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Paulo Roberto de Almeida

O PANORAMA VISTO EM MUNDORAMA


ENSAIOS IRREVERENTES E NÃO AUTORIZADOS

Brasília
Edição do Autor
2015
O Panorama Visto em Mundorama
Ensaios Irreverentes e Não Autorizados
...................................

O Panorama Visto em Mundorama


Ensaios Irreverentes e Não Autorizados

Paulo Roberto de Almeida


Doutor em ciências sociais.
Mestre em economia internacional.
Diplomata.

Edição do Autor - 2015


Direitos de publicação reservados:
© Paulo Roberto de Almeida
2015

_______________________________________________________

ALMEIDA, Paulo Roberto.


O Panorama visto em Mundorama: Ensaios Irreverentes e Não
Autorizados; Brasília: 2a. Edição do Autor, 2015.
374 p.

1. Política internacional. 2. Relações internacionais.


3. Economia. 4. História. 5. Sociologia. 6. Direito.
7. Globalização 8. Brasil. 8. América Latina. 10. Título

_______________________________________________________

Informação sobre a capa: composição do autor sobre ilustração do Google Images

Contato com o autor:


www.pralmeida.org
pralmeida@me.com
(55.61) 9225-4770

1a Edição: 7/05/2015;
2a Edição: 4/12/2015

6
Al enfrentarme a su concepción... quise utilizar la
historia... para reflexionar sobre la perversión de la gran utopía
del siglo XX, ese proceso en el que muchos invirtieron sus
esperanzas y tantos hemos perdido sueños, años y hasta sangre
y vida. (...) En ese dilatado proceso, me resultó imprescindible...
el conocimiento, las experiencias y las investigaciones previas...
y hasta las incertidumbres sobre una historia las más de las
veces sepultada o pervertida por los líderes que durante... años
fueron los dueños del poder y, por supuesto, de la Historia.

Leonardo Padura
El Hombre que Amaba los Perros
(Barcelona: Tusquets, 2009), p. 763-764.
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Índice

Apresentação
O mundo visto no diorama de Mundorama 11

Primeira Parte
Política externa brasileira e diplomacia companheira
1. Fim das utopias na Casa de Rio Branco? 17
2. A política externa companheira e a diplomacia partidária 21
3. Continuidade e mudança na política externa brasileira 31
4. A diplomacia brasileira numa nova conjuntura política 37
5. O Brasil e a integração regional, da Alalc à Unasul: algum progresso? 41

Segunda Parte
Economia política internacional
6. Mudanças na economia mundial: perspectiva histórica de longo prazo 55
7. Os Brics na nova conjuntura de crise econômica mundial 59
8. A Guerra Fria Econômica: um cenário de transição? 68
9. Desafios da economia brasileira na interdependência global 74
10. A agenda econômica internacional: o cenário atual 80
11. Como o Brasil se insere no cenário mundial, agora e no futuro próximo? 85
12. Como e qual seria uma (ou a) agenda ideal para o Brasil? 91
13. O que o Brasil deveria fazer para maximizar a “sua” agenda? 99

Terceira Parte
Globalização, Embromação
14. A globalização e o direito comercial: uma longa evolução 113
15. Fluxos financeiros internacionais: é racional a proposta de taxação? 120
16. Fórum Econômico e Fórum Social: dois mundos contraditórios 129
17. Fórum Social Mundial: uma década de embromação 138
18. Triste Fim de Policarpo Social Mundial 149
19. A falência da assistência oficial ao desenvolvimento 159

Quarta Parte
Política internacional, Questões estratégicas
20. A guerra de 1914-18 e o Brasil: impactos imediatos, efeitos permanentes 167
21. O mundo sem o Onze de Setembro: explorando hipóteses 172
22. Wikileaks: verso e reverso 179
23. Wikileaks-Brasil: qual o impacto real da revelação dos documentos? 187
24. Digressões contrarianistas sobre o desarmamento nuclear 197
25. Um congresso de Viena para o século 21? 203
26. As ilusões perdidas do século 21 210

Quinta Parte
Ideias, cultura, livros
27. A ideia do interesse nacional: onde estamos? 217
28. Imperfeições dos mercados ou “perfeições” dos governos 223
29. Miséria do Capital no século 21 229
9
30. Reformando o sistema monetário internacional 233
31. As quatro liberdades e um projeto para o Brasil 241
32. Algumas recomendações de leituras 249
33. Estratégia diplomática: relendo Sun Tzu para fins menos belicosos 255
34. Memória e diplomacia: o verso e o reverso 264
35. Da democracia à ditadura: uma gradação cheia de rupturas 269

Sexta Parte
O Brasil e o mundo, de um século a outro
36. A diplomacia dos antigos comparada à dos modernos 277
37. A ordem econômica mundial, do século 19 à Segunda Guerra 290
38. The world economy, from belle Époque to Bretton Woods 303
39. Relações Brasil-EUA no início do século 21: desencontros 306
40. A falácia dos modelos de desenvolvimento: enterrando um mito sociológico 327
41. O TransPacific Partnership e seu impacto sobre o Mercosul 333
42. Quais são as grandes ameaças ao Brasil? 339
43. Desafios externos ao Brasil no futuro próximo 347

Apêndices
Relação cronológica dos ensaios publicados em Mundorama 355
Relação dos artigos publicados anteriormente em RelNet 363
Livros publicados pelo autor 367
Nota sobre o autor 372

10
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Apresentação
O mundo visto no diorama de Mundorama

Diorama, segundo as definições e as representações costumeiras, é um modelo, que


pode ser construído tanto em miniatura quanto em tamanho natural, representando, num
formato tridimensional, algum evento, indivíduos ou integrantes do mundo natural, ou ainda,
alguma configuração marcante de uma determinada sociedade, do presente ou do passado,
que possua relevância suficiente para justificar sua reprodução de forma realista daquilo que
se pretenda oferecer aos visitantes como comemoração histórica, ou antropológica, ou
qualquer outra, geralmente fazendo parte de um museu ou construção especialmente
construída para tal finalidade. Não chegam ao realismo extremo de certas figurações típicas
da história patriótica americana – quando se reencenam, com atores do presente em trajes de
época, batalhas ou cenas da formação progressiva do país – mas constituem, ainda assim,
representações atrativas, pois se destinam justamente a finalidades didáticas, para o público
leigo e infanto-juvenil.
Alguns dioramas são extremamente sofisticados: sempre me lembro do realismo com
o qual se recriou a batalha de Waterloo, na cidade belga desse nome, com todos os exércitos
alinhados para a derradeira derrota de Napoleão. Os militares apreciam esses figurações, e
lhes emprestam o maior realismo possível. Vem-me à mente, igualmente, o excelente Liberty
Memorial da Primeira Guerra Mundial, em Kansas City, com um imenso painel relatando a
entrada dos Estados Unidos na guerra, em 1917. Combinando diversas técnicas, é um dos
mais completos que me foi dado visitar em torno da Grande Guerra, igualando,
provavelmente, o Memorial de Péronne, na França.
Pois bem, o veículo virtual com o qual tenho o privilégio de colaborar, o boletim
eletrônico Mundorama, dirigido pelo ativíssimo professor Antonio Carlos Lessa, é uma
espécie de diorama sobre o mundo contemporâneo (e do passado também). Trata-se, antes de
tudo, de um empreendimento extremamente didático, ainda que bastante leve e diversificado,
embora não tridimensional, mas suficientemente rico para atrair todos aqueles – estudantes,
pesquisadores, curiosos, “livre atiradores”, como eu – que se interessam muito, pouco, ou
mesmo muito pouco, pelas relações internacionais e pela inserção mundial do Brasil. Segundo
sua definição editorial, “Mundorama é uma abordagem ágil sobre os temas da agenda

11
internacional e da política externa brasileira” e nele “são publicadas contribuições breves
versando sobre os temas da agenda internacional contemporânea.”
Desde que comecei a colaborar, primeiro esporadicamente, agora de forma mais
regular, com o boletim, confesso que não tenho sido muito breve, ou sintético. Como poderão
constatar os que percorrerem estas páginas, mais uma compilação de meus escritos de uma
década inteira, algumas dessas contribuições se estendem por mais de dez páginas, o que
destoa das recomendações dos organizadores quanto ao caráter leve dos textos ali recolhidos.
Devo, entretanto, à generosidade do professor Lessa o bom acolhimento que tenho encontrado
para meus textos de certo modo prolixos, tortuosos, por vezes torturados, em torno de todos
os problemas – nacionais ou internacionais – que clamam pela minha atenção na leitura diária
de um volume razoável de periódicos e de boletins virtuais. Meus agradecimentos renovados
pela compreensão e tolerância.
Não estão aqui compilados todas as contribuições publicadas nas “páginas” de
Mundorama, inclusive porque várias delas foram reproduzidas no boletim irmão, um tanto
mais formal – quase de terno e gravata – que é o Meridiano 47, já objeto de uma anterior
compilação minha, igualmente disponível: Paralelos com o Meridiano 47: Ensaios
Longitudinais e de Ampla Latitude (Hartford: Edição do Autor, 2015), livro digital montado a
partir de uma seleção de minhas colaborações a esse boletim (e disponível neste link:
https://www.academia.edu/11981135/28_Paralelos_com_o_Meridiano_47_ensaios_2015_).
Vou ainda aperfeiçoá-lo, graficamente, visualmente, e colocá-lo em minha página.
Em todo caso, a lista das contribuições até agora oferecidas estão listadas no
Apêndice, que também relaciona meus escritos no boletim predecessor de Mundorama, em
sua primeira encarnação, as Colunas do RelNet, uma iniciativa pioneira dessa tribo de
desbravadores do atual IRel-UnB, com a qual colabora sempre quando me chamam, mas
sempre como livre atirador, jamais como representante de qualquer entidade ou escola de
pensamento. Ser livre significa escolher em total autonomia todos e cada um dos temas que
são aqui submetidos ao meu bisturi analítico: jamais recebi qualquer encomenda dos editores,
ou de quem quer que seja, para tratar deste ou daquele assunto.
Minto: nos anos comemorativos, tanto o professor Lessa quanto os editores ou
responsáveis pelo IBRI e pela RBPI, me sugeriam algum escrito recapitulativo, isto é, de
cunho histórico, o que eu teria feito voluntariamente de igual modo. Salvo essas poucas
“encomendas”, todos os demais temas figuram nos meus cadernos de notas como sendo o
resultado de leituras, reflexões, pesquisas e debates, que são mais raros, estes últimos, na
medida em que eu prefiro o labor solitário, geralmente com o concurso dos livros e das
12
revistas, em frente à tela de um computador, na consulta virtual de todas as fontes
disponíveis, sempre na companhia intelectualmente estimulante de Carmen Lícia, que
costuma ter meus péssimos hábitos de leituras e trabalhos noctívagos.
Não creio que eu necessite apresentar qualquer um dos textos aqui reproduzidos, pois
acredito que eles falam por eles mesmos. A despeito de algum overlapping entre Mundorama
e Meridiano 47, evitei as repetições entre os dois volume de compilações, com uma única
exceção, o texto 6: “Mudanças na economia mundial: perspectiva histórica de longo prazo”,
uma vez que penso que ele oferece uma boa introdução à problemática que vai discutida na
seção dedicada à economia política internacional, como já tinha sido o caso no volume
anterior. Aproveitei, tanto quanto possível, as belas imagens que decoravam a edição original
de cada um dos escritos em Mundorama, ao qual os curiosos podem recorrer, para uma
formatação mais agradável, ou conferir o texto de fato publicado
(http://mundorama.net/?s=Paulo+Roberto+de+Almeida).
Este volume está destinado a crescer em tamanho em futuras edições – ainda que não
pretenda imitar os verdadeiros dioramas em seu formato tridimensional –, à medida em que
novos escritos vierem completar os temas aqui tratados, geralmente de forma mais rápida que
os trabalhos mais “pesados”. Mas, como os congêneres de museus, ele se pretende igualmente
didático em espírito e em intenção, tanto quanto sintético de realidades sempre complexas e
multifacetadas das relações internacionais e da inserção do Brasil nos seus vários ambientes.
Não preciso, em absoluto, oferecer qualquer tipo de “disclaimer” quanto ao fato, deveras
conhecido de todos que acompanham meus trabalhos, que as ideias e posições aqui expostas
correspondem inteiramente ao meu próprio pensamento, não refletindo de nenhuma forma,
posturas e políticas de qualquer corporação com a qual eu possa estar envolvido ou servindo.
Ser livre atirador significa assumir inteira responsabilidade pelas tomadas de posição,
pelas críticas mais amenas ou mais acerbas que possam estar aqui contidas, como aliás
sempre foi minha postura ao longo de minha trajetória intelectual. Simples curiosos, alunos de
áreas que são as de minhas leituras e pesquisas, colegas de profissão ou de academia, podem
ter certeza de que todas as ideias aqui defendidas são sempre expostas com o mesmo ardor e
convicção que desde anos animam os meus estudos.
Vale!

Paulo Roberto de Almeida


Hartford, 21 de abril de 2015
Edição ampliada: Brasília, 2 de dezembro de 2015

13
Primeira Parte
Política externa brasileira e diplomacia companheira

15
1. Fim das utopias na Casa de Rio Branco?

Houve um tempo, no Itamaraty e na política externa, em que se julgava que tudo


fosse possível, que tudo fosse factível, realizável e alcançável, e tudo isso no horizonte
visível, desde que sob o comando correto, tanto no país quanto na Casa de Rio Branco.
Bastava afastar a submissão ao estrangeiro e a conformidade a políticas medíocres de
ajuste, que nos condenavam ao baixo crescimento e à subordinação a uma ordem ditada
de fora, para que assumíssemos nossa vocação à autonomia e à afirmação independente,
num mundo ainda em construção, que seria aliás construído com a nossa participação.
Consoante um cenário de reordenamento pós-imperial, deveríamos nos alinhar a novas
potências emergentes, não dominadas pelo pensamento único, com as quais todas as
possibilidades estariam abertas, tanto para a política externa, quanto para o próprio país.
Chegamos perto desse ideal, não obstante o fato de que ele se parecia muito com essas
utopias recorrentes que, volta e meia, povoam o universo dos crédulos.
Foi um tempo em que “vestir a camisa” do governo do demiurgo prometia um
futuro brilhante, não apenas para a instituição, mas para cada um dos seus componentes,
do mais humilde secretário ao mais ousado embaixador. Empurrado pela bonança
chinesa nas matérias-primas, o país tinha recursos suficientes para distribuir favores
para dentro e para fora. Novos cargos, centenas deles, foram criados, novos postos
foram abertos, dezenas de novas unidades surgiram como por geração espontânea na
própria Secretaria de Estado, e tudo parecia se encaminhar para um estado de felicidade
contínua, senão a perfeição dos últimos tempos. Utopia novamente? Provavelmente.
Os traços comuns a todos os milenarismos, a todos os projetos utópicos, como
ensina Isaiah Berlin, se situam em três propostas comuns a esse tipo de pensamento: a
de que existe uma resposta precisa a questões legítimas (sejam elas relativas, digamos,
17
ao crescimento e ao desenvolvimento do país, seja no plano de suas relações externas);
a de que existe um método infalível para encontrar e aplicar essa resposta, desde que os
homens certos estejam no comando da situação; e a de que todas as vontades, todos os
desejos e necessidades possam ser atendidos, com a correta aplicação daquela resposta e
daquele método exposto e defendido pelos homens certos, infalíveis. Posso exagerar na
simplificação, mas o Brasil, e o Itamaraty, viveram esses tempos não convencionais, em
que nunca antes se tinha acertado tanto na busca, se não no atingimento, de todos os
desejos e necessidades de cada um. No começo, bastava que todo brasileiro pudesse
fazer três refeições por dia, e assistimos ao glorioso lançamento do Fome Zero; depois
os objetivos foram sendo ampliados, para nada mais nada menos do que a perfeição no
sistema de saúde, a política industrial ideal e o deslanche decisivo da inovação e da
criatividade, inatas no povo brasileiro, como se sabe.
Na política externa, nada menos do que o término definitivo da submissão aos
cânones de fora, a substituição do velho Consenso de Washington por um (hoje quase
esquecido) Consenso de Buenos Aires, a proclamação da vontade de refazer, junto com
novos aliados emergentes, as “relações de força no mundo”, e nada menos do que a
inauguração de uma “nova geografia do comércio internacional”, obviamente dominada
pelas relações Sul-Sul, e não mais pela assimétrica relação Norte-Sul.
Talvez eu também esteja simplificando um pouco as coisas, mas são conceitos
que ouvimos dezenas de vezes nos últimos dez ou doze anos, até que nos convencemos
que era isso mesmo que estava sendo descortinado no horizonte das possibilidades
históricas. Sem exageros, o Itamaraty viveu dias gloriosos, em que o Brasil era
respeitado, admirado e acatado, um pouco em todos os quadrantes do globo, em que
nossa política externa era considerada superior até mesmo à antiga excelência
autoproclamada, e quando a Casa podia contar com o melhor chanceler do mundo,
segundo um jornalista influente do primeiro mundo.
Tudo isso pode ter sido verdade, durante algum tempo, mas o fato é que nem as
melhores utopias, daquelas que se realizam por autoindução, conseguem se manter à
tona indefinidamente, indiferentes ao que vai pelo resto do mundo, ou até no país.
Voltamos à velha – primeira e única – lei da economia, segundo a qual recursos são
sempre escassos, por definição, daí que escolhas precisam ser feitas, entre infinitas
possibilidades e necessidades. Como também já disse alguém, a primeira lei da política
consiste em tentar desmentir aquela primeira lei da economia, e de fato é o que ocorre
em quase todos os países, o tempo todo. Não poderia ser diferente no Brasil, como não
18
foi; estamos vendo atualmente o fim da bonança chinesa, e a triste vingança da
economia sobre a política. Isso atinge, também, a política externa, e de uma maneira
particularmente cruel.
Por um lado, os jovens descobrem que as possibilidades de um futuro brilhante –
bons postos no exterior, salários satisfatórios, promoções rápidas – não eram, assim, tão
realizáveis quanto o imaginado no início, quando os concursos chegavam a atrair vários
milhares de candidatos para preencher as muitas vagas abertas por um serviço em
expansão. Por outro lado, os administradores se defrontam, brutalmente, com a redução
drástica de recursos, o que é inevitável numa situação de vacas magras, mas poderia ter
sido planejado de outra forma, se alguns princípios de racionalidade instrumental
tivessem sido aplicados na origem das novas despesas criadas na fase de expansão. As
opções não são fáceis, como sabe todo administrador encarregado de dividir a penúria;
sacrifícios parecem inevitáveis, em todos os planos.
No plano puramente orçamentário, as mesmas receitas que valem para um
indivíduo ou para uma família, deveriam valer igualmente para uma burocracia mais
encorpada: reduzir despesas acessórias, ou seja, não conectadas aos fins últimos,
eliminar luxos e benesses auto-atribuídas – como o hábito de jantar fora, ou de tirar
férias em lugares charmosos, ou de alugar residências acima de um padrão razoável. No
plano funcional, as soluções são mais difíceis, ou nem sempre aplicáveis: afinal de
contas, a burocracia vive invariavelmente em função de seus próprios meios, ou seja,
ela existe, em primeiro lugar, para realizar seus próprios objetivos, isto é, internos.
Quando os recursos são finitos – como sempre são – se estabelece uma competição
entre os agentes, vencendo os que detêm as informações mais relevantes, um pouco
como nos mercados de fatores.
O Estado será chamado a arbitrar? Talvez, mas como o Estado não produz
recursos, apenas os retira dos próprios agentes produtores, ficam os dilemas de sempre,
vinculados a desejos não satisfeitos. A economia é um grande nivelador de terreno,
ainda que o nivelamento não contemple a todos de maneira igualitária. Em resumo: não
existem mesmo expectativas de que o céu de brigadeiro e o mar de almirante retornem
no horizonte previsível. Se ouso ainda terminar com mais uma banalidade popular: não
há bem que sempre dure, não há mal que nunca se acabe...

19
2739. “Fim das utopias na Casa de Rio Branco?”, St. Petersburg-Clearwater, FL, 29
dezembro 2014, 3 p. Considerações sobre o clima reinante no Itamaraty e na
própria política externa, em torno das expectativas que se revelaram frustradas ao
cabo de doze anos de experimentos supostamente inovadores. Divulgado no
Diplomatizzando (link: http://diplomatizzando.blogspot.com/2014/12/fim-das-
utopias-na-casa-de-rio-branco.html); reproduzido em Mundorama (n. 88, dezembro
de 2014; ISSN: 2175-2052; link para o boletim:
http://mundorama.net/2014/12/31/boletim-mundorama-no-88-dezembro2014/; link
para o artigo: http://mundorama.net/2014/12/30/fim-das-utopias-na-casa-de-rio-
branco-por-paulo-roberto-de-almeida/). Relação de Publicados n. 1158.

20
2. A política externa companheira e a diplomacia partidária

O término de um mandato presidencial sempre é uma boa ocasião para se efetuar


um balanço das coisas boas e das menos boas que transcorreram durante o período. Por
deformação de ofício, mas também por inclinação pessoal, tenho feito esse tipo de
avaliação ao final e até no início de novos mandatos, num terreno que por acaso é o meu
pelas últimas três décadas, pelo menos: os das relações internacionais do Brasil e da
política externa dos governos que se sucederam desde o final dos anos 1970 (em plena
ditadura, portanto), até a atualidade. Uma lista nominal de todos os ensaios de avaliação
que escrevi a esse respeito ao longo dessas décadas seria provavelmente enfadonha, mas
talvez possa ser útil aos que manifestem o desejo, e o interesse, de conhecer, ainda que
seletivamente, o que produzi de mais relevante nessa área. Por isso, permito-me
enumerar os mais representativos desse tipo de produção ao final deste breve ensaio.
Mas o que me motiva a novamente realizar o mesmo tipo de exercício é a
publicação recente, no calor dos debates eleitorais, de dois ou três artigos dentro da
linha do continuísmo diplomático, ou seja, escritos deliberadamente com a intenção de
“provar” que a política externa companheira, em curso desde o primeiro dia do regime
lulo-petista – que entrou para a história como a era do “Nunca Antes”, que aliás serviu
de título a meu livro mais recente – é a única suscetível de defender a soberania do
Brasil, e que ela deve ser preservada com todo o ativismo e altivez que supostamente a
caracterizam (segundo a figura de estilo, pro domo sua, de um ex-chanceler). Como eu
acho que esses artigos nada mais são do que propaganda enganosa a serviço do partido
no poder, publicidade encomendada travestida de análise acadêmica, resolvi apresentar
aqui outros elementos de discussão, ao alinhar alguns argumentos em favor de uma
outra visão, que pelo menos tem a vantagem, sobre essas, de oferecer uma perspectiva
21
“interna” da diplomacia companheira, e sem que ninguém me tivesse encomendado tal
tarefa. Ni Dieu, ni maître, como diria um anarquista; e eu: nem mestre, nem patrão.

Primeiro: distinguir a política externa da diplomacia, stricto sensu


Cabe distinguir, primeiramente, entre política externa e diplomacia – que são
assemelhadas mas não devem ser confundidas –, para, a partir daí, fazer uma avaliação
de ambas ao longo do período recente. A primeira não se distinguiu muito, ou
praticamente nada, da política externa conduzida nos dois mandatos do presidente Lula,
ou seja, significou uma continuidade conceitual, em suas grandes linhas, ainda que
tenha representado certa diminuição no ímpeto para novas iniciativas e no impulso para
projeções exageradas no plano internacional. A segunda, a diplomacia, foi certamente
diferente, ainda que ambas tenham apresentado forte ênfase na chamada diplomacia
presidencial, ou seja, o envolvimento direto do chefe de Estado com certos temas,
embora com certa diminuição na intensidade das ações, como aliás ocorreu na transição
de uma para outra política externa. Foram estilos diferentes, digamos assim, na maneira
de conduzir a política externa e a diplomacia: um pouco diferentes entre si, mais na
forma do que no conteúdo, ainda que continuassem pertencendo e aderindo, ambos, aos
mesmos princípios e modos de funcionamento.
Cabe, portanto, examinar uma e outra em sua substância, e não apenas na forma
sob a qual foram respectivamente desenvolvidas. Quando se diz que a política externa
não se distinguiu muito entre os dois mandatos anteriores do presidente Lula (2003-
2006, e 2007-2010) e o mandato da sucessora, é porque esta preservou basicamente as
mesmas orientações, as mesmas linhas essenciais que estavam em curso desde o início
do primeiro mandato lulo-petista, do qual esta foi mera continuação, quando não foi
uma simples projeção no tempo, por pessoas interpostas, da mesma política externa.
Cabe registrar, desde logo, que essa política externa (e sua diplomacia) foi muito
bem recebida pelas correntes ditas progressistas da opinião pública, o que significa
quase toda a academia, por ter sido considerada como bastante inovadora em relação às
linhas anteriormente conhecidas da política externa brasileira, que era influenciada (se
não determinada, em grande medida) pelo Itamaraty. Esta é a principal característica da
política externa lulo-petista, da qual a política externa “dilmista” (se é possível, de fato,
falar de uma) representa, como já se disse, mera continuidade.

Avaliação da política externa e da diplomacia de 2011 a 2014


22
A avaliação que se pode fazer, de uma e de outra, é, portanto, válida para todo o
período lulo-petista e seus grandes traços são bastante conhecidos pelos observadores
dos meios de comunicação, tanto quanto pelos analistas acadêmicos. Se trata de uma
política que se pretende – numa espécie de classificação pro domo sua, ou seja, em
causa própria – “ativa e altiva”, e que se quer soberana, ou mais exatamente defensora
da soberania nacional. Como elogio em boca própria pode ser vitupério, digamos que
ela se conforma a certos traços que seus próprios protagonistas selecionaram para si:
uma diplomacia voltada para o Sul – como se uma orientação para o Norte constituísse
um pecado original – e basicamente orientada a “mudar as relações de força” no cenário
internacional, tido como prejudicial às novas aspirações do governo para o país.
Essa foi a intenção proclamada pelo anterior chefe de Estado, e confirmada pelo
seu único chanceler mais de uma vez, que ainda acrescentava que se pretendia criar uma
“nova geografia do comércio internacional”. Como ocorreu em várias outras esferas da
vida nacional, e de suas políticas públicas, se pretendia romper com o universo anterior,
considerado uma “herança maldita” sob diversos aspectos, ainda que esta caracterização
tenha mais de demagogia política do que de análise objetiva. Na política externa, em
todo caso, as pretensões eram bastante ambiciosas, e em torno delas se mobilizou uma
diplomacia que foi convidada a “vestir a camisa” do novo governo.
Em síntese, se acreditava que a ordem mundial anterior estava caracterizada por
uma “extraordinária concentração de poder econômico, militar, político, ideológico,
cultural” (e vários outros mais) nas mãos das antigas potências coloniais europeias e,
principalmente, do império americano. Esta é a análise que o principal ideólogo daquela
diplomacia – o ex-Secretário-Geral do Itamaraty, Embaixador Samuel Pinheiro
Guimarães – fez de maneira recorrente da situação internacional encontrada pela
diplomacia lulo-petista no início do milênio, e que seus protagonistas e principais
proponentes tentaram modificar. O caminho estaria numa aliança entre potências
emergentes e países do Sul de maneira geral, para se opor a esse poder desmesurado do
hegemonismo arrogante, de maneira a poder “democratizar as relações internacionais”,
redistribuindo aquelas fontes de poder entre novos atores.

A Weltanschauung dos companheiros e seus objetivos táticos


Este é o arcabouço mental, e o quadro conceitual, em torno do qual se construiu
a política externa lulo-petista, e em função do qual se mobilizou uma diplomacia
voltada essencialmente para esses grandes objetivos. As metas táticas para alcançá-los,
23
pelo menos parcialmente, foram apresentadas, ao início daquele governo, como estando
integradas por três prioridades: (a) reforço e ampliação do Mercosul e constituição de
um espaço econômico integrado na América do Sul; (b) conquista de um assento
permanente no Conselho de Segurança das Nações Unidas; (c) finalização das
negociações comerciais multilaterais da Rodada Doha, com aquela orientação de aliança
com os países do Sul, no sentido de criar a “nova geografia do comércio internacional”.
Qualquer que seja a posição do observador jornalístico, ou do analista acadêmico, pode-
se avaliar, então, se esses objetivos foram alcançados, ou cumpridos parcialmente, com
base na diplomacia mobilizada para atingi-los. Uma avaliação honesta diria que eles
sequer foram arranhados, ainda que os adeptos dos governos lulo-petistas sempre terão
motivos para se explicar quanto ao atingimento apenas parcial ou nulo de tais objetivos.
Ainda que os fieis seguidores da causa companheira possam dizer, por exemplo,
que o Mercosul “deixou de ser apenas comercial, para também ser político e social”, um
critério honesto e objetivo de aferição teria de reconhecer que o Mercosul é, sempre foi,
um tratado de integração comercial, e é isso que o define como instrumento de criação
de um espaço econômico comum no cone sul. O Mercosul está mais próximo, hoje, das
metas fixadas institucionalmente no Tratado de Assunção em 1991? Ou seja, de um
mercado comum? Sequer uma união aduaneira completa ou uma zona de livre comércio
acabada foram realizadas; ao contrário, a convergência interna diminuiu, para não dizer
que as divergências de política comercial, mas também em outras políticas setoriais, só
fizeram aumentar ao longo dos últimos doze anos. O Mercosul é hoje uma sombra do
que foi, e não se pode pretender que a adesão política de países tão pouco propensos ao
livre comércio, como a Venezuela, a Bolívia e o Equador, o fará mais forte em seus
objetivos essenciais, que continuam sendo aqueles estipulados no artigo 1o do TA.
Quanto ao assento permanente no CSNU, é óbvio que a reforma da Carta das
Nações Unidas e a ampliação do seu órgão de segurança não dependiam da postura
assumida pelo Brasil, num processo tão complexo quanto a ascensão e declínio de
novos atores nos cenários geopolíticos mundiais. Mas o ativismo da diplomacia lulista
pode ter contribuído, também, para o acirramento da rigidez oposicionista de outros
atores regionais, a começar pela própria Argentina, preocupação sempre mantida pela
anterior diplomacia – a de FHC – para não causar, justamente, desacertos públicos
numa questão que merecia iniciativas mais discretas e profissionais. Tampouco o
terceiro objetivo dependia da capacidade negociadora do Brasil, ou mesmo de seus
muitos aliados no sistema de comércio internacional, mas não houve, nesse terreno,
24
realismo suficiente para atuar nas duas vertentes: a do multilateralismo do sistema de
comércio regido pela OMC, e o minilateralismo dos blocos e acordos comerciais de
menor amplitude geográfica, e mais suscetíveis de serem implementados de modo mais
rápido e com objetivos práticos mais bem definidos, ainda que mais limitados.
Quando o governo Dilma assumiu, porém, esses dois últimos objetivos já
estavam praticamente “congelados”, e não cabiam mais iniciativas nesses dois terrenos.
Mas a via do minilateralismo comercial continuava sempre aberta para novas iniciativas
brasileiras, muito embora o Mercosul pudesse ser, como é, de fato, uma espécie de
“pedra no sapato” para a busca de acordos comerciais regionais. Não que o Mercosul
possa ser infenso a acordos de liberalização comercial com outros países e blocos
comerciais, mas é que a postura de alguns de seus sócios – nomeadamente a da
Argentina – tem dificultado sobremaneira a definição de posições comuns para permitir
o avanço em negociações desse tipo. Não se espera, a esse respeito, que o ingresso
político dos novos associados bolivarianos venha a facilitar as coisas nesse terreno,
muito pelo contrário: as perspectivas, portanto, são as de um Mercosul paralisado e
introvertido, situação já configurada a partir do neoprotecionismo demonstrado pelos
países membros a partir da crise de 2008 (na Argentina desde sempre) e que promete
continuar vigente caso não ocorra uma mudança radical na política comercial.
Esta é, portanto, a avaliação que se pode fazer da política externa dos governos
lulo-petistas, mas exclusivamente em relação aos objetivos diplomáticos estabelecidos
pelo próprio chefe de Estado e seu chanceler, ao início do regime companheiro. Não é
preciso, aqui, fazer menção a diversos outros elementos de continuidade, igualmente
nítidos entre um governo e outro, e que tem a ver mais com a diplomacia partidária do
que com opções de política externa que pudessem representar itens de uma agenda
“normal” das relações exteriores do Brasil. Alguns casos podem servir de ilustração.

O lado obscuro da política externa companheira


O apoio incondicional a algumas das piores ditaduras do continente, e alhures,
por exemplo, não figuraria na “agenda normal” do Itamaraty, em circunstâncias
“normais” da política externa. O apoio irrestrito a vários candidatos tidos por
progressistas, ou de esquerda, na região e fora dela, foi outra iniciativa que rompeu
tradições bem assentadas no Itamaraty, e até alguns princípios constitucionais muito
claros da tradição brasileira, como a não intervenção nos assuntos internos de outros
países. Como explicar de outro modo, senão por uma diplomacia totalmente partidária,
25
e ideologicamente comprometida com o chavismo militante, o envolvimento no caso da
crise política em Honduras?
Como justificar o apoio repetido, continuado e incondicional, ao regime
chavista, e a seu sucessor, em face de tantas violações às cláusulas democráticas da
OEA e do próprio Mercosul? Como explicar a existência de empréstimos secretos
bilionários, e todos os tipos de apoio financeiro, à mais velha ditadura do hemisfério
americano, senão pelo comprometimento de vários membros do partido hegemônico
com a filosofia e a história de um regime que encarna as piores violações dos direitos
humanos e dos princípios democráticos na região? Em quais circunstâncias, exatamente,
o Paraguai foi suspenso do Mercosul – contrariamente, aliás, aos procedimentos
determinados pela própria cláusula democrático do bloco – e admitida a Venezuela no
intervalo? O Itamaraty foi acatado em seus pareceres jurídicos e em sua análise política?
Estes são elementos que também devem entrar em qualquer avaliação que se
faça da política externa seguida nos últimos doze anos, fruto de uma diplomacia
marcada pelas opções partidárias mais exacerbadas que foram dadas contemplar por um
Itamaraty basicamente profissional, em toda a sua história, mas que foi submetido aos
novos objetivos e opções do regime companheiro. Se houve alguma novidade na
diplomacia do terceiro mandato do regime lulo-petista foi a perda da pirotecnia anterior
que era garantida pelo próprio chefe de Estado, com seu estilo peculiar de conduzir as
relações exteriores do Brasil: diminuíram o ativismo, as iniciativas, e a diplomacia dita
presidencial assumiu contornos mais discretos; mas não se podem apontar elementos
realmente novos nessa política externa. O que houve de novidade, como o ingresso
“pleno” da Venezuela no Mercosul, por exemplo, já estava embutido nas propostas do
governo anterior, cujas principais iniciativas diplomáticas – como as reuniões de cúpula
entre chefes de Estado e de governo da América do Sul, por um lado, e seus
contrapartes da África, e dos países árabes, de outro – ficaram mais ou menos
“congeladas”, ou pelo menos sofreram sensível redução em seu ímpeto.

O Itamaraty foi ignorado pela presidência na gestão de 2011 a 2014?


Não se pode ignorar simplesmente um ministério que conduz uma agenda
relevante nas políticas públicas do país. Talvez essa impressão seja o reflexo do modo
de ser da presidente, que também não parece se relacionar muito bem com os líderes
congressuais, com os representantes partidários, com empresários e líderes sindicais e
26
de movimentos populares, como fazia, por exemplo, e com grande sucesso, seu
antecessor. São traços de personalidade que definem toda uma gestão, e não apenas o
relacionamento com o Itamaraty. Provavelmente uma menor empatia pelos temas
internacionais tenha gerado essa imagem de um distanciamento entre a presidente e o
Itamaraty, e claramente não havia, nunca houve, entre ela e seus dois chanceleres, o
mesmo tipo de intimidade que ela pode ter exibido em relação a alguns de seus
ministros mais próximos. Mas deve-se levar em conta, também, o fato de que a
presidente nunca foi uma petista “fundadora”, e não parece ter gozado das mesmas
alavancas de apoio no partido de que dispunham alguns companheiros “históricos”. Ou
seja, outros ministérios setoriais podem também ter se ressentido do mesmo tratamento
“distante” registrado, provavelmente, no caso do Itamaraty.
Para saber se o Itamaraty foi realmente “ignorado” seria preciso fazer um
levantamento preciso, primeiro, das dotações orçamentárias, e de sua distribuição e
evolução ao longo deste mandato, depois dos compromissos inscritos na agenda do
Itamaraty que a presidente eventualmente desdenhou ou não pretendeu assumir. Apenas
a partir de uma avaliação objetiva desse tipo seria possível defender a tese explicitada
na questão, a de que o Itamaraty foi “ignorado” na gestão Dilma. Em relação aos
recentes cortes de verbas, aparentemente lineares e válidos para todos os ministérios,
seria preciso saber se eles foram mais profundos no caso do Itamaraty do que nos
demais órgãos da administração direta. Registre-se que o Itamaraty possui um perfil de
gastos bastante modesto no conjunto da administração pública, mas que a maior parte
deles é quase rígida, pois que correspondendo a compromissos e obrigações externas
que não podem ser suprimidos ou reduzidos facilmente, sem mencionar o fator cambial,
que pode ser muito negativo em caso de desvalorização da moeda nacional.
Caberia também considerar que os dois mandatos anteriores foram tão vistosos,
tão resplandecentes, tão eloquentes em matéria de política externa e de diplomacia, que
seria muito difícil, senão impossível, tentar estabelecer uma postura equivalente em
qualquer outro governo, passado, presente ou futuro. Nunca antes na história do Brasil
tivemos um presidente tão eloquente, tão verborrágico, tão envolvido em questões
internacionais, talvez por gosto, mais provavelmente por alguma obsessão de fundo
psicológico, alguma necessidade de afirmação, desejo de ganhar algum Prêmio Nobel –
ao lado das dezenas de doutorados honoris causae jamais acumulados por qualquer
outro político na face da Terra – ou outros sentimentos ainda mais obscuros para nossa
condição de simples observadores da diplomacia lulista. Frente a ela, todas as demais se
27
apagam em sua normalidade ou mediocridade: este é um fato da história política recente
do Brasil, independentemente do julgamento que se faça sobre o conteúdo daquela
diplomacia e da avaliação objetiva que se tenha quanto aos resultados (ou falta de) de
sua política externa.
Não obstante, considerados todos esses fatores, é muito provável, sim, que em
função de peculiaridades individuais e pessoais, tenha ocorrido alguma falta de sintonia
entre o Itamaraty e a presidente, inclusive porque existem certos rituais do cerimonial
diplomático, ademais de constrangimentos derivados de situações externas que não
podem ser facilmente administrados por apenas uma das partes, que reforçaram essa
impressão de distanciamento entre a Casa de Rio Branco e a presidente. Pode-se dizer,
em suma, numa linguagem goethiana e weberiana, que nunca existiram suficientes
“afinidades eletivas” entre a presidente e a Casa de Rio Branco, embora isso possa ter
ocorrido com outros presidentes também. Mas, o fato é que, vindo logo após o mais
pirotécnico de todos os nossos presidentes, travestido de diplomata, ficava realmente
difícil igualar certos padrões de comportamento, e até de compostura, no plano das
relações exteriores do Brasil.

Lista seletiva de trabalhos do autor sobre política externa do Brasil:


Nunca Antes na Diplomacia...: A política externa brasileira em tempos não
convencionais (Curitiba: Appris, 2014, p. 289; ISBN: 978-85-8192-429-8; link:
http://www.pralmeida.org/01Livros/2FramesBooks/NuncaAntes2014.html).
“O Brasil e a integração regional, da Alalc à Unasul: algum progresso?”, Mundorama
(11/06/2014; ISSN: 2175-2052; link: http://mundorama.net/2014/06/11/o-brasil-e-
a-integracao-regional-da-alalc-a-unasul-algum-progresso-por-paulo-roberto-de-
almeida/).
“Mercosul, do otimismo à resignação”, Boletim de Economia e Política Internacional
(Ipea: n. 16, jan.-abr. 2014, p. 43-56; ISSN: 2176-9915; link:
http://www.ipea.gov.br/portal/images/stories/PDFs/boletim_internacional/140512_
boletim_internacional016.pdf).
“Rumos adequados à política externa brasileira na próxima década”, blog
Diplomatizzando (link: http://diplomatizzando.blogspot.com/2014/07/rumos-
adequados-politica-externa.html).
“Pensamento diplomático brasileiro: introdução metodológica às ideias e ações de
alguns dos seus representantes”, in: José Vicente Pimentel (org.), Pensamento
Diplomático Brasileiro: Formuladores e Agentes da Política Externa (1750-1964).
(Brasília: FUNAG, 2013, 3 vols.; ISBN: 978-85-7631-462-2; vol. 1, p. 15-38; link:
http://funag.gov.br/loja/download/1057-1058-1059-pensamento-diplomatico-
brasileiro-colecao.epub).
“A diplomacia da era Lula: balanço e avaliação”, Política Externa (vol. 20, n. 3,
dez./jan./fev. 2011-2012, p. 95-114; ISSN: 1518-6660; link:
www.pralmeida.org/05DocsPRA/2344DiplomEraLulaBalRevPolitcaExterna.pdf).
28
Relações internacionais e política externa do Brasil: a diplomacia brasileira no
contexto da globalização (Rio de Janeiro: LTC, 2012, 330 p.; ISBN 978-85-216-
2001-3; http://www.pralmeida.org/01Livros/2FramesBooks/RelaIntPExt2011.html)
“Continuidade e Mudança na Política Externa Brasileira”, Mundorama (1/04/2011; link:
http://mundorama.net/2011/04/01/continuidade-e-mudanca-na-politica-externa-
brasileira-por-paulo-roberto-de-almeida/).
“A diplomacia brasileira numa nova conjuntura política”, Mundorama (29.12.2010;
link: http://mundorama.net/2010/12/29/a-diplomacia-brasileira-numa-nova-
conjuntura-politica-por-paulo-roberto-de-almeida/).
“Never Seen Before in Brazil: Lula’s grand diplomacy”, Revista Brasileira de Política
Internacional (vol. 53, n. 2, 2010, p. 160-177; ISSN: 0034-7329; link:
http://www.scielo.br/pdf/rbpi/v53n2/09.pdf).
“La diplomatie de Lula (2003-2010): une analyse des résultats”, In: Denis Rolland,
Antonio Carlos Lessa (coords.), Relations Internationales du Brésil: Les Chemins
de La Puissance; (Paris: L’Harmattan, 2010, vol. 2: Représentations Globales, p.
249-259; ISBN: 978-2-296-13543-7). Postado no blog Diplomatizzando (link:
http://diplomatizzando.blogspot.com/2010/10/relations-internationales-du-
bresil.html).
“Pensamento e ação da diplomacia de Lula: uma visão crítica”, Política Externa (vol.
19, n. 2, set.-out.-nov. 2010, p. 27-40; ISSN: 1518-6660; link:
http://diplomatizzando.blogspot.com/2010/09/pensamento-e-acao-da-diplomacia-
de-lula.html).
“Lula’s Foreign Policy: Regional and Global Strategies”, In: Werner Baer and Joseph
Love (eds.), Brazil under Lula (New York: Palgrave-Macmillan, 2009, 326 p.;
ISBN: 970-0-230-60816-0; chap. 9; p. 167-183; link:
http://www.pralmeida.org/05DocsPRA/1811BrForPolicyPalgrave2009.pdf).
“A diplomacia do governo Lula em seu primeiro mandato (2003-2006): um balanço e
algumas perspectivas”, Carta Internacional (São Paulo: Nupri-USP, vol. 2, n. 1,
jan-mar 2007, p. 3-10; ISSN: 1413-0904; link:
http://www.pralmeida.org/05DocsPRA/1733DiplomLula1roMandCartaInter2007.p
df).
“¿Una nueva ‘arquitectura’ diplomática? Interpretaciones divergentes sobre la política
exterior del Gobierno Lula (2003-2006)”, Entelequia: revista interdisciplinar (2,
Otoño 2006, p, 21-36; ISSN: 1885-6985; link:
http://www.eumed.net/entelequia/es.art.php?a=02a02);
“A política internacional do PT e a diplomacia do governo Lula”, In: Guilhon de
Albuquerque, José Augusto; Seitenfus, Ricardo; Nabuco de Castro, Sergio
Henrique (orgs.), Sessenta Anos de Política Externa Brasileira (1930-1990) (2. ed.
Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2006, ISBN: 85-7387-909-2; v. I: Crescimento,
Modernização e Política Externa; p. 537-559),
“La politique internationale du Parti des Travailleurs: de la fondation du parti à la
diplomatie du gouvernement Lula”, In: Denis Rolland et Joëlle Chassin (orgs.),
Pour Comprendre le Brésil de Lula (Paris: L’Harmattan, 2004, ISBN: 2-7475-
6749-4; p. 221-238; link:
http://www.pralmeida.org/01Livros/2FramesBooks/73BresilLula.html).
“A política internacional do Partido dos Trabalhadores: da fundação do partido à
diplomacia do governo Lula”, Sociologia e Política (Curitiba: UFPR; n. 20 jun.
2003, p. 87-102; ISSN: 0104-4478; link:
www.scielo.br/scielo.php?script=sci_arttext&pid=S0104-44782003000100008).

29
[Muitos outros materiais, e comentários tópicos, podem ser encontrados, geralmente sob
a rubrica “diplomacia companheira” ou “política externa companheira”, no blog
Diplomatizzando, desde vários anos, onde também tenho registrado os artigos dos
companheiros de viagem do novo pensamento único, os acadêmicos gramscianos.]

2684. “A política externa companheira e a diplomacia partidária: um contraponto aos


gramscianos da academia”, Hartford, 4 outubro 2014, 9 p. Reelaboração das
primeiras duas partes do trabalho 2683. Publicado em Mundorama (4/10/2014;
ISSN: 2175-2052; link: http://mundorama.net/2014/10/04/a-politica-externa-
companheira-e-a-diplomacia-partidaria-um-contraponto-aos-gramscianos-da-
academia-por-paulo-roberto-de-almeida/ ). Relação de Publicados n. 1144.

30
3. Continuidade e mudança na política externa brasileira

Toda política externa, ou toda política governamental, em geral, é feita de


mudanças e continuidades. Talvez a política externa tenha bem mais continuidades do
que mudanças, pela própria natureza do “negócio”: não se muda o sistema de relações
internacionais, a política regional, as relações bilaterais e menos ainda a agenda de
trabalho de grandes organismos internacionais da mesma forma ou com as mesmas
“facilidades” com que se pode imprimir mudanças de direção, algumas até repentinas,
no plano das políticas domésticas.
Partindo, portanto, do pressuposto de que as continuidades são mais frequentes
do que as mudanças, podemos, talvez até mais facilmente, detectar mudanças de ritmo,
de estilo e até de orientação na política externa de um estado emergente como o Brasil.
Vendo o mundo como uma ordem em transição, o Brasil está interessado, justamente,
na mudança de padrões nas relações internacionais, que sejam suscetíveis de acomodar
suas novas pretensões ou seus pleitos quanto ao estabelecimento de uma nova agenda
mundial e quanto ao funcionamento desse sistema, ou seja, no quadro de medidas
operacionais.
As primeiras mudanças que podemos detectar, entre a diplomacia de Lula e a de
Dilma se situam, obviamente, no plano do estilo, já que ninguém saberia, nem poderia,
imitar, ou mimetizar, o estilo inigualável do ex-presidente, qualquer que seja o
julgamento que se faça sobre as suas qualidades de chefe de Estado, de governo e de
condutor da diplomacia brasileira. Fosse outro o governo, ou fosse outro o chefe de

31
Estado, muitos dossiês internacionais poderiam estar sendo conduzidos pelo chefe da
chancelaria ou pela burocracia normal do Ministério das Relações Exteriores.
O ex-presidente se envolvia pessoalmente na condução, e até na definição de
posições negociadoras, em vários dos mais importantes assuntos da diplomacia oficial, a
começar pela política regional, as questões da integração, a presença do Brasil em
diversos foros, ou fóruns internacionais – a diplomacia dos Gs: G3, G4, Brics, o G20
financeiro e vários outros – sem esquecer as muitas visitas bilaterais e encontros
regionais (como os com dirigentes sul-americanos e destes com os africanos e árabes).
É previsível que a presidente Dilma conduza os assuntos externos bem mais através da
própria chancelaria, o que já constitui uma mudança substantiva. Essa mesma
conformação permitirá restaurar a unidade da formulação e implementação da política
externa, anteriormente fragmentada numa espécie de tríade constituída pelo assessor
especial da presidência em assuntos internacionais, pelo secretário-geral das relações
exteriores e pelo próprio chanceler. Já se trata, portanto, de uma grande mudança.
No plano da forma, mas isto também tem a ver com a substância, outras são as
prioridades e outro é o estilo da presidente Dilma Rousseff, a começar pelas suas
preocupações naturais com a política interna e com a economia doméstica, inclusive
porque a herança de problemas deixada pelo ex-presidente é pesada, sobretudo em
termos de gastos públicos e a consequente deterioração orçamentária, a aceleração
inflacionária em função da expansão exagerada do crédito (privado e público), a
diminuição do superávit primário e as inúmeras maquiagens contábeis feitas em 2010
para mistificar o crescimento da dívida pública, entre outros legados negativos da
presidência Lula.
Mas, formada a base parlamentar do governo, para assegurar boas condições de
governança interna, e anunciados os cortes orçamentários e outras medidas de ajuste
para combater a inflação, o governo Dilma pode então dedicar uma parte dos seus
esforços a questões de política externa. Ela o fez, aliás, ainda antes de tomar posse, pois
sua primeira entrevista à imprensa foi concedida ao jornal Washington Post, em
novembro de 2010, quando ela justamente se distancia da política de direitos humanos
do governo Lula ao declarar sua total contrariedade com o apoio que o Brasil concedia,
então, ao Irã, país considerado um violador contumaz dos direitos humanos de seus
cidadãos. Dilma, na verdade, se pronunciou especificamente a respeito do possível, até
provável naquela ocasião, apedrejamento da iraniana Sakineh Ashtiani, possibilidade
que a presidente eleita considerou, com razão, um ato bárbaro, contrário a qualquer
32
sentido de humanidade e de padrões civilizacionais. No fundo, ela estava condenando,
sem o dizer, a proximidade e até o apoio da diplomacia lulista em relação a algumas das
piores ditaduras remanescentes no mundo contemporâneo.
Esse é, pode-se dizer, a principal diferença, ou inovação diplomática, do
governo Dilma em relação ao governo Lula, postura confirmada recentemente quando o
governo brasileiro votou a favor do envio de um consultor em matéria de direitos
humanos para investigar violações no Irã, objeto de decisão específica, para imenso
desprazer dos iranianos, no Conselho dos Direitos Humanos da ONU em Genebra. O
desprazer iraniano já tinha sido criado com o convite formulado anteriormente à Prêmio
Nobel iraniana, advogada de direitos humanos, Shirin Ebadi, para almoçar na
Residência da delegação do Brasil para assuntos de direitos humanos, inaugurando,
portanto, um diálogo oficial do governo brasileiro com a oposição política ao atual
governo do Irã, em total contraposição às posições favoráveis exibidas pelo governo
precedente, ou pelo menos pelo presidente Lula e pelo seu chanceler.
A outra inovação é, obviamente, observada no relacionamento com os EUA e
em temas da agenda multilateral que possuem uma grande interface com a política dos
EUA, como nos recentes episódios envolvendo a guerra civil na Líbia e questões de
natureza econômica envolvendo comércio, moedas e a China. Existe uma evidente boa
vontade e até iniciativas concretas para melhorar o diálogo e o relacionamento com os
EUA, em outro claro sinal de distinção vis-à-vis a política externa do trio Garcia-
Guimarães-Amorim sob a orientação geral do Supremo Guia. A intenção, manifestada
explicitamente pela presidente e seu chanceler, era a de criar novos espaços de
cooperação entre o Brasil e os EUA, podendo incluir até a revisão do processo de
compra de novos caças para a FAB e outros áreas de interesse mútuo no comércio,
investimentos, energia, G20, etc. Depois da visita do presidente Obama – considerada
um sucesso mesmo sem grandes resultados aparentes, pelo simples fato de se ter
realizado antes de passados três meses da posse da presidente Dilma, segundo o
chanceler – a presidente Dilma teria veiculado – a crer em matéria da Folha de S. Paulo
do dia 28 de março de 2011, a partir de fontes autorizadas do Palácio do Planalto – seu
descontentamento com o excesso de simbolismo e a pouca substância como resultado
desse encontro. A presidente gostaria, ao que parece, de uma “diplomacia de
resultados”, uma expressão que esteve identificada, pela primeira vez, com um
chanceler que era um empresário: Olavo Setubal, chanceler escolhido pelo presidente

33
não-empossado Tancredo Neves, e que ficou dois anos sob o vice-presidente empossado
presidente José Sarney, em 1986 e 1986.
O outro sinal de distanciamento, ainda a ser confirmado, seria na relação com a
China, potência com a qual o governo anterior entreteve diversas ilusões de aliança
estratégica, declarando-se a favor do reconhecimento desse país como economia de
mercado e esperando receber dela apoio para suas pretensões exageradas a um grande
papel internacional, a começar pela reforma da Carta da ONU e a inclusão do Brasil
como membro permanente do Conselho de Segurança das Nações Unidas. A presidente
Dilma estaria descontente, ao que parece, mas aqui pressionada pelos industriais
brasileiros, com o papel reservado pela China ao Brasil, de simples provedor de
matérias primas e de grande mercado para suas manufaturas baratas, que estão
competindo fortemente com equivalentes brasileiros não apenas no plano doméstico
mas também em terceiros mercados, especialmente na América Latina. Mas ainda
temos de aguardar a visita a ser feita pela presidente à China, ainda agora em abril,
inclusive para reunião dos Brics, que passou a incluir a África do Sul, com o total apoio
da China e para desconforto do Brasil, que pretendia manter separadas as agendas do
Ibas e dos Brics.
Também ainda resta esperar pelos testes da nova política externa no contexto
regional, campo por excelência do que tinha sido designado, na gestão anterior, de
exercício de liderança brasileira, para grande desconforto dos profissionais do
Itamaraty. Este talvez seja o elemento crucial a fornecer elementos mais concretos para
se avaliar se a diplomacia de Dilma se distingue, ou não, da diplomacia de Lula. No
contexto regional, todo o empenho dos auxiliares diplomáticos de Lula se exerceu no
sentido de afastar os sul-americanos do império e afastar o império dos assuntos latino-
americanos. O esforço começou pela implosão da Alca, bem sucedido, aliás, e em torno
da qual seus autores se orgulharam pelo mérito da obra.
O processo continuou pela constituição de agrupamentos políticos claramente
autônomos em relação aos vetores de influência imperiais na região, quando não em
oposição à presença americana no continente sul-americano. Esse foi o sentido da
constituição da Comunidade Sul-Americana de Nações, criada por iniciativa do Brasil
numa reunião de cúpula ocorrida em Cuzco, no Peru, em dezembro de 2004, à qual, por
sinal, não compareceu nenhum dos demais dirigentes do Mercosul. O Brasil ofereceu o
Rio de Janeiro para sediar o que seria um secretariado da Casa, no que não foi seguido
pelos demais países da região, que se empenharam em encontrar substitutivos ao projeto
34
brasileiro. A Casa foi substituída em 2008 pela Unasul, com sede em Quito, como
proposto pelo presidente Chávez. Pode-se dizer que a Unasul constitui uma
continuidade apenas parcial do primeiro projeto de integração sul-americana proposto
pelo Brasil, mas que hoje escapa largamente ao seu controle. Em todo caso,
diferentemente da IIRSA, que constituía um projeto de integração física do continente,
proposto pelo Brasil na primeira reunião de chefes de Estado e de governo da América
do Sul, em 2000 – que por ter sido iniciado por Fernando Henrique Cardoso foi
descontinuado parcialmente – a Unasul ainda não conseguiu dar continuidade à carteira
de projetos desenhados pelo BID nos mais diversos campos da infraestrutura: energia,
comunicações, transportes, etc.
Onde também ocorreu descontinuidade na agenda da política externa herdada
pelo governo Lula de FHC foi na área reputada estratégica e prioritária por ambos
governos: o processo de integração sob a égide do Mercosul. Sua vertente econômica e
comercial, que constitui o cerne mesmo do processo, ficou praticamente intocada, ou
talvez tenha até retrocedido, a partir das inúmeras salvaguardas abusivas e ilegais
introduzidas pelo governo argentino contra produtos manufaturados brasileiros, em total
contradição com o espírito e a letra do Tratado de Assunção, e com a complacência
leniente demonstrada pelo governo brasileiro. Em seu lugar, foram impulsionadas as
vertentes políticas e sociais da integração, que podem até ser interessantes em seu
mérito próprio, mas não constituem propriamente uma base sólida sobre a qual ancorar
a integração.
Pois bem: ainda não se sabe, aqui, se haverá continuidade na mesma política de
“compreensão generosa” com as violações argentinas dos seus compromissos sob o
Tratado de Assunção ou se o governo Dilma seguirá uma política de defesa da
legalidade e de conformidade com os engajamentos assumidos no quadro dos diversos
protocolos de integração assinados pelos quatro países membros. O ingresso da
Venezuela poderá constituir um teste, já que o país andino liderado pelo coronel
socialista ainda não atendeu aos requisitos básicos do processo de integração, que são a
internalização da Tarifa Externa Comum do Mercosul e a aceitação das demais regras
de política comercial.
Por outro lado, ainda é cedo para dizer como se desenvolverão as relações com a
Bolívia e o Paraguai, dois países que pretendem extrair mais vantagens econômicas e
financeiras de suas relações com o Brasil, ambas no terreno energético. Tampouco se
pode avançar agora o grau de continuidade que será exercido em torno de uma das
35
principais insistências do governo Lula no plano multilateral: a conquista de uma
cadeira permanente no Conselho de Segurança. O bom senso recomendaria uma
mudança de ênfase nesse capítulo, já que se imagina que, se e quando houver reforma
da Carta da ONU, o Brasil desponta, desde já, como candidato natural ao cargo,
independentemente de qualquer ação mais militante.
Aliás, muitas das mudanças registradas recentemente na política externa
obedecem a simples regras de bom senso: determinadas posições anteriores, como o
apoio a ditadores e suas violações de direitos humanos, se chocavam tão frontalmente
com as tradições diplomáticas nessa área, e até com a Constituição brasileira, que
bastava aplicar o bom senso para restabelecer a dignidade perdida. Ocorreu aqui,
portanto, uma mudança para restabelecer a continuidade com a situação anterior à
politização e partidarização da diplomacia brasileira: certas rupturas são bem vindas,
mesmo quando se pretende retornar ao passado de profissionalismo pelo qual sempre
foi conhecido o Itamaraty.
Finalmente, o que deve ser visto também como uma mudança para assegurar a
continuidade é o restabelecimento da unidade conceitual e operacional da política
externa, antes fragmentada e dividida entre diversos atores, formuladores e executores,
agora aparentemente retomando seu leito natural, de unidade de comando, uniformidade
de propósitos, homogeneidade na execução. Previsibilidade, credibilidade, estabilidade
e legitimidade são condições e elementos importantes para a qualidade de qualquer
diplomacia, desde sua fase de concepção e planejamento, até o momento de sua
execução e implementação. Certas mudanças são a melhor garantia de continuidade, ou
vice-versa.

2259. “Continuidade e Mudança na Política Externa Brasileira”, Brasília, 31 março


2011, 6 p. Texto de palestra na Universidade Tuiuti, do Paraná, abertura do curso
de pós-graduação em relações internacionais, em 1o. de Abril de 2011. Blog
Diplomatizzando (http://diplomatizzando.blogspot.com/2011/04/continuidade-e-
mudanca-na-politica.html). Mundorama (1/04/2011; link:
http://mundorama.net/2011/04/01/continuidade-e-mudanca-na-politica-externa-
brasileira-por-paulo-roberto-de-almeida/). Refeito em 31/05/2011, em formato
reduzido, sob o título de “A diplomacia brasileira em mutação”; Via Política
(13/07/2011); Dom Total (14/07/2011; link:
http://www.domtotal.com/colunas/detalhes.php?artId=2088). Relação de
Publicados n. 1024.

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4. A diplomacia brasileira numa nova conjuntura política

A crer nas declarações, após o 31 de outubro de 2010, do presidente Lula,


responsável inquestionável pela vitória eleitoral da candidata oficial Dilma Rousseff, o
novo governo será constituído e conduzido à imagem e semelhança da presidente eleita.
Ele também negou que vá ter, pessoalmente, qualquer influência sobre as decisões de
governo a partir de 2011. A despeito dessas declarações, é provável que o novo governo
conserve, grosso modo, as grandes linhas seguidas durante os dois mandatos do
presidente Lula, o que foi aliás confirmado pela candidata eleita, que pautou sua
campanha como estando marcada pela continuidade das mudanças empreendidas desde
2003. A rigor, a afirmação vale tanto para a economia e para as políticas sociais, que
respondem por grande parte do sucesso do mandato que se encerra, quanto para a
política internacional do Brasil e suas relações diplomáticas, de modo geral, terreno no
qual as avaliações são mais circunspectas.
Partindo, justamente, do pressuposto de que a base política do novo governo se
manteve, e até se reforçou, como resultado das eleições de outubro de 2010, bem como
da possibilidade de que o principal artífice pela vitória de Dilma nestas eleições
pretenda, em função de projetos políticos futuros, manter-se ativo no “mercado de
consultoria presidencial”, é possível, assim, vê-lo articulando contatos e iniciativas que
compreendam a frente interna, mas que também alcancem, de algum modo, a esfera
diplomática. Independentemente, porém, desse tipo de interface operacional,
aparentemente inevitável nas circunstâncias que cercaram o mais recente escrutínio

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presidencial – a mais de um título inédito na história política nacional –, a força do
cargo, quando assumido plenamente, e características pessoais ligadas a cada uma das
personalidades citadas, fazem com que se venha a assistir, necessariamente, um cenário
bastante diferente daquele registrado nos últimos oito anos.
Peculiaridades especiais na forma de conduzir os assuntos de Estado, seja na
frente interna, seja no âmbito externo, assim como simbologias ligadas a histórias de
vida diferentes, sustentam o diferencial que pronto se observará. Dificilmente se poderá
reproduzir, por exemplo, o protagonismo de Lula nos foros internacionais e nas relações
bilaterais (em especial na África), assim como não se deve assistir novamente às suas
formas especiais de interlocução, mais baseadas no instinto e no gosto da improvisação,
do que propriamente no seguimento dos cânones burocráticos tradicionalmente ligados
à figura presidencial. Assim, mesmo deixando de lado escolhas funcionais quanto ao
novo titular da chancelaria – se de carreira ou não, de um ou outro gênero, como
especulado abundantemente na imprensa – o mais provável é que a nova presidente
imprima suas preferências pessoais e suas prioridades políticas à diplomacia que lhe
caberá comandar a partir de 1o. de janeiro de 2011. Nessa área, porém, o peso da
continuidade costuma ser maior do que no campo das políticas internas, inclusive
porque a agenda vem em grande parte “pronta” do exterior. Alguns temas encontram-se
inclusive na ordem do dia, como é sempre o caso nesse tipo de atividade, a exemplo dos
que serão examinados a seguir.
Das três grandes prioridades do governo Lula na frente diplomática, não se pode
dizer que alguma tenha sido encaminhada a seu termo lógico ou a resultados exitosos do
ponto de vista do Brasil: o ingresso do Brasil no Conselho de Segurança das Nações
Unidas, por exemplo, encontra-se no terrenos das possibilidades difusas, e assim
promete permanecer no futuro indefinido, ainda que o status do Brasil, como ator de
relevo no cenário internacional, seja hoje amplamente reconhecido; as negociações
comerciais multilaterais, por sua vez, devem se arrastar penosamente por pelo menos
mais um ano inteiro, completando assim um ciclo frustrante de dez anos de
tergiversações, mas sempre com o ativo envolvimento do Brasil em todas as fases e
configurações negociadoras; a integração sul-americana, finalmente, caminha num
ritmo ambíguo, com muitas iniciativas no plano político, mas resultados menos seguros
nos terrenos econômico e comercial (que deveriam ser, aliás, a base da integração).
Todos esses temas serão retomados pela nova administração, que talvez queira imprimir
novas características às demandas e ofertas brasileiras nos diferentes capítulos e frentes
38
de negociação. Vários dos itens na agenda, não dependem, a rigor, da postura brasileira,
já que cada um deles, em seus contextos respectivos, carregam o peso de interesses
muito diversificados por parte dos principais parceiros envolvidos.
No plano da governança global, os avanços continuam sendo muito lentos ou
frustrantes: meio ambiente, coordenação econômica internacional, segurança e
terrorismo, constituem, por sinal, temas que transcendem a tradicional postura Norte-
Sul, que, segundo certas visões maniqueístas, dividiria o mundo em países
desenvolvidos, de um lado, e em desenvolvimento, do outro. Não se pode dizer, assim,
que a ênfase na diplomacia Sul-Sul que caracterizou o governo Lula tenha as respostas e
o formato adequados ao encaminhamento de todos esses temas inscritos na ordem do
dia das negociações internacionais, tanto porque alguns dos supostos aliados na causa
do desenvolvimento podem perfeitamente exibir posturas protecionistas e
subvencionistas que confrontam diretamente nossos interesses exportadores agrícolas,
entre outros exemplos. Assim, algum pragmatismo na formação de coalizões
negociadoras é sempre recomendável.
Em temas como o da integração regional, qualquer observador isento pode
constatar a imensa distância que existe entre um modelo tradicional de liberalização
comercial e de abertura econômica – que deveria situar-se, lógica e necessariamente, na
base de qualquer processo “normal” de integração baseado em clássicas vantagens
ricardianas – e um outro “modelo”, de caráter mercantilista, dirigista, estatizante e
politizado, avesso ao capital estrangeiro e aos sistemas de mercados, como o que vem
sendo impulsionado por alguns países na região. Assim, dificilmente se poderá dizer
que o Mercosul sairá reforçado ou dotado de maior coerência intrínseca ao integrar
novos membros que de fato perseguem um modelo situado nas antípodas do que se
entende normalmente por integração econômica.
Em temas essencialmente políticos, talvez se tenha, igualmente, de proceder a
uma revisão de conceitos, a partir de questionamentos que surgiram quanto à postura
brasileira em matéria de direitos humanos, por exemplo. Observadores da área, em geral
representantes de ONGs humanitárias, não deixaram de observar – e alguns
interlocutores até a questionar concretamente votos brasileiros nos foros pertinentes – a
mudança de postura do Brasil em diversas ocasiões que envolveram resoluções críticas
em relação a países reconhecidamente violadores dos direitos humanos, a pretexto de
“não politização” desses temas e de uma preferência pelo “diálogo direto”. Causou
especial constrangimento, nessas áreas, visitas e palavras amigáveis dirigidas pelo
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presidente Lula a dirigentes desses países, que são os mais visados pela comunidade
internacional envolvida na proteção dos direitos humanos e na defesa das liberdades
democráticas de maneira geral.
Em qualquer hipótese, a presença do Brasil cresceu enormemente no cenário
internacional nesses anos de intenso protagonismo político e de uma ativa diplomacia
presidencial, a um ritmo que talvez seja difícil de manter para personalidades menos
carismáticas ou menos suscetíveis de manter a credibilidade nacional em situações de
ambiguidade em face dessas questões de direitos humanos ou de clara seletividade no
tratamento do princípio de não-intervenção. Amizades ostensivas com personalidades
autoritárias e relações políticas com países vistos com desconfiança pela comunidade
internacional – geralmente pelas mesmas razões, acima apontadas, que preocupam
entidades voltadas para os direitos humanos e as liberdades democráticas – podem até
se inscrever na lógica política de partidos cujos instintos primários se situem nessa
tradição filosófica antidemocrática, mas certamente não contribuem para elevar a
reputação moral de um país ou de seus dirigentes.
Finalmente, a questão das parcerias seletivas certamente ganharia em ser vista
menos do lado do anti-hegemonismo instintivo, com alguns laivos de anti-imperialismo
démodé, e mais pelo lado pragmático dos benefícios que possa trazer uma cooperação
bilateral fundada em critérios de excelência, independentemente de suas coordenadas
geográficas. Para todos os efeitos práticos, fases de transição política são sempre
carregadas de incerteza quanto ao itinerário futuro, mas nunca se pode excluir boas
surpresas com base na renovação de quadros e de políticas.

2226. “A diplomacia brasileira numa nova conjuntura política”, Brasília, 26 novembro


2010, 4 p. Artigo para sobre a possível diplomacia do governo que toma posse em 1
de janeiro de 2011. Preparado para o Boletim ADB mas retirado pela sinceridade
das críticas. Publicado em Mundorama (29.12.2010; link:
http://mundorama.net/2010/12/29/a-diplomacia-brasileira-numa-nova-conjuntura-
politica-por-paulo-roberto-de-
almeida/?utm_source=feedburner&utm_medium=email&utm_campaign=Feed:+M
undorama+(Mundorama)). Relação de Publicados n. 1012.

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5. O Brasil e a integração regional, da Alalc à Unasul: algum
progresso?

Sistema multilateral de comércio e esquemas de integração: quão compatíveis?


O sistema multilateral de comércio contemporâneo, teoricamente administrado
pela Organização Mundial de Comércio (OMC), convive, na prática, com dezenas, mais
exatamente centenas de acordos bilaterais ou plurilaterais de comércio preferencial
(estes bem mais numerosos), de zonas de livre comércio (relativamente comuns,
atualmente), de uniões aduaneiras (poucas) ou de mercado comum (de fato apenas um, a
União Europeia, embora vários outros pretendam sê-lo, sem de verdade conseguir). O
Brasil participa, cronologicamente, de uma área de comércio preferencial – a
Associação Latino-Americana de Integração (Aladi), criada em 1980 para substituir
uma anterior tentativa frustrada de livre comércio, a Alalc, fundada em 1960 – e de uma
“união aduaneira em implementação”, o Mercosul, criado em 1991 para tornar-se um
mercado comum em quatro anos, mas que não conseguiu completar sua zona de livre
comércio e que sequer conseguiu fazer funcionar de modo adequado os requerimentos
básicos de sua união aduaneira, que seria a efetiva aplicação da Tarifa Externa Comum
e uma atuação conjunta dos membros com sentido convergente em torno de uma
política comercial uniforme. O Mercosul integra, teoricamente, a Aladi.
Muitos outros esquemas regionais ou sub-regionais de integração surgiram,

41
sobreviveram ou estagnaram no curso do último meio século, entre os quais o Grupo
Andino (1969), oportunamente convertido na Comunidade Andina de Nações (CAN).
Ela pode ser, também teoricamente, considerada uma experiência de união aduaneira –
na verdade, tentativamente de mercado comum – que tampouco realizou seus objetivos.
Existem diversos acordos preferenciais ou de associação que vinculam o Brasil e o
Mercosul a países da CAN, a começar por diferentes acordos de alcance parcial (AAPs),
ou de complementação econômica (ACEs) contraídos no âmbito da Aladi, embora todos
eles tenham um escopo menos ambicioso – pela cobertura aduaneira e pelo grau de
liberalização tarifária – do que seria no caso da existência de um único acordo de livre
comércio, plenamente operacional, entre os dois blocos de integração.
Em todo caso, a intensidade de comércio entre o Brasil e o Mercosul e os demais
países da CAN, enquanto grupo (menos efetivo) ou individualmente, é bem maior,
devido a fatores de proximidade geográfica e de laços historicamente consolidados, do
que os tênues laços existentes entre o Brasil, de um lado, e países da Comunidade dos
Estados do Caribe (Caricom) ou do Sistema de Integração Centro-Americano (Sica), de
outro. O Brasil não está presente nesses dois blocos, tanto por razões de distanciamento
físico, da penúria de vínculos diretos de transporte, quanto da falta de tradição no
estabelecimento de acordos comerciais, inclusive porque o funcionamento do Mercosul
demandaria negociações conjuntas entre os dois blocos (e não é seguro de que se
poderia contar com perfeita unanimidade de visões e intenções em cada um deles).
A existência desses blocos, ou mesmo de acordos não perfeitamente funcionais,
poderia, sempre teoricamente, ser positiva para o Brasil, para o Mercosul, e para o
próprio sistema multilateral de comércio regido da OMC, desde que todos eles fossem
guiados pelo espírito do chamado “regionalismo aberto”, ou seja, de acordos de tipo
preferencial mas que ainda assim preservem os princípios básicos dos entendimentos
relativos às zonas de livre comércio ou união aduaneiras consagrados nos textos
fundacionais (Artigo 24 do Gatt-1947), nos entendimentos posteriores (Parte IV do
Gatt, de 1964, cláusula de habilitação da Rodada Tóquio, de 1979) e no memorando de
entendimento sobre o Artigo 24 resultante da Rodada Uruguai (de 1993). Cabe, de fato,
a expressão teoricamente, uma vez que muitos desses acordos, mesmo os simples
esquemas de comércio preferencial podem ser discriminatórios em relação a terceiras
partes, ou seja, países e territórios aduaneiros não membros.
A tensão inerente aos princípios potencialmente liberais do sistema multilateral
de comércio e a seus próprios dispositivos de exceção (artigo 24 e subsequentes), que
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permitem fazer discriminação contra os não membros de acordos preferenciais, está
presente desde o início do Gatt, e de fato, historicamente, desde os primeiros acordos
consagrando versões limitadas da velha cláusula de nação mais favorecida. Com o
surgimento do Gatt, e a versão ilimitada e incondicional de nação mais favorecida,
diminuíram as chances de tratamentos especialmente discriminatórios, mas não resta
dúvida de que a possibilidade permanece, senão sobre a base de princípios e regras
consolidados nos instrumentos existentes, pelo menos na prática, dada a existência de
dispositivos especiais que abrem espaço algum tipo de discriminação comercial.

Em que medida os esquemas sub-regionais de integração afetam o Brasil?


O Brasil, ou o Mercosul, não é tão afetado pela existência de acordos como os
do Caricom, do Sica ou da CAN, quanto pela existência em paralelo de acordos
bilaterais ou plurilaterais que estes blocos, ou seus países individualmente, possam ter
contraído ou manter com parceiros mais poderosos, como os Estados Unidos e a União
Europeia. O comércio interno aos blocos regionais pode ser, ou não, importante em
termos de volume, o que depende mais do grau de complementaridade entre as
economias nacionais do que propriamente dos acordos formais existentes: esquemas de
livre comércio bilaterais (mantidos com aqueles dois grandes parceiros) ou plurilaterais
(como o Nafta, por exemplo) conseguem ser mais abrangentes do que os esquemas
puramente intrarregionais.
Com efeito, o comércio recíproco entre os países membros desses blocos não é
provavelmente tão importante – com algumas exceções – quanto os intercâmbios,
regulados ou não por algum acordo comercial, mantidos com parceiros mais poderosos.
Todos esses países, ou quase todos – no caso do Caricom, todos eles; nos casos do Sica
e da CAN, existem exclusões – mantém acordos preferenciais, de associação ou de livre
comércio com os Estados Unidos e com a União Europeia, com dispositivos especiais e
profundidades diversas em cada um deles. Existe, assim, um mosaico de situações que
pode tanto facilitar quanto dificultar o acesso de terceiras partes a seus mercados
respectivos, tanto quanto os fluxos de comércio mantidos ao exterior desses acordos
podem ser afetados por algumas das preferências trocadas entre os primeiros.
Tanto é assim que empresas brasileiras procuraram contornar a não existência de
acordos diretos com esses grandes mercados – o que foi provocado, por exemplo, pela
implosão deliberada das negociações do projeto da Alca, proposto pelos Estados
Unidos, pela ação conjunta dos governos Lula, Kirchner e Chávez – mediante sua
43
implantação física no território de alguns desses países, no Caribe ou na América
Central, para a partir daí poder vender ao mercado dos Estados Unidos produtos já
beneficiados com acesso preferencial. As politicas comerciais protecionistas ou
defensivas adotadas por Brasil e Argentina (e por extensão pelo Mercosul) fazem mais
mal ao comércio exterior brasileiro do que a existência desses blocos preferenciais.
Criação e desvio de comércio são dois velhos fenômenos vinculados aos
esquemas regionais de integração, plenamente identificados desde antes da existência
do Gatt por estudiosos como Jacob Viner, que estudou o potencial discriminatório
suscetível de ser produzido pelos blocos comerciais com base nos acordos pioneiros
efetuados na Europa ou pela Comunidade Britânica de nações (por meio da Imperial
Preference adotada na conferência de Ottawa de 1932, por exemplo). O Mercosul já foi
acusado de provocar mais desvio do que criação de comércio, mas atualmente parece
ser bem mais afetado pelo segundo processo, uma vez que não conseguiu efetivar
praticamente nenhum acordo comercial significativo com outros blocos ou países desde
que foi teoricamente consolidado como união aduaneira. A relutância da Argentina, e
do próprio Brasil, em abrir-se em esquemas mais profundos de liberalização comercial
explica essa frustração, o que tem preocupado a comunidade empresarial brasileira,
ciente das perdas implícitas a qualquer isolamento das grandes correntes de comércio.

Existe superposição de funções entre os diversos esquemas de integração?


Dos três esquemas aos quais o Brasil está associado atualmente, a Aladi, o
Mercosul e a Unasul, é praticamente inevitável alguma superposição de funções, entre
eles. Mas os três órgãos não podem ser colocados no mesmo plano institucional e,
sobretudo, não possuem os mesmos papeis, sequer funções similares, no quadro dos
órgãos de integração regional da América Latina. O fato de haver temas comuns não
significa que eles tenham surgido com os mesmos objetivos ou se destinam a preencher
funções similares, ou semelhantes, a não ser pela designação genérica, em alguns casos
equivocada, de “integração”. Essa aparente unidade conceitual em torno do objetivo da
integração regional – no caso do Mercosul sub-regional – não pode descurar a realidade
de que eles são muito diferentes, e possivelmente vão continuar existindo em paralelo,
com alguma superposição de funções, mas não vão se fundir, não vão desaparecer, e
tampouco coordenar-se para uma cooperação ideal visando alcançar objetivos
semelhantes. Vejamos por que é assim.
A Aladi é o mais antigo de todos: ela tem origem na frustrada Alalc (1960), que
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procurou criar uma zona de livre comércio na América Latina sem que os países
estivessem de verdade preparados para atender todos os compromissos do mandato
original e sem, provavelmente, possuir a intenção real de cumprir as etapas e condições
requeridas para o atingimento do objetivo final. Ela foi, assim, substituída, pela Aladi
que, a despeito do nome mais ambicioso, representou de fato um recuo em relação ao
livre comércio, para aspirar tão somente a acordos preferenciais de comércio de alcance
parcial e limitado (em consonância com as novas disposições da chamada “cláusula de
habilitação”, pela qual partes contratantes ao Gatt menos desenvolvidas estavam
autorizadas a contrair entre si acordos preferenciais sem infringir disposições do Artigo
24 do Gatt original). Em outros termos, a Aladi possui objetivos bem delimitados que,
mesmo considerando as metas de longo prazo de um espaço ampliado de liberalização
comercial, dificilmente transformará a região numa área de livre comércio efetiva. Os
países a utilizam – talvez fosse o caso de dizer as empresas, em especial as
multinacionais – para objetivos delimitados de acessos recíprocos em setores definidos,
de acordo com estratégias de alocação ótima de investimentos e de divisão de mercados,
de acordo com um planejamento de tipo microeconômico.
O Mercosul, por sua vez, nasceu de uma percepção de que os dois grandes
parceiros do Cone Sul não poderiam ficar indiferentes à onda de acordos minilaterais
que estavam sendo negociados a partir dos anos 1980, quando o sistema multilateral de
comércio perdeu o grande impulso liberalizador do imediato pós-Segunda Guerra.
Naquela época, a então Comunidade Econômica Europeia estava concretizando seu
projeto de mercado unificado, com a ameaça de converter-se em uma fortaleza
comerciais, ao passo que os Estados Unidos e o Canadá negociavam uma extensão geral
do seu acordo de livre comércio automotivo dos anos 1960, no sentido de estabelecer
uma zona de livre comércio, abrangendo temas e objetivos não cobertos, então, pelos
dispositivos relativamente limitados do Gatt-1947 e alguns dos protocolos setoriais.
O Mercosul avançou relativamente bem nos primeiros anos, mas logo deparou-
se com tarefas mais exigentes em liberalização e, sobretudo, em coordenação das
políticas econômicas e setoriais dos países membros, com o que diminuiu o ímpeto
original de caminhar rapidamente para um mercado comum. A bem da verdade, nem o
livre comércio tornou-se efetivamente universal, nem a Tarifa Externa Comum foi
implementada de maneira uniforme e abrangente para cobrir toda a pauta aduaneira
comum dos países membros. Exceções nacionais persistiram nos dois âmbitos, e
dinâmicas diferenciadas de estabilização econômica nos dois grandes países fizeram
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com a coordenação de políticas macroeconômicas – em especial a cambial, mas também
a fiscal e a monetária – fosse impossível de ser realizada na prática, a despeito de
solenes proclamações em contrário. No meio do caminho, o Mercosul enfrentou alguns
percalços, mas poderia ter continuado a avançar, se não fossem orientações totalmente
contrárias ao espírito original do Tratado de Assunção, que passaram a guiar as ações
desses dois países, a partir das administrações de Lula no Brasil e de Kirchner na
Argentina, ambas inauguradas em 2003. Desde então, o Mercosul só fez recuar no plano
do comércio e da abertura econômica, ainda que criando novos dispositivos de caráter
político e social, que não estavam contemplados no tratado original, a não ser de modo
muito vago e indireto.
A Unasul, finalmente, a despeito de uma retórica ainda mais ambiciosa quanto
aos objetivos da integração na América do Sul, não pretende (de fato não poderá)
realizar esse objetivo, a não ser de forma totalmente vaga e sem dispor de qualquer meta
precisa quanto aos meios e instrumentos pelos quais esse objetivo poderia ser
alcançado. A Unasul deriva de uma iniciativa do governo Lula no sentido de criar uma
espécie de “linha auxiliar” para o Mercosul, no terreno político e da coordenação dos
países sul-americanos, podendo também servir de cobertura para projetos de integração
física na região, sem precisar retomar a Iniciativa de Integração Sul-Americana que
tinha sido iniciada no governo Fernando Henrique Cardoso, e sem precisar abrigar os
objetivos mais comercialmente abrangentes com os quais o México já estava
comprometido no âmbito dos seus outros compromissos de livre comércio na América
do Norte e alhures. A estratégia brasileira não resultou totalmente satisfatória, uma vez
que o projeto original – a Comunidade Sul-Americana de Nações – foi, ainda na fase
constitutiva, parcialmente sabotado por outros países sul-americanos e, pouco depois,
deliberadamente desviado de seu curso inicial pelo caudilho venezuelano Hugo Chávez,
que fez aprovar o tratado da Unasul na Isla Margarita, em 2008, e colocou o seu
secretariado na capital de um aliado, o Equador de Rafael Correa.
Do ponto de vista prático, não há nenhuma possibilidade de que a Unasul realize
a integração econômica sul-americana, inclusive porque ela serve apenas de tribuna
retórica para os presidentes da região, e vem sendo utilizada, e abusada, de forma
totalmente enviesada pelos chamados países bolivarianos, que se servem de uma
suspeita legitimidade para justamente legitimar uma erosão sensível dos princípios
democráticos em seus próprios países. Suas reuniões têm sido consistentemente
políticas, e apenas políticas, sem qualquer conteúdo visível de liberalização comercial, e
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muito menos de abertura econômica, inclusive porque os ditos bolivarianos operam um
retrocesso notável para fases ultrapassadas da história econômica latino-americana, ao
promoverem exercícios controversos de nacionalismo econômico, de intervencionismo
estatal, de dirigismo comercial introvertido e defensivo, ademais de todas as demais
ofensas contra direitos proprietários e o desrespeito a normas contratuais, inclusive no
que respeita a proteção do investimentos estrangeiros (ações de que o próprio Brasil foi
vítima, na Bolívia, por exemplo).
Em resumo, a Aladi vai permanecer como um cartório de registro de acordos
parciais e limitados de abertura mercantilista na área comercial, o Mercosul continuará
como uma tribuna mais política do que efetivamente econômica pelos tempos que
correm, e a Unasul seguirá sendo utilizada para outros objetivos políticos, e manipulada
por países que pouco compromisso mantêm com um projeto realista e ordenado de
integração econômica ou comercial. Não estranha que a região esteja sendo
fragmentada em blocos diversos, e que a Aliança do Pacífico tenha sido criada por
quatro países – Chile, Peru, Colômbia e México – bem mais voltados para objetivos
pragmáticos de natureza econômica do que para a retórica gasta de uma integração
ilusória.

O Mercosul está condenado ao desaparecimento ou poderá sobreviver?


Nunca ocorreu, a propriamente dizer, a realização dos objetivos estatutários do
Mercosul, a despeito de alguns visualizarem uma “época áurea” nos primeiros nove
anos de existência do bloco. Antes de 2003, ou mais exatamente antes de 1999, os
países membros pareciam sinceramente comprometidos em alcançar os objetivos
originais, procurando resolver as diferenças quanto aos ritmos da integração por meio
de projetos concretos para superar as dificuldades, envidando esforços reais para
continuar a liberalização do comércio recíproco e realizar a coordenação tentativa de
suas políticas econômicas nacionais.
A partir da crise cambial de 1999 no Brasil, e do aprofundamento da crise do
regime de conversibilidade na Argentina, na mesma época, as divergências quanto às
medidas a serem adotadas, nacionalmente ou de modo coordenado no bloco, foram
aprofundadas. As administrações seguintes, de Lula no Brasil, e de Nestor Kirchner na
Argentina, se desvincularam de modo claro dos objetivos originais do Mercosul, para
impulsionar em seu lugar agendas políticas de reduzido, ou praticamente nenhum,
conteúdo econômico ou comercial. Não cabe, no entanto, nenhuma culpa ao Mercosul,
47
enquanto bloco, nem pelo lado institucional, nem pelo seu funcionamento, uma vez que
a responsabilidade pelos fracassos e retrocessos continuados incumbe inteiramente aos
países membros, em especial aos dois maiores.
Da mesma forma, não se pode atribuir à diplomacia profissional brasileira
qualquer responsabilidade pelas turbulências surgidas nos últimos dez anos, uma vez
que as principais decisões quanto ao curso adotado pelo Mercosul foram todas tomadas
no âmbito do poder executivo, ou seja, em nível presidencial. A orientação seguida pela
diplomacia presidencial foi a de tentar fazer do Mercosul um instrumento a serviço de
uma pretensa vontade de liderança brasileira na região, que jamais foi impulsionada
pela diplomacia profissional, pelo fato desta conhecer exatamente os limites desse tipo
de exercício numa região fragmentada por visões divergentes sobre sua união política.
O Mercosul sempre foi, desde a origem, um projeto prioritário da diplomacia
profissional e das políticas presidenciais no âmbito externo, mas essas percepções
podem ter variado tanto em função da dinâmica econômica em curso no Brasil e nos
demais países, quanto em função de objetivos políticos dos diversos presidentes ao
longo do tempo. Pode-se dizer que José Sarney e Fernando Henrique Cardoso tinham
uma noção pragmática da integração sub-regional, de seus limites e possibilidades, ao
passo que Lula esteve animado por objetivos que pouca relação mantinham com os
objetivos originais do bloco, em especial sem conexões mais afirmadas com a abertura
econômica e a liberalização comercial.
O objetivo de um espaço econômico integrado no Cone Sul, e progressivamente
na América do Sul, é de fato prioritário, não apenas para a diplomacia brasileira, mas
sobretudo para o Brasil, enquanto economia e na condição de um ator regional de certa
importância geopolítica. Os governos Sarney e FHC procuraram, de modo bastante
engajado, impulsionar o bloco pela vertente de seus objetivos originais, mas a partir do
governo Lula pode-se dizer que o Mercosul passou a ser utilizado para cumprir
finalidades que pouca relação mantinham com suas metas econômicas e comerciais.
Mas, mesmo esses objetivos não foram satisfatoriamente cumpridos, uma vez que a
Argentina, a partir do governo Kirchner, desvinculou-se completamente do espírito do
bloco para impulsionar seus próprios projetos de “reindustrialização” do país.
Desde 2003, de modo sistemático, a Argentina adotou uma postura abertamente
protecionista, inclusive e principalmente contra os demais membros do Mercosul, o
Brasil em especial, cujo governo tolerou, e de certa forma foi conivente, com as
medidas ilegais, arbitrárias e totalmente contrárias ao espírito e à letra do tratado de
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Assunção, e até contra normas do sistema multilateral de comércio. Em consequência, o
comércio intra-Mercosul recuou, tanto para dentro, quanto no que se refere a processos
de negociações comerciais com terceiras partes, no âmbito multilateral e na interface
inter-regional (com a UE, entre outros).
Mais uma vez, não existe nada de errado com o Mercosul em si, mas ele não
conseguirá recuperar seu perfil e objetivos originais a menos de uma mudança radical
na postura dos seus membros principais. A mudança, na verdade, teria de ser um retorno
ao mandato comercial e econômico inscrito no tratado de Assunção, sem mais desvios
indevidos pelas áreas política ou pretensamente social. A diplomacia brasileira, pelo seu
staff profissional, tem plena consciência de que o bloco foi desviado de suas metas
originais, mas a responsabilidade por essa situação incumbe inteiramente às lideranças
presidenciais.

O Mercosul pode servir para a integração do Brasil a cadeias produtivas globais?


Teoricamente sim, mas qualquer esquema de integração tem de guardar estreita
correspondência com as demais políticas setoriais dos países membros, no sentido de
fazê-los aproveitar as economias de escala e as possibilidades de modernização
tecnológica e produtiva que normalmente estão associadas às ações em favor da
integração, com vistas a realizar o objetivo econômico maior da inserção global. A
orientação em favor da integração regional, estrito senso, pode ajudar na coordenação
de políticas comuns nas organizações multilaterais, tanto quanto na atração conjunta de
investimentos externos, passos essenciais para a inserção produtiva de amplo escopo.
No caso do Mercosul, a articulação de votos nos organismos internacionais só
tem valido, no que tange a integração, em relação a temas comerciais e econômicos
estritamente vinculados aos objetivos listados no tratado de Assunção, e não para outros
objetivos políticos que não respondem ao mandato original. Na prática, o desvio dos
objetivos originais do Mercosul afastou o Brasil, e o resto da região, do atingimento
dessas finalidades vinculadas a cadeias produtivas e inserção nas cadeias globais da
economia mundial. Em outros termos, o Mercosul deixou de ser visto, pelos grandes
investidores globais, como uma entidade homogênea, dotada de políticas comuns.
Nos últimos dez anos, a integração na América Latina de fato recuou, o que
explica que alguns países decidiram optar por outros esquemas, mais flexíveis, de
integração, e avançar no terreno da liberalização comercial, inclusive com objetivos
globalizantes. Este é o caso, justamente, da Aliança do Pacífico, menos voltada para o
49
comércio recíproco do que para sua inserção nos grandes arranjos que estão ocorrendo
no âmbito da bacia do Pacífico. No caso do Mercosul, ocorreu certa desvinculação da
concepção original, o que explica manifestações do empresariado brasileiro em favor de
uma caminhada novamente solitária na região e fora dela.
Assim, a despeito dos erros de políticas econômicas, da introversão econômica e
do protecionismo comercial, cometidos pelos dois grandes países do bloco, as empresas
brasileiras continuaram seu movimento de expansão na região, pois tais movimentos
correspondem a necessidades objetivas de sua capacidade de projeção competitiva,
podendo contar inclusive com o apoio de alguns órgãos governamentais – como o
BNDES – para financiar iniciativas mais ambiciosas. Mas, essas iniciativas podem ser
erráticas e descontinuadas, o que explica algum recuo na penetração comercial dos
vizinhos pelas empresas nacionais. Na prática, são os Estados Unidos e a China que
estão ganhando novos espaços na região – em função de acordos comerciais, ou de
ganhos significativos com a exportação de produtos primários para o gigante asiático –
em detrimento do Brasil e do Mercosul.
Se o Mercosul estivesse de verdade unido em torno de objetivos comuns as
posições dos países estariam alinhadas nas negociações multilaterais da Rodada Doha
ou no longuíssimo processo negociador com a União Europeia, o que não ocorre de
fato. Para que os objetivos teóricos de um processo de integração sejam plenamente
realizados, seria preciso que as políticas econômicos dos membros, em especial as
políticas comerciais e industriais, ademais da coordenação macroeconômica entre eles,
correspondam aos ideais da abertura econômica e da liberalização comercial. Não
parecer ser o caso atualmente, o que não quer dizer que tal situação não possa mudar.
Para isso, seria provavelmente necessária a assunção de lideranças políticas com perfil
de estadistas nos principais países membros. Não precisaria ser uma condição sine qua,
se o processo de construção do Mercosul fosse mais institucionalizado e conduzido de
maneira burocrática pelas diplomacias nacionais, mas o fato é que o curso do bloco tem
sido mais determinado pelo que decidem politicamente seus presidentes do que
comanda a agenda econômica dos tratados firmados pelos Estados membros.
O Mercosul não vai deixar de existir, mas sua relevância política e sua
importância econômica para os países membros, para o Brasil em particular, tem
diminuído, de maneira provavelmente proporcional, no sentido inverso, à expansão do
protecionismo comercial e do intervencionismo econômico nos grandes sócios do bloco.
Não é seguro que ele volte a se recuperar plenamente de seu atual estado letárgico, mas
50
a superação da situação atual vai exigir algo mais do que discursos vazios em favor da
integração, e ações concretas para se retomar o curso original do processo.

2606. “Integração Regional e Políticas Comerciais na América Latina”, Hartford, 16


Maio 2014, 9 p. Respostas a questões sobre o Mercosul e a integração regional para
a Revista Sapientia (http://www.cursosapientia.com.br/index.php/revista-sapientia).
Feita versão descaracterizada para Boletim Mundorama. Publicado sob o título de
“O Brasil e a integração regional, da Alalc à Unasul: algum progresso?”,
Mundorama (Divulgação Científica em Relações Internacionais, ISSN: 2175-2052,
11/06/2014; link: http://mundorama.net/2014/06/11/o-brasil-e-a-integracao-
regional-da-alalc-a-unasul-algum-progresso-por-paulo-roberto-de-almeida/).
Publicado em Sapientia (São Paulo: ano 3, vol. 18, junho-julho 2014, p. 31-36;
disponível no link: http://www.cursosapientia.com.br/images/revista/edicao18.pdf).
Relação de Publicados n. 1132.

