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Experiência, modernidade e campo dos media

Adriano Duarte Rodrigues


Universidade Nova de Lisboa
1999

Índice as suas tomadas de decisão, os exércitos rea-


lizam as suas operações e os altos comandos
1 Para uma teoria da experiência 3 militares fazem os seus briefings em função
2 A emergência dos campos sociais 16 dos horários televisivos de maior audiência.
3 A autonomização do campo dos media 24 As famílias organizam as suas refeições e as
4 Obras citadas 31 suas saídas de maneira a não perderem os
seus programas televisivos favoritos. As edi-
Introdução toras fazem depender as suas agendas edito-
riais da publicação de romances que servi-
Tornou-se um lugar comum dizer que vive- ram de roteiro às telenovelas e às séries di-
mos hoje numa sociedade mediática, que a fundidas nos horários de grande audiência.
realidade se tornou para nós, em grande me- Os manifestantes escolhem os momentos e
dida, naquilo que os media seleccionam, tra- os locais de exibição dos seus protestos em
tam e difundem. Alguns autores falam de função da presença e da localização de câ-
sociedade da informação para designar este maras de televisão.
mundo mediatizado em que hoje vivemos. A omnipresença dos media acentuou-se
De facto, a percepção que temos hoje do ainda mais, durante os anos 90, com a rá-
mundo tornou-se dependente de complexos pida generalização da telemática e dos mul-
e permanentes dispositivos de mediatização timédias. Tanto a administração pública e
que marcam o ritmo da nossa vida quoti- as empresas como as famílias e os indiví-
diana, sobrepondo-se cada vez mais não à duos passaram a depender do funcionamento
nossa percepção imediata do mundo, mas de todo um conjunto de dispositivos que os
também aos ritmos do funcionamento das põem em contacto permanente e quase ins-
instituições que formam os quadros da nossa tantâneo com o mundo dos negócios e da cul-
experiência individual e colectiva. tura, que organizam as actividades de lazer,
São cada vez mais os complexos dispo- o comércio e as relações sociais.
sitivos técnicos de mediação que ajustam a Desde que, no final dos anos 60, Da-
nossa percepção do mundo às suas capacida- niel Bell utilizou a expressão “sociedade
des de simulação. Os governos programam pós-industrial”, várias outras expressões têm
2 Adriano Duarte Rodrigues

sido propostas para designar a nossa época.1 da informação (NTI) que a nova sociedade
Cada uma destas designações sublinha um emergente conseguirá não só resolver os pro-
aspecto particular das transformações que blemas endémicos do sub-desenvolvimento,
têm marcado o nosso tempo e depende, das disparidades económicas e sociais, mas
por conseguinte, da perspectiva adoptada propiciar as condições da transparência in-
por cada autor para as entender. Mas a dispensável à democratização da vida cívica
utilização das designações sociedade pós- e à participação dos cidadãos na vida pú-
industrial, pós-moderna, pós-racional, pós- blica.
iluminista, tal como a expressão fim da histó- Esta visão eufórica é, no entanto, funda-
ria, proposta por Fukuyama,2 possuem como mentada na crença num futuro pelo menos
lugar comum o facto de serem expressões problemático, crença que é infelizmente de
negativas, de sublinharem o fim ou a perca difícil demonstração. Os indicadores dispo-
das características da experiência do pas- níveis acerca dos primeiros resultados da in-
sado. formatização da sociedade não parecem jus-
A única excepção que eu conheça a esta tificar esta visão optimista. Pelo contrário. O
concepção negativa das designações epocais fosso entre países ricos e países pobres não
é a de “sociedade da informação”, que sur- pára de se acentuar. As desigualdades, em
giu sobretudo a partir do final dos anos 80. vez de se atenuarem, agravam-se cada vez
Ao contrário das designações anteriormente mais. A par de inegáveis processos demo-
evocadas, esta última expressão está associ- cratizantes no acesso às decisões e à frui-
ada a uma visão positiva e optimista das mu- ção dos produtos culturais, novas formas de
danças do nosso tempo. dependência e de totalitarismo não cessam
Este optimismo é, no entanto, fundado de se gerar. Às inegáveis libertações cria-
numa crença de difícil aceitação, na crença das pelas NTI, correspondem novas moda-
no determinismo tecnológico, segundo o lidades de escravização, condições de vida
qual, graças aos novos dispositivos técni- precárias, porventura mais subtis e sofistica-
cos, conseguiremos finalmente ultrapassar as das, mas nem por isso menos dolorosas e efi-
contradições económicas, culturais e políti- cazes.
cas herdadas do passado e instaurar uma so- A minha proposta tem sido a de caracte-
ciedade finalmente democrática, em que to- rizar o nosso tempo como a época da auto-
dos acabariam finalmente por ter acesso aos nomização do campo dos media. Esta ex-
bens económicos, políticos e culturais. Se- pressão tem, pelo menos, a vantagem de re-
gundo os autores que propõem designar o lacionar o actual domínio da informação me-
nosso tempo como a época da sociedade da diática com as transformações que ocorre-
informação, é graças às novas tecnologias ram no âmbito da experiência moderna do
1
mundo.
Cfr. Daniel Bell, The Coming of Pós-Industrial
Society: a Venture in Social Forecasting, Nova Ior- Com esta designação pretendo dar conta,
que, Basic Books, 1973; The Cultural Contradictions ao mesmo tempo, das continuidades e das
of Capitalism, Nova Iorque, Basic Books, 1976. rupturas do nosso tempo em relação ao pro-
2
Ver Francis Fukuyama, O Fim da História e o jecto da modernidade. A fim de melhor fa-
Último Homem, Lisboa, ed. Gradiva, 1992.
zer compreender esta relação, considero hoje

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imprescindível inseri-la numa reflexão sobre jam visados, de maneira consciente, fins e o
a experiência do mundo, domínio que come- domínio expresso das operações necessárias
çarei portanto por tentar compreender. para os atingir.”3

1 Para uma teoria da experiência 1.1 Os domínios e as dimensões


A experiência compreende um conjunto de da experiência
saberes formados de crenças firmes, fun- A experiência compreende três domínios
damentadas no hábito, ao contrário do sa- fundamentais e originários, os domínios da
ber científico que é fundamentado numa in- experiências de si próprio, dos outros e do
dagação racional metodicamente conduzida. mundo natural. Na sua origem indistin-
Parto da hipótese de que os saberes da expe- tos, estes diferentes domínios da experiên-
riência são inalienáveis, uma vez que não po- cia vão-se a pouco e pouco autonomizando,
demos prescindir deles, embora não possam na sequência do processo de maturação re-
ser fundamentados racionalmente por propo- flexiva que se desenrola, tanto ao nível filo-
sições científicas de natureza apodíctica. genético, da espécie, como ao nível ontoge-
Deverei começar por esclarecer que o do- nético, de cada um dos indivíduos.
mínio da experiência não se confunde com o É a este processo de maturação reflexiva
domínio da experimentação. Enquanto a ex- que dou o nome de autonomização dos domí-
periência capacita o seu possuidor para com- nios da experiência. Ao nível simbólico da
preender sempre novas situações, ainda não linguagem, este processo traduz-se na auto-
experimentadas, a partir de uma sabedoria nomização das três pessoas gramaticais, das
adquirida que fornece modelos e esquemas esferas do “eu”, do “tu” e do “ele, correspon-
de comportamento razoáveis adequados às dentes respectivamente à criação das esferas
diferentes situações da vida, a experimenta- da subjectividade, da intersubjectividade e
ção incide sobre fenómenos novos ainda não da objectualidade. São as categorias que per-
compreendidos ou, pelo menos, insuficien- mitem designar respectivamente os domínios
temente compreendidos. Através da expe- da experiência de si, dos outros e do mundo
rimentação poderá evidentemente adquirir- natural.4 Sabemos que é uma das estrutu-
se uma nova experiência, mas a experiência ras gramaticais que a criança descobre mais
é independente da experimentação que está tarde no processo de apropriação da lingua-
eventualmente na sua origem. gem.
É a experiência que produz aquilo a que Em cada um destes domínios, a experi-
Pierre Bourdieu dá o nome de habitus, “sis- ência consiste na posse de um conjunto de
temas de disposições duráveis e transpo- saberes, não fundamentados racionalmente,
níveis, estruturas estruturadas predispostas mas que têm a característica de serem razoá-
para funcionarem como estruturas estrutu- 3
Pierre Bourdieu, Le Sens Pratique, Paris, ed. de
rantes, isto é, enquanto princípios geradores Minuit, 1980, página 88.
e organizadores de práticas e de represen- 4
Ver nomeadamente Jean-Marc Ferry, Les Puis-
tações que podem ser objectivamente adap- sances de l’Expérience, vol. 1. Le Sujet et le Verbe,
tadas à sua finalidade sem suporem que se- Paris, ed. du Cerf, 1991.

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veis por serem fundamentados em crenças verdade, e que tem a ver com a existência de
firmes, enraizadas no hábito. De facto, a ex- mim próprio, dos outros e do mundo natural,
periência diz-me, antes de mais, um conjunto constitui aquilo a que dou o nome de dimen-
de coisas indiscutíveis, tais como a certeza são ontológica da experiência.
da minha existência, da existência dos outros Mas a experiência não me leva apenas a ter
e da existência dos objectos e dos fenómenos de aceitar a existência de mim próprio, dos
do mundo natural. outros e do mundo natural. Leva-me igual-
Haverá alguma razão apodíctica, indiscu- mente a pressupor que, até prova em con-
tível, para aceitar estas evidências? Não. trário, aquilo que ocorre no mundo, aquilo
A razão diz-me que tudo o que me rodeia que os outros dizem e fazem, aquilo que ex-
poderia não passar de uma ilusão engana- periencio em mim próprio não visa a minha
dora. E, no entanto, não posso dar um passo destruição nem a minha desagregação, não
se não aceitar como indiscutível a existên- atenta contra a minha integridade nem con-
cia das coisas que me rodeiam, em nome tra a integridade dos outros seres. Este con-
do bom senso, de uma sabedoria constitu- junto de saberes que, tal como os primeiros,
tiva do senso comum. Por isso, Descartes, tenho de aceitar por hábito como seguros e
até no momento em que procurava pôr em que têm a ver com a crença na precedência
dúvida todas as certezas não fundadas ra- do bem sobre o mal, do que respeita a inte-
cionalmente, teve de as aceitar provisoria- gridade dos seres sobre o que a viola, consti-
mente (par provision) simplesmente para po- tui a dimensão ética da experiência.
der continuar a submetê-la à dúvida metó- A experiência leva-me, enfim, a aceitar
dica.5 que as configurações que dão forma às coi-
O mesmo tenho de admitir acerca da exis- sas, aos discursos e às acções não se equiva-
tência de mim próprio e dos outros. Que ga- lem, mas se distinguem por me causarem ora
rantias racionais tenho para aceitar como in- prazer ora desprazer, segundo critérios que
discutível a minha existência e a existência não têm outro fundamento a não ser o da in-
dos outros seres humanos? Não há nenhuma teriorização de regras interiorizadas pelo há-
razão apodíctica que me diga que a minha bito. Ao conjunto dos saberes que me permi-
existência e a dos outros não passa de um tem distinguir entre as formas agradáveis e
efeito enganador da minha percepção provo- as desagradáveis, entre as que me dão prazer
cado por qualquer espírito maligno apostado e as que me dão desprazer, constitui aquilo
em me enganar. E, no entanto, até para poder a que dou o nome de dimensão estética da
considerá-las como evidências enganadoras, experiência.
tenho de partir da crença na sua existência.
Este conjunto de saberes que tenho de 1.2 Confiança e sistema de
aceitar como seguros, pelo hábito, e não por-
que a razão me dê provas categóricas da sua expectativas
5
O conjunto das dimensões da experiência é
René Descartes, Discours de la Méthode pour
bien conduire sa Raison, in Oeuvres et Lettres, Pa-
absolutamente indispensável à sobrevivência
ris, Bibl. de la Pléiade, ed. Gallimard, 1953, páginas tanto da espécie como de cada um dos indi-
125-179 (or.: 1637). víduos, e está na base daquilo a que podería-

