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sido propostas para designar a nossa época.1 da informação (NTI) que a nova sociedade
Cada uma destas designações sublinha um emergente conseguirá não só resolver os pro-
aspecto particular das transformações que blemas endémicos do sub-desenvolvimento,
têm marcado o nosso tempo e depende, das disparidades económicas e sociais, mas
por conseguinte, da perspectiva adoptada propiciar as condições da transparência in-
por cada autor para as entender. Mas a dispensável à democratização da vida cívica
utilização das designações sociedade pós- e à participação dos cidadãos na vida pú-
industrial, pós-moderna, pós-racional, pós- blica.
iluminista, tal como a expressão fim da histó- Esta visão eufórica é, no entanto, funda-
ria, proposta por Fukuyama,2 possuem como mentada na crença num futuro pelo menos
lugar comum o facto de serem expressões problemático, crença que é infelizmente de
negativas, de sublinharem o fim ou a perca difícil demonstração. Os indicadores dispo-
das características da experiência do pas- níveis acerca dos primeiros resultados da in-
sado. formatização da sociedade não parecem jus-
A única excepção que eu conheça a esta tificar esta visão optimista. Pelo contrário. O
concepção negativa das designações epocais fosso entre países ricos e países pobres não
é a de “sociedade da informação”, que sur- pára de se acentuar. As desigualdades, em
giu sobretudo a partir do final dos anos 80. vez de se atenuarem, agravam-se cada vez
Ao contrário das designações anteriormente mais. A par de inegáveis processos demo-
evocadas, esta última expressão está associ- cratizantes no acesso às decisões e à frui-
ada a uma visão positiva e optimista das mu- ção dos produtos culturais, novas formas de
danças do nosso tempo. dependência e de totalitarismo não cessam
Este optimismo é, no entanto, fundado de se gerar. Às inegáveis libertações cria-
numa crença de difícil aceitação, na crença das pelas NTI, correspondem novas moda-
no determinismo tecnológico, segundo o lidades de escravização, condições de vida
qual, graças aos novos dispositivos técni- precárias, porventura mais subtis e sofistica-
cos, conseguiremos finalmente ultrapassar as das, mas nem por isso menos dolorosas e efi-
contradições económicas, culturais e políti- cazes.
cas herdadas do passado e instaurar uma so- A minha proposta tem sido a de caracte-
ciedade finalmente democrática, em que to- rizar o nosso tempo como a época da auto-
dos acabariam finalmente por ter acesso aos nomização do campo dos media. Esta ex-
bens económicos, políticos e culturais. Se- pressão tem, pelo menos, a vantagem de re-
gundo os autores que propõem designar o lacionar o actual domínio da informação me-
nosso tempo como a época da sociedade da diática com as transformações que ocorre-
informação, é graças às novas tecnologias ram no âmbito da experiência moderna do
1
mundo.
Cfr. Daniel Bell, The Coming of Pós-Industrial
Society: a Venture in Social Forecasting, Nova Ior- Com esta designação pretendo dar conta,
que, Basic Books, 1973; The Cultural Contradictions ao mesmo tempo, das continuidades e das
of Capitalism, Nova Iorque, Basic Books, 1976. rupturas do nosso tempo em relação ao pro-
2
Ver Francis Fukuyama, O Fim da História e o jecto da modernidade. A fim de melhor fa-
Último Homem, Lisboa, ed. Gradiva, 1992.
zer compreender esta relação, considero hoje
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imprescindível inseri-la numa reflexão sobre jam visados, de maneira consciente, fins e o
a experiência do mundo, domínio que come- domínio expresso das operações necessárias
çarei portanto por tentar compreender. para os atingir.”3
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veis por serem fundamentados em crenças verdade, e que tem a ver com a existência de
firmes, enraizadas no hábito. De facto, a ex- mim próprio, dos outros e do mundo natural,
periência diz-me, antes de mais, um conjunto constitui aquilo a que dou o nome de dimen-
de coisas indiscutíveis, tais como a certeza são ontológica da experiência.
da minha existência, da existência dos outros Mas a experiência não me leva apenas a ter
e da existência dos objectos e dos fenómenos de aceitar a existência de mim próprio, dos
do mundo natural. outros e do mundo natural. Leva-me igual-
Haverá alguma razão apodíctica, indiscu- mente a pressupor que, até prova em con-
tível, para aceitar estas evidências? Não. trário, aquilo que ocorre no mundo, aquilo
A razão diz-me que tudo o que me rodeia que os outros dizem e fazem, aquilo que ex-
poderia não passar de uma ilusão engana- periencio em mim próprio não visa a minha
dora. E, no entanto, não posso dar um passo destruição nem a minha desagregação, não
se não aceitar como indiscutível a existên- atenta contra a minha integridade nem con-
cia das coisas que me rodeiam, em nome tra a integridade dos outros seres. Este con-
do bom senso, de uma sabedoria constitu- junto de saberes que, tal como os primeiros,
tiva do senso comum. Por isso, Descartes, tenho de aceitar por hábito como seguros e
até no momento em que procurava pôr em que têm a ver com a crença na precedência
dúvida todas as certezas não fundadas ra- do bem sobre o mal, do que respeita a inte-
cionalmente, teve de as aceitar provisoria- gridade dos seres sobre o que a viola, consti-
mente (par provision) simplesmente para po- tui a dimensão ética da experiência.
der continuar a submetê-la à dúvida metó- A experiência leva-me, enfim, a aceitar
dica.5 que as configurações que dão forma às coi-
O mesmo tenho de admitir acerca da exis- sas, aos discursos e às acções não se equiva-
tência de mim próprio e dos outros. Que ga- lem, mas se distinguem por me causarem ora
rantias racionais tenho para aceitar como in- prazer ora desprazer, segundo critérios que
discutível a minha existência e a existência não têm outro fundamento a não ser o da in-
dos outros seres humanos? Não há nenhuma teriorização de regras interiorizadas pelo há-
razão apodíctica que me diga que a minha bito. Ao conjunto dos saberes que me permi-
existência e a dos outros não passa de um tem distinguir entre as formas agradáveis e
efeito enganador da minha percepção provo- as desagradáveis, entre as que me dão prazer
cado por qualquer espírito maligno apostado e as que me dão desprazer, constitui aquilo
em me enganar. E, no entanto, até para poder a que dou o nome de dimensão estética da
considerá-las como evidências enganadoras, experiência.
tenho de partir da crença na sua existência.
