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Brasília
Edição do Autor
2015
O Panorama Visto em Mundorama
Ensaios Irreverentes e Não Autorizados
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1a Edição: 7/05/2015;
2a Edição: 4/12/2015
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Al enfrentarme a su concepción... quise utilizar la
historia... para reflexionar sobre la perversión de la gran utopía
del siglo XX, ese proceso en el que muchos invirtieron sus
esperanzas y tantos hemos perdido sueños, años y hasta sangre
y vida. (...) En ese dilatado proceso, me resultó imprescindible...
el conocimiento, las experiencias y las investigaciones previas...
y hasta las incertidumbres sobre una historia las más de las
veces sepultada o pervertida por los líderes que durante... años
fueron los dueños del poder y, por supuesto, de la Historia.
Leonardo Padura
El Hombre que Amaba los Perros
(Barcelona: Tusquets, 2009), p. 763-764.
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Índice
Apresentação
O mundo visto no diorama de Mundorama 11
Primeira Parte
Política externa brasileira e diplomacia companheira
1. Fim das utopias na Casa de Rio Branco? 17
2. A política externa companheira e a diplomacia partidária 21
3. Continuidade e mudança na política externa brasileira 31
4. A diplomacia brasileira numa nova conjuntura política 37
5. O Brasil e a integração regional, da Alalc à Unasul: algum progresso? 41
Segunda Parte
Economia política internacional
6. Mudanças na economia mundial: perspectiva histórica de longo prazo 55
7. Os Brics na nova conjuntura de crise econômica mundial 59
8. A Guerra Fria Econômica: um cenário de transição? 68
9. Desafios da economia brasileira na interdependência global 74
10. A agenda econômica internacional: o cenário atual 80
11. Como o Brasil se insere no cenário mundial, agora e no futuro próximo? 85
12. Como e qual seria uma (ou a) agenda ideal para o Brasil? 91
13. O que o Brasil deveria fazer para maximizar a “sua” agenda? 99
Terceira Parte
Globalização, Embromação
14. A globalização e o direito comercial: uma longa evolução 113
15. Fluxos financeiros internacionais: é racional a proposta de taxação? 120
16. Fórum Econômico e Fórum Social: dois mundos contraditórios 129
17. Fórum Social Mundial: uma década de embromação 138
18. Triste Fim de Policarpo Social Mundial 149
19. A falência da assistência oficial ao desenvolvimento 159
Quarta Parte
Política internacional, Questões estratégicas
20. A guerra de 1914-18 e o Brasil: impactos imediatos, efeitos permanentes 167
21. O mundo sem o Onze de Setembro: explorando hipóteses 172
22. Wikileaks: verso e reverso 179
23. Wikileaks-Brasil: qual o impacto real da revelação dos documentos? 187
24. Digressões contrarianistas sobre o desarmamento nuclear 197
25. Um congresso de Viena para o século 21? 203
26. As ilusões perdidas do século 21 210
Quinta Parte
Ideias, cultura, livros
27. A ideia do interesse nacional: onde estamos? 217
28. Imperfeições dos mercados ou “perfeições” dos governos 223
29. Miséria do Capital no século 21 229
9
30. Reformando o sistema monetário internacional 233
31. As quatro liberdades e um projeto para o Brasil 241
32. Algumas recomendações de leituras 249
33. Estratégia diplomática: relendo Sun Tzu para fins menos belicosos 255
34. Memória e diplomacia: o verso e o reverso 264
35. Da democracia à ditadura: uma gradação cheia de rupturas 269
Sexta Parte
O Brasil e o mundo, de um século a outro
36. A diplomacia dos antigos comparada à dos modernos 277
37. A ordem econômica mundial, do século 19 à Segunda Guerra 290
38. The world economy, from belle Époque to Bretton Woods 303
39. Relações Brasil-EUA no início do século 21: desencontros 306
40. A falácia dos modelos de desenvolvimento: enterrando um mito sociológico 327
41. O TransPacific Partnership e seu impacto sobre o Mercosul 333
42. Quais são as grandes ameaças ao Brasil? 339
43. Desafios externos ao Brasil no futuro próximo 347
Apêndices
Relação cronológica dos ensaios publicados em Mundorama 355
Relação dos artigos publicados anteriormente em RelNet 363
Livros publicados pelo autor 367
Nota sobre o autor 372
10
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Apresentação
O mundo visto no diorama de Mundorama
11
internacional e da política externa brasileira” e nele “são publicadas contribuições breves
versando sobre os temas da agenda internacional contemporânea.”
Desde que comecei a colaborar, primeiro esporadicamente, agora de forma mais
regular, com o boletim, confesso que não tenho sido muito breve, ou sintético. Como poderão
constatar os que percorrerem estas páginas, mais uma compilação de meus escritos de uma
década inteira, algumas dessas contribuições se estendem por mais de dez páginas, o que
destoa das recomendações dos organizadores quanto ao caráter leve dos textos ali recolhidos.
Devo, entretanto, à generosidade do professor Lessa o bom acolhimento que tenho encontrado
para meus textos de certo modo prolixos, tortuosos, por vezes torturados, em torno de todos
os problemas – nacionais ou internacionais – que clamam pela minha atenção na leitura diária
de um volume razoável de periódicos e de boletins virtuais. Meus agradecimentos renovados
pela compreensão e tolerância.
Não estão aqui compilados todas as contribuições publicadas nas “páginas” de
Mundorama, inclusive porque várias delas foram reproduzidas no boletim irmão, um tanto
mais formal – quase de terno e gravata – que é o Meridiano 47, já objeto de uma anterior
compilação minha, igualmente disponível: Paralelos com o Meridiano 47: Ensaios
Longitudinais e de Ampla Latitude (Hartford: Edição do Autor, 2015), livro digital montado a
partir de uma seleção de minhas colaborações a esse boletim (e disponível neste link:
https://www.academia.edu/11981135/28_Paralelos_com_o_Meridiano_47_ensaios_2015_).
Vou ainda aperfeiçoá-lo, graficamente, visualmente, e colocá-lo em minha página.
Em todo caso, a lista das contribuições até agora oferecidas estão listadas no
Apêndice, que também relaciona meus escritos no boletim predecessor de Mundorama, em
sua primeira encarnação, as Colunas do RelNet, uma iniciativa pioneira dessa tribo de
desbravadores do atual IRel-UnB, com a qual colabora sempre quando me chamam, mas
sempre como livre atirador, jamais como representante de qualquer entidade ou escola de
pensamento. Ser livre significa escolher em total autonomia todos e cada um dos temas que
são aqui submetidos ao meu bisturi analítico: jamais recebi qualquer encomenda dos editores,
ou de quem quer que seja, para tratar deste ou daquele assunto.
Minto: nos anos comemorativos, tanto o professor Lessa quanto os editores ou
responsáveis pelo IBRI e pela RBPI, me sugeriam algum escrito recapitulativo, isto é, de
cunho histórico, o que eu teria feito voluntariamente de igual modo. Salvo essas poucas
“encomendas”, todos os demais temas figuram nos meus cadernos de notas como sendo o
resultado de leituras, reflexões, pesquisas e debates, que são mais raros, estes últimos, na
medida em que eu prefiro o labor solitário, geralmente com o concurso dos livros e das
12
revistas, em frente à tela de um computador, na consulta virtual de todas as fontes
disponíveis, sempre na companhia intelectualmente estimulante de Carmen Lícia, que
costuma ter meus péssimos hábitos de leituras e trabalhos noctívagos.
Não creio que eu necessite apresentar qualquer um dos textos aqui reproduzidos, pois
acredito que eles falam por eles mesmos. A despeito de algum overlapping entre Mundorama
e Meridiano 47, evitei as repetições entre os dois volume de compilações, com uma única
exceção, o texto 6: “Mudanças na economia mundial: perspectiva histórica de longo prazo”,
uma vez que penso que ele oferece uma boa introdução à problemática que vai discutida na
seção dedicada à economia política internacional, como já tinha sido o caso no volume
anterior. Aproveitei, tanto quanto possível, as belas imagens que decoravam a edição original
de cada um dos escritos em Mundorama, ao qual os curiosos podem recorrer, para uma
formatação mais agradável, ou conferir o texto de fato publicado
(http://mundorama.net/?s=Paulo+Roberto+de+Almeida).
Este volume está destinado a crescer em tamanho em futuras edições – ainda que não
pretenda imitar os verdadeiros dioramas em seu formato tridimensional –, à medida em que
novos escritos vierem completar os temas aqui tratados, geralmente de forma mais rápida que
os trabalhos mais “pesados”. Mas, como os congêneres de museus, ele se pretende igualmente
didático em espírito e em intenção, tanto quanto sintético de realidades sempre complexas e
multifacetadas das relações internacionais e da inserção do Brasil nos seus vários ambientes.
Não preciso, em absoluto, oferecer qualquer tipo de “disclaimer” quanto ao fato, deveras
conhecido de todos que acompanham meus trabalhos, que as ideias e posições aqui expostas
correspondem inteiramente ao meu próprio pensamento, não refletindo de nenhuma forma,
posturas e políticas de qualquer corporação com a qual eu possa estar envolvido ou servindo.
Ser livre atirador significa assumir inteira responsabilidade pelas tomadas de posição,
pelas críticas mais amenas ou mais acerbas que possam estar aqui contidas, como aliás
sempre foi minha postura ao longo de minha trajetória intelectual. Simples curiosos, alunos de
áreas que são as de minhas leituras e pesquisas, colegas de profissão ou de academia, podem
ter certeza de que todas as ideias aqui defendidas são sempre expostas com o mesmo ardor e
convicção que desde anos animam os meus estudos.
Vale!
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Primeira Parte
Política externa brasileira e diplomacia companheira
15
1. Fim das utopias na Casa de Rio Branco?
19
2739. “Fim das utopias na Casa de Rio Branco?”, St. Petersburg-Clearwater, FL, 29
dezembro 2014, 3 p. Considerações sobre o clima reinante no Itamaraty e na
própria política externa, em torno das expectativas que se revelaram frustradas ao
cabo de doze anos de experimentos supostamente inovadores. Divulgado no
Diplomatizzando (link: http://diplomatizzando.blogspot.com/2014/12/fim-das-
utopias-na-casa-de-rio-branco.html); reproduzido em Mundorama (n. 88, dezembro
de 2014; ISSN: 2175-2052; link para o boletim:
http://mundorama.net/2014/12/31/boletim-mundorama-no-88-dezembro2014/; link
para o artigo: http://mundorama.net/2014/12/30/fim-das-utopias-na-casa-de-rio-
branco-por-paulo-roberto-de-almeida/). Relação de Publicados n. 1158.
20
2. A política externa companheira e a diplomacia partidária
29
[Muitos outros materiais, e comentários tópicos, podem ser encontrados, geralmente sob
a rubrica “diplomacia companheira” ou “política externa companheira”, no blog
Diplomatizzando, desde vários anos, onde também tenho registrado os artigos dos
companheiros de viagem do novo pensamento único, os acadêmicos gramscianos.]
30
3. Continuidade e mudança na política externa brasileira
31
Estado, muitos dossiês internacionais poderiam estar sendo conduzidos pelo chefe da
chancelaria ou pela burocracia normal do Ministério das Relações Exteriores.
O ex-presidente se envolvia pessoalmente na condução, e até na definição de
posições negociadoras, em vários dos mais importantes assuntos da diplomacia oficial, a
começar pela política regional, as questões da integração, a presença do Brasil em
diversos foros, ou fóruns internacionais – a diplomacia dos Gs: G3, G4, Brics, o G20
financeiro e vários outros – sem esquecer as muitas visitas bilaterais e encontros
regionais (como os com dirigentes sul-americanos e destes com os africanos e árabes).
É previsível que a presidente Dilma conduza os assuntos externos bem mais através da
própria chancelaria, o que já constitui uma mudança substantiva. Essa mesma
conformação permitirá restaurar a unidade da formulação e implementação da política
externa, anteriormente fragmentada numa espécie de tríade constituída pelo assessor
especial da presidência em assuntos internacionais, pelo secretário-geral das relações
exteriores e pelo próprio chanceler. Já se trata, portanto, de uma grande mudança.
No plano da forma, mas isto também tem a ver com a substância, outras são as
prioridades e outro é o estilo da presidente Dilma Rousseff, a começar pelas suas
preocupações naturais com a política interna e com a economia doméstica, inclusive
porque a herança de problemas deixada pelo ex-presidente é pesada, sobretudo em
termos de gastos públicos e a consequente deterioração orçamentária, a aceleração
inflacionária em função da expansão exagerada do crédito (privado e público), a
diminuição do superávit primário e as inúmeras maquiagens contábeis feitas em 2010
para mistificar o crescimento da dívida pública, entre outros legados negativos da
presidência Lula.
Mas, formada a base parlamentar do governo, para assegurar boas condições de
governança interna, e anunciados os cortes orçamentários e outras medidas de ajuste
para combater a inflação, o governo Dilma pode então dedicar uma parte dos seus
esforços a questões de política externa. Ela o fez, aliás, ainda antes de tomar posse, pois
sua primeira entrevista à imprensa foi concedida ao jornal Washington Post, em
novembro de 2010, quando ela justamente se distancia da política de direitos humanos
do governo Lula ao declarar sua total contrariedade com o apoio que o Brasil concedia,
então, ao Irã, país considerado um violador contumaz dos direitos humanos de seus
cidadãos. Dilma, na verdade, se pronunciou especificamente a respeito do possível, até
provável naquela ocasião, apedrejamento da iraniana Sakineh Ashtiani, possibilidade
que a presidente eleita considerou, com razão, um ato bárbaro, contrário a qualquer
32
sentido de humanidade e de padrões civilizacionais. No fundo, ela estava condenando,
sem o dizer, a proximidade e até o apoio da diplomacia lulista em relação a algumas das
piores ditaduras remanescentes no mundo contemporâneo.
Esse é, pode-se dizer, a principal diferença, ou inovação diplomática, do
governo Dilma em relação ao governo Lula, postura confirmada recentemente quando o
governo brasileiro votou a favor do envio de um consultor em matéria de direitos
humanos para investigar violações no Irã, objeto de decisão específica, para imenso
desprazer dos iranianos, no Conselho dos Direitos Humanos da ONU em Genebra. O
desprazer iraniano já tinha sido criado com o convite formulado anteriormente à Prêmio
Nobel iraniana, advogada de direitos humanos, Shirin Ebadi, para almoçar na
Residência da delegação do Brasil para assuntos de direitos humanos, inaugurando,
portanto, um diálogo oficial do governo brasileiro com a oposição política ao atual
governo do Irã, em total contraposição às posições favoráveis exibidas pelo governo
precedente, ou pelo menos pelo presidente Lula e pelo seu chanceler.
A outra inovação é, obviamente, observada no relacionamento com os EUA e
em temas da agenda multilateral que possuem uma grande interface com a política dos
EUA, como nos recentes episódios envolvendo a guerra civil na Líbia e questões de
natureza econômica envolvendo comércio, moedas e a China. Existe uma evidente boa
vontade e até iniciativas concretas para melhorar o diálogo e o relacionamento com os
EUA, em outro claro sinal de distinção vis-à-vis a política externa do trio Garcia-
Guimarães-Amorim sob a orientação geral do Supremo Guia. A intenção, manifestada
explicitamente pela presidente e seu chanceler, era a de criar novos espaços de
cooperação entre o Brasil e os EUA, podendo incluir até a revisão do processo de
compra de novos caças para a FAB e outros áreas de interesse mútuo no comércio,
investimentos, energia, G20, etc. Depois da visita do presidente Obama – considerada
um sucesso mesmo sem grandes resultados aparentes, pelo simples fato de se ter
realizado antes de passados três meses da posse da presidente Dilma, segundo o
chanceler – a presidente Dilma teria veiculado – a crer em matéria da Folha de S. Paulo
do dia 28 de março de 2011, a partir de fontes autorizadas do Palácio do Planalto – seu
descontentamento com o excesso de simbolismo e a pouca substância como resultado
desse encontro. A presidente gostaria, ao que parece, de uma “diplomacia de
resultados”, uma expressão que esteve identificada, pela primeira vez, com um
chanceler que era um empresário: Olavo Setubal, chanceler escolhido pelo presidente
33
não-empossado Tancredo Neves, e que ficou dois anos sob o vice-presidente empossado
presidente José Sarney, em 1986 e 1986.