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mos dar o nome de confiança, de um sistema também o seu comportamento com esse sa-
de regras impostas pela sabedoria prática, de ber? Haverá alguma razão para fundamentar
cujo domínio depende a crença, não só na esses saberes mútuos e a conformidade dos
existência do mundo natural, do mundo dos comportamentos a esses saberes? Há e não
outros e do meu mundo próprio, mas tam- há. Há a razão de que, até agora, tem sido as-
bém das dimensões ontológica, ética e esté- sim que as coisas costumam acontecer. Mas
tica da sua experiência. não há nenhuma razão categórica ou absoluta
Tendo em conta aquilo que eu sei acerca que evite que as coisas deixem de acontecer
da marcha que estes três mundos têm se- desse modo no futuro. Ninguém poderá ga-
guido até agora, podemos confiar em que rantir de facto que, a partir de hoje, a em-
eles continuarão a decorrer no futuro de uma presa de transportes públicos mude o roteiro
determinada maneira, segundo modalidades da linha, que nessa manhã os condutores en-
relativamente previsíveis. Esta confiança de- trem em greve, que haja um tremor de terra
pende de uma realidade, não empírica mas que destrua a rua onde esse transporte pú-
a priori. E está na origem das categorias da blico costuma passar ou que o mundo acabe
experiência, fundamento daquilo a que dou o entretanto.
nome de sistema de expectativas. O sistema de expectativas constitui um sis-
O sistema de expectativas apresenta as ca- tema simbólico e é com base nele que, por
racterísticas de naturalidade da praticidade, um lado, regulo a minha vida de acordo com
fundamento da reciprocidade e da mutuali- aquilo que considero razoável e adequado ao
dade. Enquanto a reciprocidade da experiên- comportamento dos outros e ao desenrolar
cia consiste na correspondência entre as mi- dos fenómenos da natureza e que, por outro
nhas expectativas e as expectativas dos ou- lado, interpreto os comportamentos dos ou-
tros, a mutualidade da experiência tem a ver tros e os fenómenos da natureza de acordo
com o facto de cada um saber que os outros com aquilo que me habituei a esperar desses
também sabem que eu sei que as coisas de- comportamentos e desses fenómenos.
correrão de futuro de determinada maneira e
que os outros também o sabem e que sabem 1.3 Experiência e memória.
que eu sei.
Porque é que eu me dirijo a um determi- Reconhecimento e
nado local todos os dias pela manhã para familiaridade
apanhar um determinado transporte público Como vimos, pelo facto de ser um conjunto
que me levará, por exemplo, ao local do meu de saberes fundados no hábito, a experiên-
trabalho? Porque sei que é nesse local que cia depende dos mecanismos da memória, da
esse transporte público pára a uma determi- capacidade de rememoração que os huma-
nada hora e que o seu motorista também o nos possuem, da capacidade de rememorar,
sabe e que sabe que as pessoas que, como no presente, o passado e de prever o futuro,
eu, pretendem apanhá-lo a essa hora também a partir da rememoração presente do pas-
sabem que é nesse local que esse transporte sado. É portanto fundamentalmente consti-
público pára. Porque sei que que uns e outros tuída por dois processos de sinal contrário:
não se limitam a sabê-lo, mas conformam

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o processo de rememoração e o processo de objectos da experiência. Chegou o momento


previsão. de distinguir esses objectos e esses factos.
É no presente que a ocorrência de factos O objecto primeiro da experiência é a sen-
evocadores de outros factos do passado pro- sação, a percepção sensorial que partilhamos
voca o processo de rememoração que identi- com os outros seres vivos. Já os escolásticos
fica, nos factos presentes, as marcas do pas- diziam que nada pode existir no intelecto que
sado. A rememoração é por isso factor da- não esteja primeiro nos sentidos, a não ser
quilo a que dou o nome de reconhecimento o próprio intelecto: “nihil in intelectu quin
e de familiaridade. É também no presente prius in sensu, nisi intelectus ipse.” É com
que a ocorrência da factos provocadores de base na sensação que distinguimos a rugosi-
determinados efeitos provoca o processo de dade, a lisura ou a moleza, o frio ou o calor,
previsão ou de antecipação, no presente, dos a luminosidade, a espessura, o odor, o som
efeitos futuros dos factos presentes. estridente ou suave dos objectos. Sabemos
Estas duas dimensões da memória corres- que, pelo menos, algumas das características
pondem àquilo a que dou o nome de natu- dos objectos de que temos a sensação não
reza prometeica e de natureza epimeteica da correspondem às que eles possuem, na me-
experiência. A primeira equivale à capaci- dida em que dependem da constituição dos
dade de previsão dos acontecimentos futu- nossos sentidos. A razão contraria a sensa-
ros, de modo a aproveitar atempadamente os ção de que o Sol gira em torno da Terra e um
momentos oportunos e a evitar os perigos, pau direito mergulhado na água aparece-me
os escolhos, ou os momentos nefastos que como se estivesse quebrado. Apesar disso, a
possam vir a acontecer, no futuro. Esta di- experiência diz-me que tenho de confiar nos
mensão prometeica está associada às quali- meus sentidos para poder sobreviver, não só
dades de vigilância do experiente. Por seu enquanto indivíduo, mas também enquanto
lado, a natureza epimeteica da experiência é membro da espécie humana. É a sensação
a característica que leva a saber tirar partido que me leva a evitar os objectos nocivos e a
da ocorrência dos instantes imprevistos, de procurar aqueles que me aparecem como be-
modo a tirar partido deles a posteriori. Deste néficos para a minha integridade individual e
ponto de vista, a experiência pode ser repre- para a sobrevivência da minha espécie.
sentada como uma cabeça de Janus: está vol- O segundo objecto da experiência é a sen-
tada, ao mesmo tempo, para o passado e para sibilidade, que percepciona as qualidades
o futuro.6 sensíveis e constrói um espaço ou um meio
e um tempo ou uma memória corporal sen-
1.4 Processos e objectos da sível, relacionando entre si as sensações e
distinguindo-as segundo graus diferentes, se-
experiência gundo as categorias da quantidade e da qua-
Até agora falámos indiscriminadamente de lidade.
objectos, factos, coisas para designarmos os O terceiro objecto da experiência é o sen-
6
Ver Marcel Détienne e Jean-Pierre Vernant, Les timento, que avalia as sensações de acordo
Ruses de l’Intelligence. La Métis des Grecs, col. com o prazer e o desprazer que me propor-
Champs, Paris, ed. Flammarion, 1974. cionam, em função daquilo a que Jean-Luc

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Ferry chama “a dialéctica do desejo, que dizagem de modalidades de mediação inven-


nasce do encontro da sensação e do senti- tadas, do enxerto, da interiorização ou da in-
mento.”.7 corporação de dispositivos mediáticos artifi-
O quarto objecto da experiência é o con- ciais, inventados pelas sucessivas gerações,
ceito, constructum formado a partir da abs- que constituem aquilo a que damos o nome
tracção das propriedades comuns que a razão de cultura do povo em que os indivíduos nas-
encontra nos objectos da sensação, da sensi- cem e a que pertencem.
bilidade e do sentimento. Mas os dispositivos mediáticos artificiais,
embora complementam os dispositivos natu-
1.5 Os dispositivos mediáticos rais, estabelecem com eles relações de des-
continuidade. É a este hiato ou a este fosso
Os órgãos dos sentidos são portanto dispo- entre os dispositivos naturais e os disposi-
sitivos que desencadeiam sensações, os pro- tivos artificiais que damos o nome de pul-
cessos sensoriais que me tornam, de algum são, processo gerador ou desencadeador de
modo, presente o mundo. Chamarei, por um domínio específico da experiência do ho-
isso, dispositivos aos órgãos dos sentidos, mem a que damos o nome de desejo. O de-
porque são eles que dispõem o mundo de sejo é, deste ponto de vista, o resultado da
acordo com a maneira como estão constituí- falta ou da ausência do objecto para que ten-
dos e porque colocam o mundo à minha dis- dem, no homem, os dispositivos naturais.
posição.
Os órgãos dos sentidos são dispositivos
naturais porque a sua constituição e o seu 1.6 Meio ambiente, mundo
modo de funcionamento nascem connosco, vivido e quadros do sentido
não resultam da invenção nem do fabrico hu- A experiência não é, por conseguinte,
manos. Já chegamos ao mundo apetrecha- uma realidade homogénea, mas diferenci-
dos com eles. Os dispositivos naturais cons- ada, uma vez que se desenrola, antes de mais,
tituem o primeiro sistema mediático, são os num determinado meio ambiente, a que os
mecanismos originários da nossa relação ou alemães costumam dar o nome de Umwelt.
mediação ao mundo. Dão-nos a sentir os ob- O meio ambiente forma a componente pri-
jectos do mundo, ora como agradáveis ora meira daquilo a que damos o nome de qua-
como desagradáveis, provocando aquilo que dro ou contexto situacional da experiência e
designamos por sentimentos de prazer e des- que condiciona a comunicação ou interacção
prazer. com o mundo.
Todos os seres vivos vêm ao mundo ape- Os quadros ou contextos situacionais têm
trechados com dispositivos naturais, mas no uma importância determinante para a discri-
homem eles não se encontram completa- minação dos objectos da percepção, em fun-
mente determinados à nascença. Para pode- ção da sua relevância para a constituição do
rem desencadear as respostas aos estímulos sentido. A característica fundamental dos
do mundo envolvente, necessitam da apren- quadros da experiência é o facto de intervi-
7
Op. cit., vol. 1, página 43. rem como factores de naturalização da per-
cepção. Apesar de distinguirem aquilo que

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se situa dentro das suas fronteiras daquilo do sentido.8 É por isso que, para o homem,
que está para além das suas fronteiras, a sua não é apenas o meio ambiente que constitui
intervenção não é propriamente objecto da o quadro em que se desenrola a sua experiên-
percepção, mas fundo sobre que os objectos cia. Abarca igualmente o conjunto das mar-
do mundo se situam e do qual recebem, para cas por ele próprio projectadas para delimitar
nós, uma forma perceptível. a sua prórpia experiência, o seu Lebenswelt.
Todos os seres vivos possuem quadros Com propriedade de termos, só podemos
delimitadores do seu meio ambiente ou do falar de frame ou de quadro do sentido para
ecossistema dentro do qual a sua sobrevi- referirmos as fronteiras delimitadoras da ex-
vência é possível e fora do qual não pode- periência humana. Este quadro delimita o
riam sobreviver, dentro do qual interagem e conjunto das interacções sensatas e razoáveis
do qual recebem toda a espécie de estímulos daquelas que seriam insensatas e sem sen-
conectados com os dispositivos naturais de tido. Assim, por exemplo, é pelo facto de se
que estão apetrechados ou equipados. Fora situar dentro do quadro do sentido daquilo a
do seu Umwelt, os seres vivos não poderiam que poderíamos chamar uma cerimónia que
sobreviver. não estranhamos que os homens vistam terno
O homem também possui o seu Umwelt; e gravata e que as senhoras usem vestidos
também interage com o seu ecossistema. longos, comportamentos completamente in-
Mas, ao contrário dos restantes seres vivos, sensatos, por exemplo, numa praia.
incorpora-o no seu próprio ser, leva-o ou Para dar a entender o funcionamento dos
transporta-o consigo, não estando por isso quadros da experiência, costumo dar como
completamente determinado pelos estímulos exemplos o palco de um teatro, a capa de
que dele recebe. Daí a capacidade que tem um livro, a moldura de um quadro, o ecrã
de se apropriar do mundo, de o modelar do cinema, da televisão ou do computador.
de acordo com projectos por si concebidos Cada um destes exemplos é uma marca ou
e inclusivamente de o reconstituir artificial- uma materialidade delimitadora de um es-
mente. Tem além disso a capacidade de con- paço, dentro do qual se constitui um mundo
verter as interacções que estabelece com o próprio, distinto daquilo que está fora desse
meio ambiente num sistema de significações, mundo, mundo que tem a propriedade de
num conjunto organizado de interacções do- tornar razoável um determinado conjunto de
tadas de sentido, que têm a propriedade no- práticas significantes que, fora delas, seriam
tável de poderem suscitar respostas, mesmo desprovidas de razoabilidade.
na ausência dos estímuos naturais a que se É pelo facto de, na capa de um livro que
referem. É ao resultado desta conversão que estamos a ler, se indicar que se trata de um
damos o nome de Mundo vivido ou, para uti- romance de ficção científica que aceitamos
lizarmos a expressão alemã consagrada por como razoáveis e verídicas acções que se de-
Husserl, de Lebenswelt. senrolam, por exemplo, no século XXV, na
Às fronteiras do quadro ou do contexto 8
Ver a este propósito a obra de Erving Gofman,
situacional do Lebenswelt dão os anglo- Frame Analysis, 1974 (trad. francesa: Les Cadres de
saxónicos o nome de frame ou de quadro l’Expérience, Paris, ed. de Minuit, 1991).