Este conjunto de saberes que tenho de 1.2 Confiança e sistema de
aceitar como seguros, pelo hábito, e não por-
que a razão me dê provas categóricas da sua expectativas
5
O conjunto das dimensões da experiência é
René Descartes, Discours de la Méthode pour
bien conduire sa Raison, in Oeuvres et Lettres, Pa-
absolutamente indispensável à sobrevivência
ris, Bibl. de la Pléiade, ed. Gallimard, 1953, páginas tanto da espécie como de cada um dos indi-
125-179 (or.: 1637). víduos, e está na base daquilo a que podería-
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mos dar o nome de confiança, de um sistema também o seu comportamento com esse sa-
de regras impostas pela sabedoria prática, de ber? Haverá alguma razão para fundamentar
cujo domínio depende a crença, não só na esses saberes mútuos e a conformidade dos
existência do mundo natural, do mundo dos comportamentos a esses saberes? Há e não
outros e do meu mundo próprio, mas tam- há. Há a razão de que, até agora, tem sido as-
bém das dimensões ontológica, ética e esté- sim que as coisas costumam acontecer. Mas
tica da sua experiência. não há nenhuma razão categórica ou absoluta
Tendo em conta aquilo que eu sei acerca que evite que as coisas deixem de acontecer
da marcha que estes três mundos têm se- desse modo no futuro. Ninguém poderá ga-
guido até agora, podemos confiar em que rantir de facto que, a partir de hoje, a em-
eles continuarão a decorrer no futuro de uma presa de transportes públicos mude o roteiro
determinada maneira, segundo modalidades da linha, que nessa manhã os condutores en-
relativamente previsíveis. Esta confiança de- trem em greve, que haja um tremor de terra
pende de uma realidade, não empírica mas que destrua a rua onde esse transporte pú-
a priori. E está na origem das categorias da blico costuma passar ou que o mundo acabe
experiência, fundamento daquilo a que dou o entretanto.
nome de sistema de expectativas. O sistema de expectativas constitui um sis-
O sistema de expectativas apresenta as ca- tema simbólico e é com base nele que, por
racterísticas de naturalidade da praticidade, um lado, regulo a minha vida de acordo com
fundamento da reciprocidade e da mutuali- aquilo que considero razoável e adequado ao
dade. Enquanto a reciprocidade da experiên- comportamento dos outros e ao desenrolar
cia consiste na correspondência entre as mi- dos fenómenos da natureza e que, por outro
nhas expectativas e as expectativas dos ou- lado, interpreto os comportamentos dos ou-
tros, a mutualidade da experiência tem a ver tros e os fenómenos da natureza de acordo
com o facto de cada um saber que os outros com aquilo que me habituei a esperar desses
também sabem que eu sei que as coisas de- comportamentos e desses fenómenos.
correrão de futuro de determinada maneira e
que os outros também o sabem e que sabem 1.3 Experiência e memória.
que eu sei.
Porque é que eu me dirijo a um determi- Reconhecimento e
nado local todos os dias pela manhã para familiaridade
apanhar um determinado transporte público Como vimos, pelo facto de ser um conjunto
que me levará, por exemplo, ao local do meu de saberes fundados no hábito, a experiên-
trabalho? Porque sei que é nesse local que cia depende dos mecanismos da memória, da
esse transporte público pára a uma determi- capacidade de rememoração que os huma-
nada hora e que o seu motorista também o nos possuem, da capacidade de rememorar,
sabe e que sabe que as pessoas que, como no presente, o passado e de prever o futuro,
eu, pretendem apanhá-lo a essa hora também a partir da rememoração presente do pas-
sabem que é nesse local que esse transporte sado. É portanto fundamentalmente consti-
público pára. Porque sei que que uns e outros tuída por dois processos de sinal contrário:
não se limitam a sabê-lo, mas conformam
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se situa dentro das suas fronteiras daquilo do sentido.8 É por isso que, para o homem,
que está para além das suas fronteiras, a sua não é apenas o meio ambiente que constitui
intervenção não é propriamente objecto da o quadro em que se desenrola a sua experiên-
percepção, mas fundo sobre que os objectos cia. Abarca igualmente o conjunto das mar-
do mundo se situam e do qual recebem, para cas por ele próprio projectadas para delimitar
nós, uma forma perceptível. a sua prórpia experiência, o seu Lebenswelt.