O outro sinal de distanciamento, ainda a ser confirmado, seria na relação com a
China, potência com a qual o governo anterior entreteve diversas ilusões de aliança
estratégica, declarando-se a favor do reconhecimento desse país como economia de
mercado e esperando receber dela apoio para suas pretensões exageradas a um grande
papel internacional, a começar pela reforma da Carta da ONU e a inclusão do Brasil
como membro permanente do Conselho de Segurança das Nações Unidas. A presidente
Dilma estaria descontente, ao que parece, mas aqui pressionada pelos industriais
brasileiros, com o papel reservado pela China ao Brasil, de simples provedor de
matérias primas e de grande mercado para suas manufaturas baratas, que estão
competindo fortemente com equivalentes brasileiros não apenas no plano doméstico
mas também em terceiros mercados, especialmente na América Latina. Mas ainda
temos de aguardar a visita a ser feita pela presidente à China, ainda agora em abril,
inclusive para reunião dos Brics, que passou a incluir a África do Sul, com o total apoio
da China e para desconforto do Brasil, que pretendia manter separadas as agendas do
Ibas e dos Brics.
Também ainda resta esperar pelos testes da nova política externa no contexto
regional, campo por excelência do que tinha sido designado, na gestão anterior, de
exercício de liderança brasileira, para grande desconforto dos profissionais do
Itamaraty. Este talvez seja o elemento crucial a fornecer elementos mais concretos para
se avaliar se a diplomacia de Dilma se distingue, ou não, da diplomacia de Lula. No
contexto regional, todo o empenho dos auxiliares diplomáticos de Lula se exerceu no
sentido de afastar os sul-americanos do império e afastar o império dos assuntos latino-
americanos. O esforço começou pela implosão da Alca, bem sucedido, aliás, e em torno
da qual seus autores se orgulharam pelo mérito da obra.
O processo continuou pela constituição de agrupamentos políticos claramente
autônomos em relação aos vetores de influência imperiais na região, quando não em
oposição à presença americana no continente sul-americano. Esse foi o sentido da
constituição da Comunidade Sul-Americana de Nações, criada por iniciativa do Brasil
numa reunião de cúpula ocorrida em Cuzco, no Peru, em dezembro de 2004, à qual, por
sinal, não compareceu nenhum dos demais dirigentes do Mercosul. O Brasil ofereceu o
Rio de Janeiro para sediar o que seria um secretariado da Casa, no que não foi seguido
pelos demais países da região, que se empenharam em encontrar substitutivos ao projeto
34
brasileiro. A Casa foi substituída em 2008 pela Unasul, com sede em Quito, como
proposto pelo presidente Chávez. Pode-se dizer que a Unasul constitui uma
continuidade apenas parcial do primeiro projeto de integração sul-americana proposto
pelo Brasil, mas que hoje escapa largamente ao seu controle. Em todo caso,
diferentemente da IIRSA, que constituía um projeto de integração física do continente,
proposto pelo Brasil na primeira reunião de chefes de Estado e de governo da América
do Sul, em 2000 – que por ter sido iniciado por Fernando Henrique Cardoso foi
descontinuado parcialmente – a Unasul ainda não conseguiu dar continuidade à carteira
de projetos desenhados pelo BID nos mais diversos campos da infraestrutura: energia,
comunicações, transportes, etc.
Onde também ocorreu descontinuidade na agenda da política externa herdada
pelo governo Lula de FHC foi na área reputada estratégica e prioritária por ambos
governos: o processo de integração sob a égide do Mercosul. Sua vertente econômica e
comercial, que constitui o cerne mesmo do processo, ficou praticamente intocada, ou
talvez tenha até retrocedido, a partir das inúmeras salvaguardas abusivas e ilegais
introduzidas pelo governo argentino contra produtos manufaturados brasileiros, em total
contradição com o espírito e a letra do Tratado de Assunção, e com a complacência
leniente demonstrada pelo governo brasileiro. Em seu lugar, foram impulsionadas as
vertentes políticas e sociais da integração, que podem até ser interessantes em seu
mérito próprio, mas não constituem propriamente uma base sólida sobre a qual ancorar
a integração.
Pois bem: ainda não se sabe, aqui, se haverá continuidade na mesma política de
“compreensão generosa” com as violações argentinas dos seus compromissos sob o
Tratado de Assunção ou se o governo Dilma seguirá uma política de defesa da
legalidade e de conformidade com os engajamentos assumidos no quadro dos diversos
protocolos de integração assinados pelos quatro países membros. O ingresso da
Venezuela poderá constituir um teste, já que o país andino liderado pelo coronel
socialista ainda não atendeu aos requisitos básicos do processo de integração, que são a
internalização da Tarifa Externa Comum do Mercosul e a aceitação das demais regras
de política comercial.
Por outro lado, ainda é cedo para dizer como se desenvolverão as relações com a
Bolívia e o Paraguai, dois países que pretendem extrair mais vantagens econômicas e
financeiras de suas relações com o Brasil, ambas no terreno energético. Tampouco se
pode avançar agora o grau de continuidade que será exercido em torno de uma das
35
principais insistências do governo Lula no plano multilateral: a conquista de uma
cadeira permanente no Conselho de Segurança. O bom senso recomendaria uma
mudança de ênfase nesse capítulo, já que se imagina que, se e quando houver reforma
da Carta da ONU, o Brasil desponta, desde já, como candidato natural ao cargo,
independentemente de qualquer ação mais militante.
Aliás, muitas das mudanças registradas recentemente na política externa
obedecem a simples regras de bom senso: determinadas posições anteriores, como o
apoio a ditadores e suas violações de direitos humanos, se chocavam tão frontalmente
com as tradições diplomáticas nessa área, e até com a Constituição brasileira, que
bastava aplicar o bom senso para restabelecer a dignidade perdida. Ocorreu aqui,
portanto, uma mudança para restabelecer a continuidade com a situação anterior à
politização e partidarização da diplomacia brasileira: certas rupturas são bem vindas,
mesmo quando se pretende retornar ao passado de profissionalismo pelo qual sempre
foi conhecido o Itamaraty.
Finalmente, o que deve ser visto também como uma mudança para assegurar a
continuidade é o restabelecimento da unidade conceitual e operacional da política
externa, antes fragmentada e dividida entre diversos atores, formuladores e executores,
agora aparentemente retomando seu leito natural, de unidade de comando, uniformidade
de propósitos, homogeneidade na execução. Previsibilidade, credibilidade, estabilidade
e legitimidade são condições e elementos importantes para a qualidade de qualquer
diplomacia, desde sua fase de concepção e planejamento, até o momento de sua
execução e implementação. Certas mudanças são a melhor garantia de continuidade, ou
vice-versa.
36
4. A diplomacia brasileira numa nova conjuntura política
37
presidencial – a mais de um título inédito na história política nacional –, a força do
cargo, quando assumido plenamente, e características pessoais ligadas a cada uma das
personalidades citadas, fazem com que se venha a assistir, necessariamente, um cenário
bastante diferente daquele registrado nos últimos oito anos.
Peculiaridades especiais na forma de conduzir os assuntos de Estado, seja na
frente interna, seja no âmbito externo, assim como simbologias ligadas a histórias de
vida diferentes, sustentam o diferencial que pronto se observará. Dificilmente se poderá
reproduzir, por exemplo, o protagonismo de Lula nos foros internacionais e nas relações
bilaterais (em especial na África), assim como não se deve assistir novamente às suas
formas especiais de interlocução, mais baseadas no instinto e no gosto da improvisação,
do que propriamente no seguimento dos cânones burocráticos tradicionalmente ligados
à figura presidencial. Assim, mesmo deixando de lado escolhas funcionais quanto ao
novo titular da chancelaria – se de carreira ou não, de um ou outro gênero, como
especulado abundantemente na imprensa – o mais provável é que a nova presidente
imprima suas preferências pessoais e suas prioridades políticas à diplomacia que lhe
caberá comandar a partir de 1o. de janeiro de 2011. Nessa área, porém, o peso da
continuidade costuma ser maior do que no campo das políticas internas, inclusive
porque a agenda vem em grande parte “pronta” do exterior. Alguns temas encontram-se
inclusive na ordem do dia, como é sempre o caso nesse tipo de atividade, a exemplo dos
que serão examinados a seguir.
Das três grandes prioridades do governo Lula na frente diplomática, não se pode
dizer que alguma tenha sido encaminhada a seu termo lógico ou a resultados exitosos do
ponto de vista do Brasil: o ingresso do Brasil no Conselho de Segurança das Nações
Unidas, por exemplo, encontra-se no terrenos das possibilidades difusas, e assim
promete permanecer no futuro indefinido, ainda que o status do Brasil, como ator de
relevo no cenário internacional, seja hoje amplamente reconhecido; as negociações
comerciais multilaterais, por sua vez, devem se arrastar penosamente por pelo menos
mais um ano inteiro, completando assim um ciclo frustrante de dez anos de
tergiversações, mas sempre com o ativo envolvimento do Brasil em todas as fases e
configurações negociadoras; a integração sul-americana, finalmente, caminha num
ritmo ambíguo, com muitas iniciativas no plano político, mas resultados menos seguros
nos terrenos econômico e comercial (que deveriam ser, aliás, a base da integração).
Todos esses temas serão retomados pela nova administração, que talvez queira imprimir
novas características às demandas e ofertas brasileiras nos diferentes capítulos e frentes
38
de negociação. Vários dos itens na agenda, não dependem, a rigor, da postura brasileira,
já que cada um deles, em seus contextos respectivos, carregam o peso de interesses
muito diversificados por parte dos principais parceiros envolvidos.
No plano da governança global, os avanços continuam sendo muito lentos ou
frustrantes: meio ambiente, coordenação econômica internacional, segurança e
terrorismo, constituem, por sinal, temas que transcendem a tradicional postura Norte-
Sul, que, segundo certas visões maniqueístas, dividiria o mundo em países
desenvolvidos, de um lado, e em desenvolvimento, do outro. Não se pode dizer, assim,
que a ênfase na diplomacia Sul-Sul que caracterizou o governo Lula tenha as respostas e
o formato adequados ao encaminhamento de todos esses temas inscritos na ordem do
dia das negociações internacionais, tanto porque alguns dos supostos aliados na causa
do desenvolvimento podem perfeitamente exibir posturas protecionistas e
subvencionistas que confrontam diretamente nossos interesses exportadores agrícolas,
entre outros exemplos. Assim, algum pragmatismo na formação de coalizões
negociadoras é sempre recomendável.
Em temas como o da integração regional, qualquer observador isento pode
constatar a imensa distância que existe entre um modelo tradicional de liberalização
comercial e de abertura econômica – que deveria situar-se, lógica e necessariamente, na
base de qualquer processo “normal” de integração baseado em clássicas vantagens
ricardianas – e um outro “modelo”, de caráter mercantilista, dirigista, estatizante e
politizado, avesso ao capital estrangeiro e aos sistemas de mercados, como o que vem
sendo impulsionado por alguns países na região. Assim, dificilmente se poderá dizer
que o Mercosul sairá reforçado ou dotado de maior coerência intrínseca ao integrar
novos membros que de fato perseguem um modelo situado nas antípodas do que se
entende normalmente por integração econômica.
Em temas essencialmente políticos, talvez se tenha, igualmente, de proceder a
uma revisão de conceitos, a partir de questionamentos que surgiram quanto à postura
brasileira em matéria de direitos humanos, por exemplo. Observadores da área, em geral
representantes de ONGs humanitárias, não deixaram de observar – e alguns
interlocutores até a questionar concretamente votos brasileiros nos foros pertinentes – a
mudança de postura do Brasil em diversas ocasiões que envolveram resoluções críticas
em relação a países reconhecidamente violadores dos direitos humanos, a pretexto de
“não politização” desses temas e de uma preferência pelo “diálogo direto”. Causou
especial constrangimento, nessas áreas, visitas e palavras amigáveis dirigidas pelo
39
presidente Lula a dirigentes desses países, que são os mais visados pela comunidade
internacional envolvida na proteção dos direitos humanos e na defesa das liberdades
democráticas de maneira geral.
Em qualquer hipótese, a presença do Brasil cresceu enormemente no cenário
internacional nesses anos de intenso protagonismo político e de uma ativa diplomacia
presidencial, a um ritmo que talvez seja difícil de manter para personalidades menos
carismáticas ou menos suscetíveis de manter a credibilidade nacional em situações de
ambiguidade em face dessas questões de direitos humanos ou de clara seletividade no
tratamento do princípio de não-intervenção. Amizades ostensivas com personalidades
autoritárias e relações políticas com países vistos com desconfiança pela comunidade
internacional – geralmente pelas mesmas razões, acima apontadas, que preocupam
entidades voltadas para os direitos humanos e as liberdades democráticas – podem até
se inscrever na lógica política de partidos cujos instintos primários se situem nessa
tradição filosófica antidemocrática, mas certamente não contribuem para elevar a
reputação moral de um país ou de seus dirigentes.
Finalmente, a questão das parcerias seletivas certamente ganharia em ser vista
menos do lado do anti-hegemonismo instintivo, com alguns laivos de anti-imperialismo
démodé, e mais pelo lado pragmático dos benefícios que possa trazer uma cooperação
bilateral fundada em critérios de excelência, independentemente de suas coordenadas
geográficas. Para todos os efeitos práticos, fases de transição política são sempre
carregadas de incerteza quanto ao itinerário futuro, mas nunca se pode excluir boas
surpresas com base na renovação de quadros e de políticas.
40
5. O Brasil e a integração regional, da Alalc à Unasul: algum
progresso?
41
sobreviveram ou estagnaram no curso do último meio século, entre os quais o Grupo
Andino (1969), oportunamente convertido na Comunidade Andina de Nações (CAN).
Ela pode ser, também teoricamente, considerada uma experiência de união aduaneira –
na verdade, tentativamente de mercado comum – que tampouco realizou seus objetivos.
Existem diversos acordos preferenciais ou de associação que vinculam o Brasil e o
Mercosul a países da CAN, a começar por diferentes acordos de alcance parcial (AAPs),
ou de complementação econômica (ACEs) contraídos no âmbito da Aladi, embora todos
eles tenham um escopo menos ambicioso – pela cobertura aduaneira e pelo grau de
liberalização tarifária – do que seria no caso da existência de um único acordo de livre
comércio, plenamente operacional, entre os dois blocos de integração.
Em todo caso, a intensidade de comércio entre o Brasil e o Mercosul e os demais
países da CAN, enquanto grupo (menos efetivo) ou individualmente, é bem maior,
devido a fatores de proximidade geográfica e de laços historicamente consolidados, do
que os tênues laços existentes entre o Brasil, de um lado, e países da Comunidade dos
Estados do Caribe (Caricom) ou do Sistema de Integração Centro-Americano (Sica), de
outro. O Brasil não está presente nesses dois blocos, tanto por razões de distanciamento
físico, da penúria de vínculos diretos de transporte, quanto da falta de tradição no
estabelecimento de acordos comerciais, inclusive porque o funcionamento do Mercosul
demandaria negociações conjuntas entre os dois blocos (e não é seguro de que se
poderia contar com perfeita unanimidade de visões e intenções em cada um deles).
A existência desses blocos, ou mesmo de acordos não perfeitamente funcionais,
poderia, sempre teoricamente, ser positiva para o Brasil, para o Mercosul, e para o
próprio sistema multilateral de comércio regido da OMC, desde que todos eles fossem
guiados pelo espírito do chamado “regionalismo aberto”, ou seja, de acordos de tipo
preferencial mas que ainda assim preservem os princípios básicos dos entendimentos
relativos às zonas de livre comércio ou união aduaneiras consagrados nos textos
fundacionais (Artigo 24 do Gatt-1947), nos entendimentos posteriores (Parte IV do
Gatt, de 1964, cláusula de habilitação da Rodada Tóquio, de 1979) e no memorando de
entendimento sobre o Artigo 24 resultante da Rodada Uruguai (de 1993). Cabe, de fato,
a expressão teoricamente, uma vez que muitos desses acordos, mesmo os simples
esquemas de comércio preferencial podem ser discriminatórios em relação a terceiras
partes, ou seja, países e territórios aduaneiros não membros.
A tensão inerente aos princípios potencialmente liberais do sistema multilateral
de comércio e a seus próprios dispositivos de exceção (artigo 24 e subsequentes), que
42
permitem fazer discriminação contra os não membros de acordos preferenciais, está
presente desde o início do Gatt, e de fato, historicamente, desde os primeiros acordos
consagrando versões limitadas da velha cláusula de nação mais favorecida. Com o
surgimento do Gatt, e a versão ilimitada e incondicional de nação mais favorecida,
diminuíram as chances de tratamentos especialmente discriminatórios, mas não resta
dúvida de que a possibilidade permanece, senão sobre a base de princípios e regras
consolidados nos instrumentos existentes, pelo menos na prática, dada a existência de
dispositivos especiais que abrem espaço algum tipo de discriminação comercial.
51
Segunda Parte
Economia internacional, globalização
53
6. Mudanças na economia mundial: perspectiva histórica de longo
prazo
58
7. Os Brics na nova conjuntura de crise econômica mundial
67
8. A Guerra Fria Econômica: um cenário de transição?
Velhas Realidades
A Guerra Fria geopolítica está encerrada definitivamente, ao que parece. A
despeito de tensões políticas “normais” e fricções comerciais entre as grandes potências,
não existem mais concepções totalmente opostas sobre como organizar o mundo,
economicamente ou politicamente. Ninguém mais está dizendo algo semelhante a “nós
vamos enterrar vocês”, como ocorreu no passado com um líder soviético. Daniel Bell,
recentemente falecido, já tinha antecipado, desde meados dos anos 1950, o “fim das
ideologias”, julgamento de certa medida confirmado por Francis Fukuyama. Mas, no
que depender de gente como Eric Hobsbawm, e de inocentes úteis desse tipo, as
ideologias ainda têm um brilhante futuro pela frente...