51
Segunda Parte
Economia internacional, globalização

53
6. Mudanças na economia mundial: perspectiva histórica de longo
prazo

A economia mundial, tal como a conhecemos atualmente, é um “arquipélago”


em construção desde o século 16, pelo menos e, ainda hoje, ela não constitui um sistema
perfeitamente unificado, sequer homogêneo, a despeito de toda a retórica em torno da
globalização. Talvez, um dia, ela venha a ser unificada num mesmo universo de redes
comerciais, financeiras e de recursos humanos circulando sem restrições sobre
fronteiras e controles alfandegários. Por enquanto, contudo, trata-se de uma colcha de
retalhos, reunindo pedaços hoje essencialmente capitalistas, é verdade, mas ainda
dotados de características nacionais distintas em seu colorido diversificado. Ela poderá
caminhar progressivamente para um conjunto mais homogêneo de sistemas econômicos
nacionais, mas isso depende dos progressos da liberalização comercial, financeira e
“humana”, o que ainda está longe de ser garantido.
Vejamos esse processo com lentes de longo alcance, começando na era dos
descobrimentos. Mesmo a partir da unificação geográfica conduzida por Colombo
(1492), Vasco da Gama (1498) e Fernão de Magalhães (1521), a economia mundial do
início da era moderna não era, em absoluto, universal. Nessa primeira onda de
globalização, de caráter mercantil, tratava-se, mais exatamente, de um arquipélago de
economias centrais, predominantemente de origem europeia, vinculadas a suas
respectivas periferias nas novas terras descobertas, mediante um sistema usualmente
conhecido como ‘exclusivo colonial’. Os demais centros regionais – o ‘Império do
55
Meio’ (China), o império Mogul, na Índia, o mundo muçulmano (que começava a ser
unificado sob o jugo otomano) e outros ‘blocos’ sub-regionais, na Eurásia ou nas
Américas – não tinham realmente condições de disputar qualquer hegemonia econômica
mundial, como diriam os marxistas.
Até o final do século 18, China e Índia constituíam duas grandes economias,
produzindo bens valorizados nos mercados ocidentais, mas dotadas de instituições
pouco adaptadas aos desafios da nova economia industrial, caracterizada pelo que se
poderia chamar, ainda no jargão marxista, de um ‘modo inventivo de produção’. Foi
precisamente a partir da revolução industrial na Inglaterra, nessa mesma época, que tem
início a diferenciação dos centros econômicos mundiais, processo que os historiadores
econômicos chamam de ‘grande divergência’, ou seja, a aceleração da transformação
tecnológica no Ocidente, seguida da dominação absoluta das potências européias sobre
o resto do mundo (destinada a durar cinco séculos, talvez até hoje).
Essa segunda grande onda da globalização, de natureza industrial, conforma o
que se poderia chamar, pela primeira vez, de economia mundial, uma rede integrada de
centros produtores de matérias primas, de um lado, servidas pelos centros financeiros
europeus – com a libra inglesa e os bancos britânicos em seu núcleo – e as oficinas
manufatureiras, de outro, dotadas das novas tecnologias industriais de produção em
massa. As economias nacionais, até então pouco diferenciadas entre si – posto que
uniformemente e predominantemente de base agrícola ou mercantil – começam a exibir
diferenças estruturais, a partir de níveis de produtividade bem mais elevados nos
sistemas industriais. A defasagem de renda começa sua escalada para índices sempre
crescentes, entre o centro e a periferia, num processo que se desenvolveria durante
praticamente dois séculos, com um recrudescimento ainda maior durante a maior parte
do século 20, para diminuir apenas a partir da terceira onda de globalização, a partir do
último quinto desse século.
No intervalo, a economia mundial capitalista seria desafiada por duas ameaças
muito diferentes, entre si, mas concordantes em sua ação desagregadora de um sistema
verdadeiramente unificado de relações mercantis e financeiras. A partir da primeira
guerra mundial, as crises recorrentes dos centros capitalistas desenvolvidos no entre
guerras (em especial a de 1929 e a depressão que se seguiu) e a implantação de sistemas
coletivistas (de natureza soviética, desde 1917, e os fascismos, pouco depois), com suas
experiências estatizantes e antiliberais, representaram uma ‘breve’ interrupção de
setenta anos no processo de globalização. No imediato pós-segunda guerra mundial, as
56
muitas experiências de nacionalizações e de estatizações no Ocidente capitalista, com
seu cortejo de práticas intrusivas, dirigistas e planos de ‘desenvolvimento’ (com muito
planejamento estatal centralizado, mesmo no capitalismo) representaram, igualmente,
um retrocesso na reunificação de um sistema de mercado verdadeiramente mundial,
desde então colocado sob a égide dos dois irmãos de Bretton Woods (o FMI e o Banco
Mundial) e do GATT (OMC, em 1995).
Foi somente a partir das reformas econômicas ‘neoliberais’ iniciadas na China a
partir dos anos 1980 e da implosão e quase completo desaparecimento dos regimes
socialistas, entre 1989 e 1991, que o processo de reunificação da economia mundial é
retomado, no bojo da terceira onda de globalização capitalista, desta vez dominada pela
sua vertente financeira (mas que inclui também os investimentos diretos). O fim do
socialismo representou pouco em termos de concorrência manufatureira – já que o
socialismo era um medíocre produtos de bens industrializados – e menos ainda em
termos de fluxos financeiros e tecnológicos – onde os países socialistas eram ainda mais
marginais, senão irrelevantes – mas significou um impacto decisivo em termos de
mercados e, sobretudo, de mão-de-obra (com um destaque absoluto para a China).
A fase atual, se ainda não pode ser identificada com um novo processo de
‘convergência’ da economia mundial, caracteriza-se, pelo menos, pela diminuição da
divergência entre as regiões – com notáveis exceções, como nos casos da África, do
Oriente Médio e em grande medida da América Latina – e pelo rápido catch-up
experimentado por alguns emergentes dinâmicos. No curso dos últimos vinte anos de
globalização, a China e a Índia retiraram centenas de milhões de pessoas de uma miséria
abjeta, colocando-as numa situação de pobreza moderada, justamente em função das
reformas econômicas empreendidas e de sua inserção na globalização. Esse processo
deve continuar, pelo menos naqueles países que decidiram substituir antigas políticas
protecionistas e estatizantes por uma abertura ao comércio internacional e aos
investimentos estrangeiros diretos.
O lado financeiro permanece ainda a dimensão problemática da globalização,
não porque a liberdade de circulação de capitais seria, em si, desestabilizadora das
economias nacionais, mas porque os governos ainda insistem em praticar políticas
monetárias e cambiais inconsistentes com os novos dados da economia mundial. O
monopólio dos bancos centrais na emissão de moedas-papel, na fixação das taxas de
juros (sem correspondência efetiva com o equilíbrio real dos mercados de capitais) e seu
papel na manutenção de regimes cambiais irrealistas e desajustados explica muito das
57
crises financeiras ocorridas na segunda metade dos anos 1990 e em 2007-2009. As
bolhas que se formam não são o resultado de ‘forças cegas do mercado’ – como
políticos inescrupulosos e economistas pretensamente keynesianos proclamam – mas
sim a conseqüência das manipulações dos governos em setores sensíveis da economia
real. A possibilidade de maiores progressos em direção à convergência econômica
mundial depende, assim, tanto da continuidade da abertura dos países ao processo de
globalização quanto da habilidade dos governos em manterem soberania monetária e
cambial no novo contexto criado pela unificação paulatina dos mercados de capitais.
Não é provável que essa convergência se dê rapidamente, tendo em vista a
resistência de muitos governos à abertura comercial e financeira e sua tendência a
continuar manipulando taxas de juros e regimes cambiais, mas é previsível que a
globalização continue avançando naqueles países e regiões propensos a aceitarem as
novas regras de mercado. Independentemente do que digam aqueles que condenam as
novas políticas ‘neoliberais’, é um fato que os países que mais progressos fizeram no
plano do crescimento econômico e da prosperidade de seus povos são aqueles que mais
rapidamente souberam integrar-se comercialmente na economia mundial, e dela
puderam aproveitar os efeitos benéficos dos investimentos diretos, que trazem capitais,
know-how e tecnologia. A lição parece ter sido aprendida, mas nem todos souberam
dela retirar os ensinamentos adequados. Esse tempo chegará, um dia...

2124. “Transformações da economia mundial: visão histórica de longo prazo”, Rio de


Janeiro 17 de março de 2010, 4 p. Revisão ampliada do segundo ensaio da série
preparada para o Ordem Livre (trabalho: 2072; publicados: 951), tratando da
evolução da economia mundial e de suas características mais marcantes. Publicado,
sob o título “Mudanças na Economia: uma história de longo prazo”, na seção de
Economia do Portal IG (23/03/2010). Republicado sob o título de “Mudanças na
economia mundial: perspectiva histórica de longo prazo” em Mundorama
(04.05.2010; link: http://mundorama.net/2010/05/03/mudancas-na-economia-
mundial-perspectiva-historica-de-longo-prazo-por-paulo-roberto-de-almeida/),
reproduzido em Meridiano 47 (vol. 11, n. 118, maio 2010, p. 27-29; ISBN: 1518-
1219; links: http://meridiano47.info/2010/05/03/mudancas-na-economia-mundial-
perspectiva-historica-de-longo-prazo-por-paulo-roberto-de-almeida/ e
https://docs.google.com/viewer?url=http://meridiano47.files.wordpress.com/2010/0
7/v11n118.pdf&pli=1). Ensaio incorporado ao livro: Paralelos com o Meridiano
47: Ensaios Longitudinais e de Ampla Latitude (Hartford, 2015). Relação de
Publicados n. 956.

58
7. Os Brics na nova conjuntura de crise econômica mundial

O recrudescimento da crise econômica internacional, iniciada pelo estouro da


bolha hipotecária, seguida pelas quebras bancárias nos Estados Unidos, em 2007 e
2008, agora sob a forma de esgotamento da capacidade de diversos países europeus –
notadamente a Grécia, mas possivelmente Portugal também, podendo ainda repercutir
sobre outros dois, maiores, Itália e Espanha – em manter os pagamentos de suas dívidas
soberanas, em 2010 e 2011, suscitou em diversos observadores da imprensa
especializada questionamentos sobre o papel dos Brics – Brasil, Rússia, Índia e China,
agora acolhendo a África do Sul igualmente – nessa conjuntura de transição,
eventualmente como novos atores de peso num eventual reordenamento da ordem
econômica mundial. A imprensa nacional, sempre patriótica e grandiloquente, seguiu o
coro de governistas entusiasmados com o fato de o Brasil não estar, por uma vez,
envolvido ou ser o centro de alguma crise financeira, e passou a proclamar nossa nova
condição de “emprestador de alguma instância”, além de repercutir, obviamente, “lições
de economia” que os presidentes – o ex e a atual – ofereceram de graça (mas também
sem qualquer resultado prático) a certos europeus, diminuídos em seu orgulho e
convertidos em latino-americanos, por uma vez.
O objetivo deste pequeno ensaio, que adota uma perspectiva essencialmente
realista, é justamente o de examinar a possibilidade da inversão de posturas econômicas,
como a alegada ascensão dos emergentes e o declínio irresistível de países tidos por
avançados. Como se constatará, as evidências não suportam essa hipótese, aventada em
análises de cunho bem mais superficial do que fundamentadas em dados empíricos
concretos ou apoiadas em um conhecimento apurado sobre o funcionamento efetivo dos
Brics. Como diria Mark Twain, rumores sobre o declínio do centro e a ascensão da
59
periferia são grandemente exagerados, inclusive porque a crise ainda não deu o seu
último “suspiro”. Se e quando os Brics assumirem postura mais afirmada no quadro da
economia mundial, isso dependerá essencialmente de seu desempenho individual, e não
do fato de serem, ou não, Brics, que é um rótulo bem mais artificial, e de conveniência
política, do que o resultado de ações concretas de coordenação econômica deliberada.

Existe um papel para os BRICS na nova conjuntura de crise político-econômica?


A imprensa econômica vem insistindo num papel econômico mais ativo para os
Brics, apenas porque eles não foram atingidos pela crise econômica num sentido
recessivo, como ocorreu com os EUA e a Europa, e também porque eles dispõem de
reservas significativas em divisas, suscetíveis de serem mobilizadas para fins de pacotes
de ajuda ou para reciclagem de títulos da dívida soberana de países enfrentando
desequilíbrios temporários. Essa imagem dos Brics como bloco econômico coeso não
corresponde, todavia, à realidade dos fatos, uma vez que, a despeito de reuniões
políticas de seus chanceleres e dos chefes de Estado, ou mesmo de alguns encontros de
seus ministros econômicos, os países do Brics não conformam, nem de longe, um grupo
dotado de instâncias de coordenação de políticas econômicas e sequer de políticas
homogêneas nos planos comercial, financeiro ou de investimentos.
Obviamente, a China já é um ator de peso nos diversos cenários econômicos que
possam ser traçados no plano mundial, mas ela não busca – nem precisa, aliás –
formular políticas comuns com seus supostos parceiros emergentes, inclusive porque
suas políticas nacionais não são, exatamente, aquelas desejadas pelos demais integrantes
desse bloco que não pretende se apresentar como bloco. É sabido, por exemplo, que
Índia e Brasil vem adotando medidas protecionistas contra a concorrência de produtos
chineses em seus mercados, aventando a existência de uma “guerra cambial” iniciada
em primeiro lugar pelos Estados Unidos, pelo derrame maciço de dólares nos mercados
em sustentação de seus bancos e empresas fragilizadas pela crise iniciada em 2008. Na
verdade, o único bloco econômico merecedor desse nome no contexto mundial é a
própria União Europeia, pois nem mesmo o Nafta mereceria essa alcunha sinônima de
coordenação de políticas econômicas nacionais.
Os Brics podem se apresentar, eventualmente, como novos atores econômicos
regionais e globais – embora essa capacidade seja muito restrita em vários casos – mas
não dispõem de homogeneidade de propósitos ou de estratégias comuns de atuação no
contexto mundial que justifique o uso do acrônimo na discussão em torno das medidas e
60
dos mecanismos que serão mobilizados para enfrentar e superar a atual conjuntura de
crise. Ainda que alguns deles – na verdade só a China, com maior largueza de meios –
sejam capazes de participar de operações de socorro e de apoio a ajustes administrados
aos países periclitantes, esses empreendimentos financeiros de maior escopo terão
necessariamente de ser conduzidos pelas instituições econômicas atualmente
disponíveis efetivamente, quais sejam: o Conselho Europeu Monetário e Financeiro, em
primeiro lugar, o Banco Central Europeu, em segundo lugar, o FMI, em terceiro, e só
então, mas com várias dúvidas sobre seu papel real, o G20 financeiro, com destaque
para os grandes atores exclusivamente.
Uma simples confrontação de dados econômicos de base permite situar o peso
efetivo de cada ator no jogo econômico global: dos (aproximadamente) 55 a 60 trilhões
de dólares de PIB mundial, EUA e UE são responsáveis pela metade do valor agregado,
sendo que a China e o Japão respondem por mais um quinto, sobrando outro tanto para
as grandes economias do G7 mais Brasil e Índia; todos os demais são irrelevantes,
sobretudo em termos de reservas em divisas e fluxos de capitais (investimentos e
portfólio), terreno no qual a China é o único ator de peso entre os emergentes. Ou seja,
as únicas “locomotivas” possíveis de uma economia mundial cambaleante continuam a
ser os grandes atores, sendo que o poderio econômico da China, na verdade, foi
construído sobre a base de investimentos e tecnologia ocidentais e japoneses e de saldos
comerciais superavitários com os mesmos parceiros. A China ultrapassou, em 2011, o
Japão, pela magnitude do PIB, e representa metade do PIB conjunto dos Brics, sendo
aliás o elemento dinâmico do crescimento desse PIB no contexto global (já que tanto o
Brasil, quanto a Rússia devem suas “emergências” respectivas à valorização cambial de
suas moedas ou, mais especialmente no caso da Rússia, à valorização das commodities
exportadas, basicamente o petróleo neste último caso).
O “papel” econômico dos Brics – se existe – é, assim, muito diferenciado, em
função de inserções totalmente diversas na economia mundial, não existindo, portanto, a
possibilidade de que eles, isolada ou conjuntamente, venham a exercer alguma
influência coordenada sobre movimentos e iniciativas tomadas pelos atores relevantes
(que são, pela ordem: EUA, G7, UE-BCE, FMI e, só então, o G20 financeiro). A
evolução econômica do mundo se dará independentemente de qualquer ação dos Brics,
sendo o resultado não coordenado, sequer coerente, das decisões tomadas pelos agentes
primordiais da globalização – as empresas transnacionais – e pelos governos nacionais,
eventualmente em consultas recíprocas nesses foros de discussão, o que não garante,
61
porém, a convergência de suas ações e iniciativas. O que mais frequentemente ocorre é,
justamente, a descoordenação de políticas, por mais reuniões retóricas que as
autoridades econômicas e políticas desses atores empreendam a intervalos regulares.

Existe a possibilidade dos Brics sustentarem a recuperação financeira europeia?


Talvez, mas não certamente enquanto Brics; eventualmente enquanto economias
nacionais, tomadas individualmente e atuando cada qual com base em seu interesse e
possibilidades próprias. Uma alegada ajuda financeira dos Brics aos países europeus sob
risco de insolvência, isolada ou conjuntamente, não pode, na verdade, ser feita apenas
sob a forma de fluxos financeiros adicionais aos insolventes potenciais. Não se trata
apenas da magnitude dos valores envolvidos – o que teoricamente habilitaria apenas a
China a ser um “emprestador de segunda instância” – mas basicamente de questões de
governança e de conformação a padrões aceitáveis de responsabilidade financeira, num
contexto de mercados integrados e de riscos aparentes, ou pelo menos um pouco mais
transparentes do que no passado (e não só em virtude do trabalho de avaliação
conduzido pelas agências de classificação de riscos).
Existe uma grande ilusão – provavelmente construída por analistas acadêmicos,
mas também estimulada pelos governos interessados – de que os Brics poderão se
converter em novos polos da economia mundial e, nessa condição, influenciarem
decisivamente o processo decisório em determinadas instituições ou a prática
econômica dos decisores microeconômicos, ou seja, os responsáveis de transnacionais
que decidem sobre alocação de investimentos diretos e divisão de mercados (e que
também influenciam as políticas comerciais e industriais, talvez até fiscais, das
economias nacionais). Essa proposta, como aliás revelado já no primeiro substantivo
deste parágrafo, não se sustenta, tanto no plano estritamente material, ou de capacidades
“brutas” das economias, como no plano institucional, ou seja, no da organização política
da ordem econômica mundial.
A própria noção de “polo econômico” remete a uma concepção do mundo
baseada na sucessão de hegemonias, na derrocada dos “impérios” e na ascensão de
novos desafiantes da ordem em declínio. Sobre estes últimos, alguns chegam inclusive a
falar de “superpotências pobres”, como se a ordem econômica precisasse
necessariamente ser organizada em função de hierarquias excludentes e de substituição
de superpotências, o que reflete não apenas a conhecida “teoria conspiratória da
história”, mas também uma visão conservadora de como se organiza o mundo real. Mas,
62
ainda que se aceitasse a noção de “polo dominante” – que na verdade refere-se a um
ordenamento econômico interpretado como constituído necessariamente de um “centro”
e de uma “periferia” – o fato é que o Brics não preenche os requisitos formais do
modelo e não se constitui, absolutamente, em novo polo da economia mundial, se tanto
um agrupamento heteróclito de potências provisoriamente identificadas por um vago
“anti-hegemonismo” mental.
Seguindo uma noção mesmo rudimentar de como se organiza o mundo real, é
evidente que toda ordem econômica historicamente conhecida, seja ela naturalmente
existente ou socialmente construída – na verdade, qualquer sistema conhecido de
organização humana, ou melhor, social –, compõe-se de um centro e de uma, ou várias
periferias, sendo que esses elementos mantém uma relação dinâmica entre si, como
muito bem analisado nos ensaios sociológicos de Edward Shils (Center and Periphery:
Essays in Macrosociology; Chicago: University of Chicago Press, 1975). Cada um dos
Brics, de certa forma, constitui um polo econômico em sua própria macrorregião e
alimenta uma “periferia” que pode, ou não, estender-se a diversas outras regiões,
inclusive numa relação de interpenetração com outros sistemas econômicos, dominantes
ou “subordinados”.
Quem quer contemple os fluxos de comércio e de investimentos nos últimos
anos, bem como o impacto da demanda chinesa sobre os preços das principais
commodities exportados por países latino-americanos – inclusive por um dos Brics, o
Brasil –, teria de chegar à conclusão, por exemplo, de que a região pode já ter se
convertido em “periferia” econômica da China, tal a dependência comercial e financeira
criada nos últimos anos por essas relações de oferta e demanda absolutamente
“assimétricas” (como gostam de acusar os críticos da velha dominação “imperial”). Em
qualquer hipótese, aderindo ou não a essas concepções acadêmicas sobre a organização
do mundo material e seus reflexos no plano institucional, parece claro que os Brics,
individualmente tomados, participarão, ou não, de qualquer esforço de soerguimento de
países desequilibrados do “centro” europeu em função de suas próprias possibilidades e
conveniências, sendo a China o natural “dispensador” de novas “bondades financeiras”,
em virtude de sua dotação própria de fatores econômicos e de recursos políticos, que a
converteram, sem dúvida alguma, em ator relevante na presente (e na futura) ordem
econômica internacional.
É evidente, porém, que a China – única dentre os Brics a fazer uma diferença
real na atual movimentação de placas tectônicas da geoeconomia mundial – não tem
63
condições, nem de longe, de assumir o papel que outrora foi do Reino Unido e que
atualmente é desempenhado pelos EUA, enquanto provedor, real, de segurança política,
de abertura econômica – ainda que relativa, atualmente – e, sobretudo, de outros
instrumentos mais elementares de poder, como podem ser porta-aviões e veículos
aéreos não tripulados. Existe toda uma literatura declinista – da qual o mais recente
exemplo é um livro supostamente de economia, de Dambisa Moyo, How the West Was
Lost?: Fifty Years of Economic Folly and the Stark Choices Ahead (New York: Farrar,
Straus and Giraux, 2011) – que gostaria de transformar sonhos acadêmicos em
realidades contemporâneas, mas que falha miseravelmente nos argumentos quanto à
“sucessão dos impérios” (para uma visão mais realista, ver a reedição do livro de Fareed
Zakaria, The Post-American World: Release 2.0 (New York: Norton, 2011); a primeira
edição era de 2008, ou seja, antes da crise econômica iniciada naquele ano).
Impérios econômicos não são feitos apenas de criação – ou extração – de
recursos e muitos dos que escrevem sobre ascensão e queda das grandes potências estão
talvez mentalmente vinculados ao modelo dos velhos impérios tributários que
organizavam a exploração de seus satélites em seu benefício exclusivo. Ainda que isso
fosse verdade, a China não parece perto de cumprir todas as funções de um “império”,
que não implica apenas a extração de recursos, mas também a garantia de ordem e a
possibilidade de que os próprios satélites participem da ordem normativa assim criada e
mantida com base em critérios de adesão voluntária, e não apenas de coerção física.
Ademais dos elementos de inovação e de absorção de cérebros “estrangeiros” que todo
império legítimo deve ser capaz de exibir, existem outros componentes mais “virtuais”,
ou intangíveis, que devem necessariamente integrar qualquer ordem estável e suscetível
de liderar “satélites periféricos” ou mesmo “aliados subalternos”, entre eles a
capacidade de liderar por consenso e o fato de se fazer admirado e invejado, e não
apenas temido ou tolerado.

A ascensão dos Brics faria o mundo se tornar mais multipolar e democrático?


Uma outra noção acadêmica que vem ganhando curso em certos círculos –
sendo, aliás, endossada por alguns governos, inclusive dos Brics – é a de que a
“ascensão do resto”, como já caracterizada nos trabalhos de Parag Khanna – The Second
World: How Emerging Powers Are Redefining Global Competition in the Twentieth-
64
first Century (New York: Random House, 2008); How to Run the World: Charting a
Course to the Next Renaissance (New York: Random House, 2011) – e do já referido
Fareed Zakaria, poderia implicar no “fim do século americano”; aventa-se também a
hipótese de que a nova descentralização permitida pelo relativo declínio do gigante
americano equivaleria a uma “democratização” do mundo e o estabelecimento de
relações mais “igualitárias” entre os grandes atores, sem a típica arrogância imperial
ainda hoje manifesta.
Não há dúvida de que o “resto” – e mais particularmente os emergentes
dinâmicos – vai se aproximar, mais ou menos rapidamente segundo os casos, dos
padrões de vida e de consumo dos atuais países membros da OCDE, convertendo o
mundo numa grande “classe média” relativamente estabilizada demograficamente,
ainda que não totalmente democrática e respeitadora dos direitos humanos, como
parecem ser os critérios de inclusividade nesse atual “clube restrito de países ricos”.
Estima-se que em três ou quatro décadas, eles possam ascender aos níveis de renda e de
prosperidade relativa que são os da Europa continental atualmente, que poderá (ou não,
dependendo de sua capacidade de reformar-se e avançar) ter progredido ainda mais,
para patamares de abundância ainda mais afirmada.
Os novos malthusianos – que são os ecologistas não equipados de conhecimento
científico apropriado – podem até se alarmar ante essa perspectiva, imaginando que, se
os chineses exibirem o perfil de consumo energético dos americanos, isso representaria
o equivalente de uma população mundial de várias dezenas de bilhões de habitantes,
condenando todos ao esgotamento dos recursos naturais e a uma crise irremediável dos
padrões civilizatórios. O mais provável é que a engenhosidade humana – feita de novas
tecnologias e de adaptações realistas aos preços de mercado – consiga responder a esses
desafios, sem cair na abordagem romântico-alucinada dos novos rousseaunianos
ingênuos (mas os velhos também eram...).
No plano geopolítico existe a tendência a considerar que esses novos
desenvolvimentos seriam eminentemente positivos, já que poderia haver a “redução do
unilateralismo imperial”, a partir das novas condições de retração do “poder
hegemônico” (ou qualquer outra variante dessas teses). Essa situação representaria um
suposto “avanço democrático” – simbolicamente representado pela reforma da Carta da
ONU e a ampliação do seu Conselho de Segurança, uma das principais reivindicações
de três dos Brics que ainda não fazem parte do inner circle – e garantiria, supostamente,
um horizonte politico mais conforme às novas realidades da economia mundial. Essa
65
descentralização pode até corresponder aos sonhos de ascensão de alguns emergentes,
mas não significaria necessariamente uma “pacificação” mundial e as garantias de
segurança e estabilidade que a atual “ordem hegemônica” garantiu – com uma pequena
ajuda da dissuasão nuclear – nas últimas décadas.
Alguns autores – entre eles o já citado Parag Khanna, mas também Robert
Kagan, este em The Return of History and the End of Dreams (Nova York: Knopf,
2008) – já fizeram analogias históricas entre a “ascensão do resto” e situações
geopolíticas anteriores, seja como um equivalente da “anarquia militar” do
Renascimento, seja como a da paz armada europeia do final do século XIX, a do
“equilíbrio dos grandes poderes”, feitos de alianças cruzadas e de muitos cálculos
estratégicos. Uma situação desse tipo não significa, portanto, um mundo mais estável,
mais justo ou mais pacífico, e sim um mundo mais instável e, talvez, potencialmente
mais propenso a tensões setoriais podendo resultar em conflitos abertos. Não se deve
esquecer, tampouco, que alguns dos Brics – os maiores, justamente, em termos
geopolíticos e militares – não são exatamente modelos de democracia e de respeito aos
direitos humanos, como aliás se pode constatar desde agora nos debates do CSNU em
torno de alguns regimes repressivos do Oriente Médio ou alhures, objetos de projetos de
resoluções “punitivas” que não logram superar o direito de veto exercido de modo
cínico-realista pelos “ascendentes”.
Pode-se, assim, dizer, que os Brics apresentam perspectivas “luminosas” para a
nova ordem internacional? Talvez seja efetivamente o caso, se isso representar a
conversão do mundo atual, desigual e assimétrico como querem alguns (de fato, ainda
pobre e desequilibrado), em um planeta mais igualitário e de “classe média”, mais
próspero e, portanto, mais pacífico, de conformidade com as teses de Montesquieu
sobre o doux commerce como “temperador” das paixões humanas mais violentas. É
possível que esse cenário ideal seja factível, pari-passu à evolução econômica e política
do mundo, mas conviria guardar certo realismo nas análises que possam ser feitas num
ambiente acadêmico (e até governamental). Que os Brics representem um fator positivo
na geoeconomia mundial, isso é inegável. Que eles sejam um fator eminentemente
positivo em todas as demais equações da geopolítica mundial, ainda é uma tese que
precisa ser comprovada com base nas ações efetivas para tornar a governança mundial
não apenas mais segura e estável em termos geopolíticos e econômicos, mas sobretudo
mais democrática e mais respeitadora dos direitos humanos no terreno dos valores e dos
princípios civilizatórios. CQD...
66
2325. “Os Brics na nova conjuntura de crise econômica mundial”, Brasília, 7 outubro
2011, 9 p. Ensaio sobre o papel dos Brics no contexto atual. Mundorama
(10/10/2011; link: http://mundorama.net/2011/10/10/os-brics-na-nova-conjuntura-
de-crise-economica-mundial-por-paulo-roberto-de-almeida/). Dividido em três
partes para o Observador Político (1a. parte: 26/10/2011; 2a parte: 27/10/2011; 3a
parte: 28/10/2011). Publicado na revista Espaço da Sophia (vol. 45, n. 1, janeiro-
junho 2012, ISSN: 1981-318X; p. 111-123). Relação de Publicados n. 1056 e 1964.
Relação de Publicados n. 1056.

67
8. A Guerra Fria Econômica: um cenário de transição?

Velhas Realidades
A Guerra Fria geopolítica está encerrada definitivamente, ao que parece. A
despeito de tensões políticas “normais” e fricções comerciais entre as grandes potências,
não existem mais concepções totalmente opostas sobre como organizar o mundo,
economicamente ou politicamente. Ninguém mais está dizendo algo semelhante a “nós
vamos enterrar vocês”, como ocorreu no passado com um líder soviético. Daniel Bell,
recentemente falecido, já tinha antecipado, desde meados dos anos 1950, o “fim das
ideologias”, julgamento de certa medida confirmado por Francis Fukuyama. Mas, no
que depender de gente como Eric Hobsbawm, e de inocentes úteis desse tipo, as
ideologias ainda têm um brilhante futuro pela frente...
O que estamos assistindo agora, na verdade, é uma Guerra Fria econômica, ou
algo próximo disso. De fato, não parece haver nada capaz de provocar uma
confrontação em grande escala entre as maiores potências. O que temos, na presente
conjuntura, são fricções comerciais e desalinhamentos monetários, num cenário de
ajustes pós-crise. Existem disputas políticas sobre como as políticas econômicas
nacionais devem levar em consideração seus impactos sobre a situação econômica de
outros países. Como Mark Twain poderia ter argumentado, os rumores sobre uma
guerra cambial global são grandemente exagerados. É certo que ainda não superamos
totalmente a presente crise financeira; mas ela é apenas uma, dentre muitas outras, que
afetam mercados dinâmicos de forma recorrente desde o começo do capitalismo.

68
Profetas da crise final do capitalismo e outros utopistas do gênero vão novamente se
sentir frustrados dentro de alguns meses (sem reconhecer o fato, claro).
Existem muitas concepções errôneas sobre as origens e o desenvolvimento da
crise atual, várias delas propagadas pelos mesmos utopistas conhecidos. Não é
exatamente verdade que esta crise tenha sido provocada pela desregulação dos
mercados financeiros, ainda que a regulação flexível, ou mal implementada, possa ter
facilitado a expansão de várias bolhas nos mercados. O maior responsável pela bolha
que provocou o desastre, porém, foram as baixas taxas de juros definidas pelos bancos
centrais, a começar pelo Federal Reserve, durante um período muito longo. Da mesma
maneira, mas talvez por meios e instrumentos um pouco diferentes, que os velhos Lords
of Finance dos anos 1920 criaram as condições que levaram à crise de 1929 e à
depressão dos anos 1930, pela sua ação ou inação, a presente crise é o resultado de
políticas inadequadas dos novos Lords of Finance (ver o livro de Liaquat Ahamed,
Lords of Finance: the Bankers who Broke the World; New York: Penguin, 2009.)
Tampouco é verdade que a crise atual, ou as crises – já que são várias,
interconectadas – são suficientemente severas para justificar o programa, que muitos
recomendam, de um novo Bretton Woods, ou seja, um redesenho completo das relações
econômicas mundiais, com a restruturação das organizações existentes. Menções a uma
nova arquitetura financeira internacional, ou mesmo de redistribuição do poder
econômico mundial, estão em contradição com as realidades mais prosaicas dos nossos
dias. Comentaristas superficiais gostam de recorrer a grandes analogias históricas – que
em geral são falsas – para falar dos eventos correntes, mas o fato é que não estamos
vivenciando nenhum grande ajuste posterior a alguma crise de proporções
monumentais, como gostariam alguns. Vivemos, é certo, uma transição, mas não uma
revolução, qualquer que seja o sentido que possamos dar a esses conceitos. Vejamos os
precedentes.
Não estamos em face de um reordenamento radical e completo da ordem
mundial, após algum evento cataclísmico, afetando todos e cada um dos grandes atores
da cena internacional, ou mesmo regional. Não estamos em Wesfália, em 1648; não
estamos em Viena em 1815; tampouco estamos em Paris ou Versalhes, em 1919, sequer
em Bretton Woods em 1944, e muito menos em São Francisco, em 1945.
Definitivamente, não estamos em nenhum momento de refundação fundamental da
ordem política e econômica internacional. Simplesmente estamos, atualmente, no meio
de algo semelhante aos anos 1930, tentando administrar uma grande crise por meio de
69
respostas nacionais, cada uma delas adaptada a circunstâncias específicas de cada país,
e desvinculada dos maiores desastres afetando os demais e cada um dos países
envolvidos no processo.
Para ser mais preciso, estamos em algum ponto entre 1931 e 1933, ainda no
meio de uma recessão, mas não numa depressão. O nível de desemprego não é tão alto
quanto em 1933, e está provavelmente alinhado com os padrões dos nossos dias. Os
fluxos comerciais e financeiros não foram tão desestruturados quanto nos anos 1930,
ainda que a liberalização econômica tenha regredido: apenas revertemos a uma versão
light do protecionismo comercial dos velhos tempos, mas sem cotas ou restrições
quantitativas ao velho estilo.
Esta nova Guerra Fria Econômica emerge a partir de mudanças estruturais na
economia mundial, já em curso desde os anos 1980, quando a China começou a
flexionar os seus músculos novamente. Ao mesmo tempo, os países em
desenvolvimento deixaram de implementar projetos nacionais, introvertidos, de
desenvolvimento nacional e abriram-se aos investimentos estrangeiros. Desde então, o a
economia mundial foi transformada irreversivelmente, embora gradualmente.
Mas nem tudo, obviamente, mudou. As principais instituições de tomada de
decisões ainda continuam a ser o que sempre foram, com a mesma distribuição dos
direitos de voto. O FMI e o Banco Mundial estão no meio de seus labores para definir
uma nova repartição de votos, tendo já operado algumas acomodações. Os votos
coletivos da China, da Índia e do Brasil é 20% menor do que os da Bélgica, dos Países
Baixos e da Itália, a despeito do fato que o PIB conjunto do primeiros países é quatro
vezes maior do que aquele de seus contrapartes europeus; eles têm uma população 29
vezes maior. Estas são algumas das razões para uma nova Guerra Fria econômica.
Como administrar estas novas realidades no terreno econômico, dispondo das
mesmas alavancas políticas e das mesmas velhas estruturas de tomada de decisão como
nos processos do passado? Esta é uma questão complicada, sem uma resposta clara ao
dilema. Administrar a economia mundial é uma pretensão que mesmo o velho G7 nunca
conseguiu alcançar nos seus tempos gloriosos. Os países desenvolvidos controlavam
então uma grande proporção do PIB mundial e dos fluxos comerciais e financeiros. Mas
eles nunca foram capazes de coordenar suas políticas macroeconômicas entre eles
mesmos; menos ainda se poderia esperar que eles estabelecessem regras e metas para o
resto do mundo.

70
Atualmente, com uma penosa queda nas economias avançadas, parece difícil
visualizar o que poderia ser feito para restaurar o crescimento a partir de níveis
próximos da estagnação em várias economias europeias. Além dos problemas cíclicos
afetando as grandes economias (com as exceções da China, da Índia e de alguns outros
países), existem vários desafios globais à frente, entre eles o da pobreza nos países
menos avançados, e grandes decisões a serem tomadas em relação a questões
ambientais, a violações dos direitos humanos em países não democráticos, e vários
outros temas relevantes.
Uma estratégia singular poderia ser a definição de apenas uma grande meta
global para a comunidade mundial: teria de ser a promoção do desenvolvimento global,
não exatamente através da assistência (ou a tradicional Ajuda Oficial ao
Desenvolvimento), mas prioritariamente através de uma real liberalização comercial,
especialmente no setor agrícola, a única possibilidade efetiva para que os países menos
avançados possam ser integrados à economia mundial. Os Estados Unidos e a União
Europeia possuem, evidentemente, a maior responsabilidade nesse terreno.
É altamente improvável que propostas consensuais relativas ao desenvolvimento
global possam emergir de um fórum tão amplo quanto o G20 financeiro, muito
heterogêneo para ser capaz de alcançar posições comuns. Talvez fosse mais indicado
lograr uma evolução informal do atual G8 para um novo G13, interrompendo o ciclo do
atual G20 (o que talvez já seja difícil de se obter). Isso representaria agregar aos atuais
membros do G8 outras cinco grandes economias, nomeadamente Brasil, China, Índia,
África do Sul, e ou Indonésia ou México. A experiência demonstra que pequenos
grupos informais estão mais próximos de se entenderam sobre ações concretas do que
grandes órgãos institucionalizados que acabam dominados pela lerdeza burocrática e
desentendimentos políticos.

Novas Perspectivas?
O que deve ser feito? O maior problema nessa modalidade organizacional de se
ter um G20 diminuído seria o de como adquirir a legitimidade implícita ao ato de falar
para toda a comunidade mundial partindo de um fórum de apenas 13 países. Para
resolver essa limitação se necessitaria de um grau de confiança política entre os líderes
desses 13 países, definindo um terreno de entendimentos recíprocos entre eles que teria
de ser compatível com a função de representação mais ampla que eles pretenderiam
assumir em nome de toda a comunidade de nações.
71
Encontrar terrenos comuns é uma tarefa dura de ser alcançada no estado atual
das relações internacionais, caracterizada, como já se sublinhou, por uma guerra fria
econômica típica das fases de transição. Parece ser bastante difícil de se lograr uma
coordenação perfeita das agendas dos grandes países avançados e das economias
emergentes e, mais ainda, entre eles todos e os demais membros das organizações
internacionais que eles pretenderiam “substituir”. O mundo não é, simplesmente, tão
globalizado como se requereria para alcançar esse tipo de interação. Disparidades de
interesses, diferenças entre níveis de desenvolvimento, desequilíbrios entre os países,
vários fatores se combinam para tornar praticamente impossível um exercício de
coordenação desse tipo.
Uma proposta mais modesta poderia ser se obter uma interação mais frequente –
uma vez ao ano – entre os líderes desse novo G13. Sherpas especialmente designados,
encontrando-se duas vezes ao ano, poderiam ser mobiliados para discutir questões
comerciais, assuntos ambientais, a proteção dos direitos humanos em países
apresentando conflitos, missões de peace-keeping das Nações Unidas e outros temas do
gênero, dotados de mandatos específicos de seus líderes políticos. Mas não se deve
esperar pela ONU para organizar esse tipo de agenda. Já é difícil implementar qualquer
coisa através da ONU, um órgão muito burocrático e passavelmente caótico. Melhor
realizar a coordenação de agendas através das três mais importantes agências para a
globalização contemporânea: o FMI, o Banco Mundial e a OMC.
A tarefa principal dos “novos sherpas” seria a de assegurar a coordenação
econômica internacional em torno dos temas mais relevantes para a comunidade global.
Uma sugestão possível seria tentar estabelecer um “global new deal”, um novo pacto
mundial, intercambiando uma proteção extensiva aos investimentos e à riqueza
proprietária (patentes e coisas do gênero), assim como outras condições apropriadas
para o desenvolvimento da atividade produtiva no plano microeconômico, do lado dos
países em desenvolvimento (ou recebedores de IDE), contra práticas de licenciamento
extensivo e investimentos efetivos e liberalização comercial da parte dos países ricos e
dos investidores privados. Esse tipo de pacto, ao ampliar os direitos proprietários para
os ricos, poderia resultar no fortalecimento dos fluxos de investimentos financeiros e de
comércio para os pobres, dando um grande impulso à globalização.
A assistência tradicional ao desenvolvimento, por ineficiente, deveria ser
substituída, essencialmente, por um novo foco nas melhorias educacionais graduais, ou
seja, um extenso programa para a qualificação de recursos humanos. A assistência,
72
enquanto tal, deveria ser as limitada à implementação de um programa consistente de
erradicação da maior parte das doenças infecciosas nos países africanos e em vários
outras nações em desenvolvimento. A maior razão para a persistência da pobreza nesses
países não é exatamente a falta de recursos, mas a ausência de governança e sua não-
integração à economia mundial através de vínculos comerciais.
Considerando que questões de governança democrática e de proteção dos
direitos humanos podem ser um desafio para países como a China, ou mesmo, talvez,
para a Rússia, o alvo principal da agenda de um novo G13 poderia ser a adoção de altos
padrões de governança pública na acepção técnica desta expressão. Na atual fase de
guerra fria econômica pode ser precoce a tentativa de se fazer da governança
democrática e do respeito pelos direitos humanos o critério decisivo para a cooperação
bilateral ou multilateral. Mas estes devem ser os fins últimos de qualquer tipo
governança global. Em última instância, a agenda de Fukuyama permanece atual e
absolutamente necessária. Remeto, a propósito, ao meu artigo: “O Fim da História, de
Fukuyama, vinte anos depois: o que ficou?” (Meridiano 47, n. 114, janeiro 2010, p. 8-
17; link: http://meridiano47.files.wordpress.com/2010/05/v11n1a03.pdf). Esse
programa não tem nada a ver com o fim da história, e sim com o fim dos regimes
autoritários e fechados economicamente. Se existe algum determinismo na História, este
parece ser o único aceitável.

2241. “A Guerra Fria Econômica: um cenário de transição?”, Brasília, 31 Janeiro 2011,


6 p. Versão em Português, ligeiramente ampliada do trabalho n. 2202 (“Now, an
Economic Cold War: Old Realities, New Prospects”). Publicado em Mundorama
(01/02/2011; link: http://mundorama.net/2011/02/01/a-guerra-fria-economica-um-
cenario-de-transicao-por-paulo-roberto-de-almeida/#more-7197). Republicado em
Via Política (07/02/2011) e em Dom Total (10/02/2011; link:
http://www.domtotal.com/colunas/detalhes.php?artId=1809). Relação de
Publicados n. 1020.

73
9. Desafios da economia brasileira na interdependência global

A bonança dos anos 2000 e o início da crise econômica em 2008


A economia brasileira atravessou uma situação relativamente confortável a partir de
2004, depois que foram feitos os ajustes pós-crise-de 2002, justamente suscitados pelo
ambiente de temor despertado pela vitória do Partido dos Trabalhadores nas eleições
presidenciais daquele ano. Graças a uns poucos “neoliberais” do partido, mas também
devido à gravidade da ameaça cambial e ao recrudescimento da inflação, as políticas
econômicas foram mantidas – e até reforçadas – na exata linha do governo precedente, o
de Fernando Henrique Cardoso. Os efeitos positivos das reformas conduzidas na década
anterior e dos ajustes feitos depois da crise cambial de 1999 permitiram ao Brasil
aproveitar ao máximo a fase de maior crescimento da economia mundial desde os
choques do petróleo dos anos 1970 e da crise da dívida externa dos países latino-
americanos na década seguinte. Turbinado pela excepcional demanda chinesa por seus
produtos primários, o Brasil voltou a conhecer taxas de crescimento que não via desde
aquela época.
Até o momento da crise imobiliária, e logo em seguida financeira, nos Estados
Unidos, a maior parte das commodities tinha alcançado o seu mais alto nível histórico,
com picos jamais vistos antes: 600 dólares a tonelada de soja, por exemplo, ou 180
dólares a tonelada de minério de ferro, e também outros recordes para as demais
matérias primas. O Brasil surfou na demanda chinesa, com uma média de crescimento
de 4% ao ano aproximadamente. Em 2009, é verdade, a taxa de crescimento despencou,

74
para menos de 1%, apenas para dar um salto quase “chinês” no ano seguinte: mais de
7% em 2010, o que permitiu a Lula, entre outras façanhas, eleger sua desconhecida
candidata nas eleições presidenciais de outubro daquele ano.
Desde então, infelizmente, o desempenho da economia brasileira entrou numa fase
medíocre, com crescimento de menos de 2% ao ano. Entre os fatores está, mas apenas
em parte, a moderação nos preços dos produtos primários de exportação, convertidos
novamente, depois de várias décadas, na principal fonte de divisas no comércio exterior.
Concorre também a perda de competitividade industrial, uma vez que o Brasil se tornou
um país muito caro – e não apenas devido ao câmbio valorizado – em vista da carga
fiscal extremamente elevada sobre os processos produtivos: a palavra da conjuntura
passou a ser desindustrialização. Na verdade, os problemas mais importantes derivam
dos erros de política econômica cometidos pelo governo desde 2008, pelo menos, com
um crescimento contínuo da extração tributária, das despesas do governo e de uma taxa
de inflação constantemente acima da meta fixada pelo próprio governo.
Cabe com efeito recordar que, dentre os países em desenvolvimento, o Brasil possui
uma carga fiscal típica de país rico, perto de 38% do PIB, para uma renda per capita
cinco ou seis vezes inferior à dos países da OCDE. Pode-se mencionar igualmente um
ambiente de negócios muito difícil para investidores e empresários em geral, dados os
instintos intervencionistas e dirigistas tradicionais no Brasil mas exacerbados no Partido
dos Trabalhadores. O fator principal, obviamente, se deve a que o Estado gasta sempre
mais do que o crescimento do PIB e da inflação, et gasta mal, muito pouco em
investimentos produtivos, e muito em despesas correntes, em especial subsídios a
setores já privilegiados.
Em lugar de empreender reformas, os responsáveis políticos continuam distribuindo
favores setoriais ou recorrendo a medidas protecionistas que apenas agravam a situação,
já que elas provocam mais inflação e um grau ainda menor de competitividade externa
para a indústria. Esta foi praticamente confinada ao Mercosul, tampouco protegido da
competição externa, sobretudo da China; o bloco é também afetado pelas medidas ainda
mais protecionistas da Argentina, que era o terceiro parceiro mais importante do Brasil,
depois da União Europeia e dos Estados Unidos, todos eles suplantados desde 2009 pela
China. Com o país asiático, o Brasil passou a manter uma relação comercial quase
colonial, feita de 95% de matérias primas para lá, e de 95% de manufaturados para cá.
A balança comercial começou a se deteriorar, ela que constitui o único recurso em
face de um déficit crônico na balança de serviços; a continuar a tendência negativa,
75
mesmo as enormes reservas financeiras do Brasil podem não ser suficientes, uma vez
que estão quase todas aplicadas em Treasury bonds, que produzem um retorno
insignificante comparativamente ao custo fiscal de sua manutenção. O fato é que a
situação econômica se agravou sensivelmente, com ameaças reais ao processo de
estabilização iniciado pelo Plano Real em 1994: depois de quatro anos de desacertos na
política econômica, o que se tem é um crescimento medíocre e uma inflação crescente.

Fatores positivos e debilidades estruturais da economia brasileira


O Brasil dispões de enormes recursos naturais, que permitem, no agronegócio –
empurrado por avanços tecnológicos impressionantes nas últimas décadas – uma
posição mundial invejável como grande exportador de produtos agrícolas, tanto não
processados quanto elaborados. Com as possibilidades de produção de energia
renovável – sobretudo em etanol et biodiesel – estão dadas as condições para um
processo sustentado de crescimento baseado em suas vantagens comparativas e
competitivas. O agrobusiness brasileiro pode ser um vencedor absoluto nos mercados
mundiais, se ele não fosse contido por uma infraestrutura lamentável além da porteira
das fazendas; seria possível melhorar nos próximos anos com investimentos adequados,
inclusive estrangeiros, com base num regime atrativo de concessões.
As políticas industriais “stalinistas” do Partido dos Trabalhadores estão mudando por
força da realidade, muito embora o processo de privatização conhecido nos anos 1990
não tenha mais chance de ser implementado novamente. Tais políticas anacrônicas
ainda foram colocadas em vigor no setor do petróleo, cuja regulação foi totalmente
alterada desde a descoberta das jazidas do pré-sal, uma imensa província petrolífera que
demanda, entretanto, investimentos enormes, muito acima da capacidade da empresa
estatal de petróleo, de resto mal administrada durante toda a era do lulo-petismo. Com a
Petrobras ocorreu um dos processos mais clamorosos de desmantelamento gerencial,
não apenas devido a decisões de investimento totalmente equivocadas, mas também em
função de corrupção na mais vasta escala conhecida na história econômica do Brasil. Se
o Brasil escapar da maldição do petróleo – o que pode estar sendo facilitado pela baixa
dos preços do produto nos mercados mundiais – ele teria chances de recompor esse
setor num sentido bem mais “norueguês” do que nigeriano ou venezuelano, como foi
infelizmente o caso nos últimos anos.
A demanda mundial de alimentos e de energia vai constituir um poderoso fator de
indução do aumento da oferta agrícola e energética renovável, tanto em função da
76
extensão ainda mobilizável das terras agricultáveis, quanto em razão de ganhos de
produtividade que vão continuar a se manifestar no agronegócio. Este será, certamente,
a principal fonte de crescimento no futuro previsível, estimulando tanto a ciência
aplicada, quanto equipamentos industriais e investimentos em infraestrutura.
Do lado das fraquezas e debilidades estruturais, elas são numerosas, e têm a ver, em
primeiro lugar, com o peso desmesurado do Estado na esfera econômica em geral, nas
decisões dos empresários, em especial. Na vida diária, o cidadão é esmagado por uma
burocracia bizantina, sem serviços correspondentes ao recolhimento de impostos diretos
e indiretos. O mais paradoxal é que os brasileiros amam o Estado, estão sempre pedindo
mais políticas públicas e também sonham em se converter em funcionários públicos –
por uma razão muito simples: os salários do setor público são, na média, cinco a seis
vezes mais elevados dos cargos correspondentes no setor privado. No limite, as
atividades econômicas no Brasil são estranguladas por uma espécie de fascismo
corporativo que torna difícil o exercício de atividades empresariais (para comprovar,
basta consultar o Doing Business do Banco Mundial, para se ter dezenas de exemplos
concretos desse cenário). O Estado brasileiro, que no passado já foi um poderoso
indutor do crescimento econômico, tornou-se, ao longo dos anos, o principal obstrutor
do crescimento, com sua carga fiscal monstruosa, suas regulações intrusivas, não
esquecendo a corrupção generalizada que se disseminou nos últimos anos.
Entretanto, o principal fator limitante – em relação ao qual existem razões para um
pessimismo absoluto – se situa nos níveis de qualidade deploráveis da educação
elementar e secundária: o Brasil ocupa, sistematicamente, os últimos lugares nos
exames comparativos do PISA-OCDE, com resultados extremamente negativos mesmos
nas escolas privadas, que deveriam ser, supostamente, bem melhores do que as escolas
públicas. Até mesmo nas universidades existe um grau anormalmente elevado de
analfabetos funcionais, o que repercute nos níveis medíocres de produtividade do
trabalho. Como os resultados nessa área tardam a se materializar, desde que as políticas
corretas sejam aplicadas, não existem nenhum risco de que essa situação venha a ser
revertida no médio prazo, uma vez que políticas e medidas totalmente equivocadas são
continuamente adotadas na esfera educacional.

Que chances teria o Brasil de superar sua condição de eterno emergente?


A solução parece residir num conjunto de reformas estruturais que teriam de ter sido
iniciadas pelo menos depois da segunda estabilização do Plano Real, em 1999, quando
77
se adotou um regime de metas de inflação, uma política de câmbio flutuante e a opção
por uma política fiscal responsável. O fato é que esse tripé econômico foi desmantelado
a partir de 2008, e precisa ser penosamente reconstruído em condições já não tão
favoráveis quanto aquelas que vigoraram na maior parte dos anos 2000 justamente.
Reformas econômicas são sempre possíveis de serem feitas sobre a base de uma
autoridade política decidida e comprometida com políticas responsáveis, o que não
parece ser o caso na atual conjuntura institucional.
As reformas mais importantes, contudo, se situam no plano administrativo – ou seja,
do próprio Estado e do seu modo de funcionamento --, no terreno da legislação laboral
e, sobretudo, no plano da educação, em todos os níveis, com destaque para os dois
primeiros ciclos e o ensino técnico-profissional. Uma verdadeira revolução seria
necessária em todos esses setores, o que não parece perto de acontecer por falta de
consenso nacional em torno do caráter dramático da situação em todas essas áreas.
Durante muitos anos, líderes políticos, dirigentes sindicais e membros da academia
foram dominados por uma ideologia populista-distributivista antiquada, que se opõe
ferozmente a conceitos como eficácia, produtividade ou cobrança de resultados.
No plano institucional, há o desafio de uma Constituição expressamente concebida
para distribuir favores e benesses pela via estatal, o que implica necessariamente o
crescimento das despesas públicas de maneira contínua e sistemática. No terreno da
psicologia nacional, parece difícil vencer a mentalidade assistencialista que faz com que
um quarto da população seja beneficiada com transferências diretas em moeda, que
constituem bem mais um subsídio ao consumo do que propriamente uma indução à sua
incorporação no mercado de trabalho. Outra deformação se manifesta nos gastos
previdenciários, que já consomem uma parte considerável do PIB, sem que a fração
idosa da população tenha crescido de maneira proporcional aos fluxos dirigidos para
esse tipo de prestação estatal; em outros termos, o problema vai se agravar futuramente.
Por fim, um nacionalismo canhestro conduz o Brasil a uma introversão das mais
negativas numa fase de integração produtiva requerida pela globalização capitalista. O
Brasil, como nos tempos do stalinismo triunfante, pensa construir “um capitalismo num
só país”, ou pelo menos assim pensam os atuais dirigentes políticos, ainda que os
discursos sejam pela atração de investimentos e participação no comércio mundial. As
exigências sempre presentes de conteúdo local e de preferência pela oferta nacional
impõem um custo adicional ao setor produtivo brasileiro, de resto já isolado dos
processos mais dinâmicos da interdependência global pela mentalidade canhestra da
78
maior parte das elites políticas e econômicas. De fato, o Brasil não é um país tão
atrasado no plano material quanto ele o é no plano mental de suas lideranças.
Se e quando o Brasil for capaz de superar os grilhões que o prendem a concepções
econômicas anacrônicas, ele teria chances de começar uma lenta retomada de um
processo sustentado de crescimento econômico. O principal fator impeditivo, cabe
repetir, se situa num Estado extrator das riquezas alheias e predador das energias
empresariais: enquanto o ogro famélico não for contido, o Brasil continuará um eterno
emergente.

2781. “Desafios da economia brasileira na interdependência global”, Hartford, 25


fevereiro 2015, 5 p. Análise da situação atual do Brasil feita com base no trabalho
2555 (“Le Brésil dans l’économie mondiale”). Publicado no Instituto Millenium
(11/03/2015; link: http://www.institutomillenium.org.br/artigos/desafios-da-
economia-brasileira-na-interdependncia-global-2/); em Mundorama (30/03/2015;
link: http://mundorama.net/2015/03/30/desafios-da-economia-brasileira-na-
interdependencia-global-por-paulo-roberto-de-almeida/). Relação de Publicados n.
1167.

79
10. A agenda econômica internacional: o cenário atual

Depois de oito anos de deslanchada a crise imobiliária e bancária nos Estados


Unidos, da qual eles se recuperam lenta mas seguramente, os demais países avançados
(o Japão certamente, os países europeus em ritmo mais diversificado) continuam a
trilhar o caminho da superação dos piores problemas acumulados na passagem da
década, mas ainda no baixo crescimento e enfrentando a tradicional irresolução de
políticos timoratos em conduzir um programa consistente de reformas estruturais. O
mundo só não está pior porque uma parte das economias emergentes dinâmicas serve de
motor limitado para a economia global. Aquela expectativa de que, funcionando de
maneira simbiótica, EUA e China poderiam representar uma poderosa locomotiva de
expansão contínua do comércio e dos investimentos internacionais não se confirmou, e
a própria China parece acumular alguns desequilíbrios – nas áreas financeira e
imobiliária justamente – que podem prolongar a atual lentidão na retomada de um ritmo
mais sustentado da economia global.
Todos os países desenvolvidos podem ter exagerado nas medidas de “estímulo
econômico” – ou seja, a velha injeção keynesiana de liquidez nos mercados – e de
incentivo ao investimento – reduzindo as taxas de juros a praticamente zero, quando não
são negativas em alguns – o que promete continuar desestimulando a poupança e
agregar aos níveis já altos, até exagerados, de endividamento público. O consolo é que o

80
custo dessas dívidas ainda é relativamente baixo, mas o retorno a condições normais de
juros, combinado ao declínio demográfico em vários deles, não augura um futuro
brilhante para a atual geração de entrantes no mercado e suas respectivas
aposentadorias.
Uma eventual recessão na China – aparentemente improvável, mas não de todo
impossível, ou descartável – pode piorar, e bastante, o cenário de médio prazo para os
países que se tornaram parceiros comerciais privilegiados, em especial os exportadores
de produtos primários da África e da América Latina, que se beneficiaram bastante bem
do boom das commodities dos anos fastos, quando a China absorvia entre um quarto e
um terço de várias mercadorias e insumos de base. O Brasil – o governo Lula em
especial – foi um desses felizardos que se locupletaram de dólares com a soja a 600
dólares e o minério de ferro a 200 dólares a tonelada; ao que parece, esse tempo já
passou, embora os preços dos agrícolas e das carnes não tenham declinado para
profundezas tão tenebrosas quanto as dos fósseis e de alguns metálicos. Em todo caso, o
mundo pode se beneficiar do petróleo barato e da nova demanda de manufaturados por
parte das novas “classes médias” pipocando aqui e ali em diversos continentes (alô
Apple, alô Samsung!).
No terreno do comércio internacional, as perspectivas não são entusiasmantes:
as negociações da Rodada Doha estão em crise, seus resultados até aqui foram mais do
que decepcionantes e não se vislumbra sua conclusão próxima ou mesmo hipotética,
muito embora se tenha registrado a preservação do básico, que é um respeito mínimo
pelas regras multilaterais, com salvaguardas e antidumping registrando estatísticas mais
ou menos “normais” (com exceção de alguns recalcitrantes e protecionistas renitentes,
como pode ser o caso aqui mesmo na América Latina); mas, pela primeira vez em
décadas, a taxa de crescimento do comércio mundial fica abaixo da expansão do
produto, ainda que com grandes desigualdades regionais (na Ásia Pacífico, por
exemplo, a expansão comercial se mantém em ritmo razoável dentro da própria região).
No terreno das finanças e das moedas não se registraram as catástrofes que
alguns profetas do apocalipse do passado – o da repetição da Grande Depressão dos
anos 1930 – tinham anunciado quando das crises bancárias de 2008 e 2009, mas vários
economistas falam da atual Grande Recessão com um prazer quase mórbido. Tensões e
conflitos localizados se manifestam aqui e ali, a descoordenação é garantida nas
políticas macroeconômicas dos integrantes do G20, mas não se tem mais a acrimônia de
uma suposta “guerra cambial” do yuan contra as principais moedas ocidentais; aqueles
81
que falavam de “tsunami financeiro” se preocupam agora com a retração dos fluxos de
dinheiro fácil que, jorrando, alimentavam alguns belos déficits de transações correntes
aqui e ali (não é keynesianos de botequim de conhecidos países equilibristas bêbados?).
Nos principais países desenvolvidos se observa, nesse capítulo, a continuidade
da livre movimentação de capitais, com os controles esperados nos emergentes, e com
as paridades cambiais evoluindo gradualmente, embora surpresas desagradáveis não
sejam de se descartar (o tango dólar-euro é um dos mais interessantes). A inflação baixa
está garantida nos principais países responsáveis, e só malucos localizados conhecem
taxas a dois dígitos (mas esses são casos terminais de esquizofrenia econômica);
inovadores monetários – como alguns que achavam que uma expansão irrefletida do
crédito poderia sustentar um boom de consumo e de investimentos – se encontram hoje
em maus lençóis, tendo de suportar greves e o descontentamento dessa classe média
alimentada na ilusão do crediário “sem juros”. Aprendizes de feiticeiros econômicos
acabam aprendendo da pior maneira, tendo de administrar a velha conhecida
estagflação, ou seja, a combinação da estagnação econômica, com baixo crescimento e
alto desemprego e uma inflação persistente, como tinha sido o caso nas principais
economias avançadas pós-choques do petróleo dos anos 1970. Seria agora a vez do
Brasil?
Keynes deve ter escrito em algum lugar que nunca se é profeta duas vezes, mas
tem gente que não lê nem orelhas dos manuais econômicos, quanto mais as obras
completas do mais irreverente professor de Cambridge. Seus atuais seguidores de
araque se contentam com as platitudes neo-Prebischianas de um coreano da mesma
universidade, que também acha que existe um complô dos ricos contra os pobres,
aqueles chutando a escada pela qual deveriam subir os novos desenvolvimentistas.
Alguns até continuam repetindo as mesmas bobagens dos anos 1990 contra o Consenso
de Washington, como se essas simples regras de bom senso reformista tivessem algo a
ver com as agruras passadas ou com as angustias presentes dos neo-estagnacionistas.
A despeito de todos esses percalços, o regime econômico multilateral se
mantém mais ou menos intacto, tal como concebido em Bretton Woods mais de setenta
anos atrás e reformado aqui e ali com remendos de ocasião por quem podia fazê-los.
Outros países se contentam em absorver os choques e aproveitam para dar continuidade
às mesmas políticas oportunistas que foram as suas nas fases de industrialização
triunfante, o que de toda forma lhes assegurou certo aumento no bolo da
interdependência global. Alguns certamente avançaram, como os emergentes da Ásia
82
Pacífico, bem mais, em todo caso, do que os saudosistas da América Latina, que
parecem não sair do lugar, ou retroceder.
No terreno da segurança, que também tem impactos econômicos, em lugar da
diminuição gradual dos focos de tensão entre as grandes potências, observa-se o que
alguns chamam de retorno à Guerra Fria, não se sabe se como farsa, ou se como simples
sobressaltos de suspiros imperiais, na antiga periferia soviética. O Oriente Médio nunca
decepciona em confirmar as piores expectativas que sempre marcaram aquela região,
com o longo impasse entre Israel e Palestina, e os novos problemas do fundamentalismo
islâmico agora convertido em califado expansionista e guerreiro. Com isso, o rebrote de
tensões e de conflitos civis ou inter-religiosos, em estados semifalidos (ou por
completo, como parece ser o caso da Síria e do Iêmen) promete dar continuidade a
velhos problemas de pobreza, de miséria e de desesperança em sociedades já de
ordinário martirizadas – se o termo se aplica – por intratáveis contradições entre a
manutenção da tradição e as explosões de modernidade na população juvenil e
conectada.
No meio ambiente, finalmente, os compromissos são frágeis, as reconversões
são difíceis e todos os atores prefeririam ter os custos da adaptação transferidos,
segundo os casos, para os mais ricos, para os emergentes, para os poluidores históricos,
para os novos poluidores, para os destruidores de florestas, etc. Se e quando alguns
acordos forem ratificados, eles já estarão superados pelos esforços adaptativos dos
agentes primários da globalização ambiental, que são as empresas de consumo de
massa, no caso pressionadas pela opinião pública (atuando mais em função do
politicamente correto do que de sólidos princípios econômicos relativos a preços de
mercados de bens escassos).
Alguma esperança nisso tudo? Talvez. Afinal de contas, o novo papa, que
parece ser peronista em economia, promete ao menos fazer um aggiornamento
necessário nos “costumes” da sua Igreja e continuar o diálogo com as outras
comunidades de fé, o que talvez suscite algum avanço por parte de certos representantes
do Islã no sentido de dar início a um também necessário trabalho de exegese da palavra
do profeta. Nunca é demais esperar um pouco de racionalidade da raça humana. Mas
não façam apostas...

83
2807. “O Brasil e a agenda econômica internacional, 1: como se apresenta o cenário
econômico internacional da atualidade?”, Hartford, 6 abril 2015, 4 p. Análise da
situação econômica atual do mundo, em preparação para a discussão da posição e
dos desafios para o Brasil. Mundorama (15/04/2015; link:
http://mundorama.net/2015/04/15/o-brasil-e-a-agenda-economica-internacional-
como-se-apresenta-o-cenario-economico-internacional-da-atualidade-por-paulo-
roberto-de-almeida/). Republicado no blog Diplomatizzando (link:
http://diplomatizzando.blogspot.com/2015/04/o-brasil-e-agenda-economica.html).
Relação de Publicados n. 1172.

84
11. Como o Brasil se insere no cenário mundial, agora e no futuro
próximo?

O Brasil, como qualquer outro país, precisa estar sempre atento à evolução –
ou seja, às transformações, às mudanças – do cenário internacional, em especial na área
econômica, para definir, fixar, manter ou reorientar, pelo menos tentativamente, suas
grandes opções de inserção ou atuação nesse cenário, em função de uma visão própria
que possa ter dos desafios colocados a ele – como economia, como nação – e dos
instrumentos de que dispõe para retirar as melhores vantagens desse ambiente
cambiante, por vezes surpreendente, que é o cenário internacional ou regional.
Estar atento significar, em primeiro lugar, ter um responsável primeiro e último
pelos destinos do país – nosso rei supostamente republicano, eleito, ou reeleito, a cada
quatro anos (mas já tivemos por prazos maiores, sem reeleição, alguns que até se
prolongaram indevidamente) –, um mandatário dotado de poderes legítimos e cercado
de assessores próximos, em especial na área econômica e nas relações exteriores. Estes
não devem ser apenas as antenas e os conselheiros de confiança do dirigente oficial,
mas também chefes de equipe comandando assistentes competentes. Esse trabalho de
prospecção, de diagnóstico, de previsão e de prescrição quanto ao que deve ser feito, ou
seja, de políticas públicas, deve ser conduzido de maneira constante e meticulosa,
praticamente o tempo todo. Estas são tarefas básicas de qualquer governo que se
pretenda responsável pelos destinos da nação, ao assumir temporariamente as rédeas do
Estado. Nas democracias de mercado, funcionando segundo o sistema representativo,
são os partidos que disputam as preferências dos eleitores para exercer essas funções.
As tarefas da governança já foram discutidas ao longo dos séculos, de diversas
formas, desde Aristóteles e suas descrições do corpo estatal e dos regimes políticos,
85
passando por Maquiavel, e suas recomendações sinceras e brutais sobre como se deve
conquistar, manter e monopolizar o poder sobre os homens, até os cientistas políticos
funcionalistas da atualidade, em geral americanos. Estes últimos já tabularam todas as
correlações existentes e possíveis entre os poderes, os agentes e suas motivações, por
meio de elegantes curvas de regressão sobre os processos decisórios, tudo isso
complementado por análises sobre a eficiência das instituições e suas ramificações.
Não é o caso, portanto, de retomar aqui esses princípios gerais, e sim de
examinar como o Brasil se insere no cenário internacional, o atual, o do passado
recente, e o de um provável futuro, para estabelecer algumas constatações muito
simples, sobre como temos reagido, ou como temos suportado o cenário mundial e seus
desdobramentos regionais. Nesta quesito, pode-se deixar de lado a conjuntura imediata
e passar a examinar as tendências de médio e longo prazo, para aferir como o Brasil
vem se adequando, se ajustando, se adaptando às mudanças no cenário internacional,
em especial o econômico, uma vez que não se espera que ele consiga moldar esse
cenário, um empreendimento que atualmente foge ao alcance mesma das maiores
potências econômicas. Hipoteticamente, EUA e China seriam capazes de, agindo
conjuntamente, influenciar decisivamente a economia política e os dados econômicos
do atual cenário, mas essa perspectiva não é nem plausível, nem possível, por uma série
de razões que caberia tratar em análise específica.
Vamos nos concentrar, portanto, no caso do Brasil, e a principal pergunta que
deve ser feita a este respeito seria esta: estaria o Brasil bem inserido na região e no
mundo, seus estadistas – se ele os possui – têm controle sobre os vetores principais de
nossa inserção, eles têm, ao menos, consciência sobre os principais desafios que
enfrentamos e os grandes problemas que precisamos superar para nos tornarmos não
apenas uma nação mais próspera, mas também mais participante dessa coisa chamada
comunidade mundial? Resumido: como o país trata, sofre ou “negocia” com o atual
cenário internacional?
Vamos por partes, seguindo, para tanto, o roteiro delineado nas perguntas
acima enunciadas. A primeira tem a ver com a nossa região, a mais suscetível de ser
“influenciada” por esse gigante que faz metade do continente, nas suas diversas
dimensões: demográfica, econômica, territorial, industrial, talvez científica e, ainda
talvez, tecnologicamente (seria preciso compulsar estatísticas relativas a produção de
artigos científicos, registro de patentes, produção industrial, mas vamos supor, para fins

86
deste exercício, que o Brasil represente aproximadamente a metade do potencial sul-
americano). A pergunta é, portanto: o Brasil está bem inserido na região?
Quem observa os movimentos diplomáticos, os fluxos de comércio de bens e
de serviços, os investimentos diretos, os empréstimos realizados e, sobretudo, as ações
diplomáticas e as iniciativas tomadas nos últimos cinco anos (este é o prazo médio das
conjunturas econômicas) tem a impressão que o Brasil tem, sim, algum peso na região,
e algum grau de influência sobre certos países, talvez mais por inércia do passado do
que propriamente por indução ou capacidade de atuação deliberadamente direcionada.
A despeito de contar com um grande banco que realiza operações externas, de manter
um fluxo regular de intercâmbios econômicos dentro da região, é um fato que o Brasil
vem perdendo espaços no continente, não apenas em favor da China – o grande ator
emergente não só nesta região, como em quase todos os cenários continentais – mas
também como resultado de iniciativas independentes adotadas por outros países, mesmo
sendo parceiros relevantes.
O grande vetor da construção de um espaço econômico integrado na América
do Sul, como tal pensado desde sua concepção, deveria ser o Mercosul, um projeto de
mercado comum – enfim, fiquemos na união aduaneira, que deveria ser pelo menos
completa e acabada, mas leva o nome de “incompleta” há mais de vinte anos – que tinha
vocação a ser o núcleo organizador de uma rede regional de acordos de liberalização
comercial (nas suas diversas modalidades operacionais) e podendo servir de base para o
que foi chamado, uma vez, de Alcsa, a Área de Livre Comércio Sul-Americana, em
lugar de aderir ao projeto americano da Alca (consoante nossa indisfarçável rejeição a
qualquer projeto que tivesse os EUA como centro, isso em qualquer governo, mesmo
um “neoliberal”). Ora, não é preciso ser nenhum gênio da análise política e econômica,
ou dispor de uma central de informações, para constatar que o Mercosul é, hoje, uma
sombra do que foi, um esquema quase moribundo de trocas comerciais, no qual os
grandes parceiros parecem ter abdicado de sequer fazer menção aos objetivos sempre
inconclusos (e cada vez mais distantes) do artigo 1o. do Tratado de Assunção, cada vez
que se reúnem para exercícios repetidos de retórica vazia.
O outro grande esquema favorecido em 2004 pelo Brasil, a Comunidade Sul-
Americana de Nações, e que deveria ter sede no Rio de Janeiro – mas depois convertida
em Unasul, com sede em Quito, por manobras do ex-caudilho da Venezuela – tornou-se
praticamente um instrumento de fácil manipulação pelos países ditos bolivarianos, e não
é capaz de sequer observar sua própria cláusula democrática ante situações de clara, e
87
grave, deterioração da democracia num dos maiores membros da organização. Não se
pode dizer, tampouco, que o Brasil possua alavancas próprias que possam fazer com
que essa entidade sirva, pelo menos, para cumprir seu outro objetivo estatutário, que são
projetos de integração física no continente. Não se tem notícia de nenhum grande
empreendimento que tenha resultado do planejamento ou da ação da Unasul, embora
tenham sido criadas diversas novas entidades – inclusive uma supostamente de defesa –
que todas tem o objetivo implícito de retirar os países da área de influência dos EUA.
Se essa diminuição de estatura e de influência ocorre no plano regional, não
parece claro que o panorama seja mais positivo no plano mundial, não necessariamente
universal, mas o do mundo que pode receber impulsos relevantes por parte do Brasil.
Esse mundo é o do Ibas (com Índia e África do Sul), o do Brics, juntando mais a Rússia
e a gigantesca China (que sozinha faz mais da metade de tudo o que representa o Brics),
o de alguns países africanos de expressão portuguesa – onde existe algum espaço para a
cooperação bilateral e plurilateral no âmbito da CPLP – e, talvez, o “mundo” do G20,
em princípio comprometido com a coordenação de políticas econômicas em escala
global, mas que aparece cada vez como mero esforço de coreografia para discursos bem
intencionados dos principais líderes mundiais, sem grandes consequências práticas. Em
todos esses cenáculos o Brasil aparece com um discurso em favor da “democratização
das relações internacionais”, que é o slogan politicamente correto para sua reivindicação
de uma cadeira permanente no Conselho de Segurança das Nações Unidas, mas que não
parece dispor de apoios suficientes atualmente (sequer dentro do próprio Brics) para se
concretizar no futuro previsível.
Durante muito tempo, desde o início da década passada, o Brasil – ou, para ser
mais exato, sua direção política – insistiu numa tal de diplomacia Sul-Sul, como sendo o
vetor privilegiado de sua inserção internacional, e assim foi feito e agitado, nos vários
continentes daquilo que outrora se chamava de Terceiro Mundo. Não se tem um balanço
honesto, independente, de como essa diplomacia com nítido determinismo geográfico
conseguiu, realmente, realçar a capacidade de influência do país no mundo, ou de como
isso reforçou nossa presença econômica nas diversas interfaces de relacionamento no
plano externo, em especial no campo econômico. O Brasil continua a exibir a mesma
modesta participação no comercio internacional – pouco mais de 1% desde sempre – e
se situa num patamar inferior – menos de 50% da média mundial – em termos de
coeficiente de abertura externa, o que é um resultado inteiramente determinado por
nossa própria política econômica, em especial a comercial e a industrial.
88
Para sermos absolutamente sinceros, e precisos no diagnóstico, é importante
reconhecer que todos os nossos problemas – esses que impedem uma maior presença e
participação, e capacidade de influência do Brasil nos assuntos regionais e mundiais –
derivam de causas essencialmente internas, e de nenhuma maneira se devem a um
ambiente hostil no plano externo ou a uma hipotética “crise internacional”. Enquanto os
estadistas – se os há, como já questionado – nacionais não forem capazes de equacionar,
com realismo, a origem dos nossos problemas, e eles são todos de natureza interna, o
país vai ter dificuldades em empreender as reformas necessárias para ter uma maior
capacidade de inserção internacional e de influenciar a agenda econômica mundial.
A realidade atual, sem qualquer disfarce ou desculpa, é esta aqui: o Brasil não
possui nenhuma grande estratégia de inserção global, pelo menos uma que se desdobre
em ações concretas, para além dos discursos meramente retóricos com que dirigentes e
ministros enganam a si mesmos, e tentam enganar os demais, nos cenáculos abertos ao
engenho e arte de nossa diplomacia. Se existem alguns projetos parciais – que vão
sendo desenhados pela proverbial excelência de nossa diplomacia, se ela de fato existe –
eles vão se adaptando aos desafios de cada momento, como podem ser as questões do
meio ambiente, da segurança na internet, das negociações comerciais multilaterais e de
alguns poucos outros temas nos quais os profissionais da diplomacia conseguem se
elevar acima da introversão também proverbial de nossa burocracia governamental.
Na verdade, os desafios brasileiros, como já afirmado, são basicamente
internos, e o mundo tem sido leniente, bastante generoso para com o Brasil; o comércio
mundial, a despeito da “reprimarização” da economia brasileira, tem permitido saldos
positivos nos terrenos em que somos competitivos. Se não conseguimos fazer mais, foi
porque uma política econômica totalmente equivocada retirou competitividade das
empresas brasileiras vinculadas ao comércio exterior. No plano das finanças globais,
não se pode dizer que o mundo esteja carente de capitais, e o Brasil não precisaria, de
nenhuma forma, aderir a bancos ad hoc – Banco del Sur, Banco dos Brics (NDB), ou o
novo banco asiático de investimento em infraestrutura – para poder atrair todos os
capitais de que necessita para impulsionar seus próprios projetos de desenvolvimento.
Quando não existe confiança na qualidade da política econômica, pode-se cair
rapidamente numa fuga de capitais, o que leva inevitavelmente a uma desvalorização
cambial, um cenário já bem conhecido pelo Brasil e outros países latino-americanos. O
que se observa na conjuntura recente, são ajustes erráticos tanto no plano das contas
internas – um ajuste fiscal feito de mais impostos e encargos – quanto no plano das
89
transações correntes, infelizmente na direção de mais protecionismo. Os investimentos
diretos, que já colocaram o Brasil nos primeiros lugares do ranking nos últimos anos,
podem se retrair progressivamente, à medida em que se confirme a retração – a palavra
correta é recessão – da economia interna e a morosidade na região.
O mais relevante, porém, deriva de uma inacreditável característica da
psicologia nacional, traço ainda mais reforçado depois de uma década e meia de
dominação de uma vertente do keynesianismo rústico que vigora ainda na América
Latina, a que transforma medidas anticíclicas típicas de conjunturas emergenciais em
políticas de desenvolvimento: os brasileiros, em geral, aderem a um tipo de
nacionalismo canhestro que os faz ser receptivos ao capital estrangeiro, mas
profundamente adversos ao capitalista estrangeiro, o que parece ser esquizofrênico. É
esse tipo de crença que sustenta medidas de preferência nacional, leis de conteúdo local,
exclusões reiteradas a investimentos estrangeiros em determinados setores e históricos
controles de capitais e de transações cambiais. Não há perspectiva, na atual conjuntura,
que esse tipo de mentalidade possa reverter no futuro próximo.
O Brasil tem condições de se projetar de maneira mais afirmada nos cenários
econômicos e diplomáticos mundiais? Talvez, mas muito depende, de um lado, de
reformas internas que possa ser capazes de apoiar um processo dinâmico e sustentado
de crescimento e de participação nos intercâmbios globais e, do outro, do surgimento de
lideranças políticas que se alcem à condição de estadistas responsáveis, uma hipótese
aparentemente distante na presente conjuntura. Em conclusão: a despeito de sua
presença relativamente importante entre as grandes economias do mundo, o Brasil exibe
uma capacidade limitada de influenciar o cenário internacional, seja pela via econômica,
seja pela via diplomática. Sem ser irrelevante, o Brasil carece de maiores alavancas
materiais ou políticas para construir uma força própria no plano global.

2808. “O Brasil e a agenda econômica internacional, 2: como o Brasil se insere no


cenário mundial, agora e no futuro próximo?”, Hartford, 10 abril 2015, 6 p.; revisto
em 15/04/2015. Continuidade da série, tratando das questões internas ao Brasil.
Mundorama (22/04/2015; link: http://mundorama.net/2015/04/22/o-brasil-e-a-
agenda-economica-internacional-como-o-brasil-se-insere-no-cenario-mundial-agora-
e-no-futuro-proximo-por-paulo-roberto-de-almeida/). Republicado no blog
Diplomatizzando (link: http://diplomatizzando.blogspot.com/2015/04/o-brasil-e-
agenda-economica_22.html). Relação de Publicados n. 1175.

90
12. Como e qual seria uma (ou a) agenda ideal para o Brasil?

A agenda econômica externa do Brasil concerne, basicamente, a dimensão


multilateral, pois esta é a principal plataforma negociadora internacional na área
econômica desde Bretton Woods e a criação do Gatt, depois incorporado à OMC. Mas
essa agenda também compreende as relações que se estabelecem no âmbito regional,
pois este é o locus dos acordos de integração econômica, que são essencialmente
comerciais, mas que nos últimos doze anos de reino dos companheiros acabou se
transformando num aglomerado de compromissos políticos e sociais que pouca relação
guardam com os tratados originais. Finalmente, também coexiste com essas duas
dimensões, uma agenda no plano bilateral, mas seus componentes estão constituídos por
acordos de cooperação, que também têm sua importância na capacitação de recursos
humanos e na implementação de projetos setoriais, que geralmente complementam os
acordos alcançados nos dois primeiros planos, mas que podem também ser ainda mais
ambiciosos do que aqueles (cooperação nuclear, espacial, tecnológica, por exemplo).
Pois bem, vejamos qual poderia ser uma agenda, talvez não ideal, mas pelo
menos necessária para que o Brasil realize um enorme potencial hoje represado pelo
peso enorme que o Estado exerce sobre cidadãos e empresas, potencial que também foi
desviado de um curso que seria quase “natural” em função de uma agenda esdrúxula e
exótica, imposta ao país nos últimos doze anos, quando os interesses nacionais foram
sacrificados em favor de opções estritamente ideológicas e partidárias, que hoje se
revelam estar igualmente vinculadas ao mais gigantesco processo de corrupção jamais
visto em nosso país. A “importação” indevida de milhares de “médicos” cubanos, por
exemplo, não obedece exatamente a um grande plano de prevenção em saúde da

91
população brasileira, mas tem muito a ver com a situação falimentar da ilha-prisão dos
irmãos Castro, que hoje depende de aliados obsequiosos por mantê-la à tona.
O plano multilateral apresenta inúmeras facetas, mas as principais são as de
caráter comercial e de tipo financeiro. Neste último capítulo, não existem propriamente
negociações a serem feitas, uma vez que o Brasil – depois de enfrentar historicamente
crises de insolvência externa, e até uma ou duas moratórias – parece ter aprendido a
respeitar os fundamentos de seus equilíbrios nas transações correntes e na balança de
capitais; a despeito de déficits constantes nas transações externas, estas têm sido
compensadas por investimentos diretos e, em situações normais, por saldos
superavitários na frente comercial, o que contudo foi revertido nos últimos anos. A
origem dos déficits atuais não é, entretanto, alguma deterioração do cenário mundial –
mesmo se alguns keynesianos de botequim vivem alegando um ambiente de crise
externa para justificar sua péssima condução da política econômica nacional – e sim a
perda lamentável de competitividade por parte das empresas brasileiras vinculadas à
exportação. Elas não são tão penalizadas pelo câmbio – uma variável que pode ser
contornada por contratos de hedge – quanto pela absurda carga fiscal que é imposta às
empresas brasileiras por um Estado extrator e extorsivo.
Esta questão nos remete ao plano comercial multilateral, hoje totalmente
paralisado pela incapacidade dos principais atores em dar continuidade à Rodada Doha,
nas premissas otimistas em que foi lançada, no início da década passada. Mesmo que,
por um milagre, se lograsse concluir essa rodada de negociações com compromissos
mais ou menos moderados de liberalização recíproca de mercados e com padrões ainda
mais moderados na regulação do acesso às demais áreas – serviços, investimentos,
propriedade intelectual, etc. – o Brasil talvez não esteja preparado para desfrutar com
maior vigor dessa abertura, tendo em vista sua já mencionada perda de competitividade
por razões de ordem inteiramente doméstica. Trata-se de um dever de casa que ninguém
e nenhuma negociação multilateral pode cumprir em seu lugar, ou seja, no do governo.
Mesmo na área em que ele é notoriamente competitivo, que é a grande
agricultura de exportação – ou seja, commodities agrícolas e carnes, mas podendo
evoluir para alimentos processados – os produtores e exportadores brasileiros são
penalizados por deficiências ainda mais notórias, a jusante, em sua infraestrutura, como
na própria cadeia produtiva, a montante, portanto, em função da tributação generalizada
aplicada a praticamente todos os insumos do setor. Como se sabe, a alta produtividade
na produção de grãos (mas em outras linhas produtivas também) é neutralizada pelos
92
altos custos, e perdas, no transporte, por uma infraestrutura portuária lamentável, ou por
diversos outros aspectos regulatórios e impositivos que fazem com que o produto
brasileiro, mais barato do que o dos concorrentes diretos na porteira da fazenda, chegue
ao porto de embarque ou de destino bem mais caro em vista dessas deficiências. Sobre
isso, se agregam as dificuldades do setor em termos de seguro agrícola e as conhecidas
lacunas no rastreamento e prevenção de epizootias e outras endemias típicas da
produção comercial primária, sempre mendigando recursos de um governo que tem uma
nítida inclinação ideológica por invasores de terras e outros pretensos agricultores
familiares (na verdade de subsistência, e sempre assistidos por um ministério espelho ao
da agricultura de exportação, que defende uma agenda totalmente diversa deste último).
De resto, no terreno do comércio internacional, qualquer ganho em termos de
liberalização agrícola teria de ser barganhado contra uma oferta brasileira de redução do
seu próprio protecionismo industrial – sem mencionar a adesão a códigos proprietários
mais elevados – o que parece notoriamente difícil a um governo que seguidamente vem
implementando “políticas industriais” (aparentemente já foram cinco, sucessivamente)
cuja principal característica é a de isolar o Brasil dos circuitos produtivos internacionais.
O exemplo mais notório é a indústria automobilística, que permanece “infante”, e
portanto protegida, desde mais de meio século. Por fim, ainda nesse terreno, os grandes
parceiros parecem ter abandonado de vez qualquer entusiasmo por acordos abrangentes
no âmbito da OMC, preferindo em troca negociar acordos minilateralistas, ou seja,
tratados plurilaterais de livre comércio engajando os “like-minded countries”, que
podem, ou não, situar-se na mesma região geográfica (as distâncias encurtaram, de toda
forma). Dois exemplos disso, são o acordo transatlântico – entre EUA e UE – e o trans-
Pacífico, que reúne um número variado de países da Orla do oceano, inclusive sul-
americanos como Peru e Chile.
O ideal, para o Brasil, e os brasileiros – empresas e trabalhadores – seria que o
Brasil participasse ativamente de todas essas frentes de trabalho de maneira aberta e
receptiva, mas a condição para isso seria uma alteração drástica de quase todas as suas
políticas setoriais, industrial, comercial e de investimentos em infraestrutura, algo que
parece fora do alcance do atual governo. A parte industrial e de infraestrutura compete
inteiramente, e soberanamente, ao Brasil, podendo portanto ser implementada por uma
decisão política de alta inteligência econômica (o que não necessariamente é assegurado
pela coalizão de protecionistas atualmente no poder).

93
Mas a parte comercial não pode, simplesmente, ser sequer considerada sem um
entendimento de princípio, e prévio, com os demais membros do Mercosul, essa frágil
construção integracionista que, nos últimos doze anos, serviu mais para exercícios de
retórica grandiloquente, ou para discursos vazios, do que para, pelo menos, voltar a dar
importância aos objetivos básicos e fundamentais desse bloco. Sem isso, ficam carentes
de conteúdo tanto as negociações multilaterais, quanto as regionais (de que é exemplo o
longuíssimo processo negociador com a UE, que não parece ter pressa de concluí-lo,
depois que os três grandes membros do Mercosul implodiram, de modo gratuito e
voluntário, o projeto americano de uma área de livre comércio hemisférica).
No Mercosul, em lugar da liberalização recíproca – ou seja, a zona de livre
comércio – e da coordenação de políticas macroeconômicas – desejável para o objetivo
da união aduaneira –, o que se teve foi uma variedade não essencial de iniciativas
secundárias, sobretudo em areas tidas por “sociais”, que não atenderam em nada aos
requisitos da integração econômica, que permanece, ou deveria ser, o foco dos tratados
originais. O bloco foi inclusive distorcido de sua arquitetura contratual – que requer a
plena aceitação da Tarifa Externa Comum e das demais regras de política comercial –
primeira pela adesão política, e altamente questionável, da Venezuela (que não cumpriu
praticamente nenhum dos requisitos inerentes à união aduaneira), e logo em seguida
pelas adesões também duvidosas de Bolívia e Equador, que tampouco parecem
propensos a aceitar a estrutura regulatória comercial do Mercosul. Não é preciso
mencionar, por outro lado, todas as infrações cometidas pela Argentina contra o espírito
e a letra do Tratado de Assunção, ao impor salvaguardas e diversos outros tipos de
barreiras contra produtos dos demais países membros, numa derrogação unilateral – e
também contrária às próprias regras do Gatt – dos compromissos solenemente firmados.
O ideal, neste caso, seria que o Brasil liderasse um esforço – a ser concluído
por nova conferência diplomática – de revisão completa do Mercosul, com vistas a
determinar se ele deve continuar com seu atual perfil de união aduaneira incompleta –
ou em “implementação”, como pudicamente se proclama – ou se cabe fazê-lo retroceder
a uma simples zona de livre comércio, concedendo, assim, liberdade, a cada um dos
associados, para negociar acordos comerciais com quem lhes aprouvesse. O Chile, em
lugar de ingressar no Mercosul, e ficar amarrado a uma institucionalidade precária,
preferiu permanecer isento de qualquer compromisso mais “íntimo” com qualquer bloco
– como aliás também é a prática dos Estados Unidos – o que lhe habilita a negociar
esquemas de liberalização com ampla gama de parceiros: o país andino possui acordos
94
de livre comércio com algo em torno de 80%, ou mais, do PIB mundial, assegurando
ampla penetração de seus bens nos maiores mercados do mundo, compreendendo todo o
hemisfério, a UE e boa parte da Ásia e Oceania).
Esse ideal, no entanto, parece difícil de ser concretizado nas atuais condições
políticas e econômicas do Brasil, pois implicaria em séria revisão de toda a sua política
comercial, industrial e em vasta gama de disposições setoriais regulatórias. Ademais,
seria indispensável contar com lideranças políticas com visão de estadista, armadas de
estudos econômicos da mais alta competência técnica, para poder decidir, em total
conhecimento de causa, quais políticas de desenvolvimento e de relacionamento nessas
diversas dimensões seria importante impulsionar na agenda econômica externa. O Brasil
precisaria estar disposto a modificar aspectos importantes de seu sistema tributário, de
modo a tornar suas empresas mais competitivas, assim como dispor-se a ficar sozinho,
no Mercosul, por exemplo, quando decisões de estrita racionalidade econômica e de seu
exclusivo interesse nacional assim o determinar.
Da mesma forma, mesmo acordos bilaterais de maior escopo econômico –
como podem ser as áreas de tecnologias sensíveis: nuclear, espacial, militar – podem
requerer uma mudança fundamental de postura, o que esteve longe de acontecer nos
últimos doze anos (ou mesmo antes). O Brasil recusou, por exemplo, todos os acordos
de proteção de investimentos estrangeiros, em nome de um vetusto, arcaico, ridículo
soberanismo jurídico, que tende a negar soluções arbitrais independentes nessa área, ou
que se opõe ao princípio mesmo das controvérsias investidor-Estado a respeito de um
investimento qualquer, como se este devesse sempre confrontar interesses privados e se
opor a normas por ele mesmo estabelecidas para regular a atividade dos empresários
estrangeiros.
Algo semelhante ocorreu com o acordo de salvaguardas tecnológicas com os
Estados Unidos, visando viabilizar o lançamento de satélites com componentes –
próprios ou no foguete de lançamento – resguardados por segredos comerciais ou com
tecnologias sensíveis, em nome, mais uma vez, de um soberanismo tecnológico
totalmente equivocado; isso também acarretou imensas perdas tecnológicas ao país, e
grandes prejuízos comerciais, pois inviabilizou totalmente a exploração comercial da
base de lançamentos de Alcântara. Nessas duas áreas, o ideal seria que o Brasil – ou
uma direção mais esclarecida – revisasse totalmente a postura restritiva que se manteve
inalterada durante mais de uma década, atrasando de fato o país nesses campos.

95
A componente dos investimentos, assim como a dos movimentos de capitais
também comportam aspectos multilaterais, mas a postura do Brasil infelizmente tem
sido, invariavelmente, igualmente restritiva quanto a códigos multilaterais podendo
enquadrar esses fluxos financeiros e cambiais (assim como intangíveis de modo geral).
O Brasil se opôs, no passado, ao Acordo Multilateral de Investimentos, em negociação
(frustrada) na OCDE, bem como sempre se opôs a qualquer regulação multilateral – ou
seja, no âmbito do FMI – no tocante a capitais financeiros, ambos elementos possuindo
aspectos sensíveis, é verdade, para as políticas monetárias, cambiais ou a respeito de
ativos de não residentes. Moeda e finanças constituem os últimos redutos da soberania
estatal, mas é preciso reconhecer que a abertura aos movimentos de capitais, a uma
maior competição no sistema bancário nacional, a colaboração fiscal internacional
(inclusive para prevenir crimes transnacionais, como lavagem de dinheiro e o próprio
terrorismo internacional) fazem parte de um mesmo processo de elevação do grau de
inserção do país na economia mundial, o que levará, em última instância, à plena
conversibilidade do real, um aspecto que beneficiaria amplamente indivíduos e
empresas (mas não necessariamente o Estado, que teria de ater-se a normas mais rígidas
em todas essas áreas).
Em qualquer hipótese, o que está em consideração em todos esses capítulos, é
o aumento das liberdades econômicas dos agentes primários da criação de riquezas, que
são as empresas e os próprios indivíduos, uma evolução não apenas natura, como
absolutamente necessária se o Brasil pretende se alçar ao batalhão de frente das nações
economicamente avançadas e abertas à interdependência global. A recente assinatura de
um acordo marco do Brasil com a OCDE, concluído por decisão do novo ministro da
Fazenda – contrariando, nisso, a antiga orientação anacrônica de dirigentes econômicos
anteriores – é um fato auspicioso, pois significa que o Brasil pode começar a se
enquadrar numa moldura de políticas econômicas sólidas, estáveis, e confiáveis,
deixando para trás a volatilidade implícita nas mudanças bruscas, improvisadas,
setoriais, que costumavam caracterizar os keynesianos de botequim que comandaram a
economia brasileira durante vários anos. A OCDE representa, justamente, um tipo de
racionalidade econômica estrito senso que há muito faltava às políticas públicas –
macro e setoriais – do Brasil, ainda que contrarie todo o arcabouço mental antiquado
dos “economistas” que pontificaram no governo desde a década passada.
Amplas camadas de economistas, e de empresários, já se convenceram de que
o que cria volatilidade no país não são os capitais externos, mas é o caráter errático das
96
políticas econômicas e das medidas regulatórias, que traz insegurança aos investidores
externos, assim como aos próprios domésticos, e torna o ambiente regulatório pouco
transparente e previsível. Uma agenda de abertura e de atratividade aos investimentos,
que possa maximizar as chances do Brasil nas negociações internacionais tem de
começar primeiro pela estabilidade de regras no plano interno, o que esteve longe de
ocorrer nos últimos anos. Em consequência de políticas altamente distorcidas e
extremamente intrusivas na vida das empresas, a acumulação de capital e os ganhos de
produtividade sofreram enorme queda no Brasil, ao mesmo tempo em que se
aprofundaram os desequilíbrios orçamentários internos e os de transações correntes no
plano externo, trazendo o atual quadro de alta inflação, baixo crescimento, paralisia dos
investimentos e perspectivas sombrias de ajuste e de desemprego. Talvez até mais grave
do que as dificuldades materiais do presente seja o atraso mental dos seus dirigentes, a
falta de lideranças políticas esclarecidas que consigam colocar o Brasil em compasso
com o mundo globalizado.
Daí a necessidade de o país adotar uma agenda de modernização em todas as
áreas do terreno econômico, como condição para aproveitar as chances abertas pela
globalização (como fizeram, aliás, desde muito tempo, o Chile, na América Latina, e
diversos países asiáticos da franja do Pacífico). A adoção dessa agenda não depende do
mundo, mas apenas de próprio Brasil ou de suas lideranças políticas e empresariais. Não
se trata de empreendimento fácil, mas ele é absolutamente indispensável para que o país
encontre seu espaço na interdependência global. Reformas são necessárias e elas são
sempre controversas, colocando em confronto interesses diversos, como se vê ainda
agora mesmo em países tão diversos quanto a França, o México, a própria China.
Pode ser que os mecanismos de governança global – ou seja, a agenda dos
organismos econômicos multilaterais, como os de Bretton Woods e a OMC – nos
induzam a isso, mas é muito pouco provável. O mais provável é que ameaças de crises
internas, ou sobressaltos nos planos financeiro e de balanço de pagamentos nos induzam
a correções de rota. Afinal de contas, todas as reformas internas são difíceis e os países
só são levados a mudanças profundas e significativas em seu ordenamento econômico e
social sob a pressão de eventos desafortunados. O Brasil já acumulou todo um pacote de
equívocos sistêmicos (a começar pela sua Constituição) e de erros monumentais de
política econômica (como o distributivismo exacerbado, e demagógico, da atual
“república sindical”) que está simplesmente atrasando nosso desenvolvimento, ou pelo
menos reduzindo as taxas de crescimento econômico. Romper com essas amarras
97
mentais é indispensável para que o país recupere um processo sustentado de expansão
de sua economia, única base possível para o aumento da prosperidade nacional.
Quanto antes melhor...

2814. “O Brasil e a agenda econômica internacional, 3: como e qual seria uma (ou a)
agenda ideal para o Brasil?”, Hartford, 18 abril 2015, 7 p. Continuidade da série, no
seguimento dos trabalhos 2807 e 2808, tratando de uma possível agenda de
reformas internas e de novas posturas externas para fazer o Brasil se inserir na
globalização. Mundorama (29/04/2015; link: http://mundorama.net/2015/04/29/o-
brasil-e-a-agenda-economica-internacional-como-e-qual-seria-uma-ou-a-agenda-
ideal-para-o-brasil-por-paulo-roberto-de-almeida/). Republicado no blog
Diplomatizzando (link: http://diplomatizzando.blogspot.com/2015/04/o-brasil-e-
agenda-economica_29.html). Academia.edu (link:
https://www.academia.edu/12159844/2814_Como_e_qual_seria_uma_ou_a_agend
a_ideal_para_o_Brasil_2015_). Relação de Publicados n. 1176.

98
13. O que o Brasil deveria fazer para maximizar a “sua” agenda?

1. Perguntas de uma investigação tentativa


Nos últimos 80 anos, ou seja, desde os anos 1930, o Brasil deixou de ser um
país “essencialmente agrícola”, como então se dizia, para engajar um dos mais bem
sucedidos processos de industrialização da América Latina, e do conjunto de países em
desenvolvimento. Com a aceleração do crescimento, sobretudo a partir dos anos 1950 e
nos anos 1970, diminuiu a distância econômica, tecnológica e de nível de renda, entre o
Brasil e os EUA, embora em escala bem modesta: de apenas um décimo da renda per
capita dos americanos, no início do século 20, os brasileiros alcançaram um patamar de
quase 30% do PIB per capita dos EUA em torno de 1980. Infelizmente, muito desse
esforço se perdeu, nos anos de crise econômica, de hiperinflação e de desequilíbrios
externos. Atualmente, mesmo depois de ter conseguido estabilizar a economia – ainda
que caindo novamente numa fase de crescimento medíocre, que não se sabe até quando
irá – a distância que nos separa dos níveis de bem-estar na América do Norte continua
muito alta: cerca de um quinto, apenas, da renda per capita daquela região, com uma
distância similar, talvez maior, em termos de produtividade total de fatores, devido ao
péssimo desempenho educacional, como revelado pelos indicadores setoriais.
O que falta ao Brasil fazer para que ele possa realizar todo o seu potencial?
Existiriam barreiras ao seu progresso que estariam ligadas ao sistema internacional? O
comércio mundial por acaso tem sido um fator negativo no desempenho econômico do
país? O acesso a tecnologias de ponta tem sido cerceado por razões políticas, ligadas a

99
algum “projeto secreto” de países avançados de limitar nossos avanços nessa área, como
acreditam alguns, ou estariam eles “chutando a escada” que poderia nos levar a níveis
mais elevados de desenvolvimento material? O Brasil se sente prejudicado por não
integrar o chamado “inner core”, o círculo restrito de potências que possui poder de
decisão sobre a agenda da maior parte das instituições econômicas mais relevantes do
multilateralismo contemporâneo? Em resumo: quão relevante é a agenda econômica
internacional para os objetivos prioritários de desenvolvimento do Brasil?