Todos os seres vivos possuem quadros Com propriedade de termos, só podemos
delimitadores do seu meio ambiente ou do falar de frame ou de quadro do sentido para
ecossistema dentro do qual a sua sobrevi- referirmos as fronteiras delimitadoras da ex-
vência é possível e fora do qual não pode- periência humana. Este quadro delimita o
riam sobreviver, dentro do qual interagem e conjunto das interacções sensatas e razoáveis
do qual recebem toda a espécie de estímulos daquelas que seriam insensatas e sem sen-
conectados com os dispositivos naturais de tido. Assim, por exemplo, é pelo facto de se
que estão apetrechados ou equipados. Fora situar dentro do quadro do sentido daquilo a
do seu Umwelt, os seres vivos não poderiam que poderíamos chamar uma cerimónia que
sobreviver. não estranhamos que os homens vistam terno
O homem também possui o seu Umwelt; e gravata e que as senhoras usem vestidos
também interage com o seu ecossistema. longos, comportamentos completamente in-
Mas, ao contrário dos restantes seres vivos, sensatos, por exemplo, numa praia.
incorpora-o no seu próprio ser, leva-o ou Para dar a entender o funcionamento dos
transporta-o consigo, não estando por isso quadros da experiência, costumo dar como
completamente determinado pelos estímulos exemplos o palco de um teatro, a capa de
que dele recebe. Daí a capacidade que tem um livro, a moldura de um quadro, o ecrã
de se apropriar do mundo, de o modelar do cinema, da televisão ou do computador.
de acordo com projectos por si concebidos Cada um destes exemplos é uma marca ou
e inclusivamente de o reconstituir artificial- uma materialidade delimitadora de um es-
mente. Tem além disso a capacidade de con- paço, dentro do qual se constitui um mundo
verter as interacções que estabelece com o próprio, distinto daquilo que está fora desse
meio ambiente num sistema de significações, mundo, mundo que tem a propriedade de
num conjunto organizado de interacções do- tornar razoável um determinado conjunto de
tadas de sentido, que têm a propriedade no- práticas significantes que, fora delas, seriam
tável de poderem suscitar respostas, mesmo desprovidas de razoabilidade.
na ausência dos estímuos naturais a que se É pelo facto de, na capa de um livro que
referem. É ao resultado desta conversão que estamos a ler, se indicar que se trata de um
damos o nome de Mundo vivido ou, para uti- romance de ficção científica que aceitamos
lizarmos a expressão alemã consagrada por como razoáveis e verídicas acções que se de-
Husserl, de Lebenswelt. senrolam, por exemplo, no século XXV, na
Às fronteiras do quadro ou do contexto 8
Ver a este propósito a obra de Erving Gofman,
situacional do Lebenswelt dão os anglo- Frame Analysis, 1974 (trad. francesa: Les Cadres de
saxónicos o nome de frame ou de quadro l’Expérience, Paris, ed. de Minuit, 1991).
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galáxia Alfa, acções completamente invero- No momento em que nos apercebemos deles,
símeis e insensatas no quadro de uma viagem o sentido desloca-se e tende a desmoronar-se
ao longo da estrada que tomo todos os dias ou, pelo menos, a ser posto em crise. É a par-
para ir da minha casa para o trabalho. É pelo tir dessa deslocação que se constitui um novo
facto de existir um palco, que delimita uma quadro de sentido que compreende ou abarca
determinada acção dramatúrgica, que aceito o primeiro no interior das suas fronteiras.
como verosímil e me deixo emocionar, por É a este processo que damos o nome de
exemplo, com a história de Romeu e Julieta, desconstrução do sentido. Pode ser pro-
história completamente insensata se aconte- positadamente desencadeado, como no caso
cesse numa das ruas da cidade onde moro. das vanguardas estéticas, que procuram rom-
A experiência é assim o resultado da in- per com os quadros habituais da percep-
tervenção de um quadro que está lá para de- ção das formas significantes e do sentido
sempenhar uma função de fronteira, de se- por ela constituídos. Assim, por exem-
parador de mundos. Os Gregos davam a plo, o chamado apropriadamente teatro do
esta fronteira o nome de parergon e os lite- absurdo rompe sistematicamente as frontei-
rários chamam-lhe paratexto. É uma espé- ras do palco dentro das quais é suposto
cie de porta que serve tanto para abrir como desenrolar-se a acção dramatúrgica, dentro
para fechar o mundo do sentido. A sua natu- das quais se constitui a identidade das per-
reza não é significante como as materialida- sonagens, distinta da identidade dos acto-
des que encerra, mas simbólica. As materi- res, assim como a verosimilhança da narra-
alidades em que se investe a experiência são tiva. Mas há também inúmeros exemplos es-
significantes, na medida em que as posso tra- pontâneos destes processos de desconstrução
duzir sempre por outras materialidades, mas dos quadros do sentido no decurso da nossa
as marcas que delimitam essas materialidade vida quotidiana. É o caso, por exemplo, do
significantes e lhes conferem razoabilidade discurso do apresentador do telejornal, que
ou sentido possuem a ambivalência que po- rompe com o quadro delimitador do espaço
demos atribuir às funções de uma porta, que próprio ao sentido do telejornal, no momento
tanto serve para abrir como para fechar, ou em que se dirige directamente ao telespecta-
de uma ponte, que tanto liga como separa as dor, por ocasião de uma avaria, ou para abrir
duas margens de um rio. É precisamente esta um diálogo com um correspondente ou um
ambivalência que caracteriza a natureza sim- convidado.10
bólica dos quadros do sentido, da experiên- Para sentirmos a natureza violadora do
cia.9 frame destas práticas desconstrutoras, ima-
Normalmente, respeitamos os quadros do ginemos o caso em que, no momento em que
sentido, apesar de não nos darmos habitu- abraço um amigo, lhe explicito o sentido do
almente conta e enquanto não nos dermos meu gesto, dizendo que é dessa maneira as
conta da sua presença nem dos seus efeitos. pessoas amigas costumam cumprimentar-se.
9 10
Recorde-se que símbolo vem do grego synbolon. Desenvolvi este exemplo no meu livro Comuni-
Na origem, um synbalon é um objecto que se parte cação e Cultura, Lisboa, ed. Presença, 1999, 2a ed.,
de modo a que pela junção das duas partes se possa página.
estabelecer o reconhecimento de um mensageiro.