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galáxia Alfa, acções completamente invero- No momento em que nos apercebemos deles,
símeis e insensatas no quadro de uma viagem o sentido desloca-se e tende a desmoronar-se
ao longo da estrada que tomo todos os dias ou, pelo menos, a ser posto em crise. É a par-
para ir da minha casa para o trabalho. É pelo tir dessa deslocação que se constitui um novo
facto de existir um palco, que delimita uma quadro de sentido que compreende ou abarca
determinada acção dramatúrgica, que aceito o primeiro no interior das suas fronteiras.
como verosímil e me deixo emocionar, por É a este processo que damos o nome de
exemplo, com a história de Romeu e Julieta, desconstrução do sentido. Pode ser pro-
história completamente insensata se aconte- positadamente desencadeado, como no caso
cesse numa das ruas da cidade onde moro. das vanguardas estéticas, que procuram rom-
A experiência é assim o resultado da in- per com os quadros habituais da percep-
tervenção de um quadro que está lá para de- ção das formas significantes e do sentido
sempenhar uma função de fronteira, de se- por ela constituídos. Assim, por exem-
parador de mundos. Os Gregos davam a plo, o chamado apropriadamente teatro do
esta fronteira o nome de parergon e os lite- absurdo rompe sistematicamente as frontei-
rários chamam-lhe paratexto. É uma espé- ras do palco dentro das quais é suposto
cie de porta que serve tanto para abrir como desenrolar-se a acção dramatúrgica, dentro
para fechar o mundo do sentido. A sua natu- das quais se constitui a identidade das per-
reza não é significante como as materialida- sonagens, distinta da identidade dos acto-
des que encerra, mas simbólica. As materi- res, assim como a verosimilhança da narra-
alidades em que se investe a experiência são tiva. Mas há também inúmeros exemplos es-
significantes, na medida em que as posso tra- pontâneos destes processos de desconstrução
duzir sempre por outras materialidades, mas dos quadros do sentido no decurso da nossa
as marcas que delimitam essas materialidade vida quotidiana. É o caso, por exemplo, do
significantes e lhes conferem razoabilidade discurso do apresentador do telejornal, que
ou sentido possuem a ambivalência que po- rompe com o quadro delimitador do espaço
demos atribuir às funções de uma porta, que próprio ao sentido do telejornal, no momento
tanto serve para abrir como para fechar, ou em que se dirige directamente ao telespecta-
de uma ponte, que tanto liga como separa as dor, por ocasião de uma avaria, ou para abrir
duas margens de um rio. É precisamente esta um diálogo com um correspondente ou um
ambivalência que caracteriza a natureza sim- convidado.10
bólica dos quadros do sentido, da experiên- Para sentirmos a natureza violadora do
cia.9 frame destas práticas desconstrutoras, ima-
Normalmente, respeitamos os quadros do ginemos o caso em que, no momento em que
sentido, apesar de não nos darmos habitu- abraço um amigo, lhe explicito o sentido do
almente conta e enquanto não nos dermos meu gesto, dizendo que é dessa maneira as
conta da sua presença nem dos seus efeitos. pessoas amigas costumam cumprimentar-se.
9 10
Recorde-se que símbolo vem do grego synbolon. Desenvolvi este exemplo no meu livro Comuni-
Na origem, um synbalon é um objecto que se parte cação e Cultura, Lisboa, ed. Presença, 1999, 2a ed.,
de modo a que pela junção das duas partes se possa página.
estabelecer o reconhecimento de um mensageiro.

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O sentido do meu abraço deslocar-se-ia para que é formada por saberes que são funda-
dar origem a um outro sentido em que o pri- mentados no facto de serem transmitidos, e
meiro seria enquadrado. Pelo mesmo facto, não em razões autónomas da tradição. É o
o sentido do meu abraço presente tenderia facto de terem sido dados, recebidos e retri-
a desmoronar-se. É também por essa razão buídos, segundo a expressiva categorização
que o meu comportamento presente pode de- do potlatch feita por Marcel Mauss, que os
nunciar ou trair sentidos diferentes e eventu- fundamenta. É esta mesma lógica, intima-
almente antagónicos em relação ao sentido mente associada à discursividade narrativa,
daquilo que dizem os meus enunciados. que predomina precisamente na modalidade
tradicional da experiência.
1.7 Modalidades da experiência Para a tradição, os dispositivos de media-
ção ao mundo não acedem à consciência re-
Depois desta tentativa de abordagem siste- flexiva do homem, fazendo com que a per-
mática das diferentes componentes da expe- cepção que temos do mundo nos apareça
riência, vou abordar a distinção entre as duas como natural e indiscutível. É por isso que
modalidades, tradicional e moderna, da ex- também não há lugar para a emergência da
periência. Esta distinção vai permitir com- questão comunicacional. Tanto os dispositi-
preender melhor a relação entre a sabedoria vos naturais como os dispositivos artificiais
da experiência e os saberes científicos. de mediação ao mundo não aparecem como
À guisa de esclarecimento preliminar, de- objectos da experiência, mas como quadros
verei esclarecer que, ao falar de tradição e naturalizados da sua constituição. Não ad-
de modernidade, não me estou a referir a mira, por isso, que a oralidade seja o dispo-
nenhum período histórico determinado. Ex- sitivo de mediação privilegiado da tradição
periência tradicional e experiência moderna e que a linguagem seja encarada como mero
não se sucedem mas coexistem, em maior instrumento de comunicação, não acedendo
ou menor grau, em todos os tempos e em ao nível de objecto de questionamento. Há
todas as sociedades. Trata-se portanto de uma relação indiscutível de conaturalidade
ideais-tipos, para utilizarmos a terminologia entre as palavras e as coisas.
de Max Weber. São conceitos construídos Como a própria etimologia do termo su-
para dar conta de duas maneiras distintas e, gere, por tradição entende-se a maneira de
em grande medida, opostas de experienciar fundamentar as crenças e as convicções na
o mundo e que se manifestam em crenças, transmissão de uma sabedoria naturalizada
legitimações, atitudes, discursos, comporta- pelo facto de se ter perdido a memória da sua
mentos. origem.11 É esta amnésia da sua origem que
a impõe precisamente de maneira indiscutí-
1.7.1 A modalidade tradicional da expe- vel a todos.
riência Para a modalidade tradicional da experi-
11
À modalidade originária da experiência da- Recorde-se que traditio vem do verbo latino tra-
mos o nome de tradicional, por se tratar dere que significa transmitir, entregar, dar, deixar por
de uma maneira de experienciar o mundo herança, confiar, ceder, abandonar, trair, atraiçoar,
contar, narrar, ensinar, transmitir aos discípulos.

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Experiência, modernidade e campo dos media 11

ência, não existe distinção clara, mas conti- conseguinte, da língua que recebemos as dis-
nuidade e homologia, entre os diferentes do- tinções da experiência sensorial do mundo.
mínios e as diferentes dimensões da experi- Mas, além da experiência da língua ma-
ência. Há continuidade entre a experiência terna, a experiência afectiva, nomeadamente
de si, dos outros e do mundo natural, assim amorosa, constitui também um dos domínios
como há homologia entre as dimensões on- irredutíveis da experiência tradicional. Qual-
tológica, ética e estética da experiência. Esta quer processo de fundamentação racional do
homologia e esta continuidade traduzem-se afecto equivale inevitavelmente ao seu des-
na confusão entre o domínio da natureza e o moronamento. Por isso, Pascal dizia que “o
domínio da cultura. E esta é uma das razões coração tem razões que a razão desconhece.”
fundamentais para que a experiência tradici-
onal parta de uma relação de continuidade 1.7.2 A modalidade moderna da experi-
entre os dispositivos naturais e os dispositi- ência
vos artificiais de mediação. É por isso tam-
bém que a oralidade representa o meio de A modalidade moderna da experiência cor-
comunicação privilegiado da tradição. De responde a um processo complexo de ruptura
facto, a invenção da escrita pressupõe já um para com a tradição12 e de autonomização13
elevado estádio de autonomização dos dispo- dos diferentes domínios e das diferentes di-
sitivos artificiais, em particular da mediação mensões da experiência, com a consequente
da escrita, em relação aos dispositivos natu- ruptura entre a esfera da natureza e a esfera
rais de mediação. da cultura.
De entre todos os domínios da experiên-
cia, o da língua materna é o que melhor
representa a modalidade tradicional, aquele
que escapa a qualquer trabalho desconstrutor
da modernidade. É por isso que não precisa- 12
Esta ruptura está inscrita na própria etimologia
mos de uma aprendizagem formal das suas do termo que aparece tardiamente no século VI. Da
regras para as conhecermos, as dominarmos raiz indo-europeia de modernus, mod- ou med-, deri-
varam os termos gregos medomai (tomar conta de ou
e as experienciarmos. É por isso que recusar meditar), medimnos (medida), medo (proteger ou go-
a submissão às suas regras equivaleria, pura vernar), e os termos latinos modus (medida), modes-
e simplesmente, a uma recusa da experiência tus (comedido), medeor (cuidar de, tratar, medicar),
do mundo. Não é que equivaleria apenas a medicus, medicina, medicamentum, remedium, mode-
subtrair-nos ao convívio dos outros; equiva- ratio, moderari. Como diz Emile Benveniste, por mo-
dernus entende-se uma medida de coacção, supondo
leria a uma recusa, pura e simples, da expe- reflexão, premeditação, e que é aplicada a uma situ-
riência do mundo natural e de nós próprios. ação desordenada.” E. Benveniste, Vocabulaire des
Pela simples razão de que é na língua ma- Institutuions Indo-européennnes, Paris, ed. de Minuit,
terna que recebemos os quadros em que fa- 2o volume, 1969, página 128.
13
zemos entrar o mundo para o podermos apre- Prefiro utilizar o termo autonomização para me
demarcar das ressonâncias funcionalistas associadas
ender, de ser dela que recebemos a matriz ou aos termos fragmentação e diferenciação, habitual-
os quadros a priori que permitem apreender e mente utilizados por alguns autores, para falar da mo-
discernir os objectos que nos rodeiam. É, por dernidade.