O que estamos assistindo agora, na verdade, é uma Guerra Fria econômica, ou
algo próximo disso. De fato, não parece haver nada capaz de provocar uma
confrontação em grande escala entre as maiores potências. O que temos, na presente
conjuntura, são fricções comerciais e desalinhamentos monetários, num cenário de
ajustes pós-crise. Existem disputas políticas sobre como as políticas econômicas
nacionais devem levar em consideração seus impactos sobre a situação econômica de
outros países. Como Mark Twain poderia ter argumentado, os rumores sobre uma
guerra cambial global são grandemente exagerados. É certo que ainda não superamos
totalmente a presente crise financeira; mas ela é apenas uma, dentre muitas outras, que
afetam mercados dinâmicos de forma recorrente desde o começo do capitalismo.
68
Profetas da crise final do capitalismo e outros utopistas do gênero vão novamente se
sentir frustrados dentro de alguns meses (sem reconhecer o fato, claro).
Existem muitas concepções errôneas sobre as origens e o desenvolvimento da
crise atual, várias delas propagadas pelos mesmos utopistas conhecidos. Não é
exatamente verdade que esta crise tenha sido provocada pela desregulação dos
mercados financeiros, ainda que a regulação flexível, ou mal implementada, possa ter
facilitado a expansão de várias bolhas nos mercados. O maior responsável pela bolha
que provocou o desastre, porém, foram as baixas taxas de juros definidas pelos bancos
centrais, a começar pelo Federal Reserve, durante um período muito longo. Da mesma
maneira, mas talvez por meios e instrumentos um pouco diferentes, que os velhos Lords
of Finance dos anos 1920 criaram as condições que levaram à crise de 1929 e à
depressão dos anos 1930, pela sua ação ou inação, a presente crise é o resultado de
políticas inadequadas dos novos Lords of Finance (ver o livro de Liaquat Ahamed,
Lords of Finance: the Bankers who Broke the World; New York: Penguin, 2009.)
Tampouco é verdade que a crise atual, ou as crises – já que são várias,
interconectadas – são suficientemente severas para justificar o programa, que muitos
recomendam, de um novo Bretton Woods, ou seja, um redesenho completo das relações
econômicas mundiais, com a restruturação das organizações existentes. Menções a uma
nova arquitetura financeira internacional, ou mesmo de redistribuição do poder
econômico mundial, estão em contradição com as realidades mais prosaicas dos nossos
dias. Comentaristas superficiais gostam de recorrer a grandes analogias históricas – que
em geral são falsas – para falar dos eventos correntes, mas o fato é que não estamos
vivenciando nenhum grande ajuste posterior a alguma crise de proporções
monumentais, como gostariam alguns. Vivemos, é certo, uma transição, mas não uma
revolução, qualquer que seja o sentido que possamos dar a esses conceitos. Vejamos os
precedentes.
Não estamos em face de um reordenamento radical e completo da ordem
mundial, após algum evento cataclísmico, afetando todos e cada um dos grandes atores
da cena internacional, ou mesmo regional. Não estamos em Wesfália, em 1648; não
estamos em Viena em 1815; tampouco estamos em Paris ou Versalhes, em 1919, sequer
em Bretton Woods em 1944, e muito menos em São Francisco, em 1945.
Definitivamente, não estamos em nenhum momento de refundação fundamental da
ordem política e econômica internacional. Simplesmente estamos, atualmente, no meio
de algo semelhante aos anos 1930, tentando administrar uma grande crise por meio de
69
respostas nacionais, cada uma delas adaptada a circunstâncias específicas de cada país,
e desvinculada dos maiores desastres afetando os demais e cada um dos países
envolvidos no processo.
Para ser mais preciso, estamos em algum ponto entre 1931 e 1933, ainda no
meio de uma recessão, mas não numa depressão. O nível de desemprego não é tão alto
quanto em 1933, e está provavelmente alinhado com os padrões dos nossos dias. Os
fluxos comerciais e financeiros não foram tão desestruturados quanto nos anos 1930,
ainda que a liberalização econômica tenha regredido: apenas revertemos a uma versão
light do protecionismo comercial dos velhos tempos, mas sem cotas ou restrições
quantitativas ao velho estilo.
Esta nova Guerra Fria Econômica emerge a partir de mudanças estruturais na
economia mundial, já em curso desde os anos 1980, quando a China começou a
flexionar os seus músculos novamente. Ao mesmo tempo, os países em
desenvolvimento deixaram de implementar projetos nacionais, introvertidos, de
desenvolvimento nacional e abriram-se aos investimentos estrangeiros. Desde então, o a
economia mundial foi transformada irreversivelmente, embora gradualmente.
Mas nem tudo, obviamente, mudou. As principais instituições de tomada de
decisões ainda continuam a ser o que sempre foram, com a mesma distribuição dos
direitos de voto. O FMI e o Banco Mundial estão no meio de seus labores para definir
uma nova repartição de votos, tendo já operado algumas acomodações. Os votos
coletivos da China, da Índia e do Brasil é 20% menor do que os da Bélgica, dos Países
Baixos e da Itália, a despeito do fato que o PIB conjunto do primeiros países é quatro
vezes maior do que aquele de seus contrapartes europeus; eles têm uma população 29
vezes maior. Estas são algumas das razões para uma nova Guerra Fria econômica.
Como administrar estas novas realidades no terreno econômico, dispondo das
mesmas alavancas políticas e das mesmas velhas estruturas de tomada de decisão como
nos processos do passado? Esta é uma questão complicada, sem uma resposta clara ao
dilema. Administrar a economia mundial é uma pretensão que mesmo o velho G7 nunca
conseguiu alcançar nos seus tempos gloriosos. Os países desenvolvidos controlavam
então uma grande proporção do PIB mundial e dos fluxos comerciais e financeiros. Mas
eles nunca foram capazes de coordenar suas políticas macroeconômicas entre eles
mesmos; menos ainda se poderia esperar que eles estabelecessem regras e metas para o
resto do mundo.
70
Atualmente, com uma penosa queda nas economias avançadas, parece difícil
visualizar o que poderia ser feito para restaurar o crescimento a partir de níveis
próximos da estagnação em várias economias europeias. Além dos problemas cíclicos
afetando as grandes economias (com as exceções da China, da Índia e de alguns outros
países), existem vários desafios globais à frente, entre eles o da pobreza nos países
menos avançados, e grandes decisões a serem tomadas em relação a questões
ambientais, a violações dos direitos humanos em países não democráticos, e vários
outros temas relevantes.
Uma estratégia singular poderia ser a definição de apenas uma grande meta
global para a comunidade mundial: teria de ser a promoção do desenvolvimento global,
não exatamente através da assistência (ou a tradicional Ajuda Oficial ao
Desenvolvimento), mas prioritariamente através de uma real liberalização comercial,
especialmente no setor agrícola, a única possibilidade efetiva para que os países menos
avançados possam ser integrados à economia mundial. Os Estados Unidos e a União
Europeia possuem, evidentemente, a maior responsabilidade nesse terreno.
É altamente improvável que propostas consensuais relativas ao desenvolvimento
global possam emergir de um fórum tão amplo quanto o G20 financeiro, muito
heterogêneo para ser capaz de alcançar posições comuns. Talvez fosse mais indicado
lograr uma evolução informal do atual G8 para um novo G13, interrompendo o ciclo do
atual G20 (o que talvez já seja difícil de se obter). Isso representaria agregar aos atuais
membros do G8 outras cinco grandes economias, nomeadamente Brasil, China, Índia,
África do Sul, e ou Indonésia ou México. A experiência demonstra que pequenos
grupos informais estão mais próximos de se entenderam sobre ações concretas do que
grandes órgãos institucionalizados que acabam dominados pela lerdeza burocrática e
desentendimentos políticos.
Novas Perspectivas?
O que deve ser feito? O maior problema nessa modalidade organizacional de se
ter um G20 diminuído seria o de como adquirir a legitimidade implícita ao ato de falar
para toda a comunidade mundial partindo de um fórum de apenas 13 países. Para
resolver essa limitação se necessitaria de um grau de confiança política entre os líderes
desses 13 países, definindo um terreno de entendimentos recíprocos entre eles que teria
de ser compatível com a função de representação mais ampla que eles pretenderiam
assumir em nome de toda a comunidade de nações.
71
Encontrar terrenos comuns é uma tarefa dura de ser alcançada no estado atual
das relações internacionais, caracterizada, como já se sublinhou, por uma guerra fria
econômica típica das fases de transição. Parece ser bastante difícil de se lograr uma
coordenação perfeita das agendas dos grandes países avançados e das economias
emergentes e, mais ainda, entre eles todos e os demais membros das organizações
internacionais que eles pretenderiam “substituir”. O mundo não é, simplesmente, tão
globalizado como se requereria para alcançar esse tipo de interação. Disparidades de
interesses, diferenças entre níveis de desenvolvimento, desequilíbrios entre os países,
vários fatores se combinam para tornar praticamente impossível um exercício de
coordenação desse tipo.
Uma proposta mais modesta poderia ser se obter uma interação mais frequente –
uma vez ao ano – entre os líderes desse novo G13. Sherpas especialmente designados,
encontrando-se duas vezes ao ano, poderiam ser mobiliados para discutir questões
comerciais, assuntos ambientais, a proteção dos direitos humanos em países
apresentando conflitos, missões de peace-keeping das Nações Unidas e outros temas do
gênero, dotados de mandatos específicos de seus líderes políticos. Mas não se deve
esperar pela ONU para organizar esse tipo de agenda. Já é difícil implementar qualquer
coisa através da ONU, um órgão muito burocrático e passavelmente caótico. Melhor
realizar a coordenação de agendas através das três mais importantes agências para a
globalização contemporânea: o FMI, o Banco Mundial e a OMC.
A tarefa principal dos “novos sherpas” seria a de assegurar a coordenação
econômica internacional em torno dos temas mais relevantes para a comunidade global.
Uma sugestão possível seria tentar estabelecer um “global new deal”, um novo pacto
mundial, intercambiando uma proteção extensiva aos investimentos e à riqueza
proprietária (patentes e coisas do gênero), assim como outras condições apropriadas
para o desenvolvimento da atividade produtiva no plano microeconômico, do lado dos
países em desenvolvimento (ou recebedores de IDE), contra práticas de licenciamento
extensivo e investimentos efetivos e liberalização comercial da parte dos países ricos e
dos investidores privados. Esse tipo de pacto, ao ampliar os direitos proprietários para
os ricos, poderia resultar no fortalecimento dos fluxos de investimentos financeiros e de
comércio para os pobres, dando um grande impulso à globalização.
A assistência tradicional ao desenvolvimento, por ineficiente, deveria ser
substituída, essencialmente, por um novo foco nas melhorias educacionais graduais, ou
seja, um extenso programa para a qualificação de recursos humanos. A assistência,
72
enquanto tal, deveria ser as limitada à implementação de um programa consistente de
erradicação da maior parte das doenças infecciosas nos países africanos e em vários
outras nações em desenvolvimento. A maior razão para a persistência da pobreza nesses
países não é exatamente a falta de recursos, mas a ausência de governança e sua não-
integração à economia mundial através de vínculos comerciais.
Considerando que questões de governança democrática e de proteção dos
direitos humanos podem ser um desafio para países como a China, ou mesmo, talvez,
para a Rússia, o alvo principal da agenda de um novo G13 poderia ser a adoção de altos
padrões de governança pública na acepção técnica desta expressão. Na atual fase de
guerra fria econômica pode ser precoce a tentativa de se fazer da governança
democrática e do respeito pelos direitos humanos o critério decisivo para a cooperação
bilateral ou multilateral. Mas estes devem ser os fins últimos de qualquer tipo
governança global. Em última instância, a agenda de Fukuyama permanece atual e
absolutamente necessária. Remeto, a propósito, ao meu artigo: “O Fim da História, de
Fukuyama, vinte anos depois: o que ficou?” (Meridiano 47, n. 114, janeiro 2010, p. 8-
17; link: http://meridiano47.files.wordpress.com/2010/05/v11n1a03.pdf). Esse
programa não tem nada a ver com o fim da história, e sim com o fim dos regimes
autoritários e fechados economicamente. Se existe algum determinismo na História, este
parece ser o único aceitável.
73
9. Desafios da economia brasileira na interdependência global
74
para menos de 1%, apenas para dar um salto quase “chinês” no ano seguinte: mais de
7% em 2010, o que permitiu a Lula, entre outras façanhas, eleger sua desconhecida
candidata nas eleições presidenciais de outubro daquele ano.
Desde então, infelizmente, o desempenho da economia brasileira entrou numa fase
medíocre, com crescimento de menos de 2% ao ano. Entre os fatores está, mas apenas
em parte, a moderação nos preços dos produtos primários de exportação, convertidos
novamente, depois de várias décadas, na principal fonte de divisas no comércio exterior.
Concorre também a perda de competitividade industrial, uma vez que o Brasil se tornou
um país muito caro – e não apenas devido ao câmbio valorizado – em vista da carga
fiscal extremamente elevada sobre os processos produtivos: a palavra da conjuntura
passou a ser desindustrialização. Na verdade, os problemas mais importantes derivam
dos erros de política econômica cometidos pelo governo desde 2008, pelo menos, com
um crescimento contínuo da extração tributária, das despesas do governo e de uma taxa
de inflação constantemente acima da meta fixada pelo próprio governo.
Cabe com efeito recordar que, dentre os países em desenvolvimento, o Brasil possui
uma carga fiscal típica de país rico, perto de 38% do PIB, para uma renda per capita
cinco ou seis vezes inferior à dos países da OCDE. Pode-se mencionar igualmente um
ambiente de negócios muito difícil para investidores e empresários em geral, dados os
instintos intervencionistas e dirigistas tradicionais no Brasil mas exacerbados no Partido
dos Trabalhadores. O fator principal, obviamente, se deve a que o Estado gasta sempre
mais do que o crescimento do PIB e da inflação, et gasta mal, muito pouco em
investimentos produtivos, e muito em despesas correntes, em especial subsídios a
setores já privilegiados.
Em lugar de empreender reformas, os responsáveis políticos continuam distribuindo
favores setoriais ou recorrendo a medidas protecionistas que apenas agravam a situação,
já que elas provocam mais inflação e um grau ainda menor de competitividade externa
para a indústria. Esta foi praticamente confinada ao Mercosul, tampouco protegido da
competição externa, sobretudo da China; o bloco é também afetado pelas medidas ainda
mais protecionistas da Argentina, que era o terceiro parceiro mais importante do Brasil,
depois da União Europeia e dos Estados Unidos, todos eles suplantados desde 2009 pela
China. Com o país asiático, o Brasil passou a manter uma relação comercial quase
colonial, feita de 95% de matérias primas para lá, e de 95% de manufaturados para cá.
A balança comercial começou a se deteriorar, ela que constitui o único recurso em
face de um déficit crônico na balança de serviços; a continuar a tendência negativa,
75
mesmo as enormes reservas financeiras do Brasil podem não ser suficientes, uma vez
que estão quase todas aplicadas em Treasury bonds, que produzem um retorno
insignificante comparativamente ao custo fiscal de sua manutenção. O fato é que a
situação econômica se agravou sensivelmente, com ameaças reais ao processo de
estabilização iniciado pelo Plano Real em 1994: depois de quatro anos de desacertos na
política econômica, o que se tem é um crescimento medíocre e uma inflação crescente.
79
10. A agenda econômica internacional: o cenário atual
80
custo dessas dívidas ainda é relativamente baixo, mas o retorno a condições normais de
juros, combinado ao declínio demográfico em vários deles, não augura um futuro
brilhante para a atual geração de entrantes no mercado e suas respectivas
aposentadorias.
Uma eventual recessão na China – aparentemente improvável, mas não de todo
impossível, ou descartável – pode piorar, e bastante, o cenário de médio prazo para os
países que se tornaram parceiros comerciais privilegiados, em especial os exportadores
de produtos primários da África e da América Latina, que se beneficiaram bastante bem
do boom das commodities dos anos fastos, quando a China absorvia entre um quarto e
um terço de várias mercadorias e insumos de base. O Brasil – o governo Lula em
especial – foi um desses felizardos que se locupletaram de dólares com a soja a 600
dólares e o minério de ferro a 200 dólares a tonelada; ao que parece, esse tempo já
passou, embora os preços dos agrícolas e das carnes não tenham declinado para
profundezas tão tenebrosas quanto as dos fósseis e de alguns metálicos. Em todo caso, o
mundo pode se beneficiar do petróleo barato e da nova demanda de manufaturados por
parte das novas “classes médias” pipocando aqui e ali em diversos continentes (alô
Apple, alô Samsung!).