2. Uma recapitulação sumária da história econômica contemporânea


O ano de 1929 representa um marco na história econômica mundial, não tanto
pela queda dos valores dos ativos negociados em bolsa e nos mercados de bens reais
(um fenômeno já conhecido em ciclos anteriores), quanto pelo que representou de
implementação de medidas equivocadas pelos governos nacionais, na tentativa de cada
um se resguardar dos efeitos mais perniciosos da degringolada e de buscar “empurrar a
crise para o seu vizinho” (beggar-thy neighbor), como se dizia então. De fato, a
começar pelo Congresso americano, que aprovou um aumento nas tarifas de
importação, passando pelos demais governos, que desvincularam suas respectivas
moedas do padrão ouro, como forma de desvalorizá-las, e assim ganhar alguma
vantagem competitiva, a atitude mais comum foi a de tentar isolar cada um dos países
dos efeitos eventualmente nefastos que estavam em curso em praticamente todos eles. O
resultado de todas essas políticas erradas foi que, em lugar de uma simples crise de
mercados, o que se teve foi uma depressão geral que se estendeu durante anos a fio,
carregando para baixo todos os indicadores econômicos e sociais.
As lideranças mais esclarecidas dos Estados Unidos aprenderam a lição e, em
plena guerra, começaram a traçar planos para uma reorganização da ordem econômica
mundial, baseada no multilateralismo, na não-discriminação, no acesso igualitário aos
mercados, na reciprocidade de tratamento e em diversas outras cláusulas que deveriam
ser fundadas na cooperação e na coordenação de políticas. Daí nasceram Bretton Woods
e os princípios do sistema multilateral de comércio, por meio século regido unicamente
por um acordo provisório, o Gatt, que foi sendo mantido, até passar a ser administrado
pela OMC, o terceiro pé do sistema concebido em 1944 para regular cooperativamente
as relações econômicas internacionais. De certa forma, o tripé resultou bem sucedido,
levando a economia mundial a patamares jamais conhecidos de crescimento e de
prosperidade, até que os choques do petróleo dos anos 1970 e os abusos cometidos
100
pelos governos nos terrenos fiscal e monetário levaram às crises de estagflação – algo
não previsto nos modelos keynesianos – e a uma profunda revisão das políticas
econômicas. Os vinte anos seguintes foram de profundos ajustes nessas políticas, tanto
nas economias avançadas, quanto nos países em desenvolvimento, processo que ficou
conhecido no jornalismo superficial como sendo dominado pelo “neoliberalismo”, e que
de fato implicou, em todos esses países, a revisão dos mecanismos de intervenção dos
Estados na vida econômica, geralmente num sentido redutor e privatizador.
Combinada à crise final e derrocada dos sistemas socialistas, o mundo entrou
no que foi chamado de terceira onda de globalização – sendo as duas anteriores a dos
descobrimentos do século 16, que unificaram o mundo pela primeira vez, e a da
segunda revolução industrial, no final do século 19, quando intercâmbios de todos os
tipos se expandiram enormemente – caracterizada pela integração progressiva de todos
os mercados, em escala nunca vista até então. O Brasil também enfrentou as duas crises
do petróleo, e depois uma ainda mais grave, derivada do seu endividamento excessivo,
provocado justamente pela tentativa de continuar seguindo o mesmo modelo de
expansão exagerada da economia, sem fazer os ajustes requeridos pela nova situação. O
resultado foi a aceleração da inflação, a moratória sobre os pagamentos externos, e uma
queda geral nos indicadores de crescimento e de emprego, a chamada “década perdida”
dos anos 1980, que na verdade estendeu-se até meados da década seguinte.
Feita a estabilização, pelo Plano Real, o Brasil começou novamente a trilhar o
caminho das políticas econômicas responsáveis, embora sem resolver adequadamente o
problema das despesas públicas, sempre em excesso em relação ao nível de receitas. A
solução veio pela manutenção de uma taxa de juros muito elevada, de forma a permitir
o financiamento público. A desconfiança quanto à capacidade do governo em honrar
seus compromissos, aliada a uma nova onda de crises financeiras – iniciada pelo
México, em 1994, prolongada na Ásia, a partir de 1997, e culminando na moratória da
Rússia, em agosto de 1998 – engolfou novamente o Brasil em sérios desequilíbrios de
balanço de pagamentos, o que o obrigou a negociar acordos emergenciais de
empréstimo junto às instituições de Bretton Woods e outros credores institucionais. A
crise ainda voltou a se manifestar no momento da derrocada argentina, no final de 2001,
e quando das eleições presidenciais de 2002, quando os valores dos títulos brasileiros
negociados internacionalmente chegaram a seus níveis mais baixos, e o dólar ascendeu
a alturas inéditas. Os desafios eram importantes, mas eles foram sendo vencidos.

101
O governo empreendeu, durante essa fase de desequilíbrios, diversas reformas
importantes nas políticas econômicas, o que preparou o país para uma nova etapa de
crescimento econômico. A começar pela adoção da flutuação cambial e do regime de
metas de inflação, complementada, logo em seguida, pela Lei de Responsabilidade
Fiscal – que deveria impedir os dirigentes políticos de assumirem despesas sem indicar
precisamente as fontes de receitas – e pelo compromisso assumido no orçamento de se
liberar todo ano um superávit fiscal (para o pagamento dos juros da dívida pública),
essas medidas deveriam manter o Brasil no caminho da estabilidade e das políticas
econômicas responsáveis, condição de qualquer processo sustentado de crescimento
econômico. O chamado tripé macroeconômico – flutuação cambial, metas de inflação e
responsabilidade fiscal – foi de certa forma preservado durante a primeira metade da
década do novo milênio, mas importantes reformas estruturais em regimes regulatórios
e na modernização da infraestrutura deixaram de ser empreendidas, em favor de uma
nova política de redistribuição de rendas que ultrapassou em muito as possibilidades de
sua sustentação, por não ter correspondência com o ritmo de crescimento da economia e
os seus níveis, medíocres de produtividade. Em feliz coincidência, o Brasil beneficiou-
se de um crescimento inédito na economia mundial, em especial em países emergentes.
No bojo de uma nova crise financeira internacional, iniciada em 2007 nos
sistemas imobiliário e bancário dos Estados Unidos, e disseminada internacionalmente a
partir de 2008 e 2009, o Brasil reagiu de forma adequada, tanto porque vinha de uma
fase de crescimento satisfatório, puxado pela demanda voraz da China por seus produtos
de exportação: foi uma época em que a tonelada de soja chegou a valer 600 dólares, e a
de minério de ferro quase 200. Depois de uma mini-recessão em 2009, o crescimento
em 2010 registrou uma taxa praticamente “chinesa”: mais de 7%, inclusive com uma
diminuição notável do desemprego. Infelizmente, a nova administração que teve início
em 2011 atuou de forma totalmente irresponsável, como se pretendesse destruir os
fundamentos do tripé econômico, e de certa maneira conseguiu: manipulando câmbio e
juros, expandindo o crédito e aumentando de forma exagerada as despesas – pois que
partindo de um diagnóstico errado de que o crescimento econômico deveria ser puxado
pela demanda e não pelo investimento e pela oferta – e intervindo do modo totalmente
improvisado em diversos setores da indústria, conseguiram produzir mais inflação,
menos crescimento, volta do desemprego, aumento da dívida pública, déficits duplos no
orçamento e nas transações externas, enfim, um desastre econômico completo.

102
Este era o estado lastimável da economia ao início da mesma administração,
reconduzida nas eleições de outubro de 2014, mas fortemente contestada por uma
oposição cívica que não aceita mais as falsas explicações do governo para o atual
quadro de dificuldades de toda sorte. No início do segundo trimestre de 2015, não se
tem certeza quanto à trajetória do governo atual, e do seu partido de sustentação,
envolvidos nos mais clamorosos casos de corrupção jamais vistos na história do país.
O que tudo isso tem a ver com a agenda econômica internacional, é o caso de
se perguntar? Em princípio muito pouco, ou nada, a despeito dos esforços das lideranças
políticas, de forma canhestra, em tentar explicar o péssimo desempenho econômico por
causa de uma alegada “crise internacional”, quando a maior parte dos países já
enveredou novamente pela retomada do crescimento. EUA e UE, as duas economias
avançadas mais atingidas pela crise, apresentam níveis razoáveis de recuperação, e os
emergentes dinâmicos continuam a exibir saudáveis taxas de crescimento econômico.
Cabe examinar, então, o que o Brasil poderia fazer para maximizar a sua agenda, em
face dos atuais desafios que o país enfrenta.

3. O que uma agenda econômica adequada poderia fazer pelo Brasil?


Não existe, obviamente, uma única agenda econômica internacional que atenda
às necessidades do Brasil e aos seus requerimentos de desenvolvimento. Existe, em
contrapartida, uma diversidade de agendas setoriais, de organismos multilaterais, ou de
entidades regionais que podem, se combinadas, contribuir para que o Brasil tenha um
mix de políticas públicas adequadas, cobrindo tanto as reformas internas quanto a sua
política econômica externa. Vamos repassar, portanto, os principais requisitos de um
processo sustentado de desenvolvimento econômico, com transformações estruturais e
distribuição social dos benefícios do crescimento, e que cobrem cinco frentes principais:
a estabilidade macroeconômica, a competitividade microeconômica, a boa governança
institucional, a qualidade do capital humano e a inserção na interdependência global.

Estabilidade macroeconômica: esta é composta dos componentes usuais


nessa área, mas encontráveis mais facilmente nos países de economia avançada e
estabilizada: uma inflação baixa (e a média mundial das economias desenvolvidas tem
se situado entre 1,5% e 2% ao ano); câmbio e juros o mais possível dentro dos níveis
fixados pelos próprios mercados, e não por manipulações dos governos; equilíbrio nas
contas públicas (ou um déficit orçamentário inferior a 3% do PIB) e uma dívida interna
103
não superior a um montante que permita o seu serviço também numa faixa inferior a 3%
do PIB como pagamento de juros. A fiscalidade deve incidir antes sobre o consumo do
que sobre os investimentos, o trabalho ou o lucro das empresas, e mais sobre o fluxo de
rendas do que sobre o patrimônio, para evitar elisão fiscal ou diversas formas de fuga de
capitais. As alíquotas também precisam ser moderadas, sobretudo sobre os bens de
consumo popular, inclusive para evitar fraudes fiscais e contrabando. Os diversos
comitês de trabalho da OCDE possuem uma larga experiência em todas essas matérias,
e uma aproximação mais estreita do Brasil a essa entidade com sede em Paris poderia
contribuir enormemente para a melhoria de qualidade de suas políticas
macroeconômicas. Mas tudo isso, obviamente, em circunstâncias normais, o que não
parece ser o caso do Brasil atualmente, que necessita antes passar por um sério ajuste
em todas as suas contas públicas, e por uma rigorosa correção de todos os equívocos
cometidos por meio de políticas mal concebidas e improvisadas.

Competitividade microeconômica: está se falando aqui de políticas setoriais,


e o princípio básico é melhorar o ambiente de negócios para as empresas, o que também
passa pela correção de alguns atavismos governamentais, como o caráter extorsivo da
política tributária. Não é preciso desfilar o imenso rol de medidas a serem tomadas,
bastando, para isso, consultar um relatório anual do Banco Mundial: Doing Business.
Esse estudo detalha, com rigor, todas as esquizofrenias cometidas no Brasil, que tornam
a vida dos empresários um verdadeiro inferno em dose dupla, ou tripla: na constituição
de empresas, sua gestão e até no seu fechamento. Basta dizer que a classificação do país
no ranking geral se situa em torno de 125 entre 187 países, mas isto apenas porque o
empresariado, acostumado a um ambiente de hostilidade governamental, faz milagres
para garantir um mínimo de eficiência gerencial, o que reduz a componente “micro” do
estudo para níveis inferiores a 90; se formos considerar, no entanto, os critérios que
dependem de medidas governamentais (tributação, infraestrutura, regulação, legislação
laboral, etc.), o ranking do Brasil despenca para algo acima de 150. O ideal para o
Brasil seria adotar o Doing Business como benchmark absoluto em todas as áreas, e
estudar o que fizeram todos os países que possuem rankings setoriais abaixo de 60, o
que já seria um progresso notável para o país. Não é difícil identificar as medidas a
serem implementadas; se o Brasil não tiver técnicos competentes em todas as áreas do
Doing Business, o Banco Mundial pode organizar um programa em torno dele.

104
Cabe referir, incidentalmente, que o melhor remédio para a competitividade
microeconômica é justamente a abertura à competição, o que recomenda liquidar com
todos os monopólios indevidos – a começar do setor de energia e combustíveis – e com
todos os carteis em determinados serviços coletivos (telefonia e telecomunicações, em
geral, mas também em todos os tipos de transportes). Não é preciso dizer que compras
governamentais limitadas a fornecedores nacionais, beneficiados ainda por um prêmio
abusivo de sobre-preço aceitável (25%, ao que parece) são um convite aberto a práticas
viciadas e sujeitas a corrupção. O nacionalismo pernicioso no setor da construção civil,
mas também vigente em outras áreas (saúde e educação, por exemplo) é um dos casos
mais nefastos de anti-competitividade, além de inerentemente promíscuo e corruptor.

Boa governança: este é o núcleo das reformas estruturais, e que não se limita,
e nem deveria começar pela “metafísica” da reforma política, ainda que os critérios de
representação eleitoral e de presença no parlamento estejam totalmente deformados no
Brasil atual. Dar início a um processo de reforma política pode significar a paralisia de
todas as demais reformas setoriais indispensáveis à estabilidade econômica e aos ganhos
de competitividade de que o Brasil necessita: pode-se limitar o processo ao voto distrital
misto e a cláusulas de barreira para a atividade parlamentar (atualmente, apenas cinco
ou seis partidos ultrapassam o limite de 5% do eleitorado, e se deveria ficar por aí, sem
exceções para os partidos de aluguel ou minúsculos); não é preciso dizer que nada
justifica o financiamento público de partidos ou de campanhas eleitorais, uma vez que
se trata de entidades de direito privado, cabendo aos militantes e apoiadores essa tarefa.
O núcleo da boa governança passa pela reforma do Estado – com uma redução
radical do ogro famélico e suas centenas, ou milhares, de órgãos associados –, por uma
reforma administrativa que reduza e limite severamente a estabilidade do funcionalismo
(e o recurso a diferentes formas de contratação em setores abertos ao mérito individual,
como na educação e na saúde, por exemplo), e por uma urgente reforma previdenciária
que corrija as distorções ainda remanescentes nos tratamentos (inclusive os privilégios
vinculados ao setor público). O Judiciário, extremamente moroso nos processos, precisa
passar por uma reforma nos procedimentos, com vistas a agilizar o seu término, hoje se
estendendo, na média, por até oito anos. A área trabalhista é a que necessita de amplas
reformas, basicamente no sentido do contratualismo, da livre negociação direta e da
solução de pendências por via arbitral; a justiça do trabalho é um órgão antes causador
do que solucionador de conflitos e deveria simplesmente ser extinta.
105
A própria federação é um mito, tendo em vista a concentração de recursos na
União, o que faz surgir “jabuticabas” absurdas como um “ministério das cidades” no
âmbito federal. Esse estado republicano “unitário” cria distorções contínuas no plano da
repartição de recursos e competências, o que obriga deputados a se converterem em
vereadores federais, mendigando financiamento federal para programas paroquiais. A
emenda constitucional que torna impositivo o orçamento unicamente reservado aos
projetos dos parlamentares é um absurdo político de tal monta que por si só explica a
“desgovernança” absoluta a que chegou o Brasil no terreno das práticas federativas:
coexiste a chantagem recíproca do governo federal e dos parlamentares em torno da
negociação orçamentária e da atribuição efetiva desses recursos para fins paroquiais.

Qualidade do capital humano: o Brasil é um país terrivelmente penalizado


pela péssima qualidade do ensino, em todos os níveis, o que se reflete na produtividade
medíocre da mão-de-obra, em geral, e nos níveis anormalmente baixos de inovação
tecnológica em face do seu grau relativamente avançado de industrialização. Não é
preciso dizer que em termos de cobertura da educação formal – ensino compulsório – já
acumulamos um atraso quantitativo absurdo em termos de taxa de matrículas em face de
países mais avançados (mais de um século de atraso, e ainda carentes nos níveis médio
e superior), mas o mais grave se refere mesmo à qualidade do ensino, cujo estado
deplorável se reflete de forma recorrente nos exames do PISA (programa de avaliação
internacional da educação média, conduzido pela OCDE), onde invariavelmente
ocupamos os últimos lugares, na companhia de países com renda per capita inferior à
nossa diversas vezes. O Brasil, na verdade, não necessita de uma reforma educacional, e
sim de uma revolução nesse setor, o que passa basicamente pela formação adequada de
mestres nos vários níveis; atualmente, a pedagogia educacional está contaminada por
uma ideologia nefasta identificada ao “patrono” da área, o deseducador Paulo Freire e
seu imenso rol de bobagens pedagógicas. Enquanto o Brasil não se libertar de quimeras
e adotar o critério do rendimento nos estudos básicos, com aferição rigorosa de metas e
critérios de progressão no ensino, e com remuneração de professores também vinculada
ao mérito e aos resultados, não haverá progresso possível. O isonomismo-igualitarismo
radical pregado pelos sindicatos é especialmente nefasto na tarefa de soerguimento da
qualidade dos mestres empregados no setor. A OCDE também possui excelentes
estudos nessa área, e o Brasil tem aí uma excelente agenda para seguir.

106
Inserção na interdependência global: estamos falando aqui, basicamente, de
abertura a investimentos estrangeiros e ao comércio internacional. Trata-se, como nos
demais casos, de uma agenda essencialmente interna, pois que não é preciso esperar
nenhuma rodada multilateral de negociações, no plano internacional ou regional, para
conduzir, por decisão própria, um amplo programa de abertura econômica unilateral e
uma liberalização comercial compatível com os requisitos de upgrade tecnológico, para
melhorar os padrões de competitividade das empresas exportadoras brasileiras. Nem é
preciso esperar por acordos de livre comércio bilaterais – se o Mercosul for reformulado
– ou do bloco para tais objetivos; basta reduzir as barreiras para-tarifárias, e reduzir as
alíquotas da Tarifa Externa Comum (como exceção para baixo ou decisão conjunta)
para que o Brasil se aproxime, idealmente, dos coeficientes de abertura externa vigentes
no resto do mundo (na média, o dobro dos praticados atualmente pelo país).
Tanto a OCDE, quanto os bancos multilaterais, assim como a própria OMC,
possuem o know-how em todas essas matérias comerciais e de investimentos, e bastaria
comparar, por exemplo, nosso exercício periódico de revisão da política comercial no
âmbito da OMC e compará-lo, em todos os critérios, aos dos países melhor situados no
grau de abertura externa. O fato é que o Brasil recuou nos últimos doze anos, tanto em
matéria de protecionismo comercial – junto com a Argentina, no Mercosul, diga-se de
passagem – quanto no terreno dos investimentos estrangeiros, uma vez que o partido no
poder continua recusando até hoje ratificação a mais de uma dúzia de tratados bilaterais
de proteção a investimentos que foram assinados pelo Brasil.

4. Conclusões não conclusivas: precisamos de uma agenda global para avançar?


Do rol de medidas elencadas nos parágrafos precedentes, se deduz que todos os
problemas do país são de origem doméstica, e que nenhum é causado por um ambiente
externo negativo ou pouco cooperativo para nossos requisitos de desenvolvimento. O
Brasil enfrenta aquilo que os economistas institucionalistas chamam de altos custos de
transação, e estes são causados essencialmente – para não dizer deliberadamente – por
um Estado disfuncional e por regras e normas totalmente prejudiciais ao funcionamento
de um ambiente de negócios minimamente satisfatório para as empresas nacionais (e as
estrangeiras aqui instaladas, obviamente, o que diminui a atratividade do investimento).
Custos de transação são, em princípio, aferíveis, identificáveis e quantificáveis
no plano técnico, ou seja, para o estabelecimento de um diagnóstico seguro, para em
seguida merecer um conjunto de prescrições corretivas que deveriam colocar o país no
107
caminho do crescimento sustentado e sustentável. Se o Brasil conseguir cumprir, por
exemplo, pelo menos a metade do rol de recomendações constantes do Doing Business
já terá feito enormes progressos nesse caminho. Mas muito mais é possível fazer num
plano estritamente técnico de políticas setoriais recomendáveis, inclusive a decisão de
não ter nenhuma política setorial, em certos casos: na área industrial, por exemplo, em
lugar de estímulos generosos – via BNDES – ou de proteção tarifária absurda para as
empresas instaladas no Brasil, se poderia começar por uma regulação liberalizadora e
pela baixa geral da absurda carga fiscal a elas impostas, para que o ambiente se tornasse
mais respirável e mais propenso à reconquista da competitividade externa. Não existem
obstáculos culturais nessa área, apenas comportamentos atávicos e antiquados.
Existem, sim, idiossincrasias nacionais que serão mais difíceis de serem
contornadas, e elas têm a ver com o atavismo estatal profundamente entranhado nos
mais diversos estratos sociais do país: tanto trabalhadores quanto capitalistas pedem,
esperam, imploram, todos os dias, por “políticas públicas” em uma área qualquer, em
todas elas aliás, e tudo precisa ser constitucionalizado, ou tornado obrigatório, para que
algo se faça, como se um fiat legislativo fosse capaz de resolver problemas estruturais.
Essa cultura nefasta do estatismo, junto com seu irmão siamês, o nacionalismo rústico,
constituem poderosos fatores de atrasos materiais, quando não são viseiras mentais a
impedir soluções pelo lado dos mercados livres, da abertura econômica de modo geral.
Alguns simples exemplos devem bastar. Por que a Anvisa precisa proibir as
farmácias de vender chiclete? Seria ele um perigo tão grande à saúde pública? Por que a
Ancine tem de regular cotas mínimas para exibição de filmes nacionais? Seria para
elevar a qualidade da filmografia à disposição do público? Por que pena de prisão para
carona remunerada? A ANTT pretende proibir cidadãos de disporem de seus carros
livremente, ou está defendendo carteis de transportadores mancomunados a políticos?
Por que os motéis são obrigados a fornecer camisinhas aos seus clientes? Por que o
cidadão comum é cotidianamente enganado pela mentira dos “dez vezes sem juros”,
quando todas as lojas escondem o custo do financiamento no crediário? Enfim, haveria
uma infinidade de exemplos absurdos que apenas comprovaria que o Brasil não é um
país normal, definitivamente.
Um grande esforço de transformação, inclusive mental, precisaria ser feito,
para aproximá-lo, um pouco que fosse, dos padrões de liberdades econômicas vigentes
na maioria dos países. Aliás, uma consulta ao relatório anual das liberdades econômicas
no mundo (http://www.freetheworld.com/) revelaria quão atrasados estamos nesses
108
quesitos: chegamos a perder inclusive da China comunista em diversos requisitos
setoriais – embora não o geral – de liberdades empresariais. O país não apenas se situa
em posições humilhantes em diversos rankings econômicos internacionais, como vem
recuando ano após ano nos de competitividade microeconômica e nos de liberdades
econômicas de modo geral. Não apenas nossa desigualdade distributiva apresenta níveis
africanos no coeficiente de Gini, mas os níveis de corrupção são também africanos, num
país que tem uma renda per capita superior à média daquele continente. Existe algo de
muito errado no Brasil, como comprovam todos os indicadores comparativos no plano
mundial. Na maior parte deles, uma simples consulta aos relatórios produzidos por essas
entidades oficiais e privadas nos indicaria o caminho para melhorar nossos índices.
Mais uma vez se constata que as reformas dos problemas internos passam por
soluções absolutamente domésticas, ainda que elas possam ser guiadas por métodos e
prescrições retirados das experiências nacionais de outros países, e que conformam um
roteiro de boas práticas à disposição de qualquer administração engajada nos princípios
e metas da boa governança. O que existe, finalmente, de internacional, na ampla gama
de medidas que tornariam o Brasil um país melhor para si mesmo e para a comunidade
internacional? Talvez começar por uma política externa promotora das democracias e
dos direitos humanos, e não defensora de ditaduras e de regimes deploráveis nesses dois
quesitos; já seria um progresso enorme em relação ao que assistimos nos últimos doze
ou treze anos.
Em síntese, nossa agenda para avançar nas reformas pode até ser global, ou
internacional, mas apenas nos princípios e nas orientações básicas, uma vez que o
mundo abunda em exemplos positivos e negativos de governança, o que se reflete
claramente em todos os indicadores de qualidade de vida. Sem ser um desastre
completo em todos os quesitos, o Brasil deixa claramente a desejar – até recuando – em
vários deles, e os diagnósticos não são difíceis eles também se encontram em todos
esses relatórios, à disposição de qualquer administração esclarecida, aberta, e disposta a
empreender reformas (partimos do princípio evidente que todos os países necessitam de
reformas, o tempo todo). Poderá o Brasil empreendê-las?
Um simples julgamento de circunstância, com base no exame da situação em
abril de 2015, indica claramente que não. O Brasil se arrasta penosamente no caminho
de um sério ajuste em suas contas públicas, o que constitui uma condição preliminar, e
indispensável, a qualquer processo de reformas estruturais e institucionais. Se e quando
ele for bem sucedido na tarefa preliminar, e dependendo da qualidade de suas lideranças
109
políticas, ele poderá começar a discutir o conjunto de reformas aqui elencadas. Antes
disso, parece utópico ou simplesmente inútil. Oitenta anos atrás, o escritor, folclorista e
musicólogo Mário de Andrade já tinha chegado a uma conclusão relativamente
frustrante para os nossos brios: “progredir, progredimos um tiquinho, que o progresso
também é uma fatalidade” (poema “O Poeta Come Amendoim”, 1924). Se nada for
feito, em tempo hábil, vamos continuar, no futuro previsível, progredindo um tiquinho,
por saltos e recuos, como no espaço das duas últimas décadas.
Pode-se fazer melhor? Certamente, mas isso depende de estadistas...

2815. “O Brasil e a agenda econômica internacional, 4: o que o Brasil deveria fazer para
maximizar a “sua” agenda?”, Hartford, 19 abril 2015, 11 p. Continuidade, e fim, da
série de artigos sobre a agenda de reformas internas. Mundorama (06/05/2015; link:
http://mundorama.net/2015/05/06/o-brasil-e-a-agenda-economica-internacional-o-
que-o-brasil-deveria-fazer-para-maximizar-a-sua-agenda-por-paulo-roberto-de-
almeida/). Republicado no blog Diplomatizzando (link:
http://diplomatizzando.blogspot.com/2015/05/o-brasil-e-agenda-economica.html).
Relação de Publicados n. 1177.

110
Terceira Parte
Globalização, Embromação

111
14. A globalização e o direito comercial: uma longa evolução

O direito comercial, em seu sentido estrito, é bem mais recente do que as formas
mais primitivas de comércio entre as comunidades humanas: codificado de modo
sistemático, tal como a conhecemos atualmente, ele pode ser considerado como
historicamente contemporâneo da era das grandes navegações, quando, pela primeira
vez na história da humanidade, o planeta se tornou efetivamente global, a partir da gesta
colombina, em 1492, e do périplo marítimo de Fernão de Magalhães, em 1521. Desde
então, ele vem conhecendo progressos formais e substantivos, impulsionando, no plano
do rule-making, as diversas ondas de prosperidade que tanto beneficiaram as sociedades
da era moderna e contemporânea nos últimos cinco séculos.
Na sua expressão mais antiga, porém, ele pode ser visto como praticamente
simultâneo aos primeiros estabelecimentos estáveis de ocupação humana em um
determinado território, aqueles dotados de instituições estatais permanentes e, portanto,
de regras formais para administrar as relações entre as pessoas e seus ativos materiais. A
despeito do fato de que linhas regulares de comércio já existiam nas primeiras
comunidades humanas de tipo urbano, desde o oitavo milênio antes de Cristo – com
destaque para Çatal Hoyuk, na atual Turquia – a modalidade original de uma lex
mercatoria primitiva está presente numa das 282 leis do Código de Hamurabi,
conhecido por existir no primeiro estado “moderno” no começo do segundo milênio
a.C., na Babilônia. Com efeito, diversos dispositivos desse código regulavam aspectos
113
privados e públicos da atividade humana, entre eles comércio, finanças e propriedade,
influenciando, mais tarde, a redação do direito romano e suas derivações regionais nas
mais diversas comunidades desse vasto império da antiguidade clássica.
A presença do Estado, como regulador das relações entre agentes econômicos,
ou a própria iniciativa dos agentes, entre si, se fazia presente numa das “leis” desse
Código, especialmente a que determinava as obrigações recíprocas entre as partes numa
transação qualquer. Essa lex mercatoria da Mesopotâmia dizia o seguinte: “Se o
mercador conceder, a um agente, milho, lã, óleo, ou qualquer outro tipo de bem com o
qual comerciar, o agente deve registrar o valor [da mercadoria] e retornar [o dinheiro]
ao mercador; o agente deve tomar um recibo selado pelo [valor do] dinheiro que ele
conceder ao mercador”.1 Como se vê, não apenas o direito comercial deita raízes nos
exemplos mais precoces de intercâmbio comercial, mas o próprio intervencionismo
estatal é bem mais antigo do que se imagina, com base nas formas modernas de
mercantilismo e de ativismo econômico estatal, a partir da consolidação da forma atual
do Estado centralizado, nas monarquias absolutas da Europa pós-medieval.
Foi justamente nessa fase de unificação comercial do mundo por meio das
grandes navegações ultramarinas e no alvorecer do mercantilismo enquanto doutrina
oficial de vários estados engajados na expansão imperial que uma espécie de lex
mercatoria universal começa a tomar forma, em padrões relativamente similares aos
atualmente conhecidos. Ela nem sempre foi escrita, sendo bem mais “codificada”
informalmente numa série de práticas reciprocamente aceitas por mercadores nos mais
diversos portos do mundo. Menos de duas décadas depois que Vasco da Gama abriu o
caminho das Índias aos comerciantes portugueses – e, de fato, a todos os demais
concorrentes europeus – um farmacêutico português convertido em negociante e
diplomata informa, chamado Tomé Pires, deixou, em sua Suma Oriental (1512), uma
descrição saborosa do porto de Malaca, no estreito que leva do Índico ao Pacífico, uma
aglomeração de 40 a 50 mil pessoas, mas dividida em 61 “nações” representadas em seu
comércio de transbordo e em cujo porto se faziam negócios em 84 línguas, do Golfo
Pérsico ao conjunto da Ásia. Ele expressava sua admiração pelo exuberante comércio e

1
Citado por Nayan Chanda, Bound Together: How Traders, Preachers, Adventurers, and
Warriors Shaped Globalization (New Haven: Yale University Press, 2007), p. 30 e 339, com
base em R. H. Pfeiffer, “Hammurabi Code: Critical Notes”, American Journal of Semitic
Languages and Literatures (1920): 310-15; “Business in Babylon”, Bulletin of the Business
Historical Society 12 (1938): 25-27. Existe uma edição brasileira desse livro: Sem Fronteira
(Rio de Janeiro: Record, 2011).
114
os altos lucros produzidos pelo intenso intercâmbio de mercadorias entre essas diversas
partes do mundo, traduzindo empiricamente o que pode ser considerado como o início
do direito comercial dos tempos modernos:
Malaca é uma cidade que foi feita para mercadorias, bem mais do que
qualquer outra no mundo; [é] o fim das monções e o começo de outras [os ventos
e as correntes marítimas que aceleravam a navegação entre o Mar Vermelho e as
costas da Índia]. Malaca está cercada e se situa no meio, e as trocas e o comércio
entre as diferentes nações situadas a um milhar de léguas em todas as direções
precisam se dirigir a Malaca... Quem for senhor de Malaca, tem a sua mão na
garganta de Veneza.2

Desde então, o direito comercial abandonou suas formas mais espontâneas, tal
como existentes na península itálica da Idade Média tardia, e passou a ser codificado
num conjunto de regras e princípios que unem, de modo praticamente natural, uma das
mais antigas comunidades globalizadas da civilização humana: a dos comerciantes, que
constituem, segundo Nayan Chanda, junto com os pregadores, os guerreiros e os
aventureiros, os agentes primários mais constantes da globalização.
De fato, pode-se identificar antecedentes do direito comercial em tempos
recuados, entre os fenícios, por exemplo, depois com os romanos e os comerciantes do
Báltico, na alta Idade Média, como os legítimos predecessores dos progressos que
seriam observados a partir dos tempos modernos, sempre vinculados ao comércio
marítimo e às navegações de caráter exploratório e de penetração comercial. A partir de
seus passos iniciais nas cidades florescentes da Europa medieval, ele terá intenso
desenvolvimento nos séculos seguintes, sempre assumindo um caráter transnacional, o
que o torna, efetivamente, um dos pilares da primeira onda de globalização, a que toma
impulso na era moderna, antes mesmo da revolução industrial. Ocorreu, é verdade, uma
distinção entre a sua aplicação pela common law, de tradição britânica, e sua regulação
estatal pelas Ordonnances sur le commerce de terre (e de mer), na época de Luís XIV,
como consagra a tradição dirigista continental, mais especificamente francesa. Depois
dessa legislação da época absolutista, a França napoleônica promulgou, em 1807, seu
Código Comercial, base de inúmeros outros instrumentos em diversos países.
O Brasil não ficou imune a esse movimento, mas foi preciso aguardar quase
meio século para que fosse aprovado o primeiro Código Comercial, em 1850. Essa

2
Citado igualmente por Nayan Chanda, Bound Together, op. cit., com base em Armando
Cortesão (tradutor e editor), The Suma Oriental of Tomé Pires… and the Book of Francisco
Rodrigues (Londres: Hakluyt Society, 1944, p. 286-87), p. 52 e 342.
115
importação do modelo francês de regulação mercantil não se fez sem certo prejuízo do
comércio e das atividades econômicas em geral, já que internalizou igualmente o padrão
dirigista e intervencionista do Estado sobre atividades eminentemente privadas. De fato,
como indica um historiador do caso francês, o Code atribui preeminência às sociedades
pessoais: “La société anonyme, qui est une association de capitaux, est regardée avec
méfiance et doit être autorisée par l´État comme un cas d’exception. Ce régime restrictif
entrave la création des grandes compagnies”.3
É verdade que os legisladores brasileiros aproveitaram não só elementos do
código francês, mas também dos códigos espanhol (1829) e português (1833) para
elaborar um instrumento próprio, mas esse processo não foi linear, pois que durante
certo tempo ainda continuaram a vigorar no Brasil a legislação herdada do período
português, no qual vigiam, em matéria comercial, as Ordenações Filipinas, ou ainda a
Lei da Boa Razão, de 1769, em virtude da qual eram subsidiárias, nas questões
mercantis, as normas legais “das nações cristãs iluminadas e polidas que com elas
estavam resplandecendo na boa, depurada e sã jurisprudência”.4
Instalada em 1832 uma comissão de “pessoas probas e inteligentes” em matéria
de comércio, concluiu-se dois anos depois um projeto elaborado sob a inspiração de que
“um código de comércio deve ser redigido sobre os princípios adotados por todas as
nações comerciantes, em harmonia com os usos e estilos mercantis, que reúnem debaixo
de uma só bandeira os povos do novo e do velho mundo”.5 Após longos debates
parlamentares e uma tramitação delongada nas duas Câmaras, foi finalmente
promulgada, em junho de 1850, a lei nº 556, Código Comercial do Império do Brasil,
com 913 artigos divididos em três partes: do comércio em geral, do comércio marítimo
e das quebras (isto é, das falências); completava-o um título sobre os tribunais de
comércio e sobre a ordem do juízo nas causas comerciais. Ele não fazia em princípio
discriminação contra os não nacionais, colocando obviamente sob sua jurisdição todos
os atos de comércio praticados por estrangeiros residentes no Brasil. O Código não
reconhecia, porém, o ato de comércio isolado, exigindo, como condição de
comercialidade, a intervenção de pelo menos um comerciante, ou seja um agente de
profissão mercantil. A condição de comerciante estava pois reservada, além das

3
Cf. Gabriel de Broglie, Le XIXe Siècle: l’éclat et le déclin de la France (Paris: Perrin, 1995),
p. 175.
4
Cf. João E. Borges, Curso de Direito Comercial Terrestre (Rio de Janeiro: Forense, 1969), p.
35.
5
Idem, p. 37.
116
sociedades mercantis ou por ações, à pessoa física exercendo profissionalmente o
comércio, sem distinção de nacionalidade.
A partir do Código de 1850, qualquer estrangeiro capaz, residente no Brasil,
podia legalmente ser comerciante, assim como as empresas constituídas sob as leis
brasileiras; estas últimas, tendo a maioria ou mesmo a totalidade de seus sócios de
nacionalidade estrangeira, nem por isso deixavam de ser nacionais, se registradas de
acordo com a legislação do Brasil. De fato, os estrangeiros dominavam certos ramos do
comércio de importação de maneira absoluta, como por exemplo os portugueses para os
vinhos e os britânicos nos artigos de vestuário e objetos de metalurgia. O declínio
relativo, depois da guerra do Paraguai, da presença dessa última nacionalidade,
comparativamente a outros comerciantes estrangeiros, como os franceses e alemães, é
explicado como resultante da ligação direta, via cabo submarino, entre a Europa e o
Brasil, o que permitia um contato direto entre os fornecedores europeus e seus clientes
brasileiros. Mesmo entre os comissários de café, atividade que a historiografia
tradicional sempre acreditou ser dominada por brasileiros, a presença estrangeira era
majoritária: de maneira geral, os brasileiros eram a minoria no comércio internacional.
Salvo restrições específicas, decorrentes da legislação ordinária, os comerciantes
de nacionalidade estrangeira se equiparavam aos nacionais. O próprio Código
estabelecia algumas dessas restrições, na sua parte relativa ao comércio marítimo, por
exemplo, que reservava prerrogativas e favores a embarcações brasileiras aquelas que
pertencessem efetivamente aos súditos do Império. A proibição, nesse caso, era
drástica: se alguma embarcação registrada como sendo brasileira pertencesse de fato a
estrangeiro, ela poderia ser apreendida; a navegação de cabotagem, salvo durante um
período, foi em geral reservada a embarcações brasileiras, da mesma forma como
deveriam ser brasileiros e domiciliados no Império os capitães ou mestres de navios.
Esta era, contudo, uma situação relativamente excepcional, pois que, no mais
das vezes, o grosso das atividades econômicas estava aberto à participação de capitais e
de cidadãos estrangeiros, operando em grande medida sem necessidade de autorização
prévia, mediante mero registro na junta comercial. Alguns setores podiam exigir a
concessão da autoridade, como as lavras das minas, os transportes ferroviários ou
navais, a iluminação pública e a instalação de cabos telegráficos, o que implicava
formalmente um ato administrativo, mais raramente a promulgação de uma lei,
atribuindo permissão temporária para o oferecimento de algum serviço ou o
desempenho de alguma atividade.
117
Mais para o final do Império, com o crescimento da presença estrangeira na vida
econômica nacional, alguns setores começaram a expressar reservas quanto à sua
conveniência para o País. Lei aprovada em 1882, que liberou a organização de empresas
de responsabilidade limitada — até essa data, as empresas somente podiam operar
legalmente após consentimento expresso do Conselho de Estado —, exigia em
contrapartida que as empresas estrangeiras ainda conseguissem aprovação específica do
Parlamento para se instalarem.6 De forma geral, o Brasil republicano vai operar uma
nacionalização de grande parte das atividades econômicas – data do início do século XX
a “lei do similar nacional”, de feição claramente protecionista –, tendência que seria
reforçada ainda mais pela Constituição e pelos diversos códigos de exploração de
recursos naturais surgidos a partir da revolução de 1930; a ditadura estado-novista
exacerbaria o protecionismo e o nacionalismo estatizante, características que só seriam
revertidas, praticamente, na última década do século, para novamente emergirem com
força a partir de 2003, com a mudança de maioria política, e sua ideologia econômica,
no Executivo e no Parlamento.
O direito comercial no Brasil aparece e se desenvolve, portanto, não exatamente
como uma emanação da própria sociedade econômica, mas possuindo estreitos vínculos
com a soberania estatal, aspecto sempre cultivado na tradição jurídica brasileira, já que
tivemos de esperar quase o final do século XX para, finalmente, aprovar uma lei de
arbitragem, equiparando esse mecanismo facilitador aos laudos judiciais. De fato, até
parece uma aberração que se tenha tido de aguardar décadas, senão um século inteiro,
para que fosse finalmente incorporada a arbitragem ao ordenamento jurídico brasileiro,
quando esse instituto integra desde muito tempo os procedimentos comerciais típicos
nos países da Custom Law, inclusive quando estão envolvidos agentes nacionais e
estrangeiros. A arbitragem é uma espécie de direito comercial alternativo aplicado pela
própria classe dos comerciantes: ele não se apresenta apenas como um instrumento de
utilidade prática, mas de fato como uma real necessidade, aliás plenamente compatível
com os mecanismos e os processos mais característicos da globalização: rapidez,
flexibilidade, liberdade dada aos próprios agentes de escolherem foro aplicável, base
legal, instrumentos decisórios e os “juízes”, ou árbitros, da disputa.
Dos albores da humanidade, ainda nos tempos de Hamurabi e suas tabletes de
argila, rabiscadas em caracteres cuneiformes, aos nossos tempos, de escrita virtual e de

6
Cf. John Schulz, A crise financeira da abolição: 1875-1901 (São Paulo: Editora da
Universidade de São Paulo, Instituto Fernand Braudel, 1996), p. 16.
118
tabletes digitais, o comércio, de bens físicos ou intangíveis, continuará a se expandir em
ritmo sempre superior ao do próprio crescimento da produção física no mundo. Sua
expressão regulatória, o direito comercial, é consubstancial a esse desenvolvimento e o
conhecimento adequado de suas normas por parte dos agentes diretos do comércio é
essencial agentes primários da globalização. Mas mesmo não o conhecendo a fundo,
todos o praticam, consciente ou inconscientemente: como o personagem de Molière,
que fazia prosa sem saber, somos todos, um pouco, contrafações de Monsieur Jourdan
na era da globalização.

2786. “A globalização e o direito comercial: uma longa evolução”, Hartford, 6 março


2015, 6 p. Adaptação do trabalho 2453 (“Lex Mercatoria: uma velha tradição da
globalização, numa nova introdução”, Brasília, 18 Dezembro 2012), concebido
como prefácio ao livro de Erick Vidigal: A lex mercatoria e sua aplicação no
mundo contemporâneo (2013) e jamais publicado. Transformado em artigo
independente. Mundorama (06/04/2015; link: http://mundorama.net/2015/04/06/a-
globalizacao-e-o-direito-comercial-uma-longa-evolucao-por-paulo-roberto-de-
almeida/); divulgado em Academia.edu (link:
https://www.academia.edu/11855484/2786_A_globaliza%C3%A7%C3%A3o_e_o
_direito_comercial_uma_longa_evolu%C3%A7%C3%A3o_2015_) e no blog
Diplomatizzando (link: http://diplomatizzando.blogspot.com/2015/04/o-brasil-e-o-
direito-comercial-uma.html). Relação de Publicados n. 1171.

119
15. Fluxos financeiros internacionais: é racional a proposta de taxação

1. O problema e a proposta
Uma grande tribo de economistas profissionais, dedicados a trabalhos aplicados,
de economistas acadêmicos, ou seja, trabalhando sobretudo com pesquisas econômicas
teóricas (alguns deles servindo a governos), assim como de funcionários públicos
nacionais e de tecnocratas de organismos econômicos internacionais, todos eles
envolvidos com a recomendação de políticas públicas na área macroeconômica, têm se
dedicado, nos últimos anos, ao tema da taxação sobre fluxos financeiros. A questão,
muito em voga no imediato seguimento da quebra do padrão de Bretton Woods, no
início dos anos 1970, foi obviamente reavivada recentemente, a partir da crise
financeira surgida nos setores imobiliário e bancário dos EUA em 2007 e rapidamente
disseminada pela economia mundial de 2008 a 2010. Aparentemente a crise ainda não
amainou, com seu possível recrudescimento a partir dos problemas dos PIIGS europeus
e eventuais repercussões em outros continentes, num espectro geográfico a que
tampouco ficaria imune a América Latina.
O tema é sem dúvida alguma importante, e até mesmo crucial para os países
possuindo fortes “indústrias” financeiras, mas vem sendo considerado com alguma dose
de maniqueísmo, colocando de um lado os partidários teóricos da taxação e, de outro,
120
seus opositores práticos. Seria útil, no entanto, que o questionamento dos conceitos
associados à proposta da taxação, bem como o exame das medidas de implementação
prática dessa ideia fossem feitos com base em fortes evidências econômicas, de maneira
a evitar um experimento danoso que corresponderia mais ao preconceito contra os
“capitais financeiros” do que ao bom senso econômico.
Existe uma pressuposição implícita – ou até explícita – à ideia da taxação que é
a de que a contenção nacional ou multilateral dos fluxos puramente financeiros poderia
evitar a repetição das crises a que o capitalismo assiste de forma recorrente. A suposição
está claramente associada ao pensamento econômico keynesiano, e a seus seguidores
acadêmicos atuais, fortemente representados em alguns governos. Não se deve
tampouco ignorar o fato de que mesmo governos normalmente associados ao
pensamento econômico liberal tem recorrido a expedientes de tipo keynesiano na
tentativa de superar a atual crise econômica do setor.
Mas o raciocínio inverso também é válido: se partirmos do pressuposto que
qualquer carga adicional sobre os fatores de produção – trabalho, capital, recursos
naturais – distorce seus valores de mercado, e portanto suas condições de utilização,
deveríamos ser pelo menos céticos quanto às “bondades” da taxação, de qualquer
taxação sobre fatores de produção (governos racionais escolhem, em geral, taxar o
consumo ou a renda, e também o patrimônio, mas este já um efeito da renda). A
economia corrente, pelo menos aquela que se aprende nas boas faculdades de economia,
começa pela teoria dos preços, que nada mais é do que a microeconomia aplicada, ou
seja, utilização de fatores de produção em condições alternativas de custo-oportunidade.
Se um dos fatores vem gravado por um elemento extra-econômico – e os impostos são
uma decisão fundamentalmente política, não uma realidade decorrente da utilização
desse fator em condições normais de mercado – já se tem uma distorção da utilização
desse fator por critérios que não têm mais a ver com a raridade ou escassez relativa
desse fator. Esse é o principal elemento em qualquer cálculo econômico.
Um Grupo Internacional de Peritos – de onze países, entre os quais Brasil, Chile,
Espanha, Alemanha, Grã-Bretanha e Japão, numa Força-Tarefa coordenada pela França
– elaborou estudos e recomendações sobre a viabilidade técnica e política da taxação
dos fluxos financeiros. A França e o Brasil esperavam que as recomendações do Grupo
de Peritos fossem acolhidas por ocasião da reunião do G20 financeiro, realizada em
Busan (na Coréia do Sul), em 5 de maio de 2010, mas esse foro intergovernamental

121
acaba de rejeitar a proposta, para grande satisfação dos banqueiros e especuladores dos
mercados financeiros.

2. As crises do capitalismo e os descontentes de sempre


Crises financeiras são tão recorrentes no capitalismo quanto as dores de cabeça
na vida cotidiana: acabam acontecendo quando menos se espera (não necessariamente
em virtude das causas mais frequentemente apontadas). Existem bons livros sobre as
crises, desde o clássico de Kindleberger, Manias, panics, and crashes7, até o mais
recente de Rogoff e Reinhart: This Time is Different8. Aparentemente, as velhas crises
não ensinaram nada a banqueiros e tecnocratas. O mais recente livro de Liaquat
Ahamed, Lords of Finance,9 que trata da crise de 1929 e dos banqueiros centrais que
quebraram o mundo, confirma que seus atuais sucessores não aprenderam nada mesmo:
continuam mantendo os juros em taxas irrealistas e permitindo o surgimento de bolhas
especulativas que os próprios governos estimulam.
Não só eles, contudo, já que os tecnocratas nacionais e internacionais que se
dedicam ao financiamento do desenvolvimento tampouco parecem ter aprendido algo
de relevante, a partir dos fracassos notórios da assistência multilateral ao
desenvolvimento, que vem sendo tentado há pelo menos seis décadas, sem resultados
muito brilhantes até aqui. Sobre essa questão, vale a leitura do livro de William
Easterly, The White Man’s Burden10, que constituiu uma das bases empíricas de um
artigo recente meu: “Falência da assistência oficial ao desenvolvimento”, Mundorama
(24.05.2010; link: http://mundorama.net/2010/05/24/a-falencia-da-assistencia-oficial-
ao-desenvolvimento-por-paulo-roberto-de-almeida/).
Também existem aqueles que, sem muitos estudos teóricos ou práticos quanto à
viabilidade técnica de uma taxação sobre os fluxos de capitais, vem propondo, desde
muitos anos a criação de uma taxa Tobin, não mais especificamente voltada para as
transações cambiais, como proposto originalmente, mas generalizada ao conjunto dos
fluxos financeiros internacionais. Este tipo de proposta remete às demandas dos

7
Cf. Charles Kindleberger, Manias, panics, and crashes: a history of financial crises (New
York: Basic Books, 1978).
8
Ver Kenneth Rogoff e Carmen M. Reinhart: This Time is Different: Eight Centuries of
Financial Folly (Princeton: Princeton University Press, 2009).
9
Cf. Liaquat Ahamed, Lords of Finance: 1929, the Great Depression, and the Bankers Who
Broke the World (Londres: Windmill, 2010).
10
Cf. William Easterly, The White Man’s Burden: Why the West’s Efforts to Aid the Rest Have
Done So Much Ill and So Little Good (New York: Penguin Books, 2007).
122
antiglobalizadores, desde muito tempo engajados em ações mais ofensivas, sob o
estímulo inicial de militantes associados ao Le Monde Diplomatique (Bernard Cassen,
Ignácio Ramonet). Foram esses franceses que criaram a Attac, que tem esse sugestivo
nome como acrônimo de Association pour la Tobin Tax et en Appui aux Citoyens.
Curioso que o próprio economista James Tobin, quem primeiro propôs esse tipo de
taxação sobre transações cambiais, negou, depois, qualquer viabilidade a essa ideia e
recusou, expressamente, qualquer vinculação pessoal com as atividades dos
antiglobalizadores, ou altermundialistas, como eles preferem ser chamados. Tobin
provavelmente julgou que, nas novas condições de integração financeira ampliada, a
medida carecia de eficácia econômica ou qualquer sentido prático. Vários outros
economistas pertencentes ao chamado mainstream economics tendem a concordar com
sua posição, por considerar que os governos já liberalizaram amplamente os
movimentos de capitais, tornando assim inócua uma medida que poderia ser facilmente
contornada por mercados não regulados (e sempre os há).

3. Justifica-se economicamente a proposta pela taxação dos capitais?


A suposição dos que são favoráveis a esse tipo de proposta é, obviamente,
afirmativa, do contrário não se empenhariam com tanta dedicação intelectual e tantos
esforços práticos para viabilizar a ideia e o princípio da taxação. Cabe, no entanto,
respeitando o espírito acadêmico que deve permear qualquer proposta de política
econômica com alto grau de incerteza, abrir um debate contraditório sobre o chamado
“custo-oportunidade” da proposta, o que também passa por um exame mais detido do
que se poderia chamar de “filosofia da coisa”.
Por que a taxação sobre fluxos de capitais representaria uma melhor situação de
“bem-estar” – como dizem os economistas – do que sua livre e desimpedida circulação?
A resposta implícita a esta questão, do ponto de vista dos que lhe são favoráveis, seria
porque os fluxos de capitais são desestabilizadores ou apresentam efeitos nefastos,
incontroláveis, para as atividades econômicas dos países. Estes deveriam, em
conseqüência, manter esses fluxos sobre estrito controle, para impedir seus efeitos
nefastos do ponto de vista macroeconômico. Uma outra suposição implícita a essa
corrente é a de que os reguladores estatais conseguem determinar o que é bom para a
economia, podendo assim regular esses fluxos, para que eles representem apenas efeitos
benéficos, eventualmente pela via da tributação.

123
Vejamos a questão por um outro ângulo. Desde os albores da humanidade, a
divisão do trabalho – sexual, social e crescentemente especializada – tem sido um dos
fatores impulsionadores do crescimento econômico e da produtividade, sendo que a
primeira pode eventualmente ocorrer sem a segunda, mas a segunda é feita
expressamente para permitir maior crescimento econômico, maior eficiência produtiva e
uso mais racional dos fatores de produção. Pois bem, o capital é, junto com o trabalho,
um dos mais importantes fatores de produção, existindo sob diversas formas, e não
apenas como liquidez financeira. Aliás, a conjunção de ambos, sob a forma de
conhecimento (necessariamente embutido em pessoas, ou na memória coletiva da
sociedade), é também um fator de produção que vários economistas distinguem dos
tradicionais. A terra é sinônimo de recursos naturais, e a ciência econômica vem
lutando, ainda, para incorporar a degradação ambiental nos cálculos econômicos da
nova economia.
Com a exceção (certamente não absoluta) dos recursos naturais, a circulação dos
fatores produtivos é um dos melhores expedientes para melhorar a sua alocação
segundo princípios de eficiência e custo-oportunidade, ou seja, sua remuneração em
função da escassez relativa. Enfim, tudo isso é um beabá da economia, normalmente
ensinado nos cursos de Economics 101 e 301 nas faculdades americanas, ou nos
semestres de introdução à economia nas faculdades brasileiras. Se o pressuposto é
verdade, qualquer taxação sobre o fator em questão incidirá negativamente sobre sua
eficiência alocativa, já que alterando as condições sob as quais aquele fator viria a se
deslocar entre os sistemas econômicos, diminuindo, portanto, os retornos esperados.
Países que carecem de capital, e que necessitam importá-lo, não têm nenhum
interesse em taxá-lo, pois o único efeito da medida é o de aumentar o seu custo para os
usuários (empresários, consumidores, governo, enfim, agentes econômicos em geral).
Autoridades econômicas podem ter interesse em modular o afluxo de capital em função
do meio circulante (e seus efeitos inflacionários), o que pode ser obtido por taxação
temporária ou outros mecanismos de esterilização. Mas, independentemente dos efeitos
eventualmente ou potencialmente desestabilizadores dos fluxos de capitais, o princípio
geral que deveria prevalecer seria o de que maior fluxo de capitais, sem restrições de
qualquer espécie, é mais benéfico do que negativo do ponto de vista da estrita
racionalidade econômica. Trata-se de uma realidade tão evidente que ela merece poucas
comprovações empíricas para sustentar-se materialmente.

124
Tributar o trabalho ou tributar o capital torna qualquer sistema econômico
menos eficiente, não mais eficiente, e isso vale para qualquer época e qualquer lugar.
Empiricamente, sistemas econômicos nacionais que apresentam menor tributação sobre
esses dois fatores costumam “entregar” maiores taxas de crescimento, que outros que
taxam pesadamente esses dois fatores. Existem dezenas de estudos a respeito, assim
como existem abundantes dados estatísticos (da OCDE, em primeiro lugar) que
comprovam essa verdade elementar. Por que, então, defender a taxação dos fluxos de
capitais? Vamos tentar compreender as razões dos propositores.

4. Fluxos de capitais são desestabilizadores?


Existem muitas maneiras de responder a esta questão, seja pela teoria
econômica, seja pela prática da política econômica, seja ainda pelo exame dos casos
mais flagrantes de desestabilização concreta, no curso da era contemporânea. Creio que,
por razões de economia de espaço, bastaria fazer algumas perguntas simples.
Especuladores – a razão sempre invocada para regular impositivamente os
fluxos de capitais – são capazes de desestabilizar um sistema? Talvez, mas uma
realidade muito simples deve ser lembrada: especuladores apenas atuam em face de
desequilíbrios reais e potenciais dos próprios fundamentos da economia. O que isso
quer dizer? Nenhum ataque especulativo contra uma economia – fuga de capitais,
manipulações nos mercados cambiais – é suscetível de manter-se se a economia
apresenta fundamentos sólidos.
Mas quando é que a economia deixa de apresentar fundamentos sólidos?
Pergunta complexa, mas a resposta é muito simples. Orçamentos equilibrados, um
comportamento fiscal responsável, câmbio respondendo à demanda e oferta da moeda
nacional e as principais divisas dos intercâmbios externos, juros de referência
compatíveis com os equilíbrios de mercado – que são os que neutralizam demandas de
poupadores e investidores – e emissão monetária condizente com a dinâmica econômica
estão na origem de uma economia sólida. Quando os governos – e são sempre os
governos que atuam nos principais indicadores macroeconômicos – buscam se desviar
(sempre por razoes mais políticas do que econômicas) desses equilíbrios fundamentais,
eles criam as condições para a atuação dos especuladores.
Fugas de capitais – que são as que impactam o câmbio e o balanço de
pagamentos – ocorrem quando a política econômica é errática, prejudicial aos agentes
econômicos ou imprevisível aos olhos destes últimos, ou quando os governos,
125
justamente, impõem uma taxação abusiva sobre esse importante fator de produção. A
dependência em relação aos capitais externos ocorre quando o governo gasta mais do
que arrecada e quando ele não consegue se abastecer de modo satisfatório no mercado
interno. Muito se falou, por exemplo, de que a Grécia teria sido “vítima” dos grandes
banqueiros ou dos “especuladores” habituais. Mas a pergunta correta deve ser esta:
quem obrigou a Grécia – ou seu governo – a se entregar nas mãos dos “donos do
capital”, ou dos “especuladores”? Quem forçou o país mediterrâneo a depender desse
aporte de capitais externos e, depois, a maquiar suas contas públicas para que elas não
registrassem esses desequilíbrios inconsistentes com uma “boa” situação econômica?
Por outro lado, o afluxo indesejado de capitais ocorre geralmente quando a taxa
de juros interna é superior, numa proporção razoável – ou seja, cobrindo a inflação e os
riscos cambiais em dois ou mais pontos – aos juros de referência nos principais
mercados mundiais. E por que os juros de um país precisam ser superiores aos de outros
países: Isso ocorre geralmente quando o governo precisa reter os capitais nacionais, ou
atrair os capitais externos, em virtude de desequilíbrios nas suas contas públicas ou nas
transações correntes do balanço de pagamentos. Juros muito baixos – artificialmente
deprimidos, como ocorreu nos EUA de 2001 a 2005 – ou juros muito altos provocam,
naturalmente, esses efeitos desestabilizadores na economia, podendo provocar bolhas
especulativas ou fugas de capitais (que começam pelos próprios capitais nacionais,
obviamente, que são os mais bem informados).
Não existe, em economia, maior tolice do que culpar os “mercados” por esses
movimentos repentinos ou sustentados de capitais e de fatores de produção, essas
alterações nos principais preços de mercado, em “desalinhamento” aos objetivos dos
governos. Mercados são, por princípio e por definição, impessoais, incontroláveis e
imprevisíveis, já que respondendo à ação não coordenada de milhares de agentes que
buscam a maximização de seu bem estar com base nas informações de que dispõem
esses agentes (sempre imperfeitas, obviamente). Culpar os mercados pela instabilidade
na economia representa algo como culpar o movimentos do ventos pelos tornados,
furacões e outras fatalidades naturais: os movimentos dos mercados ocorrem porque
forças muito profundas se puseram em marcha, geralmente em contraposição ao que
espera ou deseja o governo, que é uma força poderosa mas não onipotente (e, sobretudo,
não onisciente).
Vários dirigentes, desde 2008, criticaram os mercados financeiros “não
regulados” pela crise que se abateu sobre os EUA e depois sobre o mundo a partir de
126
2007-2008, quando os mercados financeiros são dos mais regulados que possam existir.
Poucos se lembram dos juros desalinhados, do câmbio artificialmente valorizado (ou
desvalorizado), dos gastos correntes superiores às possibilidades da arrecadação, do
volume da dívida pública exageradamente elevado. Dizer que os mercados não
conseguem se corrigir a si mesmos é, também, uma das maiores impropriedades que
possam existir, pois os mercados sempre se corrigem a si mesmos, tão pronto os agentes
econômicos tomam consciência de que os resultados não serão aqueles esperados (mas
isso pode demorar certo tempo, dependendo das informações disponíveis).

5. Fluxos de capitais devem ser taxados?


De tudo o que foi argumentado acima, conclui-se, facilmente, que sou
manifestamente contrário à taxação dos fluxos de capitais, por considerar esse tipo de
medida irracional, ineficiente, prejudicial aos agentes econômicos criadores de riqueza
e, sobretudo, uma medida que mascara as reais condições da economia, eventualmente
em contradição com os dados dos mercados. Trata-se de um custo auto-imposto – ou
melhor, imposto pelo governo aos agentes – que simplesmente aumenta os custos de
transação, diminuindo, portanto, a competitividade da economia nacional assim taxada
em face de outros sistemas econômicos com os quais ela se encontra em competição.
Como disse uma vez Milton Friedman, “as pessoas sabem gastar o seu dinheiro
melhor que qualquer governo”, o que também se aplica ao fato de ganhar esse dinheiro,
que é sempre pela via produtiva, uma vez que governos são sempre tentados a
“produzir” dinheiro pela via das emissões. Há uma evidente correlação entre a taxação
interna e a “externa”, pois que governos muito “impositivos” costumam produzir, antes
de qualquer outra coisa, elisão e evasão fiscais. O Brasil é um caso típico nessa
categoria, já que são notórios tanto a alta carga fiscal em vigor quanto o alto grau de
“informalidade” do sistema, que é uma espécie de “fuga de capitais” em curso no plano
doméstico. É evidente, aos olhos de qualquer primeiro-anista de economia, que uma
taxação moderada no plano interno provocaria muito mais empreendimentos
produtivos, e maior taxação relativa para o governo, fossem as alíquotas e os
procedimentos tributários mais reduzidos e mais simples. Como se vê, os mercados
sempre se autorregulam, por mais que os governos se esforcem para provar o contrário.
Economistas e burocratas governamentais que acham que podem “domar” os
capitais e os mercados participam de uma auto-ilusão: geralmente, o único efeito de
suas medidas de controle é o de provocar a fuga preventiva de capitais, a ineficiência
127
geral do sistema e o aumento de custos para empresários e consumidores. Mercados
sempre farão exatamente aquilo que sempre fizeram e continuarão a fazer: corrigir as
medidas equivocadas dos governos, punindo-os por criarem desequilíbrios implícitos a
políticas econômicas desalinhadas ou por adotares medidas artificiais de “correção” dos
“desequilíbrios” supostos dos mercados.

2150. “Seminário ‘Taxação sobre fluxos financeiros para um mundo melhor’:


Comentários de quem acha que o mundo seria melhor sem taxação”, Shanghai, 8
junho 2010, 10 p. Comentários sobre seminário do Ipea, em 10-11/06/2010.
Postado no blog Diplomatizzando (link:
http://diplomatizzando.blogspot.com/2010/06/seminario-taxacao-sobre-
fluxos.html). Refeito em 11.06.2010, sem as menções ao seminário, no texto
“Fluxos financeiros internacionais: é racional a proposta de taxação?” (8 p.).
Publicado em Mundorama (Boletim 34, 14/06/2010; link:
http://mundorama.net/2010/06/14/fluxos-financeiros-internacionais-e-racional-a-
proposta-de-taxacao-por-paulo-roberto-de-almeida/). Relação de Publicados n. 975.

128
16. Fórum Econômico e Fórum Social: dois mundos contraditórios

Dois personagens à procura de um enredo


Entre o final de janeiro e o começo de fevereiro de cada ano são realizados,
sucessivamente ou por vezes simultaneamente, dois fóruns mundiais, mas “inimigos”:
de um lado, o dos capitalistas de Davos – o Fórum Econômico Mundial, ou WEF, na
sua sigla em inglês – e, de outro, nos últimos dez anos, o dos antiglobalizadores do
Fórum Social Mundial (FSM), em diferentes cidades tidas como, momentaneamente,
“alternativas” (e Porto Alegre o foi, enquanto esteve sob o comando do PT). Já passou o
tempo em que os militantes do segundo grupo se organizavam para perturbar, ou
mesmo para tentar impedir a realização do primeiro, como faziam com todos os demais
encontros “capitalistas” de par le monde, formando correntes de bloqueio, destruindo
algumas propriedades e enfrentando a polícia nas ruas dessa pacata estação de esqui da
Suíça (ou de outras cidades que por acaso abrigam reuniões periódicas dos “poderosos”
do mundo).
Os antiglobalizadores – graças, justamente, à globalização, mas isso eles não
reconhecem – se tornaram agora um grupo por demais “importante” para apenas
protestar ruidosamente contra os encontros de capitalistas: eles já têm seu espaço
garantido na mídia e na agenda de muitas ONGs e por isso se dedicam, hoje, com a
mesma seriedade de uma multinacional “grisalha”, a transmitir suas próprias “soluções”
aos problemas mundiais, chegando até a obscurecer, em algumas ocasiões, as propostas
do primeiro grupo. Cabe, assim, tratar de suas agendas respectivas e de suas propostas,
129
se é que alguma proposta significativa pode “emergir”, de um ou outro fórum, para
“resolver”, de fato, problemas cruciais da humanidade.
Esses problemas, como se sabe, têm nome e “endereço”: pobreza ainda
disseminada em diferentes regiões do planeta, ameaças à paz e à segurança
internacionais em diversos hotspots do mundo, conflitos renitentes, sob a forma de
guerras civis, enfrentamentos étnicos ou religiosos, em países próximos daquela
condição associada a um “Estado falido”, poluição e perspectivas de novos cenários
malthusianos com o aquecimento global antrópico, enfim, questões que estão há muito
tempo na agenda das principais potências e organismos internacionais e que são, ou
deveriam ser, tratadas também nos encontros mundiais de globalizadores e
antiglobalizadores, onde quer que eles se reúnam. Vamos tentar ver um pouco mais de
perto o que representam, de fato, esses encontros e analisar suas “soluções”.

Fórum de Davos: capitalistas “arrependidos” e fora de foco


O Fórum de Davos surgiu no início dos anos 1970 com a finalidade explícita de
reunir representantes da elite do empresariado mundial e os dirigentes políticos com
responsabilidade de governos em torno das questões mais relevantes da agenda
mundial, num momento – choques do petróleo e revolução islâmica no Irã – em que o
mundo se debatia entre a estagflação dos países ricos e as crises econômicas –
geralmente de dívida externa – dos países em desenvolvimento. Seu organizador, Klaus
Schwab, tinha a intenção de facilitar o diálogo entre esses dois grupos, já que o G7 se
reunia praticamente a portas fechadas e que as reuniões das instituições de Bretton
Woods – FMI e Banco Mundial – e do Gatt tampouco permitiam a participação do setor
privado; haveria, portanto, um espaço a ser preenchido por uma ONG como a que ele
criou precipuamente com essa finalidade: juntar reguladores e decisores em torno dos
problemas do momento.
Os objetivos eram, sem dúvida alguma, meritórios: encontrar um terreno neutro,
quase de lazer (já que Davos sempre se distinguiu pelas suas pistas de esqui), para fazer
avançar a coordenação de políticas entre os principais atores da economia mundial –
Estados e companhias globalizadas –, sempre com intenção de, através do diálogo
informal, despojado do peso das burocracias governamentais, fazer com que algumas
novas ideias pudessem ser concretizadas no terreno das políticas práticas e das
iniciativas intergovernamentais, com vistas a incrementar, de modo adequado e
mutuamente benéfico, a chamada interdependência econômica global. Nesse sentido, a
130
agenda de Davos não era muito diferente daquela do G7, da OCDE ou daqueles
entidades multilaterais, com a vantagem de oferecer um espaço de discussão informal,
sem os rigores e os compromissos das declarações oficiais de governos e entidades.
Passados quarenta anos de sua criação, qual seria o balanço a ser feito do WEF e
de suas contribuições, eventualmente positivas, para a melhoria das condições
econômicas e sociais no nosso planeta? Elas são inegavelmente positivas, pelo simples
fato de se ter mais um espaço de diálogo entre a chamada “sociedade civil” – ainda que
representada majoritariamente pelos capitalistas, ou seja, os “ricos e poderosos”, como
diriam seus opositores – e líderes governamentais, tratando de problemas relevantes da
agenda mundial: crescimento econômico, desenvolvimento sustentável (que é o novo
mantra da agenda ecológica de radicais e cientistas do meio ambiente), comércio
internacional (que sempre anda aos “trancos e barrancos”, ao sabor das rodadas de
negociações comerciais multilaterais), sistemas financeiros (e a verdadeira anarquia
monetária e cambial que existe nessa área), questões tópicas de saúde, segurança,
comunicações, ou questões mais amplas, como desenvolvimento social, distribuição de
renda, diversidade cultural, etc.
Aos poucos, porém, essa agenda passou a refletir o “politicamente correto” das
agências intergovernamentais, com uma linguagem cuidadosamente escolhida para não
ofender “gregos e goianos”, e tomando o cuidado para tampouco contrariar as
prioridades governamentais, para não afastar os líderes governamentais, que, junto com
os capitalistas, são os que sustentam financeiramente o WEF. Na verdade, os encontros
de Davos são uma ocasião adequada para que estes últimos, em suas missões de lobby e
de novas oportunidades de negócios, encontrem os decisores de governo, ou seja,
continuem a fazer aquilo que eles normalmente fazem em direção de suas capitais e nos
países focados para investimentos e transações comerciais. Podem até ocorrer cenas
implícitas de corrupção, dado que a profusão de atores tornam menos visíveis certos
encontros e conversas que, no plano puramente nacional, seriam refletidas pela
imprensa local e pelos competidores de outros países.
Nesse ambiente de “mútuo congraçamento”, de troca de favores gentis, de
palavras amenas uns com os outros, só poderia dar no que deu: a agenda do WEF foi
capturada pelas prioridades repetidamente reincidentes – com perdão pela redundância
– das agências intergovernamentais, das ONGs de “bem-pensantes” – como Raymond
Aron se referia a essas “almas cândidas”, interessadas, equivocadamente, em fazer o
“bem” para o mundo, mas sempre pelas vias erradas – e das personalidades
131
beneméritas, sempre prontas a agitar alguma “ideia generosa”, desde que aquilo lhes
garantisse alguns minutos de publicidade gratuitas nas telas dos canais internacionais e
dos grandes jornais de circulação mundial.
Pois foi assim que pudemos ver, poucos anos atrás, uma conhecida artista de
Hollywood, seduzida pela agenda de um cantor idiota (mas de sucesso) de “salvar os
africanos” da miséria e da fome, conduzir numa plenária do WEF, ao vivo, uma
campanha imediata de doações em favor do continente africano, anunciando
imediatamente que estava depositando um milhão de dólares na caixinha de uma
entidade qualquer que se dedicava, justamente a essa atividade benemerente. Foi o sinal
para que os capitalistas entusiasmados – não tanto pela África, mas provavelmente pela
atriz sedutora – passassem a soltar seus milhares de dólares pela mesma causa. No
espaço de uma hora, a conta deve ter subido a vários milhões, que provavelmente foram
perdidos nas semanas e meses seguintes com a triste realidade da assistência oficial e
privada ao “desenvolvimento” africano: metade gasta nos meios e suprimentos
adquiridos nos próprios países desenvolvidos, outro quarto nos canais de intermediação
africanos (com pelo menos uma parte voltando para os bancos offshore que mantêm
contas numeradas) e o que sobrou sendo finalmente aplicado na atividade-fim (sem
qualquer esperança de algum tipo de mudança nas realidades africanas).
Patéticos esses capitalistas de Davos, que agora precisam ser um pouco de tudo:
sustentáveis, igualitários, socialmente conscientes, ecologicamente ativistas,
politicamente equilibrados, culturalmente diversificados, inclusivos em matéria de
gênero, raça e cor, sexualmente abertos, compreensivos com todas as religiões,
favoráveis a cotas para todo tipo de minoria, apoiadores sinceros de uma “diplomacia
supranacional da generosidade”, enfim, super-homens (e supermulheres), tudo menos
simples capitalistas, vocês sabem, daquele velho estilo, interessados apenas em lucros e
resultados para seus acionistas e proprietários. Eles estão quase pedindo desculpas por
serem ricos e poderosos, por produzirem resultados tangíveis para suas empresas, ou
simplesmente por serem capitalistas. Estão com a consciência culpada por terem um
estilo de vida tão “luxuoso”, enquanto mais da metade da humanidade patina na
miséria: “o que podemos fazer?”, suplicam eles...
Eu diria que eles deveriam voltar a ser o que sempre foram: capitalistas, apenas
isso. Sua função principal é, essencialmente, a de produzirem resultados para seus
proprietários e acionistas, quanto mais lucro melhor. Como o lucro só pode ser
proveniente de alguma atividade lícita de mercado – claro, tem aqueles que vão a Davos
132
para conseguir um contrato suculento com algum príncipe, mas esses são minoria – eles
estarão cumprindo, assim, a função que lhes foi atribuída pela economia de mercado.
Qualquer outra atividade “politicamente correta” que eles resolverem empreender,
como empreendem de fato, é pura hipocrisia social, é uma rendição às novas patrulhas
ideológicas que frequentam – infestam, seria o termo mais apropriado – esses encontros
a partir dos organismos internacionais e das entidades não governamentais
pretensamente caritativas e humanitárias.
O mundo dos capitalistas é o mundo dos retornos de mercado, dos lucros
crescentes, das inovações tecnológicas, da competição desenfreada, da promoção das
novas ideias para vencer a concorrência, enfim, o mundo que eles sempre conheceram
antes de começar essa onda do “politicamente correto” que se revela economicamente
estúpido. Os capitalistas não vão produzir um “outro mundo possível”, melhor do que o
atual, entenda-se, seguindo as recomendações economicamente irracionais de ONGs e
dinossauros intergovernamentais; eles apenas vão prolongar os diferenciais de
produtividade, as desigualdades sociais e regionais, a não-educação, a corrupção, a
ineficiência dos aparatos estatais na maior parte dos países em desenvolvimento, enfim,
as mesmas realidades a que assistimos atualmente, depois de quatro ou cinco “décadas
do desenvolvimento” decretadas pela ONU.
Mas também suspeito que eles vão para Davos praticar a mais velha das
vaidades humanas, o exibicionismo do rico perdulário: “eu chego de jatinho particular,
eu alugo um chalé a 300 mil dólares por um fim de semana, eu dou uma festa regada a
champagne legítimo, eu vou esquiar em pista exclusiva, e depois, se sobrar tempo,
passo naquela mesa-redonda para demonstrar minha compreensão com as causas do
momento” (aproveitando para ver aquele velho corrupto do Oriente Médio). Enfim, isso
também existe, e Davos até pode sair mais barato em matéria de lobby, ao concentrar
toda essa fauna no mesmo lugar. Aposto como teremos mais quarenta anos de WEF, no
mesmo estilo, com capitalistas cada vez mais encurralados no politicamente correto dos
tempos que correm. Enfim, more of the same...

Os “alternativos” do FSM: socialistas reciclados na economia solidária


Outra é a fauna dos encontros anuais (e regionais) do FSM: viúvas do
socialismo, órfãos do comunismo, frustrados com o prolongamento (várias vezes
repetido) das “crises finais” do capitalismo, filhos ingratos da globalização, ingênuos de
todo gênero e um gênero especial de velhos “velhacos” do altermundialismo
133
profissional, aqueles capazes de vender ideias vazias para mentes igualmente vazias,
como são as dos jovens que frequentam em sua grande maioria esses encontros ruidosos
e caóticos. Assim como Davos é um convescote de luxo para os capitalistas (e outros
poderosos do globo), os encontros do FSM são um piquenique catártico, geralmente
austero, para todos esses rebentos rebeldes da globalização.
As grandes estrelas são esses embromadores de sempre, nomes conhecidos na
academia e nos meios de comunicação para serem repetidos aqui gratuitamente. A eles
se somam alguns populistas e demagogos do chamado Terceiro Mundo, em maior
número, atualmente, da América Latina, um continente atrasado que costuma produzir
esse tipo de fauna política (já que em outras regiões, o pessoal está mais ocupado em
realmente fazer emergir suas economias). Eles vêm “debater” – conforme leio no
programa – “a conjuntura global e a crise, a situação dos movimentos sociais e cívicos e
o processo do Fórum Social Mundial.”
Em matéria de resultados efetivos para a prosperidade do mundo, eles
conseguem ser ainda mais negativos, e irrelevantes, do que os capitalistas de Davos,
pois que estes últimos pelo menos produzem bens, serviços, utilidades mercantis que
entram nos vastos circuitos da globalização, ao passo que os primeiros só produzem
palavras, palavras e mais palavras. Nunca tantos se reuniram tanto, para transpirar tanto,
sem qualquer inspiração útil, em torno de tão magras ideias (if any). Parece incrível,
mas eles conseguem se repetir a cada ano, sem trazer nada de novo para o debate
público. Senão vejamos.
Leio no documento de base dos antiglobalizadores: “A situação global está
marcada pelo aprofundamento da crise estrutural da globalização capitalista.” Ou então:
“Análises do movimento altermundialista estão sendo aceitas, reconhecidas e
contribuem para a crise do neoliberalismo. As propostas produzidas pelos movimentos
são aceitas como base, por exemplo, para o monitoramento dos setores financeiro e
bancário, para a eliminação dos paraísos fiscais, de tributos internacionais, para o
conceito de segurança alimentar, até então considerados heresias, estão nas agendas do
G8 e do G20.” Mais ainda: “Essas propostas tem sido acolhidas, mas não se efetivam
por causa da arrogância das classes dominantes confiantes no seu poder.” (“O que está
em jogo no Fórum Social Mundial 2011”; leitura em: 25/01/2011; link não disponível).
Também leio na imprensa que um desses líderes latino-americanos presentes ao
FSM de Dacar foi enfático em condenar a exploração e a dominação dos malvados de
sempre, exaltando a liberação dos povos pela mão de dirigentes anti-imperialistas como
134
ele: “Assim como a África foi colonizada e submetida, a América Latina também foi
invadida pela Europa, que para ali foi aniquilar povos indígenas.” O caminho para a
liberdade, porém, passa pela correta identificação dos adversários: “Sabemos bem quem
são os inimigos do povo: o capitalismo, o neoliberalismo, o neocolonialismo, que
possuem instrumentos para seguir impondo políticas e saqueando as riquezas da
população.” Basta isso: já sabemos o resto.
O mais curioso, nesse tipo de catarse “social”, é que esses líderes condenam a
exploração dos países ricos e poderosos, mas querem liberdade de emigração, ou seja,
fronteiras livres para que seus “povos explorados” possam ter acesso aos mercados de
trabalho das potências exploradoras. Não seriam eles cúmplices daqueles europeus que
foram saquear as riquezas dos “povos originários”, querendo agora que esses mesmos
povos sejam explorados desta vez no centro mesmo do sistema explorador?
É isso, pelo menos, que deduzo de algumas palavras de ordem do documento de
base, que pede um “mundo diferente da globalização dominante”. Para isso, os
antiglobalizadores pretendem colocar a questão dos “direitos dos migrantes e da
migração que questione o papel das fronteiras, bem como a organização do mundo.”
Mas se é para escapar da globalização assimétrica, como é que eles pretendem agora
oferecer seus povos no altar da globalização, como vítimas expiatórias de um “novo
mundo possível”? Vai entender...
E como é que os antiglobalizadores pretendem construir esse “outro mundo
possível”? Segundo eles, mobilizando as forças de “movimentos de campesinos,
sindicatos, grupos feministas, de juventude, habitantes locais, grupos de imigrantes
reprimidos, grupos indígenas e culturais, comitês contra a pobreza e contra a dívida, a
economia informal e a economia solidária, etc.” Enfim, majoritariamente os lumpen, e
bem menos os trabalhadores da economia formal, que costumavam ser os “coveiros do
capitalismo” naquela versão antiga das velhas teses alternativas à economia de mercado.
Para piqueniques culturalmente diversos está muito bem, mas para construir uma
alternativa real e credível a essa globalização assimétrica que está aí, deve-se
reconhecer que essa tribo é bem menos homogênea do que os capitalistas de Davos. Vai
ser difícil um entendimento sobre uma plataforma comum, e abrangente, de mudanças
sociais e políticas que conduzam a esse “outro mundo possível”, se é verdade que os
antiglobalizadores sabem onde querem chegar (o que eu duvido).
Na sua linguagem sempre enrolada, típica de acadêmicos que vivem sua labuta
constante na embromação cotidiana de alunos passivos, os antiglobalizadores
135
reconhecem que a luta não é fácil: “O processo do FSM pôs em cena as bases para essa
nova cultura política (horizontalidade, diversidade, convergência das redes de cidadãos
e dos movimentos sociais, atividades autogeridas, etc.) mas ainda deve inovar mais em
muitas dificuldades relativas à política e ao poder, para conseguir superar a cultura
política caduca, que para a imensa maioria persevera dominante.” Pois é, o mundo é
mesmo pouco complacente com suas ideias vazias (se que eles têm alguma). Os
capitalistas de Davos, pelo menos, costumam expressar seus objetivos apontando para
resultados mais tangíveis: tanto de crescimento (descontada a inflação), lucros
aumentados em x%, investimentos em y%, empregos criados em tal ou qual país, novos
centros de pesquisa e desenvolvimento, z% do faturamento global aplicado em
inovação, dividendos em alta, abertura de capital, etc.
Se os antiglobalizadores tivessem algum tipo de benchmark, e fossem avaliados
por uma dessas consultorias globais em organização e métodos, eles provavelmente
seriam reprovados. Só não fecham a “barraca” porque conseguem operar a custos
mínimos, graças, entre outras benesses do capitalismo, ao free lunch da globalização: e-
mail e blogs gratuitos (thanks Google), telefonia de graça por VOIP, patrocínio de
empresas estatais e de governos “iluminados”, milhas acumuladas e passagens e diárias
dadas pelas entidades de fomento à pesquisa pública, enfim, um sem número de
benefícios do sistema que eles conspurcam de forma totalmente ingrata e
incompreensível.

Capitalistas e antiglobalizadores: defasados e esquizofrênicos


Ao fim e ao cabo, tanto os capitalistas de Davos, quanto os antiglobalizadores do
FSM (que são, em grande medida, anticapitalistas, com exceção dos jovens, que não são
nada; são apenas a favor de um “mundo melhor”) estão de certa forma em descompasso
com as realidades do mundo e aparentemente sem propostas sobre como empreender a
construção desse “outro mundo possível” a que ambos os grupos aspiram (ao que
parece). Os primeiros porque deixaram de ser apenas capitalistas para se apresentarem
em “reformadores sociais”, quando esta não é a sua tarefa e a sua “missão histórica”
(como diria Marx). Os segundos porque não têm mesmo nenhuma proposta viável a
apresentar para a “reconstrução” do mundo, e se contentam em repetir slogans vazios e
dar voltas em torno de suas teses requentadas sobre a globalização não-assimétrica e a
economia solidária.

136
A rigor, ambas as tribos já fazem parte da paisagem da globalização, com seus
rituais consagrados e seus estilos respectivos de promover encontros, convescotes
requintados no primeiro caso, piqueniques rústicos no segundo. Não se espera que
ofereçam, por isso mesmo, soluções inovadoras aos problemas do mundo atual. Os
capitalistas porque parecem estar perdendo seus “espíritos animais” e domando aquela
ganância por lucros em favor de “ações socialmente responsáveis” – que são um
travestimento das únicas atividades que deveriam empreender vigorosamente, que são:
inovar, vender e ganhar dinheiro – e os antiglobalizadores porque não dispõem, de
nenhum modo, de estatura intelectual para apresentar propostas concretas a problemas
concretos: eles ficam no seu mundo de palavras vazias, de discursos erráticos, de
soluções utópicas, sem qualquer aplicabilidade ao mundo real.
O mundo vai ter de esperar mais um pouco: talvez um recesso da onda de
“politicamente correto” de um lado e um cansaço dos slogans repetitivos de outro.
Quando isso vai ocorrer, eu não sei; só sei que os espetáculos anuais de Davos e dos
encontros do FSM começam a ser aborrecidamente recorrentes, como esses produtos
pasteurizados que já saíram do gosto popular. Um outro Davos é possível, um outro
FSM é possível: ninguém tem nada a perder inovando em cada uma das frentes, só tem
um mundo novo a ganhar.

2244. “Fórum Econômico e Fórum Social: dois mundos impossíveis e contraditórios?”,


Brasília, 7 fevereiro 2011, 9 p. Comentários sobre o WEF e o FSM, criticando
ambos. Publicado em Mundorama (8.02.2011; link:
http://mundorama.net/2011/02/08/forum-economico-e-forum-social-dois-mundos-
impossiveis-e-contraditorios-por-paulo-roberto-de-almeida/). Postado no
Diplomatizzando (http://diplomatizzando.blogspot.com/2011/02/davos-e-fsm-
irmaos-siameses.html). Publicado sob o título de “Entre Davos e Dacar: dois
mundos impossíveis?”, no portal iG de economia (10/02/2011). Relação de
Publicados n. 1022.

137
17. Fórum Social Mundial: uma década de embromação

1. A novela está de volta (com o mesmo enredo...)


Como acontece todo ano, os alternativos da antiglobalização estarão reunidos
neste final do mês de janeiro de 2010 para protestar contra a globalização assimétrica e
proclamar que um “outro mundo é possível”. Eu também acho, mas a verdade é que eles
nunca apresentam o roteiro detalhado desse outro mundo esperado, se contentando com
slogans redutores contra a globalização, essa mesma força indomável que torna mais
eficiente a interação entre essas tribos e permite que suas mensagens – equivocadas,
como sempre – alcancem, em questão de minutos, todos os cantos do planeta. Em todo
caso, eles já se consideram tão importantes que já nem mais se dão ao trabalho de
protestar contra o outro Fórum Mundial, o capitalista de Davos, como ocorria todo ano
naquela estação suíça de esqui: os capitalistas agradecem serem deixados em paz e
prometem refletir sobre as propostas do fórum alternativo, se é que alguma será feita.
Como também acontece todo ano, eu fico esperando para ver se alguma ideia
nova e interessante – Ok, ok, também podem ser ideias velhas e desinteressantes, mas
que sejam pelo menos racionais e exequíveis – vai emergir desse jamboree anual de
antiglobalizadores e iluminar as nossas políticas públicas tão carentes de racionalidade e
sentido de justiça. Como não confio, porém, que algo de novo vá surgir de onde nunca
veio nada de inteligente, resolvi não esperar pela conclusão do encontro de 2010, e me
proponho, sem cobrar copyright dos antiglobalizadores, antecipar suas conclusões
conclusivas (se é verdade que algo do gênero pode ocorrer; isso corre o risco de nos
surpreender).
138
Baseio-me, para esse propósito, na agenda oficial do encontro, que recebe o
pomposo título de “Fórum Social Grande Porto Alegre”, devendo realizar-se a partir do
dia 25, na capital do Rio Grande do Sul. O prato de resistência desse novo piquenique
será um seminário internacional “10 Anos Depois: Desafios e propostas para um outro
mundo possível”, cujos comensais serão os ‘suspeitos de sempre’, gente do calibre
intelectual de Eduardo Galeano – já conhecido como o mais perfeito idiota latino-
americano –, Emir Sader – tampouco é preciso apresentar, dadas suas grandes
contribuições à sociologia do desconhecimento e da empulhação ideológica – e esse
monumento de justiça social e de uso correto da propriedade fundiária que se chama
João Pedro Stédile (acreditem, o sujeito se diz formado em economia e nunca conseguiu
entender como funciona a teoria do livre comércio, ademais de ser contra o simples ato
de exportar; vai entender...).
Retomando cada um dos pontos da agenda oficial, permito-me agora alinhar as
principais conclusões desse encontro, o que não exige, longe disso, nenhum poder
extraordinário de premonição ou de antecipação sociológica. Está tudo determinado
pela interminável e recorrente ‘conversa mole’ que escutamos há dez anos. Portanto,
não corro nenhum risco de errar em retomar os conceitos de dez anos de ‘bullshit’
antiglobalizador.
Exponho os procedimentos aqui seguidos: após a enumeração de cada uma das
mesas que animarão o conclave dos antiglobalizadores, transcritas em itálico, formulo,
de minha parte, o que imagino serem as propostas que emergirão desses encontros de
trabalho; por fim, complemento o exercício em cada rubrica, com meus comentários,
que ofereço prévia e graciosamente a todos os participantes.

2. O diagnóstico do nosso mundo impossível (com os clichês de sempre...)


Dia 26/01/2010: CONJUNTURA MUNDIAL HOJE
Mesa 1: Conjuntura Ambiental
FSM: Os grandes monopólios multinacionais se opõem à justiça ecológica, e
pretendem continuar com plena liberdade para poluir a Terra e esgotar seus recursos
naturais; o fracasso da conferência de Copenhagen confirma que os países
desenvolvidos não pretendem assumir suas responsabilidades pelo aquecimento global,
nem mudar um modelo perverso de crescimento, baseado no uso intensivo de recursos
não renováveis e no consumismo exagerado. Os países em desenvolvimento não podem
agora ter de pagar um preço pelas disfunções ambientais das quais eles não foram os
139
responsáveis e sobre as quais não podem assumir os custos de uma correção
hipocritamente igualitária.
PRA: Os antiglobalizadores, acompanhados de muitas delegações oficiais de
países participantes, tentaram, em Copenhagen substituir os mecanismos disponíveis de
controle da escassez relativa de bens – que é a simples lei da oferta e da procura – pelo
controle administrativo de bens energéticos e recursos naturais, achando que o sistema
de preços não consegue expressar com precisão o equilíbrio entre a disponibilidade
desses recursos e seu uso responsável, no que estão ambos enganados. Se adotadas, as
recomendações de uns e de outros imporiam um custo irracional à atividade produtiva
no planeta, além de sinalizarem na direção errada que uma economia respondendo a
impulsos de mercado deveria tomar. Se controles administrativos fossem sinônimo de
eficiência ambiental, os países socialistas seriam exemplos de desenvolvimento
sustentável e de preservação do meio ambiente, não o desastre ecológico que eles
efetivamente foram.

Mesa 2: Conjuntura Econômica


FSM: A globalização capitalista produz miséria, desemprego, desigualdade e
retrocessos sociais no mundo; a crise financeira é uma prova de que a economia
capitalista só produz desastres, servindo para beneficiar um punhado de banqueiros
gananciosos, que além de tudo se apropriam do dinheiro público para distribuir gordos
bônus entre esses privilegiados; as políticas econômicas promovidas pelo G7 – e agora
pelo G20 também – não tem servido para recolocar a economia mundial no caminho do
crescimento e da distribuição de riqueza, posto que elas se caracterizam por uma adesão
acrítica e incondicional às políticas neoliberais e às famosas regras do “consenso de
Washington”, que só aprofundam a crise e a miséria das massas trabalhadoras.
PRA: Em nenhuma outra esfera da atividade humana, desde a invenção da
agricultura, dez mil anos atrás, a análise dos antiglobalizadores é mais carente de
embasamento na realidade do que nesses diagnósticos sobre a situação econômica do
planeta e sobre as causas das flutuações financeiras, cambiais e sobre os ciclos
produtivos. Eles pretendem “demonstrar” que os países que entraram em crise o fizeram
por sua submissão à economia liberal, quando poucos países podem ser considerados
realmente liberais hoje em dia; todos eles tiveram juros e outras medidas
macroeconômicas em desalinhamento com o que seriam, de fato, os níveis de mercado,
em virtude, precisamente, da intervenção dos governos. Eles pretendem ‘provar’ que
140
China e Índia não entraram em crise por não se ajustarem a esse modelo, quando na
verdade esses dois países caminham há vinte anos na direção de políticas liberais e de
abertura econômica.

Mesa 3: Conjuntura Política


FSM: A despeito das promessas de mudança no país mais poderoso do planeta,
as mesmas políticas imperialistas continuam a ser praticadas, e governos que tentam
escapar do jugo do capitalismo monopolista vêm sendo sabotados em seus intuitos de
mudar a orientação das políticas econômicas no sentido da distribuição e da igualdade;
as políticas liberais de livre comércio e de liberalização dos mercados de capitais,
promovidas pela OMC, pelo FMI e pelo Banco Mundial, só beneficiam os mais ricos,
ao mesmo tempo em que aprofunda as desigualdades no planeta; os povos têm direito
de lutar por uma agricultura sustentável, socialmente justa, que contemple os objetivos
da segurança alimentar, contra as ameaças dos transgênicos e da agricultura capitalista.
PRA: O FSM certamente vai apoiar os governos ‘bolivarianos’ em luta contra o
‘dragão da maldade’, nada menos do que o Império, que deseja eliminar esses valentes
exemplos de independência política, de alternativa econômica e de insubmissão aos
ditamos do colonialismo opressor. Esses governos serão mostrados como exemplos de
luta dos povos pela liberação da dominação das grandes potências, quando em vários
casos eles estão construindo sistemas autoritários, de permanência de seus líderes no
poder, e de controle estatal da economia e dos meios de comunicação. Em matéria de
conjuntura política, os antiglobalizadores conseguirão ser ainda mais regressistas do que
no campo econômico, mas isso é esperado: a tribo é formada por jovens idealistas que
lutam por direitos humanos e desenvolvimento sustentável, por sindicalistas pouco
ingênuos, que pretendem escapar da ‘mais-valia’, e por seitas diversas de órfãos do
socialismo que, nada ingênuos, pretendem garantir a sobrevivência de suas crenças
emboloradas.

Mesa 4: Conjuntura Social


FSM: O racismo, a discriminação contra a mulher, a opressão dos povos
periféricos, as violações dos direitos humanos e o próprio terrorismo fundamentalista
são o resultado da globalização assimétrica e de um processo histórico marcado pela
ocupação imperialista, que insiste em preservar a sua dominação, inclusive mediante o
terrorismo de Estado; em todas as partes, o capital pretende eliminar os direitos – a
141
pretexto de ‘flexibilizar’ relações contratuais de trabalho – e aumentar o grau de
exploração dos trabalhadores.
PRA: O mais interessante é que, em todo e qualquer exemplo conhecido de luta
vitoriosa dos trabalhadores contra o capital, os trabalhadores perderam muito
rapidamente seus direitos trabalhistas e sindicais. O mesmo está ocorrendo atualmente
na Venezuela, onde sindicalistas não comprados pelo poder estão denunciando a falta de
liberdade sindical, de direitos tradicionais de organização independente dos
trabalhadores; não se tem notícia de um “Estado de trabalhadores e camponeses” que
tenha logrado preservar a independência e a autonomia dos trabalhadores, em sindicatos
livres e atuantes, num clima forçado de colaboração com o Estado: mas isso é fascismo,
não socialismo...

3. Construindo um outro mundo possível (e que provavelmente não vai


funcionar...)
Dia 27/01/2010: ELEMENTOS DA NOVA AGENDA I
Mesa 1: Bens-Comuns
FSM: Os bens comuns – espaços marinhos, florestas contínuas, atmosfera,
patrimônios naturais da humanidade – não pode ser apropriados privadamente, nem
objeto de transações comerciais. A OMC não pode submeter esses bens comuns às
mesmas regras comerciais que presidem ao intercambio de bens manufaturados. Um
novo regime de administração internacional tem de ser criado, com financiamento
multilateral baseado na taxação dos movimentos de capitais especulativos.
PRA: Administração coletiva de bens comuns nunca foi garantia de preservação
ou de boa gestão dos recursos assim organizados; sua conservação é muito melhor
obtida quando eles podem ser objeto de precificação nos mercados, pois essa valoração
expressará seu exato valor de extração e de reposição; taxar fluxos de capitais não muda
absolutamente nada os diferenciais de juros entre os países – que é o que atrai os
especuladores –, apenas aumenta o custo das transações, geralmente em detrimento dos
mais carentes de capitais, que são justamente os países em desenvolvimento.

Mesa 2: Sustentabilidade
FSM: O modelo atual de desenvolvimento é intrinsecamente insustentável, posto
que apoiado no lucro irrefreável e na cobiça exagerada, típicos do capitalismo liberal; a
sociedade tem de mudar os padrões de consumo, reduzir o uso de energia, reciclar tudo
142
o que puder sê-lo e adotar um novo estilo de vida, menos baseado em bens individuais e
mais apoiado sobre bens coletivos (e não apenas transportes). Governos e organismos
devem criar esses novos padrões e determinar seu acatamento em benefício de todos.
PRA: O que é insustentável, no plano da lógica formal e da coerência com as
realidades da economia, são as idéias dos conservacionistas, ‘sustentabilistas’ e outros
terroristas do consumo corrente, como se os equilíbrios dinâmicos da economia de
mercado não fossem capazes de adaptar os padrões produtivos e de consumo sempre
quando os estímulos corretos – que são aqueles que refletem o real valor dos bens
escassos, não a imposição de normas arbitrárias – estiverem funcionando naturalmente;
utopias anti-consumistas não são apenas intrinsecamente autoritárias e ineficazes, mas
também contrárias à racionalidade estrito senso das regras microeconômicas.

Mesa 3: Economia e Gratuidade


FSM: A economia da apropriação privada conduz o mundo a um impasse,
devendo ser substituída por uma globalização solidária, na qual a economia não vise
unicamente o lucro dos grandes monopólios multinacionais, mas promova o bem-estar
de todos os cidadãos; bens públicos devem preferencialmente ser distribuídos
gratuitamente, pelo menos aos cidadãos de baixa renda.
PRA: Uma verificação rápida, visual, sobre os locais de carência e os de
abundância confirma imediatamente as raízes da escassez, que é sempre criada por
governos guiados por idéias coletivistas ou orientados pela ‘gratuidade’ dos bens
públicos: basta comparar Cuba e Coréia do Norte, de um lado, com as economias típicas
do capitalismo privado. As tentativas de distribuir bens de forma igualitária foram
rotundos fracassos econômicos, não raro descambando no autoritarismo político e na
completa ausência de liberdade.

Mesa 4: Bem-Viver
FSM: O outro mundo possível que propomos tende a valorizar mais o ser do que
o ter, a vida em equilíbrio com a natureza, em lugar da devastação dos recursos em
nome do consumo desenfreado, como na atual sociedade de mercados livres; relações
humanas são mais importantes do que as contas bancárias ou o cartão de crédito; o bem-
estar resulta de uma vida mais simples, ajustada aos recursos disponíveis, o que está em
contradição direta com a economia capitalista, com sua ênfase irracional no
crescimento.
143
PRA: A ingenuidade de certos promotores da vida simples só encontra paralelo
na inconsistência de seu raciocínio econômico: uma sociedade sem crescimento, sem
acumulação, é uma sociedade estagnada, de baixa capacidade de inovação e, portanto,
incapaz de buscar novas soluções para velhos problemas, não apenas nos terrenos da
saúde e da educação, mas simplesmente para manter os padrões de vida existentes e
acomodar as demandas legítimas de milhões de pessoas mundo afora que aspiram, sem
que se lhes possa negar, uma vida mais confortável, ou simplesmente isenta das atuais
restrições a um nível mínimo de bem-estar.

4. O mundo possível dos antiglobalizadores (na verdade, bastante improvável...)


Dia 28/01/2010: ELEMENTOS DA NOVA AGENDA II
Mesa 1: Organização do Estado e do Poder Político
FSM: As velhas estruturas de organização do Estado e do poder político já não
conseguem atender às necessidades das sociedades contemporâneas, nas novas
condições da globalização, que, ela mesma, atua no sentido de fragilizar os Estados e
diminuir sua capacidade de intervenção em aspectos cruciais, e tradicionais, do
provimento de bens públicos. A democracia direta, os instrumentos de ampliação da
participação cidadã e a mobilização da própria comunidade por meio dos movimentos
sociais corresponde ao início desse ‘outro mundo possível’ demandado pelos grupos
altermundialistas.
PRA: A democracia participativa dos antiglobalizadores redunda, de fato, em
menor participação, posto que apoiado na mobilização de movimentos politicamente
motivados, dominados por militantes sectários e propensos a substituir a democracia
representativa pelo ‘poder dos sovietes’, dominados, obviamente, por partidos afins. A
recusa da democracia representativa, de natureza parlamentar, várias vezes
estigmatizada como ‘burguesa’, resulta, de fato, num retrocesso da evolução política das
sociedades modernas dos últimos dois ou três séculos, enveredando pelo caminho do
autoritarismo centralizador do modelo marxista-leninista do século 20.

