
ofício ou a concorrência obrigatória numa área de trabalho e
que, sem dúvida, pouco depois de deixarem de se ver,
desaparecem com os seus nomes e o som das palavras que
pronunciavam. Escoltado por esses espectros, encaminho-me

198

para a recepção da Câmara. Observo então Ruth,


sob os lustres da galeria dos retratos, e parece-me que
interpreta o melhor papel da sua vida: enredando e
desenredando o interminável arabesco, torna-se pouco a
pouco o
centro do acto, o seu eixo de gravitação e, tirando toda a
iniciativa às outras mulheres, usurpa as funções de dona de
casa com uma graça e uma mobilidade de bailarina. Está em
toda
a parte; desliza por detrás das colunas, desaparece para
ressurgir noutro lugar, ubíqua, inacessível; faz uma pose
quando o fotógrafo se aproxima; alivia uma forte enxaqueca,
encontrando a pílula certa na sua carteira; volta para junto
de mim com uma guloseima ou um copo na mão,
olha-me com emoção por um segundo, roça-me com o seu corpo
num gesto íntimo, que cada um crê ser o único a tê-lo
surpreendido; vai, vem, dirige uma palavra estudada a alguém
que citou Shakespeare, faz uma breve declaração à imprensa,
afirma que me acompanhará na próxima vez que eu for à selva;
ergue-se, esbelta, perante a câmara das actualidades, e a
sua
actuação é tão matizada, diversa, insinuante, dando-se sem
deixar de guardar as distâncias, deixando-se admirar de
perto
mas sempre atenta a mim, usando de mil artimanhas
inteligentes
para aparecer aos olhos de todos como a imagem da felicidade
conjugal, que dá vontade de aplaudir. Ruth, nesta recepção,
tem a comovida alegria da esposa que vai viver - desta vez
sim, a dor da desfloração - uma
segunda noite de núpcias; é Genoveva de Brabante que volta
ao
castelo; é Penélope ouvindo Ulisses falar-lhe do leito
conjugal; é Griseldis, engrandecida pela fé e a espera. Por
fim, quando pressente que os seus recursos se estão a
esgotar,
que uma reiteração pode desprestigiar o papel da
Protagonista,
fala tão persuasivamente do meu cansaço, do meu desejo de
repouso e de intimidade, depois de tantas e tão cruéis
tribulações, que nos deixam sair, entre os acenos entendidos
dos homens que vêem a minha mulher descer a escadaria de
honra, de braço dado comigo, com o corpo moldado pelo
vestido.
Ao sair da Câmara, tenho a impressão de que só falta descer
o
pano e apagar as gambiarras. Sinto-me alheio a tudo isto.
Estive muito longe daqui. Quando, a certa altura, o
presidente
da minha empresa me disse "Tira mais alguns dias para
repousares", olhei-o incrédulo, quase indignado pelo seu
atrevimento em se apropriar de qualquer poder sobre o meu
tempo. Depois, volto a encontrar a minha antiga casa, como
se
entrasse na casa de um estranho. Nenhum dos objectos que
aqui
vejo tem para mim o significado de outrora, nem sinto desejo
de reaver este ou aquele. Entre os livros alinhados na
biblioteca, há centenas que para mim morreram. Toda uma
literatura que eu considerava a mais inteligente

199
e subtil que fora produzida na época cai para mim em
descrédito com os seus arsenais de falsas maravilhas. O
cheiro
peculiar deste apartamento devolve-me a uma vida que não
quero
viver segunda vez... Ao entrar, Ruth inclinara-se para
apanhar
um recorte de jornal que alguém - decerto um
vizinho -metera por baixo da porta. Agora parece que a sua
leitura lhe causa uma crescente surpresa. Agrada-me esta sua
distracção que retarda os temidos gestos de carinho,
dando-me
tempo de pensar o que vou dizer-Lhe quando tomar uma atitude
mais violenta e se aproximar com os olhos chamejantes de
ira.
Dá-me o recorte do jornal e estremeço ao ver uma fotografia
de
Mouche em colóquio com um jornalista conhecido pela
exploração
do escândalo. O título do artigo fala de revelações acerca
da
minha viagem. O seu autor relata uma conversa tida com
aquela
que fora minha amante. Esta declarou-lhe da forma mais
surpreendente que foi minha colaboradora na selva: segundo
as
suas palavras, enquanto eu estudava os instrumentos
primitivos
do ponto de vista organográfico, ela considerava-os sob o
aspecto astrológico -pois, como é sabido, muitos povos da
antiguidade relacionaram as suas escalas com uma hierarquia
planetária. Com uma intrepidez aterradora, cometendo erros
ridículos para qualquer especialista, Mouche fala da «dança
da
chuva» dos índios Zunis, com a sua espécie de sinfonia
elementar em sete movimentos; cita rajás indostânicos,
menciona Pitágoras, com exemplos devidos, obviamente, à
amizade com
Extieich. E é hábil, apesar de tudo, já que com este
desenrolar de falsa erudição trata de justificar, aos olhos
do
público, a sua presença a meu lado na viagem, fazendo
esquecer
a verdadeira índole das nossas relações. Apresenta-se como
uma
estudiosa da astrologia que se aproveita da missão confiada
a
um amigo para se aproximar das noções cosmogónicas dos
índios
mais primitivos. Termina o seu relato afirmando que
abandonou
voluntariamente a empresa, durante a qual fora atacada de
paludismo, regressando na canoa do doutor Montsalvatje. Nada
mais disse, ciente de que isto basta para que os
interessados
entendam o que devem entender: na realidade, está a
vingar-se
da minha fuga com Rosario e do grandioso papel que a opinião
pública atribuiu à minha mulher. E aquilo que não disse
deduziu-o o jornalista com maldosa ironia: Ruth empenhou a
nação inteira no resgate de um homem que, na realidade, foi
para a selva com uma amante. O aspecto equívoco da história
ficava evidenciado pelo silêncio de quem, agora, saía da
sombra com o mais pérfido oportunismo. Subitamente, o
sublime
teatro conjugal da minha mulher afundava-se no ridículo. E
ela
olhava-me, nesse instante, com um ódio que era mais
significativo
do que quaisquer palavras; o seu rosto parecia feito da
matéria gípsea das máscaras trágicas e a boca, imobilizada
num
trejeito sardónico, deixava ver os dentes - era defeito que
muito ocultava - em arco demasiado fechado. Enterrara as
suas
mãos crispadas na cabeleira, como que em busca de apertar ou
partir algo. Compreendi que me devia antecipar ao explodir
de
uma cólera que já não era possível conter-se e precipitei a
crise revelando de súbito tudo aquilo que só pensara dizer
alguns dias mais tarde, quando apoiado pela abjecta mas
inegável força do dinheiro. Atribuí as culpas ao teatro, à
sua
vocação sobreposta a tudo, à separação
física, ao absurdo de uma vida conjugal reduzida à
fornicação
do sétimo dia. E movido pela vingativa necessidade de
juntar o
pormenor ao revelado, disse-lhe como a sua carne, um belo
dia,
me parecera distante; como a sua pessoa se transformara,
para
mim, na mera imagem do dever que se cumpre para evitar os
transtornos que uma ruptura, aparentemente injustificada,
durante algum tempo acarreta. Falei-lhe então de Mouche, dos
nossos primeiros encontros, do seu estúdio decorado com
figuras astrais, onde, pelo menos, encontrara algo de
juvenil
desordem, de alegre impudor um tanto animalesco, que, para
mim, era inseparável do amor físico. Ruth, caída sobre a
carpete, arquejante, com todas as veias do rosto desenhadas
a
verde, apenas conseguia dizer-me, numa espécie de estertor
lamentoso, como que querendo chegar quanto antes ao fim de
uma
operação insuportável: "Continua... Continua... Continua".
Mas eu estava então a contar-lhe o meu desprendimento de
Mouche, o meu presente asco pelos seus vícios e mentiras, o
meu desprezo pelo significado das falácias da sua vida, a
sua
tarefa de enganar e o contínuo atordoamento dos seus amigos
enganados pelas ideias enganosas de outros enganados - pois
agora via tudo aquilo com outros olhos, como que tivesse
voltado com a vista renovada, de uma longa viagem por terras
de verdade. Ruth pôs-se de joelhos para me ouvir melhor. E a
certa altura vi nascer no seu olhar o perigo de uma
compaixão
demasiado fácil, de uma generosa indulgência que de modo
algum
queria aceitar. O seu rosto ia-se suavizando de compreensão
humana, perante a debilidade castigada, e em breve estaria
disposta a ajudar o pecador, dando-lhe o seu perdão
soluçante
e magnânimo. Por uma porta aberta, via a sua cama demasiado
arranjada, com os melhores lençóis, as flores na mesinha de
cabeceira, as minhas pantufas ao lado das dela, como
antecipação de um abraço previsto, ao qual não faltaria a
reconfortante conclusão de uma agradável refeição que devia
estar algures no apartamento, com os seus vinhos a esfriar.
O
perdão estava tão próximo que julguei chegado o