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O sentido do meu abraço deslocar-se-ia para que é formada por saberes que são funda-
dar origem a um outro sentido em que o pri- mentados no facto de serem transmitidos, e
meiro seria enquadrado. Pelo mesmo facto, não em razões autónomas da tradição. É o
o sentido do meu abraço presente tenderia facto de terem sido dados, recebidos e retri-
a desmoronar-se. É também por essa razão buídos, segundo a expressiva categorização
que o meu comportamento presente pode de- do potlatch feita por Marcel Mauss, que os
nunciar ou trair sentidos diferentes e eventu- fundamenta. É esta mesma lógica, intima-
almente antagónicos em relação ao sentido mente associada à discursividade narrativa,
daquilo que dizem os meus enunciados. que predomina precisamente na modalidade
tradicional da experiência.
1.7 Modalidades da experiência Para a tradição, os dispositivos de media-
ção ao mundo não acedem à consciência re-
Depois desta tentativa de abordagem siste- flexiva do homem, fazendo com que a per-
mática das diferentes componentes da expe- cepção que temos do mundo nos apareça
riência, vou abordar a distinção entre as duas como natural e indiscutível. É por isso que
modalidades, tradicional e moderna, da ex- também não há lugar para a emergência da
periência. Esta distinção vai permitir com- questão comunicacional. Tanto os dispositi-
preender melhor a relação entre a sabedoria vos naturais como os dispositivos artificiais
da experiência e os saberes científicos. de mediação ao mundo não aparecem como
À guisa de esclarecimento preliminar, de- objectos da experiência, mas como quadros
verei esclarecer que, ao falar de tradição e naturalizados da sua constituição. Não ad-
de modernidade, não me estou a referir a mira, por isso, que a oralidade seja o dispo-
nenhum período histórico determinado. Ex- sitivo de mediação privilegiado da tradição
periência tradicional e experiência moderna e que a linguagem seja encarada como mero
não se sucedem mas coexistem, em maior instrumento de comunicação, não acedendo
ou menor grau, em todos os tempos e em ao nível de objecto de questionamento. Há
todas as sociedades. Trata-se portanto de uma relação indiscutível de conaturalidade
ideais-tipos, para utilizarmos a terminologia entre as palavras e as coisas.
de Max Weber. São conceitos construídos Como a própria etimologia do termo su-
para dar conta de duas maneiras distintas e, gere, por tradição entende-se a maneira de
em grande medida, opostas de experienciar fundamentar as crenças e as convicções na
o mundo e que se manifestam em crenças, transmissão de uma sabedoria naturalizada
legitimações, atitudes, discursos, comporta- pelo facto de se ter perdido a memória da sua
mentos. origem.11 É esta amnésia da sua origem que
a impõe precisamente de maneira indiscutí-
1.7.1 A modalidade tradicional da expe- vel a todos.
riência Para a modalidade tradicional da experi-
11
À modalidade originária da experiência da- Recorde-se que traditio vem do verbo latino tra-
mos o nome de tradicional, por se tratar dere que significa transmitir, entregar, dar, deixar por
de uma maneira de experienciar o mundo herança, confiar, ceder, abandonar, trair, atraiçoar,
contar, narrar, ensinar, transmitir aos discípulos.
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Experiência, modernidade e campo dos media 11
ência, não existe distinção clara, mas conti- conseguinte, da língua que recebemos as dis-
nuidade e homologia, entre os diferentes do- tinções da experiência sensorial do mundo.
mínios e as diferentes dimensões da experi- Mas, além da experiência da língua ma-
ência. Há continuidade entre a experiência terna, a experiência afectiva, nomeadamente
de si, dos outros e do mundo natural, assim amorosa, constitui também um dos domínios
como há homologia entre as dimensões on- irredutíveis da experiência tradicional. Qual-
tológica, ética e estética da experiência. Esta quer processo de fundamentação racional do
homologia e esta continuidade traduzem-se afecto equivale inevitavelmente ao seu des-
na confusão entre o domínio da natureza e o moronamento. Por isso, Pascal dizia que “o
domínio da cultura. E esta é uma das razões coração tem razões que a razão desconhece.”
fundamentais para que a experiência tradici-
onal parta de uma relação de continuidade 1.7.2 A modalidade moderna da experi-
entre os dispositivos naturais e os dispositi- ência
vos artificiais de mediação. É por isso tam-
bém que a oralidade representa o meio de A modalidade moderna da experiência cor-
comunicação privilegiado da tradição. De responde a um processo complexo de ruptura
facto, a invenção da escrita pressupõe já um para com a tradição12 e de autonomização13
elevado estádio de autonomização dos dispo- dos diferentes domínios e das diferentes di-
sitivos artificiais, em particular da mediação mensões da experiência, com a consequente
da escrita, em relação aos dispositivos natu- ruptura entre a esfera da natureza e a esfera
rais de mediação. da cultura.
De entre todos os domínios da experiên-
cia, o da língua materna é o que melhor
representa a modalidade tradicional, aquele
que escapa a qualquer trabalho desconstrutor
da modernidade. É por isso que não precisa- 12
Esta ruptura está inscrita na própria etimologia
mos de uma aprendizagem formal das suas do termo que aparece tardiamente no século VI. Da
regras para as conhecermos, as dominarmos raiz indo-europeia de modernus, mod- ou med-, deri-
varam os termos gregos medomai (tomar conta de ou
e as experienciarmos. É por isso que recusar meditar), medimnos (medida), medo (proteger ou go-
a submissão às suas regras equivaleria, pura vernar), e os termos latinos modus (medida), modes-
e simplesmente, a uma recusa da experiência tus (comedido), medeor (cuidar de, tratar, medicar),
do mundo. Não é que equivaleria apenas a medicus, medicina, medicamentum, remedium, mode-
subtrair-nos ao convívio dos outros; equiva- ratio, moderari. Como diz Emile Benveniste, por mo-
dernus entende-se uma medida de coacção, supondo
leria a uma recusa, pura e simples, da expe- reflexão, premeditação, e que é aplicada a uma situ-
riência do mundo natural e de nós próprios. ação desordenada.” E. Benveniste, Vocabulaire des
Pela simples razão de que é na língua ma- Institutuions Indo-européennnes, Paris, ed. de Minuit,
terna que recebemos os quadros em que fa- 2o volume, 1969, página 128.