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12 Adriano Duarte Rodrigues

1.7.2.1 A autonomização das dimensões cesso emancipador em relação às coacções


da experiência da tradição, a partir do momento em que
o homem toma consciência de que a tradi-
A experiência bíblica de Job e o apareci- ção exerce uma força coerciva que trava o
mento da tragédia grega dão conta, de ma- processo de autonomização individual, im-
neiras diferentes, do mesmo processo de au- pedindo a realização de projectos autónomos
tonomização das diferentes dimensões da ex- em relação à sabedoria herdada do passado.
periência. Traduzem, de maneira dramática, Esta emancipação está intimamente associ-
a tomada de consciência, escandalosa para ada ao projectualismo e ao individualismo,
a modalidade tradicional da experiência, de características da modernidade.
que não há homologia, mas autonomia entre O traço dominante da experiência mo-
a verdade, a bondade e a beleza dos seres, de derna é, no entanto, o da natureza específica
que nem sempre a verdade é bela e boa, de da fundamentação legitimadora da acção e
que nem sempre a beleza é verdadeira e boa, do discurso. Em vez do apelo à tradição, tra-
de que nem sempre a bondade é verdadeira e duzida na transmissão do conjunto dos va-
bela. Como é possível, para o homem da tra- lores e das crenças herdados do passado, a
dição, aceitar que Job, justo e bom, seja feio, modernidade apela para um tipo diferente
esteja coberto de chagas, desprezado de to- de racionalidade, para uma indagação racio-
dos, ao passo que os maus sejam ricos, belos nal, metodicamente conduzida, dos fenóme-
e adulados de todos? Por seu lado, a tragédia nos inerentes tanto ao domínio da experiên-
grega põe em cena a impossibilidade de con- cia de si, como aos domínios do mundo natu-
ciliar a realização pessoal dos desejos com os ral e dos outros. É este ideal de racionalidade
imperativos do dever impostos pelos deuses. metódica que está na origem da diferencia-
Esta autonomização das dimensões da ex- ção moderna dos domínios e das dimensões
periência é fundamentalmente um processo da experiência, diferenciação que, como ve-
de secularização ou de dessacralização da remos na segunda parte, vai conduzir à auto-
experiência, processo a que Max Weber da- nomização e institucionalização progressiva
ria o nome de “desencantamento” (Entzau- dos diferentes campos sociais.
berung).14 De facto, a experiência passou a Uma das características decorrentes desta
ser desencantada, na medida em que o ho- autonomização moderna em relação às coac-
mem moderno sabe que o seu destino de- ções da tradição, é a deslocalização da expe-
pende de si próprio e não é governado de ma- riência. Os quadros e os contextos situacio-
neira transcendente, como num jogo de fan- nais que delimitam a experiência tradicional
toches, por forças divinas. A esta dessacrali- são geograficamente delimitados e formam
zação corresponde por isso uma imanentiza- aquilo a que podemos dar o nome de fron-
ção da experiência do mundo. teiras culturais concretamente enraizadas em
Mas a modernidade é também um pro- territórios de pertença. Estas fronteiras con-
14
cretas correspondem ao lugar em que os in-
Ver Max Weber, L’Ethique Protestante et l’Esprit
du Capitalisme, Paris, ed. Plon, 1964 or.: 1920, pági- divíduos nascem, crescem, são socializados,
nas 121, 143, 191, 194. casam, trabalham e morrem. As relações de
sociabilidade são sobretudo marcadas pela

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Experiência, modernidade e campo dos media 13

instituição familiar e manifestam-se nome- delimitar o seu próprio quadro de vida, das
adamente pela coabitação, no mesmo lugar, suas escolhas e dos seus gostos, assim como
da família alargada. Mas, com a moderni- da pretensão de cada um construir a sua pró-
dade, os quadros da experiência deixam de pria identidade e a fazê-la reconhecer e res-
estar concretamente delimitados pelas fron- peitar pelos outros.
teiras locais, abrindo-se a interacções que ul- A intensidade e a natureza da sociabili-
trapassam essas fronteiras para se tornarem dade deixam de depender dos quadros con-
progressivamente independentes da partilha cretos das fronteiras do local e passam a va-
do mesmo lugar. riar de acordo com os projectos de investi-
Este processo de deslocação das relações mento individual.
de sociabilidade não tem sempre a mesma Deste modo, a emergência da paixão amo-
natureza. Assim, nos séculos XVII e XVIII, rosa como critério de realização da experiên-
deu lugar à experiência das viagens, à des- cia de si equivale a uma autonomização e a
coberta de outros continentes, de outros po- uma valorização das relações de intimidade
vos, de outras culturas, de outras visões do em detrimento da forma contratual do casa-
mundo. No século XIX, traduziu-se pelo de- mento e da família, correspondendo ao surgi-
senraizamento das comunidades rurais emi- mento da família nuclear, com a consequente
gradas para os centros industriais. No nosso institucionalização e autonomização de clas-
tempo, dá lugar ao desenvolvimento das inte- ses de idade, da infância, da adolescência, da
racções, instantâneas e em todos os sentidos, idade activa e da velhice. A intensidade e a
através das redes telemáticas, factor daquilo natureza da sociabilidade deixam por isso de
a que hoje damos o nome de globalização da depender dos quadros concretos das frontei-
experiência do mundo. ras do local e passam a variar de acordo com
Mas, através de todas estas realizações di- os projectos de investimento individual.
ferenciadas, encontramos sempre um pro- Prefiro falar de processo de autonomiza-
cesso de deslocalização, característica dos ção, em vez de libertação, a propósito destas
quadros modernos da experiência. A famí- transformações individualizantes ao nível
lia alargada deixa de fixar os quadros da ex- da experiência, porque este processo não
periência total do mundo, abrindo-se a ex- equivale necessariamente a um aumento de
periência a novos quadros de sociabilidade, liberdade. Podemos de facto considerar este
mais ténues, menos fixos, mais aleatórios, processo mais como a imposição de novas
mas nem por isso necessariamente menos in- formas e de novas estratégias de coacção
tensos e mobilizadores. do que de uma autêntica libertação. Como
Em vez de definida por quadros estáveis, a propósito mostrou Michel Foucault, as
em torno dos laços familiares, da proprie- estratégias modernas de coacção, correspon-
dade da terra, da partilha de uma história co- dentes a este processo de autonomização,
mum, do reconhecimento recíproco e mútuo fazem mais apelo a modalidades morais
da identidade do lugar ocupado por cada um, do que físicas de coacção, jogando com
num sistema de interacções herdado do pas- a interiorização individual das normas da
sado, a experiência moderna passa a depen- autonomia, contando, deste modo, mais com
der da capacidade de cada um a construir e a cumplicidade dos indivíduos na sua impo-

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14 Adriano Duarte Rodrigues

sição, em nome da eficácia dessa imposição, lização decorrente deste antagonismo cor-
do que com as modalidades dolorosas da responde o processo de racionalização, que
coacção física.15 consiste na necessária invenção de sempre
novas razões plausíveis, em função das ex-
1.7.2.2 Culpabilização e racionalização pectativas dos outros interiorizadas pelos in-
divíduos. Este processo pode inclusivamente
Mas, como já tive ocasião de referir, estas dar hoje origem a um processo de esquizo-
transformações não afectam a totalidade da frenização da experiência. Assim, os discur-
experiência nem se manifestam, em toda a sos que acompanham as rupturas, as emigra-
parte, do mesmo modo. A sociabilidade mo- ções, os divórcios, o alijamento dos idosos
derna não destrói a totalidade das formas tra- por parte dos familiares e a sua instalação em
dicionais da sociabilidade. Convivem antes lares da terceira idade podem oferecer elo-
umas com as outras, negociando entre si so- quentes exemplos deste processo esquizofre-
luções de compromisso, mais ou menos bem nizante de racionalização.
sucedidas. A dificuldade em compatibilizar, Estes processos de culpabilização e de
por vezes, as exigências de cada uma des- racionalização contribuem para a instaura-
tas modalidades da experiência dá ocasião à ção das novas modalidades de coacção que
emergência de um outro fenómeno inerente caracterizam a experiência moderna.
à experiência moderna, o fenómeno da cul-
pabilização, com a concomitante autonomi- 1.7.2.3 A autonomização dos domínios
zação do campo terapêutico, no domínio da da experiência
experiência de si.
A culpa, ao contrário da falta, é o senti- À autonomização da experiência de si em
mento da incomensurabilidade das exigên- relação à experiência do mundo natural cor-
cias da modernidade e da eventual diver- responde o processo moderno de instrumen-
gência em relação às exigências da tradição. talização do mundo não humano, simboli-
Manifesta-se nomeadamente na dificuldade camente representado pela terceira pessoa,
e, por vezes, na impossibilidade de conciliar pelo “ele”. É o mundo dos fenómenos do
o reconhecimento das expectativas dos ou- mundo natural, daquilo que é excluído tanto
tros e o respeito pela sobrevivência dos laços da relação subjectiva como da relação in-
localizados com as exigências da autonomia tersubjectiva, do que é aberto à relação de
na realização da experiência de si.16 apropriação e de manipulação. Este processo
As exigências inerentes ao prossegui- tende hoje a marcar as relações humanas por
mento da construção de sempre novos qua- parte da burocracia, para a qual o outro ho-
dros afectivos e profissionais contrasta com mem deixa de ser um interlocutor, “tu” a
as exigências inerentes às fidelidades fami- quem se fala e de quem se escuta, para se
liares e locais. Ao fenómeno da culpabi- tornar objecto, objectivado em discursos em
15
que é referido como utente, mencionado pelo
Ver Michel Foucault, Surveiller et Punir, Paris,
ed. Gallimard, 1975. uso da terceira pessoa.
16
Ver sobre este ponto Anthony Giddens, Moderni- Mas à autonomização da experiência de
dade e Identidade Pessoal, Oeiras, ed. Celta, 1997. si em relação à experiência dos outros cor-

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Experiência, modernidade e campo dos media 15

responde o aparecimento da dialéctica re- dos domínios da experiência. Tende antes


sultante do confronto entre a subjectividade para a aquisição de um saber especializado e,
e a alteridade, representada simbolicamente nessa medida, não implica a inserção numa
pela relação pronominal “eu” vs. “tu”, ca- comunidade total de vida, mas a referência a
racterística da intersubjectividade. formas societárias diferenciadas de relações
A instauração da modernidade corres- intersubjectivas, constitutivas daquilo a que
ponde, portanto, deste ponto de vista, a Tönnies deu o nome de Gesellschaft.
uma aprendizagem do complexo jogo pro- A sabedoria tradicional enraiza-se numa
nominal, dando origem à formalização do experiência particular do mundo, ao passo
dispositivo gramatical. que o saber disciplinar moderno tem uma
pretensão de validade universal. O especi-
1.7.2.4 A institucionalização e a auto- alista e o perito são as novas figuras do sa-
nomização da modalidade disciplinar do ber disciplinar e a sua competência não é,
saber em princípio, delimitada pelas fronteiras lo-
cais de uma comunidade, mas pelas frontei-
Este processo está intimamente associado ras dos diferentes domínios da experiência.
à emergência de uma nova modalidade de O limite da competência do especialista ou
saber, a do saber disciplinar, distinto da sa- do perito é o do domínio da experiência em
bedoria tradicional, da soma das aptidões que é competente, em qualquer tempo e lu-
aprendidas do testemunho dos detentores le- gar.
gítimos da herança do passado. Com a constituição do saber disciplinar
A sabedoria tradicional adquire-se a par- moderno, autonomiza-se a função discur-
tir do testemunho, através da convivência, siva, expressiva ou simbólica em relação à
e não se limita aos conhecimentos discursi- função pragmática do saber. O dizer e o fazer
vamente formulados. O modelo originário competentes passam a desempenhar funções
deste processo é o da iniciação, mas a rela- distintas. Enquanto para a sabedoria tradici-
ção do aprendiz com o mestre oferece tam- onal, ao dizer é atribuída uma função prag-
bém um bom exemplo deste modelo. É um mática, para o saber disciplinar moderno as
processo que exige a inserção numa comu- regras pragmáticas que regulam a interven-
nidade total de vida, naquilo a que Tönnies ção do especialista autonomizam-se em rela-
deu o nome de Gemeinschaft.17 Por seu lado, ção às regras do discurso competente, dando
o saber disciplinar moderno adquire-se atra- origem ao aparecimento de duas figuras dis-
vés da adopção de um método de indagação tintas, a do cientista e a do técnico. Assim,
dos fenómenos, pela aquisição de uma dis- por exemplo, a formulação do saber médico
ciplina. A formulação do saber disciplinar deixa de se confundir com a intervenção na
é eminentemente discursiva e não envolve, cura dos doentes, o discurso do direito já
como a sabedoria tradicional, a totalidade não se confunde com a aplicação da justiça,
17 o discurso da ciência não é a aplicação téc-
Ver Ferdinand Tönnies, Communauté et Société,
Paris, Presses Universitaires de France, (or.: Ge- nica da ciência, ao contrário do saber tradici-
meinschaft und Gesellschaft, 1887). onal, em que, por exemplo, o feiticeiro pre-
tende curar através da enunciação de fórmu-