200 201

momento de aplicar o golpe decisivo, tirando Rosario do seu


esconderijo e apresentando à estupefacta Ruth esta
imprevista
personagem como algo remoto, singular, incompreensível para
os
mortais comuns, pois a sua explicação requeria a posse de
certas chaves. Descrevia-a como um ser tão extraordinário
que
seria inútil pensar alcançar pelas vias normais um mistério
em pessoa, cujos prestígios me haviam marcado devido a
provas
que deviam silenciar-se, como se silenciam os segredos de
uma
ordem de cavalaria. Durante o desenrolar do drama que tinha
por cenário este conhecido aposento, ia-me divertindo
maldosamente aumentando a perplexidade da minha mulher, com
o
aspecto de Kundry que as minhas palavras emprestavam a
Rosario, construindo em torno dela uma decoração de Paraíso
Terrestre, onde a jibóia seguida por Gavião tivesse feito as
vezes de serpente. Essa distenção de mim próprio através da
invenção verbal dava à minha voz um tom
tão firme que Ruth, vendo-se ameaçada por um perigo real, se
pôs à minha frente para ouvir com mais atenção. De repente,
deixei escapar a palavra divórcio - e, como ela parecia não
compreender, repeti-a várias vezes, sem enfado, no tom
resoluto e nada alterado de quem expõe uma decisão
inabalável.
Então, uma
grande tragédia se desenrolou à minha frente. Não consigo
recordar o que me disse durante a meia hora em que o quarto
foi o seu cenário. O que mais me impressionou foram os
gestos:
os gestos dos seus braços delgados, que iam do corpo imóvel
ao
semblante de gesso, apoiando as palavras com patética
exactidão. Creio agora que todas as inibições dramáticas de
Ruth, a sua prisão de anos a um mesmo papel, os seus
desejos,
sempre adiados, de se lacerar em cena, vivendo a dor e a
fúria
de Medeia, encontravam, de súbito, em alívio naquele
monólogo
que tocava as raias do
paroxismo... Mas repentinamente os seus braços caíram,
baixou
a voz para um tom grave, e a minha mulher foi a Lei. O seu
idioma tornou-se idioma de tribunais, de advogados, de
agentes
do Ministério Público. Gelada e dura, imobilizada por uma
atitude acusadora, reforçada pela negrura do vestido que
deixara de a moldar, advertiu-me de que dispunha de meios
para
me manter amarrado por muito tempo, que levaria o divórcio
pelos caminhos mais complicados e sinuosos, que me
comprometeria com os laços
legais mais pérfidos, com os trâmites mais enredados, de
forma
a impedir o regresso para onde vivia aquela que agora
designava pelo termo ridículo de Tua Amante. Parecia uma
estátua majestosa, pouco feminina, colocada sobre a carpete
verde como um Poder inexorável, como uma encarnação da
justiça. Por fim, perguntei-lhe se a sua gravidez sempre se
confirmava. Nesse momento, Témis tornou-se

202

mãe: abraçou o seu próprio ventre num gesto de desolação,


inclinando-se sobre a vida que lhe
nascia nas entranhas, como que para a defender da minha
audácia, desatou a chorar de forma humilde, quase infantil,
sem me olhar, tão dolorida que os seus soluços, vindos do
fundo, resultavam apenas em leves gemidos. Depois, mais
calma,
fixou os olhos na parede como se contemplassem algo remoto;
levantou-se com grande
esforço e dirigiu-se para o seu quarto, fechando a porta
atrás
de si. Cansado devido à crise, necessitando de ar, desci as
escadas. Ao fundo dos degraus era a rua.

XXXV
(Mais tarde)

Como adquiri o hábito de andar ao ritmo da minha


respiração, surpreendo-me ao descobrir que os homens que me
rodeiam vão, vêm, cruzam-se, sobre o amplo passeio, com um
ritmo alheio às suas vontades orgânicas. Se andam com um
passo
e não com
outro, é porque a sua marcha corresponde à ideia fixa de
chegar à esquina a tempo de apanhar a luz verde que lhes
permite atravessar a avenida. Por vezes, a multidão que
surge
aos magotes das bocas do metropolitano, de tantos em tantos
minutos, com a constância de uma pulsação, parece quebrar o
ritmo geral da rua com uma pressa ainda maior do que a
reinante; mas depressa se restabelece o volume normal de
agitação entre um semáforo e o outro. Como já não consigo
adaptar-me às leis desse movimento colectivo, opto por
caminhar muito lentamente, colado às montras, já que junto
às
casas comerciais existe algo assim como uma zona de
indulgência para os velhos, os inválidos e os que não têm
pressa. Descubro então, nos estreitos espaços abrigados que
habitualmente existem entre duas montras ou duas casas mal
unidas, uns seres que descansam, como que aturdidos, mais
parecendo
múmias paradas. Numa espécie de fórnice, está uma mulher em
avançado estado de gravidez, com rosto de cera; numa guarita
de ladrilhos vermelhos, um negro envolto num capote coçado
experimenta uma ocarina recém-comprada; numa cova, um cão
treme de frio entre os sapatos de um bêbado que adormeceu de
pé. Chego a uma igreja, a cujas penumbras perfumadas de
incenso me convidam as notas de um gradual de órgão. Os
cantos

203

litúrgicos repercutiam-se em profundos ecos sob as abóbadas


do
deambulatório. Olho os rostos voltados para o sacerdote,
onde
se reflecte a luz amarelada dos círios: nenhum dos que aqui
se
juntarem, pelo fervor neste ofício nocturno, entende uma
palavra do que diz o sacerdote. A beleza da prosa é-Lhes
alheia. Agora que o latim foi afastado das escolas por
inútil, isto que aqui vejo é a representação, o teatro, de
um
crescente mal-entendido. Entre o altar e os seus fiéis
cava-se, de ano para ano, um fosso repleto de palavras
mortas.
Ergue-se agora o canto gregoriano: Justus uit palma
florebit/
/ Sicut cedrus Libani multiplicabitur:/ plantatus in
Domini,/
in atris domus Dei nostri. À ininteligibilidade do texto
junta-se agora, para os presentes, a de uma música que
deixou
de ser música para a maioria dos homens: canto que se ouve e
não se escuta, como se ouve, sem se escutar, o morto idioma
que o acompanha. E ao observar agora os estranhos, os
forasteiros que são os homens e mulheres aqui congregados,
perante algo que se lhes diz e se lhes canta numa língua que
ignoram, apercebo-me de que a espécie de inconsciência com
que
assistem ao mistério é própria de quase tudo o que fazem.
Quando aqui se casam, trocam alianças, pagam arras, recebem
punhados de arroz na cabeça, ignorantes do simbolismo
milenário dos seus próprios gestos. Procuram a fava no
bolo-rei, levam amêndoas ao baptismo, cobrem um abeto de
luzes
e enfeites, sem saberem o que é a fava, a amêndoa ou a
árvore
que adornam. Os homens orgulham-se de conservar tradições de
origem esquecida, reduzidas, na maior parte das vezes, ao
automatismo de um reflexo colectivo - a guardar objectos de
uso desconhecido, cobertos de inscrições que deixaram de
falar
há quarenta séculos. Em contrapartida, no mundo ao qual
agora
regressei, não existe um gesto cujo significado se
desconheça:
a refeição sobre o túmulo, a purificação da casa, a dança do
mascarado, o banho de ervas, o emolumento de aliança, o
baile
provocatório, o espelho velado, a percussão propiciatória,
são
práticas cujo alcance é
medido em todas as suas implicações. Dirijo o olhar para o
friso daquela biblioteca pública que se ergue ao centro da
praça como um templo antigo: entre os seus tríglifos,
inscreve-se o bucrânio que um arquitecto aplicado terá
delineado sem lhe ocorrer, provavelmente, que aquele
ornamento
trazido da noite dos tempos é apenas uma figuração do troféu
de caça, ainda manchado de sangue coagulado, que o chefe de
família pendurava à entrada da sua casa. No meu regresso
encontro a cidade coberta de ruínas, mais ruínas do que as
ruínas consideradas como tal. Por toda a parte vejo colunas
enfermas e edifícios agonizantes, com os últimos
entablamentos
clássicos executados neste século, e os últimos
acantos do Renascimento que acabam por extinguir-se em
ordens abandonadas pela nova arquitectura, sem os substituir
por novas ordens nem por um grande estilo. Um grandioso
acontecimento do Palladio, um genial encrespamento do
Borromini, perderam todo o significado em fachadas feitas em
retalhos de culturas anteriores, que o cimento circundante
depressa acabará por apagar. Dos
caminhos desse cimento saem, extenuados, homens e mulheres
que
venderam mais um dia da sua existência às empresas de
alimentícios. Viveram mais um dia sem o viver e recobrarão
forças para amanhã viverem um dia que também não será
vivido,
a menos que
se refugiem, - como eu dantes fazia, a esta hora - no
estrépido das danças e no atordoamento do licor, para se
encontrarem ainda mais desamparados, mais tristes, mais
cansados, durante o próximo Sol. Acabo de chegar,
precisamente, ao venusberg, o lugar onde tantas vezes
vínhamos
beber, Mouche e eu, com um anúncio luminoso em caracteres
góticos. Sigo os que se querem divertir e desço à cave, em
cujas paredes pintaram cenografias de planícies áridas, como
que sem ar, limitadas por esqueletos, arcos em ruínas,
bicicletas sem ciclistas, muletas que amparam como falos
pétreos, em cujos primeiros planos figuram, como que
vergados
pelo desespero, alguns velhos desolados que parecem ignorar
a
presença de uma Górgona exangue, de peito aberto acima de um
ventre comido por formigas verdes. Mais adiante, um
metrónomo,
uma clepsidra e um caracol descansam sobre a cornija de um
templo grego cujas colunas são pernas de mulher vestidas com
meias pretas, com uma liga vermelha fazendo de astrágalo. O
estrado da orquestra está montado sobre uma construção de
madeira, estuque, pedaços de metal, onde estão escavadas
pequenas grutas iluminadas que encerram cabeças de gesso,
hipocampos, pranchas anatómicas e um móvel que consiste em
dois seios de cera, montados sobre um disco giratório, cujos
mamilos são roçados, ao passar, pelo dedo médio de uma mão
de
mármore.
Numa gruta um pouco maior há fotografias, muito ampliadas,
de
Luís da Baviera, do cocheiro Hornig e do actor Joseph Kainz
com o traje de Romeu, sobre um fundo de vistas panorâmicas
dos
castelos wagnerianos, rococós - sobretudo muniquenses - do
rei
posto em voga por certos elogios da loucura, já muito
antiquados - embora Mouche lhes tivesse sido muito fiel, em
data ainda recente, por reacção a tudo o que chamava
«espírito
burguês». O céu aberto imita uma abóbada de caverna,
verdecida
irregularmente por cogumelos e infiltrações. Reconhecido o
local, observo as pessoas que me rodeiam. A pista de dança é
uma amálgama de corpos metidos uns nos outros, encaixados,
confusões de pernas e braços que na escuridão