13
zemos entrar o mundo para o podermos apre- Prefiro utilizar o termo autonomização para me
demarcar das ressonâncias funcionalistas associadas
ender, de ser dela que recebemos a matriz ou aos termos fragmentação e diferenciação, habitual-
os quadros a priori que permitem apreender e mente utilizados por alguns autores, para falar da mo-
discernir os objectos que nos rodeiam. É, por dernidade.
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Experiência, modernidade e campo dos media 13
instituição familiar e manifestam-se nome- delimitar o seu próprio quadro de vida, das
adamente pela coabitação, no mesmo lugar, suas escolhas e dos seus gostos, assim como
da família alargada. Mas, com a moderni- da pretensão de cada um construir a sua pró-
dade, os quadros da experiência deixam de pria identidade e a fazê-la reconhecer e res-
estar concretamente delimitados pelas fron- peitar pelos outros.
teiras locais, abrindo-se a interacções que ul- A intensidade e a natureza da sociabili-
trapassam essas fronteiras para se tornarem dade deixam de depender dos quadros con-
progressivamente independentes da partilha cretos das fronteiras do local e passam a va-
do mesmo lugar. riar de acordo com os projectos de investi-
Este processo de deslocação das relações mento individual.
de sociabilidade não tem sempre a mesma Deste modo, a emergência da paixão amo-
natureza. Assim, nos séculos XVII e XVIII, rosa como critério de realização da experiên-
deu lugar à experiência das viagens, à des- cia de si equivale a uma autonomização e a
coberta de outros continentes, de outros po- uma valorização das relações de intimidade
vos, de outras culturas, de outras visões do em detrimento da forma contratual do casa-
mundo. No século XIX, traduziu-se pelo de- mento e da família, correspondendo ao surgi-
senraizamento das comunidades rurais emi- mento da família nuclear, com a consequente
gradas para os centros industriais. No nosso institucionalização e autonomização de clas-
tempo, dá lugar ao desenvolvimento das inte- ses de idade, da infância, da adolescência, da
racções, instantâneas e em todos os sentidos, idade activa e da velhice. A intensidade e a
através das redes telemáticas, factor daquilo natureza da sociabilidade deixam por isso de
a que hoje damos o nome de globalização da depender dos quadros concretos das frontei-
experiência do mundo. ras do local e passam a variar de acordo com
Mas, através de todas estas realizações di- os projectos de investimento individual.
ferenciadas, encontramos sempre um pro- Prefiro falar de processo de autonomiza-
cesso de deslocalização, característica dos ção, em vez de libertação, a propósito destas
quadros modernos da experiência. A famí- transformações individualizantes ao nível
lia alargada deixa de fixar os quadros da ex- da experiência, porque este processo não
periência total do mundo, abrindo-se a ex- equivale necessariamente a um aumento de
periência a novos quadros de sociabilidade, liberdade. Podemos de facto considerar este
mais ténues, menos fixos, mais aleatórios, processo mais como a imposição de novas
mas nem por isso necessariamente menos in- formas e de novas estratégias de coacção
tensos e mobilizadores. do que de uma autêntica libertação. Como
Em vez de definida por quadros estáveis, a propósito mostrou Michel Foucault, as
em torno dos laços familiares, da proprie- estratégias modernas de coacção, correspon-
dade da terra, da partilha de uma história co- dentes a este processo de autonomização,
mum, do reconhecimento recíproco e mútuo fazem mais apelo a modalidades morais
da identidade do lugar ocupado por cada um, do que físicas de coacção, jogando com
num sistema de interacções herdado do pas- a interiorização individual das normas da
sado, a experiência moderna passa a depen- autonomia, contando, deste modo, mais com
der da capacidade de cada um a construir e a cumplicidade dos indivíduos na sua impo-
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sição, em nome da eficácia dessa imposição, lização decorrente deste antagonismo cor-
do que com as modalidades dolorosas da responde o processo de racionalização, que
coacção física.15 consiste na necessária invenção de sempre
novas razões plausíveis, em função das ex-
1.7.2.2 Culpabilização e racionalização pectativas dos outros interiorizadas pelos in-
divíduos. Este processo pode inclusivamente
Mas, como já tive ocasião de referir, estas dar hoje origem a um processo de esquizo-
transformações não afectam a totalidade da frenização da experiência. Assim, os discur-
experiência nem se manifestam, em toda a sos que acompanham as rupturas, as emigra-
parte, do mesmo modo. A sociabilidade mo- ções, os divórcios, o alijamento dos idosos
derna não destrói a totalidade das formas tra- por parte dos familiares e a sua instalação em
dicionais da sociabilidade. Convivem antes lares da terceira idade podem oferecer elo-
umas com as outras, negociando entre si so- quentes exemplos deste processo esquizofre-
luções de compromisso, mais ou menos bem nizante de racionalização.
sucedidas. A dificuldade em compatibilizar, Estes processos de culpabilização e de
por vezes, as exigências de cada uma des- racionalização contribuem para a instaura-
tas modalidades da experiência dá ocasião à ção das novas modalidades de coacção que
emergência de um outro fenómeno inerente caracterizam a experiência moderna.
à experiência moderna, o fenómeno da cul-
pabilização, com a concomitante autonomi- 1.7.2.3 A autonomização dos domínios
zação do campo terapêutico, no domínio da da experiência
experiência de si.