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16 Adriano Duarte Rodrigues

las encantatórias, cuja eficácia depende da O processo de indagação crítica metodi-


sua enunciação. camente conduzida nunca será, no entanto,
Estas duas modalidades do saber, a discur- completamente realizado, e há domínios da
siva e a pragmática, nem sempre são mutu- experiência tradicional irredutíveis a qual-
amente exclusivas, mas coabitam de algum quer projecto de indagação racional, que es-
modo no seio do saber moderno, como se capam, por conseguinte, total ou parcial-
pode ver, por exemplo, ainda hoje na prática mente, ao controlo da razão moderna. É o
psicanalítica, em que o discurso continua a caso da experiência da lingua e da experiên-
ser usado como processo de intervenção te- cia afectiva, acerca das quais qualquer em-
rapêutica. preendimento racional as desconstrói à nas-
É, no entanto, desta autonomização da cença. De uma maneira geral, o domínio
função pragmática em relação à função dis- da afectividade é, por natureza, resistente
cursiva da competência que decorre a auto- aos procedimentos de fundamentação racio-
nomização moderna do campo científico em nal, tal como os quadros do sentido depen-
relação ao campo técnico. dem da natureza indiscutível da lingua que
os fundamenta. Mas muitos outros domínios
da experiência quotidiana apresentam idên-
2 A emergência dos campos
tica característica, a de se destruirem sem-
sociais pre que pretendemos compreendê-los raci-
onalmente. É por isso que a modernidade
2.1 Introdução
é um projecto sempre inacabado, permane-
Ao autonomizar a experiência subjectiva cendo inevitavelmente amplas franjas da ex-
em relação à experiência do outro e ao periência de fora das fronteiras do seu espaço
constituir-se, deste modo, a esfera da ex- de intervenção.
periência intersubjectiva, a modernidade de- A fundamentação racional da experiência
sencadeia um processo de progressiva au- moderna está intimamente associada às no-
tonomização dos diferentes campos sociais, vas modalidades do saber, distintas da sa-
correspondendo cada um a um dos domí- bedoria tradicional. O saber moderno visa
nios autónomos da experiência intersubjec- a explicação dos fenómenos, a formulação
tiva. Para este processo contribuem factores das regras do seu funcionamento e a com-
históricos que têm como denominador co- preensão da sua organização, em vez das ex-
mum uma nova maneira de fundamentar ra- plicações herdadas da tradição. O resultado
cionalmente a experiência. é, como vimos, o aparecimento da figura do
Em vez de apelar para a maneira habi- especialista que substitui a do sábio.
tual herdada do passado de fundamentar a Sabemos que o aparecimento das Univer-
crença e a confiança na apreensão sensorial sidades esteve, na Europa do fim da Idade
do mundo natural, nas regularidades consti- Média, intimamente associado a este pro-
tutivas da legitimidade das experiências sub- cesso. É impossível compreender a autono-
jectiva e intersubjectiva, a modernidade pre- mização dos campos sociais sem o desenvol-
tende apelar para a indagação crítica metodi- vimento das ciências modernas e o apareci-
camente conduzida. mento das especializações científicas. De-

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Experiência, modernidade e campo dos media 17

ter uma licenciatura corresponderá doravante discursiva, mas pressupõe um determinado


a possuir a competência legítima para inter- estádio da evolução da invenção técnica.
vir eficazmente num determinado domínio Ao contrário da modalidade tradicio-
da experiência e para formular as regras de nal da experiência, a modalidade moderna
conduta a seguir nesse domínio. fundamenta-se, portanto, na distinção entre
Ao contrário do sábio que, nas sociedades função discursiva e função pragmática, en-
tradicionais, possui uma competência não tre os valores de adequação do discurso e os
especializada sobre o conjunto da experiên- valores de eficácia técnica, entre a esfera da
cia, o licenciado é perito num dos domínios palavra e a esfera da acção.
da experiência. Enquanto a competência do Os detentores da legitimidade simbólica e
sábio é esotérica, não só porque é válida ape- pragmática num determinado domínio da ex-
nas junto da sua comunidade de pertença, periência formam um corpo social. A sua le-
mas porque foi adquirida através do conví- gitimidade adquire-se, não através da trans-
vio com um mestre, a validade da compe- missão de uma sabedoria, mas pela aquisi-
tência do licenciado é exotérica, porque não ção de uma disciplina, no duplo sentido do
está restrita ao espaço de uma comunidade termo, o do saber discursivamente formu-
concreta, é universalmente reconhecida e é lado, e o de uma hexis ou um ethos, espécie
adquirida, no espaço aberto da Escola, pela de hábito adquirido, ao longo da formação,
aplicação metodicamente conduzida da ra- que habilita os seus detentores para o exer-
zão. cício competente de uma profissão, das de-
Com a autonomização dos campos soci- cisões, dos gestos e das atitudes adequados
ais, autonomiza-se igualmente a competên- à intervenção num determinado domínio da
cia para a formulação discursiva das regras experiência. É a este processo que damos o
da competência para intervir eficazmente em nome de disciplinarização moderna da expe-
cada um dos campos sociais. Autonomiza- riência.
se assim, para os campos sociais, a função Podemos distinguir facilmente, ao longo
discursiva da função pragmática. do processo de constituição da modernidade,
O desempenho da função simbólica de um algumas viragens fundamentais, a partir da
campo social equivale à formulação discur- invenção e da adopção dos dispositivos téc-
siva da ciência e as suas diferentes etapas de nicos utilizados pelos campos sociais na sua
formalização correspondem àquilo a que Mi- intervenção nos domínios da experiência de
chel Foucault deu o nome de formação dis- que detêm a competência legítima.
cursiva.18 A autonomização moderna dos diferentes
Por seu lado, o desempenho da função domínios e das diferentes dimensões da ex-
pragmática equivale à tecnicidade de um de- periência é um processo eminentemente se-
terminado campo social. A maneira de de- cularizante, na medida em que a religião
sempenhar historicamente esta função não deixa de ser o quadro unificador e homoge-
depende apenas do nível de formalização neizador da totalidade da experiência. Cada
18
um dos domínios autonomizados da expe-
Cfr. Michel Foucault, Archéologie du Savoir, Pa-
ris, ed. Gallimard, 1969, páginas 44 e ss. riência passa a ser constituído como um
campo autónomo, dotado de legitimidade

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18 Adriano Duarte Rodrigues

para criar, impor, manter, sancionar e resta- ção dos campos. A sexualidade, o aborto,
belecer os valores e as regras, tanto constitu- tal como a infância, as mulheres, a droga, a
tivas como normativas, que regulam um do- velhice não são evidentemente experiências
mínio autonomizado da experiência. Abor- modernas, mas autonomizam-se como ques-
darei, por isso, neste capítulo, a génese, a tões modernas, a partir de perspectivações
natureza, as funções, a legimidade, o pro- estabelecidas autonomamente pelos campos
cesso de inculcação, o sistema de sanções, sociais modernos, que se encarregam de as
o regime de funcionamento, a simbólica e o tematizar.
corpo dos campos sociais. Para designar um campo social utilizo a
Antes, porém, convém esclarecer o sen- forma masculina de um adjectivo substanti-
tido da expressão campo social. Não deve- vado: o político, o económico, o jurídico,
mos entender aqui o termo campo num sen- o médico, o científico. É uma convenção
tido espacial, mas energético, à maneira da destinada a distinguir um campo social das
física, que fala de campo de forças para de- suas materializações e manifestações políti-
signar a tensão gerada pelo confronto entre cas, económicas, jurídicas, médicas, científi-
pólos de sentido oposto. É portanto num sen- cas. Assim, o político não se confunde com a
tido tensional que utilizo a expressão campo política, que tem a ver com a sua materializa-
social. Com esta metáfora física pretendo su- ção conjuntural no jogo partidário. O econó-
blinhar o efeito tensional sobre a experiência mico não se confunde com a economia nem
que resulta do confronto entre campos autó- o religioso com a religião, o médico com a
nomos, cada um deles com a pretensão de medicina, o científico com a ciência. Como
regular um determinado domínio da experi- veremos, o económico não se limita às ma-
ência, a partir da delimitação de um determi- nifestações económicas, mas intervém tam-
nado quadro do sentido. bém em práticas que escapam ao domínio da
É na fronteira entre campos de legitimi- economia, tal como o religioso não se esgota
dade que esta tensão se gera e se manifesta. na prática das Igrejas, mas intervém também
A luta pela mobilização do conjunto da expe- noutras esferas de actividade.
riência por cada um dos campos traduz esta
natureza tensional da racionalidade moderna 2.2 A génese dos campos sociais
dos campos sociais. Veja-se, a propósito, o
debate interminável entre o político, o mé- Um campo social é o resultado ou o efeito
dico, o económico, o jurídico, o religioso de uma génese, de um processo de autono-
acerca das questões da droga ou da despena- mização secularizante bem sucedido, graças
lização do aborto, cada um dos campos so- à aquisição da capacidade de impor, com le-
ciais procurando impor os seus quadros pró- gitimidade, regras que devem ser respeita-
prios de sentido em ordem à regulação da ex- das num determinado domínio da experiên-
periência destas questões. cia, baseadas numa indagação racional me-
Mas devemos notar que um dos aspec- todicamente conduzida.
tos interessantes desta tensão é o surgimento Este processo está intimamente associado
moderno de novas questões, a partir do mo- à constituição do sujeito e à sua progressiva
mento em que se consuma esta autonomiza- emancipação das coacções que impedem a

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Experiência, modernidade e campo dos media 19

sua autonomização no seio da tradição. En- agulhas do relógio; introduziu assim em to-
tre os factores desta coacção, contam-se os das as actividades a mensuração exacta e o
determinismos herdados da tradição e legiti- controlo temporal estabelecendo um critério
mados de maneira transcendente assim como independente permitindo figurar e subdividir
a ausência de controlo dos fenómenos da na- a totalidade do dia.”21
tureza. Mas já desde a Antiguidade encontramos
Apesar de não ser exclusivo de nenhuma inúmeros inventos técnicos que prenunciam
época nem de nenhuma sociedade em parti- este esforço de emancipação. A invenção da
cular, este processo tornou-se explicitamente escrita alfabética deverá ter desempenhado
mobilizador da civilização ocidental, a par- indiscutivelmente um papel fundamental no
tir do século XIII, tendo-se acelerado a partir desencadeamento deste processo.
do século XVII e acabando por se alastrar O domínio da saúde, da gestão dos valores
aos outros continentes, na sequência da in- da vida, e o domínio do direito, da gestão dos
tensificação do contacto entre os povos e as valores da justiça, contam-se entre os primei-
culturas. ros domínios a conquistar, já nos finais do
Lewis Mumford considera a invenção do século XIII, a sua autonomia, instituindo-se
vidro, da imprensa e do relógio mecânico como campos sociais dotados de autonomia
as invenções mais importantes do processo em relação ao religioso.22
de viragem da modernidade.19 “A invenção
e o aperfeiçoamento do relógio constitui- 2.3 A natureza dos campos
ram o passo decisivo em direcção da auto-
mação; porque fornece o protótipo a mui- sociais
tas outras máquinas automáticas; e acaba por Por campo social entendo uma instituição
atingir um grau de perfeição, no cronóme- dotada de legitimidade indiscutível, publi-
tro do século XVIII, que estabelece um crité- camente reconhecida e respeitada pelo con-
rio para outros refinamentos tecnológicos.”20 junto da sociedade, para criar, impor, man-
De facto, é com a invenção deste dispositivo ter, sancionar e restabelecer uma hierarquia
técnico de medição do tempo que assistimos de valores, assim como um conjunto de re-
a um processo de naturalização de uma expe- gras adequadas ao respeito desses valores,
riência artificial da temporalidade, indepen- num determinado domínio específico da ex-
dente dos ritmos naturais da experiência: “A periência.
máquina que mecanizou o tempo fez mais do A especificidade de um campo social con-
que regular as actividades do dia: sincroni- siste, por conseguinte, na averiguação do do-
zou as reacções humanas, não com o nascer 21
Op. cit., vol. 1, 1973, páginas 382-383.
e o pôr do Sol, mas com os movimentos das 22
A institucionalização do campo médico esteve
19 associada à prática da dissecação dos cadáveres e é
Ver nomeadamente Lewis Mumford, Le Mythe de
já nos finais do século XIII que esta prática é atestada
la Machine, vol. 1. La Technologie et le Développe-
na Universidade Montpellier. A criação do direito ci-
ment Humain, Paris, ed. Fayard, 1973, páginas 382-
vil, no século XIV, na Universidade de Bolonha pode
383, vol. 2, Le Pentagone de la Puissance, Paris, ed.
ser considerada uma etapa fundamental da autonomi-
Fayard, 1974, páginas 236-237.
20 zação do campo jurídico.
Op. cit., vol. 2, 1974, página 236.