Mesa 2: Direitos e Responsabilidades Coletivas


FSM: Os Estados precisam recuperar seus instrumentos de atuação e “domar” as
forças cegas da globalização, posto que os mercados livres não conseguem evitar crises
sistêmicas, sobretudo financeiras, e são incapazes de distribuir renda – ao contrário, eles
a concentram cada vez mais. O individualismo excessivo identificado com o
144
capitalismo isola as pessoas da comunidade e desperta sentimentos egoístas e
excludentes, aliás naturais e aceitáveis nas economias de mercados livres.
PRA: Essas tentativas de ‘reengenharia social’ baseadas prioritariamente em
direitos coletivos, em oposição aos direitos individuais, acabam sendo profundamente
autoritárias, posto que a promoção dos tais direitos coletivos requerem uma dose extra –
em alguns casos maciça – de força para que eles possam ser ‘aceitos’ por cidadãos
recalcitrantes. Todas as experiências totalitárias do século 20 – de cunha fascista ou
comunista – expressaram em sua essência essa dominância coletivista, que na verdade
acaba sendo representada por um Estado centralizador e onipresente, quase no modelo
do Big Brother.

Mesa 3: Novo Ordenamento Mundial


FSM: A ordem internacional dos séculos 19 e 20 foi dominada pelas grandes
potências imperiais e as estruturas criadas ao final da Segunda Guerra Mundial
consagram essa hegemonia, inaceitável nos dias atuais. Uma nova ordem precisa partir
do princípio da democratização plena das instituições de governança, expressando o
peso relativo dos grandes países em desenvolvimento. Os órgãos econômicos devem
refletir essa mudança do cenário internacional e construir um “outro mundo possível”,
começando pela imposição de uma taxa sobre as transações financeiras internacionais
para apoiar projetos de desenvolvimento nos países mais pobres, em especial os da
África.
PRA: Relações econômicas e políticas refletem não apenas a dotação de fatores
primários, mas sobretudo a soma das capacitações construídas ao longo de processos de
modernização econômica e social, que são representados, sobretudo, pela produtividade
dos recursos humanos, um fator diretamente ligado à qualidade da educação em um
dado país. A hegemonia imperial das grandes potências capitalistas não foi apenas
construída de modo arbitrário ou de forma puramente violenta: ela também reflete a
preeminência científica e tecnológica dessas potências, posto que para dominar elas
precisam ser vários graus mais capazes do que as sociedades dominadas. O novo
ordenamento mundial vai emergir gradualmente, à medida que os países em
desenvolvimento se capacitarem nos planos científico e tecnológico e se colocarem em
condições de oferecer exatamente aquilo de que o mundo necessita: segurança,
estabilidade econômica no crescimento, inovação, recursos financeiros e militares e de
disposição para aplicá-los, sobretudo em momentos de crise, de ameaças à estabilidade
145
econômica e política, de graves violações dos direitos humanos. Se e quando os
emergentes forem capazes de cumprir esse mandato, já estaremos numa nova ordem
mundial, não construída à base de retórica transformista como pretendem os
antiglobalizadores, mas elaborada a partir de realidades concretas do desenvolvimento
dos países emergentes, num processo reformista que transcende essas divisões artificiais
com que trabalham os autoproclamados altermundialistas.

Mesa 4: Como construir hegemonia política


FSM: O processo de substituição de hegemonias começa pela união dos países
emergentes e pela apresentação de modelos alternativos ao atualmente dominante, assim
como uma mudança radical nos padrões econômicos e políticos em curso nos países
dominantes. Trata-se de um processo de acumulação de forças, uma conquista gradual a
partir do número de países periféricos e emergentes que contestam a hegemonia
unilateral e arrogante das grandes potências ocidentais.
PRA: Trata-se, obviamente de uma variante da conhecida tese gramsciana sobre
a construção de hegemonias a partir de uma organização política decidida a contestar de
forma ‘orgânica’ a ordem dominante. Pode até ser que os antiglobalizadores cheguem a
uma conclusão desse tipo no próximo encontro do Fórum Social Mundial, mas o
exercício é não apenas fútil, como passavelmente ridículo, tendo em vista a
interdependência crescente do mundo global, capitalista, obviamente, e decidido a
continuar a sê-lo.

5. A grande síntese antiglobalizadora (velhos conceitos, mesmas crenças...)


Dia 29/01/2010: Sistematização das Grandes Questões e Contribuição para o Processo
No último dia do encontro, os antiglobalizadores buscarão, ao que se presume,
reafirmar seus princípios organizadores e seus objetivos principais; estes, desde 2001,
estão orientados para a “formulação de propostas, a troca livre de experiências e a
articulação para ações eficazes, de entidades e movimentos da sociedade civil que se
opõem ao neoliberalismo e ao domínio do mundo pelo capital e por qualquer forma de
imperialismo, e estão empenhadas na construção de uma sociedade planetária orientada
a uma relação fecunda entre os seres humanos e destes com a Terra.” Tudo isso é muito
vago, mas se espera que desta vez eles consigam produzir conclusões um pouco mais
substantivas, talvez na linha das que eu tive o cuidado de formular por eles

146
antecipadamente nos parágrafos precedentes (não, não vou cobrar copyright por isso;
eles podem usar sem problemas).
Ao fim e ao cabo, os antiglobalizadores precisam continuar a acreditar em certas
utopias, mesmo descoloridas pelo tempo, sem as quais elas não saberiam viver. Eles
tem todo o direito de fazê-lo, e de mobilizar suas tropas de estudantes idealistas e de
órfãos do socialismo (estes, um pouco menos idealistas), em torno de suas causas, por
mais ingênuas que estas podem parecer. Afinal de contas, nas sociedades democráticas,
ninguém é impedido de lutar por qualquer tipo de ideal, desde que pacificamente e
atendendo certas regras mínimas de convivência democrática. Seja dito en passant, que
o assédio, a censura e eventuais desencontros com órgãos de ‘segurança pública’, a
propósito de ideais e objetivos não exatamente em conformidade com o que pensam
certos caudilhos no poder só ocorrem em alguns países que provavelmente receberão
pleno apoio dos participantes deste encontro de antiglobalizadores; e esta não será a
menor das contradições desse encontro que deveria se desenrolar sob as bandeiras da
liberdade de pensamento e de opinião.
De nossa parte, a única tarefa a que nos propusemos ao iniciar este pequeno
trabalho provocador era a de examinar com seriedade as teses que defendem esses
bizarros personagens da globalização – filhos ingratos da modernidade global – e, de
forma totalmente graciosa, antecipar as conclusões a que eles provavelmente chegarão,
sempre em torno das mesmas idéias que eles insistem em defender, contra as melhores
evidencias do mundo real.
Quanto à minha própria conclusão, se me permitem uma opinião final, que
expresso em toda honestidade intelectual, seria esta: o mundo ideal do
altermundialismo, aquele que vem sendo projetado há dez anos pelos antiglobalizadores
(mas eles nunca conseguem definir qual seria, exatamente, sua arquitetura), seria pior,
bem pior do que o realmente existente neste nosso planeta globalizado. As propostas
vagas dos antiglobalizadores, em sua maior parte inexequíveis, não resolveriam nenhum
dos problemas deste nosso mundo e, provavelmente, levariam a soluções menos
eficientes, talvez piores, do que aqueles a que estamos acostumados no mundo, tal como
o conhecemos de fato.
Sorry folks, não costumo fazer concessões a vendedores de ilusões...

147
2104. Fórum Social Mundial 2010, uma década de embromação: antecipando as
conclusões e desvendando os equívocos, Brasília, 20 janeiro 2010, 10 p. Mais uma
vez, provocando o altermundialistas do FSM. Publicado em Mundorama (link:
http://mundorama.net/2010/01/20/forum-social-mundial-2010-uma-decada-de-
embromacao-antecipando-as-conclusoes-e-desvendando-os-equivocos-por-paulo-
roberto-de-almeida/). Republicado em Via Política (25.01.2010). Relação de
Publicados n. 948.

148
18. Triste Fim de Policarpo Social Mundial

Todos aqueles medianamente familiarizados com a literatura brasileira, já


devem ter lido ou, pelo menos, ouvido falar – inclusive por causa de um filme realizado
muitos anos atrás – do romance meio humorístico, meio trágico, de Lima Barreto sobre
o major Policarpo Quaresma, um militar idealista e ultranacionalista que tinha grandes
projetos para o Brasil, todos extremamente bem intencionados e, em sua essência,
humanistas, mas que, se aplicados, invariavelmente trariam mais problemas do que
soluções à jovem República positivista. Não preciso falar aqui do “triste fim” do major
Quaresma, tanto porque não estou prevendo o mesmo final infeliz para nossos bravos
antiglobalizadores e suas propostas surrealistas. Por certo não vamos fazer como o
Marechal Floriano, que dizia que receberia seus inimigos a bala, inclusive porque não
considero essa tribo de sonhadores como meus inimigos intelectuais; se tanto, eles são
um pequeno bando de idealistas equivocados, apenas os mais jovens, porém; não,
obviamente, os velhacos de má-fé que tentam ludibriá-los.
Algumas dessas propostas são verdadeiramente inocentes, ingênuas segundo os
menos pacientes com esse tipo de brincadeira, em todo caso inócuas, em sua cândida
inconsequência. Outras, em contrapartida, seriam essencialmente prejudiciais, ou até
mesmo perigosas, se o tal de “outro mundo possível” desses altermundialistas servisse
de critério para a formulação e implementação de políticas públicas. A julgar, todavia,
pelo apoio que todos eles deram a um outro militar, bem menos pacífico que o nosso
Policarpo, aquele coronel que lidera uma fazenda petrolífera ao norte do continente,
pode-se imaginar que eles pretendam aplicar aqui, e em todo o mundo, as geniais lições
de economia política que vem sendo aplicadas com tanto afinco naquela nova “fazenda
149
dos animais” (apud Orwell). Creio que todos podem imaginar o que aconteceria se o
novo e mais agressivo coronel estendesse suas práticas bizarras de política econômica a
todo o mundo possível ao alcance de suas propostas alopradas.
Independentemente da aplicabilidade, ou não, das lições econômicas desses
novos personagens de comédia, pode-se perguntar qual o balanço a ser feito do último
convescote do Fórum Social Mundial, que prometia comemorar dez anos de eventos e
dele retirar ideias concretas para construir um outro mundo possível. Confesso que li
atentamente todos os resumos generosamente preparados pelos organizadores sobre
cada um dos painéis de discussão, e deles retirei não mais do que algumas frases
geniais, dessas que poderiam servir para compor mais uma brilhante coletânea dessas
“pérolas de vestibular” que professores mal intencionados recolhem de alunos distraídos
para incitar gargalhadas na galera. Em todo caso, vejamos as geniais contribuições que
emergiram do “encontro síntese” do FSM, em seu último dia.
Todas as minhas citações foram retiradas do resumo relativo ao dia 29 de
janeiro, quando, segundo os responsáveis, “os participantes foram convidados a dar as
suas impressões sobre o evento e fazer propostas tanto para os próximos fóruns como
para a construção de um outro mundo possível” (ver: “Sistematização das Grandes
Questões e Contribuição para o Processo Fórum Social Mundial”; disponível neste link:
http://seminario10anosdepois.wordpress.com/2010/01/30/resumo-29-01-sistematizacao-
das-grandes-questoes-e-contribuicao-para-o-processo-forum-social-mundial/). Meu
esforço neste resumo do resumo, consiste apenas em reordenar as sugestões
apresentadas e sobre elas formular meus comentários à la Lima Barreto.

A maior parte das propostas pode ser incluída na categoria de “inócuas”, das
quais cito apenas algumas, justamente pela absoluta inconsequência dessas sugestões.
Sugeriu-se, por exemplo, a “formação de uma rede colaborativa de movimentos sociais
para estimular a troca de experiência e permitir organizações que trabalham pela mesma
causa, em diferentes locais, se articularem em torno de uma determinada luta”. Parece
incrível essa sugestão: se não é isso que as organizações e movimentos sociais estavam
fazendo nesses dez anos, onde eles estiveram então?: jogando bridge?
Um outro gênio da raça propôs que se adotasse uma “metodologia que inclua
nos painéis, além de intelectuais, pessoas que estão vivendo os problemas ou as
soluções apresentadas”. Inteligente essa, mas pode-se perguntar por que eles confiam
tanto nos seus “inteliquituais”, as pessoas menos propensas, justamente, a falar e a ouvir
150
“pessoas comuns”. Não faltou, tampouco, quem recomendasse que se incluísse nos
debates do Fórum uma “variedade maior de profissionais, como os de tecnologia”.
Incrível mas verdadeiro: como no caso da sugestão anterior, os antiglobalizadores já não
sabem o que decidir, se não se cercarem de pessoas comuns e de tecnólogos. Bem,
desejo sorte a eles: antes tarde do que nunca. A impressão que se tem, contudo, é a de
que os antiglobalizadores não tem a mínima ideia do que pensar (se é verdade que eles
já conseguiram chegar a essa conclusão).

Surgiram também propostas que poderíamos chamar de “policarpianas”, que são


de natureza idealista, ou ingênua, mas que podem encantar o público leitor. Foram
aquelas que prometeram um mundo novo, mas que não se sabe quando e onde elas
serão aplicadas, ou sequer se elas tem, realmente, condições de serem implementadas.
Entre as mais brilhantes selecionei estas duas, antológicas: “estimular mudanças no
comportamento dos indivíduos” (juro que está lá, mas confesso que não sei por onde
eles vão começar); “melhorar a infraestrutura do Fórum com serviços médicos” (será
que o pessoal do FSM sofreu com diarreias, picadas de mosquitos, coisas do gênero?).
Uma delas não pode ser classificada nem de proposta, nem de sugestão, ou de
qualquer outra coisa, pois ela apenas reflete o estado de confusão mental dos
participantes do FSM. Transcrevo literalmente: “Tirar uma posição do Fórum a respeito
das mudanças climáticas: queremos um desenvolvimento econômico que inclua a todos
e gere trabalho ou vamos defender o crescimento zero para reduzir as emissões?” Bem,
não sou eu quem vai ajudá-los a resolver a quadratura do círculo, mas eu diria
simplesmente isto. Este nosso mundo possível não vai esperar que eles se resolvam – e
aposto com vocês que ainda não teremos uma solução no 20o. encontro do FSM, em
2020, portanto – e vai continuar gerando empregos e distribuindo renda com todas essas
tecnologias poluidoras do capitalismo, mas que, paulatinamente, vão se tornar mais e
mais consistentes com esse palavrório inútil do ‘desenvolvimento sustentável’ a partir
da correta aplicação dos princípios da microeconomia aos processos produtivos
(sabem?: aquela coisa da precificação correta, com a escassez relativa dos bens no
âmbito de uma economia de mercado com livre circulação de fatores; enfim, isso está
nos manuais de economia que eles ainda não leram).
Bem, a proposta “policarpiana” mais incrível que eles formularam está aqui, e
eu a transcrevo por inteiro: “Investir para que a infraestrutura do Fórum reflita
minimamente o que está sendo discutido. Para isso, banir a participação de empresas
151
transnacionais no evento e no lugar delas, usar serviços locais e economia solidária.
Assim, o Fórum falará não só para seus participantes como para toda a sociedade,
apontando alternativas concretas para um outro mundo possível”.
Parbleu! Eu me pergunto como é que os antiglobalizadores vão fazer sem os
seus celulares Nokia, Motorola, Samsung, LG, Sony Ericsson, BlackBerry e iPhone.
Como eles vão se comunicar sem Hotmail, Gmail, Yahoo, sem Skype e MSN? Como
eles vão buscar suas bobagens sem o Google e a Wikipédia? Como eles vão dispensar
os computadores dessas multinacionais perversas?: vão pedir substitutos ao Chávez, ao
Raul Castro, ao Ahmadinejad? Acho que não vai dar certo; o FSM simplesmente vai
parar de funcionar. Nem mesmo o ultranacionalista major Quaresma poderia se deslocar
pelos bairros do Rio de Janeiro sem os bonds da Light, nem conseguiria se comunicar
sem os telegramas da Western Union. Bem, não vai acontecer, claro...

Não faltaram, finalmente, propostas que poderiam ser classificadas de


“chavistas”, como esta pérola de um antiglobalizador não identificado: “melhorar as
conexões com a China e trazer o país de fato para as discussões do Fórum”. Essa é a
melhor: o país asiático acaba de brigar com a Google, condenou a dez anos de prisão
um advogado de causas políticas que assinou um simples manifesto pedindo liberdade
de expressão e de opinião e mantém uma censura férrea sobre a internet, e os anti ainda
querem trazê-lo para as discussões do FSM? Bem, pode ser que os chineses de fato
concordem: depois de quarenta anos de socialismo delirante, eles começam, modesta
mas rapidamente, a construir o seu capitalismo com características chinesas e os
altermundialistas teriam muito a aprender com os novos plutocratas.

Mas nem só de sugestões impossíveis viveu o FSM; algumas críticas foram


formuladas. Alguém disse que “faltaram análises mais profundas sobre a conjuntura
social e os impactos do capitalismo no nosso dia-a-dia”; eu também acho que faltou
muita coisa no Fórum, mas peço que me incluam fora dessa parte sobre os impactos do
capitalismo no “meu” dia-a-dia. Eu sei exatamente qual é esse impacto, em termos de
oferta de bens e serviços, de liberdade de escolha, de diversidade de chances de torrar o
meu dinheiro, enfim, tudo aquilo que me vier à cabeça e couber no meu bolso, algo que,
infelizmente, nem cubanos, nem venezuelanos, nem talvez outros povos cultuados pelos
altermundialistas podem, hoje, fazer livremente, sequer em intenção.

152
Um outro espírito inquieto reconheceu que as “discussões e o próprio Fórum
foram muito fragmentados”; um segundo afirmou que, no Fórum, “continua havendo
uma hierarquização de lutas e visões”; um terceiro, muito sincero, confessou ainda que
estavam saindo dali “sem uma agenda política clara”, o que eu só posso lamentar. Eu
estava justamente esperando que eles emergissem de Porto Alegre com uma agenda
política clara, para eu poder criticar, e agora fico sem nenhum insumo para meus
escritos provocadores. Não é justo! Quero meu dinheiro de volta!

Essa falta de definições mais precisas sobre o outro mundo possível deixa
confusos os estudantes universitários, que, com perdão da expressão, são a principal
massa de manobra dos velhacos coordenadores do FSM, aqueles franceses da ATTAC e
seus imitadores tupiniquins (não confundir com os tupis-guaranis do major Quaresma;
ele não gostaria). Um líder do movimento estudantil – não está dito que se trata de um
desses assalariados do PCdoB, com 32 anos – questionou o conteúdo das discussões:
“Fiquei preocupado porque em todas as atividades que eu participei era recorrente a
pergunta sobre qual caminho devemos seguir. Via de regra, eu desconfio de quem tem
muita certeza e de quem diz que sabe como será o socialismo de um século que
começou agora”, disse ele. Estou com ele; eu também desconfio, sobretudo porque nem
o coronel petrolífero conseguiu explicar direitinho como funcionaria (ou não) o seu
socialismo, que aparentemente está fazendo água.
O mesmo estudante discordou da necessidade de um consenso apontada por
vários debatedores como o caminho obrigatório para construção do socialismo do
século 21: “Uma agenda consensual é impossível. Falar que a gente é a favor da
democracia e contra o aquecimento global não nos diferencia de ninguém”, avaliou.
Para ele, seria preciso “detalhar essas questões e radicalizar as discussões”. Pois bem,
nisso eu acho que ele está redondamente enganado: eles não são, justamente, a favor da
democracia, pois do contrário estariam se solidarizando com seus colegas venezuelanos
que, naquele mesmo momento, estavam protestando nas ruas a favor da democracia e da
liberdade de expressão. Os altermundialistas, os antiglobalizadores e todos os demais
representantes daquela fauna variada reunida em Porto Alegre, velhos ou jovens, se
diferenciaram justamente de muitos outros estudantes ao redor do mundo pela sua total
falta de sensibilidade com respeito à tragédia autoritária em curso na fazenda petrolífera
que passa por um experimento de “socialismo do século 21”. Eles não se deram conta,
ainda, que sob a aparente roupagem progressista, esquerdista, anti-imperialista ou
153
socialista, sob a qual se esconde o ditador de opereta, encontra-se, na verdade, um
discípulo de Mussolini, um fascista da mais pura gema.
Os jovens idealistas, que ainda não tiveram tempo de ler bons livros a esse
respeito, talvez não saibam que a história esteja agora se repetindo como farsa. Os mais
velhos, que sabem identificar a natureza do fascismo, mas que preferem ficar calados,
por conveniência política ou por oportunismo econômico, são desonestos
intelectualmente, e só merecem um qualificativo: são velhacos consumados...

2107. “Triste Fim de Policarpo Social Mundial”, Brasília, 2 fevereiro 2010, 5 p.


Resumo e conclusão sobre o FSM-10: uma farsa, como sempre. Publicado em
Mundorama (02.02.2010; link: http://mundorama.net/2010/02/02/triste-fim-de-
policarpo-social-mundial-por-paulo-roberto-de-almeida/). Revista Espaço da
Sophia. Relação de Publicados n. 950.

Cui prodest? (Ou, para quem escrevo?)

Comentários a meus críticos a propósito do artigo sobre “Triste Fim de


Policarpo Social Mundial”. Postado, sob o titulo “Estudantes, estudai!
(acho que é isso)”, no blog Diplomatizzando (18.02.2010; link:
http://diplomatizzando.blogspot.com/2010/02/1681-estudantes-estudai-
acho-que-e-isso.html) e como comentário no blog Mundorama
(http://mundorama.net/2010/02/02/triste-fim-de-policarpo-social-mundial-
por-paulo-roberto-de-almeida/).

De vez em quando eu perpetro a ousadia de escrever para o Mundorama. Ou


melhor, seus responsáveis é que cometem a ousadia de me publicar, já que eu não
escrevo especialmente para o Mundorama, em todo caso muito raramente, ou quase
jamais, pensando em Mundorama, que é um boletim muito simpático e variado de
relações internacionais, animado por esse gigante (stricto et lato sensi) da didática
internacionalista que é o professor Antonio Carlos Lessa.
Estudantes, leiam, visitem, eu recomendo: http://mundorama.net/

Pois bem, meu último coup pervers foi um post sobre o inacreditável Fórum
Social Mundial. Digo inacreditável, pois que nem mesmo seus promotores desonestos

154
acreditam de fato nas bobagens que eles dizem (se o fizessem, além de desonestos,
seriam ingênuos, o que talvez seja muito pior). Eles apenas vivem daquilo, de
preferência sem trabalhar, com dinheiro público, ou melhor, com o meu, o seu, o nosso
dinheiro. Como eu tenho alergia a burrice, mas ojeriza absoluta à desonestidade
intelectual (se a palavra se aplica), eu não deixo passar uma oportunidade para cobrar
um pouco, só um pouco, de coerência nas ideias (if any), como se isso fosse possível
(mas, não custa cobrar, e eles deveriam pelo menos tentar).
Meu último post no Mundorama foi este aqui:
Triste Fim de Policarpo Social Mundial, por Paulo Roberto de Almeida
(http://mundorama.net/2010/02/02/triste-fim-de-policarpo-social-mundial-por-
paulo-roberto-de-almeida/; 2 de fevereiro de 2010)

Recebi, como seria de se esperar sendo tão provocador (confesso que


deliberadamente), muitos comentários, alguns sorrindo comigo ante tantas
inconsequências desse bando de malucos que são os antiglobalizadores, outros
indagando questões específicas (que respondo quando consigo entender, o que nem
sempre é o caso), e um ou dois, finalmente, me criticando, o que é sempre bem-vindo (e
agradeço sinceramente, não hipocritamente; tenho vários defeitos, mas não o dom da
hipocrisia).

As criticas são de dois gêneros, e já descarto a primeira por inepta, incompetente


ou descartável:
1) Eu seria um apologista do capitalismo, do neoliberalismo, seja lá o que for
isso, e meus argumentos estariam errados, pois o capitalismo é de fato perverso, etc.,
etc., etc. Bem, digo que é inepta pois as pessoas que fazem esse tipo de rejeição de
minhas críticas às posições dos antiglobalizadores, nunca, NUNCA dizem em que as
propostas dos maluquetes do FSM teriam alguma coerência intrínseca (ou até
extrínseca, vá lá). Por outro lado, eu não sei porque ainda ando de carro velho e de
baixa potência sendo um defensor tão acirrado do capitalismo: Wall Street certamente
ainda não ouviu falar de mim, e ainda não me colocou no seu contracheque. Bem, não
quero me estender, mas essas pessoas não distinguem racionalidade econômica e
raciocínio lógico da simples peroração ideológica: elas devem estar com o parafuso dos
modos de produção um pouco desajustados, e a cada momento de distração, soltam um
capitalismo para variar. Elas talvez não saibam a diferença entre capitalismo e economia
155
de mercado, ao que eu diria: minha gente, leiam Max Weber, leiam Fernand Braudel,
leiam Albert Hirschmann, Jean Baechler (não confundir com o Jean Ziegler, por favor,
pois este é do bando de perfeitos idiotas).

2) A segunda crítica é aparentemente mais “séria”, mas ela se engana totalmente


de foco. Diz um desses jovens afoitos que se o FSM não fosse importante, eu não
estaria escrevendo tanto sobre ele. Se eu insisto em voltar ao assunto, repetidamente diz
ele, é porque suas ideias (sic, três vezes) são relevantes.
Bem, esse jovem ainda não percebeu uma coisa: eu escrevo justamente para ele,
não para o bando de velhacos desocupados que animam e promovem esses piqueniques
anuais sem qualquer relevância para o mundo real.
Repitam comigo: nada do que se diz ou se aprova, unanimemente (comme il
faut, quando se trata de pensamento único) nesses encontros regados a slogans vazios
tem a mínima importância para o mundo real. Nada, nadica, necas de pitibiribas. Quem
quiser me provar o contrário, ou seja, que alguma nova e relevante proposta emergiu
desses jamborees, eu posso oferecer um livro ou dois. Precisando: que tenha emergido
do FSM, não que já exista nas faculdades de humanidades – que também produzem uma
tonelada de ideias inúteis – ou que circule na sociedade como produção, digamos,
intelectual.

Pois eu escrevo justamente para esses jovens idealistas que querem salvar o
mundo dele mesmo, ou melhor, salvá-lo do capitalismo globalizador (ou vice-versa),
mas que ainda leram pouco, estudaram menos ainda, e aprenderam só um tiquinho (e,
no que depender de certos professores, vão aprender menos ainda, no que lhes resta de
diversão universitária).

Como eu sou uma pessoa que aprendeu nos livros ou com pessoas mais espertas,
considero ser assim meu dever, digamos, espiritual, transmitir um pouco do que aprendi
a esses jovens sedentos de sabedoria globalizante, mas que acabam encontrando apenas
essas fontes barrentas da pilantragem universitária e das imposturas intelectuais desses
velhacos da antiglobalização.
Que posso fazer? Tenho essa vocação didática voluntária – e já vou avisando
que não é dela que retiro meu sustento, nem faço desse hobby minha ocupação principal
– e por isso fico assim de noite escrevendo para esses moços – como diria o Lupicínio
156
Rodrigues – que não sabem o que eu sei. Não por qualquer virtude extraordinária, ou
inteligência excepcional, longe disso. Eu sou apenas um gajo esforçado, que lê muito,
que pensa muito sobre o que leu, observou e retirou de sua experiência de vida, e que
coloca essas reflexões à disposição dos mais jovens, posto que eu também já fui jovem
e tive professores honestos e outros desonestos (talvez involuntariamente, concedâmo-
lhes essa dúvida).

Finalizando, meu jovem, você que me acusa de bater em "cachorro morto"


(talvez seja bem o caso), não é para o cachorro que estou escrevendo, nem para os
“donos” dos cachorros, pois estes já incorporaram o cérebro dos cachorros.
Estou escrevendo para você mesmo, e apenas aconselhando-o a abrir os olhos,
ler e se informar um pouco mais, viajar pelo mundo (Davos é uma excelente estação de
esqui, mas talvez você ainda não tenha dinheiro para ir lá), enfim aprenderem, de
preferência de maneira autodidata, pois sempre se deve desconfiar de professores
(inclusive deste que aqui escreve).

Ser cético é um dever, mas deve-se sempre cultivar um ceticismo sadio, ou seja,
opor ideias melhores, e mais coerentes, a ideias más, que são estas que não se
conformam à realidade empírico, que não seguem os mínimos preceitos da lógica
formal, enfim, que ficam no slogan vazio em lugar de ir para a pesquisa e confrontar os
números. Ou seja, exatamente essas que estão no centro (e nas bordas também) do FSM.

Eu, na verdade, estou pouco preocupado com os velhacos do FSM, meu objeto
próprio são os jovens. Como observo com certa preocupação a marcha da
mediocrização na universidade brasileira, e como constato que os jovens que me
escrevem cada vez escrevem mais mal, sem uma exposição coerente das ideias, sem se
fazer entender direito, eu me sinto, como dizer?, compelido a escrever estas bobagens
que escrevo noite adentro, para ver se evito um pouco da mediocrização em curso e
contribuo, minimamente que seja, com a tarefa da elevação intelectual de jovens como
esse que me escreve me acusando de apologista do capitalismo.

Acho que ele não encontrou argumentos para me rebater, e aí foi logo sacando o
capitalismo e o neoliberalismo. Puxa vida, está ficando aborrecido debater assim...

157
2115. “Cui prodest? (Ou, para quem escrevo?)”, Brasília, 17 fevereiro 2010, 3 p.
Comentários a meus críticos a propósito do artigo sobre “Triste Fim de Policarpo
Social Mundial”. Postado, sob o titulo “Estudantes, estudai! (acho que é isso)”, no
blog Diplomatizzando (link: http://diplomatizzando.blogspot.com/2010/02/1681-
estudantes-estudai-acho-que-e-isso.html) e como comentário no blog Mundorama
(http://mundorama.net/2010/02/02/triste-fim-de-policarpo-social-mundial-por-
paulo-roberto-de-almeida/).

158
19. A falência da assistência oficial ao desenvolvimento

O conceito de cooperação, num entendimento puramente formal da palavra,


implica uma ação voluntária de dois ou mais parceiros em prol de objetivos comuns,
sendo subjacente ou implícita a ideia de que juntos eles conseguirão fazer algo que
talvez não pudessem alcançar isoladamente. Nessa compreensão, a realidade da
cooperação é relativamente recente na comunidade internacional, posto que até o
advento dos primeiros organismos intergovernamentais, a partir de meados do século
19, e mais especificamente da ONU, um século depois, não havia espaços políticos ou
instrumentos para o estabelecimento de uma cooperação genuína entre Estados
soberanos. Até então, a realidade das relações entre Estados era feita, na melhor das
hipóteses, de concorrência em bases autônomas, ou, na pior, de animosidade ou de
hostilidade, que podiam resultar, inclusive, em conflitos militares, sendo muito comum
a relação de dominação, de exploração e de subordinação entres os países.
Na acepção moderna do termo, a realidade da cooperação está intrinsecamente
ligada aos objetivos da Carta da ONU e à atuação de suas agências especializadas, nos
diversos campos estabelecidos desde 1945 e que vem sendo ampliados gradualmente
desde então, sempre quando novos temas – energia nuclear, direito do mar, meio
ambiente, direitos da criança e da mulher, habitação, e vários outros – recolhem certa

159
unanimidade dos Estados no sentido de seu tratamento multilateral. Os dois objetivos
prioritários da ONU são a cooperação entre os Estados para a preservação da paz e da
segurança internacional e para promover o desenvolvimento dos povos dos países
membros. Obviamente, como não se pode contornar a questão central do poder – ou
seja, quem manda e quem obedece –, a ONU (como, antes dela, a Liga das Nações) não
poderia dar um encaminhamento satisfatório ao primeiro conjunto de objetivos sem
fixar mecanismos não igualitários de resolução de disputas, hoje consolidados no seu
Conselho de Segurança (não muito diferente do sistema oligárquico da Liga); aí não se
trata tanto de cooperação, mas de coerção, o que, também, é por vezes necessário e, em
certas circunstâncias, até incontornável (como quando certos Estados “vilões” ameaçam
a paz e a segurança internacionais, por exemplo).
Descontados, porém, os poucos episódios de coerção multilateral – ou seja, as
operações de peace keeping (muitas) ou de peace making (pouquíssimas) da ONU – a
maior parte da agenda onusiana (PNUD e a dúzia de agências especializadas atuantes)
está prioritariamente voltada para a cooperação ao desenvolvimento, cenário que
implica a mesma relação desigual já existente na questão do poder, ou seja, países que
prestam cooperação, de um lado, e países que recebem cooperação, de outro. Esse tipo
de relação assimétrica – que desde o início da ONU dividiu os países em desenvolvidos
e em desenvolvimento, com a situação bizarra, mas temporária, dos chamados
“socialistas” – tem sido preservado desde então, sem mudanças relevantes ou
significativas no plano das capacitações nacionais.
Em outros termos, a interação entre cooperação e desenvolvimento não parece
ter produzido os resultados esperados pelos seus promotores multilateralistas de 60 anos
atrás. A questão, portanto, que deve ser colocada de forma clara é se esse tipo de ação
cooperativa, nas formas que vêm sendo prestadas tradicionalmente, pode, de fato,
produzir o que propõe, ou seja, desenvolvimento. O registro histórico do período
transcorrido desde a aplicação sistemática e institucional da cooperação técnica ao
desenvolvimento só pode ser avaliado em categorias inferiores, do tipo sucesso
moderado até o fracasso evidente, numa gradação que possui vários casos de lento
progresso, mas nenhum de rápida prosperidade em direção ao desenvolvimento.

A realidade do desenvolvimento mundial, nos últimos dois séculos e meio –


grosso modo, desde o início da Revolução Industrial – não foi feita de grandes
alterações na quase imóvel hierarquia econômica do desenvolvimento: a despeito do
160
desaparecimento de alguns grandes impérios e a descolonização completa do chamado
Terceiro Mundo, a grande divergência se manteve praticamente intacta durante a maior
parte do período. Os que já eram desenvolvidos no século 19 continuaram
desenvolvidos no decorrer do século 20, e as economias atrasadas e periféricas
permaneceram, em grande medida, atrasadas e periféricas. Os únicos países a terem
saltado a barreira do desenvolvimento durante esse período foram, de uma parte os
nórdicos, de outra o Japão, todos por terem reunido condições culturais e institucionais
que resultaram num processo autogerado de crescimento sustentável e transformador
das antigas estruturas conservadoras e fixadas na economia primária.
A situação não conheceu mudanças notáveis durante a maior parte do século 20,
sendo apenas alterada pela emergência de algumas nações asiáticas à plena capacitação
industrial, logo sendo chamados de NICs, ou novos países industriais. Coréia do Sul,
Taiwan, Hong Kong e Cingapura são provavelmente os únicos exemplos de países que
alcançaram o desenvolvimento na segunda metade do século 20, tendo partido de
patamares quase tão medíocres quanto os da maioria dos países da Ásia, da África e da
América Latina, que, aliás, ainda patinam no subdesenvolvimento. Instrutivo constatar
que nem o Japão ou os nórdicos, nem qualquer um dos países que se qualificaram
posteriormente deveram a melhoria de suas situações respectivas à cooperação ao
desenvolvimento. E resulta pelo menos estranho que dos países que mais receberam
cooperação ao desenvolvimento desde os aos 1950 – como os africanos, em cifras
equivalentes a muitas dezenas de bilhões de dólares – nenhum conseguiu escapar do
não-desenvolvimento.
De fato, como confirmado pelo livro frustrante, mas realista, de William
Easterly, The White Man’s Burden, os sistemas multilateral e bilaterais de assistência
oficial ao desenvolvimento, mantidos essencialmente pelos países ocidentais de
economia capitalista avançada, desembolsaram, nas últimas cinco décadas até meados
da década passada (seu livro foi publicado em 2006), cerca de US$ 2,3 trilhões nos
países mais carentes do globo, sem que a distância com relação aos países mais
desenvolvidos tenha diminuído: ao contrário, em alguns casos ela até aumentou. Seu
livro foi escrito, aliás, a partir da percepção que a AOD – como é frequentemente
chamada a cooperação oficial ao desenvolvimento – fracassou redondamente em
cumprir os objetivos que lhe tinham sido fixados desde a primeira década onusiana de
cooperação pela via de programas oficiais (grosso modo a partir da descolonização, nos
anos 1960). Ele constatou o fracasso parcial ou completo da maior parte dos programas
161
implementados, e até uma diminuição do ritmo de crescimento econômico em vários
dos casos investigados de países que mais receberam ajuda externa.11
Isto não quer dizer que essa ajuda seja absolutamente ineficaz, podendo ser útil,
ou até mesmo necessária, nos casos mais dramáticos de inexistência de estruturas físicas
e institucionais de um Estado ‘normal’ e de grande atraso educacional. Mas ela não é
decisiva, ou suficiente, a ponto de mudar os dados básicos de um pais que não consiga
reunir ele mesmo as condições para um processo endógeno de desenvolvimento (que
implica a manutenção de um processo contínuo e sustentável de crescimento
econômico, com transformações estruturais via inovações tecnológicas e distribuição
social dos resultados da prosperidade assim criada). Ao contrario, ‘excesso’ de ajuda
pode até prejudicar o processo de desenvolvimento, ao tornar o país em questão
dependente da assistência externa, quando ele deveria estar buscando suas próprias
fontes de crescimento num ciclo autogerado de investimento produtivo, poupança e
atividades empreendedoras.
Os exemplos enunciados no livro de Easterly – que trabalhou na cooperação
internacional para o desenvolvimento no quadro do Banco Mundial durante 16 anos,
tendo saído justamente por discordar das abordagens convencionais nessa área – são
dramáticos e eles evidenciam um divórcio quase completo entre as intenções e os
resultados. Um dos gráficos mais eloquentes de seu livro (p. 46) registra uma notável
inversão das curvas de AOD e de crescimento: de 1970 a 2000, a ajuda externa aumenta
de 5,5% a 18% como proporção do PIB na África, ao mesmo tempo em que as taxas de
crescimento do PIB per capita declinam de 2% a 0%, sendo que em vários anos da
década de 1990 foi bem menos do que isso, registrando valores negativos.
Obviamente, muito do fracasso pode ser explicado pela chamada “falência dos
Estados” – crises políticas, conflitos étnicos, guerras civis, etc. – mas a ajuda também
contribuir para “dopar” (no pior sentido possível, isto é, de drogar) as administrações
nacionais, desviando-as de suas responsabilidades primárias pelos próprios processos de
desenvolvimento, carreando um “maná” externo que frequentemente era desviado para
bancos no exterior. Em vários casos, a ajuda externa passou a representar uma fração
significativa dos orçamentos nacionais, criando uma dependência estrutural que só pode

11
Cf. William Easterly, The White Man’s Burden: Why the West’s Efforts to Aid the Rest Have
Done So Much Ill and So Little Good (New York: Penguin Books, 2007). Ver, igualmente, seu
livro anterior: The Elusive Quest for Growth: Economists’ Adventures and Misadventures in the
Tropics (Cambridge, Mass.: The MIT Press, 2002).
162
deformar ainda mais o funcionamento normal de um Estado (supondo-se que este não
seja dominado por grupos políticos que Easterly não hesita em chamar de “gangsteres”,
tal a semelhança com “colegas” dedicados inteiramente ao crime em outras
circunstâncias e países).

Em resumo, a cooperação não tem a capacidade de mudar o destino dos países


se os recebedores não souberem se organizar para inserir a economia nacional nos
circuitos da economia mundial, pelo lado do comércio e dos investimentos, não pela
vertente da assistência externa. Em retrospecto, a única ajuda a ser prestada por países
ricos aos países pobres deveria ser aquela que simplesmente qualifica a população
desses últimos no domínio do ensino universal de base e aquele técnico-profissional;
todo o resto deveria ser deixado em segundo, ou terceiro, plano.
Mas esta é uma lição que não precisaria estar sendo repetida agora, tendo sido
recomendada desde antes das independências africanas por um economista britânico
trabalhando na África oriental inglesa (Quênia e Tanganica, atual Tanzânia), Peter
Bauer: ao analisar as perspectivas de crescimento e desenvolvimento das colônias que
se preparavam para tornar-se Estados independentes ele recomendou que, sobretudo,
eles não fosse objeto de ajuda, e sim beneficiados pela abertura dos mercados dos países
desenvolvidos a seus produtos de exportação, ou seja, que sua inserção internacional se
desse pelo lado do comércio exterior, não pela via da ajuda oficial ou da “cooperação ao
desenvolvimento”. 12 Ele não foi ouvido, e deu no que deu: a África continua tão
subdesenvolvida – talvez mais – do que à época das descolonizações, quando o aparato
estatal deixado pelos colonizadores ainda funcionava razoavelmente bem. Depois disso,
a deterioração foi constante, em alguns casos de maneira acelerada (ou induzida por
verdadeiros larápios oficiais, como o presidente Mobuto, do ex-Congo Belga, que já foi
Zaire, e que continua retrocedendo na escala do desenvolvimento).

12
Ver, por exemplo, Peter Bauer, Economic Analysis and Policy in Underdeveloped Countries
(Durham, N.C.: Duke University Press, 1957), bem como dois outros livros seus sobre a mesma
temática: Dissent on development: studies and debates in development economics (Londres:
Weidenfeld and Nicolson, 1971); Equality, the Third World, and Economic Delusion
(Cambridge, Mass.: Harvard University Press, 1981).
163
2138. “A falência da assistência oficial ao desenvolvimento”, Shanghai, 3 maio 2010, 5
p. Sobre o fracasso da cooperação e assistência financeira externa, adaptado do
trabalho n. 2076. Publicado no portal de Economia do IG (03.05.2010).
Republicado em Mundorama (24.05.2010; link:
http://mundorama.net/2010/05/24/a-falencia-da-assistencia-oficial-ao-
desenvolvimento-por-paulo-roberto-de-almeida/#more-6091), em Via Política
(27.06.2010) e em Dom Total (8.07.2010; link:
http://www.domtotal.com/colunas/detalhes.php?artId=1461). Relação de
Publicados n. 965.

164
Quarta Parte
Política internacional, Questões estratégicas

165
20. A guerra de 1914-18 e o Brasil: impactos imediatos, efeitos
permanentes

1. O que era o Brasil em 1914, e o que representou a guerra europeia?


Para abordar o impacto da guerra de 1914-1918 sobre o Brasil seria preciso ter
bem presente o que era o Brasil em 1914, o que era a Europa, o que ela representava
para o Brasil nessa época, e o que a guerra alterou no padrão de relacionamento, direta e
indiretamente. Vamos resumir um complexo quadro político, econômico e diplomático.
O Brasil de cem anos atrás era o café, e o café era o Brasil. Toda a política
econômica, aliás toda a base fiscal da República e dos seus estados mais importantes,
assim como a própria diplomacia, giravam em volta das receitas de exportação, que
compreendiam tanto ao próprio produto, e que faziam a riqueza dos barões do café,
quanto os impostos de exportação, que afluíam ao orçamento de São Paulo e dos demais
estados produtores. Dez anos antes, angustiados por um problema que eles próprios
haviam criado, a superprodução de café, esses estados realizaram um esquema de
valorização do produto, via retenção de estoques, no famoso Convênio de Taubaté, para
cujo financiamento tivemos, pela primeira vez, a participação de bancos americanos. Os
próprios banqueiros oficiais do Brasil, os Rothchilds de Londres, haviam se recusado a
fazer parte do esquema, pois se tratava de uma típica manobra de oligopolistas contra os
interesses dos consumidores. O Brasil dominava então quase quatro quintos da oferta
mundial de café, e essa posição lhe assegurava a capacidade de fazer grandes manobras.
Mais tarde, em 1914, justamente, outros concorrentes tinham entrado nesse
lucrativo mercado, a Colômbia, por exemplo, que sem poder competir em quantidade,

167
começou a dedicar-se a melhorar a qualidade dos seus cafés. Na mesma época, o Brasil
estava sendo processado em tribunais de Nova York, por praticas anti-concorrenciais na
oferta de café, justamente. Foi também quando os mercados financeiros se fecharam
repentinamente para o Brasil, com o estalar da guerra em agosto desse ano. O Brasil
sempre dependeu do aporte de capitais estrangeiros, seja para financiar projetos de
investimento em infraestrutura – que eram feitos sob regime de concessão, num
esquema muito similar ao que viria a ser conhecido depois como PPP, ou seja, parcerias
público-privadas, com garantia de juros de 6% ao ano –, seja para o financiamento do
próprio Estado, que vivia permanentemente em déficit orçamentário.
O Brasil já tinha efetuado uma operação de funding-loan en 1898, isto é, um
empréstimo de consolidação trocando os títulos das dívidas anteriores por novos títulos,
e tinha conseguido fazer um novo pouco antes da guerra, e já não mais teve acesso ao
mercado de capitais durante toda a duração do conflito europeu. Este representou um
tremendo choque para a economia brasileira, pois os mercados europeus ainda eram
importantes consumidores dos produtos primários de exportação, e os principais
ofertantes de bens manufaturados, equipamentos e, sobretudo, capitais, ainda que os
Estados Unidos já fossem o principal comprador do café brasileiro desde o final do
século 19, e que suas empresas já tivessem começado a fazer investimentos diretos no
Brasil.

2. Impactos imediatos do conflito iniciado em 1914


O espocar dos canhões de agosto representou, em primeiro lugar, uma
interrupção nas linhas de comunicação marítimas, já que a Alemanha tinha construído
para si uma marinha de guerra quase tão importante quanto a da Grã-Bretanha. Mais
adiante a British Navy consegue desmantelar boa parte da frota germânica, mas de
imediato, os transportes marítimos com os portos da Europa do norte foram bastante
afetados pelas batalhas navais e pela ação dos surpreendentes submarinos alemães. Mas
mesmo os estoques de café nos portos de Trieste, no Mediterrâneo, ficaram retidos, sob
controle dos impérios centrais, neste caso da monarquia multinacional representada pela
Áustria-Hungria, que seria desfeita com a derrota em 1918.
O produto mais importante de exportação do Brasil foi, assim bastante afetado
pela perda de importantes mercados consumidores, o que aumentou tremendamente a
dependência da demanda americana. Mas, os principais financiadores externos da
jovem República ainda eram banqueiros europeus, agora comprometidos com a compra
168
de títulos da dívida nacional de seus próprios países. A Alemanha também se tinha
convertido num importante parceiro comercial do Brasil, além de ter iniciado um
itinerário promissor com alguns investimentos diretos de suas empresas e casas
comerciais. Outros mercados do velho continente também se viram engolfados no
conflito, causando novos e continuados prejuízos ao Brasil.
O debate interno, sobre quem o Brasil deveria apoiar na guerra europeia,
também foi importante, colocando importantes intelectuais em oposição, assim como
tribunos e magistrados dos dois lados da cerca. O grande historiador João Capistrano de
Abreu foi considerado um germanófilo, ao passo que Rui Barbosa insistiu na culpa
moral da Alemanha, que tinha invadido e esquartejado a Bélgica, um país neutro. Uma
das vítimas desse debate passional foi o próprio sucessor de Rio Branco, o chanceler
Lauro Muller, considerado talvez menos isento por causa de sua ascendência alemã: ele
renunciou ao cargo quando o Brasil fez a sua escolha. A maior parte da classe culta no
Brasil, os membros da elite que adoravam gastar seus mil-réis nos cabarés de Paris, era
evidentemente francófila, mas os alemães ajudaram a empurrar o Brasil para o lado da
aliança franco-britânica ao atacarem navios comerciais brasileiros no Atlântico, quando
o Brasil ainda era oficialmente neutro no conflito. Acabamos entrando modestamente na
guerra, quase ao seu final, enviando um batalhão médico para a França.
No conjunto, a guerra representou imensas perdas comerciais e financeiras para
o Brasil, que tentou se ressarcir, na conferência de paz de Paris, sem obter de verdade
satisfação plena por suas reivindicações de obter compensação pela apropriação de
navios alemães: os próprios países europeus se encarregaram de extorquir a Alemanha o
máximo que puderam, e o caso do Brasil não era julgado realmente importante em face
do conjunto de demandas dos países mais afetados pela guerra.

3. Impactos de mais longo prazo, efeitos permanentes


Os efeitos mais importantes da primeira guerra mundial, porém, não se
limitaram aos terrenos militar e comercial, mas foram verdadeiramente impactantes no
domínio econômico no seu sentido mais lato, provocando mudanças extremamente
importante nas políticas econômica de todos os países, com consequências negativas
para todo o mundo, e moderadamente positivas para o Brasil. Uma das primeiras
consequências econômicas da guerra foi a cessação de pagamentos entre os inimigos, o
que era lógico, com a cessação de toda relação comercial, confisco de bens e sequestro
de ativos financeiros. Os países suspenderam o famoso padrão-ouro, ou seja, a garantia
169
em metal das emissões de moeda papel; ainda que teoricamente em vigor, para alguns
países, e a despeito de tentativas de seu restabelecimento ao final do conflito, ficou
evidente que o lastro metálico tinha deixado de fato de ser um fator relevante nas
políticas monetárias dos países. Todos os governos, depois de esgotadas as
possibilidades de financiamento voluntário interno do esforço de guerra – via emissão
de bônus da dívida pública, e até mediante empréstimos compulsórios – passaram a
imprimir dinheiro sem maiores restrições, provocando a primeira grande onda
inflacionária nas economias contemporâneas.
Mais impactante ainda foi a intervenção direta na atividade produtiva, não
apenas desviando para a produção de guerra quase todas as plantas industriais que
tivessem alguma relação com o aprovisionamento bélico, inclusive alimentar, de
transportes e comunicações, mas também via controles de preços, restrições
quantitativas, mobilizações laborais e vários outros expedientes intrusivos na vida do
setor privado. Nacionalizações e estatizações foram conduzidas por simples medidas
administrativas e a planificação nacional tornou-se praticamente compulsória. O mundo
nunca mais seria o mesmo, e nesse tipo de economia de guerra estaria uma das bases
dos regimes coletivistas que depois surgiriam na Europa, o fascismo e o comunismo.
O Brasil não foi tão afetado, naquele momento, pela estatização, mas ele
também sofreu esses impactos de duas maneiras. De um lado, as dificuldades de
aprovisionamento e de acesso a mercados levaram ao estímulo a novas atividades
industriais no país, ainda que com todas as restrições existentes para a compra de bens
de produção nos principais parceiros envolvidos no conflito. O mercado interno se torna
mais relevante para a economia nacional. De outro lado, o nacionalismo econômico
conhece um novo reforço nesse período. O Brasil já tinha uma lei do similar nacional
desde o início da República, mas a guerra ajuda a consolidar a tendência introvertida, a
vocação de autonomia nacional que já estavam presentes no pensamento de tribunos e
de empresários. O Brasil encontrou naquela situação uma espécie de legitimidade
acrescida para continuar praticando aquilo que sempre fez em sua história: a preferência
nacional e o protecionismo comercial como políticas de Estado.
Este talvez seja o efeito mais importante, ainda que indireto, da guerra europeia
sobre o pensamento econômico brasileiro, especialmente em sua vertente industrial. As
gerações seguintes, sobretudo aquelas que ainda viveram a crise de 1929, e uma nova
guerra mundial, dez anos depois, consolidaram uma orientação doutrinal em economia
que também tendia para o nacionalismo econômico, uma política comercial defensiva,
170
uma vocação industrial basicamente voltada para o mercado interno e uma tendência a
ver no Estado um grande organizador das atividades produtivas, quase próxima do
espírito coletivista que vigorou na Europa durante o entre-guerras e mais além.
Essencialmente, a geração de militares que passou a intervir de forma recorrente
na vida política do país, ao final da Segunda Guerra, e que depois assumiria o poder no
regime autoritário de 1964, era em grande medida formada por jovens cadetes que
tinham feito estudos e depois academias militares no entre-guerras e na sua sequência
imediata, e que tinham se acostumado exatamente com esse pensamento: um intenso
nacionalismo econômico, a não dependência de fontes estrangeiras de aprovisionamento
(sobretudo em combustíveis e em materiais sensíveis), a introversão produtiva, a ênfase
no mercado interno, enfim, tudo aquilo que nos marcou tremendamente durante décadas
e que ainda forma parte substancial do pensamento econômico brasileiro.
Tudo isso, finalmente, foi o resultado político e econômico da Primeira Guerra
Mundial, que durante muito tempo ficou conhecida como a Grande Guerra. Os custos e
as destruições da Segunda foram mais importantes, mas as alterações mais significativas
nas políticas econômicas nacionais, no papel dos Estados na vida econômica, já tinham
sido dados no decorrer da Primeira. O mundo mudou, a Europa começou sua longa
trajetória para o declínio hegemônico, e o Brasil deu início ao seu igualmente longo
itinerário de nacionalismo econômico e de intervencionismo estatal. Parece que ainda
não nos libertamos desses dois traços relevantes do caráter nacional.

2622. “A guerra de 1914-1918 e o Brasil: impactos imediatos, efeitos permanentes”,


Hartford, 26 junho 2014, 5 p. Roteiro para gravação de um depoimento em vídeo
para emissão especial do Observatório da Imprensa, sobre o impacto da Primeira
Guerra Mundial sobre o Brasil em termos políticos, econômicos, culturais e
militares depoimento por meio de webcam). Emissão “Os 100 anos da guerra que
não acabou”, com Alberto Dines (Programa n. 736, em 5/08/2014; link:
http://www.observatoriodaimprensa.com.br/videos/view/os_100_anos_da_guerra_q
ue_nao_acabou; participação PRA: entre 35:44 e 37:14, ou seja, 1,5mns).
Publicado em Mundorama (28/07/2014; ISSN: 2175-2052; link:
http://diplomatizzando.blogspot.com/2014/07/a-primeira-guerra-mundial-e-o-
brasil.html); postado no Diplomatizzando (link:
http://diplomatizzando.blogspot.com/2014/07/a-primeira-guerra-mundial-e-o-
brasil.html). Relação de Publicados n. 1138.

171
21. O mundo sem o Onze de Setembro: explorando hipóteses

Imaginemos, por um momento, que não tivesse ocorrido o Onze de Setembro.


As duas torres gêmeas ainda fariam parte do skyline do sul de Manhattan e o Pentágono
não teria sido renovado, continuando, portanto, a exibir sua horrível arquitetura
stalinista (que, por sinal, ele ainda tem, a despeito das fachadas mais limpas e menos
cinzentas). Mais importante, 3 mil pessoas não teriam sido barbaramente eliminadas – e
me desculpo imediatamente por não mencionar isso em primeiro lugar – por um dos
mais espetaculares (e cinematográficos) atentados jamais ocorridos na história.
Claro, outras matanças “terroristas” produziram muito mais vítimas, algumas
delas até em doses concentradas (ou delongadas, como os crimes igualmente bárbaros
ou genocídios perpetrados por déspotas e tiranos como Hitler, Stalin, Mao e outros
candidatos menores), mas nenhuma, até aqui, frequentou tanto os espaços da mídia
quanto aquela perpetrada numa bela manhã de céu azul do final do verão americano.
Nenhuma dessas outras matanças – historicamente mais relevantes – foi vista ao vivo
por milhões de pessoas ao redor do mundo; a repetição contínua, nos canais de TV, dos
ataques às torres gêmeas ainda nos enche de horror e de estupefação (ainda que sem
mais a completa surpresa daqueles momentos terríveis).

172
Imaginemos, então, que não tivessem ocorrido esses ataques – aliás dotados de
“tecnologia” relativamente ingênua, cujos autores poderiam ter sido detectados e
interceptados a caminho de seu intento criminoso – ou que, simplesmente, o cérebro que
esteve por trás de seu planejamento pudesse ter continuado suas ações “normais” de
terrorismo localizado, sem conceber tal tipo de ação verdadeiramente espetacular. O
mundo não teria esse “marco fundador do século XXI” assim classificado por cronistas
e observadores contemporâneos (e que talvez seja confirmado pelos historiadores). Não
teria deixado de existir Al Qaeda e atentados terroristas, mas teríamos sido poupados do
horror desse marco simbólico do terrorismo fundamentalista da era contemporânea.
Sem esses ataques o mundo teria sido muito diferente? Vejamos, por meio de
um exercício de imaginação, como seria, ou como poderia ser, o mundo atual, sem o
Onze de Setembro.

O Afeganistão, em primeiro lugar, seguiria por alguns anos mais – não sabemos
exatamente quanto tempo mais – com o horrível regime dos talibãs, que continuaria a
oprimir as suas mulheres (e os homens também), seguiria desmantelando estátuas e
símbolos iconoclastas em sua concepção (como a lamentável destruição dos Budas
gigantes de Bamian) e continuaria, obviamente, a abrigar bases de treinamento de
grupos terroristas ao estilo da Al Qaeda (que continuaria planejando ataques contra
alvos americanos e ocidentais, como o do U.S.S. Cole, nas costas do Iêmen, ou das
embaixadas em Nairóbi e em outros lugares). O Paquistão vizinho, em segundo lugar,
continuaria abrigando grupos terroristas, que continuariam atacando alvos na Cachemira
ocupada ou na própria Índia. Palestinos e israelenses continuariam se matando uns aos
outros, em pequenos e grandes atentados. A teocracia iraniana também continuaria
oprimindo seus dissidentes e sustentando grupos terroristas e nacionalistas da região,
como os do Hamas ou do Hezbollah. A violência anticristã dos fundamentalistas
islâmicos do norte da Nigéria continuaria produzindo vítimas entre os habitantes de
pequenas aldeias no centro do país. As ditaduras árabes continuariam oprimindo seus
povos, na indiferença geral...
Os Balcãs, com exceção do Kosovo, continuariam talvez pacificados pelas
forças da OTAN, mas se encaminhariam progressivamente para a integração europeia,
como já parecia inevitável. Mas os grupos antiglobalizadores continuariam, na Europa,
nos EUA e em outros lugares, a perturbar as reuniões multilaterais, provando, mais uma
vez, que não é difícil reunir multidões de ingênuos em torno de teses idiotas que
173
pretendem lutar contra a globalização, como se fosse possível interromper marés,
maremotos e furacões...
A Europa e talvez o mundo continuariam, por alguns anos mais, como
efetivamente ocorreu, a enfrentar a doença da vaca louca, assim como a Ásia
continuaria a se debater com epidemias animais que ocasionalmente ameaçam
transmigrar para a espécie humana. Terremotos, maremotos e outros acidentes naturais
continuariam a produzir seu lote de enormes desastres humanos nos lugares e países
mais desprovidos de condições materiais para minimizar seus efeitos catastróficos.
Ecologistas ingênuos e ambientalistas científicos continuariam a anunciar as catástrofes
decorrentes da ação industrial do homem, dizendo que o “fim está próximo” se não nos
arrependermos de nossos progressos tecnológicos e não gastarmos algumas centenas de
bilhões de dólares em medidas “preventivas” de duvidoso efeito real. O bug do milênio
e a paranoia que ele despertou já teriam passado, mas hackers, crackers e outros cyber-
terrorists continuariam a trazer preocupações aos órgãos de defesa e de inteligência,
assim como aos simples webmasters de sites oficiais de governos e de empresas...
A América Latina continuaria com o seu cortejo de miséria, de desigualdades
sociais, de corrupção e, claro, com o seu lote habitual de caudilhos histriônicos e de
demagogos candidatos a qualquer coisa, a dilapidar os recursos públicos e a enganar
populações de pobres e dependentes. O Haiti, provavelmente, não teria conseguido
evitar sua trajetória de desastres naturais e humanos, e continuaria a depender da ajuda
humanitária para evitar cenários ainda mais pavorosos. A África, muito pior,
continuaria seu itinerário horroroso de conflitos étnicos, guerras civis, ditadores
bilionários e doenças endêmicas, com alguma recuperação aqui e ali, e muita assistência
pública internacional, como tem sido o caso no último meio século. Russos e cidadãos
das repúblicas da Ásia central ainda teriam remanescentes dos antigos aparatchiks
comunistas no poder, sobrevivendo na “maldição do petróleo” e continuando a construir
o “modo capitalista-mafioso de produção”, uma modalidade não exatamente prevista
por Marx.

O mundo, enfim, não seria muito diferente do que ele foi, na década que passou
desde o Onze de Setembro, e do que ele é, hoje, com seu desfile de grandezas e
misérias, grandes invenções e pequenos acidentes de percurso, filmes de Hollywood (e,
cada vez mais, de Bollywood), prêmios Nobel e prêmios igNobel (alguns imerecidos,
numa e noutra categoria), avanços dramáticos nas ciências, nas artes e na tecnologia
174
(certamente iPod, iPhone e iPad), outros recuos não menos dramáticos na ética pública e
na gestão governamental. Ou seja, certos desenvolvimentos naturais, certos processos
sociais e alguns eventos contingentes teriam sido inevitáveis, em função da flecha do
tempo e da roda impessoal da História. Resta ver, então, o que o mundo NÃO seria, no
sentido de poder ter sido melhor do que ele foi, efetivamente, ou, eventualmente, de ter
sido mais “ameno” ou simplesmente mais tranquilo, pelo menos potencialmente, na
ausência daqueles fatídicos ataques.

Bem, os EUA não teriam atacado o Afeganistão – devidamente autorizados pelo


Conselho de Segurança, relembre-se – e provavelmente não teriam tido “escusas” para
invadir o Iraque e derrubar Saddam Hussein – não autorizados pelo CSNU, relembre-se
– e não estariam envolvidos, com alguns aliados da OTAN, em duas guerras
intermináveis, que já provocaram mais vítimas inocentes do que vários atentados
terroristas reunidos. Claro, George Bush talvez tivesse buscado outras escusas, e outros
expedientes, para terminar a missão inconclusa de seu pai na primeira guerra do Golfo.
Mas provavelmente não teria ocorrido uma revisão radical nas estratégias de segurança
dos EUA, como a “doutrina Bush” e a noção de “guerra preventiva”. Guantánamo não
teria sido convertida em prisão para “inimigos combatentes”, à margem das convenções
multilaterais relativas à guerra e “prisioneiros” de guerra. A própria noção de “guerra ao
terror” provavelmente não teria existido, continuando apenas o trabalho habitual das
agências de inteligência na prevenção aos ataques terroristas, seguido de uma ou outra
ação tópica, de caráter militar, no desmantelamento de bases e eliminação de agentes
em alguns hotspots do planeta.
Mais importante, talvez, para os cenários econômicos da globalização
capitalista, os EUA não teriam acumulado 5 ou 6 trilhões de dólares adicionais de
dívida pública e não estariam em tão má postura, como atualmente, para continuar a
servir de “locomotiva econômica planetária”, nos momentos de recuperação da sempre
esquizofrênica economia mundial. A ciclotimia habitual do capitalismo continuaria
igual, claro, e crises financeiras continuariam a ocorrer com sua regularidade habitual, e
nem sequer seríamos poupados dos desastres da bolha imobiliária, da crise financeira de
2008-2009 e da atual crise do endividamento público dos países avançados, que
obedecem a uma lógica própria, sem nada dever a qualquer tipo de ataque terrorista de
qualquer grupo religioso ou político. O capitalismo financeiro sempre produz seus

175
próprios desastres, com quedas espetaculares dos valores das ações, sem necessidade de
derrubada física dos papéis.
O único vínculo entre a crise atual e os ataques terroristas talvez seja o excessivo
endividamento americano, mas o enorme buraco provavelmente não existiria, se Bush
não tivesse lançado o país, irresponsavelmente, em duas custosas guerras de nation
building e de construção de democracias em países já por si problemáticos. Os EUA,
que obtiveram, espontaneamente, a imediata solidariedade de todo o mundo, no
imediato seguimento dos ataques – Nous sommes tous américains!, escreveu em letras
garrafais o Le Monde de 12 de setembro de 2001 – e que tiveram o apoio na luta contra
o terror mesmo de competidores estratégicos, passaram a ser odiados em vários
quadrantes, por causa de ações arrogantes, irrefletidas, unilaterais. Obviamente que não
se pode combater grupos terroristas apenas com base no diálogo, na cooperação e na
coordenação multilateral – que são instâncias ineficientes, ineficazes ou inexistentes,
simplesmente –, mas a escolha de uma estratégia de “enfrentamento imperial” dilapidou
rapidamente o crédito de confiança que eles tinham conquistado na conjuntura dos
ataques.
Não é seguro que uma estratégia de maior coordenação e consulta com aliados
habituais e parceiros circunstanciais teria evitado, por exemplo, os ataques terroristas de
Madrid e de Londres – para ficar apenas em dois dos mais mortíferos – mas talvez fosse
possível obter um ambiente de luta clandestina, nos bastidores e por ações mais de
inteligência do que pelo uso da força bruta, que evitasse o antiamericanismo militante
que surgiu a partir da invasão do Iraque. Grupos militantes e outros fundamentalistas
espalhados ao redor do mundo talvez não tivessem se organizado em torno do rótulo Al
Qaeda para perpetrar alguns desses ataques e tentativas de ações terroristas que foram,
em parte, estimuladas pela resposta imperial americana.
O próprio conceito de “guerra ao terror” e o caráter punitivo a que esse tipo de
enfrentamento conduz superestimam a capacidade dos grupos terroristas e realçam um
hipotético status de combatentes, no plano do direito internacional, o que eles
obviamente não são, no sentido próprio da palavra. O inteiro arcabouço jurídico
internacional da luta contra o terrorismo poderia ter avançado mais, na ausência de uma
resposta militar dos EUA aos ataques, ou mais exatamente, na ausência da estratégia
americana de “guerra preventiva”, materializada especialmente pela invasão do Iraque.
Ditadores e ditaduras foram poupados em certos cenários de “cooperação” na “guerra

176
ao terror”, e muitos deles sobreviveram e sobrevivem ainda hoje, em função das tensões
acumuladas nesse ambiente unilateralista criado pelos EUA.

Em qualquer hipótese, é extremamente difícil dizer se o mundo, sem o Onze de


Setembro, teria sido muito diferente do que ele foi, pois forças impessoais continuam se
movimentando na mesma direção, provocando, talvez, efeitos semelhantes, ou
processos similares, aos que ocorreram a partir dos ataques terroristas e das respostas
imperiais. Deve-se, em todo caso, relevar a parte dos fatores contingentes, dos
imponderáveis humanos no desenvolvimento que efetivamente tivemos, desde antes do
Onze de Setembro. Na ausência de homens como Osama Bin Laden e de George W.
Bush – este aqui cercado dos “falcões” do unilateralismo americano, pois o próprio
presidente era conceitualmente muito fraco e intelectualmente débil para conceber a sua
“guerra ao terror”– provavelmente não teríamos tido nem os ataques do Onze de
Setembro, nem as respostas desproporcionais que se seguiram, e que marcaram
indelevelmente estes dez anos como uma das mais problemáticas décadas desde o final
da Segunda Guerra Mundial.
A vida continua, os impérios se sucedem, o capitalismo se renova, os governos
continuam acertando e errando na construção de sociedades mais seguras e mais
estáveis, a prosperidade se instala lentamente num mundo de mercados cada vez mais
unificados e é este último fator, finalmente, que vai conduzir, senão à eliminação do
terrorismo, pelo menos à atenuação das vocações, ao arrefecimento dos ardores
militantes e à diminuição do número de candidatos a ações terroristas. Quando todos os
jovens miseráveis do planeta tiverem sido alçados a uma pobreza aceitável, e passarem
a desfrutar dos equivalentes dos iPhones e iPads da atualidade, todos eles devidamente
conectados, poderemos ter certeza de que o mundo terá menos ditadores, menos miséria
e menos terrorismo. Minha visão é, sim, economicista a este respeito, pois acredito que
o espaço das crenças irracionais – e o terrorismo fundamentalista é basicamente uma
crença irracional – será diminuído pela educação universal. E não existe melhor
antídoto contra esses fenômenos reacionários, e melhor remédio à miséria educacional,
do que o processo irrestrito da globalização de mercados.
Mais um pouco e eu diria que os antiglobalizadores são os inocentes úteis do
terrorismo fundamentalista, mas não vou ofender gratuitamente uma tribo de jovens
ingênuos (ainda que animados por velhacos de má-fé e intelectualmente desonestos).
Vou apenas torcer para que essas “crenças irracionais” da globalização – aliás animadas
177
pelas próprias ferramentas da globalização – sejam rapidamente revertidas e colocadas a
serviço do único processo que vai diminuir, progressivamente, os fervores terroristas.

2310. “O mundo sem o Onze de Setembro: explorando hipóteses”, Brasília, 10 setembro


2011, 6 p. Blog Diplomatizzando (10/09/2011; link:
http://diplomatizzando.blogspot.com/2011/09/o-mundo-sem-o-onze-de-
setembro.html); Via Política (11/09/2011); Blog do Paulo Roberto de Almeida no
Observador Político (10/09/2011, às 23:15); Mundorama (boletim n. 48,
12/09/2011; ISSN: 2175-2052; link: http://mundorama.net/2011/09/12/o-mundo-
sem-o-onze-de-setembro-explorando-hipoteses-por-paulo-roberto-de-almeida/);
Dom Total (15/09/2011; link:
http://domtotal.com.br/colunas/detalhes.php?artId=2209). Relação de Publicados n.
1046.

178
22. Wikileaks: verso e reverso

Triunfos e tragédias das revelações


Todos os que “vivemos” ou militamos no vasto campo das relações
internacionais – seja academicamente, como professores e pesquisadores, seja
profissionalmente, como diplomatas e funcionários governamentais das áreas de
segurança ou de inteligência, seja ainda por simples curiosidade intelectual – estamos
acompanhando com renovado interesse cada nova liberação gradual das dezenas, das
centenas de milhares de documentos diplomáticos dos Estados Unidos, que estão sendo
divulgados por meio de um seleto número de grandes jornais internacionais a partir de
sua “fonte de ocasião”, o empreendimento supostamente jornalístico de um aventureiro
do ciberespaço. A “fonte original” dessa verdadeira mina documental já foi,
aparentemente, identificada e neutralizada pelas autoridades dos EUA, devendo ser
submetida aos procedimentos habituais em matéria de salvaguarda de materiais
sigilosos, cabendo apenas esperar por uma punição exemplar pela amplitude das
malfeitorias cometidas.
Este pequeno ensaio de comentários pessoais em torno das “revelações do ano
de 2010” – de 2011 e possivelmente mais além – não tem por objetivo enfocar a
substância da matéria, ou seja, o conteúdo das mensagens diplomáticas, nem se
preocupa com o fato de elas serem provenientes dos EUA. Acredito que o mesmo
poderia ocorrer com outros governos, inclusive o brasileiro, daí que meus comentários
se interessem mais pelo empreendimento em si, do que pelo seu objeto próprio.
Tampouco pretende ele preconizar qualquer medida adicional de segurança, do ponto de
179
vista brasileiro, em vista da extensão da tragédia enorme que considero terem
representado essas revelações para o serviço diplomático dos EUA; estou consciente,
entretanto, de que medidas desse tipo serão inevitavelmente tomadas, lá e aqui, pelas
autoridades responsáveis. O objetivo primordial deste texto, é o de refletir, na condição
profissional de diplomata e enquanto professor, sobre as implicações dos “wikileaks” no
planos diplomático e acadêmico, deixando parcialmente de lado sua interface
jornalística, alheia a minhas preocupações sobre o tema.
Duas observações preliminares se impõem. Não há dúvida de que ocorreram
crimes, cometidos por pelo menos um nacional americano, dentro do serviço público,
contra a legislação aplicável; haverá um processo – eventualmente cercado das
salvaguardas pertinentes; as consequências jurídicas e políticas desse processo afetarão
o tratamento futuro das comunicações diplomáticas, sua preservação e sua
disponibilização pública (aos historiadores e pesquisadores de maneira geral). Não
tenho, por outro lado, comentários quanto à divulgação mesma dessa documentação –
sou absolutamente contrário a qualquer controle preventivo da internet por governos ou
entidades multilaterais e estou consciente de que apenas ditaduras pretendem fazê-lo, ou
já o fazem, efetivamente – mas tampouco junto-me ao coro de apoiadores do
aventureiro que se pretende jornalista, por considerar que aqueles que o apoiam, por
ingenuidade ou simples ignorância, incorrem em vários equívocos políticos e morais (na
verdade, muitos o fazem por antiamericanismo primário e beócio).
Se ouso resumir a natureza essencial e antecipar as lições pessoais destes
comentários, seriam estas: o “wikileaks” representa um paraíso para os jornalistas, um
inferno para os diplomatas (não apenas americanos, cabe esclarecer) e um possível
limbo para os futuros historiadores e pesquisadores, que amargarão as consequências
das eventuais “delícias” do presente.

Grandezas e misérias das revelações, de quaisquer revelações


Uma coisa é certa: todos nós, como indivíduos, como famílias e também como
funcionários de governos, temos direito à privacidade e à confidencialidade de
informações pessoais e institucionais. Obviamente, existem leis que protegem essa
condição e estabelecem limites de acesso (sigilo fiscal ou de segurança),
independentemente do fato de que governos, todos os governos, se empenham em atos
(vários deles ilegais) para penetrar na nossa vida e na confidencialidade de outros
governos. Os agentes públicos (mas isso vale entre familiares e para jornalistas também)
180
têm o direito à (e o dever de resguardar a) confidencialidade de comentários internos,
assim como o dever moral e profissional de preservar o segredo das fontes, o correto
processamento das informações, pois isso é o que está constitucionalmente assegurado
nas democracias “normais”. Também sabemos que algum grau de hipocrisia ou de
quebra de sigilo é, de certa forma, admitido, informalmente ou no âmbito
governamental, quanto ao tratamento dessas informações, tanto no plano jornalístico
como no das investigações policiais ou judiciais (aspectos muito pouco regulados nas
democracias “anormais” ou totalmente desrespeitados nos regimes autoritários).
Não cabe, aliás, nenhuma dúvida de que a preservação da confidencialidade de
certas informações é essencial a uma correta tomada de decisões, por governos, por
empresas ou por simples indivíduos, que de outra forma seriam prejudicados pela
exposição pública de dados sensíveis, de segredos tecnológicos ou de comentários
pessoais e familiares que os emissores, processadores e “manipuladores” dessas
informações têm o dever de resguardar. Sem isso, as relações humanas e também as
inter-estatais seriam muito mais conflituosas. Quando essas regras, as salvaguardas e os
contrapesos falham, decisões podem se tornar deficientes e suscetíveis de provocar
maior grau de tensão, o que não é objetivo de ninguém, de nenhuma família, nem de
qualquer Estado (salvo aqueles personagens e governos que “vivem e sobrevivem” nos
conflitos por eles mesmos provocados).

O “tesouro” dos jornalistas, com algumas limitações


Voyeurs e mesmo simples cidadãos ficam satisfeitos quando leem na imprensa a
exposição pública de atos moralmente condenáveis, ilegais ou corruptos de figuras
públicas; essas revelações correspondem, presumivelmente, ao interesse público, um
“direito dos cidadãos”, enquanto pagadores de impostos. Tabloides ingleses se
especializam em fofocas da família real ou de membros do governo; é um nicho
explorado em muitos países, em alguns deles com seguimentos judiciais. Nas
democracias plenas, a liberdade de imprensa é quase absoluta, com algumas
salvaguardas institucionais ou códigos voluntários de ética que limitam a exposição.
Assim deve ser: internet e imprensa devem ser absolutamente livres, cabendo
aos editores de jornais e outros responsáveis de comunicações se guiar por princípios,
valores e normas éticas que os auxiliem a decidir sobre o que publicar e o que
resguardar, no terreno privado e no campo dos poderes públicos. Os grandes jornais

181
americanos adotam o seguinte procedimento: primeiro consideram o assim chamado
“interesse nacional”, depois o interesse do cidadão, e bem depois, o do governo...
Nesse sentido, os “wikileaks” diplomáticos representaram uma mina riquíssima
de trouvailles e informações úteis sobre questões que já faziam objeto das investigações
dos jornalistas, mas careciam de “fontes autorizadas”: elas agora existem, e em
abundância, havendo, em diversos casos, maior ou menor grau de responsabilidade dos
editores quanto à exposição de pessoas e dados muito sensíveis ou potencialmente
prejudiciais nos planos da segurança nacional ou individual. Os donos de jornais e seus
editores parecem ter observado uma atitude bem mais responsável do que a do
“divulgador” dos documentos, resguardando dados sensíveis e informações privadas,
mesmo se circulando na esfera dos governos, ou mesmo de algumas grandes empresas
interagindo com eles (sobre segredos tecnológicos ou de natureza financeira, por
exemplo). Não se poderia pedir transparência nesses casos, pois os danos seriam muito
maiores do que os benefícios esperados ou supostos.
Não se sabe bem como foram negociados os termos do acesso aos documentos
“capturados” pelo Wikileaks e sua cessão para publicação pelos grandes jornais
internacionais selecionados pelo seu coordenador, mas não cabe nenhuma condenação
ou sequer censura moral aos editores desses jornais, pelo simples fato de que eles
receberam documentos de “interesse público” e exerceram sua capacidade jornalística
em toda a amplidão do conceito. Muitos editores devem ter tomado os cuidados
prudenciais que se impunham em face de muitos nomes de “informantes” ou
“parceiros” dos diplomatas americanos, ponderando aqui e ali sobre a oportunidade e a
conveniência de transcrever os documentos em toda a sua extensão. Alguma contenção
deve ter sido exercida em nome da responsabilidade que cada um desses jornais assume
em face de sua própria opinião pública.
Outra pode ter sido a atitude e o papel dos “transmissores de segunda mão”, que
exploram o filão, aprofundando oportunamente indícios interessantes dos documentos
originais. Em suma, se o ano de 2010 foi um annus miserabilis para os diplomatas
americanos, ele deve ter sido um annus mirabilis para os jornalistas assim
“presenteados”. A festa deve continuar em 2011, até onde a vista alcança. Que os
jornalistas façam bom proveito e informem de maneira adequada a sua clientela.

Uma “tragédia americana” (e para os demais serviços diplomáticos também)


As revelações do Wikileaks são certamente desastrosas, e não apenas pelo seu
182
impacto momentâneo, ou seja, pelo desgaste que elas possam causar nas relações
bilaterais, nos esquemas regionais de segurança e de estabilidade estratégica, em várias
outras áreas da atividade diplomática dos EUA. Elas são potencialmente desastrosas, e
isso de uma forma sistêmica ou estrutural, se ouso dizer.
A questão principal é esta: dada essa exposição, poucos interlocutores, em
qualquer país ou em entidades internacionais, desejarão interagir com os diplomatas
americanos (mas o mesmo vale para qualquer diálogo de qualquer outro país, em
circunstâncias similares de “intercâmbio informal de opiniões”). O pressuposto – que
poderíamos chamar de “síndrome Wikileaks” – é o de que todos, de alguma forma,
poderão ser expostos em algum momento de um futuro indeterminado (neste caso foi
relativamente breve, o que agrava todo o processo). Em consequência, a diplomacia
americana (mas o mesmo vale para qualquer outra), está e estará castrada em sua função
essencial, que é a de recolher informações, processá-las, dialogar com reserva com
agentes públicos ou pessoas privadas em outros países (amigos ou “inimigos”, não
importa muito, mas neste último caso é muito pior, em sua dimensão local); ficará
difícil preparar o “pão quotidiano” de todo diplomata, que é o de abastecer seu governo
de informações fiáveis, se possível, não disponíveis nos veículos habituais.
É óbvio que, nessas circunstâncias, os processos de elaboração de notas e
memorandos internos, de todo e qualquer subsídio para a formulação de hipóteses de
trabalho e, em última instância, de adotar decisões políticas com base em toda essa
massa de informações, públicas e privadas, todos esses processos tornaram-se,
repentinamente, expostos e sujeitos, portanto, a revisões de procedimento e de
substância que poderão impactar políticas futuras. Pode-se imaginar que as tomadas de
decisões pelos órgãos pertinentes dos EUA (assim como, por extensão, de quaisquer
outros governos), sobre aspectos importantes de suas políticas internacionais
(diplomáticas e militares, em primeiro lugar, mas o mesmo se dá para a política
comercial e muitas outras) serão muito mais deficientes daqui para a frente, o que
também redunda em perdas para todos, pois muitas vezes se terá de agir por impulso ou
com base em informações deficientes.
Como resultado involuntário – mas obrigatório – dessas revelações
constrangedoras, pode-se esperar a introdução de novas medidas de restrição no
processamento e na disseminação interna dessas informações; menos pessoas terão
acesso, doravante, a papéis com algum grau de sensibilidade. Se é verdade que, na fase
seguinte, menos opiniões serão ouvidas, e menos consultas diversificadas serão feitas,
183
registrando-se menor participação de agentes públicos na tomada de decisões, pode-se
prever que ocorrerão deficiências inevitáveis em todo o sistema. Um sistema que é
suscetível a falhas decisórias é um sistema menos que perfeito, correndo riscos de
julgamentos inadequados e possível surgimento de novos focos de tensão com parceiros
e “inimigos” potenciais. Assim como crises econômicas nos EUA afetam todas as
demais economias nacionais, uma diplomacia deficiente naquele país pode tornar o
mundo mais instável e inseguro.
Uma consequência ainda mais terrível é a atitude psicológica de autocontenção,
quase uma autocastração, a que se obrigarão, doravante, os diplomatas americanos (e de
outros países também), temerosos de serem surpreendidos, mais adiante com a
revelação de cândidos julgamentos e apreciações subjetivas ou impressionistas sobre
seus personagens obrigatórios – o “ditador” de ocasião, digamos assim, mas também os
líderes aliados e quaisquer outros parceiros. Os telegramas confidenciais se tornarão, a
partir de agora, muito mais aborrecidos, muito mais burocráticos, bem mais anódinos do
que o normalmente esperado nesse tipo de correspondência sigilosa. No limite, a
“castração” vai estar tão entranhada, que vai ser difícil distinguir um telegrama analítico
de uma mera crônica social.

Historiadores: preparai-vos para infinitas banalidades futuras


Patético o movimento de historiadores em vários lugares do mundo – entre
outros lugares no Brasil – em defesa do coordenador do Wikileaks, como se este fosse
um representante da categoria, que estaria sendo cerceado em seu trabalho “legítimo” de
pesquisa, investigação intelectual e disseminação de documentos encontrados em
arquivos diplomáticos. Invocaram seus defensores “princípios sagrados” como os de
transparência, liberdade de expressão, entre muitos outros; denunciaram eles atitudes de
governos contrários às revelações como sendo o equivalente de uma nova caça às
bruxas, como ação inquisitorial, eivada de predisposições censórias e repressivas, quase
equiparando essas iniciativas ao combate ao terrorismo; juntaram-se eles em petições e
manifestos de apoio, que revelava apenas a confusão mental reinante nesses meios.
Ocorreram inclusive manifestações totalmente esquizofrênicas de dirigentes políticos,
cuja falta de lógica se alinhava ao mais vulgar antiamericanismo instintivo,
combinando, aliás, com a total inconsistência nos argumentos em favor das revelações,
como se estas devessem ser o padrão dos governos “democráticos”, e o sigilo das
informações diplomáticas a exceção. Ninguém questionou o fato de que as verdadeiras
184
ditaduras estavam celeremente empenhadas em fazer com que suas próprias populações
não tivessem acesso a nenhuma linha dos “wikileaks”, mesmo as que teoricamente
impunham mais danos ao “inimigo ideológico”.
A fruição momentânea de algumas poucas informações sensíveis – no meio de
banalidades já objeto de boatos conhecidos e de centenas de outras “informações” sem
qualquer ineditismo, a não pelo lado dos emissores – obscureceu o elemento mais
importante a ser considerado pelos historiadores e pesquisadores de relações
internacionais como resultado da ação irresponsável do coordenador do Wikileaks: o
fato de que os historiadores serão jogados, doravante, numa espécie de limbo
informativo que corre o risco de ampliar-se, dependendo do que vem ainda pela frente
em matéria de novas revelações. Em troca do “consumo imediato” de documentos
confidenciais, eles podem ter uma amputação anunciada de seu acesso a novas e futuras
fontes de documentos relevantes para o trabalho de reconstrução histórica.
Com efeito, não se trata de uma tragédia apenas para diplomatas (e não apenas
americanos, como já referido), mas potencialmente também para os historiadores e
pesquisadores. Dependendo de como reagirão os setores de segurança das chancelarias
– que não deixarão de se precaver contra novos acidentes desse tipo – os danos podem
ser imensos para os mesmos beócios que manifestaram-se entusiasticamente em defesa
do coordenador do Wikileaks. Estão saudando, equivocadamente, ao cerceamento
substantivo da matéria-prima de seu futuro trabalho. Não que deixe de haver
transparência ou agravamento nas condições de pesquisa: mas o “core of the matter”
será bem menos interessante...

Se a visão pessimista expressa nos parágrafos precedentes tiver alguma


possibilidade de se materializar, estejam certos de uma coisa os historiadores que estão
saindo agora dos bancos universitários: as próximas safras de documentos diplomáticos
podem ser tão magras de informações quanto os comunicados surrealistas de certas
ditaduras: um ajuntamento de frases anódinas, no mais puro burocratês, desprovido de
qualquer nuance estilística, a síntese perfeita da langue de bois oficialesca com o
bullshit hipócrita que frequenta comunicados governamentais.
Espero estar errado em meus julgamentos apressados, mas como diplomata,
como historiador e como simples cidadão pensante, minha avaliação da sensação de
2010, na interface do jornalismo com a historiografia diplomática, é a mais pessimista
possível. Em dez ou quinze anos, espero ler avaliações sensatas sobre este episódio que
185
revelem toda a extensão da tragédia que ele representou para historiadores e diplomatas.
Au rendez-vous, donc...

2236. “Wikileaks: verso e reverso”, Porto Alegre, 14 janeiro 2011, 7 p. Comentários


sobre as consequências das revelações, para diplomatas e historiadores. Publicado
em Mundorama (14.01.2011; link: http://mundorama.net/2011/01/14/wikileaks-
verso-e-reverso-por-paulo-roberto-de-almeida/); Postado no blog Diplomatizzando
(link: http://diplomatizzando.blogspot.com/2011/01/wikileaks-triunfo-e-
tragedia.html). Republicado em Via Política (24.01.2011) e em Dom Total
(03.02.2011; link: http://www.domtotal.com/colunas/detalhes.php?artId=1797).
Relação de Originais n. 2236. Relação de Publicados n. 1018.

186
23. Wikileaks-Brasil: qual o impacto real da revelação dos
documentos?

Uma questão inevitavelmente vinculada ao caso Wikileaks, e a liberação dos


documentos relativos ao Brasil, seria a de aferir seu impacto efetivo nas relações do
Brasil com os Estados Unidos, e vice-versa. Minha impressão pessoal é a de que esse
impacto é limitado, tenderá a ser circunscrito a um pequeno círculo de interessados
imediatos e deverá se diluir com o passar do tempo. Isso não quer dizer que todo o
processo não tenha consequências para as partes envolvidas, para os Estados Unidos de
maneira geral, e nas relações bilaterais em particular.
Já elaborei e publiquei algumas reflexões a respeito, num momento em que os
documentos vinculados ao Brasil – produzidos pela Embaixada americana em Brasília,
ou alguns de seus consulados em algumas capitais estaduais – estavam sendo ainda
liberados. Remeto os interessados a este texto meu: “Wikileaks: verso e reverso”,
Mundorama (14.01.2011; link: http://mundorama.net/2011/01/14/wikileaks-verso-e-
reverso-por-paulo-roberto-de-almeida/); republicado em Dom Total (03.02.2011; link:
http://www.domtotal.com/colunas/detalhes.php?artId=1797). Os comentários e opiniões
ali expressos tinham sido feitos num momento em que representantes do meio
acadêmico no Brasil expressavam seu regozijo pela divulgação dos documentos e até
circulavam listas com assinaturas em apoio ao personagem principal, antes e durante
sua captura pelo polícia britânica. Um alto personagem da república (com minúscula
neste caso) chegou a oferecer a possibilidade de asilo no Brasil ao “animador” do
Wikileaks, Julian Assange, por causa do processo movido na Inglaterra contra ele.
187
Nesta altura, agosto de 2011, todos os documentos relativos ao Brasil já foram,
aparentemente, liberados (ver: “Wikileaks: todos os documentos estão no ar”, Publica,
Agência de jornalismo investigativo, 15.07.2011; link:
http://apublica.org/2011/07/semana-wikileaks-todos-os-documentos-estao-no-ar/). Não
tenho a intenção, contudo, de desenvolver neste momento uma análise de conteúdo dos
mais importantes, pois seria ainda necessário processá-los tematicamente, separar o joio
do trigo – ou seja, o que é de fato relevante em termos de relações bilaterais,
dispensando as simples fofocas de ocasião – e recolocar cada um deles no seu contexto
próprio, antes de proceder a uma avaliação de sua importância real. Pretendo, tão
somente, continuar algumas reflexões sobre seu impacto geral e vinculado ao Brasil,
sob a forma de três grandes questões: o que significa o Wikileaks para a diplomacia
americana na suas relações com o Brasil, como passaram a proceder as duas partes
depois da liberação dos documentos – ou seja, a questão da cautela a ser observada
doravante nos contatos e nos diálogos entre as duas diplomacias – e, finalmente, uma
avaliação do impacto efetivo da liberação sobre todo o processo diplomático.

Como avaliar o impacto do Wikileaks na relação Brasil-EUA?


Como para qualquer outro país, a divulgação antecipada – e de forma ilegal e
criminosa – de expedientes diplomáticos americanos sobre as relações Brasil-Estados
Unidos, que deveriam ter permanecido confidenciais ou secretos durante
aproximadamente dez anos além de sua produção, apresenta um impacto nas relações
bilaterais, ainda que este aspecto seja o menos importante de todos, no conjunto de
“tangos e tragédias” representada pelo fenômeno Wikileaks para a diplomacia
americana como um todo, em especial para a condução das relações bilaterais dos EUA
e, com impacto acrescido, para o planejamento estratégico – em primeiro lugar de
segurança – daquela potência nas suas relações com o mundo todo, inclusive no
encaminhamento de temas da agenda americana nos organismos multilaterais, nas suas
instituições “imperiais” (tipo OTAN, por exemplo), e sob vários outros aspectos
também (impossíveis de serem todos dimensionados e apreciados).
Digo “tangos e tragédias”, de modo irônico, mas deliberado, porque o Wikileaks
é de fato uma “piada” – no sentido corriqueiro da palavra – e um drama, ao mesmo
tempo. Uma “piada” porque a maior parte, senão a quase totalidade do que foi
“revelado” não é especialmente novidade, mas elementos de informação que se
encontravam disponíveis há muito tempo na mídia de qualidade. A “piada” vem
188
associada a certos comentários jocosos de diplomatas americanos a respeito de seus
interlocutores em determinados países, ou suas próprias opiniões a respeito de situações
por eles enfrentadas no desempenho funcional normal, e também ao lado
“surpreendente” de certos comentários “inocentes” dos interlocutores locais dos
diplomatas americanos a respeito de seus governos respectivos.
Por exemplo, o fato de que diplomatas americanos considerassem que os
negócios familiares de certos ditadores árabes se assemelhavam aos da máfia americana
não é propriamente algo surpreendente ou inusitado, para quem conhece o “ambiente de
negócios” desses países, e apenas testemunha a favor dos diplomatas americanos em sua
capacidade analítica, de não se deixar impressionar pelo luxo e riqueza em que viviam
certos “nababos do Oriente”, por saberem bem que esses recursos eram provenientes de
roubo organizado, de espoliação de capitalistas nacionais e estrangeiros, de dilapidação
do tesouro público, enfim, de comportamentos mafiosos, tout court. Quanto ao lado
funcional, não deixa de ser piada ver um cônsul americano reclamar do intenso trabalho
de escrutinização dos candidatos a vistos de turismo aos EUA, já que entre as demandas
incontáveis se encontrava um pouco de tudo, do bom, do mau e do feio (frase clássica e
comentário apropriado para quem se lembra do belíssimo western-spaghetti de Sergio
Leone: The Good, the Bad, and the Ugly).
Pode ser também uma “piada” – mas também pode ser um “pequeno drama”
para as partes envolvidas – saber da opinião de um imponente ministro brasileiro da
Defesa – agora justamente dispensado em razão de sua big mouth – a respeito de um
colega de ministério, chamando-o de “antiamericano”, o que não chega a ser novidade,
para quem conhece o personagem, mas que revela o lado das pequenas hipocrisias que
frequentam os meios oficiais. O “antiamericano” calou-se a respeito – talvez
deliberadamente, para confirmar, e contentar a esquerda antiamericana, que ele se
enquadra feliz e voluntariamente no conceito – e o emissor da opinião apressou-se a
desmentir, dizendo ter sido mal interpretado ou não ter dito exatamente aquilo, correção
que soa não apenas patética, mas totalmente falsa e mais ainda hipócrita. Ninguém
pensava outra coisa do antiamericano em questão, e pode-se pensar que as relações
entre ambos não tenha sido afetada minimamente por excesso de sinceridade de uma
verdade tão óbvia quanto dispensável de ser confirmada. Mas esse é apenas o lado
“piada” de todo este affair.
O lado dramático, uma verdadeira tragédia para a diplomacia americana, não
pode ser colocado apenas no contexto bilateral, pois ele afeta TODAS as relações
189
bilaterais dos EUA, em todo o mundo, a partir de agora. Os EUA passam a dispor,
presumivelmente, de menos interlocutores, em meios oficiais e de oposição, em todas as
instâncias das quais participam e em todos os países nos quais trabalham seus
diplomatas. Qual é o agente público – ministro ou burocrata de alto coturno – ou o líder
político de oposição, e até mesmo da situação, amigo ou “inimigo” dos EUA, que vai
querer, a partir do Wikileaks, conversar, reservada e livremente, com o embaixador
americano postado localmente, ou com seus diplomatas graduados, presumindo, a partir
de agora, que essas conversas em off serão eventualmente reveladas em curto prazo por
trânsfugas do Wikileaks (ou qualquer outra forma de apropriação indébita de
expedientes oficiais)? Qual é o simples cidadão que vai continuar confiando na
segurança das informações detidas pelos EUA, quando um simples soldado raso em um
posto obscuro da máquina imperial pode ter acesso a esses expedientes e divulga-los
livremente para o mundo inteiro?
Esse é o lado da absoluta tragédia para os serviços diplomáticos americanos – de
fato para TODO o seu sistema de segurança de informações – que passou a existir
depois do Wikileaks e que vai afetar profundamente todas as formas de recolhimento,
de processamento de informações, e de tratamento dessas informações para fins de
tomada de decisões dessa grande máquina burocrática que é o maior império de todos
os tempos. O império está não somente “nu”, como desprovido de meios de acesso a
certas informações sensíveis, que são detidas apenas por seus interlocutores em todos os
países e organizações internacionais: os EUA estão SEM INTERLOCUTORES, pelo
menos dos que detêm, verdadeiramente, informações sensíveis e valiosas. Todos os seus
encontros vão se limitar ao “banal costumeiro”, com comentários absolutamente
anódinos, e agora terrivelmente aborrecidos, sobre o tempo, o vento, quão bom e correto
é o meu governo, como todas as suas decisões são sábias e apropriadas, e coisas do
gênero. Em outros termos, os EUA perderam valiosas fonte de informação, no Brasil e
em todos os demais países, para o bem e para mal. Esta é uma tragédia que reputo
incomensurável.
A outra tragédia – mas que também pode ser uma piada, dependendo de como se
considere o fato – é que os diplomatas americanos, revelados em suas notas
espirituosas, algumas maldosas, outras simplesmente óbvias, sobre seus interlocutores,
amigos e “inimigos”, deixarão de fazer esses comentários jocosos, mas verdadeiros e
sinceros, outros apenas esclarecedores, sobre seus interlocutores e sobre as informações
e “análises” que eles forneceram, em caráter obviamente confidencial, numa conversa
190
reservada e cordial. Qual é o embaixador ou ministro conselheiro que vai agregar,
depois de sua transcrição fiel da conversa, sua própria opinião sobre o personagem em
questão, sabendo que a mesma pode ser revelada em pouco tempo, o que redundará
certamente em sorrisos amarelos, pedidos de desculpa ou “rompimento de relações”?
Em outros termos, os telegramas confidenciais dos postos e embaixadas se converterão
em aborrecidas transcrições de conversas, sem qualquer elaboração complementar a
respeito, ou pelo menos sem o colorido e a verve das opiniões sinceras do “produtor” de
telegramas, sem qualquer adição de “verdades verdadeiras” (mas incômodas, a qualquer
título), que seu responsável poderia fazer a respeito. Ou seja, a “veia literária” – até
histriônica – dos diplomatas americanos se encontra singularmente podada, cortada,
eliminada por completa, com o que esses expedientes retornam à sua linguagem
burocrática, aborrecida, terrivelmente contida, com todo o “politicamente correto” que é
capaz de se expressar no “diplomatês” habitual dessas comunicações (que também
contêm algumas doses de “bullshitismo”, é verdade). Enfim, vamos perder grandes
vocações dramáticas, até intelectuais, com esse retorno a padrões normais da
correspondência diplomática, borings como costumam ser esses expedientes.
A tragédia se amplia também para o processo de tomada de decisões nas
instâncias apropriadas dos EUA, que agora são obrigadas a tomar novos cuidados
quanto ao acesso e disseminação dessas informações. Ou seja, menos pessoas vão estar
envolvidas nesses mecanismos e na própria tomada de decisões, o que significa que,
com menos informações e menos especialistas participando de todo o processo, o
“império” vai errar mais nesse itinerário entre o insumo e sua resposta, e tomará
decisões equivocadas ou não apropriadas ao caso. Uma tragédia de dimensões gregas
para a máquina de informações e de tomada de decisões que sustenta qualquer império.
A última tragédia é a dos historiadores e analistas de arquivos, alguns dos quais ficaram
absolutamente – e equivocadamente – maravilhados com essa liberação antecipada de
uma massa de documentos “picantes e saborosos” sobre as engrenagens internas do
maior império da humanidade – alguns até eufóricos, com a revelação inopinada das
“roupas sujas” do império, o que se explica pelo antiamericano habitual em certos
meios. Pois é um fato que, dentro de dez anos, os mesmos “garimpeiros de arquivos”
vão ficar decepcionados com a ausência súbita de informações relevantes na massa de
documentos que serão liberados: todos estarão contidos pela tragédia cômico-dramática
do Wikileaks, ou seja, não haverá revelações dignas de notas a serem exploradas (pelo
menos durante certo tempo, até que as pessoas esqueçam o que ocorreu e o Wikileaks
191
seja apenas um intervalo incômodo numa história diplomática bem mais ampla e
interessante).
Em síntese, poucas revelações do Wikileaks podem ou devem ser consideradas
apenas no contexto bilateral Brasil-EUA, e mesmo as que se situam no plano
estritamente bilateral não são suscetíveis de influir decisivamente no perfil, substância
ou direcionamento dessas relações, embora possa haver um curto-circuito temporário
nas conversas de bastidores que sustentam, diplomaticamente, essas relações.