204 205

se misturam como os ingredientes de uma espécie de magma, de


lava incitada, de dentro, ao compasso de um blues reduzido
aos
seus meros valores rítmicos. Agora apagam-se as luzes e a
escuridão, propiciando a estreiteza de alguns abraços sem
objecto, de alguns contactos desesperados por leves
barreiras
de seda ou lã, comunica uma nova tristeza a esse movimento
colectivo que tem algo de ritual subterrâneo, de dança para
calcar a terra - sem terra para calcar... Estou de novo na
rua, sonhando, para esta gente, com monumentos que fossem
grandes touros no cio cobrindo magistralmente as suas vacas
sobre socos enobrecidos de bosta, no centro das praças
públicas. Detenho-me na vitrina de uma galeria de pintura,
em
que se exibem ídolos defuntos, destituídos de sentido por
não
terem adoradores presentes, cujos rostos enigmáticos ou
terríveis interrogam muitos pintores de hoje na procura do
segredo de uma eloquência perdida - com a mesma saudade de
energias instintivas que levava muitos compositores da minha
geração a procurar, no abuso dos instrumentos de bateria, a
força elementar dos ritmos primitivos. Durante mais de vinte
anos, uma cultura cansada tratara de se rejuvenescer e
encontrar novas saídas no fomento de fervores que nada
deviam
à razão. Mas agora parecia-me ridícula a intenção daqueles
que
agitavam máscaras de Bandiagara, instrumentos africanos,
feitiços rodeados de cravos, contra as cidadelas do Discurso
do Método, sem conhecerem o significado real dos objectos
que
tinham nas mãos. Procuravam a barbárie em coisas que nunca
tinham sido
bárbaras quando cumpriam a sua função ritual no âmbito que
lhes fora próprio - coisas que ao serem qualificadas de
«bárbaras» colocavam, precisamente, o qualificador num campo
cogitante e cartesiano, oposto à verdade perseguida. Queriam
renovar a
música do Ocidente imitando ritmos que nunca haviam tido uma
função musical para os seus criadores primitivos. Estas
reflexões levavam-me a pensar que a selva, com os seus
homens
audazes, com os seus encontros fortuitos, com o seu tempo
ainda não transcorrido, me ensinara muito mais, no
respeitante
às próprias essências da minha arte, ao sentido profundo de
certos textos, à grandeza ignorada de certos rumos, do que a
leitura de tantos livros que jazem já mortos para sempre na
minha biblioteca. Em frente ao Adiantado compreendi que a
obra
máxima proposta ao ser humano é a de forjar um destino para
si
próprio. Porque aqui, entre a multidão que me rodeia e
corre,
ora insolente ora submissa, vejo muitas caras e poucos
destinos. Acontece que, por detrás dessas caras, qualquer
apetência profunda, qualquer rebeldia, qualquer impulso, é
sempre inibido pelo medo. Têm medo da

reprimenda, medo do tempo, medo da notícia, medo da


colectividade que pluraliza as servidões; têm medo do
próprio
corpo, perante as interpelações e os índices tensos da
publicidade; têm medo do ventre que recebe a semente, medo
dos
frutos e da água; medo das datas, medo das leis, medo das
ordens, medo do erro, medo do sobrescrito fechado, medo do
que
possa acontecer. Esta rua devolveu-me ao mundo do
Apocalipse,
em que todos parecem esperar a abertura do Sexto Selo - o
momento em que a Lua se torna da cor do sangue, as estrelas
caem como figos e as ilhas se deslocam dos seus lugares.
Tudo
o anuncia; as capas das publicações expostas nas montras, os
títulos apregoados, as letras inscritas nas cornijas, as
frases lançadas ao vento. É como se o tempo deste labirinto
e
de outros labirintos semelhantes já estivesse pesado,
contado,
dividido. E ocorreu-me, neste momento, como um alívio, a
recordação da taberna de Puerto Anunciación onde a selva
veio
ao meu encontro na pessoa do Adiantado. Parece
voltar-me à boca o sabor da forte aguardente de avelã com o
seu limão e o seu sal, e parece que se pintam, atrás de mim,
as letras com ornamentos de sombras e de grinaldas que
compunham o
nome do lugar: Los Recuerdos del Porvenir. Vivo aqui esta
noite, de passagem, apercebo-me do porvir - do vasto país
das
utopias permitidas, das Icarias possíveis. Porque a minha
viagem
baralhou-me as noções de pretérito, presente e futuro. Não
pode ser presente aquilo que será passado antes de o homem
ter
podido vivê-lo e contemplá-lo; não pode ser presente esta
fria
geometria sem estilo onde tudo se cansa e envelhece poucas
horas depois de ter nascido. Já só acredito no presente do
intacto; no futuro do que se acredita perante as luminárias
do
Génese. Já não aceito condição de Homem-Vespa, de
Homem-Ninguém, nem admito que o ritmo da minha existência
seja
marcado pelo maço de um comitre.

XXXVI

(20 de Outubro)

Quando, há três meses, me foram devolvidos os cadernos da


minha reportagem, sem uma desculpa, o terror fez-me dobrar
as
pernas, deixando-me trémulo. Tinha caído na desgraça ao
tornar-se pública a notícia da minha instância de divórcio.
O
periódico não me perdoava o dinheiro gasto no meu resgate
nem

206 207

o ridículo de ter armado o mais edificante alvoroço em torno


de mim,
perante um público cujos Pastores devem considerar-me como
transgressor da Lei, objecto de abominação. Tive de vender o
meu relato por um preço miserável a uma revista de quarta
ordem, e um acontecimento internacional chegou a tempo de
obscurecer a actualidade da minha figura. E começou a minha
luta encarniçada com uma Ruth vestida de preto, sem baton
nos
lábios, empenhada em continuar a representar o seu papel de
esposa ferida no coração e no ventre perante os juízes da
nação. A sua gravidez foi um mero alarme. Mas em vez de
simplificar o caso, complicou-o um pouco mais, pois o seu
hábil advogado explora o facto de que a minha mulher
pretendia
interromper a sua carreira dramática ao menor indício de
gravidez. Eu era, assim, o desprezível homem das Escrituras
que edifica casa e não vive nela, que planta a vinha e não a
vindima. Agora, aquele cenário de Guerra da Secessão que
tanto
torturara Ruth pelo automatismo quotidiano da tarefa
imposta,
passava a ser um santuário da arte, o caminho real de uma
carreira de que não hesitara em sair, sacrificando glória e
fama, para poder dedicar-se mais plenamente à sublime tarefa
de formar uma vida - uma vida que a amoralidade do meu
procedimento lhe negava. Tenho todas as probabilidades de
perder nesta embrulhada que a minha mulher aumenta
indefinidamente com a vontade de pôr o tempo do seu lado e
fazer-me regressar, esquecido da minha evasão, à existência
de
outrora. Afinal de contas, ela tivera o melhor papel na
grande
comédia armada e Mouche foi eliminada do seu campo. Assim,