No terreno do comércio internacional, as perspectivas não são entusiasmantes:
as negociações da Rodada Doha estão em crise, seus resultados até aqui foram mais do
que decepcionantes e não se vislumbra sua conclusão próxima ou mesmo hipotética,
muito embora se tenha registrado a preservação do básico, que é um respeito mínimo
pelas regras multilaterais, com salvaguardas e antidumping registrando estatísticas mais
ou menos “normais” (com exceção de alguns recalcitrantes e protecionistas renitentes,
como pode ser o caso aqui mesmo na América Latina); mas, pela primeira vez em
décadas, a taxa de crescimento do comércio mundial fica abaixo da expansão do
produto, ainda que com grandes desigualdades regionais (na Ásia Pacífico, por
exemplo, a expansão comercial se mantém em ritmo razoável dentro da própria região).
No terreno das finanças e das moedas não se registraram as catástrofes que
alguns profetas do apocalipse do passado – o da repetição da Grande Depressão dos
anos 1930 – tinham anunciado quando das crises bancárias de 2008 e 2009, mas vários
economistas falam da atual Grande Recessão com um prazer quase mórbido. Tensões e
conflitos localizados se manifestam aqui e ali, a descoordenação é garantida nas
políticas macroeconômicas dos integrantes do G20, mas não se tem mais a acrimônia de
uma suposta “guerra cambial” do yuan contra as principais moedas ocidentais; aqueles
81
que falavam de “tsunami financeiro” se preocupam agora com a retração dos fluxos de
dinheiro fácil que, jorrando, alimentavam alguns belos déficits de transações correntes
aqui e ali (não é keynesianos de botequim de conhecidos países equilibristas bêbados?).
Nos principais países desenvolvidos se observa, nesse capítulo, a continuidade
da livre movimentação de capitais, com os controles esperados nos emergentes, e com
as paridades cambiais evoluindo gradualmente, embora surpresas desagradáveis não
sejam de se descartar (o tango dólar-euro é um dos mais interessantes). A inflação baixa
está garantida nos principais países responsáveis, e só malucos localizados conhecem
taxas a dois dígitos (mas esses são casos terminais de esquizofrenia econômica);
inovadores monetários – como alguns que achavam que uma expansão irrefletida do
crédito poderia sustentar um boom de consumo e de investimentos – se encontram hoje
em maus lençóis, tendo de suportar greves e o descontentamento dessa classe média
alimentada na ilusão do crediário “sem juros”. Aprendizes de feiticeiros econômicos
acabam aprendendo da pior maneira, tendo de administrar a velha conhecida
estagflação, ou seja, a combinação da estagnação econômica, com baixo crescimento e
alto desemprego e uma inflação persistente, como tinha sido o caso nas principais
economias avançadas pós-choques do petróleo dos anos 1970. Seria agora a vez do
Brasil?
Keynes deve ter escrito em algum lugar que nunca se é profeta duas vezes, mas
tem gente que não lê nem orelhas dos manuais econômicos, quanto mais as obras
completas do mais irreverente professor de Cambridge. Seus atuais seguidores de
araque se contentam com as platitudes neo-Prebischianas de um coreano da mesma
universidade, que também acha que existe um complô dos ricos contra os pobres,
aqueles chutando a escada pela qual deveriam subir os novos desenvolvimentistas.
Alguns até continuam repetindo as mesmas bobagens dos anos 1990 contra o Consenso
de Washington, como se essas simples regras de bom senso reformista tivessem algo a
ver com as agruras passadas ou com as angustias presentes dos neo-estagnacionistas.
A despeito de todos esses percalços, o regime econômico multilateral se
mantém mais ou menos intacto, tal como concebido em Bretton Woods mais de setenta
anos atrás e reformado aqui e ali com remendos de ocasião por quem podia fazê-los.
Outros países se contentam em absorver os choques e aproveitam para dar continuidade
às mesmas políticas oportunistas que foram as suas nas fases de industrialização
triunfante, o que de toda forma lhes assegurou certo aumento no bolo da
interdependência global. Alguns certamente avançaram, como os emergentes da Ásia
82
Pacífico, bem mais, em todo caso, do que os saudosistas da América Latina, que
parecem não sair do lugar, ou retroceder.
No terreno da segurança, que também tem impactos econômicos, em lugar da
diminuição gradual dos focos de tensão entre as grandes potências, observa-se o que
alguns chamam de retorno à Guerra Fria, não se sabe se como farsa, ou se como simples
sobressaltos de suspiros imperiais, na antiga periferia soviética. O Oriente Médio nunca
decepciona em confirmar as piores expectativas que sempre marcaram aquela região,
com o longo impasse entre Israel e Palestina, e os novos problemas do fundamentalismo
islâmico agora convertido em califado expansionista e guerreiro. Com isso, o rebrote de
tensões e de conflitos civis ou inter-religiosos, em estados semifalidos (ou por
completo, como parece ser o caso da Síria e do Iêmen) promete dar continuidade a
velhos problemas de pobreza, de miséria e de desesperança em sociedades já de
ordinário martirizadas – se o termo se aplica – por intratáveis contradições entre a
manutenção da tradição e as explosões de modernidade na população juvenil e
conectada.
No meio ambiente, finalmente, os compromissos são frágeis, as reconversões
são difíceis e todos os atores prefeririam ter os custos da adaptação transferidos,
segundo os casos, para os mais ricos, para os emergentes, para os poluidores históricos,
para os novos poluidores, para os destruidores de florestas, etc. Se e quando alguns
acordos forem ratificados, eles já estarão superados pelos esforços adaptativos dos
agentes primários da globalização ambiental, que são as empresas de consumo de
massa, no caso pressionadas pela opinião pública (atuando mais em função do
politicamente correto do que de sólidos princípios econômicos relativos a preços de
mercados de bens escassos).
Alguma esperança nisso tudo? Talvez. Afinal de contas, o novo papa, que
parece ser peronista em economia, promete ao menos fazer um aggiornamento
necessário nos “costumes” da sua Igreja e continuar o diálogo com as outras
comunidades de fé, o que talvez suscite algum avanço por parte de certos representantes
do Islã no sentido de dar início a um também necessário trabalho de exegese da palavra
do profeta. Nunca é demais esperar um pouco de racionalidade da raça humana. Mas
não façam apostas...
83
2807. “O Brasil e a agenda econômica internacional, 1: como se apresenta o cenário
econômico internacional da atualidade?”, Hartford, 6 abril 2015, 4 p. Análise da
situação econômica atual do mundo, em preparação para a discussão da posição e
dos desafios para o Brasil. Mundorama (15/04/2015; link:
http://mundorama.net/2015/04/15/o-brasil-e-a-agenda-economica-internacional-
como-se-apresenta-o-cenario-economico-internacional-da-atualidade-por-paulo-
roberto-de-almeida/). Republicado no blog Diplomatizzando (link:
http://diplomatizzando.blogspot.com/2015/04/o-brasil-e-agenda-economica.html).
Relação de Publicados n. 1172.
84
11. Como o Brasil se insere no cenário mundial, agora e no futuro
próximo?
O Brasil, como qualquer outro país, precisa estar sempre atento à evolução –
ou seja, às transformações, às mudanças – do cenário internacional, em especial na área
econômica, para definir, fixar, manter ou reorientar, pelo menos tentativamente, suas
grandes opções de inserção ou atuação nesse cenário, em função de uma visão própria
que possa ter dos desafios colocados a ele – como economia, como nação – e dos
instrumentos de que dispõe para retirar as melhores vantagens desse ambiente
cambiante, por vezes surpreendente, que é o cenário internacional ou regional.
Estar atento significar, em primeiro lugar, ter um responsável primeiro e último
pelos destinos do país – nosso rei supostamente republicano, eleito, ou reeleito, a cada
quatro anos (mas já tivemos por prazos maiores, sem reeleição, alguns que até se
prolongaram indevidamente) –, um mandatário dotado de poderes legítimos e cercado
de assessores próximos, em especial na área econômica e nas relações exteriores. Estes
não devem ser apenas as antenas e os conselheiros de confiança do dirigente oficial,
mas também chefes de equipe comandando assistentes competentes. Esse trabalho de
prospecção, de diagnóstico, de previsão e de prescrição quanto ao que deve ser feito, ou
seja, de políticas públicas, deve ser conduzido de maneira constante e meticulosa,
praticamente o tempo todo. Estas são tarefas básicas de qualquer governo que se
pretenda responsável pelos destinos da nação, ao assumir temporariamente as rédeas do
Estado. Nas democracias de mercado, funcionando segundo o sistema representativo,
são os partidos que disputam as preferências dos eleitores para exercer essas funções.
As tarefas da governança já foram discutidas ao longo dos séculos, de diversas
formas, desde Aristóteles e suas descrições do corpo estatal e dos regimes políticos,
85
passando por Maquiavel, e suas recomendações sinceras e brutais sobre como se deve
conquistar, manter e monopolizar o poder sobre os homens, até os cientistas políticos
funcionalistas da atualidade, em geral americanos. Estes últimos já tabularam todas as
correlações existentes e possíveis entre os poderes, os agentes e suas motivações, por
meio de elegantes curvas de regressão sobre os processos decisórios, tudo isso
complementado por análises sobre a eficiência das instituições e suas ramificações.
Não é o caso, portanto, de retomar aqui esses princípios gerais, e sim de
examinar como o Brasil se insere no cenário internacional, o atual, o do passado
recente, e o de um provável futuro, para estabelecer algumas constatações muito
simples, sobre como temos reagido, ou como temos suportado o cenário mundial e seus
desdobramentos regionais. Nesta quesito, pode-se deixar de lado a conjuntura imediata
e passar a examinar as tendências de médio e longo prazo, para aferir como o Brasil
vem se adequando, se ajustando, se adaptando às mudanças no cenário internacional,
em especial o econômico, uma vez que não se espera que ele consiga moldar esse
cenário, um empreendimento que atualmente foge ao alcance mesma das maiores
potências econômicas. Hipoteticamente, EUA e China seriam capazes de, agindo
conjuntamente, influenciar decisivamente a economia política e os dados econômicos
do atual cenário, mas essa perspectiva não é nem plausível, nem possível, por uma série
de razões que caberia tratar em análise específica.
Vamos nos concentrar, portanto, no caso do Brasil, e a principal pergunta que
deve ser feita a este respeito seria esta: estaria o Brasil bem inserido na região e no
mundo, seus estadistas – se ele os possui – têm controle sobre os vetores principais de
nossa inserção, eles têm, ao menos, consciência sobre os principais desafios que
enfrentamos e os grandes problemas que precisamos superar para nos tornarmos não
apenas uma nação mais próspera, mas também mais participante dessa coisa chamada
comunidade mundial? Resumido: como o país trata, sofre ou “negocia” com o atual
cenário internacional?
Vamos por partes, seguindo, para tanto, o roteiro delineado nas perguntas
acima enunciadas. A primeira tem a ver com a nossa região, a mais suscetível de ser
“influenciada” por esse gigante que faz metade do continente, nas suas diversas
dimensões: demográfica, econômica, territorial, industrial, talvez científica e, ainda
talvez, tecnologicamente (seria preciso compulsar estatísticas relativas a produção de
artigos científicos, registro de patentes, produção industrial, mas vamos supor, para fins
86
deste exercício, que o Brasil represente aproximadamente a metade do potencial sul-
americano). A pergunta é, portanto: o Brasil está bem inserido na região?
Quem observa os movimentos diplomáticos, os fluxos de comércio de bens e
de serviços, os investimentos diretos, os empréstimos realizados e, sobretudo, as ações
diplomáticas e as iniciativas tomadas nos últimos cinco anos (este é o prazo médio das
conjunturas econômicas) tem a impressão que o Brasil tem, sim, algum peso na região,
e algum grau de influência sobre certos países, talvez mais por inércia do passado do
que propriamente por indução ou capacidade de atuação deliberadamente direcionada.
A despeito de contar com um grande banco que realiza operações externas, de manter
um fluxo regular de intercâmbios econômicos dentro da região, é um fato que o Brasil
vem perdendo espaços no continente, não apenas em favor da China – o grande ator
emergente não só nesta região, como em quase todos os cenários continentais – mas
também como resultado de iniciativas independentes adotadas por outros países, mesmo
sendo parceiros relevantes.
O grande vetor da construção de um espaço econômico integrado na América
do Sul, como tal pensado desde sua concepção, deveria ser o Mercosul, um projeto de
mercado comum – enfim, fiquemos na união aduaneira, que deveria ser pelo menos
completa e acabada, mas leva o nome de “incompleta” há mais de vinte anos – que tinha
vocação a ser o núcleo organizador de uma rede regional de acordos de liberalização
comercial (nas suas diversas modalidades operacionais) e podendo servir de base para o
que foi chamado, uma vez, de Alcsa, a Área de Livre Comércio Sul-Americana, em
lugar de aderir ao projeto americano da Alca (consoante nossa indisfarçável rejeição a
qualquer projeto que tivesse os EUA como centro, isso em qualquer governo, mesmo
um “neoliberal”). Ora, não é preciso ser nenhum gênio da análise política e econômica,
ou dispor de uma central de informações, para constatar que o Mercosul é, hoje, uma
sombra do que foi, um esquema quase moribundo de trocas comerciais, no qual os
grandes parceiros parecem ter abdicado de sequer fazer menção aos objetivos sempre
inconclusos (e cada vez mais distantes) do artigo 1o. do Tratado de Assunção, cada vez
que se reúnem para exercícios repetidos de retórica vazia.
O outro grande esquema favorecido em 2004 pelo Brasil, a Comunidade Sul-
Americana de Nações, e que deveria ter sede no Rio de Janeiro – mas depois convertida
em Unasul, com sede em Quito, por manobras do ex-caudilho da Venezuela – tornou-se
praticamente um instrumento de fácil manipulação pelos países ditos bolivarianos, e não
é capaz de sequer observar sua própria cláusula democrática ante situações de clara, e
87
grave, deterioração da democracia num dos maiores membros da organização. Não se
pode dizer, tampouco, que o Brasil possua alavancas próprias que possam fazer com
que essa entidade sirva, pelo menos, para cumprir seu outro objetivo estatutário, que são
projetos de integração física no continente. Não se tem notícia de nenhum grande
empreendimento que tenha resultado do planejamento ou da ação da Unasul, embora
tenham sido criadas diversas novas entidades – inclusive uma supostamente de defesa –
que todas tem o objetivo implícito de retirar os países da área de influência dos EUA.
Se essa diminuição de estatura e de influência ocorre no plano regional, não
parece claro que o panorama seja mais positivo no plano mundial, não necessariamente
universal, mas o do mundo que pode receber impulsos relevantes por parte do Brasil.
Esse mundo é o do Ibas (com Índia e África do Sul), o do Brics, juntando mais a Rússia
e a gigantesca China (que sozinha faz mais da metade de tudo o que representa o Brics),
o de alguns países africanos de expressão portuguesa – onde existe algum espaço para a
cooperação bilateral e plurilateral no âmbito da CPLP – e, talvez, o “mundo” do G20,
em princípio comprometido com a coordenação de políticas econômicas em escala
global, mas que aparece cada vez como mero esforço de coreografia para discursos bem
intencionados dos principais líderes mundiais, sem grandes consequências práticas. Em
todos esses cenáculos o Brasil aparece com um discurso em favor da “democratização
das relações internacionais”, que é o slogan politicamente correto para sua reivindicação
de uma cadeira permanente no Conselho de Segurança das Nações Unidas, mas que não
parece dispor de apoios suficientes atualmente (sequer dentro do próprio Brics) para se
concretizar no futuro previsível.
Durante muito tempo, desde o início da década passada, o Brasil – ou, para ser
mais exato, sua direção política – insistiu numa tal de diplomacia Sul-Sul, como sendo o
vetor privilegiado de sua inserção internacional, e assim foi feito e agitado, nos vários
continentes daquilo que outrora se chamava de Terceiro Mundo. Não se tem um balanço
honesto, independente, de como essa diplomacia com nítido determinismo geográfico
conseguiu, realmente, realçar a capacidade de influência do país no mundo, ou de como
isso reforçou nossa presença econômica nas diversas interfaces de relacionamento no
plano externo, em especial no campo econômico. O Brasil continua a exibir a mesma
modesta participação no comercio internacional – pouco mais de 1% desde sempre – e
se situa num patamar inferior – menos de 50% da média mundial – em termos de
coeficiente de abertura externa, o que é um resultado inteiramente determinado por
nossa própria política econômica, em especial a comercial e a industrial.