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20 Adriano Duarte Rodrigues

mínio da experiência sobre o qual é compe- As regras constitutivas ou definitórias são


tente e sobre o qual exerce uma competência aquelas que constituem ou definem a reali-
legítima. zação de determinado acto, ao passo que as
Por instituição devemos entender uma ca- regras normativas impõem uma maneira de
tegoria abstracta e arbitrária. Não devemos realizar um acto cuja definição pre-existe a
por isso confundir instituição com organiza- essas regras. Um campo social não cria ape-
ção, na medida em que tanto pode abarcar nas regras normativas, não prescreve apenas
uma ou várias organizações como pode não a maneira conforme ou adequada de realizar
se concretizar em nenhuma organização. As- determinados actos, constitui ou define tam-
sim, por exemplo, o campo médico não se li- bém os actos que pertencem à sua esfera de
mita à organização da medicina, com as suas competência e de influência.
organizações hospitalares, mas abarca o con-
junto dos discursos e dos procedimentos au- 2.4 As funções dos campos
torizados que têm a ver com gestão dos valo-
res da saúde, a sua manutenção, preservação sociais
e o seu restabelecimento. Como já dissémos, um campo social desem-
É também fundamental entender correc- penha dois tipos de funções dentro do seu
tamente as noções de valor e de regra para domínio específico de competência: funções
compreender um campo social. Um valor é expressivas ou discursivas e funções pragmá-
um bem em nome do qual os indivíduos e a ticas ou técnicas.
sociedade estão dispostos a sacrificar outros As funções expressivas ou discursivas
bens. É o caso por exemplo da saúde, da in- consistem no exercício da competência le-
tegridade territorial, física ou moral, do po- gítima por parte de um campo social para
der, da riqueza, da salvação, bens em nome enunciar os princípios, os valores e as regras
dos quais estamos dispostos a determinados que têm curso dentro do domínio da experi-
sacrifícios e que são regulados na moderni- ência sobre o qual tem competência.
dade por campos sociais diferenciados. A Por seu lado, as funções pragmáticas ou
noção de valor é, por conseguinte, uma no- técnicas consistem no exercício da compe-
ção relativa, podendo variar de acordo com tência legítima por parte de um campo social
o número e a importância dos bens em nome para intervir, com eficácia, com vista à cria-
dos quais estamos dispostos a sacrificar ou- ção, à inculcação, à manutenção, ao sancio-
tros bens. Não devemos portanto confun- namento e ao restabelecimento da sua ordem
dir relatividade dos valores com relativismo, de valores. As funções pragmáticas de um
na medida em que o lugar relativo que ocu- campo social são, por conseguinte, de natu-
pam não é indiferente mas indiscutivemente reza pedagógica e terapêutica. As funções
aceite. de natureza pedagógica têm a ver com a in-
Existem duas modalidades de regras: culcação da sua legitimidade ao conjunto da
constitutivas ou definitórias e normativas.23 sociedade, ao passo que as funções terapêu-
23
Tomo esta distinção de John Rawls, Teoria da
ticas têm a ver com a intervenção destinada
Justiça, Lisboa, ed. Presença, 1993. ao restabelecimento da sua ordem de valores
própria.

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Experiência, modernidade e campo dos media 21

As funções terapêuticas dividem-se, por mínio da saúde, legitimidade vicária noutros


seu lado, em ortésicas e em protésicas. En- domínios da experiência, tais como os domí-
quanto as primeiras visam o restabeleci- nios escolar, científico, político, económico.
mento do bom funcionamento de um órgão, Como veremos, nem sempre esta delegação
as segundas visam a substituição de um ór- de competências por parte de outros campos
gão estragado ou perdido por dispositivos sociais é isenta de tensões e de conflitos.
técnicos. Foi sobretudo esta natureza proté-
sica das funções técnicas dos campos soci- 2.6 O sistema de sanções dos
ais que esteve na origem da visão eufórica da
modernidade, expressa, no século XVIII, pe- campos sociais
los enciclopedistas que consideravam o pro- Uma das manifestações da legitimidade de
gresso técnico moderno como um prolonga- um campo social tem a ver com a faculdade
mento da obra criadora de Deus.24 para impor sanções sempre que a sua ordem
de valores é violada. Um campo social tem à
2.5 A legitimidade dos campos sua disposição modalidades físicas e morais
de sanções.
sociais As sanções morais ou simbólicas que um
Uma das características fundamentais de um campo impõe aos prevaricadores ou viola-
campo social é o facto de deter uma legitimi- dores da sua ordem específica compreendem
dade exclusiva, tanto para enunciar as regras o conjunto dos processos de exclusão. Po-
que devem ser observadas por todos, como dem ir da simples repreensão e da ironia até
para intervir com eficácia no domínio da ex- à interdição de utilização dos recursos que o
periência sobre o qual detém competência. campo social põe à disposição da sociedade
Devemos distinguir duas modalidades de e à frequentação dos seus espaços próprios.
legitimidade de um campo social: a própria Por seu lado, as sanções físicas compreen-
e a vicária. Por legitimidade própia entende- dem as penalidades materiais impostas aos
se a que um campo social possui dentro do prevaricadores da sua ordem própria de va-
seu domínio próprio da experiência, ao passo lores.
que a legitimidade vicária é aquela que um
campo social possui num domínio da expe- 2.7 Regularidade e regimes de
riência que não lhe é próprio, por delega-
ção de um outro campo social. Esta dis- funcionamento dos campos
tinção revelar-se-à muito importante quando sociais
considerararmos as relações que os diferen- Um campo social apresenta regimes diferen-
tes campos sociais estabelecem entre si, re- ciados de funcionamento. Podemos distin-
lações que dão origem àquilo a que daremos guir entre regimes acelerados e regimes len-
o nome de dimensões dos campos sociais. tos de funcionamento.
Assim, por exemplo, o campo médico pos- Um campo social funciona em regime ace-
sui, além da sua legitimidade própria no do- lerado quando mobiliza o conjunto dos do-
24
Ver nomeadamente mínios da experiência em torno das suas re-

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22 Adriano Duarte Rodrigues

gras próprias, sobrepondo-se ao funciona- própria que os campos sociais asseguram a


mento dos outros campos sociais. Assim, sua visibilidade pública. Podemos distinguir
por exemplo, por ocasião das revoluções, o dois tipos de simbólica dos campos sociais:
campo político apresenta um regime acele- a formal e a informal.
rado de funcionamento. Nesse período, os A simbólica formal é constituída por far-
restantes domínios da experiência são mobi- das, insígnias, rituais. É regulada por regras,
lizados pelo funcionamento do campo polí- tanto constitutivas como normativas, carac-
tico. terizadas pelo rigor das suas manifestações
O funcionamento lento de um campo é o e pela exclusividade do seu uso por parte
regime que vigora em período normal, du- dos membros competentes que formam o seu
rante o qual se estabelece um relativo equilí- corpo social. Como exemplos, citemos as al-
brio entre a mobilização de um campo com a faias, as vestes e os rituais litúrgicos, as ves-
mobilização dos restantes campos. tes religiosas, as togas dos académicos e dos
O equilíbrio dos regimes de funciona- juizes, as paradas, as fardas e os distintivos
mento dos campos sociais é, no entanto, hierárquicos dos militares.
sempre relativo e instável. Devido à natu- Podemos considerar o conjunto dos sím-
reza autónoma de cada um dos campos, cada bolos formais como um sistema de meca-
um tende a sobrepor a sua lógica e os valo- nismos ambivalentes que asseguram, por um
res que entende regular à lógica e aos valores lado, a sua visibilidade externa, mas, por ou-
dos restantes campos, a acelerar o seu pró- tro lado, restringem o seu domínio aos de-
prio regime de funcionamento. tentores legítimos das suas marcas e dos seus
Um campo social pode acelerar o seu re- rituais.
gime de funcionamento por ocasião da ocor- Por seu lado, a simbólica informal con-
rência de fenómenos exógenos que fazem siste no apagamento sistemático de marcas
perigar a sua própria ordem de valores. É distintivas. A simbólica informal, ao con-
o caso de uma epidemia ou de uma catás- trário da formal, destina-se a assegurar a
trofe natural que obriga à mobilização colec- permeabilidade da sociedade por parte do
tiva em torno do campo médico. Mas pode campo em que vigora.
também acontecer por ocasião da ocorrência A distinção entre estes dois tipos de sim-
de fenómenos endógenos ao próprio campo bólica é um dos critérios para distinguir entre
social. É o caso da eclosão de uma revolu- campos sociais cuja autonomização e cons-
ção, que mobiliza o conjunto da sociedade tituição está associada à primeira moderni-
em torno do campo político, ou de uma pere- dade e campos sociais cuja autonomização
grinação de massa, que mobiliza a sociedade e constituição ocorre na modernidade tardia,
em torno do campo religioso. como é o caso do campo dos media. Os pri-
meiros são, por isso, dotados de uma com-
2.8 A simbólica dos campos petência legítima esotérica, ao passo que os
segundos são dotados de uma competência
sociais exotérica.
Não existe campo social sem a sua simbólica Mas devemos considerar o fenómeno da
própria. É pela imposição de uma simbólica contaminação da simbólica das instituições

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Experiência, modernidade e campo dos media 23

cuja autonomização se dá na primeira mo- sultante da compatibilização entre a legitimi-


dernidade pela simbólica dos campos sociais dade de um campo com a legitimidade dos
emergentes na modernidade tardia. Os cléri- diferentes campos sociais. Este processo re-
gos tendem assim a eliminar o uso das ves- sulta da fragmentação da experiência indu-
tes talares e a a adoptar uma simbólica infor- zida pelo processo moderno de especializa-
mal, à semelhança dos campos sociais mais ção e da imposição desta lógica ao conjunto
recentes, para assegurar uma maior permea- da sociedade.25
bilidade do religioso no mundo contemporâ- É este processo que está na origem da au-
neo. Este processo é particularmente ambi- tonomização e da constituição de um campo
valente, como terei ocasião de referir. especializado na regulação dos valores da
publicidade, a que dou o nome de campo dos
2.9 O corpo social e os sistemas media, de que tratarei no próximo capítulo.
Devemos, no entanto, distinguir cuidado-
de acreditação dos campos samente os conceitos de espaço, de esfera e
sociais de dimensão públicos. Por espaço público
As entidades detentoras da competência le- entende-se o conjunto dos territórios aber-
gítima de um campo formam o seu corpo so- tos à circulação de todos, não apropriáveis
cial. No exercício, tanto da sua competência por indivíduos nem por entidades particula-
discursiva, como da sua competência prag- res. É o caso das estradas, das praças, da
mática, o corpo social tende a ostentar as orla marítima, nas quais qualquer um é livre
marcas simbólicas da sua competência, no de se deter, pelas quais todos podem passar e
caso dos campos que possuem uma simbó- circular. A esfera pública é constituída pelo
lica formal, ou a ostentar a ausência dessas conjunto dos discursos e das acções que têm
marcas, no caso dos campos que possuem a ver com o domínio da experiência dos to-
uma simbólica informal. dos, que interferem com a experiência da in-
De entre as questões fundamentais com teracção e da sociabilidade. Tem a ver com
que um corpo social está confrontado conta- o direito de cada um à livre expressão e à
se a do seu sistema de acreditação, assim liberdade de acção, independentemente da
como a da compatibilização desse sistema natureza pública ou privada do espaço em
com a modalidade tradicional de legitimação que este direito se exerce. A dimensão pú-
que persiste no domínio da experiência que blica, por seu lado, é a relação que cada um
lhe é próprio. dos campos sociais possui com os restantes
campos sociais. A dimensão pública cor-
responde, portanto, à noção de interface en-
2.10 Conclusão: a instituição da tre os diferentes campos sociais. Neste sen-
publicidade tido, até os espaços privados da domestici-
Com a autonomização e constituição moder- dade são atravessados por dimensões públi-
nas dos campos sociais, institui-se aquilo a 25
Ver a este propósito a obra fundamental de Jürgen
que damos o nome de publicidade. A pu- Habermas, L’Espace Public. Archéologie de la Pu-
blicidade é o processo de tornar público, re- blicité comme Dimension Constitutive de la Société
Bourgeoise, Paris, ed. Payot, 1978.