três meses, todas as tardes dobro as mesmas esquinas, viajo
de
andar em andar, abro portas, aguardo, interrogo os
secretários, assino o que me mandam assinar, encontrando-me
então novamente nos mesmos passeios avermelhados pelos
anúncios luminosos. O meu advogado recebe-me já de mau
humor,
aborrecido com a minha impaciência, observando, por sua vez,
com olhar astuto, que me é cada vez mais difícil fazer
frente
a certas coisas do divórcio. E a verdade é que passei do
grande hotel ao hotel dos estudantes, e daí para o albergue
da
rua 14, cujos tapetes cheiram a margarinas e gorduras
entornadas. A minha empresa publicitária também não me
perdoa
a demora em
regressar, enquanto Hugo, o meu antigo assistente, passou a
ser chefe de estudos. Procurei infrutiferamente qualquer
tarefa nesta cidade em que há cem aspirantes para cada
cargo.
Fugirei daqui, divorciado ou não. Mas até chegar a Puerto
Anunciación preciso de dinheiro, um dinheiro que cresce em
importância, em quantia, à medida que o tempo passa, e só
encontro pequenos trabalhos de instrumentação que executo
com
fastio, sabendo, ao cobrá-los, que estarei novamente sem
recursos dentro de uma semana. A Cidade não me deixa ir. As
suas ruas entrelaçam-se à minha volta como os fios de uma
rede
que me tivessem lançado de cima. De semana para semana
fui-me
aproximando do mundo dos que
lavam a única camisa à noite, cruzam a neve com as solas
rotas, fumam piriscas de piriscas e cozinham em armários.
Ainda não cheguei a tais extremos, mas a lâmpada de álcool,
a
caçarola de alumínio e o pacote de aveia fazem já parte da
mobília do meu quarto, anunciando algo que contemplo com
horror. Passo dias inteiros na cama, tentando esquecer o que
me ameaça com leituras maravilhosas do Popol- vuh, do Inca
Garcilaso, das viagens de Frei Servando de Castillejos. Às
vezes, abro o volume de Vida de Santos, encadernado num
veludo
morado onde estão estampadas em ouro as iniciais de minha
mãe,
e procuro a hagiografia de Santa Rosa que se abrira sob os
meus olhos, por misteriosa casualidade, no dia da partida de
Ruth - dia em que tantos rumos se desfiaram sem estrépito,
por
obra de uma assombrosa convergência de factos fortuitos. E,
de
cada vez, descubro uma maior amargura ao encontrar a terna
quadra que parece carregar-se de lacerantes alusões:

208

Ai de mim! Ao meu amado


quem o detém?
Tarda, é meio-dia,
e ele que não vem.

Quando a recordação de Rosario se entranha na minha carne


como uma dor intolerável, empreendo intermináveis caminhadas
que me conduzem sempre ao Parque Central, onde o odor das
árvores ferrugentas do Outono, que já dormitam em brumas, me
dá alguma consolação. Algumas cascas, húmidas de chuva,
recordam-me ao tacto as achas molhadas das nossas últimas
fogueiras com o seu fumo acre que fazia chorar a rir Tua
Mulher, junto à janela a que assomava para apanhar ar.
Contemplo a
Dança dos Abetos, procurando no movimento das suas agulhas
algum sinal propício. E a tanto chega a minha
impossibilidade
de pensar em algo que não seja o meu regresso ao que além me
espera, que vejo, todas as manhãs, presságios nas primeiras
coisas que me aparecem: a aranha é de mau agoiro, como a
pele
de
serpente exposta numa montra; mas o cão que se aproxima de
mim e se deixa acariciar é excelente. Leio os horóscopos da
imprensa. Procuro augúrios em tudo. À noite sonhei que
estava
209

numa prisão de muros tão altos como naves de catedrais,


entre
cujos pilares balouçavam cordas destinadas ao suplício da
estrapada; também havia maciças abóbadas que se
multiplicavam
à distância, sempre com um ligeiro desvio para cima, como
quando se vê um objecto em dois espelhos colocados frente a
frente. Afinal, eram penumbras de subterrâneos, onde soava o
galope surdo de um cavalo. O colorido de água-forte de tudo
aquilo fez-me pensar, ao abrir os olhos, que alguma
recordação
de museu me fizera cativo das Invenzioni di Carceri de
Piranesi. Não pensei mais nisto durante todo o dia. Mas,
agora
que cai a noite, entro numa livraria para folhear um tratado
de interpretação dos
sonhos: «Prisão, Egipto: afirma-se a posição. Ciências
ocultas: em perspectiva, amor de uma pessoa da qual não se
espera nem deseja qualquer afecto. Psicanálise: vinculada a
circunstâncias, coisas e pessoas, das quais se deve livrar».
Sobressalta-me um perfume conhecido e a figura de uma
mulher,
junta-se à minha num espelho próximo. Mouche está a meu lado
olhando dissimuladamente o
livro. E logo a sua voz: "Se é para uma consulta, far-te-ei
um
preço de amigo". A rua está perto. Sete, oito, nove passos e
estarei fora. Não quero falar-lhe. Não quero ouvi-la. Não
quero discutir. Ela é culpada de tudo o que agora me aflige.
Mas tem, por sua vez, essa conhecida brandura nos músculos e
nas virilhas, com o ardor que parece subir-me às curvas.
Não é
desejo definido nem excitação
afirmada, mas antes uma sensação de aquiescência muscular,
de
debilidade ante a incitação, parecida com a que, na
adolescência, conduzira muitas vezes o meu corpo ao bordel,
enquanto o espírito lutava por impedi-lo. Nesses casos, eu
havia conhecido um desdobramento interior, cuja recordação
me
produzia logo sofrimentos indizíveis: enquanto a mente,
aterrorizada, tentava agarrar-se a Deus, à recordação de
minha
mãe, ameaçava com
doenças, rezava o Pai Nosso, os passos iam lentamente,
firmemente, até ao quarto com colcha de riscas vermelhas,
sabendo que ao aperceber o odor peculiar de certos adornos
revolvidos sobre o mármore de um toucador, a minha vontade
cederia perante o
sexo, deixando a alma de fora, nas trevas e em desamparo.
Imediatamente o meu espírito ficava enojado com o corpo,
zangado com ele até à noite, em que a obrigação de descansar
juntos nos unia numa prece, preparando-se o arrependimento
dos
dias seguintes, quando vivia na espera dos humores e chagas
que castigam o pecado da luxúria. Compreendi que
ressuscitava
esses combates de adolescência quando me vi a andar ao lado
de
Mouche, junto ao paredão avermelhado da igreja de San
Nicolás.
Ela falava rapidamente, como para se atordoar, afirmando que
era inocente do
escândalo armado na imprensa, que havia sido vítima de um
abuso de confiança por parte do jornalista, etc. - sem ter
perdido, desde logo, o seu habitual poder de mentir com os
olhos limpos, olhando a direito. Não me atirava à cara o
acontecido com ela, quando adoecera com paludismo,
atribuindo-o magnanimamente ao meu empenho em alcançar os
instrumentos verdadeiros. Como, na verdade, estava sob os
efeitos da febre quando eu abraçara Rosario, pela primeira
vez, na cabana dos gregos, restava-me a dúvida de que nos
tivesse visto realmente. Com tristeza tolerava a sua
companhia
esta noite para falar com alguém, para não me ver só no meu
mal iluminado quarto, andando de parede a parede sobre o
fedor
da margarina; e como estava decidido a frustrar as suas
tentativas de sedução, deixei-me levar ao venusberg, onde
tinha crédito de há muito tempo. Assim, não haveria de
confessar a
minha miséria presente, tratando, para o restante, de beber
com moderação. Mas, de qualquer forma, o licor havia de
arranjar-se para socavar a minha integralidade com a
aleivosia
suficiente por que viera, bastante cedo, ao salão das
consultas astrológicas, cujas pinturas estavam terminadas.
Mouche encheu várias vezes o meu copo, pediu-me licença para
vestir roupas mais folgadas e, quando o fez, tratou-me como
ignorante por me privar de um prazer sem consequência;
afirmou
que o feito agora não me comprometeria em nada e tão
habilmente manejou a sua pessoa que acedi ao que quis com
uma
facilidade devida, em muito, a várias semanas de uma
abstinência desabitual em mim. Ao cabo de alguns minutos
conheci a angústia e a decepção daqueles que voltam a uma
carne já sem surpresas, depois de uma separação que pôde ser
definitiva, quando já nada os une ao ser que essa carne
envolve. Fiquei triste, enojado comigo mesmo, mais só do que
antes, ao lado de um
corpo que voltava a olhar com desprezo. Qualquer prostituta
encontrada num bar, possuída depois de paga, seria
preferível
a isto. Pela porta aberta via as pinturas do salão de
consultas. "Esta viagem estava escrita na parede", dissera
Mouche na véspera da nossa partida, dando um sentido
agoireiro
à presença do Sagitário, do Navio Argos e da Cabeleira de
Berenice, no conjunto da decoração, personificando-se ela
própria na terceira figura. Agora, o sentido agoireiro de
tudo
aquilo - no caso de o ter - adquiria uma surpreendente
claridade no meu espírito: a Cabeleira de Berenice era
Rosario, com sua cabeleira virgem, nunca cortada, enquanto
Ruth se assemelhava à Hidra que terminava a composição,
ameaçadoramente colocada por detrás do piano que podia
considerar-se como o instrumento do meu ofício. Mouche
sentiu
que o meu silêncio, a minha falta de interesse pelo
adquirido,