88
Para sermos absolutamente sinceros, e precisos no diagnóstico, é importante
reconhecer que todos os nossos problemas – esses que impedem uma maior presença e
participação, e capacidade de influência do Brasil nos assuntos regionais e mundiais –
derivam de causas essencialmente internas, e de nenhuma maneira se devem a um
ambiente hostil no plano externo ou a uma hipotética “crise internacional”. Enquanto os
estadistas – se os há, como já questionado – nacionais não forem capazes de equacionar,
com realismo, a origem dos nossos problemas, e eles são todos de natureza interna, o
país vai ter dificuldades em empreender as reformas necessárias para ter uma maior
capacidade de inserção internacional e de influenciar a agenda econômica mundial.
A realidade atual, sem qualquer disfarce ou desculpa, é esta aqui: o Brasil não
possui nenhuma grande estratégia de inserção global, pelo menos uma que se desdobre
em ações concretas, para além dos discursos meramente retóricos com que dirigentes e
ministros enganam a si mesmos, e tentam enganar os demais, nos cenáculos abertos ao
engenho e arte de nossa diplomacia. Se existem alguns projetos parciais – que vão
sendo desenhados pela proverbial excelência de nossa diplomacia, se ela de fato existe –
eles vão se adaptando aos desafios de cada momento, como podem ser as questões do
meio ambiente, da segurança na internet, das negociações comerciais multilaterais e de
alguns poucos outros temas nos quais os profissionais da diplomacia conseguem se
elevar acima da introversão também proverbial de nossa burocracia governamental.
Na verdade, os desafios brasileiros, como já afirmado, são basicamente
internos, e o mundo tem sido leniente, bastante generoso para com o Brasil; o comércio
mundial, a despeito da “reprimarização” da economia brasileira, tem permitido saldos
positivos nos terrenos em que somos competitivos. Se não conseguimos fazer mais, foi
porque uma política econômica totalmente equivocada retirou competitividade das
empresas brasileiras vinculadas ao comércio exterior. No plano das finanças globais,
não se pode dizer que o mundo esteja carente de capitais, e o Brasil não precisaria, de
nenhuma forma, aderir a bancos ad hoc – Banco del Sur, Banco dos Brics (NDB), ou o
novo banco asiático de investimento em infraestrutura – para poder atrair todos os
capitais de que necessita para impulsionar seus próprios projetos de desenvolvimento.
Quando não existe confiança na qualidade da política econômica, pode-se cair
rapidamente numa fuga de capitais, o que leva inevitavelmente a uma desvalorização
cambial, um cenário já bem conhecido pelo Brasil e outros países latino-americanos. O
que se observa na conjuntura recente, são ajustes erráticos tanto no plano das contas
internas – um ajuste fiscal feito de mais impostos e encargos – quanto no plano das
89
transações correntes, infelizmente na direção de mais protecionismo. Os investimentos
diretos, que já colocaram o Brasil nos primeiros lugares do ranking nos últimos anos,
podem se retrair progressivamente, à medida em que se confirme a retração – a palavra
correta é recessão – da economia interna e a morosidade na região.
O mais relevante, porém, deriva de uma inacreditável característica da
psicologia nacional, traço ainda mais reforçado depois de uma década e meia de
dominação de uma vertente do keynesianismo rústico que vigora ainda na América
Latina, a que transforma medidas anticíclicas típicas de conjunturas emergenciais em
políticas de desenvolvimento: os brasileiros, em geral, aderem a um tipo de
nacionalismo canhestro que os faz ser receptivos ao capital estrangeiro, mas
profundamente adversos ao capitalista estrangeiro, o que parece ser esquizofrênico. É
esse tipo de crença que sustenta medidas de preferência nacional, leis de conteúdo local,
exclusões reiteradas a investimentos estrangeiros em determinados setores e históricos
controles de capitais e de transações cambiais. Não há perspectiva, na atual conjuntura,
que esse tipo de mentalidade possa reverter no futuro próximo.
O Brasil tem condições de se projetar de maneira mais afirmada nos cenários
econômicos e diplomáticos mundiais? Talvez, mas muito depende, de um lado, de
reformas internas que possa ser capazes de apoiar um processo dinâmico e sustentado
de crescimento e de participação nos intercâmbios globais e, do outro, do surgimento de
lideranças políticas que se alcem à condição de estadistas responsáveis, uma hipótese
aparentemente distante na presente conjuntura. Em conclusão: a despeito de sua
presença relativamente importante entre as grandes economias do mundo, o Brasil exibe
uma capacidade limitada de influenciar o cenário internacional, seja pela via econômica,
seja pela via diplomática. Sem ser irrelevante, o Brasil carece de maiores alavancas
materiais ou políticas para construir uma força própria no plano global.
90
12. Como e qual seria uma (ou a) agenda ideal para o Brasil?
91
população brasileira, mas tem muito a ver com a situação falimentar da ilha-prisão dos
irmãos Castro, que hoje depende de aliados obsequiosos por mantê-la à tona.
O plano multilateral apresenta inúmeras facetas, mas as principais são as de
caráter comercial e de tipo financeiro. Neste último capítulo, não existem propriamente
negociações a serem feitas, uma vez que o Brasil – depois de enfrentar historicamente
crises de insolvência externa, e até uma ou duas moratórias – parece ter aprendido a
respeitar os fundamentos de seus equilíbrios nas transações correntes e na balança de
capitais; a despeito de déficits constantes nas transações externas, estas têm sido
compensadas por investimentos diretos e, em situações normais, por saldos
superavitários na frente comercial, o que contudo foi revertido nos últimos anos. A
origem dos déficits atuais não é, entretanto, alguma deterioração do cenário mundial –
mesmo se alguns keynesianos de botequim vivem alegando um ambiente de crise
externa para justificar sua péssima condução da política econômica nacional – e sim a
perda lamentável de competitividade por parte das empresas brasileiras vinculadas à
exportação. Elas não são tão penalizadas pelo câmbio – uma variável que pode ser
contornada por contratos de hedge – quanto pela absurda carga fiscal que é imposta às
empresas brasileiras por um Estado extrator e extorsivo.
Esta questão nos remete ao plano comercial multilateral, hoje totalmente
paralisado pela incapacidade dos principais atores em dar continuidade à Rodada Doha,
nas premissas otimistas em que foi lançada, no início da década passada. Mesmo que,
por um milagre, se lograsse concluir essa rodada de negociações com compromissos
mais ou menos moderados de liberalização recíproca de mercados e com padrões ainda
mais moderados na regulação do acesso às demais áreas – serviços, investimentos,
propriedade intelectual, etc. – o Brasil talvez não esteja preparado para desfrutar com
maior vigor dessa abertura, tendo em vista sua já mencionada perda de competitividade
por razões de ordem inteiramente doméstica. Trata-se de um dever de casa que ninguém
e nenhuma negociação multilateral pode cumprir em seu lugar, ou seja, no do governo.
Mesmo na área em que ele é notoriamente competitivo, que é a grande
agricultura de exportação – ou seja, commodities agrícolas e carnes, mas podendo
evoluir para alimentos processados – os produtores e exportadores brasileiros são
penalizados por deficiências ainda mais notórias, a jusante, em sua infraestrutura, como
na própria cadeia produtiva, a montante, portanto, em função da tributação generalizada
aplicada a praticamente todos os insumos do setor. Como se sabe, a alta produtividade
na produção de grãos (mas em outras linhas produtivas também) é neutralizada pelos
92
altos custos, e perdas, no transporte, por uma infraestrutura portuária lamentável, ou por
diversos outros aspectos regulatórios e impositivos que fazem com que o produto
brasileiro, mais barato do que o dos concorrentes diretos na porteira da fazenda, chegue
ao porto de embarque ou de destino bem mais caro em vista dessas deficiências. Sobre
isso, se agregam as dificuldades do setor em termos de seguro agrícola e as conhecidas
lacunas no rastreamento e prevenção de epizootias e outras endemias típicas da
produção comercial primária, sempre mendigando recursos de um governo que tem uma
nítida inclinação ideológica por invasores de terras e outros pretensos agricultores
familiares (na verdade de subsistência, e sempre assistidos por um ministério espelho ao
da agricultura de exportação, que defende uma agenda totalmente diversa deste último).
De resto, no terreno do comércio internacional, qualquer ganho em termos de
liberalização agrícola teria de ser barganhado contra uma oferta brasileira de redução do
seu próprio protecionismo industrial – sem mencionar a adesão a códigos proprietários
mais elevados – o que parece notoriamente difícil a um governo que seguidamente vem
implementando “políticas industriais” (aparentemente já foram cinco, sucessivamente)
cuja principal característica é a de isolar o Brasil dos circuitos produtivos internacionais.
O exemplo mais notório é a indústria automobilística, que permanece “infante”, e
portanto protegida, desde mais de meio século. Por fim, ainda nesse terreno, os grandes
parceiros parecem ter abandonado de vez qualquer entusiasmo por acordos abrangentes
no âmbito da OMC, preferindo em troca negociar acordos minilateralistas, ou seja,
tratados plurilaterais de livre comércio engajando os “like-minded countries”, que
podem, ou não, situar-se na mesma região geográfica (as distâncias encurtaram, de toda
forma). Dois exemplos disso, são o acordo transatlântico – entre EUA e UE – e o trans-
Pacífico, que reúne um número variado de países da Orla do oceano, inclusive sul-
americanos como Peru e Chile.
O ideal, para o Brasil, e os brasileiros – empresas e trabalhadores – seria que o
Brasil participasse ativamente de todas essas frentes de trabalho de maneira aberta e
receptiva, mas a condição para isso seria uma alteração drástica de quase todas as suas
políticas setoriais, industrial, comercial e de investimentos em infraestrutura, algo que
parece fora do alcance do atual governo. A parte industrial e de infraestrutura compete
inteiramente, e soberanamente, ao Brasil, podendo portanto ser implementada por uma
decisão política de alta inteligência econômica (o que não necessariamente é assegurado
pela coalizão de protecionistas atualmente no poder).
93
Mas a parte comercial não pode, simplesmente, ser sequer considerada sem um
entendimento de princípio, e prévio, com os demais membros do Mercosul, essa frágil
construção integracionista que, nos últimos doze anos, serviu mais para exercícios de
retórica grandiloquente, ou para discursos vazios, do que para, pelo menos, voltar a dar
importância aos objetivos básicos e fundamentais desse bloco. Sem isso, ficam carentes
de conteúdo tanto as negociações multilaterais, quanto as regionais (de que é exemplo o
longuíssimo processo negociador com a UE, que não parece ter pressa de concluí-lo,
depois que os três grandes membros do Mercosul implodiram, de modo gratuito e
voluntário, o projeto americano de uma área de livre comércio hemisférica).
No Mercosul, em lugar da liberalização recíproca – ou seja, a zona de livre
comércio – e da coordenação de políticas macroeconômicas – desejável para o objetivo
da união aduaneira –, o que se teve foi uma variedade não essencial de iniciativas
secundárias, sobretudo em areas tidas por “sociais”, que não atenderam em nada aos
requisitos da integração econômica, que permanece, ou deveria ser, o foco dos tratados
originais. O bloco foi inclusive distorcido de sua arquitetura contratual – que requer a
plena aceitação da Tarifa Externa Comum e das demais regras de política comercial –
primeira pela adesão política, e altamente questionável, da Venezuela (que não cumpriu
praticamente nenhum dos requisitos inerentes à união aduaneira), e logo em seguida
pelas adesões também duvidosas de Bolívia e Equador, que tampouco parecem
propensos a aceitar a estrutura regulatória comercial do Mercosul. Não é preciso
mencionar, por outro lado, todas as infrações cometidas pela Argentina contra o espírito
e a letra do Tratado de Assunção, ao impor salvaguardas e diversos outros tipos de
barreiras contra produtos dos demais países membros, numa derrogação unilateral – e
também contrária às próprias regras do Gatt – dos compromissos solenemente firmados.
O ideal, neste caso, seria que o Brasil liderasse um esforço – a ser concluído
por nova conferência diplomática – de revisão completa do Mercosul, com vistas a
determinar se ele deve continuar com seu atual perfil de união aduaneira incompleta –
ou em “implementação”, como pudicamente se proclama – ou se cabe fazê-lo retroceder
a uma simples zona de livre comércio, concedendo, assim, liberdade, a cada um dos
associados, para negociar acordos comerciais com quem lhes aprouvesse. O Chile, em
lugar de ingressar no Mercosul, e ficar amarrado a uma institucionalidade precária,
preferiu permanecer isento de qualquer compromisso mais “íntimo” com qualquer bloco
– como aliás também é a prática dos Estados Unidos – o que lhe habilita a negociar
esquemas de liberalização com ampla gama de parceiros: o país andino possui acordos
94
de livre comércio com algo em torno de 80%, ou mais, do PIB mundial, assegurando
ampla penetração de seus bens nos maiores mercados do mundo, compreendendo todo o
hemisfério, a UE e boa parte da Ásia e Oceania).
Esse ideal, no entanto, parece difícil de ser concretizado nas atuais condições
políticas e econômicas do Brasil, pois implicaria em séria revisão de toda a sua política
comercial, industrial e em vasta gama de disposições setoriais regulatórias. Ademais,
seria indispensável contar com lideranças políticas com visão de estadista, armadas de
estudos econômicos da mais alta competência técnica, para poder decidir, em total
conhecimento de causa, quais políticas de desenvolvimento e de relacionamento nessas
diversas dimensões seria importante impulsionar na agenda econômica externa. O Brasil
precisaria estar disposto a modificar aspectos importantes de seu sistema tributário, de
modo a tornar suas empresas mais competitivas, assim como dispor-se a ficar sozinho,
no Mercosul, por exemplo, quando decisões de estrita racionalidade econômica e de seu
exclusivo interesse nacional assim o determinar.
Da mesma forma, mesmo acordos bilaterais de maior escopo econômico –
como podem ser as áreas de tecnologias sensíveis: nuclear, espacial, militar – podem
requerer uma mudança fundamental de postura, o que esteve longe de acontecer nos
últimos doze anos (ou mesmo antes). O Brasil recusou, por exemplo, todos os acordos
de proteção de investimentos estrangeiros, em nome de um vetusto, arcaico, ridículo
soberanismo jurídico, que tende a negar soluções arbitrais independentes nessa área, ou
que se opõe ao princípio mesmo das controvérsias investidor-Estado a respeito de um
investimento qualquer, como se este devesse sempre confrontar interesses privados e se
opor a normas por ele mesmo estabelecidas para regular a atividade dos empresários
estrangeiros.
Algo semelhante ocorreu com o acordo de salvaguardas tecnológicas com os
Estados Unidos, visando viabilizar o lançamento de satélites com componentes –
próprios ou no foguete de lançamento – resguardados por segredos comerciais ou com
tecnologias sensíveis, em nome, mais uma vez, de um soberanismo tecnológico
totalmente equivocado; isso também acarretou imensas perdas tecnológicas ao país, e
grandes prejuízos comerciais, pois inviabilizou totalmente a exploração comercial da
base de lançamentos de Alcântara. Nessas duas áreas, o ideal seria que o Brasil – ou
uma direção mais esclarecida – revisasse totalmente a postura restritiva que se manteve
inalterada durante mais de uma década, atrasando de fato o país nesses campos.
95
A componente dos investimentos, assim como a dos movimentos de capitais
também comportam aspectos multilaterais, mas a postura do Brasil infelizmente tem
sido, invariavelmente, igualmente restritiva quanto a códigos multilaterais podendo
enquadrar esses fluxos financeiros e cambiais (assim como intangíveis de modo geral).
O Brasil se opôs, no passado, ao Acordo Multilateral de Investimentos, em negociação
(frustrada) na OCDE, bem como sempre se opôs a qualquer regulação multilateral – ou
seja, no âmbito do FMI – no tocante a capitais financeiros, ambos elementos possuindo
aspectos sensíveis, é verdade, para as políticas monetárias, cambiais ou a respeito de
ativos de não residentes. Moeda e finanças constituem os últimos redutos da soberania
estatal, mas é preciso reconhecer que a abertura aos movimentos de capitais, a uma
maior competição no sistema bancário nacional, a colaboração fiscal internacional
(inclusive para prevenir crimes transnacionais, como lavagem de dinheiro e o próprio
terrorismo internacional) fazem parte de um mesmo processo de elevação do grau de
inserção do país na economia mundial, o que levará, em última instância, à plena
conversibilidade do real, um aspecto que beneficiaria amplamente indivíduos e
empresas (mas não necessariamente o Estado, que teria de ater-se a normas mais rígidas
em todas essas áreas).