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24 Adriano Duarte Rodrigues

cas. Assim o espaço privado da vida domés- cional de uma cultura particular, mas sobre-
tica comporta dimensões públicas política, tudo dos mecanismos enganadores da per-
económica, religiosa. cepção sensorial. Encetado no século XVII,
este processo desconstrutor da experiência
nunca mais cessaria de ser aprofundado pela
3 A autonomização do campo
reflexão filosófica dos últimos três séculos,
dos media cavando-se, por conseguinte, cada vez mais
profundamente o hiato intransponível entre a
3.1 Introdução
realidade em si e a experiência fenomenal.
Como vimos, logo na primeira parte, são os A consumação da autonomização do
dispositivos de mediação que delimitam os campo dos media só virá, no entanto, a ocor-
objectos da percepção e da sensação que in- rer com o advento da modernidade tardia, no
tegram o Mundo vivido. No entanto, só na termo da fragmentação dos campos sociais
modernidade tardia esses dispositivos se pro- que surgiram com a primeira modernidade.
blematizam, autonomizando-se num campo É só na segunda metade do século XX que
próprio. Enquanto a experiência tradicional se coloca a questão da compatibilização da
se alimenta da amnésia da arbitrariedade ou legitimidade de cada um dos campos sociais
do esquecimento naturalizante dos quadros com a dos restantes campos.
da experiência formados pelos dispositivos O campo dos media não se limita, no en-
de percepção do mundo, a experiência mo- tanto, a superintender à mediação dos dife-
derna procede da autonomização desses dis- rentes domínios da experiência e dos dife-
positivos e da instituição de um campo do- rentes campos sociais. Faz também emergir,
tado de legitimidade para superintender à ex- nas fronteiras dos campos sociais instituídos,
periência de mediação, instituição a que dou novas questões, como a droga, o sexismo, o
o nome de campo dos media. O processo aborto, a ecologia, para as quais nenhum dos
de autonomização do campo dos media dá- campos detém legitimidade indiscutível nem
se, por conseguinte, na sequência do acesso consegue encontrar soluções consensuais e
à consciência reflexiva moderna que está na impô-las ao conjunto da sociedade. São do-
origem da instauração do projecto de des- ravante estas novas questões que irão mobili-
construção e de problematização dos qua- zar o debate público que o campo dos media
dros do sentido da experiência. se encarrega de promover e publicitar. Fa-
Podemos já antever no Método de Descar- zendo intervir, ao mesmo tempo, problemas
tes uma das manifestações deste processo re- de natureza científica, política, económica,
flexivo e problematizande de desconstrução, religiosa, médica, estas novas questões mos-
a partir da crítica da experiencia espontânea, tram os limites da legitimidade de cada um
objecto da suspeita de fundar uma relação dos campos sociais instituídos ao longo da
enganadora e falaciosa ao mundo. É por isso modernidade para a formulação e a imposi-
que o Método deriva de uma vontade, pro- ção de valores consensuais e de regras sus-
fundamente moderna, de fundar uma expe- ceptíveis de regular os comportamentos ade-
riência universalmente válida, independente quados. É no campo dos media que estas no-
não só do enraizamento na experiência tradi- vas questões se irão reflectir e problematizar.

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Experiência, modernidade e campo dos media 25

As particularidades do campo dos media deroso da pretensão mobilizadora dos outros


reflectem-se na natureza da sua génese, das campos sociais. É que, não podendo já con-
funções que desempenha, da sua legitimi- tar com os mecanismos da repressão física,
dade, do seu sistema de sanções, do seu re- em virtude dos ideais modernos de eman-
gime de funcionamento, da sua simbólica, do cipação do sujeito, os campos sociais con-
seu corpo social e do seu sistema de acredi- tam doravante com os mecanismos retóricos
tação. da linguagem para o convencimento e a mo-
bilização em torno dos valores e das regras
3.2 A génese do campo dos que o campo dos media se encarrega de criar,
promover e impor ao conjunto da sociedade.
media Mas, por outro lado, o campo dos media gere
É a natureza tensional da relação entre os di- os dispositivos de percepção da realidade e
ferentes campos sociais que está na origem constitui, deste modo, a própria experiência
da emergência e da progressiva autonomiza- do mundo moderno, assegurando a sua per-
ção do campo dos media. Mas é a coali- cepção para além das fronteiras que delimi-
ção entre os domínios científico e técnico da tam o mundo vivido das comunidades tradi-
modernidade que contribui hoje, de maneira cionais.
decisiva, para a consumação da autonomia A autonomização do campo dos media se-
deste novo campo. ria, no entanto, impossível sem a constitui-
A natureza do campo dos media está, por ção do paradigma cibernético no termo de
conseguinte, intimamente associada ao de- autonomização do campo científico. É a
sempenho das funções de regulação indis- emergência da cibernética como novo pa-
pensáveis à gestão das relações entre os dife- radigma científico, na modernidade tardia,
rentes campos sociais. Deste ponto de vista, que autonomiza efectivamente os dispositi-
o campo dos media vive do despoletamento, vos de mediação, ao conferir-lhes o estatuto
da exacerbação ou da naturalização das ten- de objecto de questionamento científico e
sões derivadas do facto de os diferentes cam- ao considerá-los objecto de intervenção téc-
pos sociais concorrerem entre si com vista à nica.26
mobilização do conjunto da sociedade para o Estas razões lógicas e estratégicas da
respeito das suas ordens de valores e ao pre- emergência do campo dos media serão me-
tenderem impor as suas regras de comporta- lhor compreendidas se tivermos em conta a
mento. sua própria natureza.
A autonomização do campo dos media 26
Acerca desta relação do campo dos media com a
obedece, por conseguinte, a imperativos de emergência do paradigma cibernético ver o meu livro
natureza, ao mesmo tempo, lógica e estraté- Estratégias da Comunicação, Lisboa, ed. Presença,
gica. Mobiliza, por um lado, os indivíduos e 1997, 2a ed., páginas 74-95. Ver também a obra fun-
o conjunto da sociedade em torno de valores damental sobre a história da tecnicidade de Gilbert
comuns, contrariando a tendência fragmen- Simondon, Du Mode d’Existence des Objets Techni-
ques, Paris, ed. Aubier-Montaigne, 1990, 2a . ed.
tadora da modernidade que a autonomização
dos campos sociais implica. O campo dos
media é, deste ponto de vista, um alidado po-

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26 Adriano Duarte Rodrigues

3.3 A natureza do campo dos vos intimamente associados ao campo dos


media media, na medida em que autonomizam tec-
nicamente a nossa percepção do mundo em
O campo dos media é a instituição que pos- relação aos dispositivos naturais de percep-
sui a competência legítima para criar, im- ção.
por, manter, sancionar e restabelecer a hi- A emergência do campo dos media só
erarquia de valores assim como o conjunto ocorreu na segunda metade do século XX e
de regras adequadas ao respeito desses valo- a sua consumação apenas viria a correr efec-
res, no campo específico da mediação entre tivamente a partir dos meados dos anos 80,
os diferentes domínios da experiência sobre altura em que o nosso planeta fica comple-
os quais superintendem, como vimos, na mo- tamente coberto pelos satélites de telecomu-
dernidade, os diferentes campos sociais. nicações e em que são implantados os dis-
O termo media utilizado para especificar positivos técnicos da telemática que estão na
a natureza deste campo presta-se a alguns origem das actuais redes da informação me-
equívocos. Generalizou-se o uso do termo diática. É a partir dessa altura que assistimos
latino medium, no singular, ou media, no efectivamente à autonomização de um domí-
plural, para designar o conjunto da imprensa nio específico destinado à criação e à gestão
escrita, da radiodifusão e da televisão. Não dos dispositivos da informação mediática.
é neste sentido que utilizo este termo na ex-
pressão campo dos media. Trata-se antes de
uma noção abstracta que utilizo para desig- 3.4 As funções do campo
nar a instituição, que se autonomiza, na mo- mediático
dernidade tardia, que é dotada de legitimi- No campo dos media, as funções discursivas
dade para superintender à gestão dos dispo- predominam sobre as funções pragmáticas.
sitivos de mediação da experiência e dos di- Podemos inclusivamente dizer que é a ges-
ferentes campos sociais. Domínios da expe- tão dos discursos que caracteriza a sua natu-
riência como os da moda, da publicidade, do reza. Mas o discurso não se limita, no campo
management, das relações públicas, das re- dos media, a expressar os valores e as regras
des telemáticas, tal como os já mencionados de comportamento que cria e impõe; assume
sectores jornalísticos, partilham obviamente uma função eminentemente pragmática, na
esta característica. Mas nem todo o funcio- medida em que a sua prática dominante con-
namento destes sectores pertence ao campo siste num conjunto de actos de linguagem.
dos media nem o campo dos media se res- Equivale, por isso, a um fazer, a uma inter-
tringe ao funcionamento destes sectores. As- venção dotada de efeitos que se repercutem
sim, por exemplo, a administração de uma sobre o conjunto dos outros domínios da ex-
empresa jornalística, embora pertença obvia- periência e sobre os campos sociais que exer-
mente ao sector jornalístico, não faz parte do cem sobre eles o seu domínio competente.27
campo dos media. Por seu lado, os disposi-
27
tivos de microscopia electrónica ou as redes Sobre os actos de linguagem ver sobretudo John
telemáticas, por exemplo, embora não façam Langshaw Austin, How to Do Things with Words, Ox-
ford, Clarenton Press, 1962, e John R. Searle, Speech
parte do domínio jornalístico, são dispositi- Acts, Cambridge Univ. Press, 1969.

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Experiência, modernidade e campo dos media 27

O efeito mais notável que o campo dos são especializada e esotérica. É por isso que,
media exerce sobre a nossa experiência do à medida que o campo dos media se auto-
mundo é o chamado efeito de realidade, o nomiza, cada um dos outros campos tende
facto de a realidade tender para o resultado a profissionalizar um corpo próprio encarre-
do funcionamento dos dispositivos de me- gado de assegurar esta função de mediação,
diação, autonomizando-se em relação à per- encarregado sobretudo de redigir releases ou
cepção imediata do mundo e sobrepondo-se comunicados destinados ao público. Assisti-
à percepção espontânea dos nossos órgãos mos assim ao aparecimento de gabinetes de
sensoriais. imprensa, de serviços de relações públicas,
Do efeito de realidade decorre o efeito de de profissionais em marketing, que se encar-
simulação ou a performatividade dos dispo- regam desta função de publicidade.
sitivos mediáticos, a sua capacidade para an-
tecipar, modelar e substituir o real. Deste 3.6 O sistema de sanções do
ponto de vista, o campo dos media consuma
a natureza ortésica e protésica da tecnicidade campo dos media
moderna, ao dotar-nos de dispositivos que Ao contrário dos outros campos sociais, que
substituem o funcionamento e os órgãos sen- têm à sua disposição sistemas morais e físi-
soriais de percepção da realidade. cos de sancões que aplicam aos prevaricado-
res da sua ordem de valores e das suas regras
3.5 A legitimidade do campo dos de comportamento, o campo dos media tem
à sua disposição a privação da publicidade
media para os que não se sujeitam à sua ordem de
O campo dos media não gere propriamente valores de mediação e não cumprem as re-
um domínio da experiência específico, mas gras do seu discurso.
um domínio constituído por uma parte dos O efeito mais notório deste sistema de san-
domínios da experiência que os restantes ções é o da privação de visibilidade pública,
campos sociais nele delegam. É por isso que com a consequente perca da existência so-
dizemos que o campo dos media possui uma cial das suas vítimas. É por isso que cada
legitimidade de natureza delegada ou vicária. vez mais a realidade se confunde com aquilo
A parte que os restantes campos sociais que é mediatizado pelo campo dos media.
delegam no campo dos media é uma parte da
sua função discursiva ou expressiva e cons- 3.7 Regularidade e regimes de
titui o domínio público ou exotérico da sua
competência. É por isso que o campo dos funcionamento do campo dos
media é, ao mesmo tempo, constitui e é cons- media
tituído pelo público, instância que é contem- Ao contrário da natureza intermitente do
porânea da sua própria formação. funcionamento dos restantes campos sociais,
Os campos sociais seleccionam, de entre o campo dos media funciona de maneira con-
as diferentes formas de expressão da sua le- tínua, tendendo a confundir-se com o próprio
gitimidade, aquela que é destinada ao pú- pulsar da vida social. A mobilização do con-
blico, reservando no entanto para si a expres-