210 211

não lhe eram favoráveis. Para me arrancar aos meus


pensamentos, pegou numa publicação que se encontrava sobre a
mesa de cabeceira. Era uma pequena revista religiosa, que
subscrevera, no avião de regresso, a uma freira negra que
partilhara o seu assento durante umas horas. Mouche
explicou-me, rindo, que, como
estava um tempo muito mau, aceitara a subscrição na dúvida
de
que Jeová fosse o deus verdadeiro. Abrindo o modesto boletim
de missões, impresso em papel barato, pô-lo nas minhas mãos:
"Acho que se fala aqui do capucho que conhecemos; tem um
retrato dele".Emoldurada por uma larga orla negra
encontrava-se, com efeito, uma fotografia de frei Pedro de
Henestrosa, tirada muitos anos antes, sem dúvida, pois o seu
semblante parecia ainda jovem, apesar da barba grisalha.
Soube
com crescente emoção, que o
frade havia empreendido a viagem às terras de índios
selvagens
que me mostrara, certa vez, do alto do Cerro de los
Petroglifos. Por um explorador de ouro - dizia o artigo -
chegado recentemente a Puerto Anunciación, sabia-se que o
corpo de frei Pedro de Henestrosa fora encontrado atrozmente
mutilado, numa canoa lançada ao rio pelos seus assassinos,
para que chegasse a terra de brancos como uma horrenda
advertência. Vesti-me rapidamente, sem responder às
perguntas
de Mouche e saí de casa sabendo que nunca mais lá voltaria.
Até de madrugada, andei entre prédios desertos, bancos,
casas
funerárias em silêncio, hospitais adormecidos. Incapaz de
descansar, apanhei o ferry quando amanheceu, atravessei o
rio
e continuei a andar entre os armazéns e as alfândegas
Hoboken.
Penso que os assassinos devem ter despido frei Pedro, depois
de o ferirem, e levantando os seus ombros fracos com um
pedernal, devem ter-Lhe arrancado o coração, em recordação
de
um velhíssimo acto ritual. Talvez o tenham castrado; talvez
o
tenham desolhado, esquartejado, esmiuçado, como uma rês.
Posso imaginar as mais cruéis possibilidades, as mais
sangrentas ablações, as piores mutilações, impostas ao seu
velho corpo. Mas acabo por não achar na sua terrível morte o
horror que me causaram outras mortes de homens que não
sabiam
porque morriam, invocando a mãe ou tentando deter, com as
mãos, a desfiguração de um rosto já sem nariz nem faces.
Frei
Pedro de Henestrosa tivera a suprema graça que o homem pode
outorgar a si próprio: a de ir ao encontro da sua própria
morte, desafiá-la e cair trespassado numa luta que seja,
para
o vencido, vitória asseteada de Sebastião: confusão e
derrota
da morte.

XXXVII

(8 de Dezembro)

Quando o rapaz que me guiava indicou a casa, dizendo que


ali estava a pousada nova, detive-me com dolorosa surpresa;
por detrás daquelas paredes espessas, sob aquele telhado de
ervas mexidas pelo vento, veláramos certa noite o pai de
Rosario. Lá, numa cozinha enorme, aproximara-me de Tua
mulher
pela primeira vez, com uma obscura consciência da sua futura
importância. Agora somos recebidos por um Don Melisio, cúja
Dona, uma negra anã, agarra três maletas das mãos dos moços
que me seguem e empilha-as sobre a cabeça como se nada
pesassem os papéis e os livros que as enchem até lhes
rebentarem as correias, afastando-se para o pátio com os
olhos
esbugalhados. Os quartos estão como antes, embora sem o
cândido adorno das gravuras velhas. O pátio dá para as
mesmas
matas; a cozinha, aquela talha bojuda que dava às vozes uma
ressonância de nave de catedral. A vasta sala da frente, por
sua vez, foi transformada em refeitório e loja mista, com
grandes rolos de cordas nos cantos e várias estantes em que

latas de pólvora negra, bálsamos e óleos, e medicamentos em
frascos de formas desusadas como que destinados a
enfermidades
de outro século. Don Melisio explica-me que comprou a casa à
mãe de Rosario e que esta, com todas as suas filhas
solteiras,
fora ter com uma irmã que tem para lá dos Andes, a onze ou
doze dias de viagem. Uma vez mais me admiro perante a
naturalidade com que as gentes destas terras consideram o
grande mundo, atrevendo-se a navegar ou a rodar, durante
muitas semanas, com as suas redes enroladas no ombro, sem os
sustos do homem culto ante as distâncias que os precários
meios de transporte tornam imensas. Além disso, colocar a
tenda noutro local, passar do estuário à cabeceira do rio,
mudar a residência para outro lado de uma planície que leva
dias a atravessar-se, faz parte do inato conceito de
liberdade
de seres perante cujos olhos se apresenta a terra sem
cercas,
cipós nem demarcações. O solo, aqui, é de quem quiser
ocupá-lo: a fogo e a machete limpa-se uma margem, coloca-se
uma telha sobre quatro pilares, e isto é já uma fazenda que
recebe o nome de quem se proclama seu dono, como os antigos
conquistadores, rezando um Pai Nosso e arrastando ramos ao
vento. Não se é mais rico por isso; mas em Puerto
Anunciación,
aquele que não se crê possuidor do segredo de um jazigo de
ouro sente-se proprietário de terras. O perfume de sarrapia
e
baunilha que enche a casa põe-me de bom humor.

212 213

E depois, é aquela presença do fogo, novamente, na chaminé


onde crepita um pernil de anta com todas as gorduras que
cheiram a bolotas desconhecidas. Esse regresso ao fogo, ao
lume vivo, à chama que dança, à faúlha que salta e encontra,
na ardorosa sabedoria do rescaldo, uma velhice
resplandecente,
sob o enrugado cinzento das cinzas. Peço uma garrafa e
copos à
anã
negra Dona Casilda e a minha mesa é de quem quiser recordar
que aqui estive à sete meses - o que me traz comensais ao
fim
de um momento. Aí estão, com as suas notícias de mais acima
ou
mais abaixo, o Pescador de Toninhas, o homem dos manatins, o
carpinteiro que tão bem media os ataúdes com olho de bom
coveiro, e um moço lento de gestos, com perfil indianizado,
a
quem chamam Simón e que, farto de ser sapateiro em Santiago
de
los Aguinaldos, subiu os rios menos navegados numa canoa
cheia
de mercadorias destinadas ao câmbio. Em resposta às minhas
perguntas, é-me
confirmada a morte de frei Pedro: o seu cadáver foi
encontrado, trespassado de flechas e com o tórax aberto, por
um dos irmãos de Yannes. Como tremendo aviso aos que
pretenderem pisar os seus domínios, os índios selvagens
puseram o corpo, mutilado numa canoa, que foi imediatamente
levada pelas águas até onde o grego a encontrara, coberta de
abutres, perto do desembocar de um ribeiro. "É o segundo que
morre assim", comenta o Carpinteiro, acrescentando que entre
os barbudos há aqueles que têm as bragas muito bem postas.
Agora, para má sorte minha dizem-me que o Adiantado esteve
em
Puerto Anunciación há apenas quinze dias. E novamente se
repetem as lendas que correm sobre o que possui ou procura
na
selva. Simón revela-me que na cabeceira de rios inexplorados
teve a surpresa de encontrar gente estabelecida que erguia
casas e semeava a terra, sem procurar ouro. Outro sabe de
quem
fundou três cidades e lhes chamou Santa Inés, Santa Clara e
Santa Cecília, em invocação das padroeiras das suas três
filhas mais velhas. Quando a anã negra Dona Casilda nos
trouxe
a
terceira garrafa de aguardente de avelã, Simón ofereceu-se
para me levar, na sua canoa, até onde encontrei os
instrumentos dedicados ao Curador. Digo-lhe que vou buscar
outra colecção de tambores e de flautas, para não explicar o
verdadeiro objecto da minha viagem. De ali seguirei com os
remadores índios da outra vez, que conhecem o caminho. O
moço
nunca navegou por esses lugares e só viu de muito longe os
primeiros contrafortes das Grandes Mesetas. Mas
comprometo-me
a guiá-lo para lá da antiga mina dos gregos. Ao fim de três
horas a remar, rio acima, temos de encontrar aquele
obstáculo
de árvores - aquela muralha de troncos, como que traçada em
linha recta - onde fica a entrada do ribeiro.

214

Procurei o sinal inciso que é a identificação da passagem


coberta de ramos. Mais além, sempre para Leste, com a ajuda
da
bússola, temos de cair noutro rio, onde me apanhara a
tempestade certa tarde memorável da minha existência. Ao
chegar ao local onde encontrei os instrumentos, verei como
me
livro do meu companheiro de viagem, seguindo com a gente da
aldeia... Certo já de que sairei no dia seguinte, deito-me
com
uma deleitosa sensação de alívio. Aquelas aranhas que tecem
entre as vigas do tecto já não serão para mim de mau agoiro.
Quando tudo parecia perdido,
distante - e quão distante me parece tudo agora! -, foi
obtido
o vínculo legal e um acerto na composição de um falso
concerto
romântico, destinado ao cinema, abriu-me a porta do
labirinto.
Estou, por fim, nos umbrais da minha terra de eleição, com
tudo o que é necessário para trabalhar durante muito tempo.
Por precaução perante mim mesmo, para cumprir uma vaga
superstição que consiste em admitir a possibilidade do pior,
para conjurá-lo e afastá-lo, quero imaginar que algum dia me
canso do que aqui venho procurar; penso que alguma obra
minha
me virá a impor o desejo de regressar ali na altura de uma
edição. Mas então, embora sabendo que finjo admitir o que
não
admito, assalta-me um verdadeiro medo: medo de tudo o que
acabo de ver, de padecer, de sentir pesar sobre a minha
existência. Não quero voltar a fazer má música, sabendo que
faço má música. Fujo dos edifícios inúteis,
dos que falam para se atordoarem, dos dias vazios, do gesto
sem sentido e do Apocalipse que sobre tudo aquilo paira.
Estou
ansioso por sentir novamente o correr da brisa entre os meus
músculos; estou impaciente por afundar-me nas torrentes
frias
das Grandes Mesetas e voltar-me sobre mim mesmo, debaixo de
água, para ver como o cristal vivo me circunda e se tinge de
um verde claro na luz que nasce. E, sobretudo, estou tão
ansioso por sopesar Rosario com todo o meu corpo, de sentir
o
seu calor aberto sobre a minha carne palpitante, e quando as
minhas mãos recordam as suas curvas, os seus ombros, a
profunda doçura da sua penugem curta e dura, os embates do
desejo tornam-se quase dolorosos no seu chamamento. Sorrio,
pensando que fugi da Hidra, tomei o Navio Agros e que quem
ostenta a cabeleira de Berenice deve estar ao pé das
Rubricas
do Dilúvio, agora que passaram as chuvas, colhendo as ervas
que fazia macerar em jarras de borbulhantes remédios,
enobrecidos pela serenidade da Lua ou a alvura dos ventos
amanhecidos. Volto a ela mais consciente que antes de
amá-la,
porquanto passei por novas Provas; porquanto vi o teatro e o
fingimento em todas as partes. Além disso, aqui põe-se uma
questão de transcendência maior para o meu andar pelo Reino