A nova seletividade dos contatos entre as duas diplomacias


Certamente que ministros, altos funcionários do governo, e simples diplomatas
passam a ser, depois do Wikileaks, extremamente seletivos e cuidadosos na abordagem
de todo e qualquer assunto com seus parceiros ou interlocutores oficiais americanos.
Poucos se mostrarão dispostos a falar sinceramente de seus assuntos correntes, e menos
ainda serão aqueles dispostos a falar sinceramente sobre os temas de suas agendas
respectivas, ou menos fazer comentários jocosos sobre colegas ou conhecidos, sem
mencionar que pequenos e grandes segredos, hipócritas ou não, serão deixados
convenientemente de lado, pois ninguém está disposto a correr o risco de ver
estampadas na imprensa esses comentários picantes ou sinceros sobre os temas da
conversa. Somente aflorarão amenidades e banalidades, sobretudo no que se refere às
análises e opiniões sobre governos amigos e menos amigos. Como, por exemplo, dizer
que tal candidato a caudilho de algum país vizinho é histriônico, patético ou
francamente antidemocrático, quando isso pode afetar as relações bilaterais do Brasil –
ou mais importantes, negócios de grandes companhias brasileiras – com esse país,
oficialmente aliado ou até “parceiro estratégico” do governo em vigor? Todo mundo vai
ser amigo, até prova em contrário.
É previsível, assim, até esperado, que as relações normalmente “desconfiadas”
entre o grande líder hemisférico e global e o grande candidato a líder regional se tornem
ainda mais “desconfiadas” a partir de agora, com uma “contenção” acima do normal nos
diálogos formais e nas conversas de coquetel entre representantes dos dois lados. Todos
vão se olhar desconfiados e o mais previsível que ocorra são variações deste tipo: os
brasileiros se recusarão a expressar suas opiniões pessoais, e até certas visões oficiais,
sobre os temas na pauta da conversa, temerosos de revelações indevidas, e os
americanos redatores de expedientes se conterão em expressar suas opiniões, além e
acima da transcrição dessas conversas aborrecidas, deixando de lado, justamente, o lado
192
bom – e talvez até o mau e o feio – desses expedientes, que seria o acréscimos de suas
percepções pessoais sobre o tema e os interlocutores em pauta.
Desconheço se alguma instrução do gênero “não falem mais nada com esses
americanos trapalhões” tenha sido expedida, ou feita em caráter não oficial a todos os
interlocutores potenciais dos representantes do império no Brasil, mas suspeito que,
sponte sua, os “visados” brasileiros passaram a ser muito mais seletivos nos seus
encontros formais e informais, abertos e confidenciais, com esses representantes, e
muito mais comedidos na expressão livre de suas opiniões – além e acima da versão
oficial, geralmente inútil – sobre os temas das relações bilaterais e assuntos paralelos.
Entre os diplomatas a contenção já era de rigor, pois são seres normalmente recatadas,
discretos, quase repetitivos – tipo “la voix de son maître”, ou “hora do Brasil” – que se
limitam a expressar a versão oficial, mesmo quando não acreditam nela, de qualquer
assunto. Os demais interlocutores, da vida “civil”, deixarão de receber com o mesmo
encanto os convites do embaixador americano para jantares e recepções, ou, se
continuarem a aceitar, vão se tornar aborrecidamente anódinos em seus comentários,
lembrando-se, justamente, das desventuras de algum colega flagrado pelo Wikileaks em
alguma frase menos politicamente correta, digamos assim. Ou seja, as conversas daqui
para a frente vão se tornar aborrecidamente dormitivas, sem as emoções da fase pré-
Wikileaks.

Wikileaks-Brasil: um impacto negativo, mas limitado


O impacto da revelação dos documentos, tanto quanto se possa julgar pelo que
já foi liberado, pode ser considerado como diplomaticamente negativo, embora o
impacto global, no conjunto do relacionamento, seja limitado, já que algumas
comunicações poderiam ter um efeito ainda mais desestabilizador nas relações
bilaterais. Isto se deve a que a interface diplomática não abriga nenhum grande assunto
muito sensível.
O Brasil, com exceção da venda de aviões militares, não possui, a rigor, nenhum
grande tema de interesse bilateral que se situe num nível de segurança e de importância
estratégica com os EUA que poderia ter sido impactado por alguma revelação mais
contundente a partir dessas “fugas Wikileaks”. Todo e qualquer expediente confidencial
é concebido para permanecer confidencial durante um tempo adequado, pois o tema
representa, supostamente, informações não exatamente sensíveis, mas importantes, ao
revelarem percepções e tratamento de determinados assuntos que são melhor
193
conduzidos se o processo que conduz à tomada de decisão não for exposto de modo
claro. Esta é uma lógica do tratamento burocrático das informações e decisões em
qualquer governo que merece e deve ser respeitada.
Todo e qualquer governo é formado por pessoas que possuem diferentes
percepções a respeito de um problema qualquer, que é objeto de tratamento oficial e que
será formalizado numa decisão qualquer mais adiante, com uma única versão, a oficial,
sendo apresentada como homogênea, consensual, etc. Ora, é evidente que o processo
que levou a tal decisão é obviamente contraditório, até desgastante, e os interesses da
outra parte – no caso, os EUA e sua interface com o Brasil – podem estar sendo
contemplados com maior ou menor grau de “aderência”. Ao desvendar os bastidores
desse processo, o Wikileaks revela as contradições inerentes a todo e qualquer processo
governamental, como opiniões pró e antiamericanas, para simplificar uma questão bem
mais complexa.
Tomemos, como exemplo, o caso mais importante, justamente, o da venda de
aviões militares. Além e acima de aspectos mais nebulosos ou até corriqueiros do
assunto – preparação dos relatórios técnicos a respeito dos aviões concorrentes,
questões técnicas, de desempenho tático ou operacional, ou, mais importante ainda,
transferência de tecnologia e custo total, direto e indireto, de toda a operação –, existem
aspectos propriamente políticos – e até “ideológicos” – envolvidos numa operação
gigantesca como essa, que podem afetar, decisivamente, todo o curso do negócio. Ora,
que o governo brasileiro seja mais ou menos antiamericano, que “ decisores decisivos”
sejam mais influenciados pela percepção que eles tenham dos EUA – de sua política
“imperial”, de seu papel na região, da “subordinação estratégica” e da “dependência” do
Brasil, ou qualquer outro aspecto desse gênero –, tudo isso é relevante,
independentemente do mérito próprio das ofertas, de sua qualidade técnica ou de seu
custo financeiro estrito senso. O governo americano pode estar se movimentando, além
e à margem dos encontros oficiais, para lograr obter vitória na oferta de suas empresas,
o que é normal e esperado de qualquer governo que defende o interesse de sua
economia – e até de seu planejamento de segurança estratégica – em negócios desse
tipo. Os governos francês e sueco – e outros, antes deles – também fazem e devem
continuar fazendo exatamente o mesmo, com maior ou menor sucesso, justamente, em
função do ativismo de seus diplomatas e representantes oficiais envolvidos no negócio.
Nada do que disserem americanos e brasileiros em torno desse assunto pode ser
considerado irrelevante ou supérfluo num negócio de tal magnitude; nada do que se
194
puder fazer para “influenciar” os decisores corretos, pró-americanos entenda-se, é
indiferente ao sucesso da empreitada e a seu resultado final.
Este é apenas um exemplo, entre outros, de temas importantes que podem ser,
como talvez já estejam sendo, afetados pelo Wikileaks, com imenso prejuízo para os
EUA e seus interlocutores e aliados – e até seus “inimigos” – no Brasil. Outros temas
relevantes são os das relações do Brasil com seus vizinhos imediatos, em especial
aqueles que possam ser julgados excessivamente “inimigos” dos interesses do império,
ou até amigos voluntários do próprio, na medida em que conversas reservadas,
interesses ocultos e posicionamentos internos de chancelarias podem afetar, para o bem
e para o mal, relações diplomáticas normais ou até a condução de negócios específicos.
Enfim, todo e qualquer tema de chancelaria, de governo num sentido amplo, e até
negócios privados, da sociedade civil, podem ser beneficiados ou prejudicados por
revelações inesperadas, algumas até “bem-vindas”, outras absolutamente prejudiciais
para o curso ulterior dos assuntos.
Mas estas são observações genéricas, até teóricas, sobre o caso Wikileaks nas
relações Brasil-Argentina. Um exame mais detalhado do conteúdo de todas as
mensagens reveladas até aqui, sua correta interpretação no contexto das relações
bilaterais, e sua inserção no quadro mais amplo dos interesses brasileiros e americanos –
cada um de seu lado – em todas as esferas de interesse relevante, até com terceiras
partes, poderia trazer um cenário e uma análise mais corretos sobre o papel e a
importância real do Wikileaks para essas relações. Como julgamento genérico e
superficial do assunto, eu diria que nenhum interesse essencial nesse plano bilateral foi
afetado pelas revelações e – desconfortos pessoais não obstante e à parte – as relações
não devem ser afetadas significativamente agora e no futuro imediato. Todos os
assuntos são corriqueiros e todos os preconceitos e peculiaridades das relações foram
revelados, por vezes de modo canhestro e desconfortável, e até confirmados pelo
Wikileaks. Não creio que exista qualquer “potencial explosivo” nessas revelações.
Concluindo, eu reafirmaria um julgamento anterior já feito sobre todo este
assunto: o Wikileaks representa um tesouro para os jornalistas, uma tragédia para a
diplomacia americana e algumas “trouvailles” temporariamente interessantes para os
historiadores da área, que serão, no entanto, “penalizados” mais adiante, dado que as
fontes vão “secar” de modo perceptível.
A vida segue adiante, com ou sem Wikileaks...

195
2295. “Wikileaks-Brasil: qual o impacto real da revelação dos documentos?”, Brasília,
11 agosto 2011, 10 p. Novos comentários sobre o sentido das revelações e seu
impacto nas relações bilaterais. Publicado em Mundorama (12/08/2011; link:
http://mundorama.net/2011/08/12/wikileaks-brasil-qual-o-impacto-real-da-
revelacao-dos-documentos-por-paulo-roberto-de-almeida/). Relação de Publicados
n. 1042bis.

196
24. Digressões contrarianistas sobre o desarmamento nuclear

Destaco duas frases, apenas, do discurso da presidente, na reunião de alto nível


da ONU sobre Segurança Nuclear, em 22/09/2011:
“O desarmamento nuclear é fundamental para a segurança, pilar do Tratado
de Não Proliferação cuja observância as potências devem ao mundo”.
“É importante ter num horizonte previsível a eliminação completa e
irreversível das armas nucleares”.

Confirmando minha vocação a ser um contrarianista – posição que assumo


voluntariamente, de conformidade com meu espírito desconfiado, feito de ceticismo
sadio em relação a quaisquer argumentos que se me apresentem como verdades
incontestáveis – formulo aqui algumas dúvidas em relação a estas frases.
Por que o desarmamento nuclear seria fundamental para a segurança
internacional?
Ele é, de fato, o “pilar do Tratado de Não Proliferação”?

Respondo de imediato a esta segunda questão por um sonoro NÃO.


Não, o desarmamento nuclear não é o, ou sequer um pilar, do TNP, ainda que
possa nele aparecer de forma preeminente. Nem de longe, contudo, ele é o que diz que
197
pretende ser, e basta conhecer um pouco da história, das realidades geopolíticas, para
chegar à conclusão simplória de que a frase fatídica, sobre o desarmamento dos
nuclearmente armados, figura ali apenas como figuração, justamente, para contentar os
ingênuos, ou incautos, e impedir que eles protestassem em demasia contra um “tratado
iníquo e discriminatório”, como proclamava a diplomacia brasileira nos “bons velhos
tempos” (isto é, quando posávamos de “machos”, de contrarianistas, se ouso dizer,
contra a hipocrisia dos poderosos, quando a gente acreditava que eles queriam “congelar
o poder mundial”, no que aliás continuamos acreditando ainda hoje, nessa interminável
repetição de slogans).

O pilar do TNP é a não-proliferação, ou seja, barreiras contra o armamentismo


nuclear dos ainda não nucleares, ponto. Isso é tudo.

Os três grandes – na ausência de dois outros nucleares à época, China e França –


arranjaram entre si um instrumento para bloquear o acesso às armas nucleares aos
eventualmente desejosos de fazê-lo, prometeram cooperação nuclear para fins pacíficos
– o que é feito a conta-gotas, e sob estritas condições – e ofereceram como cenoura o tal
de desarmamento nuclear deles próprios.
Alguém acredita nisso?
Pode ser que sim, talvez o Itamaraty, que vive cobrando essa parte do Tratado
desde que a ele aderiu em meados dos anos 1990.
Alguém acredita que seria possível colocar o gênio dentro da garrafa outra vez?
Que as potências nucleares vão de fato desarmar?
Isso é possível? Respondo novamente por um sonoro não.
Ninguém consegue “desinventar” uma tecnologia. Ninguém se priva de uma
segurança que foi conquistada a duras penas, e que se busca justamente manter
exclusiva, única, assimétrica.
O TNP é apenas um tratado do desarmamento nuclear dos outros, ponto.

Venho agora à pergunta mais importante:


Seria verdade que o desarmamento nuclear é fundamental para a segurança
internacional?

198
Não creio que a presidente tenha formulado ela mesma esse argumento. Ela
simplesmente o comprou do Itamaraty, que colocou tal frase no discurso porque isso faz
parte da ideologia diplomática, ou das ilusões diplomáticas -- não apenas brasileiras,
diga-se de passagem -- nos últimos 50 anos, ou mesmo mais.
Alguém já parou para pensar – e nesse processo desmantelou algumas ilusões
diplomáticas – de que pode ser exatamente o contrário: que as armas nucleares
aumentaram a segurança mundial, e evitaram muitas mortes que de outra forma seriam
inevitáveis?
Pensem um pouco – enfim, apenas os que desejarem realmente pensar – e
perguntem comigo:
Se não existissem armas nucleares, o que existiria?
Provavelmente as mesmas armas que tínhamos ao final da Segunda Guerra
Mundial, um pouco (ou bastante) mais aperfeiçoadas: tanques, canhões, bombardeiros,
granadas, minas, mísseis, lança-chamas, fuzis, baionetas, estilingues, etc., etc., etc.
Ou seja, nada que pudesse deter um dirigente maluco de deslanchar uma guerra
contra um outro país, na medida em que se tratavam de “armas normais”, de tecnologias
dominadas e, com exceção de um ou outro componente mais aperfeiçoado (fortalezas
voadoras, por exemplo, ou mísseis de longo alcance), tudo poderia ser mobilizado por
qualquer país que tivesse uma base industrial medianamente desenvolvida.
Afinal de contas, Hitler deslanchou sua guerra em duas frentes com base nesses
mesmos meios, ainda que desejasse, rapidamente, dispor de mísseis mais poderosos e
que seus cientistas apostassem, furiosamente, no domínio da tecnologia nuclear, já
teoricamente disponível em sua época.
Sorte nossa que ele não conseguiu, pois imaginem vocês se Hitler tivesse
submetido a Grã-Bretanha, neutralizado os EUA, destruído a Rússia de Stálin, e se
estabelecido como o grande ditador de todos os tempos, um Gengis Khan moderno, com
a colaboração acintosa de tiranetes como Mussolini e os fascistas-militaristas japoneses,
no trabalho de escravizar povos inteiros e colocá-los a serviço da Alemanha nazista?
Que tal a perspectiva?
Alguém iria conseguir um tratado de desarmamento contra Hitler, depois?

Se eu disser, por exemplo, que as duas bombas atômicas americanas sobre o


Japão, em agosto de 1945, salvaram vidas, em lugar de aumentar o número de mortos,
serei provavelmente “massacrado”, literal ou virtualmente, pelas consciências puras do
199
desarmamentismo nuclear. Não me importa: isto é um fato. As bombas nucleares, por
mais horríveis que possam ter sido, salvaram milhares de vidas A MAIS do que as que
pereceram no “holocausto” de Hiroshima e Nagasaki. Salvaram centenas de milhares de
soldados e civis japoneses, nas frentes de combate e nos bombardeios aéreos
devastadores sobre Tóquio e outras cidades japoneses, e salvaram dezenas de milhares
de soldados americanos, que teriam de lutar na ponta da baioneta contra soldados
fanatizados, que tinham jurado dar a vida pelo Imperador. Elas salvaram vidas, ponto!

Mas, retornemos à questão principal. Em que sentido o desarmamento nuclear


tornaria o mundo mais inseguro, não mais seguro?
Ora, isso é evidente pelo próprio fato de que o mundo não deixou de ter guerras
depois que as armas nucleares foram inventadas: morreram milhões de pessoas desde
1945, vítimas de minas, de artilharia, de bombardeios aéreos, de napalm, de fuzis, de
facões, de fome, ou de quaisquer outros vetores associados às guerras (civis, étnicas,
tribais, religiosas, entre Estados, atentados terroristas, etc.).
O que o mundo deixou de ter, depois de 1945, foram guerras globais, ao estilo
napoleônico, mobilizando exércitos nacionais e populações inteiras contra outros
exércitos nacionais e outras populações. Ou se ocorreram, foram limitadas, como na
Coreia, no Vietnã, no Oriente Médio, sem a confrontação direta das grandes potências,
como tivemos na Europa e no mundo desde o Renascimento até 1945, justamente.
Não pretendo elaborar muito a respeito, mas minhas conclusões são tão
evidentes, que não creio ser necessário desenvolver meu raciocínio: as armas nucleares
trouxeram mais segurança ao mundo, e pouparam vidas, ponto.
Algum matemático historiador, ou algum econometrista geopolítico poderia até
fazer os cálculos e, com base em estimativas feitas a partir dos grandes conflitos globais
desde a era napoleônica até 1945, avaliar quantos teriam sido os mortos – inocentes ou
não – que pereceriam, potencialmente, em mais uma ou duas guerras ao estilo da
Segunda Guerra Mundial, sem o recursos às armas nucleares, portanto. Não creio,
sinceramente, que teríamos ficado a menos de 50 ou 60 milhões de mortos (por baixo,
claro).
Enfim, nem todo mundo precisa de armas nucleares para exterminar pessoas.
Mao Tsé-tung, por exemplo, não utilizou arma nenhuma, apenas uma “economia
política esquizofrênica”, para eliminar 25 ou 30 milhões de chineses no “grande salto
para a frente”, entre 1959 e 1962. Enfim, ele também foi o responsável por mais
200
algumas dezenas, talvez centenas de milhares, durante a “grande revolução cultural
proletária”, entre 1965 e 1975, mas pode-se sempre argumentar que muitos mais
morreram nos “gulags” normais de Stalin e do próprio Mao, ao longo de seus
experimentos totalitários.
Mas imaginemos dirigentes menos responsáveis na posse de armas nucleares em
face de confrontos entre grandes Estados? O próprio Mao Tsé-tung, por acaso, dizia não
temer as armas nucleares americanas hipoteticamente utilizáveis na guerra da Coreia,
demonstrando todo o seu espírito belicoso mais de dez anos antes que a China
conquistasse o seu próprio domínio sobre armas nucleares (após o que ela se mostrou
mais responsável, mesmo sem ter assinado o TNP, até o início dos anos 1990). Os
dirigentes cubanos, igualmente irresponsáveis, estavam dispostos a ir até o fim, no
confronto nuclear entre EUA e URSS no caso dos mísseis nucleares soviéticos
instalados em Cuba em 1962: Fidel Castro e Ché Guevara estavam dispostos a “testar”
armas nucleares contra New York e Washington, mesmo se isso representasse a
aniquilação de metade, ou mais, da população cubana (Guevara acreditava que isso
representaria o “fim do capitalismo e do imperialismo americano”).

Qualquer que seja a perspectiva que se assuma sobre as armas nucleares,


portanto, pode-se dizer que elas refrearam, sim, os instintos guerreiros de muitos
dirigentes políticos. Pode até ser que alguns militares malucos acreditem que “armas
nucleares táticas” sejam armas de terreno, e possam, assim, ser integradas a doutrinas e
estratégias militares. Não creio, porém, que estadistas responsáveis acreditem nesse tipo
de “doutrina” e estejam dispostos a “testá-la”.
Pode-se concluir, então, que as armas nucleares aumentaram, não diminuíram, a
segurança no mundo, e parece impossível reverter esse cenário de equilíbrio instável
(que aliás, confirma o prognóstico aroniano de 1947: “paz impossível, guerra
improvável”).
E quanto ao TNP? Não há muito a dizer: continuará a ser aquilo que a
diplomacia brasileira diz sobre ele desde 1968: “um tratado iníquo e discriminatório”,
ponto. Não há muito que se possa fazer a respeito, no futuro previsível.

Resta, finalmente, esta outra afirmação, com estes mesmos conceitos:


“É importante ter num horizonte previsível a eliminação completa e irreversível
das armas nucleares.”
201
Será? Importante? Talvez. Necessário? Duvidoso. Completa e irreversível?
Provavelmente não, nem completa, nem irreversível.
Frustrante? Talvez. Realista? Provavelmente.
Acho que as coisas ficam mais claras assim.

2320. “Digressões contrarianistas sobre o desarmamento nuclear”, Brasília, 25 setembro


2011, 6 p. Comentários sobre duas frases da presidente Dilma Roussef (na verdade
do Itamaraty), sobre desarmamento nuclear, em reunião de alto nível da ONU sobre
Segurança Nuclear, em 22/09/2011. Postado no blog Diplomatizzando
(http://diplomatizzando.blogspot.com/2011/09/frases-da-semana-1-desarmamento-
nuclear.html); Mundorama (27/09/2011; ISSN: 2175-2052; link:
http://mundorama.net/2011/09/27/digressoes-contrarianistas-sobre-o-
desarmamento-nuclear-por-paulo-roberto-de-almeida/). Relação de Publicados n.
1053.

202
25. Um congresso de Viena para o século 21?

El mundo fue y será una porquería


ya lo se.
En el quinientos seis
y en el dos mil también.
(...)
Pero que el siglo veinte
es un despliegue
de maldad insolente,
ya no hay quien lo niegue.
Tango Cambalache, letra de Enrique Santos Discépolo (1934)

Um dos mais famosos tangos da história musical da Argentina foi escrito em


plena “década infame”, quando tem início a decadência daquele país, agravada depois
pelo peronismo, que aliás liberou a música, antes proibida, por sua letra ser justamente
percebida como uma crítica feroz à situação anterior (para a letra completa, de ácido
teor, ver o link: http://www.musica.com/letras.asp?letra=974519). Em todo caso, o que
Discépolo pensava do século 20, então recém ingressado em sua quarta década, parece
aplicar-se igualmente, e talvez até com mais razão, ao século 21, recém entrado em sua
segunda década: até aqui, foi um desabrochar de maldades insolentes, ninguém pode
negar; em certos países “resulta que es lo mismo, ser derecho que traidor”. Onde foi
parar aquela nova ordem mundial, defendida ou prometida por Bush pai, em 1991?

203
Estaríamos, por acaso, necessitados, tanto quanto a Europa do final das guerras
napoleônicas, de uma réplica do congresso de Viena, apto a reorganizar, num grande
concerto de nações, as bases de uma nova ordem mundial? Seria isso possível? Essa
pergunta me veio à mente ao ler o mais recente livro de Henry Kissinger, World Order
(New York: Penguin Press, 2014), que não coloca exatamente a questão, mas a engloba
numa grande reflexão histórica, que começa, na verdade, pelo reordenamento da paz de
Westfália. Esta, como ele indica acertadamente, não foi uma única conferência, mas um
complexo processo negociador, com acordos separados em duas diferentes cidades.
Todos os estudiosos das relações internacionais e da história diplomática
contemporânea sabem que Mister Kissinger estaria em excelente companhia, e ficaria
extremamente satisfeito, se pudesse ser tele-transportado numa máquina do tempo para
a Viena de 1815, para poder assessorar, ao mesmo tempo, Metternich e Castlereagh. Até
mesmo Talleyrand, ministro de Luís XVIII, vindo do Ancien régime aristocrático,
convertido em aliado da revolução, ministro do Império, sobrevivente na Restauração e
finalmente servidor da monarchie de Juillet, poderia receber seus conselhos de longevo
servidor de vários governos, tanto quanto o francês. Talvez seja maldade deste
articulista, mas tendo lido a admiração sincera com que Kissinger completou sua tese de
doutorado em torno dos dois primeiros estadistas, depois publicada como A World
Restored: Metternich, Castlereagh and the Problems of Peace, 1812-22 (1954), dá para
imaginar o entusiasmo com o qual ele se movimentaria apressadamente atrás de cada
uma das três delegações, para assoprar, aos ouvidos dos seus chefes respectivos, suas
sugestões sobre como organizar a melhor balança de poder possível, suscetível de
contemplar os interesses das grandes potências daquela época, e apenas os delas.
O mesmo sentido profundo da História transparece nesse seu último livro (no
sentido cronológico, apenas), intitulado simplesmente World Order, sem qualquer
subtítulo. Poucos autores na categoria das ciências humanas ousariam desafiar as
normas editoriais americanas e publicar um volume de 400 páginas, com apenas duas
palavras no seu título, o que aliás já tinha sido o caso de On China (2011), seu livro
sobre o grande contendor do novo jogo geopolítico mundial. Os dois últimos livros, e o
primeiro, nos trazem o melhor Kissinger, o pensador, o historiador, mais do que o
estrategista do equilíbrio do terror nuclear, o memorialista dos anos de Casa Branca, ou
o consultor caríssimo de governos estrangeiros, o homem que ganhou um prêmio Nobel
por razões imerecidas, e que provavelmente merece mais distinções acadêmicas por seu
trabalho intelectual do que propriamente pelas suas realizações a serviço de governos.
204
Kissinger parece o contrário de um Winston Churchill, que ganhou um prêmio
Nobel por seu trabalho como historiador (tarefa que ele desempenhou em seu próprio
benefício, obviamente), quando merecia o prêmio por ter salvo a civilização ocidental
do assalto horrífico dos bárbaros nazifascistas, e ousado resistir, ao custo de “sangue,
suor e lágrimas”, quando muitos recomendavam um pacto com o diabo em pessoa (isto
é, Hitler). Kissinger talvez merecesse um prêmio literário por sua obra acadêmica, em
especial os três livros citados, e mais Diplomacy (1994), uma vez que ele passou o seu
tempo de estrategista tentando justamente fazer pactos com os diabos (Brejnev, Mao),
como fazem, por sinal, os estadistas das grandes potências quando a ocasião lhes é dada.
Talvez nem o júri do Nobel literário concordasse com esse tipo de galardão, uma vez
que mesmo seus livros de caráter histórico estão igualmente contaminados por certa
visão do mundo – do tipo “eu sei, eu fiz, eu estava lá” – que tende a impregnar as suas
sugestões de uma “boa ordem mundial” como a única possível nas circunstâncias dadas
(este é um viés a que nem mesmo Churchill escapou, seja em sua história da Segunda
Guerra, ou na sua precedente história dos povos de língua inglesa).
O problema com Mister Kissinger é que ele teria gostado de um mundo mais
“vienense” do que o que temos atualmente, já que se trata de uma “ordem mundial” que
não é propriamente uma ordem, nem é universal, como ele mesmo reconhece no livro
homônimo. O mundo parece se estilhaçar, não em novas conflagrações globais, mas em
rivalidades hegemônicas, em proxy wars, com vilões proliferadores protegidos por uma
ou outra das grandes potências, com desafios vindos de atores não estatais, alguns até se
pretendendo califados expansionistas, ou mesmo com bravatas anti-imperialistas de
líderes de pacotilha, num estilo parecido ao de certos fascistas do entre-guerras.
Tudo isso é real, e já está acontecendo, um pouco em vários cantos do planeta,
inclusive numa Europa que já reproduziu, em pleno século 20, uma segunda “guerra de
trinta anos”, uma repetição, em larga escala, dos terríveis conflitos que deram a partida,
no século 17, à ordem westfaliana que ainda constitui o horizonte insuperável de nossa
época, e pela qual tem início, justamente, World Order. Na impossibilidade de se chegar
a novos acordos westfalianos – que, de resto, já estão incorporados na Carta da ONU –
talvez Kissinger sonhe com novo Congresso de Viena, capaz de estabelecer as bases da
nova “ordem mundial” que ele deve intimamente desejar. Talvez ele até se dispusesse a
assessorar um ou outro soberano dos novos tempos, com conselhos sempre sensatos
sobre como melhor organizar uma balança de poder entre as grandes potências, como
fizeram os estadistas de dois séculos atrás.
205
Seria isto possível? Levaria um congresso do mesmo estilo a resultados efetivos
e duráveis? Provavelmente não, pois faltaria a tal arranjo fundacional aquilo que existiu
em cada reorganização anterior da ordem mundial: uma contestação radical da ordem
anterior, com uma alteração fundamental das relações de força entre as grandes
potências, e um reordenamento baseado no novo equilíbrio de poder. Westfália veio
depois da “guerra de trinta anos”; Viena veio após as guerras napoleônicas; Versalhes e
a Liga das Nações sucederam à Grande Guerra; Ialta e Potsdam, em 1945, prepararam
São Francisco, que foi quase uma formalidade, depois que certas questões já estavam
acertadas em Teerã (1943), em Dumbarton Oaks (1944) e naqueles dois encontros
decisivos. Mas não é apenas pela falta de uma grande conflagração global que um novo
congresso de Viena – que obviamente não seria em Viena – se revela impossível em
nossos dias. O que falta, na verdade, seria uma espécie de entendimento prévio sobre o
que discutir e o que se buscar. “Na construção de uma ordem mundial”, diz Kissinger
no capítulo final de seu livro, “uma questão chave refere-se inevitavelmente à
substância de seus princípios unificadores”, mas, acrescenta ele imediatamente após,
“nos quais reside uma distinção fundamental entre as abordagens ocidentais e não
ocidentais a essa ordem” (p. 363). A distinção não é obviamente geográfica tão
simplesmente, mas fundamentalmente política e de valores.
A dificuldade, portanto, não resulta de um simples problema de agenda, ou seja,
da falta de uma ordem do dia consensual, uma lista de questões sobre a base das quais
discutir um novo arranjo global num formato similar ou equivalente àquele de 1815.
Mister Kissinger acredita que a carência de uma ordem mundial para o século 21 pode
ser explicada por aspectos, ou dimensões, que diferem da ordem precedente. Primeiro, a
natureza do estado, em si – a unidade básica da vida internacional – que tem sido
submetida à uma variedade de pressões desagregadoras (seja por falta de uma soberania
efetiva, como no caso da UE, seja pela sua contestação por novos “senhores da guerra”),
quando não se cai na falta de governança tout court, em estados falidos, ou territórios
inteiros sem governo. Depois, uma descoordenação entre as organizações econômicas e
políticas internacionais, as primeiras acompanhando o processo de globalização, mas as
segundas ainda baseadas no estado-nação. Finalmente, a falta de um mecanismo de
consulta e cooperação entre as grandes potências “on the most consequential issues” (p.
370). Aqui já estamos em face de cenas explícitas de kissingerianismo geopolítico:
todas as instâncias existentes – CSNU, Otan, Apec, G-7 ou G-8, G-20 – lhe parecem

206
carentes de maior foco, pois os chefes de governo ali presentes estão mais preocupados
com o seu público interno, e com o comunicado final, do que com problemas concretos.
Pode ser isso, ou também pode ser que o mundo de Viena já não tem mais
condições de existir: ele era a expressão de um arranjo westfaliano entre potências
europeias, ou seja cristãs, numa época em que a Europa dominava o mundo, o que ela
fez durante praticamente cinco séculos, o último junto com os Estados Unidos, mas já
contestados pelas novas potências emergentes. A própria Alemanha tinha desafiado as
bases da ordem europeia e internacional no arranjo precedente, por ter chegado tarde,
bem depois da Prússia, na mesa de negociações e nas conquistas imperiais subsequentes
(ainda que ela se tenha talhado alguns pedaços na Ásia e na África). Foi justamente o
seu desejo de redistribuir as cartas do jogo que provocou uma nova guerra de trinta anos
e a derrocada definitiva da hegemonia europeia sobre os assuntos do mundo.
A China provavelmente não tem nenhuma pretensão de ser uma nova Alemanha
nas condições do século 21, nem a Rússia tem capacidade para aspirar a tal papel, muito
embora ela ainda talvez gostasse de poder determinar o que podem e, sobretudo, o que
não podem fazer as antigas satrapias do império soviético. O problema, na verdade, não
é só de ordem geopolítica, mas também de valores e de concepções do mundo. Não se
pode ser um Metternich – como talvez gostasse Kissinger – se não se tem do outro lado,
como interlocutores afinados nesse tipo de jogo, estadistas como Castlereagh ou mesmo
Talleyrand. Aparentemente, nem Xi Jin-ping nem Putin se dispõem a amoldar-se em
papeis equivalentes aos de Hardenberg ou de Nesselrode, os representantes respectivos
da Prússia e da Rússia imperiais em Viena. O que se buscava, na capital do Império dos
Habsburgos, era um arranjo europeu, no máximo alcançando a periferia mais próxima, a
do Império Otomano e suas dependências balcânicas. Os arranjos que se fizeram com os
impérios ibéricos e suas possessões coloniais o foram por causa da herança napoleônica,
não porque as grandes potências estivessem tentando traçar um esquema equivalente a
Tordesilhas, ou seja, uma primeira divisão do mundo que só seria tentada novamente
em Ialta, quase cinco séculos mais tarde.
Kissinger talvez gostasse que Estados Unidos e China chegassem a um acordo
básico sobre as relações recíprocas, e foi em grande medida em vista desse objetivo que
ele escreveu On China, uma obra particularmente compreensiva e leniente para com as
lideranças chinesas. Da Guerra Fria política dos tempos de Stalin à nova Guerra Fria
econômica dos nossos dias, o mundo mudou perceptivelmente em termos de atores e de
interesses nacionais projetados internacionalmente. Viena-1815 nunca foi um encontro
207
filosófico entre potências cristãs interessadas primariamente no bem estar de seus
respectivos povos: o que estava em jogo ali era apenas o equilíbrio de poderes para
evitar uma nova conflagração global. Westfália se revelou mais durável porque tratou
basicamente de procedimentos, não de substância, como ele diz em outra parte do livro.
Esse objetivo, hoje em dia, está na prática assegurado pela detenção dos arsenais
atômicos, o que restringe a subida aos extremos por parte de qualquer uma das grandes
potências nucleares. Mas uma Viena do século 21 não poderia mais eludir os avanços
registrados em matéria de direito internacional, de democracia e de direitos humanos.
Tais dimensões, aparentemente, só seriam hoje defendidos pelos Estados Unidos, e se
dependesse de Mister Kissinger talvez nem isso. Tais critérios certamente não fariam
parte da agenda das outras grandes potências. Ah, sim, ainda tem a Europa, se ela é
verdadeiramente um membro dessa pequena tribo, na vertente democrática; Kissinger,
nos seus velhos tempos de guardião da paz no mundo, se perguntava: “se eu quiser falar
com a Europa, eu telefono para quem?” Parece que o problema continua o mesmo.
O que dizer, então, das chamadas “potências emergentes”? A julgar pelas
tomadas de posição de algumas delas, em suas próprias esferas regionais, talvez não se
possa contar tampouco com elas para algum arranjo nouvelle manière, seja no formato
Viena 2.0, seja uma reforma do sistema onusiano, esse dinossauro que também ostenta
um cérebro totalmente desproporcional em relação ao seu imenso corpo. Em resumo,
vamos esquecer essa história de um novo arranjo diplomático para a tal “ordem mundial
do século 21”, e nos concentrarmos em tarefas mais prosaicas de administração da
governança econômica e da defesa dos direitos humanos e da democracia onde isso for
possível. O mundo ainda é bem mais hobbesiano do que grociano, e certos dirigentes
atuais estão bem mais para Átila ou Gengis-Khan do que para Locke ou Montesquieu.
O progresso pode até ser uma fatalidade, como queria Mário de Andrade, alguns
anos antes do milonguero argentino desconfiar de qualquer avanço, mas talvez seja
porque a história parece andar a um ritmo similar ao dos carros de bois de antigamente.
Quando alguns mais apressadinhos tentaram forçar a passagem em marcha acelerada,
não deixaram de ocorrer acidentes de percurso, como descobriu, para sua infelicidade, o
último xá da Pérsia. O próprio Kissinger confessa, ao final do seu livro (p. 374), que
perdeu sua esperança de juventude de descobrir o “sentido da História”. Provavelmente,
ele não existe, pelo menos não no sentido hegeliano-marxista. Quanto ao seu ritmo,
talvez caiba se contentar com o de certas partituras: vivace, ma non troppo! Em todo
caso, poderíamos repetir com Discépolo: “Todo es igual, nada es mejor…”.
208
Recomendação de leitura:
Peter W. Dickson: Kissinger and the Meaning of History (Cambridge University Press,
1978). [Nota: o autor é um acadêmico formado em filosofia que trabalhou para a CIA, o
que revela quão eclética é essa agência de inteligência.]

2779. “Um congresso de Viena para o século 21?: Kissinger e o ‘sentido da História’”,
Hartford, 23 fevereiro 2015, 5 p. Digressões sobre a ordem mundial do século 21,
com referências aos livros de Henry Kissinger, em especial World Order. Revisto
em 6/03/2015, 6 p. Publicado sem o subtítulo em Mundorama (8/03/2015; link:
http://mundorama.net/2015/03/08/um-congresso-de-viena-para-o-seculo-21-por-
paulo-roberto-de-almeida/), republicado em Dom Total (12/03/2015; link:
http://domtotal.com/colunas/detalhes.php?artId=4903); divulgado no blog
Diplomatizzando (link: http://diplomatizzando.blogspot.com/2015/03/um-
congresso-de-viena-para-o-seculo-21.html). e novamente a partir do arquivo de
Dom Total (18/03/2015; link: http://diplomatizzando.blogspot.com/2015/03/um-
congresso-de-viena-para-o-seculo-21_18.html). Relação de Publicados n. 1166.

209
26. As ilusões perdidas do século 21

Les lllusions Perdues é um romance em três partes, de Honoré de Balzac, que


inaugura o seu grande painel da comédia humana, desde a França da Restauração até o
Segundo Império, passando pelas revoluções de 1830 e de 1848, com os experimentos
republicanos pelo meio. Toda a série é feita de dramas humanos e familiares, peripécias
e frustrações dos personagens, excessivamente otimistas a princípio, cujos projetos de
vida se esboroam ante os choques da realidade. O título talvez sirva também à comédia
mundial da atualidade, feita de “estados de alma” talvez tão complicados quanto aqueles
que abatiam o ânimo dos personagens balzaquianos. Repassemos o painel.
No momento da derrocada do socialismo real, ao iniciar-se a última década do
século passado, o então presidente George Bush (pai) chegou a saudar a abertura de
uma “nova ordem mundial”, sinalizando a chegada de uma nova era, que se esperava
livre dos contratempos da Guerra Fria, talvez mais aberta à cooperação entre os grandes
atores da política mundial. A China vinha aprofundando suas reformas de mercado
desde os anos 1980, quando Deng Xiao-ping tomou decididamente as rédeas do gigante
desmantelado economicamente depois de décadas de maoísmo delirante. Faltava só a
conversão do império soviético às regras das economias de mercado e das instituições
210
multilaterais da área: as de Bretton Woods e o Gatt, então solitário na negociação de
normas para o comércio em bases não discriminatórias. Salvo acidentes de percurso –
como o massacre de Tian An-mein, em 1989, ou a queda de Gorbachev, pouco mais de
um ano depois –, o processo parecia realmente se desenvolver conforme as predições do
teórico do “fim da História”, não tanto para confirmar o acabamento da própria, quanto
para anunciar o esgotamento das alternativas às democracias de mercado, modelo que
passou a ser o first best no campo das estruturas econômicas e dos regimes políticos.
Os anos Ieltsin à frente da Rússia, logo em seguida ao desaparecimento do
império soviético e do desmembramento de suas antigas satrapias da Ásia central e das
repúblicas da Europa oriental, prometiam perspectivas otimistas na coordenação de
objetivos políticos e econômicos. Tanto assim que a Rússia foi logo admitida no G-7,
que passou a se reunir como G-8 – embora o antigo formato continuasse a valer para os
temas econômico-financeiros das economias capitalistas avançadas – e em 2001 foi
reconhecida pelo mesmo grupo como sendo uma “economia de mercado”, a despeito de
não ter conduzido até então nenhuma reforma realmente compatível com os requisitos
do Gatt ou as normas da Ocde. Coincidentemente, naquele momento, a China conseguia
encerrar quase 15 anos de negociações difíceis com os membros do Gatt, justo a tempo
de ser admitida na OMC antes do início da Rodada Doha de negociações comerciais
multilaterais; mas ela não conseguiu, quase 15 anos depois, ser reconhecida como uma
economia de mercado, embora tenho ido bem mais longe do que a Rússia no processo
de reformas econômicas internas. A Rússia só foi admitida na OMC em 2012, mas
nunca cumpriu os requerimentos típicos de uma economia de mercado de fato, nem
parece preocupada em atender aos padrões normalmente seguidos na Ocde.
O que temos, então, um quarto de século depois do final oficial do socialismo
real e da integração das duas grandes economias socialistas à divisão internacional do
trabalho da terceira onda de globalização capitalista? Grandes frustações tanto no
campo econômico, quanto no domínio político, para dizer o mínimo, com alertas
constantes no terreno da segurança internacional – na Europa oriental e no Pacífico
asiático – e outras tantas decepções na contenção de alguns “estados vilões” – uns
proliferadores, outros patrocinadores de terroristas – como também na de novos atores
não-estatais que fragilizam ainda mais Estados já literalmente falidos. Os problemas de
segurança estão certamente entre as preocupações primordiais dos líderes ocidentais do
G-7 (que voltou à sua conformação original, depois da invasão da Crimeia pela Rússia),
começando pelo caso da Georgia e culminando pelo da Ucrânia. A nova Guerra Fria
211
comandada por Vladimir Putin se parece muito com os movimentos de Stalin nos
territórios de fronteira da Europa central e meridional e segue, grosso modo, as mesmas
táticas empregadas pelo ditador: surpresa, decepção, disfarce, desinformação, uso de
agentes no terreno dedicados ao controle dos sistemas operacionais do território visado,
tudo isso combinado à denegação constante das ações efetivamente conduzidas.
No que se refere à China, a grande parceira econômica de meio mundo, o que se
tem é uma integração oportunista aos circuitos da globalização capitalista, impulsionada
tanto pelas suas milhares de empresas voltadas para o comércio exterior, quanto guiada
pelos mandarins da autocracia comunista, que realizam a sua “acumulação primitiva” de
novas fontes de poder estratégico para cumprir os eternos objetivos do Império do
Meio: nunca mais voltar a ser humilhada por potências estrangeiras, como ocorreu
durante dois séculos de decadência imperial e várias décadas de guerra civil republicana
e de decadência econômica maoísta. Tanto nos terrenos comercial e cambial, ou de
propriedade intelectual e de licenciamento e controle de investimentos estrangeiros, a
China conduz uma estratégia de conflitos limitados, ou de atritos administrados,
buscando obter vantagens num processo que poderia ser descrito como de uma Guerra
Fria econômica.
Outros parceiros emergentes das grandes democracias de mercado, ainda que
formalmente democráticos, como Índia ou Brasil, tampouco parecem coadunar-se com
os objetivos ocidentais de coordenação econômica no sentido de uma maior abertura de
mercados e liberalização de investimentos, ou de assunção de novas responsabilidades
no controle de focos de instabilidade ou catástrofes humanitárias em diversas regiões do
planeta, entre elas a participação mais ativa na luta antiterrorista no plano internacional,
em níveis compatíveis com as pretensões a um maior papel no Conselho de Segurança.
No terreno estratégico, porém, a Índia parece ter alcançado elevado grau de confiança e
coordenação com os EUA, ao adotarem, ambos, uma “visão estratégica conjunta” para a
região da Ásia-Pacífico e do Oceano Índico, algo que parece fora de cogitação no caso
do Brasil, sob a administração partidária que comanda o poder político desde 2003.
O panorama em outras esferas não parece muito gratificante: há um retorno a
populismos de direita ou de esquerda em países periféricos ou até formalmente do
centro, persistência de crises fiscais ou do baixo crescimento no próprio coração das
economias avançadas e desarticulação de fato nas diversas instâncias de coordenação
política e econômica. Em alguns países da América Latina, é visível a deterioração do
ambiente econômico e político, como é o caso da Venezuela e da Argentina.
212
Em síntese, mesmo muito distantes dos états d’âme das femmes de trente ans
dos romances balzaquianos, mas a quase trinta anos desde o pontapé inicial do “fim da
história” e do começo da terceira onda da globalização capitalista, todas as nações mais
envolvidas nos circuitos econômicos, políticos e de segurança no plano internacional
têm, cada uma, seus motivos de frustações com o comportamento dos parceiros e com
os resultados de suas próprias ações. São as ilusões perdidas de um século que parecia
ter começado tão bem, e que começa a desandar numa série de conflitos menores e
outros atritos de baixa intensidade. Como há um século, tudo parecia ir bem, até que...

2762. “As ilusões perdidas do século 21”, Hartford, 2 fevereiro 2015, 3 p. Artigo de
comentários sobre a atualidade, destinado aos diversos periódicos aos quais ofereço
colaboração voluntária. Publicado no Boletim Mundorama (8/02/2015; link:
http://wp.me/p79nz-40a); republicado no Instituto Millenium (12/02/2015; link:
http://www.institutomillenium.org.br/artigos/iluses-perdidas-sculo-21/) e em Dom
Total (12/02/2015; link: https://domtotal.com/colunas/detalhes.php?artId=4839).
Relação de Publicados n. 1161.

213
Quinta Parte
Ideias, cultura, livros

215
27. A ideia do interesse nacional: onde estamos?

The Idea of National Interest é o título de um livro que o historiador americano


Charles Beard publicou em 1934, em plena crise econômica dos Estados Unidos e no
início do New Deal, programa de recuperação impulsionado pelo presidente Roosevelt.
O livro, porém, não é conjuntural; ele não trata exclusivamente da realidade imediata do
país, e sim faz uma reflexão histórica de longo prazo sobre a construção do projeto
nacional pela vertente das relações exteriores. O subtítulo do livro é An Analytical Study
in American Foreign Policy, e o primeiro capítulo trata dos “pivôs da diplomacia”,
analisando, nos demais capítulos, a expansão territorial da nação, o seu crescimento
econômico e comercial, ademais do impacto externo dos assuntos internos; o apêndice
traz um balanço dos interesses americanos no exterior (capitais e investimentos diretos),
embora a edição que consultei, publicada em 1966 por seu filho e por um assistente de
pesquisa, procedeu a alguns cortes nas estatísticas da edição original e fez atualizações
sobre os dados que Beard havia consolidado até o final dos anos 1920.

217
Beard foi o único acadêmico americano a ter exercido a presidência de duas
associações profissionais diferentes: a American Historical Association e a American
Political Science Association. Ele abre o seu livro citando um discurso do Secretário de
Estado Charles Hughes, que trabalhou sob os presidentes Harding e Coolidge na
primeira metade dos anos 1920, e que se pronunciou sobre o interesse nacional na
política externa nestes termos: “As políticas externas não são elaboradas sobre a base de
abstrações. Elas são o resultado de concepções práticas do interesse nacional que
emergem a partir de alguns requerimentos imediatos ou de fundamentos essenciais, em
perspectiva histórica. Quando mantidas por bastante tempo, essas concepções
expressam as esperanças e os temores, os objetivos de segurança e de engrandecimento,
que se tornaram dominantes na consciência nacional, transcendendo, assim, divisões
partidárias e fazendo com que se atenuem as oposições que poderiam advir de certos
grupos” (discurso na Filadélfia, em 30/11/1923). Beard analisa então todas as facetas do
interesse nacional americano em sua expressão diplomática e nas relações com o
ambiente doméstico, sobretudo em sua dimensão econômica.
É bem possível que seus argumentos, e o seu próprio livro, tenham inspirado o
célebre cientista político germano-americano Hans Morgenthau – autor do clássico
Politics Among Nations, publicado em 1948, o mesmo ano da morte de Charles Beard –
a elaborar um outro livro, chamado justamente In Defense of the National Interest
(1951), seguido, no ano seguinte, de um artigo sobre o mesmo tema: “What Is the
National Interest of the United States?” (The Annals of the American Academy of
Political and Social Science, vol. 282, jul. 1952, p. 1-7). Morgenthau também serviu
como consultor do Departamento de Estado no começo da Guerra Fria, quando um
diplomata, também célebre, George Kennan, dirigia ali a divisão de planejamento
político, o Policy Planning Staff, que trabalhou no Plano Marshall e na formulação das
principais medidas da então nascente doutrina da contenção. O próprio Kennan, aliás,
não cessava de alertar seus chefes quanto às fragilidades que poderiam emergir do ponto
de vista do interesse nacional americano a partir da erosão da posição competitiva dos
Estados Unidos no mundo e do aprofundamento dos déficits no balanço de pagamentos;
ele expressou suas preocupações, entre outros escritos, no livro Realities of American
Foreign Policy, publicado em 1954.
O livro de Morgenthau sobre o interesse nacional americano foi republicado em
1982, e talvez tenha animado o já então famoso jornalista Irving Kristol a dar início, em
1985, à revista The National Interest (http://nationalinterest.org/), apoiada nos mesmos
218
princípios da escola realista, que está identificada com a expressão política, econômica
e militar do poder americano em escala global, mas cujos fundamentos devem sempre
ser construídos internamente. Pode ser também que a mesma revista e sua ideia central
tenham inspirado o embaixador Rubens Barbosa a lançar, em 2008, a revista Interesse
Nacional (http://interessenacional.uol.com.br/), fundada em concepções similares sobre
as bases internas da expressão internacional do Brasil. Qual seria, então, o interesse
nacional brasileiro, e que tipo de políticas e orientações econômicas melhor serviriam à
sua defesa e consolidação? Difícil dizer, já que existem concepções muito diversas do
que seja o interesse nacional, como já dizia o próprio Beard em 1934.
O editor da revista brasileira se encarrega, aliás, de expressar tal dificuldade em
nota de apresentação: “Sendo necessariamente genérica, a noção de interesse nacional
não tem uma definição precisa. De um lado, porque, sobre o que seja concreta e
especificamente o interesse nacional, haverá sempre visões não coincidentes, apoiadas
em valores e/ou interesses diferentes. De outro, porque a definição do interesse nacional
requer um juízo informado, mas sempre político e não estritamente técnico, sobre riscos
e oportunidades que se apresentam à realização dos valores e interesses de um país em
cenários estratégicos de longo prazo. E estes serão, sempre, objeto de incerteza e
controvérsia” (ver: http://interessenacional.uol.com.br/index.php/sobre-a-revista/). Mas
o editorial acrescenta logo em seguida: “O interesse nacional é, pois, uma construção
política”, o que pode ser uma constatação óbvia, mas que não nos ajuda muito na busca
por uma definição mais precisa sobre qual seria o interesse nacional brasileiro.
Conceda-se, pois, que diferentes grupos políticos, e diferentes agregações de
poder, representados pelas forças políticas temporariamente predominantes no sistema
de governança, manifestem concepções diversas do chamado interesse nacional, e que
eles defendam, portanto, suas orientações particulares, ou setoriais, com base numa
legitimidade supostamente construída nas urnas, a cada escrutínio eleitoral. Esta é uma
suposição arriscada, e provavelmente falsa, pois os eleitores não possuem, geralmente,
no momento do voto, um grau suficiente de informação sobre os programas, ou sobre as
consequências de determinadas políticas do ponto de vista de seus interesses imediatos
e os de mais longo prazo, e menos ainda do ponto de vista dos interesses da nação.
Na impossibilidade de se chegar a uma definição consensual de quais seriam as
expressões efetivas do interesse nacional, talvez seja o caso de investigar numa outra
direção, ou seja, identificar aquelas políticas e orientações que se opõem, ou que podem
contrariar, o interesse nacional. Nesse caso, é melhor trabalhar com exemplos concretos
219
do que com definições abstratas, como afirmava em 1923 o secretário de Estado Charles
Hughes, em pronunciamento recuperado pelo historiador Charles Beard uma década
depois. E quais seriam, no nosso caso, os exemplos contrários ao interesse nacional que
podem ser identificados numa perspectiva mais imediata ou de mais longo prazo, que
podem ser prejudiciais ao nosso desenvolvimento e ao “engrandecimento” do país? Mas
mesmo para identificar essas ações contrárias, seja no plano interno, seja no âmbito
internacional, é preciso ter balizas mínimas sobre o que o país pretende ser como nação
e como sociedade. É preciso saber o que se quer, para rejeitar o que não serve a tal fim.
O editorial da revista Interesse Nacional nos fornece, mais uma vez, alguns dos
parâmetros que podem ser aplicados ao caso: “A democracia e a inserção internacional
são parte do interesse nacional brasileiro, aquela como valor, esta como objetivo. Se a
democracia é um valor que queremos preservar, e se a inserção internacional é hoje,
mais do que nunca, uma condição do desenvolvimento, resta perguntar como se inserir
no mundo para fortalecer a democracia e promover o desenvolvimento” (nota editorial
de Interesse Nacional, loc. cit.). A pergunta traz, portanto, um começo de resposta.
Se concordarmos com essa “plataforma”, democracia e inserção internacional
passam a ser as palavras chave do interesse nacional brasileiro. Então, qualquer ação
nacional que vise a diminuir as bases da democracia representativa, que constitui a
forma atual da governança política no Brasil, seria contrária e prejudicial ao interesse
nacional brasileiro; como, por exemplo, um famoso decreto “bolivariano” que pretende
instituir a intermediação de “conselhos populares” na definição e aprovação de políticas
públicas, quando sabemos que eles constituem uma emanação de tipo bolchevique – e
por isso mesmo foram chamados de “sovietes” – do partido gramsciano que tem a clara
intenção de se eternizar no poder. No plano externo, o apoio acintoso a regimes pouco
democráticos, ou ditatoriais de fato (e de direito), diminui a credibilidade de nossa
política externa, ao nos identificar com sistemas políticos já devidamente denunciados
em protocolos instituindo “cláusulas democráticas” a que aderimos voluntariamente, e
por força de nossa adesão (inclusive constitucional) aos valores da democracia.
Da mesma forma, qualquer política ou medida que obstaculize a integração da
economia nacional aos circuitos internacionais da interdependência econômica pode ser
considerada como contrária ao interesse nacional, na medida em que diminui nossa
capacidade de absorção de know-how e de tecnologias de ponta que são essenciais ao
processo de desenvolvimento do país. O protecionismo comercial não é apenas estúpido
no plano estritamente econômico; ele é também profundamente reacionário, no sentido
220
marxista da expressão, já que pretende “fazer rodar para trás a roda da História”, como
dito no Manifesto de 1848. Com efeito, ele representaria uma volta a um regime de
autarquia econômica que estava na base da economia hitlerista – bastante admirada por
militares brasileiros, naquela época e depois – e seria uma espécie de “stalinismo para
os ricos”, um projeto de “capitalismo num só país” que talvez ainda encante alguns
arautos da burguesia industrial tupiniquim e seus representantes acadêmicos.
Mais ainda, e com especial impacto na imagem e na confiabilidade do país no
plano internacional, ao aderir a essas medidas de duvidosa eficácia competitiva – ao
contrário, elas diminuem nossa capacidade de competir internacionalmente – o país não
apenas deixa de cumprir obrigações contraídas ao abrigo do sistema multilateral de
comércio, como também se mostra conivente com sócios do mesmo esquema regional
de integração, o Mercosul, que reincidem nas mesmas transgressões, e aqui não só
contra os próprios interesses comerciais do Brasil e contra regras do bloco comercial,
mas igualmente contrárias às normas do Gatt, de seus protocolos setoriais e de acordos
emanados da Rodada Uruguai de negociações comerciais. É, sob todos os aspectos, uma
péssima demonstração de inadimplência no tocante ao respeito a princípios do direito
internacional e, mais uma vez, de ação contrária ao interesse nacional.
Democracia e inserção internacional vêm sendo, assim, afastados de nosso
horizonte de realizações históricas, em nome de uma concepção de política interna e de
política externa que rompem com consensos nacionais laboriosamente mantidos ao
longo de um itinerário diplomático de quase dois séculos de existência efetiva. Esses
desvios de conduta – que representam, na verdade, concepções que não transcendem, ao
contrário, alimentam as “divisões partidárias”, como a elas se referia o secretário de
Estado Charles Hughes – se revelam não apenas em relação à substância mesma das
políticas seguidas, mas igualmente no tocante ao próprio instrumento diplomático, ou
seja, a ferramenta da política externa, que é o seu serviço exterior.
Charles Beard, no capítulo de seu livro dedicado à “interpretation, advancement,
and enforcement of national interest”, dizia que “By far the most important means used
to advance and enforce national interest is the ‘system’, or institution, of diplomacy” (p.
341). Ele se referia, exatamente, à administração e ao funcionamento das atividades
diplomáticas, bem como à “multitude of services performed by diplomatic agents in
behalf of the citizens” (p. 347), ou seja, a cobertura que um país é capaz de dar aos seus
cidadãos e às empresas nacionais presentes nos mais diversos cantos do mundo. Nesse
particular, a ferramenta da política externa brasileira tem custado muito pouco à nação
221
durante a maior parte de sua história: menos de 1% do orçamento da União (que parece
ter passado a menos de 0,5% atualmente). Ver essa dotação ainda mais diminuída, em
detrimento da boa qualidade, do funcionamento e, sobretudo, da respeitabilidade desse
instrumento, é a pior forma de promover o dito interesse nacional.
Os bolcheviques costumavam repetir, em seus tempos de hegemonia absoluta, e
para justificar os incontáveis crimes cometidos contra os direitos humanos, a conhecida
frase que pretende que “não se faz omelete sem quebrar os ovos”, querendo significar
que sacrifícios são necessários para obter resultados em algum objetivo qualquer. Pode
ser que seja verdade, mas no caso que nos é próximo, nem ovos, nem omelete parecem
ter resultado dos sacrifícios impostos ao instrumento diplomático nacional. Não se pode,
com efeito, fazer diplomacia, sem um mínimo de gastos com representação: o interesse
nacional, nesse caso, vem sendo atingido em sua dignidade pelos seguidos exemplos de
inadimplência no cumprimento de suas obrigações, da mesma forma como, no passado,
se decretava “moratórias soberanas” sobre os compromissos financeiros externos. A
insolvência pode até ter deixado de ser financeira, mas ela passou a ser de ordem moral.

2766. “A ideia do interesse nacional”, Hartford, 8 fevereiro 2015, 5 p. Artigo baseado


em livro de Charles Beard, The Idea of National Interest (1934) com comentários a
respeito das políticas contrárias ao interesse nacional sendo tomadas no Brasil da
atualidade. Publicado no site do Instituto Millenium, com um subtítulo agregado:
“onde estamos?” (25/02/2015; link:
http://www.institutomillenium.org.br/artigos/ideia-interesse-nacional/), em
Mundorama (26/02/2015; link: http://mundorama.net/2015/02/26/a-ideia-do-
interesse-nacional-onde-estamos-por-paulo-roberto-de-almeida/) e em Dom Total
(26/02/2015; link: http://www.domtotal.com/colunas/detalhes.php?artId=4871).
Relação de Publicados n. 1164.

222
28. Imperfeições dos mercados ou “perfeições” dos governos

O economista e professor da Universidade de Yale Robert Shiller – prêmio


Nobel de Economia (2013) e autor do famoso Irrational Exuberance, já em sua terceira
edição – publicou, nas páginas do New York Times (8/02/2015), um artigo sobre
“Ansiedade e taxas de juros”, no qual ele argumenta, em determinada passagem, que os
mercados não são de fato eficientes, uma vez que tendem a amplificar as reações
emocionais das pessoas (ver o original do artigo, “Anxiety and Interest Rates: How
Uncertainty Is Weighing on Us”, neste link:
http://www.nytimes.com/2015/02/08/upshot/anxiety-and-interest-rates-how-
uncertainty-is-weighing-on-
us.html?emc=edit_tnt_20150207&nlid=13125452&tntemail0=y&_r=0&abt=0002&abg
=1).
A intenção de Shiller não era exatamente a de lançar invectivas contra uma tal
de “lógica do mercado”, como fazem certos neófitos, ou de sequer fornecer argumentos
aos que se revoltam contra a “ditadura dos mercados”, como também fazem muito
frequentemente todos aqueles que não entendem nada de mercados. Ele estava apenas
chamando a atenção para a reação exagerada das pessoas em face de determinadas
inversões de tendência dos mercados, o que parece absolutamente normal

223
Nem os agentes tradicionais de mercado nem os simples cidadãos – que entram
e saem dos mercados para conduzir uma operação qualquer – dispõem de todas as
informações em volume e na qualidade necessários para tomar suas decisões da melhor
forma possível, com total domínio sobre os fatos e amplo conhecimento de causa.
Sempre persistem zonas de sombra, quando não áreas inteiras cinzentas, e até territórios
obscuros, que induzem esses agentes e os particulares a tomarem decisões erradas, a
enveredar por caminhos perigosos, abrindo assim a janela para a formação de bolhas
especulativas, ou à simples depreciação de seus ativos, apostando nas ações ou nas
moedas “erradas”. Tais fatos, ou movimentos, acontecem, e seria incongruente colocar a
culpa nos mercados, que apenas se movimentam sob o impulso de nossas próprias
decisões, individuais ou coletivas.
Desde quando comecei a aprender um pouco de economia – bem mais nos
cadernos especializados dos grandes jornais do que na leitura dos manuais acadêmicos,
justamente – sempre desconfiei das alegações sobre as “falhas de mercado”, que
figuram em praticamente todos os livros de micro e macro, com alguns exemplos das
principais, para, a partir daí, legitimar as medidas corretivas que os governos tomam
para tornar os mercados mais “funcionais”. Os próprios dirigentes políticos, quando não
seus assessores econômicos, recorrem a essas figuras de estilo – falhas ou imperfeições
de mercado –, para implementar medidas que parecem “racionais”, numa primeira
abordagem, mas que depois podem causar mais problemas do que soluções.
Sinto discordar desse tipo de visão, e provavelmente de 90% dos acadêmicos
envolvidos nesse tipo de debate, mas me contraponho frontalmente a esse tipo de
alegação. Não é que eu não acredite nas “imperfeições” do mercado, pois minha
discordância vai bem mais além: eu não acredito é que existam “imperfeições” de
mercado, uma vez que esse é o estado natural de existência e de funcionamento dos
mercados. Ora, sendo isso natural, não há porque falar em “imperfeições”, como se
estas fosse anomalias passíveis de correção pela ação de algum grupo de sábios, ou
videntes, como se o mercado, ou os mercados mais precisamente, pudessem funcionar
de outra forma como o fazem, com todos os seus movimentos erráticos, esses altos e
baixos, essas ondas de otimismo e os vagalhões de pessimismo que os caracterizam
sempre e em qualquer circunstância. Volto a repetir: não existem imperfeições de
mercado, existem mercados, simplesmente. Tal tipo de afirmação me parece tão
evidente que dispensaria qualquer explicação, mas vamos tornar explícito o que acabo
de argumentar implicitamente.
224
O que é o mercado, ou o que são os mercados? Não existe um único mercado,
obviamente, mas dezenas, centenas, milhares deles, sempre à disposição de qualquer
agente ou um simples trabalhador, sem esquecer os famosos rentistas, que vivem, ao
que parece, de especulações nos mercados; todos eles são prontamente atendidos em
suas intenções de satisfazer seus desejos ou necessidades, de maneira perfeitamente
legal, ou até ilegal e clandestina (para drogas, por exemplo). Os mercados são simples
espaços de encontro para trocas bilaterais ou “multilaterais”, e eles existem tanto
virtualmente quanto fisicamente, desde que duas ou mais pessoas se disponham a trocar
seus ativos por outros, detidos pela outra parte interveniente nesse tipo de “escambo”.
Pode ser uma maçã contra uma banana no pátio da escola, ou milhões de dólares numa
bolsa qualquer, num agente de câmbio de divisas, ou na compra de bônus
governamental de alguma economia emergente. Quaisquer bens ou serviços que sejam
objeto de alguma preferência subjetiva quanto ao seu valor são facilmente integrados e
integráveis a um mercado qualquer, formal ou informal, de qualquer tipo, dimensão ou
“perfeição”. Mercados são perfeitamente ubíquos, mesmo quando invisíveis.
O professor Shiller afirma isto em seu artigo: “porque os mercados não são
realmente muito eficientes, o efeito desses variados fatores [níveis extremos de juros e
preços devido à confluência de múltiplos fatores precipitantes, entre eles a ansiedade]
tende a ser amplificado pela realimentação emocional. Por exemplo, quando as pessoas
começam a ver taxas e preços mudando, algumas delas decidem agir: elas são atraídas
ao mercado quando os preços estão subindo, e frequentemente o deixam quando os
preços caem. Nós então [suponho que ele esteja falando dos economistas] ficamos
surpresos pela extensão da aparente sobre-reação do mercado aos fatores precipitantes
que não pensávamos que estivessem realmente na mente de todo mundo.”
Ora, não é preciso ser prêmio Nobel de economia para descobrir que existem
fatores precipitantes, ou que as pessoas reagem de tal e tal modo ao ver os preços
subindo ou descendo nos mercados de valores. Sinto muito dizer isso, mas a afirmação
do professor Shiller não faz nenhum sentido, ou então ela expressa exatamente o
comportamento das pessoas nos mercados. Por que estes seriam pouco eficientes, então,
quando eles estão atuando exatamente como as pessoas os fizeram se movimentar? Para
a alta nos momentos otimistas, quando os preços estão subindo, e para a baixa quando
há percepção, ou movimento real, de queda. Não é preciso nenhuma exuberância
racional para explicar isso, embora as pessoas se comportem exatamente assim, com
toda a irracionalidade que permeia qualquer ação humana em face de incertezas, zonas
225
de sombra ou simples desconhecimento das dinâmicas da vida (sejam elas as forças da
natureza, ou as forças igualmente imponderáveis da economia).
Tenho para mim que os mercados são perfeitamente eficientes e altamente
perfeitos, uma vez que eles reagem exatamente em função de como as pessoas atuam
neles, ou seja, investindo ou se retirando, trocando ativos ou permanecendo paradas, e
tudo isso é feito de maneira perfeitamente descoordenada, anárquica mesma, como
devem ser mercados altamente funcionais. Agora, se você pretende que o mercado
funcione de uma determinada maneira, e não possa refletir os movimentos das pessoas,
então coloque alguns burocratas de governo para vigiá-lo, para corrigi-lo, para
discipliná-lo de algumas “imperfeições” detectadas por esses mesmos burocratas. O
mais provável é que eles estejam atuando a mando de “gestores” mais poderosos, que
por sua vez decidiram empreender alguma ação corretiva porque alguns agentes de
mercado decidiram que ele só poderia se movimentar numa direção, e não em outra:
geralmente mantendo o câmbio em determinado patamar, determinadas ações imunes
aos resultados efetivos da empresa, mercadorias em certo nível de preços do que a sua
oferta mais abundante, ou escassa, o determinaria, pelo livre movimento de produtores e
de compradores nesses mercados específicos, etc.; escolha qualquer um dos casos.
A legitimação é sempre a mesma: como os mercados não são “eficientes”, os
sábios do governo (com seus conselheiros econômicos por trás) resolvem “ajudá-los”
impondo certas regras, ou limitando o ingresso de outros participantes. Barreiras ao
ingresso de novos competidores é sempre uma maneira “eficiente” de preservar os
ganhos dos poucos participantes de algum cartel qualquer, e isso é feito não apenas nos
mercados “livres”, mas também em regime de concessões públicas (transportes, por
exemplo) ou no comércio exterior (pelas tarifas ou mediante normas técnicas, que se
tornam regulações compulsórias, como as nossas famosas tomadas “jabuticabas”). O
resultado de tudo isso é que sempre haverá ganhos para alguns – até que o dinheiro do
regulador acabe, pelo menos – e perdas para os demais, pelo menos enquanto durar a
festa, ou seja, enquanto a dinâmica do mercado não se vingar de seus “corretores” (o
que ele sempre acaba fazendo, mais cedo ou mais tarde). O exemplo mais patente dessa
realidade é o câmbio: a Venezuela e a Argentina que o digam.
O fato singelo é o seguinte: mercados livres, perfeitamente funcionais – ainda
que causando perdas para uns e outros –, sempre serão infinitamente mais eficientes do
que qualquer comitê de salvação pública econômica, e isto por uma razão muito
simples. Os mercados reagem imediatamente à entrada e saída de pessoas – ou de bens
226
e serviços – em seus espaços de intercâmbios, permitindo assim que alguns realizem
ganhos, que outros contabilizem suas perdas, e todos procuram se ajustar rapidamente, o
que torna o sistema sempre muito eficiente e quase “perfeito”, ao sinalizar pelos preços
quais são as expectativas de ganhos (oxalá) ou induzindo à redução das perdas. Quando
o comitê de sábios intervêm, ele não pode fazê-lo de maneira dirigida, ou pessoal, mas
estabelecendo regras genéricas, digamos assim, contemplando toda uma categoria de
transações, e não a movimentação individual dos agentes. Eles ainda precisam fazê-lo
por via legislativa ou mediante resoluções administrativas, que sempre são muito lentas
a serem implementadas, e mais lentas ainda a serem modificadas.
Resulta de tudo isso que medidas governamentais de “correção” dos mercados
sempre serão imperfeitas, limitadas, parciais, insuficientes e, no limite, estúpidas, para
tratar da diversidade de situações que emerge das interações dinâmicas, racionais ou
irracionais, entre pessoas e corporações transacionando nos mercados. Quanto mais
livres forem estes últimos, todos buscarão o seu benefício individual – como aliás dizia
Adam Smith por meio de sua famosa alegoria da “mão invisível”, que não é uma teoria
e sim uma simples constatação de bom senso – e ninguém supostamente será punido
pela ineficiência ou imperfeição de qualquer mercado, uma vez que todos permanecem
perfeitamente livres para entrar e sair de algum deles quando assim o desejarem. De
resto, quaisquer que sejam as eventuais “imperfeições” ou a ineficiência dos mercados,
elas sempre serão infinitamente mais benignas, e menos prejudiciais, do que as ações
dos governos, que tendem a criar camisas de força nos mercados o que só acaba ou
sufocando-os ou produzindo o conhecido fenômeno dos “contraventores de regras”.
Pense bem: qual das situações você prefere? Portanto, quando alguém vier lhe
falar numa tal de “lógica de mercado”, ou de que é preciso corrigir alguma imperfeição
detectada, responda logo: “Tudo bem: o mercado não possui nenhuma lógica, mas ela
sempre será superior à de qualquer governo; no mais, não mexa com o meu mercado,
está bem assim?”. O mundo seria bem simples sem os arquitetos da vontade alheia e
sem todos esses engenheiros sociais tentando tornar a nossa vida mais “simples”...

2767. “Imperfeições dos mercados ou ‘perfeições’ dos governos?: estabeleça quais são
as suas preferências”, Hartford, 9 fevereiro 2015, 5 p. Artigo de comentários sobre
a atualidade, destinado aos diversos periódicos aos quais ofereço colaboração
voluntária. Publicado em Mundorama (10/02/2015; links:
227
http://mundorama.net/2015/02/10/imperfeicoes-dos-mercados-ou-perfeicoes-dos-
governos-estabeleca-quais-sao-as-suas-preferencias-por-paulo-roberto-de-almeida/
e http://wp.me/p79nz-40s). Reproduzido no blog Diplomatizzando
(http://diplomatizzando.blogspot.com/2015/02/imperfeicoes-dos-mercados-ou-
perfeicoes.html); Dom Total (20/03/2015; link:
http://www.domtotal.com/colunas/detalhes.php?artId=4930); Instituto Millenium
(21/03/2015; link: http://www.institutomillenium.org.br/artigos/imperfeies-dos-
mercados-ou-perfeies-dos-governos/).Relação de Publicado n. 1163.

228
29. Miséria do Capital no século 21

A propósito do livro de Thomas Piketty:


Capital in the Twenty-First Century
(Cambridge, MA: Belknap Press, 2014, 696 p.)

Economistas são seres simplistas, por definição. Eles costumam basear suas
equações sobre a criação de renda e riqueza a partir de três fatores produtivos básicos:
trabalho, capital e recursos naturais. Muitos outros economistas já tentaram introduzir
nessas equações um outro fator: o capital humano, ou conhecimento. Mas, por diversos
motivos, este acréscimo ainda não se tornou de uso comum na ciência econômica. Em
todo caso, a riqueza das pessoas costuma ser medida sob diferentes formas: em fluxos
de renda, que é aquela derivada do trabalho, e em estoques da riqueza acumulada, que
costuma ser chamada de patrimônio, e que por sua vez pode ser imobilizado (imóveis,
iates, carros, etc.) ou utilizado para a criação de novas riquezas, sob a forma de ativos
líquidos, os quais produzem o que comumente se chama de rendas do capital.
A dinâmica populacional – composição, distribuição etária e qualidade da mão-
de-obra – varia muito de um país a outro, e influencia bastante a criação de renda e de

229
riqueza, cujos fluxos e estoques acompanham as variações e natureza daquela. Ainda
que o capital (bastante) e as pessoas (menos) possam viajar pelo mundo, não existe uma
autoridade global e uma única fonte de regulação dos fluxos e estoques em posse das
pessoas. Os Estados nacionais mantêm jurisdições próprias, com regras diferentes para
o tratamento impositivo desses fluxos e estoques, o que dificulta a concepção de um
instrumento uniforme e universalmente aplicável de taxação de renda e riqueza.
Sobre isso, se sobrepõem diferentes concepções sobre como devem ser tratadas
(ou seja, taxadas) as diferentes formas de renda e riqueza. As filosofias em vigor na
história do mundo moderno podem ser divididas, grosso modo, entre o liberalismo, que
acha que a criação de renda e riqueza deve ficar sob a competência dos indivíduos, com
um mínimo de interferência dos Estados nacionais, e o “marxismo” (ou variantes do
socialismo), que acha que esses Estados devem regular as rendas do trabalho e as do
patrimônio em benefício de todos, transferindo fluxos de renda e seus estoques entre as
pessoas, segundo critérios determinados por políticos e burocratas desses Estados.
Existem neste mundo êmulos de Marx, em todas as partes, para todos os gostos
e para todas as finalidades, alguns deles – pode ser o caso do francês Piketty – até mais
espertos do que a maioria dos crentes, aproveitando-se da adesão de muitos na teoria do
valor-trabalho para aumentar o seu próprio capital às custas desses muito crentes, que
acham que o capital só pode aumentar às custas do trabalho. Essa concepção sobre o
valor-trabalho – a única coisa errada aceita por Adam Smith – não leva em conta o
chamado capital humano, que os próprios economistas penam a integrar em suas
equações. Os êmulos de Marx acham que os Estados devem taxar mais as rendas do
capital para distribuir entre os que possuem apenas rendas do trabalho, o que
supostamente tornaria o mundo mais igualitário, ou menos desigual.
O problema todo é que essa recomendação marxista não deriva de nenhuma
análise econômica sobre a criação de renda e riqueza, sendo apenas e tão somente uma
recomendação política, baseada numa filosofia do igualitarismo. Essa filosofia orienta
os Estados a avançarem sobre o capital, ou seja, sobre o estoque de riqueza das poucas
pessoas muito ricas (que por definição são sempre em menor número), para distribuí-la
entre os que só dispõem apenas dos fluxos de pagamentos derivados do seu trabalho.
Ela tem tido algum sucesso ao redor do mundo, uma vez que as pessoas dependendo do
seu trabalho são sempre em maior número, formando a vasta maioria dos votantes nas
modernas democracias de mercado.

230
Esse tipo de recomendação aproxima a política econômica do modelo de
sociedade recomendada pelos marxistas, que é aquela na qual não existiria renda do
capital, e nenhuma riqueza acumulada, na qual todas as rendas do trabalho seriam
igualitária e equitativamente divididas pelo Estado. Não é preciso aqui grandes
digressões, com base em equações econômicas ou em séries estatísticas históricas de
renda e de riqueza, para constatar que esse tipo de sociedade não funcionou, e que os
únicos exemplos reais na história – o socialismo de tipo soviético e seus êmulos ao
redor do mundo – foram notórios fracassos econômicos na criação de renda e riqueza,
só conseguindo se manter à custa de enorme repressão política, que produziu grande
infelicidade humana (total falta de liberdade, e até mesmo alguns milhões de mortos).
Um modelo mais ameno desse tipo de igualitarismo radical – mas falso, uma vez
que os que controlam o Estado se apropriam de uma parte importante das rendas do
“valor-trabalho” – é o socialismo moderado dos regimes de tipo socialdemocrata, em
vigor em diversas democracias modernas de mercado, basicamente na Europa, com
contrafações disso no resto do mundo. Uma consulta às estatísticas correntes mais
frequentes relativas à criação de renda e riqueza nas últimas décadas (dados da OCDE,
por exemplo) demonstra que o crescimento de todas as formas de renda e riqueza foi
maior naqueles países onde foi menor a apropriação de fluxos e estoques de renda e
riqueza pelos próprios Estados. Não se trata aqui de opinião ou filosofia política, mas de
uma constatação simples, e direta, a partir de uma correlação entre níveis de carga fiscal
dos países e suas taxas de crescimento do PIB per capita, independentemente da
distribuição social dessas formas de riqueza. Maior taxação, menor crescimento, ponto.
Isso nos traz de volta ao “capital do século 21”, proposto por Piketty, que acaba
de provar que a desigualdade vem aumentando no mundo, baseada no aumento dos
fluxos e estoques de rendimentos obtidos pelo capital, sobre os simples rendimentos do
trabalho. Ele também acha que governos devem taxar mais o patrimônio e as rendas dos
muito ricos, pois o problema seria a existência de poucas pessoas muito ricas – e que
tendem a enriquecer cada vez mais –, não a existência de um imenso contingente de
pobres, ou de pessoas moderadamente ricas (classe média). Independentemente dos
problemas de agregação de dados e de processamento da informação estatística, o que
parece inevitável, dado o amplo espectro de valores e a grande dispersão cronológica
com os quais Piketty trabalhou, o que mais parece contestável em sua tese é justamente
o argumento de que a riqueza tende a caminhar mais rapidamente do que o crescimento
econômico geral das economias de mercado.
231
Tal tese – que, em sua formulação sintética, r > g, tende a assumir ares de
grande síntese genial, um pouco ao estilo da famosa equação einsteiniana, E=mc2 –
parece contradizer a lógica formal dos processos econômicos e a própria evolução
civilizatória das sociedades humanas, cada vez mais educadas e mais sofisticadas
intelectualmente, com amplo acesso à educação superior por amplas camadas de
indivíduos e grupos. Pode ser que patrimônio e a riqueza de forma geral, passem por
processos temporários e parciais de acumulação preferencial e de concentração em
certos grupos e indivíduos, em geral vinculados a atividades financeiras e comerciais;
mas daí a transformar essa constatação numa nova “lei geral da acumulação capitalista
no século 21”, como parece pretender Piketty, vai uma grande distância. Assim como
ocorreu com as teses de Marx, ela também vai ser provavelmente desmentida pela
evolução das sociedades capitalistas.
Piketty prefere empobrecer os ricos a enriquecer os pobres. Pela experiência
visual que já tivemos no século 20, esse tipo de empreendimento pode ser mais um
desastre econômico e social à espreita, do que propriamente uma forma de criar o
verdadeiro capital do século 21, baseado no conhecimento. Distribuir o dinheiro dos
ricos entre os pobres vai tornar as sociedades mais ricas? Duvidoso que ocorra, a menos
de dirigir todos os recursos para aumentar e melhorar o capital social: conhecimento.

2726. “Miséria do Capital no Século 21”, Hartford, 5 dezembro 2014, 3 p. Revisão


reduzida dos comentários sobre o capital no século 21. Enviado a Mauricio David
para circulação em formato restrito. Submetido a Mundorama, em 30/01/2015, como
início de uma colaboração regular, mensal, com o boletim. Enviado igualmente para
Dom Total e Instituto Millenium, em 31/101/2015. Publicado em Mundorama (n. 19,
janeiro de 2015; ISSN: 2175-2052; link: http://mundorama.net/2015/01/31/miseria-
do-capital-no-seculo-21-a-proposito-do-livro-de-thomas-piketty-por-paulo-roberto-
de-almeida/), no site do Instituto Millenium (3/02/2015; link:
http://www.institutomillenium.org.br/artigos/misria-capital-sculo-21/) e em Dom
Total (5/02/2015, link: https://domtotal.com/colunas/detalhes.php?artId=4823);
Preparada versão mais curta para publicação no jornal O Estado de S. Paulo
(10/02/2015; link: http://opiniao.estadao.com.br/noticias/geral,miseria-do-capital-no-
seculo-21-imp-,1632135). Relação de Publicados n. 1160.

232
30. Reformando o sistema monetário internacional

Book review:
Carol M. Connell:
Reforming the World Monetary System: Fritz Machlup and the Bellagio Group
(London: Pickering & Chatto, 2013. xii + 272 pp.; ISBN 978-1-84893-360-6; Financial
History series n. 21, $99.00; hardcover)

This book appears in a Financial History series of the Pickering & Chatto, which
has already published as diverse studies in this area as one on Argentina’s parallel
currency, another on the federal banking in Brazil, with most of titles being about
banking and finance in the North Atlantic world, from the colonial times to the 20th
century. Carol Connell is Professor of Finance and Business Management at the School
of Business, Brooklyn College, City University of New York, where she is very well
rated by her students; and she is now directing a new monograph series on Modern
Heterodox Economics, also being published by Pickering & Chatto. Connell prepared
this very well researched work benefitting from a fellowship research grant from the
Earhart Foundation, a private charitable institution that funds scholarly research; one of
its early beneficiaries was Friedrich von Hayek, who wrote The Road to Serfdom
(1944).
Some scenarios and arguments presented in this book were first made public in
academic publications, such as the Journal of Management History and the Journal of
the History of Economic Thought, and Connell’s interest in Fritz Machlup career and
work arose when she was researching about one of his students, the growth theorist
Edith Penrose. Besides the preeminent presence of Machlup, the book also deals with

233
the contributions for the discussion and reform of the international financial and
monetary system by luminaries such as Robert Triffin, William Fellner, and Milton
Friedman.
In the introduction the author states very clearly that her objective was the study
of the complex reform process that, from the Sixties up to the Seventies, led to the
adoption of a flexible exchange rate – instead of the fixed parity established at the
Bretton Woods conference (1944) – and the introduction of the special drawing rights as
the main “currency” of the International Monetary Fund (p. 1). Based on archival and
published sources, the book follows, in thirteen extensively annotated chapters, the
itinerary of the Bellagio Group, established under the leadership of Fritz Machlup, and
integrated by 32 non-government academic economists, working in intimate contact
with policy makers and IMF officials, between 1963 and 1977. Bellagio Group’s
primary documents are everywhere referenced, but there are also 299 secondary sources
in the bibliography, among them (besides the four big economists), Charles
Kindleberger, Edith Penrose, Fred Bergsten, and John Williamson.
Trying perhaps to emphasize the current appeal of her study to contemporary
policymakers and researchers, Connell states in her Introduction that there could be in
Machlup’s approach something similar to the Group of Twenty Finance Ministers and
Central Bank Governors (G20), which is clearly a non performing analogy, essentially
because of the independence of views of the former vis-à-vis the narrow interests of
today’s governments. Notwithstanding, Bellagio Group worked in close contact and
cooperation with the Group of Ten, launched simultaneously within the IMF. The
intention of the Treasury Secretary Douglas Dillon was to devise a monetary reform in
an already stressed arrangement, in a context when the ten most important countries
tried to control and minimize the imbalances of the world economy, the growing
liquidity crises, and the volatility in the price of gold (partially circumvented by the
introduction of swap facilities and the creation of the General Arrangements to Borrow).
After explaining her research questions and original hypothesis, and informing
where Machlup’s and Triffin’s papers are located (Hoover and Yale), Connell opens
Chapter 1 by describing the crisis of confidence that arouse in early Sixties, leading to
the various exercises of academic debates and institutional brain-storming that
mobilized the most important economist of that decade. Late in the Fifties, Robert
Triffin was already predicting a forthcoming crisis, and calling for a radical reform of
the monetary system in his Gold and the Dollar Crisis (1960). Feeling challenged by
234
the convening by Dillon of an IMF Studies Group, within the Group of Ten, and
excluding academic economists, Machlup, Triffin and Fellner decided to “embark on
their own study, involving economists of widely divergent views and with no problem
or proposal considered ‘out of bounds’. Hence the idea for a series of alternative
conference was born” (p. 18), and that was the Bellagio Group, which first met at this
Italian resort of the Lake of Como. A brief chronology of the monetary system events
from 1944 and 1977 and a synthetic table on the various exchange rate policies and
regimes (from gold standard to flexible) close this chapter.
Chapter 2 introduces the life and thought of Fritz Machlup, who had been
working and publishing in the area of monetary reform for many years before the
convening of his “child”, the Bellagio Group. Born (1902) in a pre-1914 Europe
(Austria) with “ten currencies, all with fixed gold parities and fixed exchange rates”,
Machlup soon afterwards (1920) was presented to a continent with “twenty-seven paper
currencies, none with a gold parity, none with fixed exchange rates and several of them
in various stages of inflation or hyperinflation” (p. 23). From 1923 to 1962 Machlup
studied and published extensively on monetary problems, particularly the gold standard,
but also dealt with patents, industrial organization, production of knowledge and theory
of the firm. His 1923 dissertation on the gold-exchange standard at the University of
Vienna was supervised by Ludwig von Mises; a decade later he was already residing in
the U.S. and teaching at the University of Buffalo; at that time, “he was already the first
economist to frame the discussion of balance of payments problems in terms of
payments adjustment, liquidity and confidence” (p. 27). John Williamson, a former
student, “attributed Machlup’s belief in the importance of the confidence to the role it
had played in the collapse of the gold-exchange standard during the Great Depression”
(p. 29). The same would occur thirty years later, with the U.S. involvement with and
expenditures for the Vietnam’s War, and European countries distrust of America’s
capacity to honor its commitments under Bretton Woods. Machlup anticipated the
scenario with his lengthy essay “Plans for Reform of International Monetary System”,
first published in 1962 and reissued in 1964, significantly updated (p. 32).
Chapter 3 is dedicated to Robert Triffin – a Belgian who worked for the Federal
Reserve and the IMF, and professor at Yale from 1951 to 1977 – and to the 1959 Triffin
Plan, proposing the replacement of gold and foreign-exchange reserves by gold-
guaranteed deposit accounts at the IMF, within a more flexible system. But, at that time,
as argued by Charles Kindleberger, even if many economists proposed the idea, “few
235
central bankers recommended flexible exchange rates as a means of eliminating … all
the problems of adjustment, liquidity and confidence” (p. 42). Even if Triffin’s solution
could be first-best economically, it was politically out of question. The head of the
Group of Ten at IMF, Otmar Emminger, “found the Triffin Plan unacceptable because
nations were not prepared to hand over so much responsibility and financial power to an
international body” (p. 42). At that juncture, confidence, not liquidity, was the problem
that made Triffin and Machlup to come together intellectually (p. 47).
Chapter 4 deals with Budapest born (1905) William Fellner, a fugitive from the
Nazis, like the two others; professor at Berkeley in 1939, he worked mainly at the
intersection of macro and microeconomics, researching and writing about inflation,
regulation, growth and balance of payments problems, including in cooperation with the
other two in monetary and exchange questions, both in theory and policy. In 1963, he
was dealing with budgetary deficits and their consequences, which led to adjustments
efforts, and also to the confidence question. Differently from the planned equilibrium
advocated by Triffin, Fellner “recommended instead letting free-market processes
perform more of the equilibrating function”(p. 57). In many papers, he proposed a
limited exchange-rate flexibility system. In fact, both Machlup and Fellner were
committed to freely floating exchange-rates, but were aware of the responsibility of
national governments, which led them to explore a myriad of possible solutions.
The title of Chapter 5, Why Economists Disagree, takes its name from
Machlup’s speech before the American Philosophical Society, in November 1964, five
months after the fourth Bellagio Group conference. He explained then his decision to
invite 32 economists from eleven countries, most of them from divergent schools of
thought, to explore solutions for the problems of the international monetary system of
the 1960s. They had to consider hybrid or compromise solutions for the identified
problems. This chapter presents each one of the participants, their background and
works. The sources of disagreement are very well abridged in a table dealing with the
four major policy proposals for reform: semi-automatic gold standard, centralized
international reserves, multiple currencies and/or flexible exchange rates (p. 76-78). All
proposals were carefully examined at a series of scenario-planning exercises through
various Bellagio conferences, allowing the economists to evaluate the “relative impact
on payments, liquidity and confidence of the four basic exchange regimes, given any
one or combination of them might have been adopted” (p. 80).
Chapters 6 and 7 deal, respectively, with the hypothesis of multiple reserve
236
currencies and Milton Friedman’s arguments for fixed versus flexible exchange rates, in
a paper he presented in 1953, making the case for a floating regime. This regime, for
him, “has the advantage of monetary independence, insulation from real shocks, and a
less disruptive adjustment mechanism in the face of nominal rigidities than it is the case
with pegged exchange rates” (p. 99). These two chapter are of a more theoretical and
historical nature, despite the fact that all questions discussed in them had a very
practical impact on each devised solution for the problems plaguing the international
monetary system.
Chapter 8, Collaboration With the Group of Ten, makes the bridge between the
two groups, the IMF technocrats and government officials, for one side, the independent
academic economists, for the other. Machlup pressed hard on his team, achieving a
detailed report, International Monetary Arrangements: The Problem of Choice, two
months before (in June 1964) the Group of Ten and the IMF staff could prepare theirs.
He also frankly explained, at the first joint meeting, later that year, the differences
between the two approaches. This led to the assignment of Group of Ten chairman,
Otmar Emminger, to the Bellagio Group, inaugurating a thirteen-year collaboration. The
tasks for the groups were the same, but working methods, and freedom of opinion, made
them very different, as well as purposes: Bellagio emphasized disagreements among the
proposals, and the nature of their differing impact on the problems dealt with. Friedman,
in 1965, criticized the report for not offering one unified solution for the crisis, but
Machlup pointed out that a consensus was achieved on the consequences of each
solution proposed by his group: governments and the IMF had food for thought.
Chapter 9, Adjustment Policies and Special Drawing Rights: Joint Meetings of
Officials and Academics, is a continuation of this kind of collaboration, now assuming
other forms of joint exercises, as the deputies of the Group of Ten start to met regularly
with the Bellagio Group, and did so from 1964 to 1977, resulting in the creation of
special reserve assets, later called the Special Drawings Rights (due to the French
Finance minister, Valery Giscard D’Estaing, insistence on considering them a credit,
not an owned reserve). The three Bellagio main economists were the organizers of those
meetings, which assumed a kind of a NGO feature. “From 1970 to 1977, discussions
would focus on the increasing liberalization of the international capital market and the
wisdom of special drawing rights for developing countries” (p. 128). This period also
corresponds to the U.S. going off the gold and to the floating of the Deutsche mark:
main questions became managed floating and international liquidity. A Basle meeting in
237
1977 was the last meeting of a Joint Academic and Officials meeting, and the first
allocation of SDRs was held in 1970. A new time, no less challenging, had arrived for
and within the international monetary system.
Chapter 10, From the Bellagio Group to the Bürgenstock Conferences, explores
the continuation of the semi-academic discussions under a new format, this time dealing
with floating exchange regimes in various guises, but always under the influence, and
the intellectual guidance, of Fritz Machlup, who intended to prepare a well conceived
book out of the exercise: this came at light in 1970, as a Princeton University Press
publication, Approaches to Greater Exchange Rate Flexibility: The Bürgenstock papers.
The analysis takes ground on the Austrian background of Machlup’s thought, which
also gave light to planning methods based on Delphi scenarios. A first meeting, with a
large number of officials, academic people but also representatives from banks and
corporations, was held in Long Island, in January 1969, followed by a second meeting
in June, in Bürgenstock, Switzerland, where five more meetings were organized.
Chapter 11, follows the lead, dealing with de facto successor of the Joint
Meeting of Officials and Academics, which was an extended Bellagio Group, the Group
of Thirty, which included members from all the current G20 financial group. The Group
of Thirty meet twice a year at the beginning of the 1980s, and was broader than the
Bellagio Group, including industrialists and private bankers, and preferred not to
commission papers from academics, establishing instead an agenda for discussion
comprising issues of capital movements and less developing countries assets,
international banking supervision, and energy (the issue of the moment). But Fritz
Machlup was still on the party, with a minor group of academics. A so-called Bellagio
Group met again in 1996, under the leadership of the general manager of the Bank for
International Settlements, and has been meeting once a year at the Italian resort, under
the intellectual guidance of professor Barry Eichengreen, from Berkeley, and always
financed by the BIS.
Chapter 12 is dedicated to Reassessing the Bellagio Group’s Impact on
International Monetary Reform; Carol Connell affirms that there are “significant
parallels between the calls for monetary system reform in the 1960s and those for
reform following the financial crisis of 2008-9” (p. 185). This comparison seems off the
mark, as the current financial G20 has achieved nothing comparable, besides pressures
for the negotiation and implementation of a more stringent set of Basel prudential rules
for the banking sector. The outcry about the dollar crisis has been responded by nothing
238
else than the confirmation of its centrality for the current financial and monetary “non-
system”. Initial rumors – at its monnaie unique début – about the strength of the euro
were replaced by recent fears of its demise.
Notwithstanding this, Connell presents a clear historical synthesis about the
importance of the Bellagio Group for the understanding of the most crucial problems of
the international monetary system as devised at Bretton Woods: all of the group
members came from G-10 countries, the same as the suppliers of the General
Arrangements to Borrow (now expanded, and with the New GAB). At least, the
academics convinced the central bankers that floating exchange regimes could work,
and that flexible currencies could cushion external shocks; that is not a minor
intellectual achievement. And, the same problems they tackled, adjustment, liquidity,
and confidence, continue to be at the center of the nightmares of the central bankers and
finance officials alike (together with new preoccupations, on the fiscal side, as
demography imposes its burdens over all). It seems that liquidity is no more an issue
today, as governments create real tsunamis of new financial assets, pushing national
debts to new higher peaks.
In the bright side, this Chapter 12 finishes with an impressive list of publications
of the Princeton Finance Section under Fritz Machlup’s leadership, from 1960 up to
1971, no less than 98 titles authored by many of the most well-known names of the
economics trade, and certainly some of Nobel-worth distinction in this profession.
Chapter 13, finally, is a beautiful piece of scholarly work: The Impact of the
Bellagio Group on International Trade and Finance Scholarship from the 1960s to the
Present, which could also be called something like “the sons and daughters of Machlup,
Triffin and Fellner” (and now their grandsons and grand-daughters, like Connell
herself). She lists some disciples of the mentors: Edith Penrose, Stephen Hymer,
Charles Kindleberger, James Tobin, Andrew Crockett, Edwin Truman, and many
others.
Conclusions, at last, summarizes the lessons drawn from each chapter, before
returning to the initial hypothesis. Great Depression and World War II influenced how
economists thought about policy, inflation, interest rates, deficits and government
intervention. Machlup, Triffin and Fellner were the intellectual masters behind much of
the conceptual thinking about the great challenges emerging from a world order devised
with some improvisation, and no practical guidance, at the end of the II World War.
With some Austrian ingenuity and innovative and creative thinking of their own, they
239
are at the core of the adjustments and arrangements that were made, in the Sixties and
the Seventies, for the current, certainly limited and incomplete, international monetary
system (or non-system, at discretion). One of her hypothesis, that of the centrality of the
Bellagio Group for the reform of the international monetary system, is largely
confirmed and deserves proper acknowledgment: they have had a real impact on
practical policies, and in the reconfiguration of the multilateral financial organizations.
And their influence on scholarship and empirical research over a so large community of
academic and applied economists is beyond recognition of traditional prizes and honors.

2705. “Reforming the World Monetary System: book review”, Hartford, 27 outubro
2014, 7 p. Book Review of Carol M. Connell: Reforming the World Monetary
System: Fritz Machlup and the Bellagio Group (London: Pickering & Chatto, 2013.
xii + 272 pp.; ISBN 978-1-84893-360-6; Financial History series n. 21, $99.00;
hardcover). Prepared for Gary Mongiovi (mongiovg@stjohns.edu), of St. John’s
University. Divulgado no Academia.edu (link:
https://www.academia.edu/10006775/2705_Reforming_the_World_Monetary_Syst
em_book_review_2014_). Publicado em Mundorama (n. 91, 22/03/2015; ISSN:
2175-2052; link: http://mundorama.net/2015/03/22/review-of-reforming-the-world-
monetary-system-of-carol-m-connell-by-paulo-roberto-de-almeida/). Relação de
Publicados n. 1164.

240
31. As quatro liberdades e um projeto para o Brasil

Como sempre fazemos quando temos tempo e estamos pela região, para
compras ou a lazer, Carmen Lícia e eu costumamos frequentar a biblioteca pública de
West Hartford, pequena, para os padrões das bibliotecas universitárias, mas enorme,
para os padrões das pequenas cidades americanas de interior. Na verdade, ela não é bem
de interior, uma vez que está adjacente à capital de Connecticut, Hartford, e é onde
mora boa parte da comunidade afluente que trabalha nesta região: belas casas,
excelentes restaurantes, supermercados e lojas superiores à média, e esta boa biblioteca,
que leva o nome do primeiro dicionarista da língua americana (sim, ele dicionarizou
vários coloquialismos do inglês da América) e provavelmente o segundo da língua
inglesa: Noah Webster, que é, aliás, o nome de um famoso dicionário, tradicional, mas
ainda hoje vibrante e atualizado, nos mais diversos formatos.
Não se trata de uma biblioteca de pesquisa ou de estudo, mas daquilo que se
pode tranquilamente chamar de biblioteca comunitária, embora muito bem guarnecida
dos grandes títulos da literatura americana e universal, e podendo servir também para
pesquisas escolares. Eu costumo frequentá-la sobretudo para emprestar os novos livros
que acabam de ser lançados, e que ainda custam mais de 30 dólares no formato hard
cover, antes que a edição brochura os torne mais acessíveis a orçamentos controlados.
Pois foi com essa intenção que lá fomos no último domingo. Saí de lá com dois livros
novos (que só podem ser emprestados por 15 dias) e com um antigo, de meio século
atrás, mas que me interessava consultar: uma edição da Modern Library contendo as
duas grandes obras políticas de Maquiavel, O Príncipe e Os Discursos (assim, não mais,
ou seja, Tito Lívio reinterpretado pelo grande pensador florentino).
241
Nada de original neste último livro, a não ser a bela introdução a Maquiavel pelo
professor Max Lerner (datada de março de 1940 e de maio de 1950), com alguma
bibliografia clássica sobre o grande patriota italiano, inclusive a recomendação, que vou
buscar, de ler a introdução ao Príncipe por Lord Acton, feita originalmente para uma
edição italiana de 1891, depois incluída no volume editado por John N. Figgis e
Reginald V Laurence, The History of Freedom and Other Essays (London: 1907). Para
este eu tenho de recorrer à biblioteca da Universidade de Yale, onde aliás tenho de ir
para devolver vários outros livros que retirei sobre Bretton Woods. Provavelmente na
próxima terça-feira, quando vou para uma palestra sobre a Rússia e Ocidente, por um
diplomata do Department of State encarregado do setor.
Mas volto aos dois livros novos que retirei, ambos conectados ao meu período
atual de pesquisas, a primeira metade do século XX e as relações internacionais do
Brasil na primeira república e na era Vargas. Eles são, respectivamente, os seguintes:
Harvey J. Kaye: The Fight for the Four Freedoms: What Made FDR and the
Greatest Generation Truly Great (New York: Simon & Schuster, 2014, 292 p.).
Neill Lochery: Brazil: The Fortunes of War, World War II and the Making of
Modern Brazil (New York: Basic Books, 2014, 314 p.)