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28 Adriano Duarte Rodrigues

junto da sociedade para o respeito dos seus simbólicas formais (clero, magistrados, pro-
valores e das suas regras de funcionamento fessores, militares). Mas é igualmente um
é, por isso, constante, não exigindo proces- dos factores que está na origem da ambiva-
sos particulares de inculcação. lência vivida no decurso dos processos de
O seu funcionamento não obedece, no en- modernização dos campos sociais que pos-
tanto, a um regime constante, mas apresenta suem uma simbólica formal. Essa moderni-
alterações significativas. De uma maneira zação é encarada, por um lado, como aban-
geral, o regime de aceleração do campo dos dono de marcas formais distintivas, indis-
media acelera-se quando a sua ordem de va- pensável à sua imposição num mundo secu-
lores corre o risco de ser posta em causa, larizado, mas, por outro lado, como perca
quando as suas regras de funcionamento são da sua invisibilidade pública, da consequente
violadas ou quando se assiste ao exacerba- afirmação e reconhecimento da sua legitimi-
mento da tensão nas suas relações com ou- dade por parte do público.
tros campos sociais. Como exemplos deste
exacerbamento refiram-se as questões recen- 3.9 O corpo social e o sistema de
temente suscitadas pelas relações do campo
dos media com o campo jurídico a propósito acreditação do campo dos
da revelação de elementos de processos não media
transitados em julgado, da divulgação dos Uma das questões mais controversas do
nomes de réus antes da sua condenação pelos campo dos media é a do sistema de acredi-
tribunais, da revelação das fontes. tação do seu corpo social. Vimos que para
a autonomização e institucionalização dos
3.8 A simbólica do campo dos campos sociais contribuíu de maneira deci-
media siva o aparecimento de novos pocessos de
acreditação do saber. O aparecimento da fi-
O facto de se tratar de um campo destinado gura do especialista, acreditado com o di-
a assegurar a mediação entre os diferentes ploma universitário, representou um papel
campos sociais determina a natureza infor- fundamental na autonomização dos campos
mal da sua simbólica. Deste modo, os mem- sociais que emergiram com a primeira mo-
bros do seu corpo social tendem a mani- dernidade. Representaram, de algum modo,
festar a sua pertença ao campo através do uma ruptura para com a natureza da legiti-
apagamento sistemático de quaisquer mar- midade da experiência tradicional, herdeira
cas distintivas e olhar com desconfiança to- de uma sabedoria ancestral, adquirida atra-
das as manifestações que denotem publica- vés do convívio com um mestre de quem
mente lugares diferenciados na hierarquia do adquirira a competência que guardava como
campo. um segredo.
Esta natureza informal da simbólica do O corpo social próprio ao campo dos me-
campo dos media é um factor importante dia, por seu lado, encara de maneira particu-
de equívocos das relações entre membros do larmente ambivalente o diploma universitá-
corpo social do campo dos media e membros rio como instrumento de acreditação da sua
dos corpos sociais de campos que possuem

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Experiência, modernidade e campo dos media 29

competência. Sendo o domínio próprio da tualmente por tarimba, correndo os riscos do


sua competência legítima o da mediação dos corporativismo tradicional, ora da aquisição
diferentes domínios da experiência e dos res- de um diploma universitário, correndo os ris-
tantes campos sociais, tende a postular a exi- cos da disciplinarização do saber.
gência de um saber interdisciplinar e a pro-
mover a ruptura em relação à natureza disci- 3.10 Conclusão
plinar que caracteriza a ciência moderna.
Deste modo, numa época em que os sa- Gostaria de concluir este trabalho, mos-
beres atingiram um nível extremamente ele- trando a estreita relação da autonomização
vado de especialização, a sua legitimidade é do campo dos media com a experiência, na
encarada de maneira particularmente ambi- era da modernidade tardia. Como tive oca-
valente. Por um lado, os saberes discipli- sião de mostrar, o campo dos media desem-
nares tornam-se cada vez mais inacessíveis penha funções predominantemente simbóli-
aos que que não pertencem aos corpos soci- cas: assegura, ao mesmo tempo, o funciona-
ais especializados. O corpo social do campo mento dos dispositivos de representação e re-
dos media tende assim a ser considerado com flecte, como num espelho, os diferentes do-
desconfiança por parte dos corpos dos cam- mínios da experiência.
pos sociais especializados, que o acusam de É a natureza especular e representativa do
atraiçoar a especificidade do seu saber sem- seu funcionamento que confere ao campo
pre que os publicitam. Mas, por outro lado, dos media a especificidade da seu domínio
os corpos acreditados dos campos sociais es- próprio de competência, o da mediação entre
pecializados precisam cada vez mais da pu- os diferentes campos sociais, religando entre
blicitação do seu saber, por parte do campo si o mundo fragmentado moderno.
dos media, para assegurarem a visibilidade É porque depende sobretudo da enuncia-
da sua própria legitimidade. ção de um discurso próprio, o discurso me-
Assistimos assim a uma relação parado- diático, que o desempenho desta função sim-
xal, feita de sedução e de desconfiança, en- bólica, especular e representativa, que é a ex-
tre, por um lado, os campo sociais especi- periência discursiva, que acaba por ser o do-
alizados, e, por outro lado, o campo dos mínio de competência específico da campo
media. É esta relação paradoxal que per- dos media.
mite compreender a relação ambivalente do O discurso mediático possui, além das ca-
seu corpo social com a instituição científica. racterísticas de qualquer outra modalidade
Embora dependa dela para a sua acredita- de discurso, um conjunto de traços distinti-
ção, sob pena de regresso às formas arcaicas vos que definem a sua natureza e o seu modo
e esotéricas pré-modernas, não pode deixar de funcionamento e o distinguem dos outros
de desconfiar da natureza especializada do discursos. Vou apenas referir dois conjuntos
campo científico, sob pena de pôr em causa de características do discurso mediático.
a sua própria natureza interdisciplinar. Não O primeiro conjunto tem a ver com as re-
admira, por isso, que faça depender o sistema gras da enunciação. Ao contrário dos ou-
de acreditação do seu corpo, ora da experi- tros discursos, o discurso mediático é an-
ência espontânea daquilo que designa habi- tes um discurso de natureza exotérico, isto

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30 Adriano Duarte Rodrigues

é, compreensível independentemente da si- citários, feitos de aproximações ousadas e,


tuação interlocutiva particular. É este pri- por vezes, brilhantes de terminologias origi-
meiro traço que assegura a relação de me- nárias de campos sociais distintos. “Guer-
diação entre todos os domínios da experi- rilha na bolsa”, “Empate nas sondagens”,
ência e entre todos os campos sociais. Do “Portugal abre guerra da língua”, “Ministro
ponto de vista formal, esta característica re- chamuscado” são alguns exemplos de pro-
sulta da aplicação por parte do corpo social cessos de metaforização do discurso dos me-
próprio do campo dos media de todo um con- dia.
junto de regras discursivas. De entre essas Estas características enunciativas e retóri-
regras, merece particular referência à da su- cas não dão conta obviamente de todas as di-
pressão ou, pelo menos, ou do uso reduzido ferenças que o discurso mediático apresenta
ao mínimo das marcas dícticas, isto é, do em relação aos discursos dos outros cam-
jogo pronominal que refere os interlocutores, pos sociais. Faltam ainda estudos minucio-
assim como o tempo e o lugar da enuncia- sos que permitam averiguar, de maneira sis-
ção mediática. A esta regra de eliminação temática e ponderada, as suas características
das marcas dícticas dou o nome de processo tanto lexicais, sintáxicas e semânticas como
de objectivação do discurso ou, se preferir- enunciativas, retóricas e pragmáticas. Mas
mos, de apagamento das marcas da subjecti- a evocação breve e resumida de algumas re-
vidade. Trata-se evidentemente de um pro- gras que o discurso mediático apresenta ape-
cesso estratégico que visa criar as condições nas nos domínios enunciativo e retórico é su-
simbólicas de representação exotérica da ex- ficiente para mostrar que as relações que o
periência do mundo, na medida em que não campo dos media estabelece com a experiên-
é pelo facto de o locutor não dizer “eu” que cia são de natureza predominantemente sim-
deixa de estar presente na enunciação do seu bólica.
discurso. A natureza simbólica das relações do
O segundo conjunto de regras tem a ver campo dos media com a experiência são par-
com o jogo retórico ou de figuração do dis- ticularmente paradoxais. Por um lado, é gra-
curso. Ao contrário dos outros campos soci- ças à natureza discursiva ou simbólica das
ais, que procuram na autonomização concep- suas relações com a experiência que o campo
tual e terminológica a eficacidade simbólica dos media assegura as funções de publicita-
da sua própria autonomização, o discurso ção ou de visibilidade pública do mundo e
mediático procura na transposição concep- dos diferentes campos sociais. Mas, por ou-
tual e na metaforização terminológica o exer- tro lado, estas funções só podem ser asse-
cício da sua relação especular com os dife- guradas se o discurso mediático resultar de
rentes domínios da experiência e a eficaci- um processo de naturalização objectivante,
dade simbólica da sua função de mediação pela opacificação ou pelo apagamento siste-
entre os outros campos sociais. Os exemplos mático das marcas enunciativas. A eficácia
mais notáveis destes processos de metafori- do funcionamento do campo dos media re-
zação encontram-se nos títulos da imprensa e sulta por isso daquilo a que dou o nome de
nos discursos jornalísticos, mas atingem um processo de naturalização das regras de re-
alto nível de criatividade nos discursos publi- presentação especular da realidade.

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Experiência, modernidade e campo dos media 31

Não admira, por conseguinte, que o campo 4 Obras citadas


dos media estabeleça relações de natureza
Austin, J. L. – How to Do Thigns with Words,
tensional com os outros campos sociais. En-
Oxford, Clarenton Press, 1962 (trad.
quanto a representação da experiência pro-
bras.:Quando Dizer é Fazer, São Paulo,
duzida pelo discurso do campo dos media
ed. Hucitec).
procede da naturalização dos dispositivos de
percepção espontânea do mundo, a represen- Bell, D. – The Coming of Pós-Industrial So-
tação da experiência resultante dos discursos ciety: a Venture in Social Forecasting,
dos restantes campos sociais depende do res- Nova Iorque, Basic Books, 1973; The
peito das disciplinas que visam a desnaturali- Cultural Contradictions of Capitalism,
zação desconstrutora e de crítica dos quadros Nova Iorque, Basic Books, 1976.
expontâneos que ditam o sentido da experi-
ência quotidiana. Benveniste, E. – Vocabulaire des Institutui-
Esta tensão é particularmente visível nas ons Indo-européennnes, Paris, ed. de
atitudes ambivalentes dos corpos sociais dos Minuit, 2o volume, 1969.
restantes campos em relação ao corpo social
do campo dos media. Embora aqueles não Bourdieu, P. – Le Sens Pratique, Paris, ed.
possam prescindir do contributo deste para de Minuit, 1980.
a imposição da sua visibilidade pública, não Bourdieu, P. – Sobre a Televisão, Oeiras, ed.
podem deixar de considerar o discurso me- Celta, 1997.
dático com suspeição, acusando-o de atrai-
çoar os seus valores e de não respeitar a au- Descartes, R. – Discours de la Méthode pour
tenticidade e o rigor dos seus discursos espe- bien conduire sa Raison, in Oeuvres et
cializados. Lettres, Paris, Bibl. de la Pléiade, ed.
Ao longo do processo de implementação Gallimard, 1953, páginas 125-179 (or.:
da modernidade, a autonomização de cada 1637).
um dos diferentes campos sociais resultou
da luta bem sucedida pela imposição da Détienne M. e Vernant, Jean-Pierre – Les
sua competência num dos doínios da expe- Ruses de l’Intelligence. La Métis des
riência. Como vimos, a autonomização do Grecs, col. Champs, Paris, ed. Flam-
campo dos media coloca o mundo actual pe- marion, 1974.
rante novas lutas que se situam nas fronteiras Ferry, J.-M. – Les Puissances de
dos domínios da experiência que escapam ao l’Expérience, vol. 1. Le Sujet et
domínio dos campos sociais instituídos. O le Verbe, Paris, ed. du Cerf, 1991.
papel mais importante do campo dos media
será provavelmente cada vez mais a sua ca- Foucault, M. – Archéologie du Savoir, Paris,
pacidade de tematização pública e de publi- ed. Gallimard, 1969.
cização do confronto entre os discursos espe-
cializados em torno das questões suscitadas Foucault, M. – Surveiller et Punir, Paris, ed.
por estes domínios. Gallimard, 1975.

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