215

deste Mundo - a única questão, afinal de contas, que exclui


todo o dilema: saber se posso dispor do meu tempo ou se
outros
hão-de dispor dele, fazendo-me voga-avante ou espadeleiro de
galeras, segundo o zelo posto por mim em não viver e
servi-los. Em Santa Mónica de los Venados, enquanto estou
com
os olhos abertos, as minhas horas pertencem-me. Sou dono dos
meus passos e finco-os onde quero.

XXXVIII

(9 de Dezembro)

Acaba o Sol de assomar sobre as árvores quando atracamos


junto à antiga ruína dos gregos, cuja casa está abandonada.
Passaram-se apenas sete meses desde que aqui estive e a
selva
voltou a apoderar-se de tudo. A cabana em que Rosario e eu
nos
abraçámos pela primeira vez rebentou literalmente com a
força
de plantas crescidas a partir do interior, que levantaram o
seu tecto, abriram as paredes, fazendo folhas mortas,
matéria
podre, das fibras que delineavam o perfil de uma habitação.
Além disso,
como a última enchente do rio foi particularmente
caudalosa, o
terreno esteve submerso. Choveu fora da estação, as águas
não
acabaram de descer ao seu nível mais baixo e, nas margens,
pinta-se uma franja de terra húmida, coberta de escórias da
selva, sobre as quais se revolvem miríades de borboletas
amarelas, tão comprimidas umas contra as outras, ao
mover-se,
que bastaria pegar com um bastão num grupo delas para
retirá-lo pintado de enxofre. Ao ver isto, compreendo a
origem
de migrações como a que vira em Puerto Anunciación, quando o
céu foi escurecido por uma interminável nuvem de asas.
Imediatamente agita-se a água e um cardume de peixes que
saltam, chocam e se atropelam, passa por cima do nosso
barco,
eriçando a corrente de barbatanas plúmbeas e caudas que se
esbofeteiam com ruído de aplausos. Logo, passa voando em
triângulo um bando de garças e, como que respondendo a uma
ordem dada, todos os pássaros da mata começam a alvoroçar-se
em concerto. Esta omnipresença da ave, pondo sobre os
espantos
da selva o signo da asa, faz-me pensar na transcendência e
pluralidade dos papéis desempenhados pelo Pássaro nas
mitologias deste mundo. Desde o Pássaro-Espírito dos
esquimós,
que é o primeiro a grasnar perto do Pólo, no ponto mais alto
do
continente, até àquelas cabeças que voavam com as asas
de...
orelhas no âmbito da Terra do Fogo, não se vêem senão
coets ornadas de pássaros de madeira, pássaros pintados na
pedra, pássaros desenhados no solo - tão grandes que têm de
ser olhados das montanhas - num cambiante desfile de
majestades do ar!
Pássaro-Trovão, Águia-Rocio, Pássaros-Sóis, Condores--
Mensageiros, Guacamayos-Bólides (*) lançados sobre o vasto
Orenoco, zentzonteles e guetzales, todos presididos pela
grande tríade das serpentes emplumadas: Quetzalcoatl,
Gucumatz e Cuculcán...
Prosseguimos a navegação e quando se torna árduo o
bochorno do meio-dia sobre as águas amarelas e revoltas
indico a Simón, à esquerda, a parede de árvores que
limita a margem até onde o olhar alcança. Aproximamo-nos
e começa uma lenta navegação
em busca do sinal que marca a entrada do ribeiro. Com a
vista fixa , nos troncos, procuro, à altura do peito de um
homem que estivesse já sobre a água, a incisão de três v
sobrepostos verticalmente num sinal que poderia
alargar-se até ao infinito. De quando em quando, a voz de
Simón, que rema devagar interroga-me. Seguimos mais para a
frente: Mas ponho tanta atenção em olhar, em não deixar
de olhar, em pensar que olho, que, ao cabo de um momento,
os meus olhos se fatigam de ver passar constantemente o
mesmo
tronco. Assaltam-me dúvidas de ter visto sem me aperceber;
perguntou-me se não me terei distraído durante alguns
segundos, mando voltar atrás e só encontro uma mancha clara
sobre uma casca ou um simples raio de sol. Simón, sempre
plácido, segue as minhas indicações sem ripostar. A canoa
roça os troncos e tenho, por vezes, de afastá-la,
apoiando numa árvore a ponta de um manchete. Mas agora a
procura de um sinal naquela interminável sucessão de troncos
todos iguais produz-me uma espécie de enjoo. E, no
entanto, digo, para mim que o empenho não é
absurdo; em nenhum dos troncos aparece algo semelhante a
três v sobrepostos. Uma vez que existem e que o que se
escreve num tronco de árvore nunca se apaga, havemos de
encontrá-los. Navegámos durante mais meia hora. Mas eis que
surge da selva um esporão de rocha negra de forma tão
tortuosa e singular que certamente me recordaria agora de
ter
chegado até aqui. É evidente que a entrada do ribeiro
ficou para trás. Faço sinal a Simón, que faz que o barco
dê meia volta e começa a desnavegar o navegado. Imagino
que me está a olhar com ironia e isto irrita-me tanto como
a minha própria impaciência. Assim, volto-lhe as costas e

(*) Guacamquo - Espécie de papagaio da América, com


plumagem vermelha, azul e amarela, e cauda muito comprida.
(N.
do T.)

216 217

continuo a examinar os troncos. Se deixei passar o sinal


sem o
ver, agora que seguimos a margem vegetal pela segunda vez
terei forçosamente de descobri-lo. Eram dois troncos,
erguidos
como as duas jambas de uma porta estreita. O dintel era de
folhas e, a meia altura, sobre o tronco da esquerda, estava
a
marca. Quando começámos a remar, o Sol atingia-nos em cheio.
Agora, remando em sentido inverso, estamos numa sombra que
se
alarga cada vez mais sobre a água. A minha angústia cresce
ante a ideia de que a noite caia antes de ter encontrado o
que
procuro e tenhamos de regressar no dia seguinte. O precalço
em
si não seria grave. Mas agora parecia de mau agoiro. Tudo
correu tão bem ultimamente que não quero aceitar tão absurdo
contratempo. Simón segue-me apreciando com irónica calma.
Por
fim, para dizer alguma coisa, indica-me umas árvores,
idênticas às demais, perguntando-me se a entrada não seria
por
ali, "É possível", respondo-lhe, sabendo que ali não havia
qualquer sinal. "Possível não é palavra de tribunal",
comenta
o outro, sentencioso e, nesse momento, caio sobre um lado do
barco que foi meter-se, de proa, numa rede de lianas. Simón
levanta-se, pega no croque e mete-o na água, procurando
apoio
no fundo para puxar a canoa atrás. Naquele instante, no
segundo que a vara leva a molhar-se, compreendo por que não
encontrámos o sinal nem poderemos encontrá-lo: o croque que
mede uns três metros de comprimento, não encontra terra onde
fincar-se e o meu companheiro tem de atacar as lianas à
manchetada. Quando voltamos a navegar e me olha, vê algo tão
descomposto no meu rosto que vem ter comigo, pensando que me
acontecera algo. Eu recordava que quando tínhamos estado
com o
Adiantado, os seus remos alcançavam sempre o fundo. Isto
quer
dizer que o rio continua cheio e que a marca que procuramos
está debaixo de água. Digo a Simón o que acabo de entender.
Rindo, responde-me que já imaginava isso, mas que "por
respeito" não me tinha dito nada, e também porque pensava
que,
ao procurar o sinal, eu tinha em conta a enchente. Então
pergunto com medo da resposta, demorando nas palavras, se
ele
acha que as águas baixarão depressa o suficiente para que
possamos ver a marca como eu a vi da outra vez. "Em Abril ou
Maio", responde-me, pondo-me perante uma realidade sem
apelação. Até Abril ou Maio estará,
portanto, fechada para mim a estreita porta da selva. Dou-me
conta agora de que depois de ter saído vencedor da prova dos
terrores nocturnos, da prova da tempestade, fui submetido à
prova decisiva: a tentação de regressar. Ruth, do outro
extremo do mundo, enviara os Mandatários que me tinham caído
do céu, uma manhã, com os seus olhos de cristal amarelo e os
andífonos pendurados ao pescoço, para me dizer que as
coisas -
serviam para expressar-me estavam só a três horas de você
- subido às nuvens, ante o assombro dos homens do Neo,
a procurar umas resmas de papel, sem suspeitar que, na
realidade, era sequestrado por uma mulher misteriosamente
consciente. E que só os meios extremos lhe dariam uma última
oportunidade de me ter no seu terreno. Nestes últimos dias,
sentia a meu lado a presença de Rosario. Por vezes, durante
a
noite, pensava ouvir a sua calma respiração adormecida.
Agora,
perante o sinal coberto e a porta fechada, parece-me que
esta
presença se afasta. Procurando a pungente verdade através de
palavras que o meu companheiro escuta sem entender, digo
para
mim mesmo que a marcha por caminhos excepcionais se
empreende
inconscientemente, sem se ter a sensação do maravilhoso no
momento em que este é
vivido: chega-se tão longe, para lá do trilhado, que o
homem,
envaidecido pelos privilégios do descoberto, sente-se capaz
de
repetir a façanha quando quiser - dono do caminho negado aos
demais. Um dia comete o irreparável erro de desandar o
andado,
acreditando que o excepcional possa sê-lo duas vezes e, ao
regressar, encontra as paisagens alteradas, os pontos de
referência desapareceram, enquanto os informadores mudaram
de
semblante... Um ruído de remos sobressalta-me na minha
angústia. A noite
começa a cair sobre a selva e as pragas aumentam,
zumbidoras,
junto às árvores. Simón, já sem me ouvir, dirigiu-se para o
centro do rio para regressar o mais depressa possível à
antiga
mina dos gregos.