O primeiro livro é um exemplo evidente do chamado pensamento liberal


americano, ou seja, um autor socialdemocrata, praticamente de esquerda, em todo caso,
um rooseveltiano convencido e um new dealer engajado, se o New Deal ainda estivesse
em vigor (mas ele acredita que Obama está nessa linha, embora não tenha feito tanto
quanto deveria, contra as corporações e a oposição reacionária). Quando eu li, logo na
Introdução, que os Estados Unidos estiveram submetidos, nos trinta anos anteriores, às
corporate priorities e ao private greed, eu pensei que o autor estivesse brincando, mas é
isso mesmo: ele acha que a grande geração de Roosevelt teve de enfrentar uma powerful
conservative, reactionaire opposition, para salvar o país da economic ruin and political
oblivion. Deve ter sido isso mesmo, mas eu não estava acostumado com uma história
em preto e branco desde algum tempo.
Em todo caso, se trata de uma boa história, feita a partir dos papeis deixados por
FDR em seus arquivos de Hyde Park, sobre a construção dos Estados Unidos como hoje
eles se apresentam ao mundo: não mais isolacionistas, não mais voltados para si
mesmos, mas engajados no mundo, e mais igualitários (ou pelo menos deveria ser
assim) e mais democráticos. O eixo central é dado obviamente pelas quatro liberdades
242
que Roosevelt moldou logo ao início da guerra europeia, e que ele proclamou em sua
mensagem ao Congresso de janeiro de 1941, logo após conquistar o seu terceiro
mandato e antes, portanto, que os Estados Unidos fossem atacados e entrassem,
finalmente, na guerra (da qual eles já vinham participando pelo apoio irresoluto
concedido ao Reino Unido, praticamente sozinho no enfrentamento da máquina de
guerra de Hitler).
Os quatro grandes conceitos foram expostos com invulgar clareza no seu State
of the Union, na tarde do dia 6 de janeiro de 1941, em face de todo o Congresso reunido
para ouvi-lo. Roosevelt, que já vinha procurando superar as resistências isolacionistas
do Congresso, para converter os EUA no “Arsenal da Democracia”, insistiu na tecla de
que seria ilusório tentar esconder-se atrás de grandes muralhas defensivas, daí a
necessidade de preparar adequadamente a nação para qualquer eventualidade. Ele então
proclamou a sua visão do mundo, os grandes princípios em torno dos quais todos os
americanos estariam unidos, não apenas para si mesmos, mas para todo o mundo:
“In the future days, which we seek to make secure, we look forward to a world
founded upon four essential freedoms. The first is freedom of speech and expression …
The second is freedom of every person to worship God in his own way … The third is
freedom from want … The fourth is freedom from fear…” E ele acrescentou logo em
seguida: “That is no vision of a distant millennium. It is a definite basis for a kind of
world attainable in our own time and generation.” (p. 75)
Esses princípios seriam inscritos na Carta do Atlântico, que Roosevelt assinou
com Winston Churchill, em agosto seguinte, nas costas do Canadá, e foram consagrados
depois na carta das nações unidas, no ano seguinte; eles constituíram uma espécie de
“New Deal for the world”, como afirmou a historiadora Elizabeth Borgwardt p. 88). O
livro dela (citado em nota da p. 239), é este aqui: A New Deal for the World: America’s
Vision for Human Rights (Cambridge, MA: Harvard University Press, 2005).
O Brasil viria a assinar a carta das nações unidas logo em seguida ao seu
engajamento ao lado dos Estados Unidos no esforço de guerra, no seguimento do ataque
japonês a Pearl Harbor e da declaração de guerra pela Alemanha, o que determinou o
rompimento de relações diplomáticas do Brasil com as potências do Eixo, uma decisão
que leva sobretudo a marca de Oswaldo Aranha. Vargas e o seu chanceler de 1938 até
1944 estão justamente no centro do segundo livro aqui registrado, pelo historiador
britânico Neill Lochery, professor de Mediterranean and Middle Eastern Studies do
College University of London, já autor de um livro sobre a neutralidade de Portugal na
243
Segunda Guerra Mundial, mais especificamente sobre o papel de Lisboa, enquanto
centro de intrigas, espionagem e negociações durante todo o decorrer da guerra.
A Introdução do livro já começa destacando o famoso documento-guia que
Oswaldo Aranha preparou para as conversas de Vargas com Roosevelt, no encontro que
ambos tiveram no Rio Grande do Norte, em janeiro de 1943, uma lista de objetivos de
guerra que o Brasil declarava aos EUA, mas que também podem ser vistos como uma
espécie de planejamento estratégico feito pelo grande chanceler para assegurar uma
posição de realce para o Brasil na ordem internacional que estaria sendo desenhada
pouco mais à frente para assegurar a paz e reconstruir o mundo. Seu caráter de lista de
demandas não esconde a visão grandiosa que Oswaldo Aranha mantinha quanto ao
papel do Brasil naquele mundo em efervescência. Vale a pena citá-las, uma por uma, e
verificar, hoje, onde estamos, ou como ficamos, em relação a cada um dos pontos. O
autor cita a partir do artigo de Frank D. McCann, um conhecido historiador brasilianista
do exército brasileiro e da aliança militar dos anos de guerra: “Brazil and World War II:
The Forgotten Ally. What Did You Do in the War, Zé Carioca?”, Estudios
Interdisciplinarios de América Latina y el Caribe 6, n. 2 (Tel Aviv University, July-
December 1995, 35-70; mas o link citado à p. 309 deve ser substituído por este aqui:
http://www1.tau.ac.il/eial/index.php?option=com_content&task=view&id=741&Itemid
=283). Antes de reproduzir a lista, vale retomar os argumentos iniciais de Aranha.
Oswaldo Aranha acreditava, pragmaticamente, que a política tradicional do
Brasil, de apoiar os Estados Unidos no mundo, em troca do seu apoio na América do
Sul, deveria ser mantida “até a vitória das armas americanas na guerra e até a vitória e a
consolidação dos ideais americanos na paz.” Os Estados Unidos iriam liderar o mundo
quando a paz fosse restaurada e seria um grave erro se o Brasil não estivesse do seu
lado. Ambas nações eram “cósmicas e universais”, com características continentais e
globais. Ele tinha plena consciência de que o Brasil era uma “nação economicamente e
militarmente fraca”, mas o seu crescimento natural, ou as migrações do pós-guerra, lhe
dariam o capital e a população que o fariam tornar-se, “inevitavelmente um dos grandes
poderes políticos do mundo”. A sua lista combinava objetivos imediatos e de mais
longo prazo, como reproduzida no artigo de McCann e no livro de Lochery (p. xv):

1) a better position in world politics;


2) consolidation of its superiority in South America;
3) a more secure and intimate cooperation with the United States;
4) greater influence over Portugal and its possessions;
244
5) development of maritime power;
6) development of air power;
7) development of heavy industries;
8) creation of war industries;
9) creation of industries -agricultural, extractive, and light mineral- complementary to
those of the United States and essential for world reconstruction;
10) expansion of Brazil's railways and highways for economic and strategic purposes;
11) exploration for essential combustible fuels.

Observando-se a lista de Oswaldo Aranha, com os olhos de 2014, o que poderia


ser dito dos seus objetivos de guerra, do ponto de vista do atingimento de cada um deles
em tempos de paz e nos setenta anos decorridos desde a sua redação? Registro aqui que
os argumentos dos próximos parágrafos são meus, e não constam do livro de Lochery.
Uma melhor posição na política mundial? Um objetivo certamente avançado
depois da democratização e da estabilização macroeconômica, esta última iniciada sob
Fernando Henrique Cardoso no governo Itamar Franco, e consolidada nos dois
governos FHC, o que foi plenamente aproveitado pelo governo Lula para desenvolver
uma diplomacia ativa, beneficiado ainda pelo enorme impulso dado pela demanda
chinesa por produtos brasileiros de exportação para acumular alguma riqueza e projetar
influência na região e no mundo. Não é seguro que essa posição tenha sido consolidada
com a visível retração registrada no período recente, mas também por iniciativas pouco
avisadas ou altamente controversas, ainda sob Lula e mantidas por sua sucessora, com
alianças dúbias com regimes pouco recomendáveis, e uma retração formidável na
defesa da democracia e dos direitos humanos nos planos regional e mundial. Talvez se
consiga, novamente, num futuro indefinido, uma “melhor posição na política mundial”,
mas isso vai depender, seriamente, de uma melhoria na qualidade da política externa,
hoje dominada por companheiros viciados numa visão do mundo anacrônica e
distorcida quanto aos reais interesses do Brasil.
Uma consolidação da “superioridade” brasileira na América do Sul? Trata-
se bem mais de uma ilusão do que de um objetivo, mas ele deve ser visto numa outra
perspectiva, que era a de Oswaldo Aranha, em face de uma Argentina superior nos
planos econômico e militar, e que tinha, sim, uma vocação de afirmar sua influência no
entorno imediato e nas relações com as grandes potências, a Grã-Bretanha e os próprios
Estados Unidos. A Argentina era o “inimigo principal” em qualquer cálculo que os
militares brasileiros pudessem fazem no plano estratégico e no contexto tático, e os
maiores recursos de segurança e defesa, não necessariamente ofensivos, estavam
dispostos ao longo das fronteiras meridionais. Apenas por isso Aranha colocou esse
245
objetivo em segundo lugar, e não necessariamente para impor uma liderança imperial do
Brasil na região; a superioridade deveria ser vista aqui apenas como uma agregação
suficiente de forças para tornar o país “inatacável” por qualquer vizinho, a começar pelo
mais “íntimo inimigo”. Essa situação está agora completamente superada, mas só os
ingênuos e os amadores em diplomacia – entre eles vários companheiros, mas também
alguns homens de negócios – falam em liderança brasileira na região; para o Itamaraty,
esse tema é tabu, embora haja a percepção de que a consolidação de um espaço
econômico integrado, baseado em abertura de mercados e intensa cooperação em
projetos de integração física, seriam suficientes, junto com a afirmação plena dos
valores da democracia e dos direitos humanos, para assegurar essa liderança, que seria
natural, e não imposta. Mas, parece que estamos recuando em todas essas frentes, para
maior tristeza dos diplomatas profissionais e dos liberais econômicos (que são poucos,
mas ainda existem em nosso país).
Uma cooperação mais íntima e mais segura com os Estados Unidos? Difícil
dizer em quais termos, pois impérios universais não mantém relações de igual para igual
nem mesmo com seus mais “íntimos” aliados. O Brasil sempre manteve desconfiança
em relação ao gigante do norte, mesmo nos anos de aliança não escrita dos tempos do
Barão, e naqueles de aliança militar no imediato pós-guerra, o que só fez crescer nos
anos seguintes, com os desejos dos militares – e de vários diplomatas – de uma rápida
nuclearização do Brasil, em face dos esforços americanos de contenção da proliferação
nessa área (e não apenas como cálculo estratégico, e sim também em função de uma
visão do mundo menos belicoso, digamos assim). Essa cooperação sempre foi difícil e
não parece que tenha se tornado mais plausível no período recente, muito pelo contrário
(já que o antiamericanismo dos companheiros salta aos olhos de qualquer neófito). Este
não pode ser um objetivo em si, mas é uma possibilidade, dentro de certas condições e
circunstâncias, que provavelmente vão exigir maior grau de capacitação brasileira para
ser colocado novamente na agenda bilateral; mas, paradoxalmente, parece que o Brasil
só vai se capacitar mais rapidamente por meio de uma “cooperação mais íntima e mais
segura com os Estados Unidos”, o que pode parecer bizarro a mais de um título.
O quarto objetivo, com respeito a Portugal e suas “possessões”, mudou de
caráter, mas essa influência é certamente maior hoje do que foi no passado colonial, e
tende a se tornar ainda mais relevante, inclusive em direção de Portugal, embora o lento
crescimento e a perda de competitividade dos últimos anos tenham diminuído o ímpeto
brasileiro na “reconquista” da antiga metrópole.
246
Os objetivos 5 a 11, são todos eles instrumentais, alinhados numa época em que
o Brasil era um país economicamente atrasado, em todas as áreas, e se esperava que os
Estados Unidos financiassem, e fornecessem a tecnologia, para nossa capacitação em
todas elas. Aos trancos e barrancos fomos avançando nas décadas seguintes, tanto com
os fluxos de investimentos estrangeiros e de financiamento externo, quanto com a
cooperação bilateral nas áreas científicas e tecnológicas, um processo que continua sem
cessar, tanto na vertente pública, quanto nas diversas interfaces privadas. Em alguns
ramos industriais, e certamente em quase todo o setor agrícola, o Brasil se tornou um
país avançado, até mesmo um “killer”, em matéria de competitividade agrícola, e isso
tem tanto a ver com a cooperação externa (basicamente americana), quanto com a
construção de uma base própria de capital humano e científico. Não se pode dizer que
tenhamos nos tornado uma formidável potência militar, mas o que existe garante um
mínimo de dissuasão, quando não de projeção externa em dimensões limitadas. Para se
ter mais nessa área, seria preciso convencer a sociedade a aceitar mais gastos militares,
ou com segurança, de modo geral, o que não parece compatível com necessidades bem
mais prementes em várias áreas sociais. Aliás, o Brasil não é mais forte militarmente
não porque invista pouco nessa área, mas porque seus recursos humanos são deficientes
de maneira geral, na inovação tecnológica em especial. Trata-se de um resultado de
políticas erradas na área educacional, que não têm nada a ver com debilidades próprias
do establishment militar.
Bem, mas o livro de Neill Lochery, Brazil: The Fortunes of War, não trata
dessas questões senão em sua introdução e conclusões, pois o essencial do livro está
dedicado ao envolvimento do Brasil na guerra, o que é feito de maneira minuciosa e
competente. No conjunto, os dois livros constituem leitura muito agradável e, nos dois
casos, altamente instrutiva quanto aos dois temas foco de cada um Kaye é bem mais
ideológico, no seu rooseveltismo radical, do que Lochery, um inglês equilibrado e
bastante objetivo em suas considerações analíticas sobre o Brasil. Seu livro me
confirmou a impressão, que já tenho desde longos anos, de que o Brasil perdeu uma
enorme oportunidade ao não ter tido uma personalidade como Oswaldo Aranha na
liderança efetiva do país, em algumas das chances em que a história poderia ter aberto
uma janela para ele: em 1934, em 1937, em 1945, em 1950, ou mesmo em 1955; em
todas elas ele poderia, hipoteticamente, estar à frente de uma coalizão liberal para fazer
do Brasil um país muito diferente do que foi, sob a condução de políticos populistas, de
líderes militares muito próximos do corporatismo de corte fascista, ou de incompetentes
247
manifestos, como podem ter sido Dutra, Goulart ou mesmo alguns outros em fases
subsequentes. Oswaldo Aranha foi muito obsequioso com seu chefe e amigo, mas
poderia ter continuado a ser a “estrela da revolução”, que foi na coalizão liberal de
1930, e que depois se perdeu no labirinto do varguismo maquiavélico. Foi uma pena
para o país, uma pena para todos nós.

2713. “Dois livros: as Quatro Liberdades e um Projeto para o Brasil”, Hartford, 7


novembro 2014, 7 p. Notas sobre os livros de Harvey J. Kaye: The Fight for the
Four Freedoms, e de Neill Lochery: Brazil: The Fortunes of War, retirados da
biblioteca pública de West Hartford. Publicado em Mundorama (Boletim n. 87,
9/11/2014; ISSN: 2175-2052; link: http://mundorama.net/2014/11/09/as-quatro-
liberdades-e-um-projeto-para-o-brasil-leitura-de-dois-livros-recentes-por-paulo-
roberto-de-almeida/). Postado no blog Diplomatizzando (link:
http://diplomatizzando.blogspot.com/2014/11/dois-livros-as-quatro-liberdades-
de.html), no Academia.edu (link:
https://www.academia.edu/10006757/2713_Dois_livros_as_Quatro_Liberdades_e_
um_Projeto_para_o_Brasil_2014_) e disseminado no Facebook. Relação de
Publicados n. 1151.

248
32. Algumas recomendações de leituras

Sergio Florencio: Os Mexicanos (São Paulo: Contexto, 2014, 240 p.)


Você sabia que os mexicanos têm uma lista dos mais amados (Benito Juarez e
Pancho Villa, entre eles), mas também dos mais odiados (Cortez, obviamente, e também
Porfírio Díaz) personagens da sua história? Sabia que somos parecidos com eles? Este
livro, por quem foi embaixador no México, apresenta uma história diferente do país que
é apresentado como competidor do Brasil; de fato é, mas não como esperado: buscam os
dois a prosperidade, a partir de bases sociais e comportamentos econômicos similares.
Uma análise exemplar, feita do ponto de vista de um brasileiro que é fino observador
das qualidades e idiossincrasias de um povo dotado de uma rica história de realizações,
mas também de frustrações. Os desafios parecem semelhantes; serão também as
soluções? Descubra um México diferente num livro em que o Brasil está presente.

Paulo Estivallet de Mesquita: A Organização Mundial do Comércio (Brasília: Funag,


2013, 105 p.)
Parece difícil resumir em menos de 100 pequenas páginas a teoria do comércio
internacional, a evolução prática do próprio, o estabelecimento do sistema multilateral
de comércio, desde o Gatt e seus caminhos tortuosos, até chegar na OMC e todos os
seus acordos e funcionamento. Uma proeza realizada por este engenheiro agrônomo que
249
se fez diplomata, e que aplica o rigor da sua ciência de origem à análise dos problemas
das relações econômicas internacionais, com ênfase no comércio e nos seus conflitos. O
sistema parece uma bicicleta: é preciso avançar, pois qualquer parada pode significar
retrocesso, não estabilidade. A interrupção da Rodada Doha, o recuo no protecionismo
em alguns grandes países (alguns até próximos) são desafios graves, mas os acordos de
livre comércio não são a resposta ideal. Só faltou a bibliografia para uma obra perfeita.

Lauro Escorel: Introdução ao Pensamento Político de Maquiavel (3a. ed.; Rio de


Janeiro: Ouro Sobre Azul, FGV, 2014, 344 p.)
Escrito em 1956, publicado pela primeira vez em 1958, novamente em 1979,
este clássico da maquiavelística brasileira é agora apresentado por um acadêmico e
complementado por uma conferência de 1980 do autor, que se tornou “maquiavélico”
ao servir na capital italiana em meados dos anos 1950. Para Escorel, “as observações de
Maquiavel sobre a política externa dos Estados continuam a apresentar... uma
extraordinária atualidade”. O florentino foi o primeiro grande teórico da política do
poder. Mas no plano interno também, Escorel segue Maquiavel em que a política é um
“regime de precário equilíbrio entre as forças do bem e as forças do mal, em que estas
muitas vezes superam aquelas...”. Os dois colocam o “problema cruciante das relações
da política com a moral”, que está no centro da obra do italiano.

Paulo Roberto de Almeida: Nunca Antes na Diplomacia...: a política externa brasileira


em tempos não convencionais (Curitiba: Appris, 2014, 289 p.)
Tudo o que você sempre quis saber sobre a diplomacia companheira e nunca
teve a quem perguntar? Agora talvez já tenha, sobre quase tudo. Em todo caso, figura
aqui uma avaliação do que representaram, para a política externa, os anos do lulo-
petismo, com a independência de um acadêmico que também integra a diplomacia.
Existem episódios que ainda vão requerer pesquisa em arquivos para saber como foram
exatamente decididos, e provavelmente lacunas subsistirão, tendo em vista justamente
as características especiais de uma diplomacia que não partiu essencialmente de sua
casa de origem, mas andou combinada a outros estímulos, não arquivados. Parece que
ela foi ativa, altiva e soberana, como nunca antes tinha acontecido. Outros traços
emergirão num futuro balanço, ainda sem data. A História a absolverá? A ver...

250
Rogério de Souza Farias: A palavra do Brasil no sistema multilateral de comércio
(1946-1994) (Brasília: Funag, 2013, 885 p.)
Uma coletânea, de alta qualidade, dos mais importantes pronunciamentos feitos por
representantes brasileiros desde as negociações que precederam a constituição do Gatt
(1946-47), passando pela Unctad (1964), até a criação da OMC (1994). O livro
representa um repositório de grande relevância para todos os pesquisadores da história
econômica brasileira, uma vez que compila documentos originais e outros materiais de
referência (fotos, resumos biográficos dos negociadores brasileiros, etc.), mas constitui,
igualmente, um instrumento de trabalho para os negociadores diplomáticos de nossos
tempos. O livro vem acompanhado por informações e fotos dos representantes e de
notas de rodapé explicativas de cada contexto negociador. O denso prefácio e a longa
introdução merecem leitura atenta; os temas abordados em cada capítulo constituem
matéria prima indispensável para conhecer a história econômica e diplomática brasileira
no plano do comércio internacional. Parece que pouco mudou...

Eugênio Vargas Garcia: Conselho de Segurança das Nações Unidas (Brasília: FUNAG,
2013, 133 p.)
Tudo o que você sempre quis saber a respeito do CSNU e nunca teve a quem
perguntar, ou onde ler. Agora já tem: neste pequeno grande livro de um historiador
diplomata que já escreveu sobre o itinerário frustrado do Brasil na Liga das Nações e
sobre as tentativas novamente frustradas para ser admitido no inner sanctum da sua
sucessora. Mais que isso: a obra refaz não apenas a trajetória histórica desse órgão
central da ONU, como percorre a geopolítica de sua atuação e funcionamento político
(com algumas tinturas jurídicas), sempre focado nas reais alavancas de poder, isto é, o
monopólio dos cinco membros permanentes (mas a China só ingressou em 1971). Uma
síntese bem sucedida, uma bibliografia atualizada e uma reflexão sobre as realidades do
poder atual, que reflete a posição brasileira em importantes questões da agenda da ONU
e do seu desejado CS.

Carlos Márcio B. Cozendey: Instituições de Bretton Woods (Brasília: FUNAG, 2013,


181 p.)
Cada linha da obra está impregnada de um triplo conhecimento: histórico,
teórico e prático, sobre as origens, o desenvolvimento, nas décadas seguintes, e sobre o
funcionamento atual dos dois irmãos de Bretton Woods, o Banco e o Fundo, que foram

251
criados em 1944 na pequena cidade do New Hampshire para presidir à ordem
econômica do pós-guerra. O autor é o secretário de Assuntos Internacionais da Fazenda,
e como tal segue, no G20 e em outras instâncias, as negociações para a reforma do
sistema monetário, que já passou por fases melhores do que a atual. Depois das
paridades cambiais estáveis, o regime de flutuação não ajuda a manter a estabilidade
mundial, mas o maior perigo advém dos desequilíbrios fiscais nacionais, um tema que
todavia foge do escopo deste livro.

Harvey J. Kaye: The Fight for the Four Freedoms: What Made FDR and the Greatest
Generation Truly Great (New York: Simon & Schuster, 2014, 292 p.).
O livro foi feito a partir dos papeis deixados por Franklin Delano Roosevelt em
seus arquivos de Hyde Park: o eixo central é dado pelas quatro liberdades que Roosevelt
proclamou no State of the Union de janeiro de 1941, logo após conquistar o seu terceiro
mandato, antes, portanto, que os Estados Unidos fossem atacados e entrassem na guerra.
Roosevelt, que já vinha procurando superar as resistências isolacionistas do Congresso,
para converter os EUA no “Arsenal da Democracia”, insistiu na tecla de que seria
ilusório tentar esconder-se atrás de muralhas defensivas. Os quatro grandes conceitos,
em torno dos quais os americanos deveria estar unidos, não apenas para si mesmos, mas
para todo o mundo, foram os seguintes: liberdade de expressão, de religião, da penúria e
do medo. Esses princípios seriam inscritos na Carta do Atlântico, que Roosevelt assinou
com Winston Churchill, em agosto de 1941, nas costas do Canadá, e foram consagrados
no ano seguinte na Carta das Nações Unidas, uma espécie de “New Deal for the world”,
que seria a base da Carta da ONU, assinada em San Francisco, em 1944.

Neill Lochery: Brazil: The Fortunes of War, World War II and the Making of Modern
Brazil (New York: Basic Books, 2014, 314 p.)
O autor é um historiador britânico, professor de Mediterranean and Middle Eastern
Studies do College University of London, e seu livro está dedicado ao envolvimento do
Brasil na guerra, o que é feito de maneira minuciosa e competente. A introdução da obra
já começa destacando o famoso documento-guia que Oswaldo Aranha preparou para as
conversas de Vargas com Roosevelt, no encontro que ambos tiveram no Rio Grande do
Norte, em janeiro de 1943, uma lista de objetivos de guerra que o Brasil declarava aos
EUA, mas que também podem ser vistos como uma espécie de planejamento estratégico
feito pelo grande chanceler para assegurar uma posição de realce para o Brasil na ordem
252
internacional que estaria sendo desenhada pouco mais à frente para assegurar a paz e
reconstruir o mundo. Oswaldo Aranha acreditava, pragmaticamente, que a política
tradicional do Brasil, de apoiar os Estados Unidos no mundo, em troca do seu apoio na
América do Sul, deveria ser mantida “até a vitória das armas americanas na guerra e até
a vitória e a consolidação dos ideais americanos na paz.” Os Estados Unidos iriam
liderar o mundo quando a paz fosse restaurada e seria um grave erro se o Brasil não
estivesse do seu lado. Ambas nações eram “cósmicas e universais”, com características
continentais e globais. Ele tinha plena consciência de que o Brasil era uma “nação
economicamente e militarmente fraca”, mas o seu crescimento natural, ou as migrações
do pós-guerra, lhe dariam o capital e a população que o fariam tornar-se,
“inevitavelmente um dos grandes poderes políticos do mundo”. Pena que Oswaldo
Aranha não se tornou presidente do Brasil.

Henry Kissinger: World Order (New York: Penguin Press, 2014, 433 p.)
Trata-se, provavelmente, do último livro, de tipo conceitual, de um dos mais
destacados intelectuais americanos (de origem germânica), acadêmico de longa carreira,
que também se destacou em atividades executivas, primeiro como conselheiro de
segurança nacional, depois como Secretário de Estado, ator de primeiro plano das
relações exteriores dos Estados Unidos e das próprias relações internacionais, consultor
de quase todos os presidentes americanos desde os anos 1950 e de alguns governos
estrangeiros também. Frustrante para os leitores de nossa região, o livro não devota nem
mesmo um capítulo, sequer uma mísera seção, à América Latina ou ao Brasil, nas dez
grandes unidades da obra, todas elas dedicadas aos grandes atores ou aos problemas
percebidos como relevantes para o estabelecimento ou a preservação de uma ordem que
de fato não existe. Após uma introdução de tratamento conceitual da questão título, ele
dedica dois capítulos à ordem europeia surgida com a paz de Westfália e o sistema de
balanço de poder daí resultante, um ao mundo islâmico e às desordens do Oriente
Próximo, outro voltado exclusivamente para as relações entre os Estados Unidos e o Irã,
dois outros sobre a Ásia (sua multiplicidade e a emergência de uma ordem “asiática”),
dois capítulos inteiros sobre a diplomacia dos Estados Unidos (a ideia de uma ordem
internacional na tradição wilsoniana e o seu papel atual como “superpotência
ambivalente”) e, finalmente, dois capítulos finais voltados para questões tecnológicas e
de informação e de proliferação, e sobre a evolução provável de uma ordem mundial

253
ainda largamente indefinida. Para ser mais preciso, a América Latina não aparece
sequer no índice remissivo do livro, embora nele exista a entrada western hemisphere. O
Brasil só é mencionado duas vezes, ambas en passant e de maneira irrelevante: a
primeira para falar sobre o impacto mundial das revoluções europeias de 1848, a
segunda na companhia da Índia (que recebe tratamento mais amplo nos capítulos
asiáticos da obra) como exemplo de nações emergentes. Fora isso, um grande livro.

Francis Fukuyama: The Origins of Political Order: From Prehuman Times to the
French Revolution (New York: Farrar, Straus and Giroux, 2011, 620 p.) e Political
Order and Political Decay: From the Industrial Revolution to the Globalization of
Democracy (New York: Farrar, Straus and Giroux, 2014, 660 p.)
Dois volumes que resumem o pensamento de um dos mais influentes cientistas
políticos dos EUA, que retoma o trabalho seminal que tinha sido conduzido por um de
seus mestres, o finado autor do “conflito de civilizações” (não um de seus melhores
livros), Samuel Huntington, em seu clássico Political Order in Changing Societies
(New Haven: Yale University Press, 1968), que tinha sido traduzido no Brasil por
Heitor Ferreira Lima, um dos assessores do “guru” do regime militar no Brasil, Golbery
do Couto e Silva em seus esforços de distensão e de transição política para uma ordem
pós-autoritária durante a presidência Geisel. Os dois livros valem por um tratado de
política, mas que praticamente confirmam um tese pré-concebida: o “fim da história”,
se existir, se parece muito com o modelo político americano, que é a culminação das
possibilidades democráticas nas sociedades liberais e avançadas de mercado. Mas o
próprio Fukuyama reconhece que a democracia americana está sendo gradualmente
conduzida a impasses institucionais pela rigidez do sistema bipartidário polarizado
atualmente existente.

2732. “Algumas recomendações de leituras: lista seletiva”, Hartford, 16 dezembro


2014, 6 p. Fichas rápidas de alguns livros, para publicação no site do Instituto
Millenium; publicado em Mundorama (n. 88, dezembro de 2014; ISSN: 2175-
2052; link para o boletim: http://mundorama.net/2014/12/31/boletim-mundorama-
no-88-dezembro2014/; link para o artigo: link para o artigo:
http://mundorama.net/2014/12/18/algumas-recomendacoes-de-leituras-lista-
seletiva-por-paulo-roberto-de-almeida/). Reproduzido no blog Diplomatizzando
(link: http://diplomatizzando.blogspot.com/2014/12/recomendacoes-de-leituras-
para-curiosos.html) e divulgado no Facebook. Relação de Publicados n. 1154.

254
33. Estratégia diplomática: relendo Sun Tzu para fins menos belicosos

Os argumentos constantes do presente ensaio analítico se inserem num conjunto


de trabalhos – já feitos ou em preparação – que podem ser enfeixados na categoria dos
“clássicos revisitados”, entre os quais um Manifesto Comunista adaptado a estes tempos
de globalização,13 e um Moderno Príncipe,14 que pretende aproveitar os conceitos do
florentino para a política atual. Da mesma forma, pode-se reler Sun Tzu e aproveitar os
ensinamentos contido na Arte da Guerra15 para uma reflexão de caráter conceitual sobre
a estratégia diplomática – referida simplesmente como ED – no contexto das relações
internacionais contemporâneas. A esse título, não se trata de refazer, obviamente, uma
“arte da guerra para diplomatas”, e sim tão somente de tecer considerações sobre uma
(e não a) estratégia diplomática, com base nos argumentos basicamente filosóficos – e,

13
Ver Paulo Roberto de Almeida, Velhos e novos manifestos: o socialismo na era da
globalização (São Paulo: Juarez Oliveira, 1999).
14
Cf. Paulo Roberto de Almeida, O Moderno Príncipe: Maquiavel revisitado (Brasília: Senado
Federal, 2010).
15
O clássico de Sun Tzu pode ser encontrado facilmente na internet, numa infinidade de edições
eletrônicas, em várias línguas e nas mais diferentes traduções e adaptações para o Português,
voltadas tanto para o contexto militar quanto para o mundo dos negócios.
255
claro, muitas regras práticas – presumivelmente redigidos pelo conhecido mestre chinês,
legitimamente considerado o “pai da estratégia” (no seu caso, militar).

Da diplomacia como um instrumento do Estado


A diplomacia é de vital importância para o Estado. Talvez não tão crucial quanto
a defesa do Estado por suas forças armadas, pois destas depende a própria sobrevivência
física do Estado. Este pode, teoricamente sobreviver sem manter intensas relações
internacionais, ou sem exercer uma diplomacia ativa. Mas ele dificilmente teria vida
longa, ou conseguiria preservar seus interesses vitais, sem uma capacitação adequada
em matéria de instrumentos defensivos (que são, igualmente, mecanismos ofensivos,
credíveis, tanto para a dissuasão quanto para o ataque).
A diplomacia é, todavia, crescentemente relevante não apenas para a defesa dos
interesses fundamentais de um Estado, mas sobretudo para se alcançar os objetivos
nacionais relevantes de uma nação no contexto contemporâneo, partindo do pressuposto
que a sociedade humana e a comunidade das nações se afastam, cada vez mais, do
direito da força para aderir à força do direito. O mundo contemporâneo abandonou,
progressivamente, os esquemas restritos dos arranjos interimperiais – embora a última
instância da política internacional permaneça com as grandes potências – para adentrar
no multilateralismo dos esquemas de segurança coletiva consolidados nos instrumentos
onusianos. Da diplomacia depende – paralelamente ao exercício potencial do poder
militar – a preservação de um ambiente de paz e de estabilidade, tanto quanto de
cooperação nos planos bilateral, regional ou multilateral a que aspira todo Estado que
privilegia a solução de controvérsias pela via das negociações. Esta é uma condição
essencial, hoje indispensável, para o crescimento econômico sustentado, os avanços
tecnológicos, o progresso social, a preservação do meio ambiente, enfim, para a
prosperidade comum.
Adaptando nossa releitura de Sun Tzu ao contexto diplomático, poderíamos
dizer que a arte da diplomacia implica cinco fatores principais, que devem ser objeto de
nossa contínua reflexão, com vistas a aperfeiçoá-los e incorporá-los cada vez mais às
nossas práticas de servidores do Estado no campo da política externa. Estes cinco
fatores são: a doutrina, a interação entre a conjuntura e a estrutura, os condicionantes
econômicos e geopolíticos da ação diplomática, o comando e a disciplina. A partir
desses cinco fatores é possível elaborar uma “estratégia diplomática”, que será objeto da
segunda seção deste ensaio introdutório.
256
A doutrina tem a ver com a concepção mesma da diplomacia, a sua razão de
ser. Ela diz respeito aos princípios inspiradores da diplomacia, aos valores que
fundamentam a sua ação, às diretrizes que guiam essa ação na prática. Ela também se
refere a uma noção clara dos interesses nacionais e aos instrumentos indispensáveis à
implementação dos objetivos fundamentais do Estado, cujo pressuposto básico é,
obviamente, o ato de dispor de uma doutrina básica para sua atuação diplomática – sem
esquecer uma estratégia militar -- no cenário internacional.
A interação entre a conjuntura e a estrutura pode ser vista como o
equivalente funcional daquilo que Sun Tzu chamava de tempo. Essa interação supõe a
combinação da sincronia e da diacronia – ou seja, o momento presente e a flecha do
tempo –, que constituem os dois vetores de atuação diplomática ao longo de um
determinado período. Toda diplomacia lida com o aqui e o agora, mas ela o faz tendo
em vista as consequências futuras das ações adotadas na presente conjuntura e levando
em consideração a herança recebida do passado recente, que imprime sua marca sobre a
mente dos diplomatas e determina, em grande medida, a forma como eles vão agir no
presente.
Os condicionantes econômicos e geopolíticos representam o fator que Sun Tzu
chamava de espaço, isto é, o ambiente concreto no qual devem se movimentar os
“exércitos” diplomáticos, em busca da materialização dos objetivos nacionais.
O comando atende aos mesmos critérios estabelecidos pelo mestre chinês da
arte da guerra para esse conceito. Ele tem a ver com a capacidade exibida pelas
lideranças diplomáticas – o estadista, o chanceler, os altos responsáveis pela formulação
da doutrina e pela definição das principais diretrizes diplomáticas – de indicar
claramente aos membros da comunidade diplomática nacional quais são os objetivos
pelos quais eles devem se bater.
Sun Tzu considerava que o comando deveria ter as seguintes qualidades:
sabedoria, sinceridade, benevolência, coragem e disciplina. Dessas cinco qualidades, a
primeira é certamente necessária ao comandante, assim como a quarta, embora esta
deva pertencer mais ao comandante militar do que propriamente ao chefe da
diplomacia. Maquiavel certamente descartaria a segunda e a terceira, ou seja, a
sinceridade e a benevolência, embora considerasse esta última como um recurso a que o
condotier poderia apelar quando estivesse em situação de força, justamente. Quanto à
ultima, deve ser considerada mais como uma variante do rigor consigo mesmo do que o
257
exercício da disciplina “contra” seus próprios subordinados, que é o objeto do último
fator da arte da diplomacia.
A disciplina, no plano da diplomacia, tem a ver com organização e métodos, ou
seja, a construção de uma ferramenta burocrática que seja, ao mesmo tempo, eficiente e
inovadora, prudente e ousada, preparada no plano da informação e do conhecimento e
apta a seguir instruções de forma ordenada e coerente, atuando como uma agência
homogênea e uniforme. Isto é possível quando o estamento burocrático-diplomático
possui processos de socialização e de construção de um pensamento relativamente
unificado e convergente.
Com base nesses cinco fatores, as autoridades diplomáticas de um Estado podem
planejar seus objetivos externos – a que chamaremos de “estratégia diplomática – a
partir de um conjunto adicional de fatores instrumentais que têm a ver, essencialmente,
com a implementação prática desses objetivos, quaisquer que sejam eles. Entre esses
fatores figuram os seguintes: a capacidade dos dirigentes diplomáticos em formular
metas realistas e adequadas para a mobilização efetiva do estamento profissional
diplomático; a avaliação correta dos limites e possibilidades oferecidas pelo sistema
internacional para que aqueles objetivos possam ser alcançados; o uso eficiente de todos
os mecanismos e instrumentos do sistema internacional – instituições formais, grupos
informais, coalizões temporárias de interesse, combinação de iniciativas bilaterais,
coordenação regional e exploração dos canais multilaterais – segundo a natureza de
algum objetivo específico; coordenação interna das agencias públicas que detêm alguma
interface internacional e instruções claras aos agentes diplomáticos nas diversas frentes
negociadoras para se alcançar eficácia máxima nas iniciativas diplomáticas desse
Estado.
Mesmo sob condições democráticas, e portanto transparentes, a eficiência e a
eficácia na ação diplomática de um Estado depende, em parte, do tratamento discreto
que possa atribuir a determinados temas de seu interesse crucial na frente externa. Toda
negociação diplomática é, por definição, uma barganha entre interesses por vezes
convergentes, mas em certa medida contraditórios, quando não divergentes ou opostos
(na medida que todo e qualquer acordo sempre implica em custos políticos e
econômicos, a começar pela perda relativa de soberania, o que se deve limitar o máximo
possível). Daí a necessidade de se encaminhar um determinado tema com base em
argumentos de utilidade geral e de benefício recíproco que podem oferecer a base para
um entendimento mais próximo dos interesses nacionais.
258
Esta questão implica também que o trabalho de avaliação deve envolver não
apenas os interesses próprios do Estado em questão, mas igualmente os interesses do
Estado, ou dos Estados com os quais se negocia, de maneira a permitir as acomodações
necessárias. Dito isto, caberia, portanto, passar aos argumentos principais, que têm a ver
com a elaboração e a implementação de uma estratégia diplomática (ED).

Da estratégia diplomática como uma das artes especializadas do Estado


Analogamente a seu equivalente militar, mas nisso talvez destoando um pouco
de Sun Tzu, poderíamos dizer que a ED consiste na mobilização de instrumentos
políticos, econômicos e militares – ponderados com base numa avaliação comparada e
em análises conceituais e factuais sobre as intenções dos demais participantes do jogo
diplomático – com vistas à consecução de objetivos nacionais bem definidos, mas sem o
recurso à, ou a ameaça do uso da, força militar ou à guerra. Nesse sentido, a ED se opõe
à, ou se distingue da, estratégia militar, que pressupõe, de sua parte, o uso ou a ameaça
de uso da força bruta, segundo linhas que já foram suficientemente discutidas ao longo
da história, desde Sun Tzu até os modernos estrategistas militares, passando por
Clausewitz, Henry Kissinger ou Raymond Aron.
No plano puramente conceitual, a formulação de uma ED implica a análise dos
fatores contingentes, de obstáculos conjunturais e de barreiras de caráter estrutural que
dificultam – em alguns casos até obstaculizam – o atingimento dos objetivos nacionais,
tais como definidos pelos estrategistas de um determinado Estado, uma comunidade
variada que pode envolver desde estadistas até burocratas do planejamento
governamental, passando por representantes da cidadania e consultores independentes
(membros da academia, especialistas setoriais, etc.). No plano operacional, a ED
pressupõe a mobilização de todos os instrumentos à disposição desse Estado para o
atingimento daqueles objetivos, o que implica o uso dos meios propriamente
diplomáticos, mas também o apoio das forças armadas e da comunidade econômica do
país.
Todo Estado moderno, atuante, inserido na comunidade internacional,
normalmente dotado de órgãos executivos e de planejamento, possui, ou deveria
possuir, uma ED. Não se deve, evidentemente, superestimar uma ED: não se trata de
algo fixo ou rígido, estruturalmente determinado, mas de uma concepção determinada
por fatores conjunturais e até contingentes, concomitante às iniciativas dos Estados e às
ações humanas.
259
Uma ED realista e flexível deve submeter-se, desde logo, a constantes revisões,
tantos são os fatores de mudança conjuntural e as alterações no cenário político
internacional que influenciam ou impactam os objetivos nacionais de um Estado. Ela
deve estar, portanto, sujeita a avaliações regulares por parte de um staff especialmente
preparado para essa finalidade e dedicado funcionalmente a esse tipo de tarefa. Não
conviria, aliás, que o órgão encarregado da elaboração de uma ED fosse exclusivo e
excludente, ou seja, trabalhando unicamente em torno da ED, e sim que ele seja aberto a
insumos externos e à colaboração de especialistas e consultores alheios ao próprio
órgão, de forma a manter uma atmosfera aberta inovadora, permitindo até revisões
radicais da “velha” ED (ou seja, indo temporariamente num sentido contrário à “razão
de Estado”).

Uma ED, ainda que elaborada por um governo determinado, não é, ou não
deveria ser, uma concepção e uma ação de um governo, e sim uma iniciativa e uma
postura de Estado, ou seja, interessando antes à Nação do que aos partidos e
personalidades ocupando temporariamente o poder. Como atividade típica de Estado, a
ED deve estar sujeita ao escrutínio de todas as forças, movimentos e grupos de opinião
representativos da Nação, ser objeto de discussão e de avaliação quanto a seus
fundamentos concretos, seus instrumentos operacionais, seus objetivos explícitos e suas
metas implícitas. Normalmente é isso que ocorre em sistemas democráticos, tanto mais
intensamente quanto mais abertos e transparentes são os elementos centrais que definem
e ajudam a implementar uma ED.
Os processos de concepção, elaboração e de revisão da ED se dão no corpo do
Estado, envolvendo as agências voltadas para as relações exteriores, os órgãos de defesa
e o governo central, ademais das instâncias voltadas precipuamente para planejamento
de políticas e de análises aplicadas; eles passam pelo parlamento e alcançam a
sociedade, por meio da opinião pública, devidamente informada pelos órgãos de
informação.

O planejamento de uma ED implica, antes de qualquer outra ação, tratar dos


meios próprios a uma organização diplomática: de nada serve ter uma ED sem a
ferramenta que a implementará. Estamos falando aqui de funcionários, equipamentos,
recursos, organização, enfim, todos os meios com os quais todo e qualquer Estado leva
260
sua ED da fase de concepção à de aplicação no terreno. Na diplomacia, como na guerra,
nada existe estaticamente, ou de forma puramente passiva, mas, sim, compõe-se de
interações dinâmicas; os meios precisam ser sempre mantidos, aperfeiçoados,
substituídos, instruídos e monitorados.
Diferentemente da guerra, porém, não é preciso ter um planejamento logístico
destinado a concentrar forças e operações ofensivas num espaço de tempo delimitado e
num terreno previamente estudado. Em outros termos, as ações diplomáticas não
necessitam de uma “concentração de fogo” para se lograr alguma vantagem decisiva no
calor da batalha. A dinâmica diplomática é mais cumulativa, do que “destrutiva”, e as
operações podem ser delongadas em função de uma avaliação contínua e mutável das
condições do “terreno”, em função da interação com o “adversário”, que, no ambiente
diplomático, não significa uma atitude de confrontação como na guerra e nas demais
operações militares. A ED é bem mais intangível do que a EM, baseada no
planejamento, certamente, mas em última instância na força bruta.
Diferente da guerra, também, a conduta diplomática se baseia menos em meios
materiais, ou equipamentos “pesados”, e mais em negociações diretas, quase pessoais,
entre os atores. Não se trata de “aniquilar” o inimigo, mas sim de convencer e compor
com um parceiro, mais que um adversário. A guerra desgasta, se mantida durante muito
tempo, ao passo que a diplomacia avança, com a composição de interesses. A
“logística” da diplomacia possui uma lógica própria, baseada – aliás, como no caso das
operações militares – na presença sobre o “terreno” e na interação constante com o
“adversário”; diferentemente, porém, não se trata de vencê-lo, mas de compor com ele
um novo terreno de interações e de cooperação.
Essa presença tem um “preço”, que é o custo da manutenção de representantes
diretos – os “agentes avançados” dos serviços de inteligência militar – e do envio de
missões temporárias e permanentes, assim como o engajamento pleno em negociações
em nível bilateral, regional ou multilateral. Esse preço pode ser o equivalente funcional
da manutenção, bastante custosa no âmbito militar, de equipamentos pesados que se
destinam, na verdade, a não serem usados, mas que servem basicamente para dissuasão.
No caso da diplomacia, a “dissuasão” é na verdade o diálogo e o entendimento, se
possível no mais alto nível (mas de ordinário mantida pelo representante permanente,
normalmente chamado de embaixador).
A condução da diplomacia será, evidentemente, diferente, segundo o Estado
ostenta um regime político centralizado ou unitário, próximo do autoritarismo, ou se
261
esse Estado exibe características claras de descentralização, com dispersão relativa dos
centros de poder e participação de vários atores políticos e sociais. O Estado do mestre
chinês da arte da guerra, não obstante a descontinuidade ocasional trazida por uma
sucessão extraordinária de dinastias, invasões e de reconstruções sucessivas do sistema
político, exibiu notável continuidade na centralização imperial, no limite do despotismo
“hidráulico”. Nesse tipo de regime, a condução da diplomacia obedece, simplesmente, à
vontade do soberano, com alguma participação dos cortesãos e membros do aparato
estatal restrito (antigos mandarins, modernos aparatchiks).

A condução da diplomacia nas modernas condições democráticas se faz sob


forte pressão de forças sociais suscetíveis de expressar posições distintas e de
influenciar o processo de tomada de decisão no plano externo. A despeito da
legitimidade que possam exibir essas demandas, seria conveniente que o Estado, em
especial seu aparelho diplomático, preservasse sua latitude de ação e ampla margem de
opções, de maneira a escolher as melhores vias – que envolvem alianças ocasionais,
coordenações formais e até iniciativas individuais – para alcançar os objetivos nacionais
desse Estado. Pode-se inclusive conceber certa autonomia de iniciativa e de ações
atribuída ao negociador principal, da mesma forma como se concede pleno poder de
comando ao general em seu campo de batalha. Em momentos decisivos, essa autonomia
deve ser plena, posto que a autoridade responsável pelo sucesso (ou fracasso) de uma
negociação ou iniciativa diplomática é o próprio agente no terreno, não o soberano em
sua capital distante.
Em todas essas questões, Sun Tzu tem muito a ensinar aos diplomatas
profissionais (e até aos iniciantes).

2251. “Formação de uma estratégia diplomática: relendo Sun Tzu para fins menos
belicosos”, Brasília, 5 março 2011, 8 p. Sun Tzu revisitado com o objetivo de traçar
uma estratégia diplomática. Publicado na Espaço Acadêmico (ano 10, n. 118, março
2011, p. 155-161; ISSN: 1519-6186; link:
http://www.periodicos.uem.br/ojs/index.php/EspacoAcademico/article/view/12696/
6714). Republicado em Mundorama (7/03/2011; link:
http://mundorama.net/2011/03/07/formacao-de-uma-estrategia-diplomatica-
relendo-sun-tzu-para-fins-menos-belicosos-por-paulo-roberto-de-almeida/).
Relação de Publicados n. 1023.

262
34. Memória e diplomacia: o verso e o reverso

Memórias, pelo menos memórias publicadas, não são para qualquer um: elas
geralmente constituem o apanágio e a distinção daqueles que tiveram um itinerário de
vida semeado de grandes e importantes cruzamentos com a vida política nacional (ou
até internacional) e que desempenharam algum papel de relevo em alguns dos
episódios. Pode ocorrer, também, com indivíduos que foram simplesmente testemunhas
desses fatos, mesmo com alguma participação mínima nesses eventos, aquilo que
Raymond Aron chamou, para si mesmo, de “espectador engajado” (ver suas Memórias,
publicadas em 1983, e o livro de depoimento, que leva justamente esse título). Todos
esses deveriam se sentir compelidos a colocar no papel, ou em qualquer outro suporte
memorialístico, aqueles registros pessoais que apresentem relevância para a
compreensão desses episódios, fatos e eventos de que tenha, ou não, participado, mas
sobre os quais podem oferecer um depoimento inteligente. Líderes da área econômica,
mesmo não tendo participado de fatos relevantes, mas que foram importantes em
processos mais estruturais de transformação produtiva na vida de um país também
podem oferecer suas “memórias do desenvolvimento”, pois de certa forma ajudaram a
construí-lo e a enriquecer a sociedade.
Os diplomatas, pela sua importância “locacional” em determinados episódios da
interface externa do país, também poderiam oferecer bons testemunhos sobre os grandes

263
eventos internacionais a que assistiram ou dos quais foram partícipes, ainda que em
posição de baixa responsabilidade decisória. Muitos deles conviveram e assessoram
estadistas, chefes de Estado e ministros, e se ocuparam justamente de processar a
informação, colocá-la no contexto, oferecer resumos sintéticos e propostas de decisão
para aqueles mesmos encarregados de tomá-las e se situam, assim, numa posição
privilegiada para relatar o que viram, ouviram e até o que fizeram. São muitos os relatos
diplomáticos e também numerosas as memórias de diplomatas, um gênero infelizmente
muito pouco cultivado no Brasil, pelo menos entre os burocratas “normais” da carreira.
Podem ser contadas nos dedos das duas mãos – e não precisamos dos dedos dos
pés – as memórias de diplomatas, o que é de certa forma lamentável, não apenas no
plano individual, mas também como evidência de uma lacuna institucional. O volume
reduzido de depoimentos pessoais significa que a Casa, o ministério (que possui uma
excelente memória coletiva) não se ocupa de resguardar as memórias individuais de
seus membros, por meio de um programa sistemático de preservação de papéis
individuais e de depoimentos organizados, que ultrapassem o aborrecido dos
burocráticos maços individuais, para alcançar o que se poderia chamar de reflexão sobre
a carreira e sobre os episódios mais relevantes que a rechearam. Elas existem, por certo,
mas bem mais como resultado de uma decisão pessoal do que por estímulo do serviço
diplomático, e de forma mais organizada numa entidade externa – o Cpdoc, por
exemplo – do que por iniciativa da própria instituição.
Algumas dessas memórias cobrem mais o trivial da carreira, como exemplo o
livro de Luis Gurgel do Amaral: O Meu Velho Itamarati (De Amanuense a Secretário
de Legação) 1905-1913 (2a. ed.: Brasília: Fundação Alexandre de Gusmão, 2008; 1ra.
ed.: Imprensa Nacional,1947), um despretensioso relato sobre os tempos do Barão e a
chamada belle époque (certamente não no Brasil, pois o Rio de Janeiro ainda estava
infestado de mosquitos da febre amarela, e o próprio Barão se refugiava em Petrópolis).
Outras são bem mais consistentes, como o excelente depoimento escrito do próprio
punho pelo ex-chanceler Mario Gibson Barboza: Na Diplomacia, o traço todo da vida
(Rio de Janeiro: Record, 1992). Na mesma época, foi publicado um livro de pretensões
mais modestas, do ex-chanceler Ramiro Saraiva Guerreiro: Lembranças de um
Empregado do Itamaraty (São Paulo: Siciliano, 1992).
Pertencentes a um período histórico ainda anterior a esses depoimentos que
cobrem, em grande medida, o período militar, figuram as memórias de Manoel Pio
Correa Jr, O mundo em que vivi (Rio de Janeiro: Expressão e Cultura, 1996, 2 volumes),
264
e as de Vasco Leitão da Cunha, Diplomacia em alto-mar: depoimento ao CPDOC (Rio
de Janeiro: Editora da Fundação Getúlio Vargas, 1994). Roberto Campos, o diplomata-
economista, também deixou suas memórias; mas elas interessam menos, talvez, ao
estudioso da história diplomática do Brasil do que ao pesquisador de sua história
econômica: A Lanterna na Popa: memórias (Rio de Janeiro: Topbooks, 1994; 4a. ed.
rev. e aum.; Rio de Janeiro: Topbooks, 2001-2004, 2 volumes). Ele era, certamente,
uma ave rara no Itamaraty, que provavelmente não soube apreciá-lo à altura de sua
capacidade, em virtude de sua posição bastante crítica à postura excessivamente
“terceiro-mundista” do Itamaraty.
O mais recente exemplo no gênero memorialístico pode ser atribuído a Ovídio
de Andrade Melo, que em seu algo desconjuntado depoimento encomendado por
colegas ideologicamente afins, Recordações de um Removedor de mofo no Itamaraty:
relatos de política externa de 1948 à atualidade (Brasília: Fundação Alexandre de
Gusmão, 2009), trata da política nuclear do Brasil e da recusa ao TNP, do
reconhecimento de Angola e dos seus périplos afro-asiáticos. Flavio Mendes de Oliveira
Castro também ofereceu um depoimento mais para o anedótico, em Caleidoscópio:
cenas da vida de um diplomata (Rio de Janeiro: Contraponto, 2007); mas ele já tinha
reunido uma importante documentação sobre a própria casa e seus chefes nesta obra de
1981, recentemente atualizada e reeditada: Dois séculos de história da organização do
Itamaraty; 1: 1808-1979; 2: 1979-2008 (Brasília: Fundação Alexandre de Gusmão,
2009, 2 volumes). Mais específica a uma determinada fase da vida de um diplomata, e
juntando memória pessoal e depoimento sobre uma época, é este livro de Carlos Alberto
Leite Barbosa: Desafio Inacabado: a política externa de Jânio Quadros (São Paulo:
Atheneu, 2007). Outros cobrem praticamente toda a vida diplomática, pelo menos
acima do conselheirato: foi o caso de Vasco Mariz em: Temas da política internacional:
ensaios, palestras e recordações diplomáticas (Rio de Janeiro: Topbooks, 2008).
Também existem aqueles que juntam discursos, conferências, palestras e artigos
publicados – muitos deles escritos por assessores – para realizar uma compilação em
formato de livro, acrescido de algumas reflexões introdutórias ou comentários esparsos,
o que parece ter sido o caso de Paulo Tarso Flecha de Lima, em seu Caminhos
Diplomáticos: 10 anos de agenda internacional (Rio de Janeiro: Francisco Alves, 1997)
ou, mais recente, de Luiz Felipe Lampreia: O Brasil e os Ventos do Mundo (Rio de
Janeiro: Objetiva, 2010). Os que não têm tempo de sequer fazer isso, apenas pedem que
se lhe juntem os discursos (raramente escritos da própria mão) e os publicam às
265
expensas do contribuinte, como já ocorreu com vários chefes da Casa. Outros
colecionam papéis, importantes, que depois eventualmente serão disponibilizados pela
família ou pessoalmente; foi o caso de Paulo Nogueira Batista, por meio desta
coletânea: Suely Braga da Silva: Paulo Nogueira Batista: o diplomata através de seu
arquivo (Rio de Janeiro: Cpdoc; Brasília: Funag, 2006); e também de um dos pioneiros
da diplomacia econômica no Itamaraty: Teresa Dias Carneiro: Otávio Augusto Dias
Carneiro, um pioneiro da diplomacia econômica (Brasília: Funag, 2005).
Relevantes, também, são os depoimentos prestados ao Cpdoc, uma vez que eles
vêm com um aparato crítico-metodológico que os próprios diplomatas não estão
habituados a preparar. Podem ser citados, nessa categoria, João Clemente Baena Soares:
Sem medo da diplomacia: depoimento ao Cpdoc (organizadores Maria Celina D’Araujo
et alii; Rio de Janeiro: FGV, 2006); Marcílio Marques Moreira: Diplomacia, Política e
Finanças (Rio de Janeiro: Objetiva, 2001); e o próprio Vasco Leitão da Cunha, já
citado. Aguarda-se agora o depoimento de Rubens Antonio Barbosa, em curso de
preparação pelo mesmo Cpdoc.
Um traço comum à maior parte dos depoimentos, memórias e entrevistas
coletadas é a adesão de quase todos eles à chamada “cultura da Casa”, feita de certo
conformismo pouco crítico com a política externa – que muitas vezes eles ajudaram a
forjar ou a defender –, uma “fidalguia” de caráter que os impede de apontar lacunas
sérias no modo de funcionamento do ministério e muita benevolência em relação às
supostas excelências do serviço diplomático brasileiro. Poucos são críticos, como
Roberto Campos, e os que são, como Ovídio Mello, o fazem por clara adesão política a
correntes que nunca pertenceram ao chamado mainstream diplomático brasileiro,
embora tenham permeado seu pensamento desenvolvimentista e terceiro-mundista.
Esse é, digamos assim, o reverso da medalha das “memórias diplomáticas”: elas
expõem ou justificam algumas políticas, mais do que discutem seus fundamentos ou
oferecem reflexões livres sobre suas implicações para o país e a sociedade.
Todos esses depoimentos, memórias e coletâneas de documentos e reflexões são
relevantes na construção de uma memória “viva” – se é o caso de se dizer – da história
diplomática brasileira; mas muito ainda falta a ser feito para se alcançar certo rigor na
tomada de depoimentos – que deveria ser um empreendimento oficial e coletivo, por
exemplo – e na sua depuração crítica, com todo o aparato da técnica historiográfica.
Mais importante, o Itamaraty não dispõe sequer de um historiador oficial, que possa
juntar os documentos mais relevantes, agrupá-los tematicamente e colocá-los à
266
disposição dos pesquisadores e do público at large, como ocorre com a U.S. Foreign
Relations series. Tempo virá, certamente, em que esse tipo de trabalho se fará em bases
permanentes e regulares, com a ajuda dos muitos historiadores que já ingressaram na
carreira diplomática.

2187. “Memória e diplomacia: o verso e o reverso”, Shanghai, 23 Setembro 2010, 4 p.


Notas sobre memórias e memorialistas da carreira. Postado no blog
Diplomatizzando (link: http://diplomatizzando.blogspot.com/2010/09/memorias-
diplomaticas-paulo-r-de.html). Publicado em Boletim Mundorama (n. 37, setembro
2010, 23.09.2010; link: http://mundorama.net/2010/09/23/memoria-e-diplomacia-
o-verso-e-o-reverso-por-paulo-roberto-de-almeida/#more-6474). Relação de
Publicados n. 992.

267
35. Da democracia à ditadura: uma gradação cheia de rupturas

Democracias, ma non troppo


O mundo, obviamente, ainda não se ajustou ao “fim da História”, no sentido da
convergência da maioria dos países para regimes políticos e para sistemas econômicos
próximos das democracias de mercado (capitalistas), como sugeria, tentativamente,
Francis Fukuyama. Ele o fará, gradualmente, já que o núcleo central da tese de
Fukuyama é basicamente correto – retirando-se a metáfora hegeliana do “fim da
História”, resta que o desenvolvimento socioeconômico e a consolidação da
prosperidade social, permitidos justamente por uma economia de mercado dinâmica,
trazem naturalmente um regime político mais conforme à atomização dos poderes e dos
mercados capitalistas (baseados, institucionalmente, em mecanismos de representação,
de negociação e de conciliação).
Já tratei dessas questões em outro trabalho e não vou voltar a elas neste
momento (ver: Paulo Roberto de Almeida, “O Fim da História, de Fukuyama, vinte
anos depois: o que ficou?”, Meridiano 47, n. 114, janeiro 2010, p. 8-17; link:
268
http://periodicos.unb.br/index.php/MED/issue/view/77). Essa transição quase natural
para a democracia política é, no entanto, um mundo ideal, para o qual caminharemos
muito gradualmente. Ele está baseado em uma adequada educação política dos
cidadãos, o que, sabemos, é uma mercadoria ainda relativamente rara nas comunidades
existentes neste planeta persistentemente pobre; de fato, as possibilidades de
desenvolvimento econômico inclusivo não encontram grandes obstáculos técnicos à sua
consecução, mas os políticos e sociais são formidáveis. No mundo real, ainda
convivemos com um número lamentavelmente grande de regimes autoritários ou de
ditaduras abertas.

Uma evolução positiva


Cabe, entretanto, reconhecer uma evolução positiva, que não deixa de ser um
fato histórico: numa linha contínua, que levaria, de um lado, do despotismo mais
exacerbado, da tirania mais execrável, até, na outra ponta, a uma democracia perfeita,
podemos constatar que o mundo avançou de modo razoável no último meio século. O
número, ínfimo, de democracias estáveis no período anterior à Segunda Guerra
Mundial, cresceu regularmente desde então, especialmente depois da implosão e virtual
desaparecimento do último sistema “escravocrata” da era contemporânea: o socialismo
real. Este existiu em diversas modalidades, sendo seu modo mais tirânico o
representado pelos totalitarismos stalinista e maoísta, mas também teve Estados
policiais perfeitamente “weberianos” – como a ex-Alemanha oriental – e socialismos
burocráticos que evoluíram ao longo do tempo (como o modelo “gulash” na Hungria e o
nacionalismo estatizante da ex-Iugoslávia).
A evolução nesses países outrora dominados por um partido único – comunista,
obviamente – não deixa de ser um fato auspicioso na história da humanidade, embora
dois pequenos bastiões do totalitarismo comunista resistam ainda na sua irrelevância
anacrônica, ao lado de várias outras tentativas de implantar, senão ditaduras abertas,
pelo menos regimes politicamente fechados, caracterizados pelo cerceamento de
liberdades elementares em regimes plenamente democráticos. Estes se caracterizam
pela liberdade de organização, de expressão e de manifestação, pela representação livre
de todos os interesses sociais presentes na sociedade, inclusive a defesa dos direitos das
minorias (sociais, étnicas, religiosas, políticas), que é o que distingue verdadeiramente
uma democracia plena.

269
Tentações totalitárias
Regimes e situações não democráticos não desapareceram, como é óbvio para
quem observa o mundo como ele é. Alguns países, que tinham conhecido uma saudável
evolução democrática – na América Latina, na África e na Ásia, sobretudo – voltaram
experimentar desenvolvimentos autoritários. Países de democracia frágil, não
consolidada, ou submetidos a conjunturas mais ou menos traumáticas de instabilidade,
no seguimento de crises econômicas e sociais, ou de rupturas políticas fora da
normalidade – sim, porque existem rupturas políticas dentro da normalidade, como
aquela conhecida no Brasil em 2002 – podem reverter o relógio da história e recair em
tentações totalitárias (não pela vontade de seus cidadãos, por certo, mas pela
manipulação que fazem de massas não educadas líderes tendencialmente autoritários).
O que são esses regimes? São ditaduras “eleitas” – sim existe, como vimos ainda
bem perto do Brasil –, populismos personalistas baseados na manipulação
propagandística e na “compra” (literalmente) dos mais humildes e despolitizados,
cesarismos plebiscitários, enfim, uma variedade sempre criativa de regimes que, no
fundo, representam um decréscimo de qualidade da democracia formal – em vários
casos apresentando inúmeras deficiências substantivas –, mesmo coexistindo com a
manutenção do voto universal (que pode ser, como frequentemente é, manipulado). De
resto, apenas o voto não caracteriza um regime democrático, como os exemplos da
Albânia nos tempos de Enver Hodja, da URSS nos tempos de Stalin, ou ainda hoje na
Cuba dos irmãos Castro, podem amplamente confirmar...

Um exercício de classificação dos regimes


Com base nas considerações anteriores, posso tentar agora oferecer um quadro
declinante – sim, reconheço meu viés valorativo – dos regimes políticos, indo dos mais
democráticos aos mais autoritários. Não vou tentar explicitar todas as razões de porque
coloquei alguns países em uma “janela” e não em outra, inclusive porque este exercício
não é exatamente “científico”, correspondendo mais bem às minhas percepções pessoais
de como vejo o mundo e a qualidade de seus regimes políticos.

(A) Democracias plenas


Não tem adjetivos, e não tem ameaças aparentes ao seu funcionamento e à sua
estabilidade. Países nórdicos, Reino Unido, Canadá, Holanda, Suíça, boa parte dos
países europeus, mas não todos.
270
(B) Democracias com disfuncionalidades leves
São países grandes ou com deformações no modo de funcionamento de seus
sistemas políticos, ou imigrações “selvagem” e certo grau de corrupção e de atos
delinquentes, ou ação agressiva de lobbies e grupos de interesse manipuladores. Eu
colocaria nessa situação os Estados Unidos, possivelmente o país mais livre do mundo,
e um dos mais democráticos, pelo fato de que se trata de um pais enorme, com muitas
desigualdades internas e algumas disfunções derivadas de um excessivo
conservadorismo político (ou anacronismo religioso, por exemplo, o que pode levar a
absurdos na educação científica e histórica, com fortes pressões criacionistas, para citar
apenas um caso). A Itália, uma democracia de baixa qualidade, pela mediocridade de
seus políticos e a corrupção disseminada, também entra nessa categoria, assim como
diversos outros países europeus, geralmente da franja meridional ou oriental. O Japão é
possivelmente um candidato pleno na categoria.

(C) Democracias de baixa qualidade


Corrupção extensiva, manipulações políticas, concentração de poder, baixo grau
de representatividade, mau funcionamento das instituições de controle, e uma miríade
de outros problemas derivados do baixo grau de educação política da maior parte da
população. Estão nesse caso Índia e Brasil, amiúde citados como “duas grandes
democracias em países em desenvolvimento”, o que deve ser tomado com certa caução.
A Argentina e o México também entram nessa categoria, assim como grande parte dos
países latino-americanos e vários asiáticos e a África do Sul.

(D) Regimes autoritários abertos


Uma gama imensa de situações, respondendo aos mais diversos fatores de
concentração de poder, em alguns casos por falta de tradição democrática – seria o caso
da Rússia, por exemplo –, em outros por regressão populista momentânea (como vem
ocorrendo em alguns países da América Latina). Esses países podem tanto evoluir para
uma democracia de baixa qualidade, quanto descambar para situações ditatoriais mais
ou menos fechadas. É o caso, por exemplo, do Irã, país dotado de uma sociedade civil
muito ativa, mas atualmente dominado por uma teocracia regressista que pode colocá-
lo, conjunturalmente, na categoria seguinte, uma quase ditadura.

271
(E) Ditaduras disfarçadas
Conservam certa aparência de democracia, mas consolidaram grupos ou
personalidades no poder que manipulam os processos políticos, perseguem os
opositores, concentram todo o poder e literalmente desmantelam as instituições em seu
benefício exclusivo. O exemplo mais notório é, obviamente, a Venezuela, que muitos
confundem com um regime progressista de esquerda, mas que nada mais é senão um
triste exemplo do velho fascismo por demais conhecido nos anos 1930. O caudilho
destrói todas as instituições, ou as coloca a seu serviço exclusivo.

(F) Regimes autoritários fechados


Sistemas infensos ao voto popular ou com monopólio político de um grupo ou
partido no poder: Birmânia (ou Miamar), Síria, Egito, China, grande parte dos países
africanos e alguns poucos asiáticos, como alguns saídos do casulo soviético (mas
mantidos com os mesmos aparatchiks do velho sistema comunista). Alguns já foram
totalitários, mas se tornaram menos “carnívoros”; outros eram democracias de fachada
que não resistiram ao líder providencial e candidato a insubstituível.

(G) Países totalitários


Nem é preciso explicar por que: Cuba, Coréia do Norte se enquadram
perfeitamente no modelo mais lamentável que o socialismo bolchevique deixou como
herança do início do século 20. Devem desaparecer, mas o sofrimento em que incorrem
ou incorreram (como a China nos tempos de Mao) seus povos é indizível.

Nessas diferentes categorias, não parece haver problemas classificatórios nos


escalões A, B e G, mas os estratos intermediários sempre colocam problemas, já que as
dinâmicas políticas, em países não totalmente estruturados politicamente, podem tanto
aproximá-los formalmente de modelos passavelmente democráticos (ainda que de
baixíssima qualidade), ou, no outro sentido, fazê-los cair nas malhas das ditaduras mais
ou menos abertas ou disfarçadas. Outra ainda é a situação de Estados falidos – vários
africanos, ou o Haiti, no hemisfério ocidental – que sequer possuem instituições
normais de um Estado em funcionamento mínimo, para atender serviços básicos de sua
população, retrocedendo para a guerra civil ou vivendo de assistência pública
internacional, numa espécie de tutela dos organismos internacionais (com esmolas
adicionais introduzidas pelas ONGs).
272
Por fim, ainda que isto ofenda os “brios democráticos” de muitos brasileiros –
sobretudo aqueles que vivem circulando em torno do parlamento ou que vivem de
empregos ou favores do governo –, não tenho nenhuma hesitação em classificar o Brasil
como uma democracia de baixa qualidade, ainda que seja uma categoria relativamente
esdrúxula nos anais da ciência política: o Brasil tem todas as características dessa
categoria, e atende todos os requisitos de uma democracia de baixa qualidade, inclusive
porque tem muita gente ativíssima na arte de construir um regime fechado ou autoritário
à solta por aí; então não há porque promovê-lo, por enquanto, para o grupo das
democracias com algumas disfuncionalidades, categoria a que pertencem países que são
em geral considerados perfeitamente democráticos.
Sorry, folks, mas minhas exigências democráticas são muito altas, e eu não me
contento com pouco...

P.S.: Quem quiser criticar minha abordagem, é obviamente livre de fazê-lo, mas
eu apreciaria receber argumentos mais consistentes do que gritos indignados. Ou seja,
aceitam-se reclamações justificadas, inclusive dos pequenos déspotas que circulam por
aí, fazendo a infelicidade de seus povos...

2145. “Da democracia à ditadura: uma gradação cheia de rupturas”, Shanghai, 22 maio
2010, 5 p. Considerações sobre os tipos de regime políticos existentes no planeta,
com uma classificação baseada em sete categorias de países, das democracias
plenas a Estados totalitários (felizmente em número reduzido). Postado no blog
Diplomatizzando (link: http://diplomatizzando.blogspot.com/2010/05/gradacoes-
da-democracia-um-exercicio-de.html). Publicado no boletim Mundorama
(31.05.2010; link: http://mundorama.net/2010/05/30/da-democracia-a-ditadura-
uma-gradacao-cheia-de-rupturas-por-paulo-roberto-de-almeida/). Relação de
Publicados n. 969.

273
Sexta Parte
O Brasil e o mundo, de um século a outro

275
36. Da diplomacia dos antigos comparada à dos modernos

Sob a inspiração e com o devido copyright moral corretamente atribuído


a um antecessor bem mais antigo e famoso: Benjamin Constant (De la liberté
des anciens comparée à celle des modernes, discurso em 1819; disponível:
http://www.panarchy.org/constant/liberte.1819.html; acesso em 21/04/2015).

Messieurs,
Eu me proponho submeter-vos algumas distinções – ainda bastante novas chez
nous – entre dois gêneros de diplomacia, cujas diferenças recíprocas podem ter, hélas,
permanecido despercebidas até aqui, ou que, pelo menos, foram pouco ressaltadas pelos
ensaístas. Uma é a diplomacia tradicional, tal como praticada pelos antigos, bastante
apreciada por eles, tanto pelos profissionais do ramo, quanto pela sociedade em geral. A
outra, é esta que estamos vendo implementada pelos modernos, e que lhes parece, a
eles, perfeitamente adequada às necessidades do país, quando, na verdade, ela só
contempla os interesses do pequeno grupo que a formulou e que a conduz. Tal exercício
de comparação, se não me engano, me parece interessante por duas razões principais.

277
Primeiramente, a confusão entre as duas espécies de diplomacia constitui entre
nós, sobretudo numa época revolucionária como esta, a causa de muitos males. O país
parece ter cansado de tantos experimentos inúteis, cujos autores, irritados pelo pouco
sucesso que tiveram nessas experiências amadoras, ainda tentam constrangê-lo a aceitar
tudo aquilo que a sociedade manifestamente não quer. Em segundo lugar, porque o
governo atual veicula uma noção de democracia e de participação popular que está nas
antípodas do que se descobriu serem os desejos – talvez confusos – dos estratos mais
esclarecidos da sociedade, que se redescobre um poder que, até aqui, ela acreditava não
possuir. Abrem-se, portanto, perspectivas diferentes daquelas que tivemos até há pouco,
desde a ruptura entre os tempos dos antigos e esta época dos modernos, chances talvez
nunca antes percebidas pela opinião pública mais engajada na participação cidadã.
Eu sei que se tenta confundir a exata apreensão e a correta compreensão dessa
realidade, apelando para falsos sinais de adequação entre a diplomacia moderna e a
antiga, supostamente equivalentes, ou ainda, tomando a primeira como funcionalmente
superior à segunda, o que é obviamente falso. A própria opinião pública hesita quanto
aos caminhos e ações que devem ser tomados para realmente conciliar o que era forte e
valioso, nos tempos antigos, e o que de novo lhe pretendem vender como sendo a sua
vontade, mas que, aparentemente, nada mais é senão o chamado ouro dos tolos, a eterna
mercadoria do populismo, envelopado na fantasia da mistificação. Vamos, portanto,
neste exercício, efetuar as distinções que se impõem entre os dois tipos de diplomacia.

Da diplomacia dos antigos (sem qualquer demérito pela antiguidade)


Os tempos antigos, do Ancien Régime, não eram perfeitos, como todos sabem.
Depois de convulsões políticas e sobressaltos econômicos, a nação parecia finalmente
ter encontrado o caminho da estabilização, da previsibilidade, de um futuro um pouco
menos confuso e incerto, do que aqueles que prevaleciam nos tempos da tirania, ou
mesmo durante a fase de reconstrução do regime de liberdades, época assaz agitada pela
demagogia política, pela exacerbação das vontades, muito perturbada pelo rebaixamento
excepcional das moedas em circulação (foram várias). Ainda se teve de fazer ajustes de
meio de percurso, mas, ao fim e ao cabo dos tempos antigos, tudo parecia ter entrado
nos eixos para a retomada de um processo sustentado de crescimento e de prosperidade.
As dores da transição foram rapidamente sanadas, tanto porque os modernos prometiam

278
respeitar velhos acordos e convenções já formalizadas pelos antigos, e se propunham
elevar ainda mais o novo respeito alcançado pelo país nos cenáculos externos.
No que se refere especificamente à diplomacia, a dos antigos sabia preservar o
legado de tradições profissionais ainda mais antigas, e estava, senão codificada, pelo
menos sistematizada num conjunto de práticas e de posturas que contemplavam os
grandes interesses da nação na frente externa, sem constituir necessariamente uma
alavanca poderosa para o seu desenvolvimento. Mas isto se devia a que ela era
efetivamente tradicional, e se apegava ainda a velhas doutrinas que, se tinham tido
sucesso em determinadas épocas, talvez não se prestassem mais aos novos tempos de
abertura econômica e de liberalização comercial. Os diplomatas do Ancien Régime
tinham sido treinados em escolas que valorizavam antigas noções de independência
nacional e de autonomia tecnológica, de tempos nos quais se justificava o mercantilismo
e se promovia, até com orgulho, a autarquia. No geral, contudo, eles sabiam distinguir,
de modo bastante claro, entre os interesses do Estado (e da nação) e os dos grupos
políticos que a dividiam em correntes contraditórias, passavelmente opostas entre si.
Mais importante, talvez, não tanto quanto aos temas e posturas, mas quanto aos
procedimentos e formas de trabalho, a diplomacia dos antigos se desenvolvia mediante
processos e métodos formalizados e rotineiros, que constituíam uma cadeia previsível
de decisões, transparente, eficiente. Seu formato era o de uma perfeita pirâmide: na sua
base estavam os trabalhadores manuais, aparentemente assimilados aos antigos ilotas,
mas perfeitamente treinados nas técnicas e inseridos numa organização que sabia
valorizar a competência primária e a responsabilidade individual sobre dossiês adrede
distribuídos pelas áreas de competência específica. Cada uma destas era chamada a se
manifestar sobre um determinado assunto, congregando opiniões e argumentos – todos
eles rigorosamente apoiados em dados empíricos e simulações de efeitos – que depois
eram assemblados e levados à consideração do nível superior para sua ultimação sob a
forma de instrução, prontamente transmitida a um dos muitos agentes da instituição no
exterior. Os tribunos eleitos reconheciam o valor da organização e vários chefes do
Ancien Régime se valiam dessas competências, trazendo para trabalhar junto de si um
determinado número desses profissionais, que podiam assim se exercer diretamente no
centro de comando de decisões políticas. Aparentemente funcionou a contento de todos.
Este era o universo dos antigos, no campo da diplomacia; suas tarefas não eram
unicamente compostas de missões informativas ou representativas, mas também de um

279
papel formulador e executor da própria substância da política exterior que o soberano
pretendia implementar, sempre sob estreito aconselhamento e consultas constantes entre
os técnico e os responsáveis últimos pelas decisões. Plebeus e aristocratas conviviam
nessa atmosfera ainda um pouco patrimonialista, pois as regras eram conhecidas de
todos, e mesmo servos de gleba podiam aspirar, um dia, alcançar pelos seus próprios
méritos uma posição de maior realce na hierarquia disciplinada que constituía o edifício
diplomático dos antigos. Alguns membros da casta compareciam à ágora, em algumas
ocasiões, para explicar aos cidadãos as razões de tais e tais escolhas; no mais das vezes,
contudo, se tratava de um clã bastante discreto e reservado, mesmo se alguns ousavam,
por vezes, assinar escritos explicativos ou mesmo panfletos interpretativos. Os meios
não eram especialmente abundantes, mas eram suficientes para o correto desempenho
das missões que lhes eram atribuídas, de modo claro, direto, devidamente registradas
nos anais e expedientes cuidadosamente preservados e regularmente arquivados.

Messieurs, estou sendo, par hasard, condescendente com a diplomacia dos


antigos? Não creio, tanto porque frequentei muito esses meios e sei do que vos falo,
tanto pela minha experiência pessoal de terreno, quanto por delongados estudos e as
muitas missões empreendidas a serviço dos barões daqueles tempos. Não pretendo que
ela fosse perfeita, longe disso, mas parece ter sido bastante respeitada, na região e fora
dela, chegando mesmo alguns vizinhos a inventar esse provável exagero ao dizer que
essa diplomacia nunca improvisava. Não estou muito seguro disso, e creio mesmo que
ela devia improvisar de tempos em tempos, uma vez que algumas decisões tinham de
ser tomadas mesmo com escassa informação disponível, inclusive porque o pessoal era
limitado em número – a despeito de ser de qualidade notoriamente superior à de outros
serviços – e também porque a agenda de negociações não esperava que estivéssemos
totalmente prontos para nos impor toda a sua urgência e sua grande complexidade.
Muitas vezes suávamos frios em conferências multilaterais, quando decisões
relevantes para a economia nacional tinham de ser tomadas, mesmo na ausência de
instruções precisas da capital, ou em face de orientações lacunares e insuficientes para
adotar uma das opções sobre a mesa; nessas horas valia a experiência do negociador,
seu conhecimento dos dossiês, e algum tirocínio do que fosse o interesse nacional, em
toda a sua complexidade, livre de qualquer amarra da política vulgar. À falta de
instruções seguras da capital, podíamos ser conservadores, mas sempre animados de

280
propósitos legítimos: preservar os ganhos já alcançados pelo país na economia mundial,
avaliar eventuais ganhos oferecidos pelas novas regras que se cogitava implementar, e
decidir, apoiados no melhor conhecimento de que se dispunha, as opções apresentando
as melhores vantagens comparativas, ainda que relativas, como ensinou mestre David
Ricardo. Havendo cláusulas de exceção, ou reservas quanto a dispositivos intrusivos, se
podia fazer recurso a esse tipo de expediente de escape, ou de socorro. Opções abertas
sempre são de melhor alvitre do que obrigações muito rígidas ou regras inderrogáveis.
Em resumo, a antiga diplomacia, ou a diplomacia dos antigos, era um mélange
de conservação e de renovação, de cautela e de ousadia, de passos bem medidos, com
poucas rupturas de continuidade, tudo meticulosamente registrado, documentado, para
iluminar a memória dos contemporâneos com os registros do passado, e para instruir os
futuros cronistas sobre os motivos de terem sido conduzidos os assuntos em tal ou tal
sentido, num serviço tão tradicional quanto circunspecto em sua maneira de ser. Mais
importante: éramos respeitados em função do nosso saber (feito, na verdade, bem mais
de experiência adquirida) e da dedicação ao estudo dos dossiês. Até se dizia, vejam só,
que representávamos o consenso possível em matérias sempre tão complexas quanto são
os assuntos exteriores, envolvendo soberania e, mais que tudo, a credibilidade nacional.

Voilà Messieurs, creio ter traçado um retrato peut-être trop flatteur, mas assaz
realista da diplomacia do Ancien Régime, sem sequer precisar abordar algum tema de
substância, apenas me limitando ao seu espírito, ao seu modo de ser, vale dizer, à sua
natureza profunda. Não é preciso, aliás, penetrar nas querelas políticas, ou nas disputas
dos políticos – sempre mutáveis e inconstantes –, para refletir sobre as características
dessa diplomacia que criou escola e deixou saudades em espíritos mais sentimentais.
Ela constituía, acima de várias outras qualidades, um modo de ser, o resultado natural
de uma longa evolução, um estilo muito peculiar entre todos os demais serviços do
Estado. E, se me permitem uma referência literária, retirada do nosso caro Buffon, em
seu discours de réception na Academia, ousaria dizer que, nessa diplomacia dos antigos,
le style c’est l’homme même, ou seja, ela era fundamentalmente uma maneira de ser, ou
então, de navegar, entre um porto e outro de todas as representações abertas ao engenho
e arte dos nossos nômades profissionais.
Messieurs, essa era a diplomacia dos antigos, como penosamente me vem agora
à mente umas poucas lembranças, fugidias, de uma época não parece muito perto de

281
voltar, uma vez que estamos reduzidos à diplomacia dos modernos, nestes tempos não
convencionais, nunca antes vistos num país tão contraditório e tão cheio de surpresas.

Da diplomacia dos modernos (e das surpresas que ela trouxe)


O que traz a diplomacia dos modernos a esse ambiente já vetusto, mas jamais
empoeirado, que constituía a diplomacia dos antigos num país em transformação? O que
poderia ela representar de novo para um serviço talvez enclausurado na sua suficiência,
infenso às reviravoltas do poder, mas jamais distante das preocupações fundamentais da
nação? Do que seria feita a modernidade numa área tão sensível da ação estatal?
Aos olhos de alguns, parecia que, finalmente, se instalava o republicanismo por
entre as colunas um tantinho aristocráticas, quase monárquicas, do Ancien Régime. A
chegada dos modernos foi cantada em prosa e verso como sendo o reencontro da nação
com suas raízes profundas, certamente mais rústicas do que os trejeitos das elites nos
ambientes acarpetados dos palácios de função. A nação parecia prestes a resgatar certas
dívidas antigas, tão antigas quanto as oligarquias carcomidas que rapidamente foram se
aliando aos novos representantes da modernidade ensaiada, estes ainda incertos sobre
como controlar aquela máquina imensa, quase uma imensa caverna regurgitando de
tesouros insuspeitos. Lampedusa, provavelmente, saberia encontrar as palavras certas
para fazer a descrição fiel da nova situação, e saberia encontrar as boas imagens para
apresentar os cristãos-novos da modernidade anunciada em tons algo triunfalistas.
Não se tinha percebido ainda qual era o espírito dessa república de fachada, à la
Potemkin, com muita figuração e pouco conteúdo, muito discurso e pouca substância,
com excesso de publicidade e grau extremamente baixo de realizações. Na verdade, se
manteve, no começo pelo menos, muitas das orientações gerais que tinham sido legadas
pelo Ancien Régime, mesmo se este era denunciado desonestamente por alguma herança
que se pretendia malfadada. Eram arroubos de aprendizes, em meio à preservação das
anteriores linhas de conduta no tocante ao que importava: o emprego, a moeda, o valor
das pequenas coisas, a credibilidade das regras estáveis. As coisas só começaram a se
complicar, realmente, do meio para o fim, mas na diplomacia a coisa se precipitou.
A diplomacia dos antigos foi mudada desde o início, em nome de uma suposta
modernidade que hoje se considera ser uma mera volta atrás na roda da História, um
retorno a velhas concepções que acreditávamos terem sido superadas por experiências já
testadas e desacreditadas pelos fracassos acumulados em anos e décadas de ensaios e

282
erros, inclusive em tentativas frustradas dos antigos. As concepções que comandaram as
mudanças já estavam sedimentadas desde longas décadas nas mentes dos soi-disant
modernos; alguns deles, aliás, conseguiam ser ainda mais coerentemente anacrônicos:
eles mantinham as mesmas ideias desde os tempos em que o Império distribuía as cartas
um pouco em todas as partes do universo, sobretudo no hemisfério, e pretendiam aplicá-
las aos novos tempos, como se o mundo tivesse se mantido tal qual, como se o Império
fosse o mesmo, depois de quatro ou cinco décadas de mudanças não controladas.
Os modernos pretendiam rejeitar qualquer aliança com os representantes do
Império e estabelecer uma parceria dita estratégica com os representantes do Império do
Meio, que eles acreditavam ser os novos aliados preferenciais. Sequer se lembravam de
uma velha frase do mais famoso imperador do Oriente, segundo quem o imperialismo
era apenas um “tigre de papel”, e como tal deveria ser tratado. Esses companheiros
orientais, por falar nisso, abandonaram antigas diatribes anti-imperialistas e trataram de
usar a seu proveito, na máxima extensão possível, as benesses do velho Império – que
continuava novo, na verdade – para negócios dos mais diversos tipos: troca de saberes,
comércio ampliado, investimentos, pirataria, contrafação, possibilidades no campo das
capacitações humanas em ciência e tecnologia, enfim, tudo aquilo em que o Império
imperialista (se nos perdoam a redundância) continua primando pela excelência.
Totalmente ignaros quanto a essas mudanças certamente dialéticas, os modernos
inventaram uma tal de “mudança no eixo das relações de força no mundo”, para a qual
pretendiam contar com o apoio e a ação conjunta dos companheiros orientais, mas nisso
se viram frustrados pelo pouco companheirismo e reduzida coordenação da parte dos
novos companheiros. Eles até queriam inaugurar essa trouvaille bizarre que seria uma
“nova geografia do comércio internacional”, feita essencialmente de relações Sul-Sul,
como se esses intercâmbios tivessem de ser feitos à exclusão de todos os demais, com
os velhos parceiros do Norte, aliás bem mais providos de mercados e de créditos do que
os novos, os do Sul, recorrendo, por vezes, a insolvências e outras práticas heterodoxas,
digamos assim. Os modernos nem se deram conta que os companheiros orientais já
tinham inaugurado, bem antes, a tal de “nova geografia do comércio internacional”, que
era feita, justamente, de suas exportações de todos os tipos de produtos para todos os
parceiros possíveis, com ênfase especial nos mercados dos velhos imperialistas, os mais
atrativos a que podem aspirar os emergentes dinâmicos da economia mundial.

283
Em outra iniciativa infeliz, os modernos se empenharam em implodir propostas
dos velhos imperialistas de liberalizar o comércio no âmbito regional, alegando que o
que eles pretendiam não era bem integração, e sim um projeto de anexação, perverso
portanto, e como tal devendo ser devidamente sabotado pelos novos anti-imperialistas
no poder. Tal foi feito, com sucesso surpreendentemente rápido, tendo os modernos
encontrado aliados complacentes (ainda mais anti-imperialistas) no próprio continente,
o que permitiu uma implosão rápida, definitiva, sem apelo, desse projeto imperialista.
Menos feliz foi constatar que os demais possíveis parceiros na luta anti-imperialista
logo apelaram ao império para que este negociasse tratados bilaterais de adesão, que
lhes permitisse acesso privilegiado ao mercado dos velhacos imperialistas. Ah, ces
lâches, ces traîtres! Eles não percebem que estão se metendo na jaula do leão.
Inabalados por essas surpresas desagradáveis, os modernos buscaram expulsar o
império de todas as instâncias de coordenação e consulta da região, e assim também foi
feito, com a constituição de novas entidades, exclusivamente regionais, numa mostra de
orgulho e de afirmação identitários que certamente contaria com a plena aprovação dos
próceres da independência, esses antigos heróis da pátria continental, enfim liberta da
tutela imperial e de influências nefastas vindas de parceiros não desejados. Mais um
sucesso, igualmente, nessa nova empreitada, e assim passamos a dispor, graças aos
modernos, de entidades dedicadas exclusivamente aos interesses regionais, mesmo se
esses interesses estavam difusamente representados nas novas estruturas para poder
cumprir adequadamente o que supostamente eram os seus objetivos: integrar todos num
impulso vital em direção de um novo tipo de desenvolvimento, autônomo, integral,
justo, igualitário, inclusivo, progressista, soberano, ativo e altivo, bref, moderno.
Não importa muito se essa modernidade se fez em torno de velhas ideias, as tais
defendidas pelos modernos, retiradas por eles de velhos alfarrábios de outras eras, feitas
de muita intervenção estatal, de dirigismo, de protecionismo, de espaços para a
implementação de políticas setoriais de desenvolvimento nacional. Tudo isso, ao fim e
ao cabo, vai contra os objetivos da integração que se pretende impulsionar mediante
projetos grandiosos traçados nas conferências de cúpula e nos encontros políticos.
Enfim, não se pode pretender que tudo se faça ao mesmo tempo, e que tudo aconteça
como num passe de mágica, inclusive, naquilo que funcionava antes. Existia, por
exemplo, um pequeno espaço de livre comércio, que deveria evoluir para uma união
aduaneira, e depois, de maneira otimista, para um mercado comum, como o daqueles

284
velhos europeus imperialistas. O fato é que essas coisas meramente comerciais foram
julgadas pouco condizentes com o novo espírito inclusivo, progressista, dos modernos.
Não houve hesitação: o ânimo mesquinhamente comercialista que tinha presidido à
assinatura dos velhos acordos foi substituído pela nova abertura de espírito, social,
inclusivo, avançado e progressista, dos novos acordos rapidamente concluídos, todos
eles destinados a melhor defender os direitos sociais dos trabalhadores, mesmo se o
comércio – esse outro grande traidor das melhores esperanças – insistia em diminuir
perigosamente de volume e enfrentar alguns sobressaltos imprevistos.
No terreno dos procedimentos, finalmente, as mudanças foram sensíveis, lato
senso, e muito pouco sensíveis, estrito senso. A começar pela famosa pirâmide dos
processos decisórios, rapidamente invertida pelo esprit partisan, dito de centralismo
democrático (na verdade autoritário) dos modernos. Os ilotas responsáveis pelo trabalho
duro em cada uma das áreas e células em que se tinha organizado a casa antiga, numa
divisão social do trabalho dada pelas competências técnicas de cada um, passaram a ser
mais orientados pela linha do comitê central, do que preferencialmente pela análise
técnica de cada assunto do dossiê; assim, todo o processo começou a funcionar de modo
estranhamente alterado, de cima para baixo, e não segundo o curso natural das coisas,
como ocorria no Ancien Régime. De resto, como explicar decisões bizarras e tomadas de
posição inéditas, que dificilmente teriam emergido a partir do fluxo normal de estudo
dos temas, baseado na memória dos antigos e nos maços da memória coletiva? Aliás,
pergunta-se até onde, e se, algumas delas estão devidamente registradas nos cartapácios
onde antigamente se guardava todo o itinerário anotado das instruções adotadas?

Que reste-t-il de tout cela? Une photo, vieille photo, d’une ancienne demeure?
Messieurs, o quadro que estou traçando pode parecer exageradamente sombrio,
e pouco condizente com as novas disposições dos modernos, mas o fato é que nenhum
dos objetivos que eles mesmos se tinham fixado para sua diplomacia ativa e altiva – e
soberana, cela va sans dire – foram alcançados, e não foi por falta de empenho: não só o
representante le plus en vue dos modernos saiu pelo mundo em desabalada carreira de
viagens, visitas, convescotes e outras conferências grandiosas, como também o assessor
principal para essas coisas de soberania passou o tempo todo indo de um aeroporto a
outro, de uma capital a outra. Era preciso proclamar os novos tempos e as intenções de

285
mudança nas relações de força teimosamente presentes no mundo arrogante dos velhos
senhores, e de reforma do comércio internacional, em prol da tal nova geografia.

Vous savez, Messieurs, ce qui en est résulté de tous ces projets. Enfin, c’est le
droit, pour chacun, d’influer sur l’administration du Gouvernement, soit par la
nomination de tous ou de certains fonctionnaires, soit par des représentations, des
pétitions, des demandes, que l’autorité est plus ou moins obligée de prendre en
considération. Os modernos abusaram de todas essas prerrogativas até a exaustão,
multiplicando cargos e novas agências estatais à outrance. C’est probablement par un
coup de malchance que as aspirações não se materializaram; e não foi certamente por
falta de presença no mundo: nenhum petit village ficou à margem da nova cartografia
universal tão sabiamente desenhada pelo guia genial dos povos.

Mas, o que restou, finalmente, da diplomacia dos modernos, comparada à dos


antigos? Vejamos antes, brevemente, em que consistia a diplomacia dos antigos, como
nos recomendaria nosso velho amigo Benjamin Constant. Ela consistia em exercer
coletivamente, mas diretamente, antigos princípios de soberania – sem precisar ficar
proclamando a sua defesa a cada instância, a cada momento, en tout et pour tout – e a
deliberar, no pleno respeito dos processos decisórios bem experimentados, sobre todos
os acordos e os tratados de aliança e de cooperação, dos quais pleno e integral
conhecimento era dado em seguida ao corpo parlamentar da nação, para seu debate e
eventual aprovação; ela também se preocupava em dar a devida publicidade a esses atos
internacionais pelos meios disponíveis, para que os citoyens deles tivessem consciência,
sem que qualquer secret d’office fosse subtraído aos representantes da nação.
Messieurs, s’il y a un souvenir qui me poursuit sans cesse, c’est celui-ci : ele
pode até parecer une vieille chanson d’automne, mas ele se baseia nas boas qualidades
da diplomacia dos antigos em comparação com essa, supostamente “moderna”, dos
modernos. Em todos os pontos de substância, e mesmo nos de organização e métodos,
em torno dos quais as duas foram exercidas, em suas respectivas plenitudes, não
encontro modernidades efetivas na diplomacia dos modernos, só velharias, e muitos
fracassos acumulados. Alors, que reste-t-il des beaux jours das parcerias estratégicas,
escolhidas entre os anti-hegemônicos, que prometiam nos conduzir aux sommets des
inner circles do poder mundial, a tal de democratização das relações internacionais?

286
Que reste-t-il da fabulosa organização sem a tutela do império, que pretendia manter a
democracia e inaugurar uma nova era de desenvolvimento inclusivo, com comércio
ampliado entre os parceiros progressistas e novos direitos assegurados a todo o povo
trabalhador? Que reste-t-il de tout cela? Une photo, vieille photo?

O fato é, Messieurs, que a diplomacia dos modernos falhou, miseravelmente, nas


suas expectativas mais otimistas, e até nas mais prosaicas, aquelas que dependiam da
concordância dos novos aliados e parceiros estratégicos para mudar irreversivelmente o
velho mundo dos velhacos imperialistas. Existem, claro, novos e ambiciosos órgãos,
como esses bancos de financiamento estatal, que proliferaram como champignons après
la pluie, e que deveriam trazer novos negócios para nossos mais valentes capitalistas.
Mas a realidade é que não falta dinheiro no mundo; o que falta, na verdade, são bons
projetos para serem financiados com o dinheiro privado dos capitalistas, sempre ávidos
para colocar seus recursos em coisas que lhes permitam retornos razoáveis.
Esta é, de fato, uma pergunta que je me fais, Messieurs: se existe tanto dinheiro
privado pelo mundo, por que fazer arranjos financeiros oficiais em todos esses bancos
estatais, por que dispersar o dinheiro público, quando ele deveria se dirigir às nossas
necessidades realmente sociais e mais urgentes? E se uma análise de custo-benefício
indicar que não caberia realizar investimentos que tiveram uma decisão puramente
política em seu desenho e avaliação? O que fazer com tantos capitalistas promíscuos
que se aproximam dos modernos apenas para arrancar os parcos recursos? E o que dizer
dos impostos de todos os citoyens que são canalizados para projetos duvidosos no
exterior, et qui plus est, tenus dans le plus grand secret ? C’est cela une marque de
diplomatie, par hasard ? La diplomatie du secret, du cache-cache ?

J’avoue, Messieurs, que je n’ai pas de réponses à toutes ces questions. Começo
a desconfiar – mas esta já era uma suposição de départ – que a diplomacia dos ditos
modernos é feita, na verdade, de velharias, de ideias muito antigas, que se aposentaram
em outras paragens e que acabaram aportando por aqui e aqui ficando, pois encontraram
terreno fértil na cabeça de certos amadores da diplomacia, uma tribo de exóticos e de
sonhadores que ainda não atinou, hélas, que o mundo mudou, e que eles, sem perceber,
acabaram ficando anacrônicos. E se por acaso estivéssemos todos enganados, no sentido

287
em que os antigos são os verdadeiros modernos, e que os tais modernos se revelaram
surpreendentemente en arrière des faits et des choses ? Voyez bien, honnêtes gens!