A culpa, ao contrário da falta, é o senti- À autonomização da experiência de si em
mento da incomensurabilidade das exigên- relação à experiência do mundo natural cor-
cias da modernidade e da eventual diver- responde o processo moderno de instrumen-
gência em relação às exigências da tradição. talização do mundo não humano, simboli-
Manifesta-se nomeadamente na dificuldade camente representado pela terceira pessoa,
e, por vezes, na impossibilidade de conciliar pelo “ele”. É o mundo dos fenómenos do
o reconhecimento das expectativas dos ou- mundo natural, daquilo que é excluído tanto
tros e o respeito pela sobrevivência dos laços da relação subjectiva como da relação in-
localizados com as exigências da autonomia tersubjectiva, do que é aberto à relação de
na realização da experiência de si.16 apropriação e de manipulação. Este processo
As exigências inerentes ao prossegui- tende hoje a marcar as relações humanas por
mento da construção de sempre novos qua- parte da burocracia, para a qual o outro ho-
dros afectivos e profissionais contrasta com mem deixa de ser um interlocutor, “tu” a
as exigências inerentes às fidelidades fami- quem se fala e de quem se escuta, para se
liares e locais. Ao fenómeno da culpabi- tornar objecto, objectivado em discursos em
15
que é referido como utente, mencionado pelo
Ver Michel Foucault, Surveiller et Punir, Paris,
ed. Gallimard, 1975. uso da terceira pessoa.
16
Ver sobre este ponto Anthony Giddens, Moderni- Mas à autonomização da experiência de
dade e Identidade Pessoal, Oeiras, ed. Celta, 1997. si em relação à experiência dos outros cor-
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para criar, impor, manter, sancionar e resta- ção dos campos. A sexualidade, o aborto,
belecer os valores e as regras, tanto constitu- tal como a infância, as mulheres, a droga, a
tivas como normativas, que regulam um do- velhice não são evidentemente experiências
mínio autonomizado da experiência. Abor- modernas, mas autonomizam-se como ques-
darei, por isso, neste capítulo, a génese, a tões modernas, a partir de perspectivações
natureza, as funções, a legimidade, o pro- estabelecidas autonomamente pelos campos
cesso de inculcação, o sistema de sanções, sociais modernos, que se encarregam de as
o regime de funcionamento, a simbólica e o tematizar.
corpo dos campos sociais. Para designar um campo social utilizo a
Antes, porém, convém esclarecer o sen- forma masculina de um adjectivo substanti-
tido da expressão campo social. Não deve- vado: o político, o económico, o jurídico,
mos entender aqui o termo campo num sen- o médico, o científico. É uma convenção
tido espacial, mas energético, à maneira da destinada a distinguir um campo social das
física, que fala de campo de forças para de- suas materializações e manifestações políti-
signar a tensão gerada pelo confronto entre cas, económicas, jurídicas, médicas, científi-
pólos de sentido oposto. É portanto num sen- cas. Assim, o político não se confunde com a
tido tensional que utilizo a expressão campo política, que tem a ver com a sua materializa-
social. Com esta metáfora física pretendo su- ção conjuntural no jogo partidário. O econó-
blinhar o efeito tensional sobre a experiência mico não se confunde com a economia nem
que resulta do confronto entre campos autó- o religioso com a religião, o médico com a
nomos, cada um deles com a pretensão de medicina, o científico com a ciência. Como
regular um determinado domínio da experi- veremos, o económico não se limita às ma-
ência, a partir da delimitação de um determi- nifestações económicas, mas intervém tam-
nado quadro do sentido. bém em práticas que escapam ao domínio da
É na fronteira entre campos de legitimi- economia, tal como o religioso não se esgota
dade que esta tensão se gera e se manifesta. na prática das Igrejas, mas intervém também
A luta pela mobilização do conjunto da expe- noutras esferas de actividade.
riência por cada um dos campos traduz esta
natureza tensional da racionalidade moderna 2.2 A génese dos campos sociais
dos campos sociais. Veja-se, a propósito, o
debate interminável entre o político, o mé- Um campo social é o resultado ou o efeito
dico, o económico, o jurídico, o religioso de uma génese, de um processo de autono-
acerca das questões da droga ou da despena- mização secularizante bem sucedido, graças
lização do aborto, cada um dos campos so- à aquisição da capacidade de impor, com le-
ciais procurando impor os seus quadros pró- gitimidade, regras que devem ser respeita-
prios de sentido em ordem à regulação da ex- das num determinado domínio da experiên-
periência destas questões. cia, baseadas numa indagação racional me-
Mas devemos notar que um dos aspec- todicamente conduzida.
tos interessantes desta tensão é o surgimento Este processo está intimamente associado
moderno de novas questões, a partir do mo- à constituição do sujeito e à sua progressiva
mento em que se consuma esta autonomiza- emancipação das coacções que impedem a
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sua autonomização no seio da tradição. En- agulhas do relógio; introduziu assim em to-
tre os factores desta coacção, contam-se os das as actividades a mensuração exacta e o
determinismos herdados da tradição e legiti- controlo temporal estabelecendo um critério
mados de maneira transcendente assim como independente permitindo figurar e subdividir
a ausência de controlo dos fenómenos da na- a totalidade do dia.”21
tureza. Mas já desde a Antiguidade encontramos
Apesar de não ser exclusivo de nenhuma inúmeros inventos técnicos que prenunciam
época nem de nenhuma sociedade em parti- este esforço de emancipação. A invenção da
cular, este processo tornou-se explicitamente escrita alfabética deverá ter desempenhado
mobilizador da civilização ocidental, a par- indiscutivelmente um papel fundamental no
tir do século XIII, tendo-se acelerado a partir desencadeamento deste processo.