Em qualquer hipótese, o que está em consideração em todos esses capítulos, é
o aumento das liberdades econômicas dos agentes primários da criação de riquezas, que
são as empresas e os próprios indivíduos, uma evolução não apenas natura, como
absolutamente necessária se o Brasil pretende se alçar ao batalhão de frente das nações
economicamente avançadas e abertas à interdependência global. A recente assinatura de
um acordo marco do Brasil com a OCDE, concluído por decisão do novo ministro da
Fazenda – contrariando, nisso, a antiga orientação anacrônica de dirigentes econômicos
anteriores – é um fato auspicioso, pois significa que o Brasil pode começar a se
enquadrar numa moldura de políticas econômicas sólidas, estáveis, e confiáveis,
deixando para trás a volatilidade implícita nas mudanças bruscas, improvisadas,
setoriais, que costumavam caracterizar os keynesianos de botequim que comandaram a
economia brasileira durante vários anos. A OCDE representa, justamente, um tipo de
racionalidade econômica estrito senso que há muito faltava às políticas públicas –
macro e setoriais – do Brasil, ainda que contrarie todo o arcabouço mental antiquado
dos “economistas” que pontificaram no governo desde a década passada.
Amplas camadas de economistas, e de empresários, já se convenceram de que
o que cria volatilidade no país não são os capitais externos, mas é o caráter errático das
96
políticas econômicas e das medidas regulatórias, que traz insegurança aos investidores
externos, assim como aos próprios domésticos, e torna o ambiente regulatório pouco
transparente e previsível. Uma agenda de abertura e de atratividade aos investimentos,
que possa maximizar as chances do Brasil nas negociações internacionais tem de
começar primeiro pela estabilidade de regras no plano interno, o que esteve longe de
ocorrer nos últimos anos. Em consequência de políticas altamente distorcidas e
extremamente intrusivas na vida das empresas, a acumulação de capital e os ganhos de
produtividade sofreram enorme queda no Brasil, ao mesmo tempo em que se
aprofundaram os desequilíbrios orçamentários internos e os de transações correntes no
plano externo, trazendo o atual quadro de alta inflação, baixo crescimento, paralisia dos
investimentos e perspectivas sombrias de ajuste e de desemprego. Talvez até mais grave
do que as dificuldades materiais do presente seja o atraso mental dos seus dirigentes, a
falta de lideranças políticas esclarecidas que consigam colocar o Brasil em compasso
com o mundo globalizado.
Daí a necessidade de o país adotar uma agenda de modernização em todas as
áreas do terreno econômico, como condição para aproveitar as chances abertas pela
globalização (como fizeram, aliás, desde muito tempo, o Chile, na América Latina, e
diversos países asiáticos da franja do Pacífico). A adoção dessa agenda não depende do
mundo, mas apenas de próprio Brasil ou de suas lideranças políticas e empresariais. Não
se trata de empreendimento fácil, mas ele é absolutamente indispensável para que o país
encontre seu espaço na interdependência global. Reformas são necessárias e elas são
sempre controversas, colocando em confronto interesses diversos, como se vê ainda
agora mesmo em países tão diversos quanto a França, o México, a própria China.
Pode ser que os mecanismos de governança global – ou seja, a agenda dos
organismos econômicos multilaterais, como os de Bretton Woods e a OMC – nos
induzam a isso, mas é muito pouco provável. O mais provável é que ameaças de crises
internas, ou sobressaltos nos planos financeiro e de balanço de pagamentos nos induzam
a correções de rota. Afinal de contas, todas as reformas internas são difíceis e os países
só são levados a mudanças profundas e significativas em seu ordenamento econômico e
social sob a pressão de eventos desafortunados. O Brasil já acumulou todo um pacote de
equívocos sistêmicos (a começar pela sua Constituição) e de erros monumentais de
política econômica (como o distributivismo exacerbado, e demagógico, da atual
“república sindical”) que está simplesmente atrasando nosso desenvolvimento, ou pelo
menos reduzindo as taxas de crescimento econômico. Romper com essas amarras
97
mentais é indispensável para que o país recupere um processo sustentado de expansão
de sua economia, única base possível para o aumento da prosperidade nacional.
Quanto antes melhor...
2814. “O Brasil e a agenda econômica internacional, 3: como e qual seria uma (ou a)
agenda ideal para o Brasil?”, Hartford, 18 abril 2015, 7 p. Continuidade da série, no
seguimento dos trabalhos 2807 e 2808, tratando de uma possível agenda de
reformas internas e de novas posturas externas para fazer o Brasil se inserir na
globalização. Mundorama (29/04/2015; link: http://mundorama.net/2015/04/29/o-
brasil-e-a-agenda-economica-internacional-como-e-qual-seria-uma-ou-a-agenda-
ideal-para-o-brasil-por-paulo-roberto-de-almeida/). Republicado no blog
Diplomatizzando (link: http://diplomatizzando.blogspot.com/2015/04/o-brasil-e-
agenda-economica_29.html). Academia.edu (link:
https://www.academia.edu/12159844/2814_Como_e_qual_seria_uma_ou_a_agend
a_ideal_para_o_Brasil_2015_). Relação de Publicados n. 1176.
98
13. O que o Brasil deveria fazer para maximizar a “sua” agenda?
99
algum “projeto secreto” de países avançados de limitar nossos avanços nessa área, como
acreditam alguns, ou estariam eles “chutando a escada” que poderia nos levar a níveis
mais elevados de desenvolvimento material? O Brasil se sente prejudicado por não
integrar o chamado “inner core”, o círculo restrito de potências que possui poder de
decisão sobre a agenda da maior parte das instituições econômicas mais relevantes do
multilateralismo contemporâneo? Em resumo: quão relevante é a agenda econômica
internacional para os objetivos prioritários de desenvolvimento do Brasil?
101
O governo empreendeu, durante essa fase de desequilíbrios, diversas reformas
importantes nas políticas econômicas, o que preparou o país para uma nova etapa de
crescimento econômico. A começar pela adoção da flutuação cambial e do regime de
metas de inflação, complementada, logo em seguida, pela Lei de Responsabilidade
Fiscal – que deveria impedir os dirigentes políticos de assumirem despesas sem indicar
precisamente as fontes de receitas – e pelo compromisso assumido no orçamento de se
liberar todo ano um superávit fiscal (para o pagamento dos juros da dívida pública),
essas medidas deveriam manter o Brasil no caminho da estabilidade e das políticas
econômicas responsáveis, condição de qualquer processo sustentado de crescimento
econômico. O chamado tripé macroeconômico – flutuação cambial, metas de inflação e
responsabilidade fiscal – foi de certa forma preservado durante a primeira metade da
década do novo milênio, mas importantes reformas estruturais em regimes regulatórios
e na modernização da infraestrutura deixaram de ser empreendidas, em favor de uma
nova política de redistribuição de rendas que ultrapassou em muito as possibilidades de
sua sustentação, por não ter correspondência com o ritmo de crescimento da economia e
os seus níveis, medíocres de produtividade. Em feliz coincidência, o Brasil beneficiou-
se de um crescimento inédito na economia mundial, em especial em países emergentes.
No bojo de uma nova crise financeira internacional, iniciada em 2007 nos
sistemas imobiliário e bancário dos Estados Unidos, e disseminada internacionalmente a
partir de 2008 e 2009, o Brasil reagiu de forma adequada, tanto porque vinha de uma
fase de crescimento satisfatório, puxado pela demanda voraz da China por seus produtos
de exportação: foi uma época em que a tonelada de soja chegou a valer 600 dólares, e a
de minério de ferro quase 200. Depois de uma mini-recessão em 2009, o crescimento
em 2010 registrou uma taxa praticamente “chinesa”: mais de 7%, inclusive com uma
diminuição notável do desemprego. Infelizmente, a nova administração que teve início
em 2011 atuou de forma totalmente irresponsável, como se pretendesse destruir os
fundamentos do tripé econômico, e de certa maneira conseguiu: manipulando câmbio e
juros, expandindo o crédito e aumentando de forma exagerada as despesas – pois que
partindo de um diagnóstico errado de que o crescimento econômico deveria ser puxado
pela demanda e não pelo investimento e pela oferta – e intervindo do modo totalmente
improvisado em diversos setores da indústria, conseguiram produzir mais inflação,
menos crescimento, volta do desemprego, aumento da dívida pública, déficits duplos no
orçamento e nas transações externas, enfim, um desastre econômico completo.
102
Este era o estado lastimável da economia ao início da mesma administração,
reconduzida nas eleições de outubro de 2014, mas fortemente contestada por uma
oposição cívica que não aceita mais as falsas explicações do governo para o atual
quadro de dificuldades de toda sorte. No início do segundo trimestre de 2015, não se
tem certeza quanto à trajetória do governo atual, e do seu partido de sustentação,
envolvidos nos mais clamorosos casos de corrupção jamais vistos na história do país.
O que tudo isso tem a ver com a agenda econômica internacional, é o caso de
se perguntar? Em princípio muito pouco, ou nada, a despeito dos esforços das lideranças
políticas, de forma canhestra, em tentar explicar o péssimo desempenho econômico por
causa de uma alegada “crise internacional”, quando a maior parte dos países já
enveredou novamente pela retomada do crescimento. EUA e UE, as duas economias
avançadas mais atingidas pela crise, apresentam níveis razoáveis de recuperação, e os
emergentes dinâmicos continuam a exibir saudáveis taxas de crescimento econômico.
Cabe examinar, então, o que o Brasil poderia fazer para maximizar a sua agenda, em
face dos atuais desafios que o país enfrenta.
104
Cabe referir, incidentalmente, que o melhor remédio para a competitividade
microeconômica é justamente a abertura à competição, o que recomenda liquidar com
todos os monopólios indevidos – a começar do setor de energia e combustíveis – e com
todos os carteis em determinados serviços coletivos (telefonia e telecomunicações, em
geral, mas também em todos os tipos de transportes). Não é preciso dizer que compras
governamentais limitadas a fornecedores nacionais, beneficiados ainda por um prêmio
abusivo de sobre-preço aceitável (25%, ao que parece) são um convite aberto a práticas
viciadas e sujeitas a corrupção. O nacionalismo pernicioso no setor da construção civil,
mas também vigente em outras áreas (saúde e educação, por exemplo) é um dos casos
mais nefastos de anti-competitividade, além de inerentemente promíscuo e corruptor.
Boa governança: este é o núcleo das reformas estruturais, e que não se limita,
e nem deveria começar pela “metafísica” da reforma política, ainda que os critérios de
representação eleitoral e de presença no parlamento estejam totalmente deformados no
Brasil atual. Dar início a um processo de reforma política pode significar a paralisia de
todas as demais reformas setoriais indispensáveis à estabilidade econômica e aos ganhos
de competitividade de que o Brasil necessita: pode-se limitar o processo ao voto distrital
misto e a cláusulas de barreira para a atividade parlamentar (atualmente, apenas cinco
ou seis partidos ultrapassam o limite de 5% do eleitorado, e se deveria ficar por aí, sem
exceções para os partidos de aluguel ou minúsculos); não é preciso dizer que nada
justifica o financiamento público de partidos ou de campanhas eleitorais, uma vez que
se trata de entidades de direito privado, cabendo aos militantes e apoiadores essa tarefa.
O núcleo da boa governança passa pela reforma do Estado – com uma redução
radical do ogro famélico e suas centenas, ou milhares, de órgãos associados –, por uma
reforma administrativa que reduza e limite severamente a estabilidade do funcionalismo
(e o recurso a diferentes formas de contratação em setores abertos ao mérito individual,
como na educação e na saúde, por exemplo), e por uma urgente reforma previdenciária
que corrija as distorções ainda remanescentes nos tratamentos (inclusive os privilégios
vinculados ao setor público). O Judiciário, extremamente moroso nos processos, precisa
passar por uma reforma nos procedimentos, com vistas a agilizar o seu término, hoje se
estendendo, na média, por até oito anos. A área trabalhista é a que necessita de amplas
reformas, basicamente no sentido do contratualismo, da livre negociação direta e da
solução de pendências por via arbitral; a justiça do trabalho é um órgão antes causador
do que solucionador de conflitos e deveria simplesmente ser extinta.
105
A própria federação é um mito, tendo em vista a concentração de recursos na
União, o que faz surgir “jabuticabas” absurdas como um “ministério das cidades” no
âmbito federal. Esse estado republicano “unitário” cria distorções contínuas no plano da
repartição de recursos e competências, o que obriga deputados a se converterem em
vereadores federais, mendigando financiamento federal para programas paroquiais. A
emenda constitucional que torna impositivo o orçamento unicamente reservado aos
projetos dos parlamentares é um absurdo político de tal monta que por si só explica a
“desgovernança” absoluta a que chegou o Brasil no terreno das práticas federativas:
coexiste a chantagem recíproca do governo federal e dos parlamentares em torno da
negociação orçamentária e da atribuição efetiva desses recursos para fins paroquiais.
106
Inserção na interdependência global: estamos falando aqui, basicamente, de
abertura a investimentos estrangeiros e ao comércio internacional. Trata-se, como nos
demais casos, de uma agenda essencialmente interna, pois que não é preciso esperar
nenhuma rodada multilateral de negociações, no plano internacional ou regional, para
conduzir, por decisão própria, um amplo programa de abertura econômica unilateral e
uma liberalização comercial compatível com os requisitos de upgrade tecnológico, para
melhorar os padrões de competitividade das empresas exportadoras brasileiras. Nem é
preciso esperar por acordos de livre comércio bilaterais – se o Mercosul for reformulado
– ou do bloco para tais objetivos; basta reduzir as barreiras para-tarifárias, e reduzir as
alíquotas da Tarifa Externa Comum (como exceção para baixo ou decisão conjunta)
para que o Brasil se aproxime, idealmente, dos coeficientes de abertura externa vigentes
no resto do mundo (na média, o dobro dos praticados atualmente pelo país).
Tanto a OCDE, quanto os bancos multilaterais, assim como a própria OMC,
possuem o know-how em todas essas matérias comerciais e de investimentos, e bastaria
comparar, por exemplo, nosso exercício periódico de revisão da política comercial no
âmbito da OMC e compará-lo, em todos os critérios, aos dos países melhor situados no
grau de abertura externa. O fato é que o Brasil recuou nos últimos doze anos, tanto em
matéria de protecionismo comercial – junto com a Argentina, no Mercosul, diga-se de
passagem – quanto no terreno dos investimentos estrangeiros, uma vez que o partido no
poder continua recusando até hoje ratificação a mais de uma dúzia de tratados bilaterais
de proteção a investimentos que foram assinados pelo Brasil.
2815. “O Brasil e a agenda econômica internacional, 4: o que o Brasil deveria fazer para
maximizar a “sua” agenda?”, Hartford, 19 abril 2015, 11 p. Continuidade, e fim, da
série de artigos sobre a agenda de reformas internas. Mundorama (06/05/2015; link:
http://mundorama.net/2015/05/06/o-brasil-e-a-agenda-economica-internacional-o-
que-o-brasil-deveria-fazer-para-maximizar-a-sua-agenda-por-paulo-roberto-de-
almeida/). Republicado no blog Diplomatizzando (link:
http://diplomatizzando.blogspot.com/2015/05/o-brasil-e-agenda-economica.html).
Relação de Publicados n. 1177.
110
Terceira Parte
Globalização, Embromação
111
14. A globalização e o direito comercial: uma longa evolução
O direito comercial, em seu sentido estrito, é bem mais recente do que as formas
mais primitivas de comércio entre as comunidades humanas: codificado de modo
sistemático, tal como a conhecemos atualmente, ele pode ser considerado como
historicamente contemporâneo da era das grandes navegações, quando, pela primeira
vez na história da humanidade, o planeta se tornou efetivamente global, a partir da gesta
colombina, em 1492, e do périplo marítimo de Fernão de Magalhães, em 1521. Desde
então, ele vem conhecendo progressos formais e substantivos, impulsionando, no plano
do rule-making, as diversas ondas de prosperidade que tanto beneficiaram as sociedades
da era moderna e contemporânea nos últimos cinco séculos.
Na sua expressão mais antiga, porém, ele pode ser visto como praticamente
simultâneo aos primeiros estabelecimentos estáveis de ocupação humana em um
determinado território, aqueles dotados de instituições estatais permanentes e, portanto,
de regras formais para administrar as relações entre as pessoas e seus ativos materiais. A
despeito do fato de que linhas regulares de comércio já existiam nas primeiras
comunidades humanas de tipo urbano, desde o oitavo milênio antes de Cristo – com
destaque para Çatal Hoyuk, na atual Turquia – a modalidade original de uma lex
mercatoria primitiva está presente numa das 282 leis do Código de Hamurabi,
conhecido por existir no primeiro estado “moderno” no começo do segundo milênio
a.C., na Babilônia. Com efeito, diversos dispositivos desse código regulavam aspectos
113
privados e públicos da atividade humana, entre eles comércio, finanças e propriedade,
influenciando, mais tarde, a redação do direito romano e suas derivações regionais nas
mais diversas comunidades desse vasto império da antiguidade clássica.