Pode até ser que este meu relatório de minoria, Messieurs, não sirva para muita
coisa, em nossos tempos não convencionais. Mas não hesito em apresentá-lo aos
senhores, na esperança (peut-être illusoire) de que seu esprit de contradiction possa
convencer de ce formidable bouleversement du monde alguns céticos dispersos dans
cette ancienne demeure, riche de traditions, par trop respectable, mais devenue –
comment le dire Messieurs? – dispensable, superflue, négligeable?
Como diriam em certas terras exóticas, talvez bizarras: não há bem que sempre
dure, não há mal que nunca se acabe. Os anos de bonança, quando tudo parecia fácil e
alcançável, parecem aujourd’hui révolus. É tempo de pensar em revisar certas ideias
fora de lugar e fora de época; é hora de repensar os fundamentos dessa tal de diplomacia
dos modernos. Mal parafraseando os epígonos, ela se parece com aquelas estruturas
sociais desajustadas, perdidas na transição entre dois modos de produção, e que não
conseguiram combinar muito bem as forças produtivas da nação, uma infraestrutura
pujante ainda que contida por um Estado feudal, e a superestrutura das relações de
produção, que carecem de que lhes quebrem os grilhões que as prendem a noções
antiquadas, contaminadas pela poeira dos tempos, mesmo que pouco convencionais.
L’édifice bien décoré proposé en tant que modèle et hautement chanté par les modernes
ce serait-il, finalement, écroulé ?

Il est temps, Messieurs, de repartir, alors, pour de bon. J’ai confiance que les
bonnes idées prévaudront, car ce sont elles qui sont les bonnes, même anciennes. En
fait, Messieurs, les modernes, sommes nous. Ils sont les arriérés, les âmes candides, les
décervelés. Défions-nous donc, Messieurs, de cette admiration béate, déplacée, qu’ils
entretiennent pour certaines idées qui semblaient modernes, mais qui, en fait, ce sont
des réminiscences antiques, d’une époque complètement révolue. Libérons-nous de tout
cela, car nous ne sommes pas esclaves de concepts liés a des anciens despotismes. La
diplomatie antique, Messieurs, voilà la véritable modernité! En plus, elle défend les
libertés, contre les amis des dictatures et des tyrannies.
Réjouissons-nous donc de sages conseils de la diplomatie des anciens, car c’est
elle qui nous a amené les progrès que les civilisations réussies ont consenti à

288
l’Humanité toute entière. C’est elle qui nous a mené à tout ce que l’ancienne maison de
notre diplomatie a construit de bien et de durable. C’est elle qui va nous faire revenir
sur le chemin de l’avenir, car c’est elle qui correspond le mieux à l’éducation morale
des citoyens…

Paulo Roberto de Almeida


(com agradecimentos adicionais a Charles Trenet);
Nota final: o presente texto é alegórico, no sentido mais abstrato possível, e não
pretende reproduzir nenhuma situação concreta; honni soit qui mal y pense...

2822. “Da diplomacia dos antigos comparada à dos modernos”, Hartford, 4-7 maio
2015, 12 p. Artigo, da série clássicos revisitados, comparando a diplomacia dos
antigos, ou seja, pré-2003, com a dos modernos, ou seja, dos companheiros,
tomando como modelo o texto de Benjamin Constant, “De la liberté des anciens
comparée à celle des modernes”. Mundorama (20/05/2015; link:
http://mundorama.net/2015/05/20/da-diplomacia-dos-antigos-comparada-a-dos-
modernos-por-paulo-roberto-de-almeida/). Relação de Publicados n. 1178.

289
37. A ordem econômica mundial, do século 19 à Segunda Guerra

Respostas a questões colocadas pela RBPI, a propósito da publicação do artigo:


“Transformações da ordem econômica mundial, do final do século 19 à Segunda Guerra
Mundial”, Revista Brasileira de Política Internacional (vol. 58 (1) 127-141; link da
revista: http://www.scielo.br/scielo.php?script=sci_issuetoc&pid=0034-
732920150001&lng=en&nrm=iso; DOI: http://dx.doi.org/10.1590/0034-
7329201500107; link do artigo: http://www.scielo.br/pdf/rbpi/v58n1/0034-7329-rbpi-
58-01-00127.pdf).
Site da RBPI (30/09/2015; link: http://ibri-rbpi.org/2015/09/30/transformacoes-da-
ordem-economica-mundial-do-final-do-seculo-19-a-segunda-guerra-mundial-entrevista-
com-paulo-roberto-de-almeida/).

Perguntas da editoria da RBPI:

1) Como apontado no artigo, o liberalismo clássico não existe mais desde a década de
1930. O Estado ganhou papel mais ativo na sociedade, e as relações sociais
passaram a ser amplamente regulamentadas. Apesar disso, movimentos políticos,
como os libertários nos Estados Unidos, defendem a volta daquele modelo. O que
você acha disso?
PRA: Sendo breve, eu diria que não existe a menor chance disso acontecer, ou
seja, um volta ao “modelo” liberal, que não era modelo, e que de fato não existia. Mas
cabe elaborar um pouco mais a esse respeito, recolocando esse suposto “modelo” em
seu contexto histórico. Existem aqui duas questões de natureza diferente: o mundo real
e o mundo das ideias. O primeiro tem a ver com processos e eventos concretos, fatos

290
objetivos, ocorrendo no mundo das relações sociais efetivamente existentes: a produção,
a comercialização, fluxos e estoques de poupança, de investimentos, moedas, etc. O
segundo se refere a um conjunto de concepções sobre esse mundo, que podem ser
aplicadas ex-ante “por engenheiros sociais”, ou seja, para planejar e mudar a forma
como as comunidades humanas gostariam ou poderiam organizar aquelas relações, ou
implementadas a posteriori, ou seja, o que e como fazer em face de eventos ou fatos
objetivos que fogem ao processo normal de desenvolvimento das mesmas relações, e
que exigem respostas da comunidade, tomadas com base em certas ideias, pequenas,
modestas, ou grandiosas, verdadeiramente transformadoras. Quanto mais pretensiosas
essas ideias, maiores os desastres que podem esperar seus propositores e suas vítimas.
O capitalismo, tal como conhecido historicamente, pertence, obviamente, bem
mais ao mundo real do que ao mundo das ideias, mesmo quando ideólogos e filósofos
sociais buscaram teorizar ou explicar o “sistema”, desde o Iluminismo até a atualidade.
O fato é que nenhum cérebro genial “planejou” o capitalismo: ele foi sendo implantado
aos poucos, como resultados de processos “naturais” de desenvolvimento econômico e
social, sem qualquer central coordenadora de suas “boas” ou “más” variantes. Diferente
é o status do socialismo e das concepções coletivistas e de dirigismo econômico,
aplicadas tanto nos casos dos fascismos europeus do entre-guerras – como o fascismo
mussoliniano ou o nazismo hitlerista – quanto na experiência mais longeva do
socialismo de tipo soviético. O dirigismo também existiram na forma mais amena do
planejamento indicativo de diversos países europeus na segunda metade do século 20.
Aqui estamos falando de ideias que tentaram guiar o mundo real, sempre com falhas e
limitações intrínsecas, ou mesmo produzindo alguns desastres incomensuráveis.
O liberalismo clássico, que na verdade nunca existiu, de fato, correspondeu, no
campo do mundo real, ao chamado período do capitalismo laissez-faire, a belle Époque,
grosso modo do último terço do século 19 até a Primeira Guerra, e no campo das ideias,
ao pensamento liberal de corte essencialmente britânico (escocês ou inglês), com umas
poucas derivações continentais (Benjamin Constant ou Alexis de Tocqueville, na
França, por exemplo, ou Wilhelm von Humboldt, na Prússia). Se ele de fato existiu, no
terreno do mundo real e no das ideias, ele veio a termo bem antes de 1930, e pode ter
sido “enterrado”, pelo menos temporariamente, pelos eventos momentosos da Grande
Guerra e, depois, pelas crises do entre-guerras, sobretudo pela Grande Depressão.
Termina aí um suposto liberalismo, muito pouco liberal, e muito menos clássico; foram

291
apenas experimentos locais de liberalização política e de relativa liberdade econômica
que correspondem ao triunfo temporário das concepções burguesas do mundo.
O neoliberalismo, que se ensaiou no terreno das ideias a partir das primeiras
reuniões da Sociedade do Mont Pelérin (com Friedrich Hayek), no final dos anos 1940,
só conseguiu ter um tênue ressurgimento muitos anos depois, quando da ascensão de
líderes políticos conservadores, como Margaret Thatcher, no Reino Unido, em 1979, e
Ronald Reagan, nos EUA, em 1980. Na periferia do sistema, nunca chegou a existir
qualquer neoliberalismo consistente, embora tenham ocorrido, no México, no Chile, e
alguns outros (poucos) países, tímidos processos de reformas econômicas tendentes a
limitar os excessos do nacionalismo doentio e do estatismo esquizofrênico em uso e
abuso nos anos da grande euforia keynesiana, do final dos anos 1940 ao final dos 70.
Mais recentemente, tomaram pequeno impulso grupos liberais ou libertários, e
alguns “anarco-capitalistas”, que representam uma tentativa de “revival” de antigas
ideias liberais, ou libertárias, mas que provavelmente não vão prevalecer, no momento
presente, ou, provavelmente, em qualquer tempo do futuro previsível. Os fenômenos
são quase inteiramente políticos, ou seja, de círculos intelectuais, e dispõem de pouco
apoio dos verdadeiros capitalistas, estes sempre ocupados em obter algum tipo de
entendimento com as burocracias governamentais, com a máquina estatal. Ou seja, os
ideais liberais, ou libertários, se desenvolvem um pouco à margem dos processos reais
de organização econômica e social.
Depois desta contextualização histórica sobre o itinerário das ideias e processos
econômicos no último século, cabe responder à pergunta especificamente formulada
sobre as chances que teria, historicamente ou praticamente, uma volta a um modelo
liberal de capitalismo que teria existindo mais de um século atrás. Meu argumento,
como já referido, é que esse liberalismo, na verdade, nunca existiu, de fato, ou seja,
como expressão de tendências “naturais” do sistema capitalista nessa etapa de seu
desenvolvimento histórico. Respondendo rapidamente à primeira pergunta, portanto,
pode-se confirmar que o liberalismo “clássico”, se já não existia antes, não tem a mais
mínima chance de retornar agora, e não tem qualquer perspectiva futura em termos de
governança econômica ou de organização do Estado. Ele permanece uma ideia.
Não é que ele não tenha nenhuma chance teórica de voltar a conquistar corações
e mentes de acadêmicos, ou mesmo de algumas (pequenas) frações da opinião pública,
pois sempre existirão ideólogos liberais que conseguirão fazer passar a sua mensagem

292
de liberdades econômicas a espectros mais amplos de algumas sociedades. É que a
complexidade do mundo moderno, o agigantamento da burocracia, a dimensão já
alcançada por um sem número de programas estatais, ou públicos, nos mais variados
setores da vida social (e individual) tornam irrisórias essas chances de revival liberal no
futuro previsível. Será muito difícil, senão impossível fazer o Estado recuar para as
dimensões e a importância econômica que ele tinha um século atrás. Seria como se
tivéssemos de colocar o gênio para dentro da garrafa outra vez, ou, como já afirmou
uma mente privilegiada, de “enfiar a pasta para dentro do dentifrício novamente”.
O fato de que grupos liberais, libertários, façam campanha ou agitem bandeiras
proclamando a necessidade de se reduzir o papel e o peso do Estado na vida não só
econômica, mas simplesmente cotidiana, não significa que essa reversão seja factível ou
sequer imaginável. Já nem se está falando dos anarco-capitalistas, dos libertários, que
desejam uma ausência completa do Estado, pois eles são como os anarquistas do século
19: um punhado de sonhadores, um número muito reduzido de militantes utópicos. Os
liberais verdadeiros, aqueles que desejam apenas medidas racionais para uma maior
amplitude das liberdades econômicas na organização social contemporânea, não devem
esperar qualquer avanço notável em favor ou no sentido de sua pregação bastante
sensata e altamente razoável. O liberalismo não desapareceu, e não desaparecerá, mas
suas chances de se tornar hegemônico – o que ele nunca foi – continuam e continuarão
bastante reduzidas.
As razões podem ser resumidas assim: as sociedades contemporâneas dispondo
de economias avançadas, com um grau razoável de prosperidade e de bem-estar para a
maioria da população, ainda não enfrentaram crises fiscais verdadeiras para reverter a
natureza ainda essencialmente keynesiana de suas políticas econômicas; tampouco elas
conheceram rupturas severas de seus modelos previdenciários e assistencialistas, que as
obrigassem a desenhar e implementar sistemas alternativos de seguridade social, que
represente uma diminuição do tamanho e do custo do Estado benefactor. Os países e
economias socialistas desapareceram praticamente por completo – e o que restou são
apenas aberrações aguardando os taxidermistas – mas eles nunca foram modelo de nada,
a não ser para mentes alucinadas das academias. Quanto aos países emergentes e nações
em desenvolvimento, eles ainda estão construindo seus sistemas de assistência social e
de seguridade inclusiva para desistir no meio do caminho. Nos dois casos, países
desenvolvidos e em desenvolvimento, políticos demagogos, mandarins privilegiados,

293
burocracias poderosas, excessivamente poderosas, impediriam qualquer reversão no
processo de construção de um Estado babá, que aliás está em expansão contínua.
Voltando a ser breve, eu apenas apelo ao realismo ou ao bom senso: não se pode
esperar a volta do liberalismo, nos Estados Unidos ou em qualquer outro lugar. Não há
nenhum risco dessa coisa acontecer novamente, inclusive porque já não acontecia antes.
O Estado sempre foi poderoso, desde os tempos do absolutismo; ele só tinha um papel
econômico relativamente reduzido por razões próprias ao processo de construção das
modernas sociedades urbanas e à organização do modo de produção capitalista. O gênio
já tinha saído da garrafa, talvez antes mesmo da Primeira Guerra Mundial; depois,
então, ele nunca mais deixou de se espalhar por cada poro da sociedade. Esse é o mundo
real, mas também está nos corações e mentes, ou seja, o culto desmedido do Estado. Se
olharmos o povo brasileiro, por exemplo, existe uma evidente comprovação dessa tese:
por mais que ele sofra nas mãos do Estado – de um Estado semifascista como o que
aqui existe – o povo brasileiro ama o Estado, quer mais Estado, suplica por políticas
estatais, tanto quanto os capitalistas estão sempre pedindo “políticas setoriais” aos
ministros e burocratas de Brasília. Portanto, não esperem nenhum recuo por enquanto.

2) Você menciona, no artigo, que o pós-Primeira Guerra foi caracterizado pelo forte
intervencionismo estatal na economia. Após a Segunda Guerra Mundial, no entanto,
o resultado foi completamente diverso, com a adoção do multilateralismo
econômico. Como explicar resultados tão distintos, em tão curto espaço de tempo,
em face de praticamente os mesmos países?
O forte intervencionismo estatal na economia começou no próprio bojo e em
razão da Primeira Guerra, e não apenas na organização da produção industrial voltada
para a guerra, mas também em função de todos os mecanismos financeiros e monetários
que conduziram à uma quase completa subordinação da economia às razões da política
até então conhecida na história da humanidade, processos que foram exacerbados nos
casos dos fascismos europeus, e levados a um delírio extremo no caso do bolchevismo.
Vozes liberais como as de Ludwig von Mises ou de Friedrich Hayek caíram num vazio
“ensurdecedor”, ao mesmo tempo em que ascendiam as doutrinas econômicas de corte
intervencionista, mesmo na versão mais moderada do keynesianismo aplicado.
O fato de que no segundo pós-guerra se tenha caminhado, no plano das relações
econômicas internacionais, para a ordem multilateral simbolizada pelas instituições de
Bretton Woods e pelo Gatt não quer dizer que se tenha abandonado o intervencionismo
estatal na economia, que aliás não se opõe ao primeiro fenômeno, e que pode até ter
294
sido o contrário do pretendido. Quase todos os países avançados aderiram, por certo, ao
multilateralismo econômico e continuaram, ou aprofundaram, formas diversas de
intervencionismo estatal, seja na forma mais light do contratualismo de inspiração
rooseveltiana, seja na versão bem mais dirigista do socialismo europeu (com diversos
países conduzindo processos extensivos de nacionalizações e de estatização, com
experimentos de planejamento indicativo que traduziam a mesma intenção).
Os resultados, portanto, não são distintos, e não são contraditórios, pois o fato de
se trabalhar num ambiente internacional mais aberto aos intercâmbios os mais diversos
– comércio, investimentos, abertura econômica, de modo geral – não impediu governos
de estenderem a regulação estatal a setores cada vez mais “privados” da vida social, em
saúde, educação, planejamento familiar, sempre num sentido “redistributivo” – ou seja,
para corrigir “desigualdades sociais” – e geralmente intrusivo na vida pessoal. Mesmo
nos países que souberam proteger as liberdades individuais – afastando o temor do Big
Brother orwelliano, que no entanto existia plenamente na União Soviética e na China
comunista, por exemplo –, a atuação do Estado se fez mais visível e praticamente
avassaladora, ainda que estando presente de uma forma não opressiva, como ocorria nos
casos “clássicos” de ditaduras comunistas. Mas até mesmo esses regimes opressivos
terminaram por aderir ao multilateralismo, embora nunca extirpassem os aspectos mais
intrusivos do controle estatal sobre seus cidadãos. No caso ainda mais exemplar dos
países em desenvolvimento, em princípio capitalistas e aderentes formais à ordem
econômica de Bretton Woods, o papel do Estado foi igualmente determinante, quando
não dominante, em quase todas as áreas relevantes de organização econômica. Continua
a ser, de certo modo, inclusive porque vários deles, depois de breves e/ou tempestuosos
ensaios com experimentos “neoliberais”, voltaram, pela via eleitoral, ao populismo
estatizante e demagógico dos velhos tempos de keynesianismo improvisado.
A pequena reversão do estatismo exacerbado registrado nesses países no período
recente e até os processos mais consistentes de desestatização e de maior abertura
econômica – como aliás ocorre atualmente na China – não foram capazes de diminuir o
peso do Estado na vida econômica, como aliás evidenciado nas estatísticas fiscais de
todos os países no último meio século: basta observar a carga fiscal nos países da
OCDE, para constatar o progresso constante do ogro estatal em praticamente todos os
países, independentemente dos progressos do multilateralismo e da globalização desde
os anos 1990. Em síntese, não cabe equacionar o multilateralismo da ordem de Bretton

295
Woods com o fim do intervencionismo econômico – embora ele tenha eliminado os
aspectos mais discriminatórios dos regimes comerciais precedentes, assim como dos
sistemas de pagamentos – pois este continuou sob novas roupagens e em novas formas.
O dirigismo rústico dos sistemas coletivistas do entre-guerras cedeu lugar ao Estado de
bem-estar social, que logo estabeleceu outros requerimentos em termos de “extração
fiscal” e de “redistribuição” pelo alto, não pela via dos mercados.

3) Antes da Grande Recessão, de 2008, muitos analistas apontavam que o fim da


Guerra Fria levou à emergência de uma nova era liberal. Nesse sentido, a virada
entre os séculos XX/XXI era comparada à virada entre os séculos XIX/XX. Você
acredita que o paralelo é válido?
Analistas superficiais – como jornalistas econômicos, historiadores apressados e
sociólogos mal preparados – adoram ver paralelos históricos ou analogias formais entre
processos separados por décadas, ou por séculos inteiros. Daí imagens frequentemente
invocadas de um “novo equilíbrio de poderes” – ao final da Guerra Fria, como se
estivéssemos na belle Époque – ou as demandas por um “novo Bretton Woods”, em
face da enorme desordem financeira trazida pelas crises da economia internacional, nos
anos 1990 e a partir de 2008. A ideia de que houve uma “nova era liberal” no final da
Guerra Fria não corresponde absolutamente aos processos históricos efetivamente
havidos. A Guerra Fria não tem tanto a ver com a terceira onda de globalização –
iniciada, por sinal, antes de seu término “oficial”, ainda nos anos 1980, quando a China
se abre aos capitalistas estrangeiros – quanto a abertura econômica ocorrida no último
quinto do século 20 tem a ver, fundamentalmente, com o esgotamento e a subsequente
implosão prática do modo socialista de produção enquanto alternativa credível ao modo
capitalista de organização econômica e social.
Esse “modo capitalista” – que certamente não é uno, unificado ou uniforme, e
que sequer é capitalista em toda a sua extensão, sendo mais exatamente um sistema de
mercado baseado em certas regras comuns – não é necessariamente liberal (como prova
o caso da China), ou tampouco menos intervencionista do que os modelos keynesianos
exacerbados em vigora na maior parte da Europa continental, na América Latina e em
vários outros cantos do planeta. O capitalismo é um processo “irracional”, incontrolado
e incontrolável, assumindo formas diversas ao longo dos séculos, e que não depende da
democracia liberal para frutificar e se consolidar; ele pode ocorrer sob os regimes
políticos os mais diversos, inclusive ditaduras abertas. É certo, porém, como dizia
Milton Friedman em Capitalism and Freedom (1962), que a liberdade de mercados é
296
uma condição necessária – embora não suficiente – das democracias. O capitalismo
facilita a vida das democracias, e certamente a aproxima do polo liberal de organização
social e política, mas ele não pode, por suas próprias forças moldar todo um sistema, o
que ultrapassa em muito a sua “missão histórica”: ele veio ao mundo para produzir
mercadorias, não para distribuir bondades políticas, e menos ainda para corresponder a
construções teóricas generosas e libertárias como podem ser os regimes liberais.
Não acredito em paralelos históricos ou em analogias superficiais, ainda que
alguns processos possam ter similaridades formais, uma vez que os atores fundamentais
– que são os Estados nacionais, que estão conosco há quatro séculos, e que prometem
perdurar por vários séculos mais – permanecem os mesmos, e os mecanismos de ação –
dissuasão, cooperação, intimidação, persuasão, dominação – também permanecem
substancialmente os mesmos desde Westfália. O fato de existir essa grande coisa que se
chama ONU – que De Gaulle chamava de “grand machin” – não muda muito nas
equações de base do sistema internacional, que continua a ser interestatal e soberanista.
O que poderia haver de paralelo entre o final do século 19 e o início do 21?
Pouca coisa, se alguma. Os Estados, num e noutro caso, continuam a ser decisivos na
vida política e econômica do mundo, agora ainda mais do que antes, inclusive porque
eles ganharam um poder absoluto de emissão irresponsável de moeda, provocando os
mesmos males que já tinham provocado na Primeira Guerra Mundial e mais além, ou
agravando outros: inflação, déficits orçamentários, desequilíbrios fiscais, regulação
intrusiva, endividamento excessivo, movimentos cambiais erráticos e outros males que
ainda estão por vir. Seria ilusão, contudo, acreditar que vamos retornar a um padrão
ouro, a uma intervenção mínima dos Estados na vida econômica, ou às liberdades
econômicas – livre fluxo de capitais e de pessoas, comércio relativamente desimpedido
ou protecionismo moderado – que existiam antes da Primeira Guerra.
Sequer no plano político o cenário pode ser colocado em paralelo: a despeito de
continuarem a existir, grosso modo, as mesmas grandes potências, a globalização atual
se vê fragmentada em quase duas centenas de soberanias distintas e independentes. As
guerras deixaram de ser globais, por certo, mas a mortandade continua numa escala
ainda respeitável, ainda que espalhada por centenas de conflitos civis, étnicos, religiosos
e no aumento da criminalidade transnacional e do terrorismo fundamentalista. O mundo
é provavelmente melhor, no cômputo global, do que um século atrás – longevidade,
níveis de bem estar, acesso a bens e serviços culturais, epidemias de fome que podem

297
não ser tão mortíferas quanto no passado, etc. – mas ele continua tão excitante, ou tão
perigoso, quanto antes...

4) Entre o final do século XIX e meados do século XX, houve um intenso processo de
tentativa e erro. Nesses processos, várias alternativas políticas e econômicas foram
testadas. Para você, quais são as principais lições desse período de grandes
ensaios?
Excelente pergunta, mas que não pode ser respondida de modo simplista, ou de
forma ideológica. Aqui também é preciso estabelecer as distinções necessárias entre, de
um lado, processos reais no bojo de um itinerário “natural” da história econômica do
sistema capitalista, e, de outro, as ideias e as concepções que justamente estiveram por
trás dos grandes experimentos de “engenharia social”, que foram todos de natureza
política. Por exemplo, a noção de uma sucessão de “grandes ensaios”, de processos de
“tentativa e erro”, não pertence ao reino das possibilidades históricas previsíveis, pois
ela pressupõe a conformação de uma formação social submetida à ação voluntária de
atores sociais determinados a implementar esses experimentos, o que geralmente não é
o caso, pelo menos não no ambiente natural das democracias de mercado, que são as
experiências mais permanentes na história humana dos últimos cinco séculos. É certo
que grandes revoluções sociais – a francesa do século 18, a bolchevique e a maoísta do
século 20, não esquecendo as convulsões sociais que levaram aos fascismos do entre-
guerras – não foram planejadas, mas as mudanças impostas à economia e à vida social e
econômica na sequência de cada uma delas foram planejadas e implementadas sem que
os “erros” fossem esperados: estes resultaram da “lei” das consequências involuntárias.
Regimes absolutistas, ditaduras abertas, tiranias comunistas e fascistas surgiram
e desapareceram enquanto experimentos de “ensaio e erro”, uma vez que violavam
certas “leis econômicas” da organização social, ou contrariavam a aspiração natural dos
seres humanos a maior autonomia, à liberdade individual, à iniciativa privada e à defesa
da propriedade. O fato de a democracia inglesa ter se mostrado durável desde 1688, ou
de a grande nação americana ter preservado até a atualidade os traços fundamentais
estabelecidos um século depois pelos “pais fundadores” deve-se provavelmente ao fato
de não terem essas duas formações políticas embarcado em processos tentativos de
“ensaio e erro”, e sim respeitado algumas regras simples do jogo democrático e da
ordem econômica.
Todas as “grandes” experiências contemporâneas nessa vertente – os fascismos
europeus do entre-guerras e suas derivações periféricas, a escravidão bolchevique e o
298
monstruoso delírio maoísta, com seus milhões de mortos – foram todas legítimos
empreendimentos de “engenharia social”, o que não ocorreu com as democracias de
mercado, independentemente de suas crises econômicas e de seus problemas sociais. No
pós-guerra, as inflações latino-americanas, as sucessivas trocas de moedas, no bojo de
catastróficos programas de “engenharia econômica” tentativamente de estabilização, as
crises intermitentes derrubando presidentes e trocando ditadores também pertencem ao
mesmo universo dos ensaios de “tentativas e erros”, sobretudo no campo econômico.
O itinerário da União Soviética é exemplar nesse sentido: socialismo de guerra e
seu cortejo de fome e miséria; Nova Política Econômica, e sua pequena janela de
liberdade para pequenos mercados capitalistas; estatização extensiva e lançamento dos
planos quinquenais; coletivização da agricultura, seguido de nova onda de fome e de
uma enorme mortandade provocada; socialismo num só país e industrialização à base de
trabalho “escravo”; estatização completa da economia e consolidação de uma divisão
entre a produção civil e a militar; esgotamento do planejamento centralizado e ensaios
parciais de mecanismos de mercado; esgotamento completo do “modo socialista de
produção” e implosão final do sistema. O itinerário maoísta é ainda mais pavoroso, com
milhões de mortos sacrificados nos diversos experimentos de engenharia social no
espaço de uma única geração: repressão contra capitalistas e grandes agricultores,
seguida de uma coletivização antinatural para os padrões sociais chineses; grande salto
para a frente, com fome e canibalismo e milhões de mortos; revolução cultural, com
outros milhares de mortos e a destruição completa do sistema educacional; no total,
dezenas de milhões de sacrificados aos grandes ensaios maoístas, com o rebaixamento
completo da economia chinesa ao longo desse processo.
Especificamente no período limitado à primeira metade do século 20, é verdade
que ocorreram outros tantos “ensaios”, ou “alternativas de políticas econômicas”, mas
as que corresponderam mais exatamente a “tentativas e erros” foram quase todas, se não
todas elas, experimentos de engenharia social conduzidas por regimes autoritários. As
democracias de mercado que atravessaram diferentes políticas econômicas ao longo do
período, geralmente não o fizeram como tentativa e erro, a não ser involuntariamente. O
que elas fizeram, na maior parte dos casos, foi tentar adaptar-se às novas circunstâncias
criadas pelos processos econômicos, pelas dinâmicas dos ciclos de negócios, quando
não pelos cataclismos políticos representados pelos enfrentamentos com as potências
militarizadas e agressivas.

299
A maior parte dos mecanismos de intervenção estatal na vida econômica foi
introduzida quando da Grande Guerra, e apenas parcialmente revertida na sequência, o
que certamente criou uma primeira “cultura intervencionista” que ressurgiria em outras
circunstâncias. As medidas econômicas, corretas ou equivocadas, adotadas por sua vez
no entre-guerras, em especial no seguimento da crise de 1929 e da Grande Depressão
iniciada em 1931 – protecionismo, manipulações cambiais, desvalorizações maciças,
controles de capitais, bilateralismo comercial, intercâmbios recíprocos de compensação
–, também corresponderam mais a respostas (ainda que improvisadas) do que a supostos
“grandes ensaios” de economia política alternativa. Estes ficaram inteiramente no
terreno das ideias, geralmente com consequências catastróficas.
O grande experimento “capitalista” que entra na categoria da história das ideias
foi certamente o conjunto de prescrições de políticas econômica mais tarde enfeixadas
sob o rótulo de keynesianismo, mas muitas dessas medidas estavam sendo seguidas ou
implementadas de modo instintivo, antes mesmo que elas se convertessem numa
espécie de corpo teórico de “receitas” de política econômica a partir da publicação da
Teoria Geral (1936). Não é seguro que o mundo capitalista tenha sido “salvo” pelo
keynesianismo aplicado, assim como não é seguro que ele tenha construído as bases das
três décadas de prosperidade e de grande crescimento econômico do segundo pós-
guerra, embora certa historiografia econômica aprecie preservar esse mito.
É certo, no entanto, que as faculdades de economia aderiram rapidamente às
novas tábuas da lei, e passaram a cultivar o receituário keynesiano (inclusive de forma
passavelmente acrítica), mas isso se deu, provavelmente, mais por preguiça conceitual
do que por suas supostas virtudes no terreno da prática econômica efetiva. Governos,
como se sabe, costumam se guiar mais pela fria realidade das contas nacionais e dos
orçamentos, do emprego e das reservas monetárias, do que por doutrinas econômicas
produzidas nos gabinetes universitários. Eles também são geralmente infensos (ainda
bem) aos ideólogos da academia, mesmo se os líderes políticos sempre tenham presente,
em suas mentes e na formulação dos discursos, as ideias de algum economista morto,
como dizia o próprio Keynes.
Em todo caso, o keynesianismo foi acumulando o seu pequeno (ou grande) lote
de contradições teóricas e de impasses práticos, até literalmente implodir na famosa
estagflação dos anos 1970, quando suas bases foram sendo minadas tanto pelos
fracassos registrados quanto pelos avanços teóricos e práticos do neoliberalismo de

300
corte austríaco. Este, no entanto, nunca foi dominante, ou ideologicamente hegemônico,
pois, a despeito de ter conquistado alguns (poucos) corações e mentes no cenário
político e em algumas (poucas) academias, ele jamais conseguiu estabelecer sólidas
bases no campo teórico ou conquistar grandes espaços para si nas políticas públicas,
permanecendo sempre marginal e relativamente incompleto na panóplia de políticas
públicas efetivamente aplicadas (que sempre estiveram inevitavelmente congeladas no
universo teórico e prático do keynesianismo).
Quais as lições, finalmente, que podem ser extraídas das grandes turbulências
econômicas da primeira metade do século 20, com seu cortejo de desastres políticos e
militares, seu desfilar de milhões de mortos e suas enormes transformações nas políticas
econômicas de quase todos os países? Elas são muitas, mas foi preciso aguardar a “saída
da servidão”, que foi a implosão final da grande alternativa ao capitalismo, representada
pelos experimentos coletivistas, para realmente confirmar o maior ensinamento prático
que se pode extrair do espetáculo de “aprendizes de feiticeiro” que constituíram esses
experimentos no espaço de três gerações. Esse ensinamento diz que mercados, em geral,
costumam ser mais “inteligentes” do que burocratas governamentais para criar renda e
riquezas sociais, sendo também mais efetivos na distribuição racional dessas mesmas
riquezas do que governos bem intencionados. O grande erro do socialismo, como já
ensinava Mises desde 1919, não foi, finalmente, ter construído um regime de opressão,
de escravidão econômica, de fraudes políticas e de degenerescência moral; foi o fato de
ter ignorado os mecanismos de mercado, e a sinalização da raridade relativa pela ação
livre dos preços, como requerimentos básicos de um sistema sustentável, e racional, de
produção e de distribuição de bens e serviços.
Esta é, sem dúvida, a maior lição do período, que aliás tinha sido consolidada no
magnum opus de Friedrich Hayek, O Caminho da Servidão (1944). O ensinamento,
contudo, não parece ter sido absorvido pelas duas gerações seguintes, sequer pela atual,
pois a maior parte dos líderes políticos e dos responsáveis econômicos continua a seguir
a trilha do dirigismo econômico, do intervencionismo estatal na vida econômica, da
manipulação de moedas e orçamentos, provocando o espocar constante e regular de
desequilíbrios fiscais e de crises financeiras. Aqui não estamos mais no itinerário
“natural” do capitalismo, mas no desenvolvimento pouco natural das doutrinas políticas
e das concepções econômicas, com certa atração distributivista dos políticos e a adesão
inconsciente das massas às aparentes facilidades do Estado-babá.

301
De modo geral, todas as experiências coletivistas – fascistas ou socialistas –
foram um fracasso completo, algumas com um custo humano inacreditável, ademais do
custo mais permanente que se manifestou de modo indireto nas orientações dirigistas
das políticas econômicas, estas parcialmente compatíveis com a dominação ideológica
keynesianismo aplicado. O socialismo pode ter sido derrotado, mais na prática do que
na teoria – que continuou seu pequeno caminho de irracionalidades nas academias,
indiferentes ao mundo real – mas o capitalismo de Estado segue seu itinerário de
realizações – na China, por exemplo – e de contradições – na maior parte da periferia
capitalista, dentro da qual os países da América Latina. Ele não parece perto de ser
aposentado, ou de ser compulsoriamente enviado ao museu dos dinossauros
econômicos, e pode ainda dispor de um belo futuro pela frente.
Volto, portanto, ao meu argumento inicial: a despeito de terem sido superados os
experimentos mais nefastos de dirigismo econômico e de “engenharia social”, em vigor
na primeira metade do século 20, não parece haver nenhum risco de volta triunfal do
liberalismo, ou sequer de um retorno parcial de suas prescrições de maior liberdade
econômica e de completa liberdade individual. Por outro lado, e como constatação final,
uma outra grande lição não parece ter sido aprendida ou absorvida de modo completo: a
de que qualquer medida de distribuição social dos benefícios do crescimento econômico
necessita começar pelo reforço dos processos de produção e de inovação tecnológica,
sem os quais o distributivismo passa a incidir bem mais sobre os estoques de riqueza já
criada ou acumulada do que sobre os novos fluxos de criação de renda e riqueza por
meio do estímulo à atividade produtiva. Em conclusão, o liberalismo ainda tem uma
longa batalha a travar contra o socialismo, mesmo nas formas amenas deste último.
Como diriam alguns, a luta continua...

2846. “Transformações da ordem econômica mundial: liberalismo, intervencionismo,


protecionismo, neoliberalismo, crises financeiras; Respostas a questões colocadas
pela RBPI, a propósito da publicação do artigo: “Transformações da ordem
econômica mundial, do final do século 19 à Segunda Guerra Mundial” (RBPI:
1/2015), Hartford, 24 julho 2015, 13 p. Relação de Publicados n. 1195.

302
38. The world economy, from belle Époque to Bretton Woods

The world economy, from belle époque to Bretton Woods.

This historical essay follows previous researches by the author related to


Brazil’s international economic relations in historical perspective, of which a first
volume was already published, dealing with Brazilian economic diplomacy during the
19th century, from 1808 up to 1889: Formação da Diplomacia Econômica no Brasil: as
relações econômicas internacionais no Império; or The Making of Economic Diplomacy
in Brazil: international economic relations during the Empire (2001, 2005). This time
the time span goes from the beginning of the Old Republic (1889) up to the conference
of Bretton Woods, in 1944, from which an entirely new world economic order emerged,
radically different from the previous one, which was not exactly an order, and was not
geographically global, since the disruption of the former laissez-faire economy, based
on gold standard, disappeared at the start of the Great War only to be tentatively
redrafted during the inter-war period, and again disrupted by the 1929 crisis and the
economic depression of the 1930s, and totally transformed both by the Second World
War and the Bretton Woods arrangements. The new economic order, starting in 1945,
will be the subject of a third volume, from Bretton Woods up to our days.

This essay deals with the relevant changes in the world economy, from the belle
époque to Bretton Woods, emphasizing elements of continuity and its ruptures and
303
discontinuities, or structural changes, during the inter-war period and as a result of the
two global wars, in international trade, in world finance as well as in institutional
aspects. Among the continuities, appears the resilience of a core group of advanced
economies, which is able to draft and define the international policy agenda, and the
importance of the industrial and technological capabilities to support any exercise of
strategic and military projection by those big powers. Among the discontinuities is the
failure of some emerging powers, namely Germany and Japan, in their challenging of
this world order by means of an imperial-like power projection outside of the core
group of market economies aiming to create a global interdependence based on
democratic and liberal principles. Another emerging power during that period, the
Soviet Union, was economically irrelevant and was not able to project its own power
before the end of the World War II; but Czarist Russia was, before 1914, a promising
force in international politics and a huge experiment in economic transformation, in
terms of industrialization, foreign direct investments and international borrowing.

The essay draws from the already huge literature in economic history dealing
with that period, including some contemporary analysts and observers, such as the
economist Ludwig von Mises and the novelist Stefan Zweig, but rely on interpretive
modern works by some well known economic historians like Rondo Cameron, Herman
Van Der Wee, and others. It constitutes a synthesis of this kind of research and offers a
broad framework for the more detailed analysis which is being conducted by the author
in connection with each one of the main economic leverages of the world economy
during that period: international trade, global finance, immigration, early regionalism
and first essays at economic multilateralism (within the League of Nations, for
instance).

World economy, during the half century going from the last decade of the 19th
century to mid 20th century, is a confuse patchwork of national economies, and their
respective colonial territories and semi-colonial dependent exporting economies, linked
diffusedly through voluntary or compulsory strings, made of trade in commodities
(from the periphery) and manufactured goods (from the industrial core), services,
capital, work-force (before the immigration restraining of the 1920s and 1930s) and
technology. A main feature of this world economy was its asymmetries and the growing

304
disparities in income and industrial capabilities between the advanced industrial
countries and the dependent periphery. Economic divergence is the main analytical
phenomenon at that period, but at the geopolitical level elements of continuity are also
relevant.

After the demise of the liberal order of the late 19th century and the beginning of
the 20th, world economy enters in the turbulent period of high inflation, external debts
insolvencies, currency devaluations and capital controls, and a high tide of intervention
and protectionism of the 1920s and 30s, just to converge – with the exception of the
soviet socialist economy – at Bretton Woods to a new order, characterized by economic
multilateralism and market principles, which are a formidable progress compared to the
era of the unequal treaties of the 19th century.

2809. “How many world economic orders existed, from the late 19th century up to the
Second World War?; Changes and continuities”, Hartford, 11 Abril 2015, 5 p.
Textos suplementares, em inglês, ao trabalho n. 2758, para fins de divulgação no
sistema da RBPI (enviado para: secretaria@ibri-rbpi.org). Publicado, sob o título de
“The world economy, from belle Époque to Bretton Woods”, em Mundorama
(21/10/2015, link: http://mundorama.net/2015/10/21/the-world-economy-from-
belle-epoque-to-bretton-woods-by-paulo-roberto-de-almeida/).

305
39. Relações Brasil-EUA no início do século 21: desencontros

Visão geral das relações Brasil-EUA em perspectiva histórica


Os Estados Unidos foram, durante praticamente todo o século 20, o principal
parceiro econômico do Brasil, quando não, também, o principal aliado político e
diplomático, pelo menos desde a grande crise do entre-guerras e especialmente desde a
Segunda Guerra Mundial. Essa situação – que muitos historiadores e economistas
descreveriam como de dependência financeira e tecnológica – só não era tão intensa nas
primeiras décadas do século 20, quando a Grã-Bretanha ainda era responsável por uma
parte substancial do comércio exterior e pela fração preponderante dos empréstimos em
divisas e dos investimentos diretos, mas se tornou extremamente acentuada nos anos da
chamada “americanização do Brasil”, a década e meia que se seguiu imediatamente ao
final do segundo conflito mundial, e que se aprofundou esporadicamente nos momentos
de crises financeiras – de balanço de pagamentos e de inadimplência virtual ou real em
relação às obrigações financeiras externas. No final da primeira década do presente
milênio, os EUA deixam de ser o principal parceiro, mas apenas comercial, do Brasil,
tendo o primeiro lugar sido ocupado pela China, mas num formato certamente menos
diversificado e ainda mais assimétrico do que tinha sido a relação com o gigante do
hemisfério americano nos cem anos anteriores.
O presente trabalho pretende traçar um panorama dessas relações, em suas
grandes etapas, e concentrar-se no período recente, que seguramente assistiu a
306
mudanças significativas no caráter e no conteúdo dessa histórica relação que, como já
evidenciado no subtítulo, conheceu diferentes situações, de maior ou menor afastamento
ou aproximação, segundo as conjunturas econômicas e o quadro geopolítico mundial,
mas também em função das lideranças políticas em cada um dos países. Com efeito,
essa relação estruturalmente assimétrica, e que pode ser definida ao mesmo tempo como
central, para o Brasil, e como de segunda, ou de terceira, prioridade, para os EUA,
passou, ao longo da história, por diferentes situações: da aproximação à indiferença, da
aliança militar à desconfiança, da cooperação política à competição comercial, nas
várias fases de um relacionamento que remonta ao período anterior à independência do
Brasil.
A partir de um intercâmbio basicamente comercial desde a segunda metade do
século 19, quando os EUA já eram o primeiro comprador do principal produto brasileiro
de exportação, a relação evoluiu para muitos outros campos, menos de interdependência
recíproca do que de dependência brasileira, sobretudo nos campos industrial e
tecnológico. Uma de suas características, desde meados do século 20, se situa no terreno
da dependência financeira do Brasil em relação aos fluxos de capitais oriundos dos
EUA, tanto privados (capitais negociados em Nova York) como públicos
(financiamentos multilaterais ou bilaterais tratados em Washington).
Os Estados Unidos – enquanto primeira potência hemisférica em todo o período, e principal potência planetária desde o final da
Segunda Guerra Mundial – estiveram presentes em quase todos os lances importantes da diplomacia brasileira no século 20,
assim como ocuparam parte significativa da interface externa do Brasil nos campos econômico, científico, tecnológico e
cultural no último meio século, até a ascensão da China no campo comercial (e possivelmente financeiro e de investimentos a
partir do período recente). Obviamente que tanto num quanto noutro caso, as relações foram e ainda são marcadas por uma
evidente assimetria nos planos econômico, tecnológico e militar, assim como por um certo descompasso nas prioridades
respectivas, dado que nelas o Brasil busca basicamente recursos para o seu processo de desenvolvimento e os EUA mantêm
preocupações nos campos da segurança e da estabilidade. A China, por sua vez, tem basicamente uma preocupação centrada no
seu abastecimento em matérias primas e outros insumos para o seu povo e para a sua gigantesca máquina industrial, e todos os
seus investimentos e parcerias serão feitos exclusivamente nessa perspectiva.

Os anos 1990 foram marcados por características transicionais – pós-Guerra Fria, desaparecimento da União Soviética e fim de
alternativas ao sistema capitalista – e pela intensificação do processo de globalização – com grandes turbulências financeiras
que atingiram também o Brasil –, coincidindo com um grande crescimento da economia americana e seu distanciamento,
absoluto e relativo, de várias outras potências médias, situação evidente no terreno militar. O Brasil conheceu um processo de
ajuste macroeconômico bem sucedido ao longo do período, mas teve de socorrer-se financeiramente em Washington, tanto no
contexto bilateral, como no quadro do FMI.

Mais recentemente, a postura unilateralista americana em política externa


ampliou um fosso de tipo hegemônico em relação aos demais países que talvez não
tenha existido em qualquer outra época histórica anterior com outros impérios
universalistas. Os ataques terroristas contra os EUA, em setembro de 2001, vieram

307
introduzir novos elementos na agenda internacional, que passou a ser dominada pela
luta contra o terrorismo, o que refletiu-se igualmente na região (narcoterrorismo e
lavagem de dinheiro). Ademais da cooperação financeira, a agenda bilateral continuou a
ser dominada por fricções comerciais persistentes e por concepções diferentes do
processo de liberalização, marcado a partir de 1994 pelas negociações da Área de Livre
Comércio das Américas (Alca), mas desde 2005 sem qualquer agenda factível.
O regime inaugurado em 2003 no Brasil introduziu mudanças significativas no
padrão de relacionamento, ainda que a retórica diplomática tenha procurado manter a
aparência de continuidade. Na verdade, muitas das iniciativas tomadas pelos governos
lulo-petistas foram no sentido de consolidar uma orientação dita “anti-hegemônica” na
política externa e de constituir organismos de consulta e de coordenação regionais
afastados da esfera de influência dos EUA, a começar pelo implosão do projeto
americano da Alca. Nesse sentido, o relacionamento passou pelo mesmo ciclo anterior
de altos e baixos, com fases de reaproximação seguidas de afastamentos por falta de
entendimentos políticos – como no caso da espionagem sobre as comunicações
brasileiras feita pela National Security Agency – e por promessas de reativação das
relações econômicas e comerciais que nem sempre se traduziram em ações concretas.

A substituição de hegemonias na era do café


Os desníveis de desenvolvimento entre o Brasil e os Estados Unidos já se tinham
tornado evidentes desde o final do século 19, quando o Brasil participou, na transição da
monarquia para a república, de uma primeira tentativa de integração comercial
hemisférica patrocinada pelos EUA, na conferência americana de 1889-90. A partir de
1902, o Barão do Rio Branco, armado de uma concepção diplomática baseada no
equilíbrio de poderes (representada basicamente pela competição com a Argentina pela
hegemonia regional), opera uma primeira política de aproximação com os EUA. Brasil
e Argentina buscarão em vários momentos capturar a atenção dos EUA na busca de
uma “relação especial” que sempre revelou-se ilusória. O gigante do Norte tinha
proclamado o corolário Roosevelt à doutrina Monroe, justificando suas intervenções no
entorno imediato como o exercício de um papel de polícia segundo “padrões de
civilização” estabelecidos mediante acordo tácito com as potências europeias. Rio
Branco, aliás, acreditava numa espécie de “divisão do trabalho” com a potência
setentrional, imaginando poder o Brasil desempenhar papel similar, ou equivalente, no

308
Cone Sul. Desde a segunda metade do século 19, os EUA despontam como o principal
comprador do principal produto brasileiro de exportação, ainda que a Grã-Bretanha se
mantivesse como o principal fornecedor dos produtos de importação, de serviços e de
capitais financeiros e de investimento direto.

A República brasileira introduziu princípios alternativos de política externa,


como o pan-americanismo, área na qual o Império manteve relativo isolamento das
repúblicas do hemisfério. O relacionamento bilateral foi intensificado nos episódios de
afirmação da República, quando, por ocasião das intervenções estrangeiras durante a
revolta da Armada, os EUA vêm em auxílio do novo regime, contra as inclinações
monarquistas de algumas potências europeias. Pelo resto da primeira República, as
relações bilaterais serão distantes, operando-se, contudo, a gradual substituição de
hegemonias na esfera financeira e dos investimentos, a partir do momento em os EUA
se convertem em exportadores de capitais, inclusive para o Brasil, que passa, a partir do
final dos anos 1930, do domínio da libra ao do dólar. Credores americanos já
participaram do esquema financeiro do primeiro plano de apoio ao café (1906), para
resolver uma crise de superprodução. Essa política de retenção de estoques para
sustentação dos preços externos do café despertou a ira de importadores e de grupos de
consumidores dos EUA, cujos representantes políticos passam a exigir de seu Governo
ações concretas contra as práticas anti-concorrenciais das medidas brasileiras.

Tanto por parte das grandes potências europeias, como no caso dos EUA, o
Brasil se vê confrontado a posturas externas que vão do desprezo ao que mais tarde se
chamaria de benign neglect. No terreno econômico, em todo caso, a fase corresponde a
uma intensificação dos investimentos privados dos EUA na região e no Brasil em
particular, com a instalação de diversas empresas explorando serviços públicos – em
comunicações por exemplo –, na indústria de processamento alimentar ou de bens
duráveis e crescentemente em serviços financeiros, situação parcialmente revertida nas
fases posteriores de afirmação do nacionalismo brasileiro, seja durante a era Vargas,
seja durante o regime militar.
O período da administração de Roosevelt – que coincide grosso modo com a
primeira era Vargas – modificará em parte a postura isolacionista de seus predecessores,
buscando uma nova relação menos intervencionistas com os vizinhos da América
Latina, mas ele também coincide com as crises econômicas e financeiras dos anos 1930,
com o fechamento dos mercados e a ruptura dos equilíbrios internacionais, na Europa e
309
depois em escala mundial. O Brasil passa definitivamente da esfera britânica e da
utilização da libra como meio de pagamento e reserva para o âmbito do dólar e dos
financiamentos americanos, não sem alguma disputa de mercados e jogo de influências
envolvendo as potências nazifascistas europeias e mediante acordos de renegociação da
dívida externa com os dois grandes investidores ocidentais.
Tem lugar nesse período uma das mais importantes negociações bilaterais da
história das relações entre o Brasil e os EUA, relativa ao financiamento da implantação
de uma indústria siderúrgica no Brasil, processo iniciado ainda antes da guerra e
concluído já durante a fase de aliança estratégica entre os dois países. Os EUA emergem
como a potência militar incontrastável do pós-Segunda Guerra e o Brasil fará as apostas
corretas ao se aliar aos esforços de guerra (inclusive mediante a cessão de bases
militares no Nordeste) e consolidar seu alinhamento ideológico desde o início da Guerra
Fria. A cooperação nos campos de batalha da Europa tornaria o establishment militar
brasileiro bem mais permeável às concepções e doutrinas defendidas pela primeira
potência ocidental.

Tio Sam e a americanização do Brasil na era da Guerra Fria


O Brasil participa da construção de uma nova ordem econômica mundial dominada pelos princípios do liberalismo econômico
de tipo americano. São marcos importantes desse período a conferência de Bretton Woods (1944), que criou o FMI e o BIRD, a
conferência de Havana (1947-48), que criou uma primeira Organização Internacional do Comércio, ainda que não
implementada para incorporar o Acordo Geral de Tarifas Aduaneiras e Comércio (GATT), a conferência de Petrópolis (1947),
da qual resultou o Tratado Interamericano de Assistência Recíproca, antecessor da OTAN, e a conferência de Bogotá (1948)
que transformou a velha União Pan-Americana em OEA, perfazendo um arcabouço de acordos e instituições que regulou o
relacionamento interestatal no campo ocidental durante a maior parte da Guerra Fria. O imediato pós-guerra também
corresponde ao crescimento da influência americana no Brasil, não apenas nos campos político, militar e diplomático, mas
igualmente econômico e cultural.

A “opção americana” da era da bipolaridade não impede a emergência de uma


diplomacia do desenvolvimento no Brasil. Não obstante a doutrina da segurança
nacional, a ideologia pan-americanista sustenta os esforços da diplomacia para a
exploração da carta da cooperação com a principal potência hemisférica e ocidental. É
nesse quadro de barganhas políticas e de interesse econômico bem direcionado que o
Brasil empreenderá sua primeira iniciativa multilateral regional, a Operação Pan-
Americana, proposta pelo Governo Kubitschek em 1958 e da qual resultará, numa
primeira etapa, o Banco Interamericano de Desenvolvimento e, mais adiante, a Aliança
para o Progresso.

310
A prática da política externa independente, nos conturbados anos Jânio Quadros-
João Goulart, representa uma espécie de parênteses inovador num continuum
diplomático dominado pelo conflito Leste-Oeste. O impacto da revolução cubana e o
processo de descolonização tinham trazido o neutralismo e o não-alinhamento ao
primeiro plano do cenário internacional, ao lado da competição cada vez mais acirrada
entre as duas superpotências pela preeminência tecnológica e pela influência política
junto às jovens nações independentes. A aliança preferencial com os Estados Unidos
passar a ser pensada mais em termos de vantagens econômicas a serem negociadas do
que em função do tradicional xadrez geopolítico da Guerra Fria.
Essa situação de ambiguidade dura pouco, uma vez que já em 1964 se opera
uma volta ao alinhamento. Entretanto, o reenquadramento do Brasil no conflito
ideológico global representou mais uma espécie de “pedágio” a pagar pelo apoio dado
pelos Estados Unidos no momento do golpe militar contra o regime populista do que
propriamente uma operação de reconversão ideológica da diplomacia brasileira. Em
todo caso, observa-se um curto período de alinhamento político, durante o qual o Brasil
adere estritamente aos cânones oficiais do pan-americanismo, tal como definidos em
Washington: ocorre, numa sequência de poucos meses, a ruptura de relações
diplomáticas com Cuba e com a maior parte dos países socialistas, assim como a
participação na força de intervenção por ocasião da crise da República Dominicana. A
política multilateral, de modo geral, passa por uma “reversão de expectativas”, para
frustração da nova geração de diplomatas que tinha sido educada nos anos da política
externa independente. Basicamente, essas atitudes se manifestaram nos primeiros anos
do pós-guerra e no seguimento imediato do movimento militar de 1964, para serem logo
em seguida substituídas por atitudes mais pragmáticas.
Tem início, a partir de 1967, uma fase de revisão ideológica e de busca de
autonomia tecnológica. A atitude contemplativa em relação aos EUA cede lugar a uma
diplomacia profissionalizada, preocupada com a adaptação dos instrumentos de ação a
um mundo em mutação, e instrumentalizada para o atingimento dos objetivos nacionais
de crescimento econômico. Praticou-se uma diplomacia do desenvolvimento,
consubstanciada na conquista de novos mercados (abrindo fricções comerciais com os
EUA em calçados e café solúvel) e na busca da autonomia tecnológica, inclusive
nuclear. Tem lugar, em 1975, a assinatura de um acordo de cooperação com a
Alemanha, motivando imediata e intensa oposição dos EUA, basicamente devido a

311
preocupações com a proliferação (o Brasil tinha recusado, em 1968, o tratado de não-
proliferação nuclear, por considerá-lo discriminatório e desigual).
A afirmação marcada da ação do Estado no plano interno e externo se fez em
grande medida à custa de conflitos com os EUA, como por exemplo na denúncia, em
1977, do acordo bilateral de cooperação militar (de 1952), por motivo de interferência
nos “assuntos internos” do País, de fato por causa do contencioso nuclear e da questão
dos direitos humanos). Observa-se no período a confirmação da fragilidade econômica
do País, ao não terem sido eliminados os constrangimentos de balança de pagamentos
que marcaram historicamente o processo de desenvolvimento: as crises do petróleo, em
1973 e 1979, seguida pela da dívida externa, em 1982, marcam, a despeito da
cooperação financeira, o começo do declínio do regime militar.

Redemocratização e acirramento de conflitos comerciais


Os elementos mais significativos da postura internacional do Brasil na fase da
redemocratização são caracterizados pelos processos de autonomia internacional e
afirmação da vocação regional, com o início da integração sub-regional no Mercosul e
de construção de um espaço econômico na América do Sul. Faz-se também, nos anos
1990, a opção por uma maior inserção internacional e a aceitação consciente da
interdependência — em contraste com a experiência anterior de busca da autonomia
nacional —, com a continuidade da abertura econômica e da liberalização comercial, no
quadro de processos de reconversão produtiva e de adaptação aos desafios da
globalização. A “carta americana” ainda é importante, mas já não é essencial nesse
período e a diplomacia passa a apresentar múltiplas facetas, que não exclusivamente a
de tipo bilateral tradicional: são elas a regional, a multilateral e a presidencial.
A manutenção de boas relações com os EUA não impede a existência de
conflitos tópicos entre os dois países, geralmente a respeito de questões comerciais
(protecionismo no acesso de determinados produtos brasileiros ao mercado americano,
como aço ou suco de laranja, diferenças de opinião no que se refere a patentes
industriais, acusações de pirataria ou de reservas de mercado, como no caso da
informática) ou então em função de problemas mais gerais da agenda multilateral
(desarmamento, não proliferação, reforma da ONU etc.).
A política externa do governo José Sarney (1985-1990) foi marcada por
transformações importantes, a começar pelo processo de integração com a Argentina,

312
mas também por um irritante conflito comercial com os Estados Unidos. Os EUA se
queixavam de uma lei sobre informática que proibia a importação de computadores
pessoais assim como associações com o capital estrangeiro neste setor. O código
brasileiro de propriedade industrial, ainda que em conformidade com a legislação
internacional, constituía outro ponto de controvérsia, já que não reconhecia patentes
farmacêuticas. O governo dos EUA adotou, unilateralmente e de maneira ilegal em
relação ao direito internacional, medidas de represália comercial ao Brasil, que levou o
assunto ao GATT. Outros pontos de tensão nesse período se referiam a posições
divergentes nas negociações comerciais multilaterais da Rodada Uruguai, notadamente
nos temas de serviços e de propriedade intelectual.
O restabelecimento, em junho de 1986, de relações diplomáticas com Cuba,
rompidas pelos militares em 1964, não parece ter introduzido maiores divergências de
ordem política entre os dois países, assim como a busca, pelo Brasil, de uma
aproximação com os dois gigantes do mundo (então) socialista: pela primeira vez na
história do Brasil, um presidente visitou a China e a URSS. Com o gigante asiático, o
Brasil estabeleceu um programa de cooperação no domínio científico e tecnológico que
previa, entre outros, o lançamento de satélites sino-brasileiros a partir de foguetes
chineses. Ao mesmo tempo, tentativas de fazer avançar o programa espacial brasileiro
na área de lançamento de vetores eram dificultadas pela obstrução feita pelos EUA à
transferência de tecnologia de parceiros potenciais (França).
A cooperação financeira, entretanto, ingressa em uma fase de stress a partir da
decisão brasileira de decretar a moratória do serviço da dívida comercial, coroamento de
um longo processo de deterioração do equilíbrio financeiro externo do Brasil, que tinha
sido iniciado com a crise da dívida externa latino-americana em 1982, a partir da
moratória mexicana de agosto desse ano, seguida da inadimplência técnica do Brasil.
Diversos programas de sustentação financeira foram concluídos a partir de então com o
FMI, com a participação mais ou menos voluntária da banca privada, mas a erosão da
capacidade de pagamento foi se agravando ao longo de toda a década. O episódio da
moratória de 1987 revelou que o crédito político e financeiro do Brasil, junto aos EUA e
aos demais credores, era, nessa época, extremamente reduzido.
A gestão Fernando Collor de Mello (1990-92) foi basicamente infeliz no
domínio da economia, mas introduziu em contrapartida mudanças significativas na
política externa, a começar pelo processo de integração no Cone Sul (com a criação do

313
Mercosul, agregando o Paraguai e o Uruguai ao projeto de mercado comum já
concertado com a Argentina), que foi continuado na área nuclear, onde não apenas se
observa uma real distensão bilateral, mas também o início da revisão da doutrina de
capacitação nuclear adotada algumas décadas antes por militares e diplomatas. A reação
do governo brasileiro à proposta do presidente George Bush (pai) de estabelecimento
progressivo de uma zona de livre-comércio no hemisfério foi bastante cautelosa,
refletindo mais a postura do Itamaraty do que a disposição do presidente: com efeito,
Collor tinha dado início, logo no começo de seu governo, a um processo acelerado de
abertura econômica e de liberalização comercial, que seria confirmado por um
programa de redução tarifária (entre outubro de 1990 e julho de 1993), coincidente com
o estabelecimento da Tarifa Externa Comum prevista no Mercosul.
As relações políticas e econômicas com os EUA conheceram uma melhoria
parcial nesse período, como resultado da disposição de Collor em “liquidar” algumas
hipotecas herdadas do passado, que serviam como focos dos contenciosos bilaterais.
Assim, foram desmantelados os mecanismos protecionistas da Lei de Informática de
1984, ao mesmo tempo em que se revia a lei do software e se dava início à elaboração
de um novo Código de Propriedade Industrial, capaz de acolher o patenteamento
farmacêutico, centro dos conflitos e das retaliações dos EUA nos anos 1980. A
distensão se estendeu ao terreno financeiro, com a ação mais ortodoxa dos responsáveis
econômicos. Impedido o presidente Collor pelo Congresso, no final de 1992, seu vice
Itamar Franco assume o poder com uma plataforma bem menos reformista, mas ainda
assim dá continuidade ao processo de privatizações e de reforma tarifária.
A partir da presença do Senador Fernando Henrique Cardoso na condução dos
negócios da Fazenda, a partir de maio de 1993, e uma brilhante equipe de assessores
econômicos em postos estratégicos do governo Itamar Franco, foi possível conduzir um
processo realista e consistente de ajuste estrutural que, via desindexação planejada da
economia, acabaria levando ao plano Real, passando pela solução parcial do problema
da dívida externa em abril de 1994 e a suspensão da moratória.

As duas presidências FHC: a boa relação como norma


O relacionamento do Brasil com os EUA durante os oitos anos que vão de 1995
a 2002 alcançou, como em nenhuma outra época anterior, uma visível melhoria de
qualidade, que pode ser imputada tanto aos dados objetivos das novas realidades

314
econômicas e políticas no Brasil como às personalidades e à vontade política dos
respectivos mandatários, FHC, de um lado, William J. Clinton, de outro. De modo
geral, pode-se caracterizar essa fase como de ausência de desentendimentos políticos, de
um diálogo substantivo em temas de alcance regional e mesmo de âmbito econômico
multilateral, mas também de permanência residual de velhas e novas fontes de
contenciosos comerciais, alguns de ordem sistêmica ou estrutural (como o uso abusivo
de antidumping ou os subsídios agrícolas), outros de âmbito setorial (salvaguardas em
aço, protecionismo localizado em áreas agrícolas, como suco de laranja e tabaco).
FHC sempre ostentou uma visão pragmática das relações econômicas
internacionais, desmentindo os temores quanto à ideologia da “dependência” e de um
modelo de desenvolvimento baseado no modelo “cepalino”. Importante espaço, em sua
ação diplomática, foi ocupado pelo Mercosul e pelo projeto de conformação de um
espaço econômico sul-americano: FHC sempre recordou que foi em sua passagem à
frente do Itamarati, em 1992-1993, que foi lançada a iniciativa brasileira de uma “zona
de livre-comércio sul-americana”, sem tentativas excludentes, entretanto, já que as
relações com os EUA, reconhecidos enquanto parceiro econômico mais importante,
eram consideradas como prioritárias. Participante, como presidente eleito, da
conferência de Miami em dezembro de 1994, FHC revelou que foi “surpreendido pelo
prazo prematuro” com que foi lançado o projeto da Alca, tendo, ao final de seu governo,
estabelecido na cúpula hemisférica de Québec (abril 2001), as condições pelas quais o
Brasil poderia aceitar uma Alca.
Toda a segunda gestão FHC (1999-2002) foi marcada pela administração das
crises financeiras internacionais, com a negociação de dois pacotes de sustentação
financeira pelo FMI, com o apoio decisivo dos EUA em todas as operações. À diferença
dos brutais choques ocorridos na Ásia e na Rússia, elas foram implementadas sempre de
maneira preventiva a qualquer crise ou ameaça de default, não na sequência de cessação
de pagamentos ou de quebras bancárias ou empresariais; o Brasil teve porém de mudar
o regime cambial, abandonando o sistema de bandas pela flutuação em janeiro de 1999.
Ainda que o Brasil não tenha conseguido, nesse período, realçar sua posição no plano internacional, como talvez pretendesse
FHC, em virtude do impacto das crises financeiras, o País conquistou, mesmo assim, um alto nível de interlocução nos planos
multilateral e bilateral, dada a qualidade de seus dirigentes – em especial da equipe econômica – e o profissionalismo de sua
diplomacia. Os EUA também emergiram, no final do período, como o principal parceiro comercial do Brasil (em torno de
25%), superando os países da União (ex-Comunidade) Europeia, que em anos anteriores chegaram a concentrar quase um terço
do comércio exterior do Brasil.

315
Os desenvolvimentos financeiros dos dois últimos anos do governo FHC
ocorreram sob a nova administração George Bush, presumivelmente menos propensa a
pacotes de socorro financeiro ou a tratamento leniente para países emergentes por parte
das instituições financeiras multilaterais. Não obstante, o Brasil continuou a dispor de
canais abertos junto aos responsáveis financeiros de Washington, em grande medida
dada a seriedade dos compromissos do País com a estabilização macroeconômica e
também a credibilidade confirmada das autoridades brasileiras nessa área.
Um dos elementos relevantes da política externa brasileira na segunda metade dos anos 1990 foi, de maneira geral, a prática
extensiva da diplomacia presidencial e, de modo particular no plano bilateral, a intensa relação pessoal cultivada pelos
presidentes dos dois países, o que trouxe a interação entre o Brasil e os EUA ao melhor ponto de entendimentos políticos
alcançado em toda a história passada. Esse novo patamar do relacionamento resultou da coincidência de visões políticas nos
dois países (valorização da democracia, dos direitos humanos, do desenvolvimento social, uma filosofia econômica em geral
adepta da globalização), mas também do alto grau de envolvimento pessoal logrado ao longo desses anos, com diversos
encontros realizados bilateralmente ou à margem de reuniões multilaterais. Merece destaque, nesse particular, a visita bem
sucedida de FHC a Camp David, confirmando os laços pessoais travados pelos dois dirigentes e que se prolongaram além e à
margem das obrigações estritamente bilaterais, com consultas telefônicas sobre outros temas da agenda internacional.

Na visita oficial de Clinton ao Brasil, em outubro de 1997, assim como na de


FHC à casa de campo do presidente americano, menos de um ano depois (junho de
1998), os dois mandatários aproximaram pontos de vista e trocaram impressões dotadas
de uma franqueza raramente igualada nas relações presidenciais, com uma abordagem
desprovida de restrições mentais sobre os problemas mais importantes da agenda
internacional. Independentemente dos interesses nacionais dos dois países, criou-se
entre os dois homens uma mútua simpatia que pode ter repercutido positivamente em
mais de um item da agenda oficial (como o pacote de ajuda do FMI e o acordo de
salvaguardas para Alcântara). Segundo o parceiro brasileiro, o presidente americano
desejava que o Brasil desempenhasse um papel mais importante nos cenários regional e
mundial, postura muito bem acolhida por FHC, que todavia tinha plena consciência das
limitações estruturais e estratégicas conhecidas, não apenas em função da carência
relativa de recursos por parte do Brasil, como também tendo presente nossas prioridades
na frente externo: preservação do Mercosul como base importante de negociações para
o projeto da Alca, importância prioritária dada ao relacionamento com a Argentina,
antes que a uma pretensão a um assento permanente no Conselho de Segurança.
A estabilidade trazida pelo Plano Real e as reformas constitucionais de 1995 e
1996, que abriram setores da economia ao investimento estrangeiro, permitiram adensar
as áreas de relacionamento com os EUA. No plano empresarial, por exemplo, os
investimentos diretos dos EUA no Brasil aumentaram significativamente. O Brasil

316
passou a ocupar a quinta posição entre os países receptores de investimentos diretos dos
EUA, atrás da Alemanha e à frente do Japão. Parte desses investimentos dirigiu-se aos
leilões de privatização em áreas de infraestrutura abertos à participação estrangeira
(como telefonia e energia), mas um volume crescente também foi aplicado em setores
industriais e crescentemente nos serviços. A despeito da intensificação de laços
empresariais não foi possível negociar com os EUA um acordo para evitar a
bitributação (neste caso por dificuldades meramente técnicas, vinculadas à
determinação de algumas fontes de receita) nem um de promoção e garantia dos
investimentos (aqui em virtude da oposição de setores políticos no Brasil à cláusula de
arbitragem investidor-Estado e da cobertura da proteção a ser concedida).
A evolução foi favorável a ponto de os EUA terem admitido assinar com o
Brasil, depois de muita relutância dos responsáveis pela área de segurança, um acordo
de salvaguardas tecnológicas para a utilização da base de Alcântara para o lançamento
de satélites e equipamentos contendo tecnologia americana. O Brasil era o demandeur,
neste caso, e as resistências de alguns setores da administração americana – ainda
basicamente motivadas por preocupações de segurança e de não-proliferação, mesmo se
considerações comerciais não possam ser excluídas – foram vencidas mediante contato
direto de FHC com o presidente Clinton.
Assinado em abril de 2000, o acordo sobre Alcântara foi submetido a duras
críticas no Congresso brasileiro, em razão de seus efeitos eventualmente negativos em
termos de acesso brasileiro à tecnologia de ponta no setor espacial, adicionalmente a
outras considerações de caráter político ou econômico (quando seu objetivo precípuo
não era a transferência de tecnologia, mas sim, mais precisamente, o seu controle). O
novo governo Lula, em maio de 2003, determinou a retirada desse instrumento do
Congresso, assim como desistiu de vez de ratificar qualquer um dos muitos acordos de
promoção e proteção de investimentos estrangeiros que tinham sido assinados com
parceiros tradicionais, muitos dos quais pelo mesmo chanceler que depois serviria
durante os oito anos do seu governo. O acordo de salvaguardas de Alcântara foi
substituído por um inócuo acordo bilateral com a Ucrânia, que revelou-se inteiramente
ineficaz para os fins pretendidos, e todo o exercício pode ser considerado como uma
imensa perda de oportunidades pelo Brasil, por razões basicamente ideológicas.

A era Lula e a mudança no caráter do relacionamento

317
A campanha presidencial de 2002, ao antecipar fortes tendências mudancistas,
alimentou certo recrudescimento das preocupações dos mercados financeiros com a
manutenção das linhas da política macroeconômica seguida na administração FHC, o
que se manifestou nos indicadores de risco, com a sensível deterioração do câmbio, dos
preços dos títulos negociados e a diminuição geral das linhas de crédito comercial e dos
fluxos de investimentos (diretos e de portfólio). O comportamento moderado do
candidato da oposição – que sinalizou seu apoio ao acordo com o FMI em agosto de
2002 e confirmou a aceitação dos princípios da intangibilidade dos contratos da dívida
externa e da responsabilidade fiscal – permitiu desanuviar possíveis tensões com o
governo conservador americano, que revelou então boa disposição para o diálogo tão
logo confirmada a vitória do candidato Lula. O presidente Bush não apenas telefonou
imediata e pessoalmente para cumprimentar o vitorioso desde o anúncio dos resultados,
como formulou convite para uma primeira visita de contato e de discussão informal.
Numa estratégia diplomática muito bem medida, o candidato eleito definiu poucas
viagens externas antes da posse, com destaque para uma visita aos mais importantes
líderes do Cone Sul e a aceitação do convite feito pelo presidente americano.
Nessa primeira visita de trabalho a Washington, realizada em 10 de dezembro de
2002 registrou-se visível empatia entre o líder da principal potência mundial e o futuro
presidente do maior país da América do Sul, ocorrendo a entrevista em ambiente
descontraído e com boa disposição para dar início a uma agenda cooperativa entre os
dois países. Partiu do mandatário americano a sugestão de uma reunião de alto nível
(envolvendo membros do gabinete) ainda no decorrer do primeiro semestre de 2003 (o
que por um momento pareceu ameaçado pelos desenvolvimentos do conflito dos EUA
com o Iraque). Em sua primeira viagem a Washington, o presidente eleito do Brasil
confirmou o interesse de seu governo em dar início a quatro anos de relações francas,
construtivas e mutuamente benéficas para os dois países, desarmando assim os críticos
conservadores dos EUA e surpreendendo grupos radicais no próprio Brasil.
De sua parte, os interlocutores americanos, que tomaram conhecimento nesse
mesmo dia do nome do ministro da Fazenda designado, na pessoa de Antonio Palocci,
um dos acompanhantes da delegação, ficaram positivamente impressionados pela
confirmação da manutenção das grandes linhas da política macroeconômica anterior, o
que sem dúvida desarmou o grave cenário de deterioração dos indicadores que vinha
manifestando-se até então.

318
De fato, a inauguração e o início do governo Lula foram auspiciosos e mesmo
surpreendentes em termos de ativismo diplomático. Confirmando a atenção especial a
ser dada pelo seu governo aos países da região, a começar pelo fortalecimento do
Mercosul, assim como a alguns grandes países em desenvolvimento, o presidente Lula
afirmou, em seu discurso de posse, que procuraria ter com os EUA “uma parceria
madura, com base no interesse recíproco e no respeito mútuo.” O novo chanceler,
escolhido na pessoa do experiente diplomata profissional Celso Amorim (já ministro
das relações exteriores de Itamar Franco), soube colocar as relações entre os dois países
no patamar correto, ao buscar a coordenação e o diálogo em todos os terrenos de
interesse comum, sem eludir, porém, as diferenças de posição em torno de pontos
concretos (como as negociações comerciais multilaterais e hemisféricas, por exemplo).
Os pontos de divergência pareciam superar os de convergência, manifestando-se
em especial em relação aos problemas da Venezuela, dos direitos humanos em Cuba e
do problema do Iraque no Conselho de Segurança. A “agenda positiva” prometida por
ambos presidentes pareceu algumas vezes comprometida em função do conflito no
Iraque, cujo impacto negativo foi temido no Brasil não apenas como resultado de
possíveis efeitos recessivos na economia mundial mas também por seus efeitos
corrosivos no sistema político multilateral. A eventual incorporação do Brasil como
membro permanente do CSNU realizaria um sonho acalentado pelas lideranças políticas
e diplomáticas desde a era da Liga das Nações ou, pelo menos, desde a conferência de
São Francisco que criou a ONU, mas ele vem sendo postergado desde muitos anos não
tanto em função das conhecidas limitações objetivas do Brasil, mas em decorrência das
próprias dificuldades em se lograr aceitação de uma reforma da Carta da ONU. Os EUA
sinalizaram seu apoio ao ingresso seletivo de novos membros, como sendo a Índia e o
Japão e alguns países em desenvolvimento capazes de assumir responsabilidades na
frente da segurança internacional, mas preferiram insistir, nos últimos anos, na tese da
reforma da ONU enquanto organismo burocrático superdimensionado, deixando o
espinhoso tema da reforma da Carta a ocasião mais oportuna.
Mas a relação também foi dificultada pela falta de entendimento em torno de
algumas questões importantes, como a da Alca, por exemplo, o que colocou as duas
administrações em posições díspares, uma vez que Lula e Amorim já tinha decidido
implodir esse projeto americano, o que finalmente conseguiram, dois anos depois – na
conferência de cúpula de Mar del Plata, em novembro de 2005 – com a ajuda dos

319
aliados Kirchner, da Argentina, e Chávez, da Venezuela. O restante da primeira
administração Lula e todo o seu segundo mandato foi ocupado, quase inteiramente, por
iniciativas e projetos brasileiros de “afastamento” da América do Sul da influência dos
EUA, consubstanciados na proposta da Comunidade Sul-Americana de Nações, que
representaria, segundo seus promotores, um mecanismo de coordenação próprio à
região e sem a “tutela do império”.
De fato, a implosão da Alca significou que muitos países do hemisfério,
interessados no acesso de seus produtos ao grande mercado americano e na atração de
investimentos dos EUA em suas economias, passaram a negociar diretamente com o
gigante americano acordos de livre comércio e de facilitação de investimentos, num
esquema não mais hemisférico, mas “minilateralista”, com os EUA determinando o
padrão e o conteúdo dessas relações econômicas. Acabaram ficando de fora os países do
Mercosul, e os chamados “bolivarianos” que, sob o comando de Hugo Chávez, se
decidiram por uma bizarra Aliança Bolivariana dos Povos da América, feira mais de
comércio administrado e de intercâmbios estatais do que de integração econômica.
O Brasil e o Mercosul passaram a promover mais ativamente a chamada
diplomacia Sul-Sul, pretendendo criar uma “nova geografia do comércio mundial”, que
se revelou, no entanto, extremamente modesta em seu escopo e alcance geográfico:
apenas três modestos acordos de liberalização limitada do comércio, com parceiros não
tradicionais – Israel e Palestina – e com a Índia, que sempre manteve a mesma postura
protecionista e dirigista dos dois principais parceiros do Mercosul, o Brasil e a
Argentina. Essa postura foi também agravada por desentendimentos persistentes com os
EUA no âmbito das negociações comerciais multilaterais da Rodada Doha, que não
apenas não foram concluídas durante o mandato originalmente acordado em 2001,
como se prolongaram em diversas tentativas frustradas no decorrer dessa década, e se
encontra praticamente estagnada desde o início da presente década.
O caráter morno – para não dizer moroso – das relações bilaterais Brasil-EUA
durante grande parte da era Lula, a despeito de uma retórica aparentemente amistosa e
sempre declarada positiva, pode estar ligada à partidarização evidente da diplomacia
brasileira sob a hegemonia do PT e do antiamericanismo indisfarçável de vários dos
dirigentes lulo-petistas. Não deixa de ser um fato que o PT se apresenta como um típico
partido esquerdista latino-americano, com maiores simpatias por certos aliados ditos
“progressistas” – quando não declaradamente comunistas ou socialistas, como os

320
regimes cubano e chavista – do que pelas democracias liberais de mercado, postura que
dificulta o estabelecimento ou o reforço de diversas iniciativas diplomáticas que, de
outra forma, poderiam estar sendo conduzidas pelo staff profissional do Itamaraty. Esse
elemento, sempre negado oficialmente, se mostrou evidente em vários episódios das
relações bilaterais ou no tratamento de diversos temas da agenda multilateral. Ainda que
Lula procurasse destacar suas boas relações com George Bush, não foi registrada
qualquer grande iniciativa econômica ou política que pudesse colocar essas relações em
outro patamar.

Período recente: continuidade da inércia e pontos de conflito


A continuidade da gestão lulo-petista na presidência do Brasil, a partir de 2011,
não veio trazer, a despeito das mesmas manifestações retóricas em favor das “boas
relações”, nenhuma grande novidade nesse quadro de morosidade diplomática e de
ausência de qualquer iniciativa de relevo, ainda que acordos de cooperação setorial
tenham sido assinados episodicamente. Desde os ataques terroristas de 2001, os pontos
preferenciais da agenda americana para a região se situam mais no terreno da segurança
e do combate ao crime organizado – inclusive o narcoterrorismo – do que na promoção
do desenvolvimento mediante políticas de sustentação ativa de investimentos, ao passo
que o Brasil e outros países da região provavelmente prefeririam, por sua parte, insistir
no apoio a políticas de desenvolvimento, transferência de tecnologia e, sobretudo,
acesso a mercados, como condição de superação das amarras do subdesenvolvimento.
Esse tipo de desencontro tem sido uma constante desde o imediato pós-Segunda
Guerra, quando os países latino-americanos insistiam por uma réplica do Plano
Marshall aplicado à região e os EUA retrucavam com recomendações de abertura
econômica, acolhimento do investimento estrangeiro, liberalização comercial e luta
contra a corrupção e as desigualdades sociais. Nessa época, no imediato pós-Segunda
Guerra, assim como tinha ocorrido nos tempos do Barão do Rio Branco, no início do
século 20, falou-se muito de um relacionamento especial, uma espécie de “aliança não-
escrita, entre o Brasil e os Estados Unidos, muito embora fossem evidentes os
diferenciais de poder e as orientações diversas das agendas diplomáticas respectivas.
Um século depois, esse relacionamento parecia ter se esvaído completamente,
quando do episódio da espionagem americana sobre as comunicações oficiais do Brasil,
inclusive de empresas relevantes, como a Petrobras, justamente quando a presidente

321
Dilma Rousseff se encontrava preparando uma visita de Estado a Washington, em
meados de 2013. A viagem foi obviamente suspensa, mas a amplitude e a acrimônia da
reação brasileira – bem mais intensas do que as registradas em países e por líderes
políticos aliados, igualmente espionados, como a chanceler alemã Angela Merkel, por
exemplo – provavelmente tem mais a ver com considerações de natureza política
doméstica do que propriamente com questões diretamente diplomáticas ou como
resultado de um desentendimento fundamental em relação a temas diversos da agenda
diplomática internacional. Afinal de contas, não é segredo para ninguém que os EUA,
como grande potência mundial, arrogante e unilateralista como podem ser os hegemons,
se dedicam a esses exercícios de espionagem – da mesma forma como todas as demais
potências relevantes – e vão continuar recorrendo a esse tipo de expediente, à margem e
independentemente da natureza de suas relações – de amizade, de cooperação ou de
desconfiança ou mesmo de animosidade momentânea – com parceiros, aliados e, a mais
forte razão, com países com os quais mantenham relações marcadas pela ambiguidade.
Ora, não é tampouco segredo para ninguém que o regime lulo-petista tem entre seus
aliados preferenciais alguns dos piores inimigos dos EUA – como cubanos, bolivarianos
e adeptos de regimes “anti-hegemônicos” como China e Rússia, por exemplo – e com
eles colabora abertamente em temas e agendas que têm como objetivo declarado
“mudar a relação de forças” no mundo, num sentido “pós-imperial”.
Não se pode esperar, nessas circunstâncias, que o “império” mantenha o projeto
de uma relação especial, estratégica ou cooperativa, com um governo que trabalha para
minimizar as fontes e o exercício desse poder hegemônico em diferentes âmbitos do
cenário mundial. De certo modo, foi o Brasil quem alimentou, historicamente, vãs
esperanças e ilusões ingênuas de uma relação especial com os EUA. Recorde-se, por
exemplo, a questão nem sempre bem colocada, e de certo modo totalmente artificial, da
“opção” (ou da oposição) entre uma “política externa tradicional” – por definição
“alinhada” – e uma “política externa independente”, problema dramatizado por anos de
enfrentamento bipolar no cenário geopolítico global.
Superado, contudo, o invólucro ideológico da postura externa do Brasil nesse
período ultrapassado (mas que parece estar voltando a partir das novas posturas da
Rússia e da China), e mesmo os diversos “rótulos” com os quais se procurou classificar
a diplomacia da era militar, assume importância primordial, atualmente, a questão do
desenvolvimento econômico, verdadeiro leit motiv da diplomacia brasileira

322
contemporânea. É por esse prisma que o Brasil identifica seus interesses prioritários e é
nessa postura que ele espera confortar seus temores mais manifestos, entre eles o de
uma dominação econômica americana, mais imaginada do que realmente realizada,
sequer em estado potencial. Parece incrível, nesse particular, que os mesmos críticos da
postura “arrogante” e “unilateralista” do império do passado (e do presente) não
reconheçam na China os mesmos elementos de dominação econômica que sempre
caracterizaram a presença das principais potências capitalistas ocidentais em direção do
Terceiro Mundo em geral, e de alguns países periféricos em particular (em especial
aqueles especialmente suscetíveis de serem inseridos de maneira produtiva na grande
divisão internacional do trabalho).
Um século atrás, os colonialismos europeus, e os imperialismos ocidentais de
maneira ampla, mantinham as mesmas práticas comerciais e faziam os mesmos tipos de
investimentos utilitários em transportes e comunicações, em infraestrutura no seu
sentido amplo, em direção da periferia colonizada ou semicolonial que hoje motivam a
China e seus ávidos novos capitalistas nos grandes programas de penetração dos
mesmos territórios e regiões suscetíveis de serem absorvidos pela grande máquina de
produção de massa localizada no gigante da Ásia do Pacífico. O que haveria de
fundamentalmente diferente com a atual postura chinesa, a não ser a ausência de uma
motivação colonialista explícita?
De resto, no que se refere aos objetivos propriamente econômicos dos dois tipos
de empreendimento, a ofensiva chinesa não parece ser muito diferente, no início do
século 21, em relação ao que se praticava um século atrás, embora as condições
geopolíticas tenham sido fundamentalmente alteradas depois do encerramento dos dois
grandes conflitos globais do início do século 20. No que se refere, por sua vez, a
projetos de desenvolvimento em escala nacional, alguns países latino-americanos
continuam a mostrar-se mais propensos a um modelo de desenvolvimento menos
dominado pelos mercados e pelos empresários privados, e bem mais orientado pelos
governos e burocracia nacionais e, de certa forma, parcialmente afastados das redes de
integração produtiva que se desenham em outras regiões, em especial na Ásia Pacífico,
justamente. Nem todos, porém, seguem as mesmas reticências protecionistas e temores
de “desnacionalização”, que parecem motivar atualmente líderes da Argentina e do
Brasil, entre outros; vários outros, aos quais se poderia aplicar o qualificativo de

323
“globalizadores”, parecem bem mais propensos a se integrarem nessas redes, como são
os membros da Aliança do Pacífico: Chile, Peru, Colômbia e México.
No caso da atual diplomacia brasileira, ao início do século 21, e em grande
medida graças ao exercício da diplomacia presidencial tanto por parte de FHC, como
por Lula, o relacionamento do Brasil com os EUA parece ter se tornado mais maduro e
isento de preconceitos ideológicos e de ilusões quanto a qualquer tipo de “relação
especial”, como ocorreu em diversas ocasiões de um passado não tão remoto. A
expectativa, registre-se, é bem mais, ou exclusivamente, brasileira, do que americana,
uma vez que a grande potência do Norte não tem, ao Sul, nenhuma ameaça à sua
segurança e portanto não atribui, às suas fronteiras meridionais o mesmo grau de
atenção estratégica do que a outras regiões, a começar pela Ásia Pacífico, pelo Oriente
Médio ou mesmo pela Europa central e oriental.
O Mercosul e a formação de um espaço econômico integrado na América do Sul
há muito deixaram de vistos, na agenda diplomática “imperial”, como um desafio à sua
hegemonia hemisférica, passando a serem vistos, naturalmente, como alavancas de um
processo de desenvolvimento que pode beneficiar a todos. Eliminada a hipótese de uma
grande área de livre comércio hemisférica, a Alca, patrocinada pelos Estados Unidos em
moldes similares aos da primeira tentativa efetuada na conferência americana de 1889-
90, o que ficou foi uma colcha de retalhos feita de diversos acordos minilateralistas com
parceiros mais propensos a aceitarem essa relação pragmática proposta pelo império. Os
temores, alimentados de forma recorrente durante anos, ou quiçá décadas, por parte de
líderes políticos, de uma “dominação econômica” do Brasil pelo gigante hemisférico, há
muito se esvaneceram, e começam a ser imaginados, doravante, os incômodos de uma
grande dependência econômica e financeira da China, menos imperial, talvez, mas
igualmente ambiciosa em suas pretensões econômicas unilaterais.
O relacionamento bilateral Brasil-EUA padeceu, durante muito tempo, de uma
“crosta” feita de declarações contínuas de interesse recíproco de parte e outra, mas de
um afastamento também contínuo ao longo do tempo, bem mais alimentado pelo Brasil
do que pelos EUA (que de fato teriam uma “não-percepção do Brasil”). Existiria, talvez,
um receio do Brasil de que uma aproximação com os EUA se faria em detrimento dos
interesses do País, daí as tendências a querer ganhar tempo, achando que mais tarde
estaríamos mais fortes e mais preparados. Isso obviamente nunca ocorreu, como
tampouco ocorrerá em relação à China. Enquanto o Brasil não se lançar decisivamente

324
nos circuitos sempre revoltos da globalização produtiva e da interdependência
capitalista, ele nunca estará preparado, psicologicamente, para inserir-se de maneira
autônoma nos grandes circuitos competitivos da economia global.
Os conflitos comerciais bilaterais ou multilaterais com os EUA e mesmo, dentro
de certos limites, certa oposição de interesses estratégicos são, nessa visão, compatíveis
com um bom nível geral de relacionamento político-diplomático, quando não com um
entendimento no plano estratégico, ainda que essa vertente seja por muitos considerada
prematura (pelas mesmas razões, percebidas e reais, de “assimetria estrutural”). Em
todo caso, os dois países parecem ter dado início a um estilo de relações desprovido de
a-prioris ou de condicionalidades estranhas ao próprio contexto bilateral e regional. O
terreno foi semeado nesse sentido ao longo das últimas décadas de reformas econômicas
no Brasil e pode estar sendo preparado, na atual fase de importantes ajustes econômicos
por parte do Brasil, para uma nova etapa de colheitas políticas e diplomáticas que
contribuirão provavelmente de maneira decisiva para a definição de uma nova relação
dos EUA com o Brasil e com a América Latina.
O desafio da China nos planos global, regional e bilateral, não deixa de colocar
novos elementos na agenda bilateral Brasil-EUA, e pode estar criando uma realidade
inédita no hemisfério, ainda a ser confirmada pelos fatos e processos nos próximos
anos: a de que os dois maiores países do continente precisam manter um nível adequado
de entendimento em torno de questões relevantes nas áreas da segurança estratégica, da
estabilidade democrática e do desenvolvimento econômico e social, inclusive para
superar décadas, senão séculos, de divisão entre as duas partes do hemisfério. Se bem
sucedido esse cenário, ele talvez nos leve de volta ao tipo de relação imaginado no
começo do século 20 por um chanceler tão distinguido quanto Rio Branco, que via na
relação dos dois países uma das chaves para uma projeção estratégica favorável do
Brasil na América do Sul.
Do ponto de vista da administração americana, por sua vez, a seleção de um
“parceiro privilegiado” no continente não é matéria fácil, nos planos diplomático ou
militar, e provavelmente ela não se fará de modo explícito, nem acarretará instrumentos
exclusivos de coordenação político-militar. Mas, o fato de o governo brasileiro estar
sendo ocupado por lideranças extraídas dos mesmos grupos que, no passado, relutavam
na adesão a certas teses econômicas ou políticas de extração “liberal” – para não dizer
que se opunham claramente ao “projeto americano” para a região – e o fato de que essas

325
mesmas lideranças demonstrem, agora, maior dose de pragmatismo na condução dos
negócios econômicos e da agenda diplomática, podem eventualmente significar que o
Brasil passa a simbolizar, aos olhos dos EUA, a superação de velhos comportamentos
atávicos na região, tendentes a equiparar anti-imperialismo e antiamericanismo ou a
adesão a regras responsáveis de gestão governamental a uma suposta submissão a
ditames econômicos emanados de um fantasmagórico “Consenso de Washington”.
Pode ser que essas ingenuidades esquerdistas e essas bobagens econômicas
estejam sendo, finalmente, superadas em favor de uma agenda bilateral mais realista do
que aquela imaginada pelos ideólogos anacrônicos do velho partido neobolchevique que
pretendia “revolucionar” a região contra o império, e que ela passe a estar totalmente
focada em resultados concretos. Pode ser: como no famoso teste britânico do pudim, a
resposta só pode vir da prática que resulte na sua efetivação. Vamos esperar para ver...

2834. “Relações Brasil-EUA: um recorrente reinício?”, Hartford, 17 junho 2015, 21 p.


Texto encomendado pela Revista Sapientia, por ocasião da visita da presidente aos
EUA, no final do mês. Seleção das duas últimas partes, sob o título de “Relações
Brasil-EUA no início do século 21: desencontros”, publicado em Mundorama
(boletim n. 94, junho 2015, publicado em 28/06/2015; link:
http://mundorama.net/2015/06/28/relacoes-brasil-eua-no-inicio-do-seculo-21-
desencontros-por-paulo-roberto-de-almeida/). Texto completo publicado na Revista
Sapientia (ano 4, n. 24, julho-agosto 2015, p. 18-29; link para a revista:
http://cursosapientia.com.br/images/revista/RevistaSapientia-Edicao24.pdf; link
para o artigo:
https://www.academia.edu/14879515/2834_Rela%C3%A7%C3%B5es_Brasil-
EUA_um_recorrente_reinicio_2015_). Relação de Publicados n. 1180 e n. 1187.

326
40. A falácia dos modelos de desenvolvimento

Modelos, quando referidos a experimentos ou processos de desenvolvimento


bem sucedidos, são construções ex-post, elaboradas por sociólogos dotados de pouca
imaginação, para explicar algum caso exitoso de crescimento econômico sustentado,
com distribuição dos benefícios sociais desse crescimento. Na verdade, essas
construções não constituem modelos de espécie alguma, não explicam muita coisa sobre
as razões do sucesso, não são receitas de desenvolvimento rápido para nenhum outro
país e, sobretudo, não podem servir de exemplo para o itinerário de outros países.
No entanto, é muito comum falar-se de modelos de desenvolvimento, embora
eles sejam mais usados na linguagem jornalística do que nas análises econômicas, o que
justifica sua inserção na categoria das construções sociológicas, e não no terreno mais
circunspecto da análise econômica, ou da história do desenvolvimento econômico. Na
opinião deste articulista, modelos são falácias acadêmicas, construídas e disseminadas
nos departamentos de sociologia das universidades, e alimentadas justamente pela
ausência de senso crítico na avaliação desses processos sustentados de crescimento
econômico. Mas eles também são típicos do jornalismo econômico superficial,
ambiente no qual uma experiência única e historicamente original acaba sendo
indevidamente ampliada para cobrir um espectro mais amplo de países e passa então a

327
representar uma suposta nova receita de desenvolvimento, geralmente de vida efêmera
(isto é, enquanto duram as taxas robustas de crescimento de um país que serve
alegadamente de modelo).
Se quisermos ser abusados, diríamos que o modelo artificialmente construído só
dura enquanto se mantiverem as condições favoráveis do caso selecionado, um pouco
como o socialismo, que só dura enquanto durar o dinheiro dos outros. Modelos
verdadeiros deveriam ser experiências de fracasso, pois é mais fácil saber o que não dá
certo do que identificar claramente as condicionantes de um processo bem sucedido de
desenvolvimento. Como também se diz habitualmente, o sucesso pode ter muitos pais,
mas o fracasso raramente encontra uma miserável de uma mãe. No entanto, seria mais
útil saber o que pode dar errado, segundo a conhecida lei de Murphy, do que se por a
buscar todos os elementos que compõem uma receita de sucesso.
E não precisamos ir muito longe para recolher uma série inteira de fracassos
históricos. A América Latina é um imenso laboratório de experiências fracassadas de
desenvolvimento econômico. Não fosse por isso, não estaríamos exportando matérias
primas há quinhentos anos, e não teríamos sido ultrapassados por outros países e regiões
que já estiveram muito mais baixos e já andaram muito mais atrasados do que nós nos
níveis de desenvolvimento econômico e social. Digo isto com certo cuidado, uma vez
que na escala do desenvolvimento, a América Latina sempre foi uma espécie de classe
média do desenvolvimento, abaixo da periferia europeia, mas acima de muitos países
asiáticos e certamente bem acima da acumulação de misérias do continente africano,
este sim um modelo de não desenvolvimento, cujo fracasso histórico deve ser estudado
com cuidado, justamente como receita do que não fazer.
Em todo caso, uma história econômica diferente da América Latina seria uma
que se dedicasse a fazer o relato de seus fracassos apenas para desmentir essa falácia
dos modelos de desenvolvimento, uma vez que já tivemos, no passado, países inseridos
nessa categoria falaciosa, a começar pelo próprio Brasil. De modo geral, como já
referido, nenhum país é modelo para qualquer outro país, a não ser como modelo
negativo, sobre o que não fazer, e nessa categoria a América Latina tem dado sobejas
demonstrações de equívocos repetidamente repetidos, se ouso ser redundante. Não
querendo tripudiar sobre alguém, em especial, mas o fazendo, cabe reconhecer que a
Argentina, em particular, vem cometendo bobagens há mais de 80 anos, e isso contínua
e repetidamente, para ser ainda mais redundante.