do século XVII e acabando por se alastrar O domínio da saúde, da gestão dos valores
aos outros continentes, na sequência da in- da vida, e o domínio do direito, da gestão dos
tensificação do contacto entre os povos e as valores da justiça, contam-se entre os primei-
culturas. ros domínios a conquistar, já nos finais do
Lewis Mumford considera a invenção do século XIII, a sua autonomia, instituindo-se
vidro, da imprensa e do relógio mecânico como campos sociais dotados de autonomia
as invenções mais importantes do processo em relação ao religioso.22
de viragem da modernidade.19 “A invenção
e o aperfeiçoamento do relógio constitui- 2.3 A natureza dos campos
ram o passo decisivo em direcção da auto-
mação; porque fornece o protótipo a mui- sociais
tas outras máquinas automáticas; e acaba por Por campo social entendo uma instituição
atingir um grau de perfeição, no cronóme- dotada de legitimidade indiscutível, publi-
tro do século XVIII, que estabelece um crité- camente reconhecida e respeitada pelo con-
rio para outros refinamentos tecnológicos.”20 junto da sociedade, para criar, impor, man-
De facto, é com a invenção deste dispositivo ter, sancionar e restabelecer uma hierarquia
técnico de medição do tempo que assistimos de valores, assim como um conjunto de re-
a um processo de naturalização de uma expe- gras adequadas ao respeito desses valores,
riência artificial da temporalidade, indepen- num determinado domínio específico da ex-
dente dos ritmos naturais da experiência: “A periência.
máquina que mecanizou o tempo fez mais do A especificidade de um campo social con-
que regular as actividades do dia: sincroni- siste, por conseguinte, na averiguação do do-
zou as reacções humanas, não com o nascer 21
Op. cit., vol. 1, 1973, páginas 382-383.
e o pôr do Sol, mas com os movimentos das 22
A institucionalização do campo médico esteve
19 associada à prática da dissecação dos cadáveres e é
Ver nomeadamente Lewis Mumford, Le Mythe de
já nos finais do século XIII que esta prática é atestada
la Machine, vol. 1. La Technologie et le Développe-
na Universidade Montpellier. A criação do direito ci-
ment Humain, Paris, ed. Fayard, 1973, páginas 382-
vil, no século XIV, na Universidade de Bolonha pode
383, vol. 2, Le Pentagone de la Puissance, Paris, ed.
ser considerada uma etapa fundamental da autonomi-
Fayard, 1974, páginas 236-237.
20 zação do campo jurídico.
Op. cit., vol. 2, 1974, página 236.
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cas. Assim o espaço privado da vida domés- cional de uma cultura particular, mas sobre-
tica comporta dimensões públicas política, tudo dos mecanismos enganadores da per-
económica, religiosa. cepção sensorial. Encetado no século XVII,
este processo desconstrutor da experiência
nunca mais cessaria de ser aprofundado pela
3 A autonomização do campo
reflexão filosófica dos últimos três séculos,
dos media cavando-se, por conseguinte, cada vez mais
profundamente o hiato intransponível entre a
3.1 Introdução
realidade em si e a experiência fenomenal.
Como vimos, logo na primeira parte, são os A consumação da autonomização do
dispositivos de mediação que delimitam os campo dos media só virá, no entanto, a ocor-
objectos da percepção e da sensação que in- rer com o advento da modernidade tardia, no
tegram o Mundo vivido. No entanto, só na termo da fragmentação dos campos sociais
modernidade tardia esses dispositivos se pro- que surgiram com a primeira modernidade.
blematizam, autonomizando-se num campo É só na segunda metade do século XX que
próprio. Enquanto a experiência tradicional se coloca a questão da compatibilização da
se alimenta da amnésia da arbitrariedade ou legitimidade de cada um dos campos sociais
do esquecimento naturalizante dos quadros com a dos restantes campos.
da experiência formados pelos dispositivos O campo dos media não se limita, no en-
de percepção do mundo, a experiência mo- tanto, a superintender à mediação dos dife-
derna procede da autonomização desses dis- rentes domínios da experiência e dos dife-
positivos e da instituição de um campo do- rentes campos sociais. Faz também emergir,
tado de legitimidade para superintender à ex- nas fronteiras dos campos sociais instituídos,
periência de mediação, instituição a que dou novas questões, como a droga, o sexismo, o
o nome de campo dos media. O processo aborto, a ecologia, para as quais nenhum dos
de autonomização do campo dos media dá- campos detém legitimidade indiscutível nem
se, por conseguinte, na sequência do acesso consegue encontrar soluções consensuais e
à consciência reflexiva moderna que está na impô-las ao conjunto da sociedade. São do-
origem da instauração do projecto de des- ravante estas novas questões que irão mobili-
construção e de problematização dos qua- zar o debate público que o campo dos media
dros do sentido da experiência. se encarrega de promover e publicitar. Fa-
Podemos já antever no Método de Descar- zendo intervir, ao mesmo tempo, problemas
tes uma das manifestações deste processo re- de natureza científica, política, económica,
flexivo e problematizande de desconstrução, religiosa, médica, estas novas questões mos-
a partir da crítica da experiencia espontânea, tram os limites da legitimidade de cada um
objecto da suspeita de fundar uma relação dos campos sociais instituídos ao longo da
enganadora e falaciosa ao mundo. É por isso modernidade para a formulação e a imposi-
que o Método deriva de uma vontade, pro- ção de valores consensuais e de regras sus-
fundamente moderna, de fundar uma expe- ceptíveis de regular os comportamentos ade-
riência universalmente válida, independente quados. É no campo dos media que estas no-
não só do enraizamento na experiência tradi- vas questões se irão reflectir e problematizar.