A presença do Estado, como regulador das relações entre agentes econômicos,
ou a própria iniciativa dos agentes, entre si, se fazia presente numa das “leis” desse
Código, especialmente a que determinava as obrigações recíprocas entre as partes numa
transação qualquer. Essa lex mercatoria da Mesopotâmia dizia o seguinte: “Se o
mercador conceder, a um agente, milho, lã, óleo, ou qualquer outro tipo de bem com o
qual comerciar, o agente deve registrar o valor [da mercadoria] e retornar [o dinheiro]
ao mercador; o agente deve tomar um recibo selado pelo [valor do] dinheiro que ele
conceder ao mercador”.1 Como se vê, não apenas o direito comercial deita raízes nos
exemplos mais precoces de intercâmbio comercial, mas o próprio intervencionismo
estatal é bem mais antigo do que se imagina, com base nas formas modernas de
mercantilismo e de ativismo econômico estatal, a partir da consolidação da forma atual
do Estado centralizado, nas monarquias absolutas da Europa pós-medieval.
Foi justamente nessa fase de unificação comercial do mundo por meio das
grandes navegações ultramarinas e no alvorecer do mercantilismo enquanto doutrina
oficial de vários estados engajados na expansão imperial que uma espécie de lex
mercatoria universal começa a tomar forma, em padrões relativamente similares aos
atualmente conhecidos. Ela nem sempre foi escrita, sendo bem mais “codificada”
informalmente numa série de práticas reciprocamente aceitas por mercadores nos mais
diversos portos do mundo. Menos de duas décadas depois que Vasco da Gama abriu o
caminho das Índias aos comerciantes portugueses – e, de fato, a todos os demais
concorrentes europeus – um farmacêutico português convertido em negociante e
diplomata informa, chamado Tomé Pires, deixou, em sua Suma Oriental (1512), uma
descrição saborosa do porto de Malaca, no estreito que leva do Índico ao Pacífico, uma
aglomeração de 40 a 50 mil pessoas, mas dividida em 61 “nações” representadas em seu
comércio de transbordo e em cujo porto se faziam negócios em 84 línguas, do Golfo
Pérsico ao conjunto da Ásia. Ele expressava sua admiração pelo exuberante comércio e
1
Citado por Nayan Chanda, Bound Together: How Traders, Preachers, Adventurers, and
Warriors Shaped Globalization (New Haven: Yale University Press, 2007), p. 30 e 339, com
base em R. H. Pfeiffer, “Hammurabi Code: Critical Notes”, American Journal of Semitic
Languages and Literatures (1920): 310-15; “Business in Babylon”, Bulletin of the Business
Historical Society 12 (1938): 25-27. Existe uma edição brasileira desse livro: Sem Fronteira
(Rio de Janeiro: Record, 2011).
114
os altos lucros produzidos pelo intenso intercâmbio de mercadorias entre essas diversas
partes do mundo, traduzindo empiricamente o que pode ser considerado como o início
do direito comercial dos tempos modernos:
Malaca é uma cidade que foi feita para mercadorias, bem mais do que
qualquer outra no mundo; [é] o fim das monções e o começo de outras [os ventos
e as correntes marítimas que aceleravam a navegação entre o Mar Vermelho e as
costas da Índia]. Malaca está cercada e se situa no meio, e as trocas e o comércio
entre as diferentes nações situadas a um milhar de léguas em todas as direções
precisam se dirigir a Malaca... Quem for senhor de Malaca, tem a sua mão na
garganta de Veneza.2
Desde então, o direito comercial abandonou suas formas mais espontâneas, tal
como existentes na península itálica da Idade Média tardia, e passou a ser codificado
num conjunto de regras e princípios que unem, de modo praticamente natural, uma das
mais antigas comunidades globalizadas da civilização humana: a dos comerciantes, que
constituem, segundo Nayan Chanda, junto com os pregadores, os guerreiros e os
aventureiros, os agentes primários mais constantes da globalização.
De fato, pode-se identificar antecedentes do direito comercial em tempos
recuados, entre os fenícios, por exemplo, depois com os romanos e os comerciantes do
Báltico, na alta Idade Média, como os legítimos predecessores dos progressos que
seriam observados a partir dos tempos modernos, sempre vinculados ao comércio
marítimo e às navegações de caráter exploratório e de penetração comercial. A partir de
seus passos iniciais nas cidades florescentes da Europa medieval, ele terá intenso
desenvolvimento nos séculos seguintes, sempre assumindo um caráter transnacional, o
que o torna, efetivamente, um dos pilares da primeira onda de globalização, a que toma
impulso na era moderna, antes mesmo da revolução industrial. Ocorreu, é verdade, uma
distinção entre a sua aplicação pela common law, de tradição britânica, e sua regulação
estatal pelas Ordonnances sur le commerce de terre (e de mer), na época de Luís XIV,
como consagra a tradição dirigista continental, mais especificamente francesa. Depois
dessa legislação da época absolutista, a França napoleônica promulgou, em 1807, seu
Código Comercial, base de inúmeros outros instrumentos em diversos países.
O Brasil não ficou imune a esse movimento, mas foi preciso aguardar quase
meio século para que fosse aprovado o primeiro Código Comercial, em 1850. Essa
2
Citado igualmente por Nayan Chanda, Bound Together, op. cit., com base em Armando
Cortesão (tradutor e editor), The Suma Oriental of Tomé Pires… and the Book of Francisco
Rodrigues (Londres: Hakluyt Society, 1944, p. 286-87), p. 52 e 342.
115
importação do modelo francês de regulação mercantil não se fez sem certo prejuízo do
comércio e das atividades econômicas em geral, já que internalizou igualmente o padrão
dirigista e intervencionista do Estado sobre atividades eminentemente privadas. De fato,
como indica um historiador do caso francês, o Code atribui preeminência às sociedades
pessoais: “La société anonyme, qui est une association de capitaux, est regardée avec
méfiance et doit être autorisée par l´État comme un cas d’exception. Ce régime restrictif
entrave la création des grandes compagnies”.3
É verdade que os legisladores brasileiros aproveitaram não só elementos do
código francês, mas também dos códigos espanhol (1829) e português (1833) para
elaborar um instrumento próprio, mas esse processo não foi linear, pois que durante
certo tempo ainda continuaram a vigorar no Brasil a legislação herdada do período
português, no qual vigiam, em matéria comercial, as Ordenações Filipinas, ou ainda a
Lei da Boa Razão, de 1769, em virtude da qual eram subsidiárias, nas questões
mercantis, as normas legais “das nações cristãs iluminadas e polidas que com elas
estavam resplandecendo na boa, depurada e sã jurisprudência”.4
Instalada em 1832 uma comissão de “pessoas probas e inteligentes” em matéria
de comércio, concluiu-se dois anos depois um projeto elaborado sob a inspiração de que
“um código de comércio deve ser redigido sobre os princípios adotados por todas as
nações comerciantes, em harmonia com os usos e estilos mercantis, que reúnem debaixo
de uma só bandeira os povos do novo e do velho mundo”.5 Após longos debates
parlamentares e uma tramitação delongada nas duas Câmaras, foi finalmente
promulgada, em junho de 1850, a lei nº 556, Código Comercial do Império do Brasil,
com 913 artigos divididos em três partes: do comércio em geral, do comércio marítimo
e das quebras (isto é, das falências); completava-o um título sobre os tribunais de
comércio e sobre a ordem do juízo nas causas comerciais. Ele não fazia em princípio
discriminação contra os não nacionais, colocando obviamente sob sua jurisdição todos
os atos de comércio praticados por estrangeiros residentes no Brasil. O Código não
reconhecia, porém, o ato de comércio isolado, exigindo, como condição de
comercialidade, a intervenção de pelo menos um comerciante, ou seja um agente de
profissão mercantil. A condição de comerciante estava pois reservada, além das
3
Cf. Gabriel de Broglie, Le XIXe Siècle: l’éclat et le déclin de la France (Paris: Perrin, 1995),
p. 175.
4
Cf. João E. Borges, Curso de Direito Comercial Terrestre (Rio de Janeiro: Forense, 1969), p.
35.
5
Idem, p. 37.
116
sociedades mercantis ou por ações, à pessoa física exercendo profissionalmente o
comércio, sem distinção de nacionalidade.
A partir do Código de 1850, qualquer estrangeiro capaz, residente no Brasil,
podia legalmente ser comerciante, assim como as empresas constituídas sob as leis
brasileiras; estas últimas, tendo a maioria ou mesmo a totalidade de seus sócios de
nacionalidade estrangeira, nem por isso deixavam de ser nacionais, se registradas de
acordo com a legislação do Brasil. De fato, os estrangeiros dominavam certos ramos do
comércio de importação de maneira absoluta, como por exemplo os portugueses para os
vinhos e os britânicos nos artigos de vestuário e objetos de metalurgia. O declínio
relativo, depois da guerra do Paraguai, da presença dessa última nacionalidade,
comparativamente a outros comerciantes estrangeiros, como os franceses e alemães, é
explicado como resultante da ligação direta, via cabo submarino, entre a Europa e o
Brasil, o que permitia um contato direto entre os fornecedores europeus e seus clientes
brasileiros. Mesmo entre os comissários de café, atividade que a historiografia
tradicional sempre acreditou ser dominada por brasileiros, a presença estrangeira era
majoritária: de maneira geral, os brasileiros eram a minoria no comércio internacional.
Salvo restrições específicas, decorrentes da legislação ordinária, os comerciantes
de nacionalidade estrangeira se equiparavam aos nacionais. O próprio Código
estabelecia algumas dessas restrições, na sua parte relativa ao comércio marítimo, por
exemplo, que reservava prerrogativas e favores a embarcações brasileiras aquelas que
pertencessem efetivamente aos súditos do Império. A proibição, nesse caso, era
drástica: se alguma embarcação registrada como sendo brasileira pertencesse de fato a
estrangeiro, ela poderia ser apreendida; a navegação de cabotagem, salvo durante um
período, foi em geral reservada a embarcações brasileiras, da mesma forma como
deveriam ser brasileiros e domiciliados no Império os capitães ou mestres de navios.
Esta era, contudo, uma situação relativamente excepcional, pois que, no mais
das vezes, o grosso das atividades econômicas estava aberto à participação de capitais e
de cidadãos estrangeiros, operando em grande medida sem necessidade de autorização
prévia, mediante mero registro na junta comercial. Alguns setores podiam exigir a
concessão da autoridade, como as lavras das minas, os transportes ferroviários ou
navais, a iluminação pública e a instalação de cabos telegráficos, o que implicava
formalmente um ato administrativo, mais raramente a promulgação de uma lei,
atribuindo permissão temporária para o oferecimento de algum serviço ou o
desempenho de alguma atividade.
117
Mais para o final do Império, com o crescimento da presença estrangeira na vida
econômica nacional, alguns setores começaram a expressar reservas quanto à sua
conveniência para o País. Lei aprovada em 1882, que liberou a organização de empresas
de responsabilidade limitada — até essa data, as empresas somente podiam operar
legalmente após consentimento expresso do Conselho de Estado —, exigia em
contrapartida que as empresas estrangeiras ainda conseguissem aprovação específica do
Parlamento para se instalarem.6 De forma geral, o Brasil republicano vai operar uma
nacionalização de grande parte das atividades econômicas – data do início do século XX
a “lei do similar nacional”, de feição claramente protecionista –, tendência que seria
reforçada ainda mais pela Constituição e pelos diversos códigos de exploração de
recursos naturais surgidos a partir da revolução de 1930; a ditadura estado-novista
exacerbaria o protecionismo e o nacionalismo estatizante, características que só seriam
revertidas, praticamente, na última década do século, para novamente emergirem com
força a partir de 2003, com a mudança de maioria política, e sua ideologia econômica,
no Executivo e no Parlamento.
O direito comercial no Brasil aparece e se desenvolve, portanto, não exatamente
como uma emanação da própria sociedade econômica, mas possuindo estreitos vínculos
com a soberania estatal, aspecto sempre cultivado na tradição jurídica brasileira, já que
tivemos de esperar quase o final do século XX para, finalmente, aprovar uma lei de
arbitragem, equiparando esse mecanismo facilitador aos laudos judiciais. De fato, até
parece uma aberração que se tenha tido de aguardar décadas, senão um século inteiro,
para que fosse finalmente incorporada a arbitragem ao ordenamento jurídico brasileiro,
quando esse instituto integra desde muito tempo os procedimentos comerciais típicos
nos países da Custom Law, inclusive quando estão envolvidos agentes nacionais e
estrangeiros. A arbitragem é uma espécie de direito comercial alternativo aplicado pela
própria classe dos comerciantes: ele não se apresenta apenas como um instrumento de
utilidade prática, mas de fato como uma real necessidade, aliás plenamente compatível
com os mecanismos e os processos mais característicos da globalização: rapidez,
flexibilidade, liberdade dada aos próprios agentes de escolherem foro aplicável, base
legal, instrumentos decisórios e os “juízes”, ou árbitros, da disputa.
Dos albores da humanidade, ainda nos tempos de Hamurabi e suas tabletes de
argila, rabiscadas em caracteres cuneiformes, aos nossos tempos, de escrita virtual e de
6
Cf. John Schulz, A crise financeira da abolição: 1875-1901 (São Paulo: Editora da
Universidade de São Paulo, Instituto Fernand Braudel, 1996), p. 16.
118
tabletes digitais, o comércio, de bens físicos ou intangíveis, continuará a se expandir em
ritmo sempre superior ao do próprio crescimento da produção física no mundo. Sua
expressão regulatória, o direito comercial, é consubstancial a esse desenvolvimento e o
conhecimento adequado de suas normas por parte dos agentes diretos do comércio é
essencial agentes primários da globalização. Mas mesmo não o conhecendo a fundo,
todos o praticam, consciente ou inconscientemente: como o personagem de Molière,
que fazia prosa sem saber, somos todos, um pouco, contrafações de Monsieur Jourdan
na era da globalização.
119
15. Fluxos financeiros internacionais: é racional a proposta de taxação
1. O problema e a proposta
Uma grande tribo de economistas profissionais, dedicados a trabalhos aplicados,
de economistas acadêmicos, ou seja, trabalhando sobretudo com pesquisas econômicas
teóricas (alguns deles servindo a governos), assim como de funcionários públicos
nacionais e de tecnocratas de organismos econômicos internacionais, todos eles
envolvidos com a recomendação de políticas públicas na área macroeconômica, têm se
dedicado, nos últimos anos, ao tema da taxação sobre fluxos financeiros. A questão,
muito em voga no imediato seguimento da quebra do padrão de Bretton Woods, no
início dos anos 1970, foi obviamente reavivada recentemente, a partir da crise
financeira surgida nos setores imobiliário e bancário dos EUA em 2007 e rapidamente
disseminada pela economia mundial de 2008 a 2010. Aparentemente a crise ainda não
amainou, com seu possível recrudescimento a partir dos problemas dos PIIGS europeus
e eventuais repercussões em outros continentes, num espectro geográfico a que
tampouco ficaria imune a América Latina.
O tema é sem dúvida alguma importante, e até mesmo crucial para os países
possuindo fortes “indústrias” financeiras, mas vem sendo considerado com alguma dose
de maniqueísmo, colocando de um lado os partidários teóricos da taxação e, de outro,
120
seus opositores práticos. Seria útil, no entanto, que o questionamento dos conceitos
associados à proposta da taxação, bem como o exame das medidas de implementação
prática dessa ideia fossem feitos com base em fortes evidências econômicas, de maneira
a evitar um experimento danoso que corresponderia mais ao preconceito contra os
“capitais financeiros” do que ao bom senso econômico.
Existe uma pressuposição implícita – ou até explícita – à ideia da taxação que é
a de que a contenção nacional ou multilateral dos fluxos puramente financeiros poderia
evitar a repetição das crises a que o capitalismo assiste de forma recorrente. A suposição
está claramente associada ao pensamento econômico keynesiano, e a seus seguidores
acadêmicos atuais, fortemente representados em alguns governos. Não se deve
tampouco ignorar o fato de que mesmo governos normalmente associados ao
pensamento econômico liberal tem recorrido a expedientes de tipo keynesiano na
tentativa de superar a atual crise econômica do setor.
Mas o raciocínio inverso também é válido: se partirmos do pressuposto que
qualquer carga adicional sobre os fatores de produção – trabalho, capital, recursos
naturais – distorce seus valores de mercado, e portanto suas condições de utilização,
deveríamos ser pelo menos céticos quanto às “bondades” da taxação, de qualquer
taxação sobre fatores de produção (governos racionais escolhem, em geral, taxar o
consumo ou a renda, e também o patrimônio, mas este já um efeito da renda). A
economia corrente, pelo menos aquela que se aprende nas boas faculdades de economia,
começa pela teoria dos preços, que nada mais é do que a microeconomia aplicada, ou
seja, utilização de fatores de produção em condições alternativas de custo-oportunidade.
Se um dos fatores vem gravado por um elemento extra-econômico – e os impostos são
uma decisão fundamentalmente política, não uma realidade decorrente da utilização
desse fator em condições normais de mercado – já se tem uma distorção da utilização
desse fator por critérios que não têm mais a ver com a raridade ou escassez relativa
desse fator. Esse é o principal elemento em qualquer cálculo econômico.