XXXIX

(30 de Dezembro)

Estou a trabalhar o texto de Shelley, aligeirando certas


passagens, para lhe dar um perfeito carácter de cantata.
Cortei um pouco o longo lamento de Prometeu que tão
magnificamente inicia o poema e estou agora a enquadrar a
cena
das vozes - que tem algumas estrofes irregulares - e o
diálogo
de Titan com a Terra. Esta tarefa é um meio de tentar
enganar
a minha impaciência, fazendo-me esquecer o único fim que me
mantém imobilizado,
desde há três semanas, em Puerto Anunciación. Dizem que deve
estar a regressar do Rio Negro um guia que conhece o
caminho
218 219

que me interessa ou outros caminhos de água igualmente úteis


para me pôr no rumo final. Mas aqui todos são tão donos do
seu
tempo que uma espera de quinze dias não provoca a menor
impaciência. "Ele volta já... volta já", responde-me a anã
Dona Casilda quando à hora do café da manhã, lhe pergunto se
tem notícias do possível guia. Também abrigo a esperança de
que o Adiantado, impelido pela necessidade de medicamentos
ou
sementes, apareça inesperadamente e, assim, continuo na
aldeia, recusando os tentadores convites feitos por Simón
para
navegar pelos ribeiros do Norte. Os dias passam com uma
lentidão que me faria feliz em Santa Mónica de los Venados,

que aqui, sem poder fixar a
mente numa tarefa séria, me parece tediosa. Além disso, a
obra
que me interessa agora é o Canto Fúnebre e os rascunhos
ficaram nas mãos de Rosario. Podia tentar iniciar de novo a
sua composição, mas o que já havia feito estava a meu
contento
quanto à espontaneidade da tonalidade encontrada, que não
quero começar novamente, a frio, com o sentido crítico
aguçado, a fazer esforços de memória - preocupado também
com a
vontade de prosseguir a viagem. Todas as tardes caminho até
aos rápidos e deito-me nas pedras estremecidas pela
impetuosidade da água metida nas passagens, regos e covas,
sentindo uma espécie de alívio para a minha irritação quando
me encontro só naquele ruído de trovão, isolado de tudo
pelas
esculturas de uma espuma que se agita conservando a sua
forma
- forma que aumenta e diminui, segundo as intermitências da
corrente, sem perder uma delineação, um volume e uma
consistência que transformam a sua mutação perene e
vertiginosa em objecto fresco e vivo, acariciável como o
lombo
de um cão, redondo como uma maçã para os lábios que nele se
pousaram. Nas matas, produz-se um relevo dos ruídos, a ilha
de
Santa Prisca tem o seu reflexo investido e o céu apaga-se no
fundo do rio. À ordem de um cão que ladra sempre sobre o
mesmo
diapasão agudo, com ritmo picado, todos os cães da
vizinhança
entoam uma espécie de cântico, feito de uivos, que escuto
agora com grande atenção, no caminho de regresso das rochas,
pois observei, tarde após tarde, que a sua duração é sempre
a
mesma e que termina invariavelmente como começa, com dois
ladridos - nunca mais - do misterioso cão - chefe das
matilhas. Descobertas já as danças dos macacos e de certas
aves, ocorre-me que umas gravações sistemáticas dos gritos
de
animais que convivem com o homem poderiam revelar neles um
obscuro sentido musical, bastante próximo do canto do
feiticeiro que tanto me surpreendera, certa tarde, na Selva
do
Sul. Há cerca de cinco dias que os cães de Puerto
Anunciación
uivam sempre do mesmo modo, respondendo a uma determinada

220

ordem e se calam com um sinal inconfundível.


voltam a suas casas e deitam-se sob os tamboretes,
escutam o que se diz, lambem as suas tigelas, sem
importunar,
até que chegam os tempos paroxísticos do cio, em que os
homens
não têm outra alternativa senão esperar resignadamente que
os
animais da Aliança terminem os seus ritos de reprodução.
Pensando nisto, chego à primeira ruela da povoação, quando
duas mãos vigorosas se fecham sobre os meus olhos e um
joelho
se finca nas minhas costas, dobrando-me para trás com tal
brutalidade que irrompo numa exclamação de dor. Tão
inocente
foi a luta que me retorço para me libertar e bater. Mas
estala uma gargalhada cujo timbre conheço e, nesse
momento, a
minha ira torna-se alegria. Yannes abraça-me envolvendo-me
no
suor da sua camisa. Agarro-o pelo braço como se temesse que
me fugisse e levo-o à minha pensão, onde a anã Dona Casilda
nos serve uma garrafa de aguardente de avelã. Para começar,
finjo um interesse deleitado pelas suas andanças, para
conseguir mais depressa o calor da amizade e chegar, em
tónica
afectuosa, à única coisa que me interessa: Yannes conhece
seguramente a passagem submersa; estava connosco quando
passámos por ela; além disso, com a sua larga experiência
da
selva, será capaz de abrir a Porta sem necessidade de
procurar
a tripla incisão. Também é provável que a água tenha baixado
um pouco nestas últimas semanas. Mas noto que algo mudou na
fisio nomia do grego; os seus olhos, de olhar tão
penetrante e seguro, estão como inquietos, desconfiados,
não
se detendo em nada. Parece nervoso, impaciente, e é difícil
ter com ele uma conversa alinhavada. Quando conta qualquer
coisa, atropela-se ou vacila, sem se deter muito tempo numa
ideia, como fazia antes. De repente, com ar conspirador,
pede-me que o leve ao meu quarto. Ali, fecha a porta à
chave,
verifica as janelas e mostra-me à luz da lâmpada, um tubo de
metoquina, sem comprimidos, em que estão uns pedacinhos de
vidro fumado. Explica-me em voz baixa, que aquelas lascas
são
como que as sentinelas do diamante: perto delas está
sempre o
que se procura. E ele espetou a picareta em determi nado
lugar e encontrou o portentoso jazigo. "Diamantes de catorze
quilates", confia-me com voz abafada. "E deve haver
maiores".
Já sonha, sem dúvida, com a gema de cem quilates,
encontrada
recentemente, que transformou todos os exploradores do El
Dorado que ainda andam pelo continente e não renunciam a
encontrar os tesouros procurados pelo alucinado Felipe de
Utre. Yannes está inquieto com a descoberta; vai à capital,
agora, para fazer o registo legal da mina, com o medo
obcecante de que alguém, na sua ausência, tropece no
distante
jazigo encontrado.