328
Mas, não cabe aí nenhum orgulho patrioteiro sobre nosso progresso relativo em
relação ao mais importante vizinho: o Brasil segue os passos da Argentina, ainda que
moderadamente. Não tivemos a desgraça de cair no fascismo caudilhista e de construir
um sistema que perdura, como o peronismo, e que assombra todo o país, capturando até
algumas de suas inteligências mais refinadas, e que mantém a nação refém de um
cadáver insepulto, aliás mais de um. Nós tivemos o nosso fascismo moderado, apoiado
no positivismo castilhista, e mais recentemente um peronismo de botequim que, para
nossa sorte, não tinha nenhuma doutrina, só esperteza e demagogia (além de algumas
outras qualidades pouco recomendáveis).
De uns tempos para cá, o Chile foi apontado como modelo de desenvolvimento,
apenas porque cresceu vigorosamente nos anos 1990 e se tornou uma espécie de tigre
latino-americano, tendo inclusive conquistado a honra de ser admitido nesse clube de
ricos que se chama OCDE. Mas o Chile não é modelo de nada, ou para nada, apenas
uma resposta adequada que suas elites souberam oferecer, num determinado momento,
a desafios surgidos a partir de uma séria crise econômica e política. Ao que parece,
essas elites, consideradas de direita, neoliberais ou o que seja, julgaram conveniente
abrir o país economicamente, liberalizar amplamente seu comércio exterior e enfatizar
as velhas vantagens ricardianas que derivam de certas especializações produtivas.
No Brasil sempre se desprezou o “modelo chileno”, se modelo existiu – o que eu
não acredito – a pretexto de que se tratava de uma economia pequena, de um abandono
completo de uma suposta vocação industrial – que todo grande país deveria ter – e de
uma dependência em alguns poucos produtos primários de exportação, e que portanto,
segundo esses críticos superficiais, estaria fadado ao fracasso inevitável. Confesso que
nunca me impressionou essa história de crítica às especializações limitadas, à falta de
um projeto industrial, ou essa outra alegação ainda mais estúpida que se prendia à
pequena magnitude econômica do país. Em termos de sucesso ou fracasso, não existem
países grandes ou pequenos, aliás sob qualquer outro critério; existem apenas políticas
econômicas que funcionam e outras que não funcionam, medidas macro e setoriais que
são de boa qualidade, e outras que são de péssima qualidade. Sob esse ponto de vista, o
Chile foi de fato um sucesso relativo, pelo menos durante certo tempo (ou até que os
socialistas resolvessem mudar algumas regras do “modelo” anterior).
Em todo caso, qualquer país que ofereça uma perspectiva de crescimento
sustentado e de prosperidade a seu povo, que mantenha a qualidade das políticas

329
econômicas, macro e setoriais, pode ser considerado um exemplo de sucesso, mas isso
em seus próprios termos, dentro de suas circunstâncias, não como receita para os
demais, pois essas experiências são sempre “irrepetíveis”, se ouso dizer. O Chile,
justamente, parece que se cansou de ser neoliberal e agora vem tentado ser um pouco
mais socialista. Será que vai dar certo? Cabe acompanhar de perto, para alguma
hipótese do experimento desandar.
Alguns acham, otimistas, que o Chile é o caminho para o Brasil, que está
cansado de ser dirigista e protecionista, e talvez se aproxime um pouco mais de um
modelo mais aberto. Liberal? Esqueçam. Não há nenhum risco dessa coisa acontecer
por aqui nos próximos 30 ou 40 anos. Vamos continuar trilhando nosso pequeno e
medíocre itinerário de voo de galinha, como gostam de repetir os economistas, ou seja,
crescimento satisfatório, durante algum tempo – por autoindução, ou por empurrão da
China – e depois desabamos novamente para alguma crise fiscal ou de transações
correntes. Parece ser a nossa sina, ou pelo menos vejo isto, ao ouvir, até enjoar, a
conversa de políticos entendidos no assunto, que prometem continuar lutando para
garantir crescimento com emprego e distribuição de renda, desde que as políticas
corretas sejam aplicadas pelo governo, isto é, por eles mesmos. Acho que não vai ser
ainda desta vez...
Mas, se o Chile não é o modelo, para nós, ou para qualquer outro país, qual seria
o “bom modelo” a ser seguido? A Coreia (do Sul, of course), a China? Não me falem da
Grécia, por favor, esse país latino-americano (malgré lui) perdido na UE. Sobra quem,
afinal? Não tenho a menor ideia, e só me resta repetir: não existem modelos disso ou
daquilo, seja de crescimento rápido, seja de desenvolvimento “inclusivo”, seja de
qualquer outra coisa. Existem apenas modelos de fracasso, países que abusaram da
irresponsabilidade emissionista, que manipularam juros e câmbio, que cercearam a
iniciativa privada, que gastaram mais do que podiam, que se endividaram em excesso,
que praticaram um protecionismo rastaquera e um nacionalismo doentio, que
descuraram da boa governança e de uma educação de qualidade, enfim, todas essas
mazelas que todos vocês conhecem muito bem.
Estou falando do Brasil? Nem por sonho, imaginem se eu seria capaz disso?!
Estudo o Brasil há quase meio século e ainda não consegui perceber qual é a nossa, um
passo para a frente, dois para trás, tentativas de ensaio e erro, com mais erros do que
acertos, enfim, um país que decididamente não é normal, como já declarei em tantas

330
ocasiões (para uma experiência recente, meio desanimadora com a nossa “normalidade
anormal”, vejam este link: http://diplomatizzando.blogspot.com.br/2015/07/uma-estada-
breve-mas-suficiente-na.html). Então qual é a nossa? Qual é a saída?
Sou obrigado a me repetir mais uma vez, e me desculpo por mais esta
redundância. O caminho para o Brasil, para o Chile, para a Argentina, para a China,
para qualquer país candidato a um processo de crescimento sustentado, com distribuição
dos benefícios desse crescimento, que são a base do desenvolvimento econômico e
social, é muito simples (mas também é complicado, ao que parece). Eu resumiria as
minhas cinco regrinhas, que já desenvolvi em vários dos meus trabalhos sobre o assunto
(prometo pescar os links e postar depois em addendum a esta nota), nestes pontos:
1) estabilidade macroeconômica;
2) competitividade microeconômica;
3) boa governança;
4) alta qualidade dos recursos humanos;
5) abertura ao comércio internacional e aos investimentos estrangeiros.
Pronto, fico por aqui e não preciso acrescentar mais nada, pois acredito que os
cinco requerimentos são self-explaining. Não vou ficar dando consultoria de graça neste
momento, mas também não sou candidato a conselheiro do príncipe nem a “aspone” de
qualquer governante, pelo menos não dos que estão aí (eles não precisam, sabem errar
sozinhos). Só acrescento mais isto: as cinco regrinhas são suficientemente vagas para
servir a todos os casos de doentes renitentes nessas coisas de políticas macroeconômicas
e setoriais, mas elas devem ser, a cada vez, adaptadas às circunstâncias nacionais, o que
é o “óbvio ululante”, como já dizia Nelson Rodrigues.
O mesmo finado escritor, de tão grata memória em várias outras coisas (mas não
necessariamente em economia), também lembrava que subdesenvolvimento não se
improvisa, é obra de séculos, como ele mesmo improvisava. Eu discordo dele. Acho que
o subdesenvolvimento é, antes de mais nada, um estado mental, pelo menos no caso do
Brasil varonil. Sorry patrioteiros...

PS.: Esqueçam os modelos: estudem, comparem, e sigam o bom senso...

2844. “A falácia dos modelos de desenvolvimento: enterrando um mito sociológico”,


Anápolis, 12 julho 2015, 2 p.; Brasília-Atlanta (em voo), 16-17 julho 2015, 5 p.
331
Digressões sobre o mito dos modelos de desenvolvimento. Mundorama
(17/07/2015; link: http://mundorama.net/2015/07/17/a-falacia-dos-modelos-de-
desenvolvimento-enterrando-um-mito-sociologico-por-paulo-roberto-de-almeida/);
reproduzido no blog Diplomatizzando (18/07/2015; link:
http://diplomatizzando.blogspot.com/2015/07/falacias-academicas-o-mito-dos-
modelos.html). Relação de Publicados n. 1182.

332
41. O TransPacific Partnership e seu impacto sobre o Mercosul

Doze países da orla do Pacífico – membros da APEC (Cooperação Econômica


da Ásia Pacífico), alguns da ASEAN (Associação de Nações do Sudeste Asiático), os
três do NAFTA (Canadá, Estados Unidos e México) e três dos quatro membros latino-
americanos da Aliança do Pacífico (Chile, Peru e México, mas a Colômbia também
cogita aderir) – assinaram em 5 de outubro de 2015 um grande acordo de liberalização
do comércio nessa vasta região. As siglas já indicam que não se trata de algo surgido do
nada, mas sim a evolução de um processo que ocorre paralelamente aos progressos da
globalização nas últimas duas ou três décadas. Existem boas perspectivas de que a
Coreia do Sul e outros países da região possam aderir em negociações ulteriores,
embora vários observadores se apressaram em sublinhar o fato de a China ter sido
mantida (por enquanto, pelo menos) à margem desse gigantesco acordo de liberalização
comercial. Esse fato, do qual muitos extraem conclusões geopolíticas apressadas, pode
não significar muito no plano prático: o gigante asiático, tanto quanto o Japão, um dos
grandes signatários, estará de fato presente nos intercâmbios a serem realizados ao
abrigo do acordo, pelos seus muitos vínculos de investimentos e de integração produtiva
já consolidados ao longo da (e em toda a) imensa bacia do Pacífico.
A decisão de coroar um difícil processo negociador – que tinha sido iniciado em
2008 – por um acordo ambicioso de liberalização comercial e de facilitação de diversos
outros tipos de negócios se insere na tendência acelerada nas duas últimas décadas que é
conhecida como “regionalização”. Mas ela também poderia ser identificada ao chamado
“minilateralismo”, por oposição ao formato básico do sistema multilateral de comércio,
regido pelas normas do GATT – o Acordo Geral de Tarifas e Comércio, de 1947,
revisto em 1994 – e administrado pela Organização Mundial de Comércio (OMC), ela
mesma criada nesse último ano, mas que representa a última das três organizações da
ordem econômica mundial, cujo desenho tinha sido feito pela primeira vez em Bretton
Woods, em 1944. A regionalização constitui, justamente, uma das exceções ao regime
geral do GATT, no sentido em que ela permite, contra os princípios gerais de nação-
mais-favorecida, tratamento nacional e reciprocidade desse instrumento, que as nações
partícipes de esquemas mais restritos de liberalização comercial não tenham de aplicar o
mesmo tratamento a todos os membros do acordo, mas que possam manter,

333
contrariamente ao artigo primeiro do GATT, certo grau de discriminação contra
parceiros comerciais não membros desse acordo mais restrito.
No caso desse acordo do Pacífico, como também de outros blocos comerciais
em vigor – em geral sob a forma de áreas preferenciais de comércio ou de zonas de livre
comércio, com alguns poucos casos de uniões aduaneiras, como a UE e, tentativamente,
o Mercosul –, a redução das tarifas aduaneiras aplicadas ao comércio recíproco nem
constitui o aspecto mais importante do esquema: as tarifas comerciais já são, para todos
os efeitos, muito baixas (com possíveis exceções na área agrícola, terreno, aliás, de
muitas das exclusões pontuais à liberalização), ou inexistentes, inclusive por força de
acordos já concluídos, como é o caso do famoso ITA, o acordo que zera as tarifas para
uma imensa gama de bens tecnológicos (geralmente de informática, ou eletrônicos em
geral). Com exceção do Mercosul, e de alguns outros blocos comerciais incipientes
entre países em desenvolvimento, as tarifas industriais entre parceiros avançados e em
vigor nos grandes acordos de comércio – como os de “associação” patrocinados pela
UE – as barreiras tarifárias não costumam ter a função protecionista que elas assumem
no âmbito do chamado “Sul Global”, embora as exceções pontuais e o tratamento
especial dado a alguns setores (agricultura, em grande medida) possam ser relevantes.
Mas, se as tarifas não são tão importantes nesse acordo do Pacífico, por que, então, as
dificuldades negociadoras, e as relutâncias já expressas por legisladores (sobretudo nos
Estados Unidos) aos seus termos?
Isto se deve a que o TransPacific Partnership não é um simples acordo de acesso
a mercados, ou seja, tratando apenas de tarifas de bens, e sim um acordo abrangente que
se estende às muitas áreas que, na linguagem da OMC, são introduzidas pela expressão
“aspectos comerciais de...”, ou seja, temas regulatórios e normas. Aqui figuram, entre
outros, investimentos, barreiras técnicas, propriedade intelectual, normas fitossanitárias,
meio ambiente, regulações laborais, compras governamentais, aperfeiçoamento dos
mecanismos de solução de controvérsias, sem mencionar o importante campo dos
serviços (sobretudo os financeiros, onde atualmente se destacam gigantes como os
próprios EUA, mas também cidades-Estados como Cingapura, ou “enclaves” como
Hong Kong). O Vietnã, por exemplo, terá de atender a alguns dos critérios expressos no
acordo que regulam normas laborais, permitindo a criação de sindicatos independentes,
que possam lutar pelos interesses reais dos trabalhadores, sem a interferência do partido
comunista, que mantêm a postura contrária a sindicatos livres dos marxistas no poder.

334
São esses os terrenos que passarão a ocupar um espaço significativamente maior
do que o próprio comércio de bens nos intercâmbios entre essas economias, que a julgar
por estimativas apresentadas recentemente já representariam 40% do PIB mundial (mas
menos de 30% pelo critério da paridade de poder de compra). Na verdade, os membros
do TPP são ainda mais relevantes do que a simples agregação dos PIBs nacionais, e os
seus números desafiam qualquer comparação com o Mercosul, e ultrapassam até mesmo
os indicadores mastodônticos vinculados à UE com seus 27 membros. O Mercosul,
mesmo incorporando Venezuela e Bolívia (que não poderiam, a rigor, ser considerados
membros plenos do bloco, sendo antes países associados a ele), empalidece em face dos
dois grandes blocos comerciais da atualidade, como também da China, o novo gigante
da economia mundial; o coeficiente de comércio exterior do Mercosul, por exemplo,
representa apenas 19% do PIB, contra 24% da China, 25% da UE e mais de 31% para o
TPP. A tabela abaixo, com estatísticas de PIB segundo o critério da paridade de poder
de compra, apresenta os mais importantes indicadores vinculados a comércio.

Indicadores econômicos por países e blocos (TPP, Mercosul, UE, China, Mundo)
País/Bloco População PIB ppp Export Import Xs - Ms
Austrália 23.490 1.100.000 250.800 245.900 4.900
Brunei 422 32.110 11.380 4.308 7.072
Canadá 34.834 1.579.000 465.100 482.100 - 17.000
Chile 17.363 410.300 76.980 70.670 6.310
Cingapura 5.567 445.200 445.200 375.500 69.700
EUA 318.892 17.460.000 1.610.000 2.334.000 - 724.000
Japão 127.103 4.807.000 710.500 811.900 - 101.400
México 120.286 2.143.000 406.400 407.600 - 1.200
N. Zelândia 4.401 158.700 40.210 40.710 - 500
Peru 31.400 376.700 36.430 40.250 - 3.820
Vietnã 93.421 509.500 147.000 138.600 8.400
TPP 777.179 29.020.810 4.203.900 4.951.628 - 751.538
Argentina 43.024 540.200 76.470 65.900 10.570
Bolívia 10.631 70.380 12.340 9.513 2.827
Brasil 202.770 3.073.000 242.700 241.900 800
Paraguai 6.703 57.870 14.610 12.370 2.240
Uruguai 3.332 69.380 11.000 12.050 - 1.050
Venezuela 28.868 545.700 83.200 50.340 32.860
Mercosul 295.810 4.356.530 440.320 392.073 48.247
China 1.355.692 17.630.000 2.252.000 1.949.000 303.000
UE 511.434 17.610.000 2.173.000 2.312.000 139.000
Mundo 7.256.490 107.005.000 19.080.000 18.860.000 220.000
Fonte: CIA Fact Book (https://www.cia.gov/library/publications/resources/the-world-factbook/;
acesso: 09/10/2015); valores: milhões de dólares correntes (PIB= ppp).

335
Uma comparação entre esses blocos em seus respectivos indicadores permite
verificar seu potencial impacto mundial em termos econômicos e comerciais. O TPP,
por exemplo, com apenas um décimo da população mundial realiza mais de 22% das
exportações globais, contra valores respectivos de 7% da população total para a UE,
com apenas 11% das exportações mundiais. A China, um gigante populacional, com
mais de 18% dos habitantes do planeta, ultrapassa a UE em matéria de exportações,
perfazendo sozinha 11,8% das vendas mundiais. O Mercosul a seis países, ainda que
detendo mais de 4% da população do mundo, representa apenas 2,3% das exportações
totais, mas apenas 1,8% do total quando reduzido aos seus quatro membros originais.
Em termos do PIB global, os contrastes são igualmente significativos: o TPP
representa 27,12% do valor agregado mundial (ppp), contra números relativamente
similares entre a China (16,47%) e a UE (16,45); o Mercosul a seis, em contraste,
representa apenas 4,07% do PIB mundial, mas tão somente 3,5% no formato a quatro
países. A importância do comércio exterior na economia de cada um dos blocos é
bastante diferenciada, mostrando o dinamismo relativo de cada economia tal como
refletido nas exportações respectivas: os países do TPP exportam, na média, US$ 6,41
per capita, ao passo que esse valor cai para US$ 4,27 no caso da UE e para apenas US$
1,66 por cada chinês; em contraste, os valores das exportações por habitante no
Mercosul a seis são de apenas US$ 1,44 e ainda inferior no caso do bloco reduzido a
quatro países: US$ 1,16. Aqui se trata de valores brutos das exportações, sem considerar
sua composição, o que certamente redundaria numa participação ainda mais irrelevante
no caso do Mercosul em termos de bens de maior valor agregado, ou seja, de mais
elevada elasticidade-preço (o Mercosul, na verdade, não vende muito ao mundo, apenas
é requisitado em termos de oferta de commodities e matérias-primas energéticas).

Pois bem, independentemente de quais possam ser os desdobramentos regionais


e internacionais do acordo TPP e de sua incidência nos grandes fluxos mundiais de
comércio de bens e serviços, caberia registrar, ainda que brevemente, seus impactos
para o Mercosul e do ponto de vista dos interesses brasileiros. Em primeiro lugar, é
evidente que, no plano estrito das competitividades setoriais, as preferências
intercambiadas entre os membros do TPP reduzem a – já bastante diminuída –
penetração de produtos brasileiros e dos demais países do Mercosul na região coberta
pelo novo acordo, com a possível exceção, ainda que parcial, das commodities (que

336
possuem seus próprios canais e mecanismos de fixação de preços) e dos parceiros sul-
americanos. Um outro aspecto de alta relevância é o de que, mesmo sendo um acordo
“regional”, é evidente que o TPP vai influenciar o formato, o escopo e a abrangência de
outros acordos do gênero, além dos próprios acordos multilaterais, seja um Doha
redivivo, ou qualquer outro esquema substituto ou sucessor, não esquecendo as
negociações em curso para um acordo bi-regional UE-Mercosul. Possivelmente, ou
quase certamente, novas rodadas de negociações, no plano multilateral ou em escala
mais limitada geograficamente, passarão a incorporar demandas por sua ampliação das
tradicionais barganhas por acesso a mercados a aspectos regulatórios já mencionados.
Em terceiro, e talvez mais importante lugar, esse acordo, assim como os demais
já existentes ou em negociação – como o “transatlântico”, entre EUA e UE – tendem a
conformar o padrão das trocas internacionais no futuro previsível e já definem, desde
muito, o processo em curso de integração mundial das cadeias produtivas, das quais o
Brasil e seus “sócios” do Mercosul estão em grande medida excluídos. Depois das
decisões tomadas na era Collor de abertura econômica e de liberalização comercial
unilateral – ou seja, uma reforma tarifária feita essencialmente no interesse do próprio
Brasil – e que influenciaram positivamente os ganhos de produtividade e o aumento da
competitividade dos produtos brasileiros, o país nunca mais experimentou uma redução
significativa de barreiras aduaneiras, tendo, ao contrário, aumentado o seu grau ainda
elevado de protecionismo comercial (sem mencionar a Argentina, que se excedeu nesse
tipo de restrição).
Não estranha, assim, que todas as avaliações feitas a propósito do TPP no Brasil
foram num tom de lamento conformado com o nosso isolamento mundial (em grande
medida atribuído à “bola de ferro” do Mercosul). Todos os observadores se perguntam
se o Brasil vai continuar na mesma letargia registrada nos últimos anos, apostando todas
as suas fichas num longínquo acordo multilateral ou no sucesso de um pouco plausível
arranjo Mercosul-UE. O país paga o preço, atualmente, pelos muitos anos de retração
comercial e introversão econômica, e quiçá por décadas de políticas setoriais
excessivamente calcadas no mercado interno, sobre as quais vieram agregar-se a miopia
inacreditável que consistiu na preferencia ideológica por uma tal de diplomacia Sul-Sul,
além da tolerância para com os desmandos argentinos em relação ao livre comércio no
Mercosul. Tudo tem um custo, e o Brasil conhece hoje os danos provocados pelas
políticas equivocadas dos últimos doze ou treze anos.

337
2887. “O megabloco do Pacífico e o Brasil”, Hartford 6 outubro 2015, 3 p.
Considerações sobre seus efeitos para o país, reconhecendo o protecionismo das
políticas econômicas adotadas na era recente. Versão mais ampla, de 5 p., sob o
título de “O TransPacific Partnership e seu impacto sobre o Mercosul”, para
Mundorama. Publicado (n. 98, 15/10/2015; link:
http://mundorama.net/2015/10/15/o-transpacific-partnership-e-seu-impacto-sobre-
o-mercosul-por-paulo-roberto-de-
almeida/?utm_source=feedburner&utm_medium=email&utm_campaign=Feed%3
A+Mundorama+%28Mundorama%29); divulgado no blog Diplomatizzando
(10/10/2015; link: http://diplomatizzando.blogspot.com/2015/10/o-transpacific-
partnership-e-seu.html). Relação de Publicados n. 1197.

338
42. Quais são as grandes ameaças ao Brasil?

Nos tempos da Guerra Fria, e do regime militar brasileiro – um “breve” período


de 21 anos em nossa história, desde o auge da própria, no início dos anos 60, até o fim
patético do socialismo e consequente descongelamento mundial –, a resposta à questão
seria clara e inequívoca: as ameaças eram representadas pelo “movimento comunista
internacional” e os partidos nacionais afiliados, o que justamente justificava o ambiente
repressivo, como a interdição do Partido Comunista e a supressão dos movimentos de
oposição armada. A paranoia também contaminava as medidas afetando a política
externa, entre elas a vigilância aos regimes esquerdistas da vizinhança e uma cautela
extrema com tudo o que estivesse vinculado ao mundo comunista, fossem visitas do
Balé Bolshoi ou viagens de “intelectuais suspeitos” aos países da “cortina de ferro”.
Até aí nada de mais. Afinal de contas, durante quase meio século, depois da
aliança circunstancial da Segunda Guerra Mundial, a União Soviética era definida, pela
principal potência do mundo ocidental, os Estados Unidos – que era, em princípio, o
mais importante aliado estratégico do Brasil –, como uma ameaça vital aos países do
capitalismo avançado. Isso se refletia na política externa dos EUA e dos demais sócios
na OTAN: contenção do comunismo nesses países, mas também em todas as demais

339
dependências políticas e nos fornecedores de matérias primas essenciais do chamado
Terceiro Mundo, daí derivando os pontos de fricção e as “proxy wars”, as guerras por
procuração nas fronteiras distantes do capitalismo, no extremo asiático, na África ou na
América Latina. Nossos militares e a comunidade de informações também mantinham
programas de estudos sobre essas ameaças externas representadas pelo “movimento
comunista internacional” e seus poderosos representantes internos, muitos dos quais
eliminados, até brutalmente, pelos donos do poder.
Mas, é claro que o pobre e periférico Brasil não podia levar esses inimigos muito
a sério: ninguém então esperava, nem mesmo o mais anticomunista dos militares, que a
União Soviética fosse invadir o Brasil, ou que o Partidão estivesse próximo de subverter
a ordem desconstituída pelos milicos. O que não impediu, acidentalmente, que cubanos
e soviéticos penetrassem nossos códigos de criptografia, como já foi documentado em
registros e relatos de ex-servidores do finado regime comunista. O que ocorreu, então,
foi que, dentre as ameaças à soberania e à integridade territorial do Brasil, passaram a
figurar ações do próprio império, em princípio o grande aliado estratégico na luta contra
o comunismo. Não obstante a identidade geral de propósitos no plano geopolítico, ele
passou a ser considerado suspeito de buscar inviabilizar o desenvolvimento integral do
Brasil, não só nossa capacitação plena em tecnologias sensíveis –na área espacial, por
exemplo, sobretudo mísseis, mas também no domínio nuclear – mas também, e pior que
tudo, estaria supostamente comprometido com a internacionalização da Amazônia, ou
seja, o pecado maior de tentar subtrair aquele imenso território à soberania nacional.
A paranoia nessa área chegou a níveis ridículos, mas o fato é que os militares,
nacionalistas por definição, passaram a desconfiar dos EUA, o que reforçou o mesmo
sentimento cultivado pelos diplomatas, e pela opinião pública de modo geral. O Brasil é
um país que adora o capital estrangeiro, mas detesta o capitalista estrangeiro. Sempre se
considerou entre nós que a principal potência econômica e militar do planeta atua única
e exclusivamente em prol de seus próprios interesses egoístas, sacrificando em qualquer
circunstância projetos nacionais de desenvolvimento que possam representar alguma
ameaça – inclusive de natureza comercial – aos objetivos das grandes multinacionais
americanas. A França também padece do mesmo mal, e em ambos países têm sucesso
garantido publicações que agitam a ameaça do imperialismo americano.
Como a Guerra Fria já terminou – embora substituída, ao que parece, pelo que
eu chamo de “guerra fria econômica” –, trata-se agora de determinar quais seriam as

340
grandes ameaças ao Brasil. Ainda que a Rússia de Putin se comporte, em certa medida
como a ex-URSS, já não existe mais o movimento comunista internacional; os próprios
comunistas brasileiros preferem ficar amigos dos capitalistas para melhor extorqui-los
(mas tudo numa boa, claro, sempre em prol dos “negócios”). Será que vão mesmo
internacionalizar a Amazônia, ou cercar a Amazônia azul com uma nova frota? Será que
as empresas americanas continuam tão gananciosas como antigamente? Que tal desafiar
os estrategistas de academia, ou mesmo um militar com pretensões teóricas, a listar as
ameaças credíveis, de origem externa, à soberania e à segurança do Brasil?
Penso, penso, mas não consigo ver alguma ameaça verdadeiramente desafiadora
ao nosso país, embora os paranoicos de carteirinha sempre agitarão as rotas marítimas, o
cerceamento tecnológico, o narcotráfico ou a imigração selvagem como possíveis fontes
de preocupações relevantes para a manutenção da boa ordem na casa. Não imagino que
essas supostas ameaças sejam realmente problemas que necessitem a mobilização de
forças reais, além das pranchetas e apresentações dos pesquisadores e planejadores
estratégicos, que são pagos para isso mesmo: agitar corações e mentes. Algum inimigo
externo ameaça nossa soberania sobre o território e os recursos nacionais? A situação
regional seria assim tão preocupante a ponto de justificar simulações e ações tendentes a
dissuadir potenciais invasores ou aliados de grandes potências extracontinentais? Tudo
leva a crer que as alegadas evidências a esse respeito são, até o momento, inconclusivas.
O alegado “déficit de soberania” na Amazônia, onde se processa o narcotráfico,
e a vulnerabilidade das fronteiras sulinas ao tráfico de armas e de pessoas constituem,
de fato, problemas policiais, derivados de deficiências da presença do Estado em tais
regiões, que podem ser resolvidos na prática com o adensamento de forças já existentes.
Quais seriam, então, as principais ameaças ao Brasil, enquanto país, enquanto nação,
enquanto corpo político e enquanto economia organizada? Elas são muitas, e aponto
várias em seguida. Mas, primeiro, vamos ver as falsas ameaças, aquelas que encantam
certos acadêmicos e militantes de causas surrealistas, sem qualquer consistência porém.
Será que o Brasil está ameaçado de perder soberania e de ter o seu processo de
desenvolvimento prejudicado pela suposta “concentração de poder” no plano mundial
por um punhado de grandes potências, algumas capitalistas, outras nem tanto? Esta é
uma falsa ameaça agitada de forma recorrente por um dos ideólogos mais conhecidos de
certas causas alternativas, e que vive alertando para o grande perigo que representaria a
“concentração extraordinária” de poder econômico, político, tecnológico, militar e até

341
ideológico, propriamente, que caracterizaria o cenário internacional atualmente. Não
parece haver nenhuma novidade nessa “ameaça”; o mundo sempre esteve marcado pela
dominação de grandes impérios sobre regiões e países “dependentes” ou periféricos, o
que não impediu alguns dos grandes de decaírem – Espanha, China, Grã-Bretanha – e
de alguns “emergentes” de ascenderem na escala do poder mundial – Estados Unidos,
Japão, a mesma China. Grandes impérios tendem a favorecer um ambiente de paz e de
estabilidade para justamente poder aproveitar das benesses permitidas por tal condição:
sua preeminência econômica, tecnológica e militar lhes permite extrair renda de seus
dependentes ou do resto do mundo, o que não impede alguns destes de também
lucrarem fornecendo matérias primas, mão-de-obra ou manufaturas padronizadas aos
ricos do centro do sistema. Aquele ideólogo já leu Emmanuel Todd?
Pode-se, portanto, descartar essa falsa ameaça, contra a qual lutam certos
“soberanistas econômicos” que pretendem subtrair o Brasil da ameaça de dominação
econômica das grandes potências, o que só redunda em atraso relativo e perda de
oportunidades no comércio internacional e nos mais diversos intercâmbios de
intangíveis, inclusive ideias inovadoras para a modernização do sistema nacional. A
outra falsa ameaça seria aquela representada pela “deterioração dos termos de
intercâmbio”, que estaria supostamente associada à concentração da economia na
exportação de matérias primas e à dependência da importação de produtos mais
sofisticados. O mais curioso é que os que proclamam tal tese – por sinal falsa, mas
aceita como verdadeira, pois era proveniente de um dos gurus da economia do
desenvolvimento, ninguém menos do que Raúl Prebisch, aliás secundado por outro, o
sueco Gunnar Myrdal – são os mesmos que proclamavam (alguns ainda proclamam) a
necessidade de o Estado controlar, por companhias estatais, a produção e exportação de
matérias primas estratégicas, como minério de ferro e petróleo.
Será que ainda é preciso apontar a falácia desse tipo de argumento determinista?
Será que o sucesso da Vale privatizada – que contribui muito mais pagando impostos ao
governo do que antes com seus magros dividendos de exploração – e a miséria de vários
países exportadores de petróleo, monopolistas estatais no setor, não é suficiente para
demonstrar a falsidade de certas “teses” relativas à ameaça de “perder o controle” de
seus produtos “estratégicos”? A falsa ameaça da “dependência tecnológica” para, a
partir daí, construir custosos elefantes brancos de capacitação tecnológica por indução
estatal, pertence ao mesmo universo das falácias econômicas sustentadas justamente

342
pelo temor de um “atraso tecnológico irremediável”, caso o Estado não “viabilize
pesquisa de ponta”, em setores escolhidos por burocratas, não por empresários
competindo num mercado livre e aberto a todos os inovadores estrangeiros.
Em defesa da ação estatal para remediar tal tipo de “ameaça”, os ideólogos
costumam insistir no suposto papel preeminente do Pentágono na introdução de
tecnologias “revolucionárias”, que começam no setor militar e depois são disseminadas
na economia civil, trazendo uma prosperidade inédita aos EUA, que por acaso também
são uma potência econômica e militar justamente “devido aos gastos do Pentágono”.
Não ocorre aos que assim pensam que os EUA são poderosos a despeito do Pentágono,
não por causa dele, e que aquele exemplo perfeito de stalinismo militar nada poderia
fazer se a sociedade americana – engenheiros, cientistas, empresas inovadoras, simples
inventores isolados no fundo de alguma garagem doméstica – não fornecesse a base
essencial, sem a qual o Pentágono nada poderia oferecer, por mais dinheiro que gastasse
(aliás, geralmente muito mal). Não ocorre a essas mentes iluminadas que o segredo do
“sucesso” do Pentágono está, não nos generais estrelados e cheios de medalhinhas e
brasões, mas na professorinha de aldeia e na cadeia educativa que tem total liberdade de
inovar (e de fracassar), o que é típico do sistema americano. Essas mentes não se dão
conta que os EUA conceberam, involuntária e naturalmente, um “modo inventivo de
produção” que passa longe dos modelos marxianos de sucessão de modos de produção,
um sistema intangível jamais imaginado pelos adeptos do materialismo dialético.
Poderíamos continuar desfilando muitos outros exemplos, econômicos ou não,
de “ameaças” falaciosas à soberania e ao progresso do Brasil, mas cabe agora identificar
as verdadeiras ameaças ao desenvolvimento e à prosperidade da nação, com base numa
simples constatação visual de quais são os males que nos atingem, quais são as pragas
que nos afligem, quais são os verdadeiros obstáculos ao avanço do país a patamares
mais elevados de bem-estar e de prosperidade. Um exercício desse tipo não requer
nenhuma pesquisa sofisticada, nenhum relatório de organismo internacional, nenhum
comitê de sábios a se debruçarem sobre as fontes dos nossos males, as nossas mazelas
mais evidentes. Quais seriam elas, então?
Eu colocaria, em primeiro lugar, a inépcia em políticas macroeconômicas e
setoriais (embora estas últimas sejam dispensáveis, em minha modesta opinião). A mais
importante é, obviamente, a mania de gastar além da conta, o que acaba redundando ou
em emissionismo irresponsável – e portanto em mais inflação – ou em crescimento

343
exagerado da dívida pública, gravando proporcionalmente as atuais e futuras gerações,
que terão de suportar impostos acrescidos para o serviço da dívida, ou mais inflação. A
ameaça associada a essa mania é a deriva fiscal, ou seja, o desequilíbrio orçamentário e
a busca de expedientes de fôlego curto para resolver um problema estrutural, que é a
incapacidade de tornar compatíveis receitas e despesas, resultando numa carga fiscal
que simplesmente retira capacidade de poupança dos particulares e competitividade das
empresas, interna e externamente. Uma outra ameaça que sempre paira sobre os ineptos
econômicos é a ilusão de pretender controlar juros e câmbio em patamares julgados
ideais, ou de “equilíbrio”, o que é sempre desmentido pela dinâmica dos mercados e
pela esperteza superior dos agentes privados sobre a “sabedoria” dos burocratas. Juros e
taxa de câmbio flutuando ao sabor da oferta e da demanda respectivas são bem mais
adequados a uma economia moderna e competitiva do que o dirigismo caolho de
keynesianos de botequim que pretendem “corrigir” as “falhas de mercado”, dirigindo
esses dois preços fundamentais em toda economia a patamares que eles julgam serem os
melhores para o país (geralmente é em favor de uma tribo bem articulada de lobistas).
Tão devastadora quando a inépcia macroeconômica – poderíamos citar
abundantes exemplos aqui mesmo nessa nossa terrinha tão sofrida, a única no mundo a
ter conhecido oito moedas sucessivas no espaço de três gerações, sendo seis no tempo
de meia geração – é a cartelização da economia, e a completa ausência de competição
microeconômica em setores inteiros da oferta doméstica, o que redunda obviamente em
preços altos e proteção indevida aos espertos amigos do rei. Não é preciso referir as
imensas agruras enfrentadas pelos usuários dos serviços de telefonia, não porque o setor
tenha sido inteiramente privatizado – pois a continuar estatal os brasileiros não teriam a
oferta variada de celulares de que dispõem atualmente, ainda que a preços abusivos –,
mas porque se trata de um serviço inteiramente cartelizado, o que permite justamente
tripudiar sobre os consumidores. A cartelização é uma decisão totalmente estatal, como
é, igualmente, a super-taxação (à altura de 40%) do setor, uma das melhores “vacas
extrativas” tanto por parte do Estado, quanto envolvidas em negociatas fraudulentas.
A terceira maior ameaça ao Brasil, ainda de origem interna, é a má governança,
representada por um sistema político disfuncional, um judiciário ineficiente – já que
demorando oito anos, em média, para resolver uma pendência – e um “contrato social”
derivado de um arranjo constitucional peculiarmente esquizofrênico para os fins de
crescimento sustentado (oferecendo, ao contrário, todas as condições para a expansão

344
continuada dos gastos públicos, ou seja, para a sucção crescente dos recursos privados).
Todo e qualquer economista é capaz de reconhecer que a arquitetura institucional criada
no Brasil, a despeito do Estado “hiperdesenvolvido”, é a responsável pelos altos custos
de transação que caracterizam as relações econômicas no Brasil: não é novidade para
ninguém que Estado cartorial e burocratismo exacerbado das relações contratuais fazem
parte desse cenário dantesco no ambiente de negócios, o que uma simples consulta ao
relatório do Banco Mundial “Fazendo Negócios” pode amplamente confirmar. Reflexos
da má governança aparecem na corrupção política, na infraestrutura precária, e no
próprio fato de que os cidadãos contribuintes se submetem aos ukases despóticos de um
Estado fascista, que pretende regular aspectos íntimos da vida de cada um deles, de nós.
A quarta ameaça ao Brasil, provavelmente a maior de todas elas, é a persistência
de um sistema educacional incapaz de fornecer uma educação de qualidade à imensa
maioria da população brasileira, o que se reflete nos níveis baixíssimos de produtividade
e de inovação, que são os principais responsáveis pelo fato de nossa indústria continuar
sendo pouco competitiva no plano internacional, sempre buscando proteção tarifária e
de subsídios diretos ou indiretos à exportação, como aliás a tradicional pressão pela
desvalorização da moeda. Uma simples consulta aos resultados do PISA da OCDE – o
programa internacional de avaliação do desempenho de jovens no domínio da língua
pátria e em conhecimentos elementares em ciências e em matemática – pode confirmar
o cenário pavoroso que nos espera nos anos à frente. De fato, quando o atual bônus
demográfico – a melhor relação possível entre ativos e dependentes na força laboral –
terminar, em pouco mais de uma década, o Brasil não terá acumulado riqueza suficiente
para cobrir gastos previdenciários e custos de saúde para sua crescente população idosa,
sem mencionar o fato de que nossos gastos de seguridade social já alcançam uma fração
do PIB desproporcional em relação ao peso relativo da população de idade avançada.
Finalmente, a quinta, mas não a última, grande ameaça ao presente e ao futuro
do país se situa no ridiculamente pequeno coeficiente de abertura externa, ou seja, a
participação do comércio exterior na formação do PIB; sobre isso se agrega uma
histórica desconfiança da presença do capital estrangeiro em setores considerados
“estratégicos” da vida nacional, o que incluía, até pouco tempo atrás, além da
infraestrutura e das mesmas commodities “estratégicas” – minério de ferro, petróleo –
as comunicações e imprensa, e até mesmo, por incrível que pareça, o corpo docente das

345
instituições de ensino superior (proibição constitucional levantada na revisão de 1993,
mas ainda refletida na fraquíssima internacionalização das universidades brasileiras).
Repassando cada um desses cinco conjuntos de ameaças ao Brasil, ao seu futuro
e ao bem-estar de seus filhos, impossível não concluir que os grandes inimigos do Brasil
somos nós mesmos, ou melhor, nossas elites ineptas, nossa classe política despreparada
e nossos capitalistas corporatistas e mercantilistas. Não é preciso lembrar aqui uma série
inteira de outros males de raiz, alguns herdados do cartorialismo lusitano, outros
continuamente criados por legisladores ignaros do que se chama custo-oportunidade e
ainda reforçados por juízes malucos firmemente imbuídos da missão sagrada de fazer
justiça social a golpes de liminares politicamente corretas e de sentenças corretoras da
nossa histórica desigualdade. E o que dizer da nossa academia mentalmente atrasada,
repleta de gramscianos que nunca ouviram falar de Plekhanov e que acham que o Brasil
foi, alguma vez, “neoliberal”? Mais alguns anos, vão talvez chegar a Edward Bernstein.
Tais ameaças “made in Brazil” superam qualquer intento de dominação imperial
e quaisquer conspirações estrangeiras contra um utópico, mas sempre requerido “projeto
nacional de desenvolvimento”, mais um desses fantasmas cuja suposta ausência serve
de bode expiatório para nossos fracassos auto-infligidos. Ainda temos necessidade, ou
espaço, para inimigos externos? Que tal deixar a geopolítica de lado e passar a cuidar
principalmente da economia doméstica?

2855. “Quais são as grandes ameaças ao Brasil?”, Hartford, 15 agosto 2015, 7 p. Sobre
as supostas ameaças externas e nossos males “made in Brazil”. Boletim
Mundorama (16/08/2015, link: http://mundorama.net/2015/08/16/quais-sao-as-
grandes-ameacas-ao-brasil-por-paulo-roberto-de-almeida/). Postado no blog
Diplomatizzando (link: http://diplomatizzando.blogspot.com/2015/08/quais-sao-as-
grandes-ameacas-ao-brasil.html). Relação de Publicados n. 1188.

346
43. Desafios externos ao Brasil no futuro próximo

Os grandes desafios para o Brasil, como nação e como sociedade, no futuro de


médio e longo prazo são os seguintes: adequação de seus (des)equilíbrios fiscais e
orçamentários em vista do final do bônus demográfico e do crescimento das despesas
previdenciárias e dos cuidados à saúde; incremento da qualidade da educação, em todos
os níveis, como condição crucial, entre outros fatores, para a melhoria dos ganhos de
produtividade e de competitividade; elevação substantiva da capacidade de inovação
tecnológica, que passa pela atratividade de investimentos estrangeiros, pelo comércio
internacional e a inserção produtiva no mundo; equacionamento dos problemas urbanos
e de segurança pública. Esses desafios implicam, pela ordem: estabilidade
macroeconômica capaz de promover um processo de crescimento sustentado com
transformação produtiva contínua; aumento da competição microeconômica, dado o
grau muito elevado de concentração empresarial na economia; melhoria dos padrões de
governança em todos os poderes, para diminuir os custos de transação e os níveis
extremamente elevados de corrupção; alta qualidade do capital humano, com uma
revolução integral nos sistemas educacionais; abertura ao comércio internacional e aos
investimentos estrangeiros de maneira ampla; melhoria dos padrões de governança
pública e dos serviços prestados pelo Estado à cidadania.
Nenhuma dessas metas e objetivos passa por alguma negociação externa, ou
depende do sistema internacional, que é extremamente favorável ao crescimento e à
mudanças de patamar tecnológico, como já provou a experiência de crescimento
inclusivo de muitos outros países. Todos eles dependem de ações unilaterais brasileiras,
de mudanças e de reformas que devem ser empreendidas internamente: são tarefas
inadiáveis ao Brasil atual, como condição de uma melhor inserção internacional. O
mundo não está esperando o Brasil se transformar, ele segue adiante, quer o
acompanhemos, quer não, como hoje; em outros termos, é o Brasil que está em
descompasso com o mundo, não este que estaria sendo implacável com as hesitações
brasileiras em seu processo (inevitável) de reformas.

Uma trajetória errática de crescimento e de desenvolvimento


O Brasil foi um dos países de maior crescimento econômico, junto com o Japão, no
decorrer do século XX, até que a crise da dívida externa, no início dos anos 1980, e a
347
sucessão de problemas macroeconômicos subsequentes – aceleração inflacionária,
descontrole das contas públicas, etc. – se conjugaram para reduzir de modo dramático
suas taxas de crescimento, que passaram a se situar num patamar bastante inferior aos
ciclos de expansão das décadas anteriores, praticamente num ritmo que representava a
metade do crescimento médio mundial e três vezes inferior às taxas das economias
emergentes mais dinâmicas. O Japão, por outros motivos, mas com efeitos comparáveis,
também conheceu uma redução dramática de suas taxas de crescimento, mas apenas a
partir dos anos 1990 e já tendo alcançado um patamar de riqueza material superior
inclusive à média das economias avançadas, e com tecnologia e poupança suficientes
para garantir uma acomodação mais ou menos tranquila no baixo crescimento.
Não é o caso do Brasil, que praticamente estagnou durante uma década e meia, e,
que depois de uma fase de retomada de um modesto crescimento nos anos 2000,
estagnou numa recessão que é ainda pior do que a crise vivida no início dos anos 1930,
inclusive reduzindo sua renda per capita a níveis inferiores aos dos últimos dez anos. O
principal problema para o Brasil, agora e nos anos à frente, é, portanto, a retomada de
um nível de crescimento suficiente e adequado para acomodar o final do bônus
demográfico (entre 10 e 15 anos à frente) e capaz de incrementar a renda per capita e a
produtividade do sistema econômico, de maneira a enfrentar os desafios previdenciários
e os gastos com saúde que aumentarão inapelável e inevitavelmente daqui para a frente.
Este é o principal desafio brasileiro, e ele permanecerá como principal durante anos
à frente. Nada disso, repita-se, depende do sistema internacional, ou dele depende muito
pouco, como podem ser os preços das commodities exportadas pelo Brasil, ou eventuais
crises financeiras externas que possam diminuir o acesso do Brasil a mercados ou
capitais estrangeiros. Tudo, ou quase tudo, depende exclusivamente do Brasil e dos
brasileiros, ou seja, de seus dirigentes, de suas políticas e instituições de Estado e das
ações de governos. Não está ao alcance do Brasil mudar o mundo, que continuará
aprofundando os processos atualmente em curso na economia mundial, que são
basicamente os da globalização e da regionalização. Eles são, ao mesmo tempo,
politicamente dirigidos e “incontroláveis”, pois combinam o neomercantilismo típico do
atual sistema multilateral de comércio e avanço contínuo das inovações tecnológicas,
que fortalecem ou debilitam as empresas .
Cabe registrar, em todo caso, que nenhum desses dois processos são prejudiciais ao
Brasil, à sua economia ou ao crescimento de sua inserção internacional. Ao contrário:

348
ambos são, ou seriam, extremamente relevantes para o progresso nacional, em prol do
crescimento. Se eles não figuram na pauta do atual governo, que permanece tímido, ou
reativo, defensivo e introvertido nos dois aspectos e nas duas vertentes, a culpa incumbe
inteiramente aos últimos governos, especialmente ao atual, em seus dois mandatos.
Com a virtual paralização, e o provável encerramento melancólico da Rodada Doha de
negociações comerciais multilaterais da OMC, os grandes atores adotam soluções
regionais, ou minilateralistas, de que são exemplos o recém concluído acordo de
parceria transpacífica, o TPP, e o possível acordo transatlântico entre os Estados Unidos
e a União Europeia. Essas novas realidades deixam claro o isolamento total do Brasil e
do Mercosul nesse mundo, e a ausência de uma política comercial clara, de inserção do
país no mundo.

O que fazer? Quais são as tarefas à frente?


Não se deve esperar grandes transformações dramáticas do cenário internacional
nos próximos anos, pelo menos nos terrenos econômico, financeiro e comercial. O
mundo continuará sendo o que vemos hoje: uma competição comercial acirrada entre os
grandes parceiros econômicos, uma saudável e ainda mais acirrada competição
tecnológica entre grandes empresas – e entre inovadores incipientes – em torno das
ferramentas atuais e futuras de comunicações e de informações; uma oferta cada vez
mais abundante de capitais de todos os tipos, pelos mais diferentes tipos de agentes
financeiros, inclusive bancos regionais (como o do Brics). Em outros termos, o mundo
continuará aberto e receptivo a todos os tipos de inovações comerciais, tecnológicas e
financeiras, e a criação do ambiente propício para que as empresas possam prosperar
nesse mundo algo caótico depende inteiramente dos governos nacionais, não no sentido
de assumir eles mesmos as iniciativas nessas áreas, mas de estabelecer regras internas,
facilitar negócios e de negociar normas internacionais que liberem as forças produtivas
empresariais privadas.
O Brasil, sob qualquer critério de regulação interna, de ambiente de negócios e de
liberdades econômicas essenciais ao bom desempenho do mundo empresarial, padece
de imensas falhas estruturais, sistêmicas, tradicionais, de nosso sistema institucional.
Mas ele também foi vítima, desde 2003, de políticas ineptas em praticamente todas as
áreas de regulação pública, no terreno macroeconômico, sobretudo em termos de
políticas setoriais: seja na indústria, na energia, no comércio exterior, no financiamento

349
público e em diversas outras vertentes com potencial impacto em nossa inserção
externa. Os erros conceituais e os equívocos operacionais foram clamorosos, o que se
reflete no quadro atual de inédita recessão, pela sua duração, e de virtual estagnação nos
próximos anos.

O mundo e o Brasil nos anos à frente


Quais são os problemas do mundo, agora e nos anos à frente? Pela ordem: 1)
segurança pública, compreendendo guerras civis, que são majoritárias, conflitos
interestatais (em diminuição relativa) e terrorismo (em ascensão temporária); 2)
desequilíbrios sociais, desigualdade, pobreza e fluxos populacionais, fenômenos
interligados e regionalmente explosivos; 3) energia e sustentabilidade, dois termos que
soem contrapor-se entre eles; 4) as externalidades negativas da urbanização e o
crescimento da criminalidade nacional e transnacional; 5) epidemias e endemias,
naturais e “criadas” pela ação humana, que podem ser representadas tanto pela malária e
doenças afins, quanto pela facilitação da disseminação de vetores humanos, acarretados
pela globalização dos transportes e fluxos humanos; 6) segurança internacional, paz,
equilíbrio entre os poderes, não necessariamente resultando em grandes conflitos
globais, mas podendo provocar uma “guerra fria econômica” delongada; 7) embates
ideológicos e religiosos, em vista da ação de grupos militantes fanatizados ou
fundamentalistas.
A rigor, nenhum desses problemas supostamente “internacionais” – mas, de fato, de
dimensões basicamente nacionais ou regionais – afeta o Brasil, senão marginalmente,
ou apenas circunstancialmente. O Brasil e a América Latina, de modo geral, são
poupados dos grandes problemas de segurança, mas são particularmente afetados por
desequilíbrios ligados às desigualdades sociais e aos crimes “corporativos”, ou seja,
aqueles ligados ao narcotráfico, à segurança pública e à corrupção (sobretudo política).
A maioria, senão a quase totalidade dos problemas brasileiros é made in Brazil, e
precisa merecer soluções políticas nacionais, ainda que beneficiando-se de lições
retiradas da experiência mundial em matéria de crescimento e de reformas pró-
competitividade.
Em síntese, os problemas “brasileiros” não são tanto de ordem técnica ou de
natureza material, quanto eles são de ordem mental, ou seja, derivados da incapacidade,
ignorância ou incompetência de suas elites políticas e econômicas em empreender

350
reformas e adotar as políticas adequadas. Existe alguma chance de que eles sejam
encaminhados de modo satisfatório no futuro imediato? A atual conjuntura de quase
anomia no plano econômico, de erosão política e institucional e de persistência de
comportamentos rentistas – quando não claramente extrativos – no plano político
incitam a uma resposta negativa à questão.

2893. “Desafios externos ao Brasil no futuro próximo”, Brasília, 12 novembro 2015, 5


p. Artigo para número especial de Mundorama (n. 100; 4/12/2015; ISSN: 2175-
2052; link: http://mundorama.net/2015/12/04/desafios-externos-ao-brasil-no-futuro-
proximo-por-paulo-roberto-de-almeida/). Relação de Publicados n. 1203.

351
Apêndices
Relação cronológica dos ensaios publicados
no Boletim Mundorama
Relação dos artigos publicados anteriormente em
RelNet
Livros publicados pelo autor
Nota sobre o autor

353
Boletim Mundorama: lista de artigos publicados
Divulgação Científica em Relações Internacionais – ISSN 2175-2052
http://mundorama.net/

Colaborações de Paulo Roberto de Almeida


Diplomata de carreira; Professor universitário
(pralmeida@me.com; www.pralmeida.org).
Atualizada em 2 de dezembro de 2015
Ensaios incorporados ao livro:
Panorama visto de Mundorama: Ensaios Irreverentes e Não Autorizados
(2a. Edição; Brasília: Edição do Autor, 2015).

O que é Mundorama:
Mundorama é uma abordagem ágil sobre os temas da agenda internacional e da política
externa brasileira. No Boletim Mundorama são publicadas contribuições breves
versando sobre os temas da agenda internacional contemporânea. A iniciativa divulga
também análises de conjuntura, notas técnicas, teses de doutorado, dissertações de
mestrado, artigos científicos, relatórios de pesquisa, notícias de eventos e notícias sobre
o acervo em formato digital de periódicos especializados. A publicação oferece uma
abordagem não-exaustiva, mas cuidadosa e atenta aos rumos do desenvolvimento da
comunidade especializada em Relações Internacionais no Brasil.

Apresento abaixo, na ordem inversa de sua elaboração ou divulgação,


minhas colaborações ao boletim Mundorama, desde janeiro de 2007.
Resultados da pesquisa por: Paulo Roberto de Almeida
http://mundorama.net/?s=Paulo+Roberto+de+Almeida

54) “Desafios externos ao Brasil no futuro próximo”, Mundorama (n. 100; 4/12/2015;
ISSN: 2175-2052; link: http://mundorama.net/2015/12/04/desafios-externos-ao-
brasil-no-futuro-proximo-por-paulo-roberto-de-almeida/). Relação de Originais n.
2893; Publicados n. 1203.

53) “The world economy, from belle Époque to Bretton Woods”, Mundorama
(21/10/2015, link: http://mundorama.net/2015/10/21/the-world-economy-from-
belle-epoque-to-bretton-woods-by-paulo-roberto-de-almeida/). Relação de
Originais n. 2809; Publicados n. 1200.

52) “O TransPacific Partnership e seu impacto sobre o Mercosul”, para Mundorama.


Publicado (15/10/2015; link: http://mundorama.net/2015/10/15/o-transpacific-
partnership-e-seu-impacto-sobre-o-mercosul-por-paulo-roberto-de-
almeida/?utm_source=feedburner&utm_medium=email&utm_campaign=Feed%3
A+Mundorama+%28Mundorama%29). Relação de Originais n. 2887; Publicados
n. 1197.

51) “Transformações da ordem econômica mundial, do final do século 19 à Segunda


Guerra Mundial – Entrevista com Paulo Roberto de Almeida”, Mundorama
(30/09/2015; link: http://mundorama.net/2015/09/30/transformacoes-da-ordem-
economica-mundial-do-final-do-seculo-19-a-segunda-guerra-mundial-entrevista-
com-paulo-roberto-de-almeida/). Relação de Originais n. 2846; Publicados n. 1195.
355
50) “Quais são as grandes ameaças ao Brasil?”, Mundorama (16/08/2015, link:
http://mundorama.net/2015/08/16/quais-sao-as-grandes-ameacas-ao-brasil-por-
paulo-roberto-de-almeida/). Relação de Originais n. 2855; Publicados n. 1188.

49) “A falácia dos modelos de desenvolvimento: enterrando um mito sociológico”,


Mundorama (17/07/2015; link: http://mundorama.net/2015/07/17/a-falacia-dos-
modelos-de-desenvolvimento-enterrando-um-mito-sociologico-por-paulo-roberto-
de-almeida/). Relação de Originais n. 2844; Publicados n. 1182.

48) “Relações Brasil-EUA no início do século 21: desencontros”, Mundorama


(28/06/2015; link: http://mundorama.net/2015/06/28/relacoes-brasil-eua-no-inicio-
do-seculo-21-desencontros-por-paulo-roberto-de-almeida/). Relação de Originais n.
2834; Publicados n. 1180.

47) “Da diplomacia dos antigos comparada à dos modernos”, Mundorama (20/05/2015;
link: http://mundorama.net/2015/05/20/da-diplomacia-dos-antigos-comparada-a-dos-
modernos-por-paulo-roberto-de-almeida/);). Relação de Originais n. 2822;
Publicados n. 1178.

46) “O Brasil e a agenda econômica internacional, 4: o que o Brasil deveria fazer para
maximizar a “sua” agenda?”, Mundorama (06/05/2015; l nk:
http://mundorama.net/2015/05/06/o-brasil-e-a-agenda-economica-internacional-o-
que-o-brasil-deveria-fazer-para-maximizar-a-sua-agenda-por-paulo-roberto-de-
almeida/). Relação de Originais n. 2815; Publicados n. 1177.

45) “O Brasil e a agenda econômica internacional, 3: como e qual seria uma (ou a)
agenda ideal para o Brasil?”, Mundorama (29/04/2015; link:
http://mundorama.net/2015/04/29/o-brasil-e-a-agenda-economica-internacional-
como-e-qual-seria-uma-ou-a-agenda-ideal-para-o-brasil-por-paulo-roberto-de-
almeida/). Relação de Originais n. 2814; Publicados n. 1176.

44) “O Brasil e a agenda econômica internacional, 2: como o Brasil se insere no cenário


mundial, agora e no futuro próximo?”, Mundorama (22/04/2015; link:
http://mundorama.net/2015/04/22/o-brasil-e-a-agenda-economica-internacional-
como-o-brasil-se-insere-no-cenario-mundial-agora-e-no-futuro-proximo-por-paulo-
roberto-de-almeida/). Relação de Originais n. 2808; Publicados n. 1175.

43) “O Brasil e a agenda econômica internacional, 1: como se apresenta o cenário


econômico internacional da atualidade?”, Mundorama (15/04/2015; link:
http://mundorama.net/2015/04/15/o-brasil-e-a-agenda-economica-internacional-
como-se-apresenta-o-cenario-economico-internacional-da-atualidade-por-paulo-
roberto-de-almeida/). Relação de Originais n. 2807; Publicados n. 1172.

42) “A globalização e o direito comercial: uma longa evolução”, Mundorama


(06/04/2015; link: http://mundorama.net/2015/04/06/a-globalizacao-e-o-direito-
comercial-uma-longa-evolucao-por-paulo-roberto-de-almeida/). Relação de Originais
n. 2786; Publicados n. 1171.

356
41) “Desafios da economia brasileira na interdependência global”, Mundorama
(30/03/2015; link: http://mundorama.net/2015/03/30/desafios-da-economia-
brasileira-na-interdependencia-global-por-paulo-roberto-de-almeida/). Relação de
Originais n. 2781; Publicados n. 1167.

40) “Reforming the World Monetary System: book review”, [Book Review of Carol M.
Connell: Reforming the World Monetary System: Fritz Machlup and the Bellagio
Group (London: Pickering & Chatto, 2013. xii + 272 pp.; ISBN 978-1-84893-360-6;
Financial History series n. 21, $99.00; hardcover)], em Mundorama (n. 91,
22/03/2015; ISSN: 2175-2052; link: http://mundorama.net/2015/03/22/review-of-
reforming-the-world-monetary-system-of-carol-m-connell-by-paulo-roberto-de-
almeida/). Relação de Originais n. 2705; Publicados n. 1164.

39) “Desafios da economia brasileira na interdependência global”, Mundorama


(30/03/2015; link: http://mundorama.net/2015/03/30/desafios-da-economia-
brasileira-na-interdependencia-global-por-paulo-roberto-de-almeida/). Relação de
Originais n. 2781; Publicados n. 1167.

38) “Um congresso de Viena para o século 21?: Kissinger e o ‘sentido da História’”,
Publicado, sem o subtítulo, em Mundorama (8/03/2015; link:
http://mundorama.net/2015/03/08/um-congresso-de-viena-para-o-seculo-21-por-
paulo-roberto-de-almeida/); linkado na página da Amazon, resenhas do livro World
Order, de Henry Kissinger (http://www.amazon.com/review/ROIR90NVFAQJP).
Relação de Originais n. 2779; Publicados n. 1166.

37) “Imperfeições dos mercados ou ‘perfeições’ dos governos?: estabeleça quais são as
suas preferências”, Mundorama (n. 88, 10/02/2015; link:
http://mundorama.net/2015/02/10/imperfeicoes-dos-mercados-ou-perfeicoes-dos-
governos-estabeleca-quais-sao-as-suas-preferencias-por-paulo-roberto-de-almeida/).
Relação de Originais n. 2767; Publicados n. 1163.

36). “As ilusões perdidas do século 21”, Mundorama (8/02/2015; link:


http://wp.me/p79nz-40a); republicado em Dom Total (12/02/2015; link:
https://domtotal.com/colunas/detalhes.php?artId=4839). Relação de Originais n.
2762; Publicados n. 1161

35) “Miséria do Capital no Século 21”, Mundorama (n. 19, 31/01/2015; links:
http://wp.me/p79nz-3ZG ou http://mundorama.net/2015/01/31/miseria-do-capital-no-
seculo-21-a-proposito-do-livro-de-thomas-piketty-por-paulo-roberto-de-almeida/);
publicada em versão resumida no jornal O Estado de S. Paulo (10/02/2015; link:
http://opiniao.estadao.com.br/noticias/geral,miseria-do-capital-no-seculo-21-imp-
,1632135). Relação de Originais n. 2726; Publicados n. 1160.

34) “Fim das utopias na Casa de Rio Branco?”, Mundorama (n. 88, 31/12/2014; link
para o boletim: http://mundorama.net/2014/12/31/boletim-mundorama-no-88-
dezembro2014/; link para o artigo: http://mundorama.net/2014/12/30/fim-das-
utopias-na-casa-de-rio-branco-por-paulo-roberto-de-almeida/). Relação de Originais
n. 2739; Publicados n. 1158.

357
33) “O Instituto Brasileiro de Relações Internacionais e a Revista Brasileira de Política
Internacional: contribuição intelectual, de 1954 a 2014”, Mundorama (n. 88,
31/12/2014; link para o boletim: http://mundorama.net/2014/12/31/boletim-
mundorama-no-88-dezembro2014/; link para o artigo:
http://mundorama.net/2014/12/23/o-instituto-brasileiro-de-relacoes-internacionais-e-
a-revista-brasileira-de-politica-internacional-contribuicao-intelectual-1954-a-2014-
por-paulo-roberto-de-almeida/); reproduzido em Meridiano 47 (vol. 15, n. 146,
novembro-dezembro 2014, p. 3-18; ISSN: 1518-1219; link:
http://periodicos.unb.br/index.php/MED/article/download/12508/8881; boletim
completo, link: http://periodicos.unb.br/index.php/MED/article/view/12698/8880).
Relação de Originais n. 2724; Publicados n. 1155.

32) “Algumas recomendações de leituras: lista seletiva”, Mundorama (n. 88,


31/12/2014; link para o boletim: http://mundorama.net/2014/12/31/boletim-
mundorama-no-88-dezembro2014/; link para o artigo:
http://mundorama.net/2014/12/18/algumas-recomendacoes-de-leituras-lista-seletiva-
por-paulo-roberto-de-almeida/). Reproduzido no blog Diplomatizzando (link:
http://diplomatizzando.blogspot.com/2014/12/recomendacoes-de-leituras-para-
curiosos.html) e divulgado no Facebook. Relação de Originais n. 2732; Publicados n.
1154.

31) “As Quatro Liberdades e um Projeto para o Brasil: leitura de dois livros recentes,
por Paulo Roberto de Almeida”, Mundorama (n. 87, 9/11/2014; link:
http://mundorama.net/2014/11/09/as-quatro-liberdades-e-um-projeto-para-o-brasil-
leitura-de-dois-livros-recentes-por-paulo-roberto-de-almeida/); notas sobre os livros
de Harvey J. Kaye: The Fight for the Four Freedoms, e de Neill Lochery: Brazil:
The Fortunes of War. Relação de Originais n. 2713; Publicados n. 1151.

30) “A política externa companheira e a diplomacia partidária: um contraponto aos


gramscianos da academia”, Mundorama (4/10/2014, link:
http://mundorama.net/2014/10/04/a-politica-externa-companheira-e-a-diplomacia-
partidaria-um-contraponto-aos-gramscianos-da-academia-por-paulo-roberto-de-
almeida/). Relação de Originais n. 2684; Publicados n. 1144.

29) “A guerra de 1914-1918 e o Brasil: impactos imediatos, efeitos permanentes”, em


Mundorama (28/07/2014; link: http://diplomatizzando.blogspot.com/2014/07/a-
primeira-guerra-mundial-e-o-brasil.html). Relação de Originais n. 2622; Publicados
n. 1138.

28) “O Brasil e a integração regional, da Alalc à Unasul: algum progresso?”,


Mundorama (11/06/2014; link: http://mundorama.net/2014/06/11/o-brasil-e-a-
integracao-regional-da-alalc-a-unasul-algum-progresso-por-paulo-roberto-de-
almeida/). Relação de Originais n. 2606; Publicados n. 1130.

27) “Os Brics na nova conjuntura de crise econômica mundial”, Mundorama


(10/10/2011; link: http://mundorama.net/2011/10/10/os-brics-na-nova-conjuntura-de-
crise-economica-mundial-por-paulo-roberto-de-almeida/). Relação de Originais n.
2325; Publicados n. 1056.

358
26) “Digressões contrarianistas sobre o desarmamento nuclear”, Mundorama
(27/09/2011; link: http://mundorama.net/2011/09/27/digressoes-contrarianistas-
sobre-o-desarmamento-nuclear-por-paulo-roberto-de-almeida/). Relação de Originais
n. 2320; Publicados n. 1053.

25) “O mundo sem o Onze de Setembro: explorando hipóteses”, Mundorama (n. 48,
12/09/2011; link: http://mundorama.net/2011/09/12/o-mundo-sem-o-onze-de-
setembro-explorando-hipoteses-por-paulo-roberto-de-almeida/; Twitter:
http://t.co/0cLk2qk). Relação de Originais n. 2310; Publicados n. 1046.

24) “Wikileaks-Brasil: qual o impacto real da revelação dos documentos?”, Mundorama


(12/08/2011; link: http://mundorama.net/2011/08/12/wikileaks-brasil-qual-o-
impacto-real-da-revelacao-dos-documentos-por-paulo-roberto-de-almeida/). Relação
de Originais n. 2295; Publicados n. 1042bis.

23) “Continuidade e Mudança na Política Externa Brasileira”, Mundorama (01/04/2011;


link: http://mundorama.net/2011/04/01/continuidade-e-mudanca-na-politica-externa-
brasileira-por-paulo-roberto-de-almeida/). Relação de Originais n. 2259; Publicados
n 1024.

22) “Formação de uma estratégia diplomática: relendo Sun Tzu para fins menos
belicosos”, Mundorama (7/03/2011; link:
http://mundorama.net/2011/03/07/formacao-de-uma-estrategia-diplomatica-relendo-
sun-tzu-para-fins-menos-belicosos-por-paulo-roberto-de-almeida/). Relação de
Originais n. 2251; Publicados n. 1023.

21) “Fórum Econômico e Fórum Social: dois mundos impossíveis e contraditórios?”,


Mundorama (8.02.2011; link: http://mundorama.net/2011/02/08/forum-economico-e-
forum-social-dois-mundos-impossiveis-e-contraditorios-por-paulo-roberto-de-
almeida/). Relação de Originais n. 2244; Publicados n. 1022.

20) “A Guerra Fria Econômica: um cenário de transição?”, Mundorama (01/02/2011;


link: http://mundorama.net/2011/02/01/a-guerra-fria-economica-um-cenario-de-
transicao-por-paulo-roberto-de-almeida/#more-7197). Relação de Originais n. 2241;
Publicados n. 1020.

19) “Wikileaks: verso e reverso”, Mundorama (14.01.2011; link:


http://mundorama.net/2011/01/14/wikileaks-verso-e-reverso-por-paulo-roberto-de-
almeida/). Relação de Originais n. 2236; Publicados n. 1018.

18) “A diplomacia brasileira numa nova conjuntura política”, Mundorama (n. 40,
29/12/2010; link: http://mundorama.net/2010/12/29/a-diplomacia-brasileira-numa-
nova-conjuntura-politica-por-paulo-roberto-de-almeida/). Relação de Originais n.
2226; Publicados n. 1012.

17) “Memória e diplomacia: o verso e o reverso”, Mundorama (n. 37, 23/09/2010; link:
http://mundorama.net/2010/09/23/memoria-e-diplomacia-o-verso-e-o-reverso-por-
paulo-roberto-de-almeida/#more-6474). Relação de Originais n. 2187; Publicados n.
992.

359
16) “Fluxos financeiros internacionais: é racional a proposta de taxação?”, Mundorama
(n. 34, 14/06/2010; link: http://mundorama.net/2010/06/14/fluxos-financeiros-
internacionais-e-racional-a-proposta-de-taxacao-por-paulo-roberto-de-almeida/).
Relação de Originais n. 2150; Publicados n. 975.

15) “A Arte de NÃO Fazer a Guerra: novos comentários à Estratégia Nacional de


Defesa”, Mundorama (1/06/2010; link: http://mundorama.net/2010/06/01/a-arte-de-
nao-fazer-a-guerra-novos-comentarios-a-estrategia-nacional-de-defesa-por-paulo-
roberto-de-almeida/); republicado em Meridiano 47 (vol. 11, n. 119, junho 2010, p.
21-31; ISBN: 1518-1219; link para o artigo:
http://periodicos.unb.br/index.php/MED/article/view/638/407). Relação de Originais
n. 2066; Publicados n. 972.

14) “Da democracia à ditadura: uma gradação cheia de rupturas”, Mundorama


(31/05/2010; link: http://mundorama.net/2010/05/30/da-democracia-a-ditadura-uma-
gradacao-cheia-de-rupturas-por-paulo-roberto-de-almeida/). Relação de Originais n.
2145; Publicados n. 969.

13) “Falência da assistência oficial ao desenvolvimento”, Mundorama (24/05/2010;


link: http://mundorama.net/2010/05/24/a-falencia-da-assistencia-oficial-ao-
desenvolvimento-por-paulo-roberto-de-almeida/#more-6091). Relação de Originais
n. 2138; Publicados n. 965.

12) “Mudanças na Economia: uma história de longo prazo”, Mundorama (3/05/2010;


link: http://mundorama.net/2010/05/03/mudancas-na-economia-mundial-perspectiva-
historica-de-longo-prazo-por-paulo-roberto-de-almeida/); republicado, sob o título de
“Mudanças na economia mundial: perspectiva histórica de longo prazo”, em
Meridiano 47 (vol. 11, n. 118, maio 2010, p. 27-29; ISBN: 1518-1219; link:
http://periodicos.unb.br/index.php/MED/article/view/643/386). Relação de Originais
n. 2124; Publicados n. 956.

11) “Triste Fim de Policarpo Social Mundial”, Mundorama (02/02/2010; link:


http://mundorama.net/2010/02/02/triste-fim-de-policarpo-social-mundial-por-paulo-
roberto-de-almeida/). Relação de Originais n. 2107; Publicados n. 950.

10) “O Fim da História, de Fukuyama, vinte anos depois: o que ficou?”, Mundorama
(21.01.2010; link: http://mundorama.net/2010/01/21/o-fim-da-historia-de-fukuyama-
vinte-anos-depois-o-que-ficou-por-paulo-roberto-de-almeida/); republicado em
Meridiano 47 (n. 114, janeiro 2010, p. 8-17; ISSN: 1518-1219; link:
http://periodicos.unb.br/index.php/MED/article/view/476/291). Relação de Originais
n. 2101; Publicados n. 949.

9) “Fórum Social Mundial 2010, uma década de embromação: antecipando as


conclusões e desvendando os equívocos”, Mundorama (20/01/2010; link:
http://mundorama.net/2010/01/20/forum-social-mundial-2010-uma-decada-de-
embromacao-antecipando-as-conclusoes-e-desvendando-os-equivocos-por-paulo-
roberto-de-almeida/). Relação de Originais n. 2104; Publicados n. 948.

8) “Sucessos e fracassos da diplomacia brasileira: uma visão histórica”, Mundorama


(28/12/2009; link: http://mundorama.net/2009/12/28/sucessos-e-fracassos-da-
360
diplomacia-brasileira-uma-visao-historica-por-paulo-roberto-de-almeida/);
republicado em Meridiano 47, Boletim de Análise de Conjuntura em Relações
Internacionais (Brasília: IBRI; ISSN: 1518-1219; n. 113, Dezembro/2009, p. 3-5;
link: http://periodicos.unb.br/index.php/MED/article/view/490/307). Relação de
Originais n. 2005; Publicados n. 944.

7) “O Brasil e o G20 financeiro: alguns elementos analíticos”, Mundorama


(14/09/2009; link: http://mundorama.net/2009/09/14/o-brasil-e-o-g20-financeiro-
alguns-elementos-analiticos-por-paulo-roberto-de-almeida/); republicado em
Meridiano 47 (n. 110. Setembro 2009, p. 5-8; ISSN: 1518-1219; link para o boletim:
http://periodicos.unb.br/index.php/MED/issue/view/82; link para o artigo:
http://periodicos.unb.br/index.php/MED/article/view/520/337). Relação de Originais
n. 2044; Publicados n. 922.

6) “Estratégia Nacional de Defesa: comentários dissidentes”, Mundorama (14/03/2009;


link: http://mundorama.net/2009/03/14/estrategia-nacional-de-defesa-comentarios-
dissidentes-por-paulo-roberto-de-almeida/); republicado em Meridiano 47 (n. 104,
março de 2009, p. 5-9; ISSN: 1518-1219; link para o boletim:
http://periodicos.unb.br/index.php/MED/issue/view/90; link para o artigo:
http://periodicos.unb.br/index.php/MED/article/view/741/456). Relação de Originais
n. 1984. Publicados n. 895.

5) “Fórum Surreal Mundial: Pequena visita aos desvarios dos antiglobalizadores”,


Mundorama, divulgação científica em relações internacionais (27.12.2008; link:
http://mundorama.net/2008/12/27/271220081129/); republicado em Meridiano 47 (n.
101; 27 Dezembro 2008; link: http://mundorama.net/2008/12/31/boletim-meridiano-
47-no-101-dezembro2008/). Relação de Trabalhos n. 1966; Publicados n. 881.

4) “Pequena lição de Realpolitik”, Mundorama (5/06/2008; link:


http://mundorama.net/2008/06/05/pequena-licao-de-realpolitik-por-paulo-roberto-de-
almeida/); republicado em Meridiano 47 (Brasília: n. 95, junho 2008, p. 2-4; ISSN:
1518-1219; link para o boletim:
http://periodicos.unb.br/index.php/MED/issue/view/100; link para o artigo:
http://periodicos.unb.br/index.php/MED/article/view/922/584). Relação de Trabalhos
n. 1895; Publicados n. 842.

3) “O legado de Henry Kissinger”, Mundorama (31/05/2008; link:


http://mundorama.net/2008/05/31/o-legado-de-henry-kissinger-por-paulo-roberto-de-
almeida/); republicado em Meridiano 47 (n. 94, maio de 2008, p. 29-31; link para o
boletim: http://periodicos.unb.br/index.php/MED/issue/view/101; link para o artigo:
http://periodicos.unb.br/index.php/MED/article/view/1020/689). Relação de
Trabalhos nº 1894; Publicados n. 838.

2) “Teses sobre o novo império e o cenário político-estratégico mundial: os Estados


Unidos e o Brasil nas Relações Internacionais”, Boletim Mundorama (22/04/2008;
link: http://mundorama.net/2008/04/22/teses-sobre-o-novo-imperio-e-o-cenario-
politico-estrategico-mundial-os-estados-unidos-e-o-brasil-nas-relacoes-
internacionais-por-paulo-roberto-de-almeida/); republicado em Meridiano 47
(Brasília: Irel-UnB; n. 93, abril 2008, p. 5-14; link para o boletim:
http://periodicos.unb.br/index.php/MED/issue/view/102; link para o artigo:
361
http://periodicos.unb.br/index.php/MED/article/view/1031/694). Relação de
Trabalhos nº 1679; Publicados n. 829.

1) “Fórum Social Mundial: nove objetivos gerais e alguns grandes equívocos”,


Mundorama (3/01/2007; link: http://mundorama.net/2007/01/03/forum-social-
mundial-nove-objetivos-gerais-e-alguns-grandes-equivocos/); republicado em
Meridiano 47 (n. 78, janeiro 2007; p. 7-14; link para o boletim:
http://periodicos.unb.br/index.php/MED/issue/view/129; link para o artigo:
http://periodicos.unb.br/index.php/MED/article/view/1084/745). Relação de
Originais n.1708 e 1712; Publicados n. 741.

Paulo Roberto de Almeida


(pralmeida@me.com; www.pralmeida.org)
Início da colaboração com o boletim Mundorama: janeiro de 2007

362
Relação dos artigos publicados anteriormente em Relnet

Colunas de RelNet: lista de artigos publicados


www.relnet.com.br -
http://mundorama.net/

Colaborações de Paulo Roberto de Almeida


Diplomata de carreira; Professor universitário
(pralmeida@me.com; www.pralmeida.org).
Atualizada em 20 de abril de 2015
Ensaios NÃO incorporados ao livro:
Panorama visto de Mundorama: Ensaios Irreverentes e Não Autorizados
(Hartford, 2015), mas listados em seu Apêndice.

O que era RelNet:


RelNet constituiu, a partir de 1998, uma das primeiras iniciativas dos professores do que
ainda não era um Instituto de Relações Internacionais da Universidade de Brasília, e sim
um grupo de acadêmicos de formações diversas – historiadores, cientistas políticos,
sociólogos, internacionalistas – que pretenderam utilizar as novas possibilidades
oferecidas pelas ferramentas de informática, para constituir uma rede de divulgação e
debates sobre temas de relações internacionais e de história diplomática no Brasil,
aproveitando o potencial já existente do curso de relações internacionais da UnB.
As Colunas de RelNet faziam o que o seu sucessor atual, Mundorama, realiza:
divulgação de textos relativamente breves, com análises de conjuntura, notas de estudo
e pesquisa, resenhas de livros e uma grande diversidade de outros materiais pertinentes
a essa grande área.
Funcionou desde 1998 até meados da década seguinte, quanto converteu-se em blog,
tendo sido interrompido no seu décimo ano de existência, e seu lugar e funções foram
herdadas por Mundorama, num formato ainda mais moderno e sofisticado.

Apresento abaixo, na ordem inversa de sua elaboração ou divulgação,


minhas colaborações às Colunas de RelNet, de 2000 até 2004.

35) “O debate sobre a globalização no Brasil: muita transpiração, pouca inspiração”,


Colunas de RelNet, n. 9, mês 1-6, ano 2004; link:
http://www.relnet.com.br/Arquivos/html/2004/A_7742.html

34) “Um exercício comparativo de política externa: FHC e Lula em perspectiva,


Colunas de RelNet, n. 9, mês 1-6, ano 2004, link:
http://www.relnet.com.br/Arquivos/html/2004/A_7725.html

33) “Três vivas ao processo de globalização: crescimento, pobreza e desigualdade em


escala mundial, Terceira Parte”, Colunas de RelNet, n. 7, mês 1-6, ano 2003, link:
http://www.relnet.com.br/Arquivos/html/2003/A_7623.html

32) “Três vivas ao processo de globalização: crescimento, pobreza e desigualdade em


escala mundial, Segunda Parte”; Colunas de RelNet, n. 7, mês 1-6, ano 2003, link:
http://www.relnet.com.br/Arquivos/html/2003/A_7622.html
363
31) “Três vivas ao processo de globalização: crescimento, pobreza e desigualdade em
escala mundial, Primeira Parte”, Colunas de RelNet, n. 7, mês 1-6, ano 2003, link:
http://www.relnet.com.br/Arquivos/html/2003/A_7621.html

30) “Uma frase (in)feliz?: o que é bom para os EUA é bom para o Brasil?”, Colunas de
RelNet, n. 7, mês 1-6, ano 2003, link:
http://www.relnet.com.br/Arquivos/html/2003/A_7627.html

29) “Contra a Corrente: Treze Idéias Fora do Lugar, VI”, Colunas de RelNet, n. 7, mês
1-6, ano 2003, link: http://www.relnet.com.br/Arquivos/html/2003/A_7539.html

28) “Contra a Corrente: Treze Idéias Fora do Lugar, V”, Colunas de RelNet, n. 7, mês
1-6, ano 2003, link: http://www.relnet.com.br/Arquivos/html/2003/A_7538.html

27) “Contra a Corrente: Treze Idéias Fora do Lugar, IV”, Colunas de RelNet, n. 7, mês
1-6, ano 2003, link: http://www.relnet.com.br/Arquivos/html/2003/A_7537.html

26) “Contra a Corrente: Treze Idéias Fora do Lugar, III”, Colunas de RelNet, n. 7, mês
1-6, ano 2003, link: http://www.relnet.com.br/Arquivos/html/2003/A_7536.html

25) “Contra a Corrente: Treze Idéias Fora do Lugar, II”, Colunas de RelNet, n. 7, mês
1-6, ano 2003, link: http://www.relnet.com.br/Arquivos/html/2003/A_7535.html

24) “Contra a Corrente: Treze Idéias Fora do Lugar, I”, Colunas de RelNet, n. 7, mês 1-
6, ano 2003, link: http://www.relnet.com.br/Arquivos/html/2003/A_7534.html

23) “O Brasil e o FMI: meio século de idas e vindas”, Colunas de RelNet, n. 7, mês 1-6,
ano 2003, link: http://www.relnet.com.br/Arquivos/html/2003/A_7581.html

22) “Sinais Trocadas na Alca, Quarta e última Parte”, Colunas de RelNet, n. 7, mês 1-6,
ano 2003, link: http://www.relnet.com.br/Arquivos/html/2003/A_7618.html

21) “Sinais Trocadas na Alca, Terceira Parte”, Colunas de RelNet, n. 7, mês 1-6, ano
2003, link: http://www.relnet.com.br/Arquivos/html/2003/A_7617.html

20) “Sinais Trocados na Alca, Segunda Parte”, Colunas de RelNet, n. 7, mês 1-6, ano
2003, link: http://www.relnet.com.br/Arquivos/html/2003/A_7616.html

19) “Sinais Trocados na Alca, Primeira Parte”, Colunas de RelNet, n. 7, mês 1-6, ano
2003, link: http://www.relnet.com.br/Arquivos/html/2003/A_7615.html

18) “Uma longa moratória, permeada de ajustes?: a lógica da dívida externa brasileira
na visão acadêmica”, Colunas de RelNet, n. 7, mês 1-6, ano 2003, link:
http://www.relnet.com.br/Arquivos/html/2003/A_7628.html

17) “A América Latina e os Estados Unidos desde o 11 de setembro de 2001”, Colunas


de RelNet no. 6, mês 7-12, ano 2002, link:
http://www.relnet.com.br/Arquivos/html/2003/A_7500.html

364
16) “Camaradas, agora é oficial: acabou o socialismo, V”, Colunas de RelNet no. 8, mês
7-12, ano 2003; link: http://www.relnet.com.br/Arquivos/html/2003/A_7530.html

15) “Camaradas, agora é oficial: acabou o socialismo, IV”, Colunas de RelNet, n. 8,


mês 7-12, ano 2003; link:
http://www.relnet.com.br/Arquivos/html/2003/A_7529.html

14) “Camaradas, agora é oficial: acabou o socialismo, III”, Colunas de RelNet, n. 8,


mês 7-12, ano 2003; link:
http://www.relnet.com.br/Arquivos/html/2003/A_7528.html

13) “Camaradas, agora é oficial: acabou o socialismo, II”, Colunas de RelNet, n. 8, mês
7-12, ano 2003; link: http://www.relnet.com.br/Arquivos/html/2003/A_7527.html

12) “Camaradas, agora é oficial: acabou o socialismo, I”, Colunas de RelNet, n. 6, mês
7-12, ano 2002, link: http://www.relnet.com.br/Arquivos/html/2003/A_7526.html

11) “O Boletim do Império”, Colunas de RelNet, n. 6, mês 7-12, ano 2002, link:
http://www.relnet.com.br/Arquivos/html/2003/A_7578.html

10) “O Brasil e as crises financeiras internacionais, 1995-2001”, Colunas de RelNet, n.


5, mês 1-6, ano 2002, link:
http://www.relnet.com.br/Arquivos/html/2003/A_7660.html

9) “Ideologia da política externa: sete teses idealistas, quarta e última parte”, Colunas de
RelNet, n. 4, mês 7-12, ano 2001, link:
http://www.relnet.com.br/Arquivos/html/2003/A_7674.html

8) “Mercosul e Alca: liaisons dangereuses”, Colunas de RelNet, n. 4, mês 7-12, ano


2001, link: http://www.relnet.com.br/Arquivos/html/2003/A_7572.html

7) “Mercosul e Alca na perspectiva brasileira: alternativas excludentes? Estado do


problema: o caso do Mercosul e o projeto da Alca”, Colunas de RelNet, n. 3, mês 1-
6, ano 2001, link: http://www.relnet.com.br/Arquivos/html/2003/A_7641.html

6) “O ‘day after’: o Mercosul depois da Alca”, Colunas de RelNet n. 3, mês 1-6, ano
2001, link: http://www.relnet.com.br/Arquivos/html/2003/A_7583.html

5) “Ideologia da política externa: sete teses idealistas, terceira parte”, Colunas de


RelNet no. 2, mês 7-12, ano 2000, link:
http://www.relnet.com.br/Arquivos/html/2003/A_7673.html

4) “Ideologia da política externa: sete teses idealistas, segunda parte”, Colunas de


RelNet, n. 2, mês 7-12, 2000; link:
http://www.relnet.com.br/Arquivos/html/2003/A_7672.html

3) “Ideologia da política externa: sete teses idealistas ? primeira parte”, Colunas de


RelNet, n. 2, mês 7-12, 2000; link:
http://www.relnet.com.br/Arquivos/html/2003/A_7671.html

365
2) “A Alca significa desnacionalização da economia brasileira?”, Colunas de RelNet, n.
2, mês 7-12, 2000; link: http://www.relnet.com.br/Arquivos/html/2003/A_7635.html

1) “Mercosul e Alca na perspectiva brasileira: O fantasma das normas laborais e


ambientais”, Colunas de RelNet, n. 2, mês 7-12, 2000; link:
http://www.relnet.com.br/Arquivos/html/2003/A_7642.html

Paulo Roberto de Almeida


(pralmeida@me.com; www.pralmeida.org)
Início da colaboração com as Colunas de RelNet: 2000

366
Livros próprios de Paulo Roberto de Almeida

32) Going Global: Brazil and Latin America in International Context (Rockville,
MD: Global South Press, 2016).

31) Nunca Antes na Diplomacia…: a política externa brasileira em tempos não


convencionais (Curitiba: Editora Appris, e-book, 2016).

30) Révolutions bourgeoises et modernisation capitaliste: Démocratie et autoritarisme


au Brésil (Sarrebruck: Éditions Universitaires Européennes, 2015, 496 p.; ISBN:
978-3-8416-7391-6).

29) Die brasilianische Diplomatie aus historischer Sicht: Essays über die
Auslandsbeziehungen und Außenpolitik Brasiliens (Saarbrücken: Akademiker
Verlag, 2015, 204 p.; Übersetzung aus dem Portugiesischen ins Deutsche: Ulrich
Dressel; ISBN: 978-3-639-86648-3).

28) O Panorama visto em Mundorama: Ensaios Irreverentes e Não Autorizados


(Hartford: Author edition, 2015, 294 p.; DOI: 10.13140/RG.2.1.4406.7682),
available: Research Gate; link:
https://www.researchgate.net/publication/280883937_O_Panorama_visto_em_Mun
dorama_Ensaios_Irreverentes_e_No_Autorizados?showFulltext=1&linkId=55ca73
8508aeb975674a4d44).

27) Paralelos com o Meridiano 47: Ensaios Longitudinais e de Ampla Latitude


(Hartford: Author edition, 2015, 380 p.; DOI: 10.13140/RG.2.1.1916.4006;
available: Academia.edu; link:
https://www.academia.edu/11981135/28_Paralelos_com_o_Meridiano_47_ensaios
_2015_).

26) Volta ao Mundo em 25 Ensaios: Relações Internacionais e Economia Mundial


(Kindle edition; file size: 809 KB; ASIN: B00P9XAJA4; link:
http://www.amazon.com/dp/B00P9XAJA4).

25) Rompendo Fronteiras: a Academia pensa a Diplomacia (Amazon Digital Services:


Kindle Edition, 2014, 414 p.; ASIN: B00P8JHT8Y; disponível em Academia.edu
(link:
https://www.academia.edu/9108147/25_Rompendo_Fronteiras_a_academia_pensa
_a_diplomacia_2014_). Relação de Originais n. 2710. Relação de Publicados n.
1148.

24) Codex Diplomaticus Brasiliensis: livros de diplomatas brasileiros (Amazon Digital


Services: Kindle Edition, 2014, 326 p.; disponível no link:
http://www.amazon.com/dp/B00P6261X2; e na plataforma Academia.edu; link:
https://www.academia.edu/9084111/24_Codex_Diplomaticus_Brasiliensis_livros_
de_diplomatas_brasileiros_2014_ ). Relação de Originais n. 2707. Relação de
Publicados n. 1147.

367
23) Polindo a Prata da Casa: mini-resenhas de livros de diplomatas (Amazon Digital
Services: Kindle edition, 2014, 151 p., 484 KB; ASIN: B00OL05KYG; disponível
no link: http://www.amazon.com/dp/B00OL05KYG; e na plataforma
Academia.edu; link:
https://www.academia.edu/8815100/23_Polindo_a_Prata_da_Casa_mini-
resenhas_de_livros_de_diplomatas_2014_). Prefácio e Sumário disponíveis no blog
Diplomatizzando (link: http://diplomatizzando.blogspot.com/2014/10/mini-
resenhas-de-livros-de-diplomatas.html). Relação de Originais n. 2693. Relação de
Publicados n. 1145.

22) Prata da Casa: os livros dos diplomatas (book reviews; Edição de Autor; Versão
de: 16/07/2014, 663 p.); (Academia.edu, link:
https://www.academia.edu/5763121/Prata_da_Casa_os_livros_dos_diplomatas_Edi
cao_de_Autor_2014_). Relação de Originais n. 2533. Relação de Publicados n.
1136.

21) Nunca Antes na Diplomacia...: A política externa brasileira em tempos não


convencionais (Curitiba: Editora Appris, 2014, 289 p.; ISBN: 978-85-8192-429-8);
Hartford, 30 março 2104, 312 p. Relação de Originais n. 2596. Relação de
Publicados n. 1133. (Academia.edu, link:
https://www.academia.edu/6999273/21_Nunca_Antes_na_Diplomacia_a_politica_
externa_brasileira_em_tempos_nao_convencionais).

20) O Príncipe, revisitado: Maquiavel para os contemporâneos (Hartford, 8 Setembro


2013, 226 p. Revisão atualizada do livro de 2010) Publicado em formato Kindle
(disponível: http://www.amazon.com/dp/B00F2AC146). (Academia.edu, link:
https://www.academia.edu/5547603/20_O_Principe_revisitado_Maquiavel_para_os
_contemporaneos_2013_Kindle_edition). Relação de Originais n. 2512; Relação de
Publicados n. 1111.

19) Integração Regional: uma introdução (São Paulo: Saraiva, 2013, 174 p.; ISBN:
978-85-02-19963-7; site da Editora:
http://www.saraivauni.com.br/Obra.aspx?isbn=9788502199637). Relação de
Originais ns. 2996, 2998, 2300, 2303, 2304, 2313, 2316, 2317, 2373, 2383, 2431,
2438 e 2449. Divulgado no blog Diplomatizzando (link:
http://diplomatizzando.blogspot.com/2013/04/integracao-regional-novo-livro-
enfim.html). (Academia.edu, link:
https://www.academia.edu/attachments/32644653/download_file). Relação de
Publicados n. 1093.

18) Relações internacionais e política externa do Brasil: a diplomacia brasileira no


contexto da globalização (Rio de Janeiro: LTC, 2012, 309 p.; ISBN 978-85-216-
2001-3; link:
http://www.pralmeida.org/01Livros/2FramesBooks/RelaIntPExt2011.html).
(Academia.edu, link:
https://www.academia.edu/attachments/32642402/download_file). Relação de
Originais n. 2280. Relação de Publicados n. 1058.

17) Globalizando: ensaios sobre a globalização e a antiglobalização (Rio de Janeiro:


Lumen Juris Editora, 2011, xx+272 p.; Inclui bibliografia; ISBN: 978-85-375-
368
0875-6; link:
http://www.pralmeida.org/01Livros/2FramesBooks/107Globalizando.html).
(Academia.edu, link:
https://www.academia.edu/attachments/32642383/download_file). Relação de
Originais n. 2130. Relação de Publicados n. 1044.

16) O Moderno Príncipe (Maquiavel revisitado) (versão impressa: edições do Senado


Federal volume 147: Brasília: Senado Federal, Conselho Editorial, 2010, 195 p.;
ISBN: 978-85-7018-343-9; link:
http://www.pralmeida.org/01Livros/2FramesBooks/95MaquiavelRevisitado.html).
(Academia.edu, link:
https://www.academia.edu/attachments/32642375/download_file). Relação de
Originais n. 1804. Relação de Publicados n. 1014.

15) O Moderno Príncipe: Maquiavel revisitado (Rio de Janeiro: Freitas Bastos, edição
eletrônica, 2009, 191 p.; ISBN: 978-85-99960-99-8; R$ 12,00; disponível para
aquisição no seguinte link: http://freitasbas.lojatemporaria.com/o-moderno-
principe.html). Anunciado no site pessoal (link:
http://www.pralmeida.org/01Livros/2FramesBooks/95maquiavelrevisitado.html) e
no blog Diplomatizzando (21.12.2009; link:
http://diplomatizzando.blogspot.com/2009/12/1591-novo-livro-pra-o-moderno-
principe.html), com livre disponibilidade do Prefácio, da Dedicatória, da carta a
Maquiavel e das Recomendações de Leitura. (Academia.edu, link:
https://www.academia.edu/5546980/15_O_Moderno_Principe_Maquiavel_revisita
do_2009_e-pub). Relação de Originais n. 1804. Relação de Publicados n. 940.

14) O Estudo das Relações internacionais do Brasil: um diálogo entre a diplomacia e a


academia (Brasília: LGE Editora, 2006, 385 p.; ISBN: 85-7238-271-2; link:
http://www.pralmeida.org/01Livros/2FramesBooks/93EstudoRelaIntBr2006.html).
(Academia.edu, link:
https://www.academia.edu/attachments/32642184/download_file).

13) Formação da diplomacia econômica no Brasil: as relações econômicas


internacionais no Império (2ª edição; São Paulo: Editora Senac, 2005, 680 pp.,
ISBN: 85-7359-210-9; link:
http://www.pralmeida.org/01Livros/2FramesBooks/80FDESenac2005.html).
(Academia.edu, link:
http://www.academia.edu/attachments/32642332/download_file).

12) Relações internacionais e política externa do Brasil: história e sociologia da


diplomacia brasileira (2ª ed.: revista, ampliada e atualizada; Porto Alegre: Editora
da UFRGS, 2004, 440 p.; coleção Relações internacionais e integração nº 1; ISBN:
85-7025-738-4; link:
http://www.pralmeida.org/01Livros/2FramesBooks/74UFRGS2004.html).
(Academia.edu, link:
https://www.academia.edu/attachments/32642325/download_file).

11) A Grande Mudança: consequências econômicas da transição política no Brasil


(São Paulo: Editora Códex, 2003, 200 p.; ISBN: 85-7594-005-8; link:
http://www.pralmeida.org/01Livros/2FramesBooks/58GrdeMudanca.html).
369
(Academia.edu, link:
https://www.academia.edu/5546940/11_A_Grande_Mudanca_consequencias_econ
omicas_da_transicao_politica_no_Brasil_2003_).

10) Une histoire du Brésil: pour comprendre le Brésil contemporain (avec Katia de
Queiroz Mattoso; Paris: Editions L’Harmattan, 2002, 142 p.; ISBN: 2-7475-1453-
6; link:
http://www.pralmeida.org/01Livros/2FramesBooks/48HistoireBresil2002.html).
(Academia.edu, link:
https://www.academia.edu/attachments/32642309/download_file).

09) Os primeiros anos do século XXI: o Brasil e as relações internacionais


contemporâneas (São Paulo: Editora Paz e Terra, 2002, 286 p.; ISBN: 85-219-
0435-5; link:
http://www.pralmeida.org/01Livros/2FramesBooks/45SeculoXXI2002.html).
(Academia.edu, link:
https://www.academia.edu/attachments/32642303/download_file).

8) Formação da diplomacia econômica no Brasil: as relações econômicas


internacionais no Império (São Paulo: Editora Senac, 2001, 680 pp., ISBN: 85-
7359-210-9; link:
http://www.pralmeida.org/01Livros/2FramesBooks/44FDESenac2001.html).
(Academia.edu, link:
http://www.academia.edu/attachments/32642297/download_file).

7) Le Mercosud: un marché commun pour l’Amérique du Sud, Paris: L’Harmattan,


2000, 160 p.; ISBN: 2-7384-9350-5; link:
http://www.pralmeida.org/01Livros/2FramesBooks/40Mercosud2000.html).
(Academia.edu, link:
https://www.academia.edu/attachments/32642281/download_file).

6) O estudo das relações internacionais do Brasil (São Paulo: Editora da Universidade


São Marcos, 1999, 300 p.; ISBN: 85-86022-23-3; link:
http://www.pralmeida.org/01Livros/2FramesBooks/31EstudoRelaIntBr1999.html).
(Academia.edu, link:
https://www.academia.edu/5546888/06_O_estudo_das_relacoes_internacionais_do
_Brasil_1999_).

5) O Brasil e o multilateralismo econômico (Porto Alegre: Livraria do Advogado


Editora, na coleção “Direito e Comércio Internacional”, 1999, 328 p.; ISBN: 85-
7348-093-9; link:
http://www.pralmeida.org/01Livros/2FramesBooks/30Multilateralismo1999.html).
(Academia.edu, link:
http://www.academia.edu/attachments/32642262/download_file).

4) Velhos e novos manifestos: o socialismo na era da globalização (São Paulo: Editora


Juarez de Oliveira, 1999, 96 p.; ISBN: 85-7441-022-5; link:
http://www.pralmeida.org/01Livros/2FramesBooks/29Manifestos1999.html).
(Academia.edu, link:
https://www.academia.edu/attachments/32642256/download_file).
370
3) Mercosul: Fundamentos e Perspectivas (São Paulo: Editora LTr, 1998, 160 p.; ISBN:
85-7322-548-3; link:
http://www.pralmeida.org/01Livros/2FramesBooks/26MercosulLTr1998.html).
(Academia.edu, link:
https://www.academia.edu/attachments/32642244/download_file).

2) Relações internacionais e política externa do Brasil: dos descobrimentos à


globalização (Porto Alegre: Editora da UFRGS, 1998, 360 p.; ISBN: 85-7025-455-
5); link:
http://www.pralmeida.org/01Livros/2FramesBooks/25RelaIntPExtUFRGS1998.ht
ml). (Academia.edu:
https://www.academia.edu/attachments/32642231/download_file ).

1) O Mercosul no contexto regional e internacional (São Paulo: Edições Aduaneiras,


1993, 204 p.; ISBN: 85-7129-098-9; link:
http://www.pralmeida.org/01Livros/2FramesBooks/09MSulAduan1993.html).
(Academia.edu: https://www.academia.edu/attachments/32642206/download_file).

Para os capítulos do Autor em livros coletivos, consultar o site ou ver esta lista:
https://www.academia.edu/9068537/List_of_AUthors_chapters_in_collective_books_N
ov._2014_

Lista elaborada em 2/12/2015

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Nota sobre o Autor:

Paulo Roberto de Almeida é Doutor em Ciências Sociais, Mestre em


Planejamento Econômico e diplomata de carreira desde 1977. Foi professor no Instituto
Rio Branco e na Universidade de Brasília, diretor do Instituto Brasileiro de Relações
Internacionais (IBRI) e, desde 2004, é professor de Economia Política no Programa de
Pós-Graduação (Mestrado e Doutorado) em Direito no Centro Universitário de Brasília
(Uniceub). Como diplomata, serviu nas embaixadas em Berna, Belgrado e Paris, nas
delegações em Genebra e Montevidéu e foi Ministro-Conselheiro na Embaixada em
Washington (1999-2003). Foi também Assessor Especial no Núcleo de Assuntos
Estratégicos da Presidência da República (2003-2007). Desde janeiro de 2013 é Cônsul
Geral Adjunto do Brasil em Hartford, Connecticut, EUA.
É editor adjunto da Revista Brasileira de Política Internacional e participa de
comitês editoriais de diversas publicações acadêmicas. Tem dezenas de obras e algumas
centenas de artigos publicados. Dispõe de um site pessoal (www.pralmeida.org) e de um
blog voltado para os mesmos temas que configuram seus interesses intelectuais, mas
que considera ser mais para divertissement do que para a pesquisa
(http://diplomatizzando.blogspot.com/).

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Redigido em MS Word 2011,
Composto em MacBook Air
Por Paulo Roberto de Almeida
Em 4/12/2015
www.pralmeida.org
pralmeida@me.com
Tel.: (55.61) 9176-9412

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