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O efeito mais notável que o campo dos são especializada e esotérica. É por isso que,
media exerce sobre a nossa experiência do à medida que o campo dos media se auto-
mundo é o chamado efeito de realidade, o nomiza, cada um dos outros campos tende
facto de a realidade tender para o resultado a profissionalizar um corpo próprio encarre-
do funcionamento dos dispositivos de me- gado de assegurar esta função de mediação,
diação, autonomizando-se em relação à per- encarregado sobretudo de redigir releases ou
cepção imediata do mundo e sobrepondo-se comunicados destinados ao público. Assisti-
à percepção espontânea dos nossos órgãos mos assim ao aparecimento de gabinetes de
sensoriais. imprensa, de serviços de relações públicas,
Do efeito de realidade decorre o efeito de de profissionais em marketing, que se encar-
simulação ou a performatividade dos dispo- regam desta função de publicidade.
sitivos mediáticos, a sua capacidade para an-
tecipar, modelar e substituir o real. Deste 3.6 O sistema de sanções do
ponto de vista, o campo dos media consuma
a natureza ortésica e protésica da tecnicidade campo dos media
moderna, ao dotar-nos de dispositivos que Ao contrário dos outros campos sociais, que
substituem o funcionamento e os órgãos sen- têm à sua disposição sistemas morais e físi-
soriais de percepção da realidade. cos de sancões que aplicam aos prevaricado-
res da sua ordem de valores e das suas regras
3.5 A legitimidade do campo dos de comportamento, o campo dos media tem
à sua disposição a privação da publicidade
media para os que não se sujeitam à sua ordem de
O campo dos media não gere propriamente valores de mediação e não cumprem as re-
um domínio da experiência específico, mas gras do seu discurso.
um domínio constituído por uma parte dos O efeito mais notório deste sistema de san-
domínios da experiência que os restantes ções é o da privação de visibilidade pública,
campos sociais nele delegam. É por isso que com a consequente perca da existência so-
dizemos que o campo dos media possui uma cial das suas vítimas. É por isso que cada
legitimidade de natureza delegada ou vicária. vez mais a realidade se confunde com aquilo
A parte que os restantes campos sociais que é mediatizado pelo campo dos media.
delegam no campo dos media é uma parte da
sua função discursiva ou expressiva e cons- 3.7 Regularidade e regimes de
titui o domínio público ou exotérico da sua
competência. É por isso que o campo dos funcionamento do campo dos
media é, ao mesmo tempo, constitui e é cons- media
tituído pelo público, instância que é contem- Ao contrário da natureza intermitente do
porânea da sua própria formação. funcionamento dos restantes campos sociais,
Os campos sociais seleccionam, de entre o campo dos media funciona de maneira con-
as diferentes formas de expressão da sua le- tínua, tendendo a confundir-se com o próprio
gitimidade, aquela que é destinada ao pú- pulsar da vida social. A mobilização do con-
blico, reservando no entanto para si a expres-
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junto da sociedade para o respeito dos seus simbólicas formais (clero, magistrados, pro-
valores e das suas regras de funcionamento fessores, militares). Mas é igualmente um
é, por isso, constante, não exigindo proces- dos factores que está na origem da ambiva-
sos particulares de inculcação. lência vivida no decurso dos processos de
O seu funcionamento não obedece, no en- modernização dos campos sociais que pos-
tanto, a um regime constante, mas apresenta suem uma simbólica formal. Essa moderni-
alterações significativas. De uma maneira zação é encarada, por um lado, como aban-
geral, o regime de aceleração do campo dos dono de marcas formais distintivas, indis-
media acelera-se quando a sua ordem de va- pensável à sua imposição num mundo secu-
lores corre o risco de ser posta em causa, larizado, mas, por outro lado, como perca
quando as suas regras de funcionamento são da sua invisibilidade pública, da consequente
violadas ou quando se assiste ao exacerba- afirmação e reconhecimento da sua legitimi-
mento da tensão nas suas relações com ou- dade por parte do público.
tros campos sociais. Como exemplos deste
exacerbamento refiram-se as questões recen- 3.9 O corpo social e o sistema de
temente suscitadas pelas relações do campo
dos media com o campo jurídico a propósito acreditação do campo dos
da revelação de elementos de processos não media
transitados em julgado, da divulgação dos Uma das questões mais controversas do
nomes de réus antes da sua condenação pelos campo dos media é a do sistema de acredi-
tribunais, da revelação das fontes. tação do seu corpo social. Vimos que para
a autonomização e institucionalização dos
3.8 A simbólica do campo dos campos sociais contribuíu de maneira deci-
media siva o aparecimento de novos pocessos de
acreditação do saber. O aparecimento da fi-
O facto de se tratar de um campo destinado gura do especialista, acreditado com o di-
a assegurar a mediação entre os diferentes ploma universitário, representou um papel
campos sociais determina a natureza infor- fundamental na autonomização dos campos
mal da sua simbólica. Deste modo, os mem- sociais que emergiram com a primeira mo-
bros do seu corpo social tendem a mani- dernidade. Representaram, de algum modo,
festar a sua pertença ao campo através do uma ruptura para com a natureza da legiti-
apagamento sistemático de quaisquer mar- midade da experiência tradicional, herdeira
cas distintivas e olhar com desconfiança to- de uma sabedoria ancestral, adquirida atra-
das as manifestações que denotem publica- vés do convívio com um mestre de quem
mente lugares diferenciados na hierarquia do adquirira a competência que guardava como
campo. um segredo.
Esta natureza informal da simbólica do O corpo social próprio ao campo dos me-
campo dos media é um factor importante dia, por seu lado, encara de maneira particu-
de equívocos das relações entre membros do larmente ambivalente o diploma universitá-
corpo social do campo dos media e membros rio como instrumento de acreditação da sua
dos corpos sociais de campos que possuem
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