221

Parece que houve casos de uma convergência prodigiosa dos


exploradores para o mesmo lugar do imenso mapa. Mas nada
disso me interessa. Levanto a voz para lhe chamar a atenção
e
falo-lhe da única coisa que me preocupa. "Sim, no regresso",
responde-me. "No regresso". Suplico-lhe que adie a viagem
para
partirmos ainda esta noite, antes do amanhecer. Mas o grego
avisa-me de que o Manati acaba de chegar, e deve zarpar
amanhã
ao meio-dia. Além disso não há forma de dialogar com ele. Só
pensa nos seus diamantes e quando se cala é para não falar
deles, temendo que Don Melisio ou a anã o escutem.
Despeitado,
resigno-me a uma nova dilação: aguardarei, pois, que
regresse
- o que acontecerá depressa, impulsionado pela cobiça. E,
para
estar certo de que não se esquecerá de vir buscar-me,
ofereço-lhe uma ajuda para iniciar a exploração. Abraça-me
aparatosamente,
chamando-me irmão, e leva-me à taberna onde conheci o
Adiantado; pede outra garrafa de aguardente de avelã e, para
interessar-me mais no seu achado, finge fazer-me
confidências
sobre o lugar onde apanhou os cristais anunciadores do
tesouro. E inteiro-me, assim, de algo de que não suspeitara:
encontrou a mina ao regressar de Santa Mónica de los
Venados,
depois de ter dado com a cidade desconhecida e de aí ter
passado dois dias. "Gente idiota", disse-me. "Gente
estúpida;
tem ouro perto e não o tiram; eu quis trabalhar: eles
disseram
que me matavam com o fusil". Agarro Yannes pelos ombros e
grito-lhe que me fale de Rosario, que me fale dela, da sua
saúde, do seu aspecto, do que faz. "Mulher de Marcos",
responde-me o grego. "Adiantado contente porque ela ficou
grávida recen..." Fico como que ensurdecido. A minha pele se
eriçou de alfinetes frios, saídos de dentro. Com grande
esforço, levo a minha mão até à garrafa, cujo vidro me
provoca
uma sensação de queimadura. Encho o meu copo lentamente e
derramo a bebida numa garganta que não sabe tragar e
rebentou
em tosses desgarradas. Quando recupero o alento perdido,
olho-me no espelho enegrecido por excrementos de moscas que
está ao fundo da sala e vejo um corpo sentado junto à mesa,
que está como que vazio. Não tenho a certeza de que se
moveria
e começaria a andar se eu lho ordenasse. Mas o ser que geme
em
mim, lacerado, desolado, coberto de sal, acaba por subir à
minha garganta em carne viva e tenta um protesto
balbuciante.
Não sei o que digo a Yannes. O que oiço é a voz de outro que
lhe fala de direitos adquiridos sobre Tua mulher, explica
que
a demora em regressar se deveu a razões externas,
tentajustificar-se, pede apelação para o seu caso, como se
estivesse a comparecer perante um tribunal empenhado

222

em destruí-lo. Afastado dos seus diamantes pelo timbre


alterado, implorante, de uma voz que pretende fazer
retroceder o tempo e conseguir que o consumado nunca tivesse
acontecido, o grego olha-me com uma surpresa que depressa se
torna compaixão: "Ela não Penélope. Mulher jovem, forte,
formosa, necessita marido. Ela não Penélope. Natureza mulher
aqui precisa varão..." A verdade, a angustiante verdade -
compreendo-o agora - é que as pessoas destas redondezas
nunca
acreditaram em mim. Fui um ser emprestado. A própria Rosario
deve ter-me visto como um Visitador, incapaz de permanecer
indefinidamente no Vale do Tempo Detido. Recordo agora o
olhar
admirado que me dirigia quando me via escrever febrilmente,
durante dias a fio, ali onde escrever não respondia a
qualquer
necessidade. Os novos mundos têm de ser vividos e não
explicados. Aqueles que aqui vivem não o fazem por convicção
intelectual; crêem, simplesmente, que a vida suportável é
esta
e não outra. Preferem estar presentes no presente dos
fazedores de Apocalipses. Aquele que se esforça por
compreender demasiado, aquele que sofre as angústias de uma
mudança, aquele que pode abrigar uma ideia de renúncia ao
abraçar os costumes daqueles que forjam os seus destinos
sobre
este grande lodaçal, travando lutas constantes com as
montanhas e as árvores, é um homem vulnerável, porquanto
certas potências do mundo que deixou atrás de si continuam a
actuar sobre ele. Viajei através dos tempos; passei através
dos corpos e dos tempos dos corpos, sem ter consciência de
que
encontrara a recôndita estreiteza da porta mais ampla.
Porém,
a convivência com o prodígio, a fundação das cidades, a
liberdade encontrada entre os Inventores de Ofícios do solo
de
Henoch foram realidades cuja grandeza não fora feita,
talvez,
para a minha exígua pessoa de contrapontista, sempre
disposta
a aproveitar um descanso para procurar a sua vitória sobre a
morte numa ordenação de neumas. Tentei endireitar um destino
torcido pela minha própria debilidade e de mim brotou um
canto
- agora incompleto - que me devolveu ao velho caminho, com o
corpo cheio de cinzas, incapaz de ser outra vez o que fui.
Yannes dá-me uma passagem para embarcar com ele, amanhã, no
Manati. Navegarei, pois, até ao fardo que me espera. Ergo os
olhos congestionados para o anúncio de Los Recuerdos del
Porvenir. Dentro de dois dias, o século terá cumprido mais
um
ano sem que a notícia tenha importância para os que agora me
rodeiam. Aqui pode
ignorar-se o ano em que se vive e aqueles que dizem que o
homem não pode escapar à sua época, mentem. A Idade da
Pedra,
assim como a Idade Média, apresentam-se-nos no dia que
passa.
Ainda estão abertas as mansões sombrias do Romantismo, com
os

223

seus amores difíceis. Mas nada disto se destinou a mim,


porque
a única raça humana que está impedida de se desligar das
datas
é a raça dos que fazem arte, e não só têm de se adiantar a
um
passado
imediato, representado por testemunhos tangíveis, como
também
se antecipam ao canto e forma de outros que virão depois,
criando novos testemunhos tangíveis com plena consciência
daquilo que foi feito até hoje. Marcos e Rosario ignoram a
história. O Adiantado situa-se no seu primeiro capítulo e eu
teria podido permanecer a seu lado se a minha ocupação
tivesse
sido qualquer outra que não a compor música - ocupação de
chefe de raça. Falta saber
agora se não serei ensurdecido e privado de voz pelas
marteladas do Comitre que me espera algures. Terminaram hoje
as férias de Sísifo.
Alguém diz, atrás de mim, que o rio desceu bastante
nestes últimos dias. Reaparecem muitos bancos submersos e as
torrentes eriçam-se de esporões rochosos, cujas atraentes
algas morrem à luz. As árvores e as margens parecem mais
altas, agora que as suas raízes estão prestes a sentir o
calor
do Sol. Num tronco escamado, tronco de um ocre manchado de
verde claro, começa a ver-se, quando a corrente se aclara, o
Sinal desenhado na casca, com a ponta de um canivete, uns
três
palmos abaixo do nível das águas.

Caracas, 5 de Janeiro de 1953

224

NOTA
Embora o local onde decorre a acção dos primeiros capitulos
do presente livro não necessite de maior indicação, embora a
capital latino-americana, as cidades de provincia que
aparecem
mais adiante, sejam meros protótipos aos quais não foi dada
uma situação precisa, já que os elementos que os integram
são
comuns a muitos países, O autor julga necessário esclarecer
para satisfazer qualquer curiosidade leegitima, que a partir
do lugar chamado Puerto Anunciación, a paisagem cinge-se a
imagens muito precisas de lugares pouco conhecidos e apenas
fotografados - se é que alguma vez o foram. O rio descrito
que, a princípio, podia ser qualquer grande rio da América,
torna-se, muito claramente, o Orenoco no seu curso
superior. O
lugar da mina dos gregos poderia situar-se não muito longe
da
confluência do Vichada. A passagem com a tripla incisão em
forma de V, que assinala a entrada da passagem secreta,
existe, efectivamente, com o Sinal, à entrada do Ribeiro da
Guacharaca, situado a umas duas horas de navegação, mais
acima
do Tiichada: conduz, sob abóbadas de vegetação, a uma aldeia
de indiosgaibas i que tem o seu atracadouro numa enseada
oculta.
A tempestade acontece num lugar que pode ser o Caudal del
Muerto. A Capital das Formas é o Monte Autana, com o seu
perfil de catedral gótica. A partir dessa jornada, a
paisagem
do Alto Orenoco e do Autana é substituida pela da Grande
Savana, cuja imagem é dada em várias passagens dos capitulos
III e IV. Santa Mónica de Los Venados corresponde ao que
Santa
Elena del GUarirén pode ter sido durante os primeiros anos
da
sua fundação, quando o modo mais fácil de chegar à
incipiente cidade era uma subida de sete dias, partindo do
Brasil, ao longo de uma torrente tumultuosa.

225

Desde então, nasceram muitas povoações semelhantes em várias


regiões da selva americana. Ainda não há muito
tempo, dois famosos exploradores franceses descobriram uma
delas, da qual não havia notícia, que corresponde de modo
singular à fisionomia de Santa Mónica de los Venados, com
uma
personagem cuja história é a mesma de Marcos. O capitulo da
Missa dos Conquistadores passa-se numa
aldeia piaroa que existe, efectivamente, perto do Autana. Os
índios descritos na jornada XXIII são shirishanas do Alto
Caura. Um explorador gravou fonograficamente - em disco que
faz
parte dos arquivos do folclore venezuelano - o Canto Fúnebre
do Feiticeiro.
O Adiantado, Montsalvatje, Marcos e frei Pedro são as
personagens que encontra todo aquele que viaje pelo grande
teatro da selva. Correspondem todos a uma realidade - como
também
corresponde a uma realidade um certo mito do El Dorado, que
os
jazigos de ouro e pedras preciosas, todavia, alimentam. No
que
respeita a Yannes, o mineiro grego cujo único haver que o
acompanhava era o volume de A Odisseia, basta dizer que o
autor nem sequer Lhe mudou o nome. Apenas não referiu que
além
de A Odisseia admirava acima de tudo A Anábase de Xenofonte.

Data da Digitalização

Amadora, Novembro de 1996

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