Um Grupo Internacional de Peritos – de onze países, entre os quais Brasil, Chile,
Espanha, Alemanha, Grã-Bretanha e Japão, numa Força-Tarefa coordenada pela França
– elaborou estudos e recomendações sobre a viabilidade técnica e política da taxação
dos fluxos financeiros. A França e o Brasil esperavam que as recomendações do Grupo
de Peritos fossem acolhidas por ocasião da reunião do G20 financeiro, realizada em
Busan (na Coréia do Sul), em 5 de maio de 2010, mas esse foro intergovernamental
121
acaba de rejeitar a proposta, para grande satisfação dos banqueiros e especuladores dos
mercados financeiros.
7
Cf. Charles Kindleberger, Manias, panics, and crashes: a history of financial crises (New
York: Basic Books, 1978).
8
Ver Kenneth Rogoff e Carmen M. Reinhart: This Time is Different: Eight Centuries of
Financial Folly (Princeton: Princeton University Press, 2009).
9
Cf. Liaquat Ahamed, Lords of Finance: 1929, the Great Depression, and the Bankers Who
Broke the World (Londres: Windmill, 2010).
10
Cf. William Easterly, The White Man’s Burden: Why the West’s Efforts to Aid the Rest Have
Done So Much Ill and So Little Good (New York: Penguin Books, 2007).
122
antiglobalizadores, desde muito tempo engajados em ações mais ofensivas, sob o
estímulo inicial de militantes associados ao Le Monde Diplomatique (Bernard Cassen,
Ignácio Ramonet). Foram esses franceses que criaram a Attac, que tem esse sugestivo
nome como acrônimo de Association pour la Tobin Tax et en Appui aux Citoyens.
Curioso que o próprio economista James Tobin, quem primeiro propôs esse tipo de
taxação sobre transações cambiais, negou, depois, qualquer viabilidade a essa ideia e
recusou, expressamente, qualquer vinculação pessoal com as atividades dos
antiglobalizadores, ou altermundialistas, como eles preferem ser chamados. Tobin
provavelmente julgou que, nas novas condições de integração financeira ampliada, a
medida carecia de eficácia econômica ou qualquer sentido prático. Vários outros
economistas pertencentes ao chamado mainstream economics tendem a concordar com
sua posição, por considerar que os governos já liberalizaram amplamente os
movimentos de capitais, tornando assim inócua uma medida que poderia ser facilmente
contornada por mercados não regulados (e sempre os há).
123
Vejamos a questão por um outro ângulo. Desde os albores da humanidade, a
divisão do trabalho – sexual, social e crescentemente especializada – tem sido um dos
fatores impulsionadores do crescimento econômico e da produtividade, sendo que a
primeira pode eventualmente ocorrer sem a segunda, mas a segunda é feita
expressamente para permitir maior crescimento econômico, maior eficiência produtiva e
uso mais racional dos fatores de produção. Pois bem, o capital é, junto com o trabalho,
um dos mais importantes fatores de produção, existindo sob diversas formas, e não
apenas como liquidez financeira. Aliás, a conjunção de ambos, sob a forma de
conhecimento (necessariamente embutido em pessoas, ou na memória coletiva da
sociedade), é também um fator de produção que vários economistas distinguem dos
tradicionais. A terra é sinônimo de recursos naturais, e a ciência econômica vem
lutando, ainda, para incorporar a degradação ambiental nos cálculos econômicos da
nova economia.
Com a exceção (certamente não absoluta) dos recursos naturais, a circulação dos
fatores produtivos é um dos melhores expedientes para melhorar a sua alocação
segundo princípios de eficiência e custo-oportunidade, ou seja, sua remuneração em
função da escassez relativa. Enfim, tudo isso é um beabá da economia, normalmente
ensinado nos cursos de Economics 101 e 301 nas faculdades americanas, ou nos
semestres de introdução à economia nas faculdades brasileiras. Se o pressuposto é
verdade, qualquer taxação sobre o fator em questão incidirá negativamente sobre sua
eficiência alocativa, já que alterando as condições sob as quais aquele fator viria a se
deslocar entre os sistemas econômicos, diminuindo, portanto, os retornos esperados.
Países que carecem de capital, e que necessitam importá-lo, não têm nenhum
interesse em taxá-lo, pois o único efeito da medida é o de aumentar o seu custo para os
usuários (empresários, consumidores, governo, enfim, agentes econômicos em geral).
Autoridades econômicas podem ter interesse em modular o afluxo de capital em função
do meio circulante (e seus efeitos inflacionários), o que pode ser obtido por taxação
temporária ou outros mecanismos de esterilização. Mas, independentemente dos efeitos
eventualmente ou potencialmente desestabilizadores dos fluxos de capitais, o princípio
geral que deveria prevalecer seria o de que maior fluxo de capitais, sem restrições de
qualquer espécie, é mais benéfico do que negativo do ponto de vista da estrita
racionalidade econômica. Trata-se de uma realidade tão evidente que ela merece poucas
comprovações empíricas para sustentar-se materialmente.
124
Tributar o trabalho ou tributar o capital torna qualquer sistema econômico
menos eficiente, não mais eficiente, e isso vale para qualquer época e qualquer lugar.
Empiricamente, sistemas econômicos nacionais que apresentam menor tributação sobre
esses dois fatores costumam “entregar” maiores taxas de crescimento, que outros que
taxam pesadamente esses dois fatores. Existem dezenas de estudos a respeito, assim
como existem abundantes dados estatísticos (da OCDE, em primeiro lugar) que
comprovam essa verdade elementar. Por que, então, defender a taxação dos fluxos de
capitais? Vamos tentar compreender as razões dos propositores.
128
16. Fórum Econômico e Fórum Social: dois mundos contraditórios
136
A rigor, ambas as tribos já fazem parte da paisagem da globalização, com seus
rituais consagrados e seus estilos respectivos de promover encontros, convescotes
requintados no primeiro caso, piqueniques rústicos no segundo. Não se espera que
ofereçam, por isso mesmo, soluções inovadoras aos problemas do mundo atual. Os
capitalistas porque parecem estar perdendo seus “espíritos animais” e domando aquela
ganância por lucros em favor de “ações socialmente responsáveis” – que são um
travestimento das únicas atividades que deveriam empreender vigorosamente, que são:
inovar, vender e ganhar dinheiro – e os antiglobalizadores porque não dispõem, de
nenhum modo, de estatura intelectual para apresentar propostas concretas a problemas
concretos: eles ficam no seu mundo de palavras vazias, de discursos erráticos, de
soluções utópicas, sem qualquer aplicabilidade ao mundo real.
O mundo vai ter de esperar mais um pouco: talvez um recesso da onda de
“politicamente correto” de um lado e um cansaço dos slogans repetitivos de outro.
Quando isso vai ocorrer, eu não sei; só sei que os espetáculos anuais de Davos e dos
encontros do FSM começam a ser aborrecidamente recorrentes, como esses produtos
pasteurizados que já saíram do gosto popular. Um outro Davos é possível, um outro
FSM é possível: ninguém tem nada a perder inovando em cada uma das frentes, só tem
um mundo novo a ganhar.
137
17. Fórum Social Mundial: uma década de embromação
Mesa 2: Sustentabilidade
FSM: O modelo atual de desenvolvimento é intrinsecamente insustentável, posto
que apoiado no lucro irrefreável e na cobiça exagerada, típicos do capitalismo liberal; a
sociedade tem de mudar os padrões de consumo, reduzir o uso de energia, reciclar tudo
142
o que puder sê-lo e adotar um novo estilo de vida, menos baseado em bens individuais e
mais apoiado sobre bens coletivos (e não apenas transportes). Governos e organismos
devem criar esses novos padrões e determinar seu acatamento em benefício de todos.
PRA: O que é insustentável, no plano da lógica formal e da coerência com as
realidades da economia, são as idéias dos conservacionistas, ‘sustentabilistas’ e outros
terroristas do consumo corrente, como se os equilíbrios dinâmicos da economia de
mercado não fossem capazes de adaptar os padrões produtivos e de consumo sempre
quando os estímulos corretos – que são aqueles que refletem o real valor dos bens
escassos, não a imposição de normas arbitrárias – estiverem funcionando naturalmente;
utopias anti-consumistas não são apenas intrinsecamente autoritárias e ineficazes, mas
também contrárias à racionalidade estrito senso das regras microeconômicas.
Mesa 4: Bem-Viver
FSM: O outro mundo possível que propomos tende a valorizar mais o ser do que
o ter, a vida em equilíbrio com a natureza, em lugar da devastação dos recursos em
nome do consumo desenfreado, como na atual sociedade de mercados livres; relações
humanas são mais importantes do que as contas bancárias ou o cartão de crédito; o bem-
estar resulta de uma vida mais simples, ajustada aos recursos disponíveis, o que está em
contradição direta com a economia capitalista, com sua ênfase irracional no
crescimento.
143
PRA: A ingenuidade de certos promotores da vida simples só encontra paralelo
na inconsistência de seu raciocínio econômico: uma sociedade sem crescimento, sem
acumulação, é uma sociedade estagnada, de baixa capacidade de inovação e, portanto,
incapaz de buscar novas soluções para velhos problemas, não apenas nos terrenos da
saúde e da educação, mas simplesmente para manter os padrões de vida existentes e
acomodar as demandas legítimas de milhões de pessoas mundo afora que aspiram, sem
que se lhes possa negar, uma vida mais confortável, ou simplesmente isenta das atuais
restrições a um nível mínimo de bem-estar.
146
antecipadamente nos parágrafos precedentes (não, não vou cobrar copyright por isso;
eles podem usar sem problemas).
Ao fim e ao cabo, os antiglobalizadores precisam continuar a acreditar em certas
utopias, mesmo descoloridas pelo tempo, sem as quais elas não saberiam viver. Eles
tem todo o direito de fazê-lo, e de mobilizar suas tropas de estudantes idealistas e de
órfãos do socialismo (estes, um pouco menos idealistas), em torno de suas causas, por
mais ingênuas que estas podem parecer. Afinal de contas, nas sociedades democráticas,
ninguém é impedido de lutar por qualquer tipo de ideal, desde que pacificamente e
atendendo certas regras mínimas de convivência democrática. Seja dito en passant, que
o assédio, a censura e eventuais desencontros com órgãos de ‘segurança pública’, a
propósito de ideais e objetivos não exatamente em conformidade com o que pensam
certos caudilhos no poder só ocorrem em alguns países que provavelmente receberão
pleno apoio dos participantes deste encontro de antiglobalizadores; e esta não será a
menor das contradições desse encontro que deveria se desenrolar sob as bandeiras da
liberdade de pensamento e de opinião.
De nossa parte, a única tarefa a que nos propusemos ao iniciar este pequeno
trabalho provocador era a de examinar com seriedade as teses que defendem esses
bizarros personagens da globalização – filhos ingratos da modernidade global – e, de
forma totalmente graciosa, antecipar as conclusões a que eles provavelmente chegarão,
sempre em torno das mesmas idéias que eles insistem em defender, contra as melhores
evidencias do mundo real.
Quanto à minha própria conclusão, se me permitem uma opinião final, que
expresso em toda honestidade intelectual, seria esta: o mundo ideal do
altermundialismo, aquele que vem sendo projetado há dez anos pelos antiglobalizadores
(mas eles nunca conseguem definir qual seria, exatamente, sua arquitetura), seria pior,
bem pior do que o realmente existente neste nosso planeta globalizado. As propostas
vagas dos antiglobalizadores, em sua maior parte inexequíveis, não resolveriam nenhum
dos problemas deste nosso mundo e, provavelmente, levariam a soluções menos
eficientes, talvez piores, do que aqueles a que estamos acostumados no mundo, tal como
o conhecemos de fato.
Sorry folks, não costumo fazer concessões a vendedores de ilusões...
147
2104. Fórum Social Mundial 2010, uma década de embromação: antecipando as
conclusões e desvendando os equívocos, Brasília, 20 janeiro 2010, 10 p. Mais uma
vez, provocando o altermundialistas do FSM. Publicado em Mundorama (link:
http://mundorama.net/2010/01/20/forum-social-mundial-2010-uma-decada-de-
embromacao-antecipando-as-conclusoes-e-desvendando-os-equivocos-por-paulo-
roberto-de-almeida/). Republicado em Via Política (25.01.2010). Relação de
Publicados n. 948.
148
18. Triste Fim de Policarpo Social Mundial
A maior parte das propostas pode ser incluída na categoria de “inócuas”, das
quais cito apenas algumas, justamente pela absoluta inconsequência dessas sugestões.
Sugeriu-se, por exemplo, a “formação de uma rede colaborativa de movimentos sociais
para estimular a troca de experiência e permitir organizações que trabalham pela mesma
causa, em diferentes locais, se articularem em torno de uma determinada luta”. Parece
incrível essa sugestão: se não é isso que as organizações e movimentos sociais estavam
fazendo nesses dez anos, onde eles estiveram então?: jogando bridge?
Um outro gênio da raça propôs que se adotasse uma “metodologia que inclua
nos painéis, além de intelectuais, pessoas que estão vivendo os problemas ou as
soluções apresentadas”. Inteligente essa, mas pode-se perguntar por que eles confiam
tanto nos seus “inteliquituais”, as pessoas menos propensas, justamente, a falar e a ouvir
150
“pessoas comuns”. Não faltou, tampouco, quem recomendasse que se incluísse nos
debates do Fórum uma “variedade maior de profissionais, como os de tecnologia”.
Incrível mas verdadeiro: como no caso da sugestão anterior, os antiglobalizadores já não
sabem o que decidir, se não se cercarem de pessoas comuns e de tecnólogos. Bem,
desejo sorte a eles: antes tarde do que nunca. A impressão que se tem, contudo, é a de
que os antiglobalizadores não tem a mínima ideia do que pensar (se é verdade que eles
já conseguiram chegar a essa conclusão).
152
Um outro espírito inquieto reconheceu que as “discussões e o próprio Fórum
foram muito fragmentados”; um segundo afirmou que, no Fórum, “continua havendo
uma hierarquização de lutas e visões”; um terceiro, muito sincero, confessou ainda que
estavam saindo dali “sem uma agenda política clara”, o que eu só posso lamentar. Eu
estava justamente esperando que eles emergissem de Porto Alegre com uma agenda
política clara, para eu poder criticar, e agora fico sem nenhum insumo para meus
escritos provocadores. Não é justo! Quero meu dinheiro de volta!
Essa falta de definições mais precisas sobre o outro mundo possível deixa
confusos os estudantes universitários, que, com perdão da expressão, são a principal
massa de manobra dos velhacos coordenadores do FSM, aqueles franceses da ATTAC e
seus imitadores tupiniquins (não confundir com os tupis-guaranis do major Quaresma;
ele não gostaria). Um líder do movimento estudantil – não está dito que se trata de um
desses assalariados do PCdoB, com 32 anos – questionou o conteúdo das discussões:
“Fiquei preocupado porque em todas as atividades que eu participei era recorrente a
pergunta sobre qual caminho devemos seguir. Via de regra, eu desconfio de quem tem
muita certeza e de quem diz que sabe como será o socialismo de um século que
começou agora”, disse ele. Estou com ele; eu também desconfio, sobretudo porque nem
o coronel petrolífero conseguiu explicar direitinho como funcionaria (ou não) o seu
socialismo, que aparentemente está fazendo água.
O mesmo estudante discordou da necessidade de um consenso apontada por
vários debatedores como o caminho obrigatório para construção do socialismo do
século 21: “Uma agenda consensual é impossível. Falar que a gente é a favor da
democracia e contra o aquecimento global não nos diferencia de ninguém”, avaliou.
Para ele, seria preciso “detalhar essas questões e radicalizar as discussões”. Pois bem,
nisso eu acho que ele está redondamente enganado: eles não são, justamente, a favor da
democracia, pois do contrário estariam se solidarizando com seus colegas venezuelanos
que, naquele mesmo momento, estavam protestando nas ruas a favor da democracia e da
liberdade de expressão. Os altermundialistas, os antiglobalizadores e todos os demais
representantes daquela fauna variada reunida em Porto Alegre, velhos ou jovens, se
diferenciaram justamente de muitos outros estudantes ao redor do mundo pela sua total
falta de sensibilidade com respeito à tragédia autoritária em curso na fazenda petrolífera
que passa por um experimento de “socialismo do século 21”. Eles não se deram conta,
ainda, que sob a aparente roupagem progressista, esquerdista, anti-imperialista ou
153
socialista, sob a qual se esconde o ditador de opereta, encontra-se, na verdade, um
discípulo de Mussolini, um fascista da mais pura gema.
Os jovens idealistas, que ainda não tiveram tempo de ler bons livros a esse
respeito, talvez não saibam que a história esteja agora se repetindo como farsa. Os mais
velhos, que sabem identificar a natureza do fascismo, mas que preferem ficar calados,
por conveniência política ou por oportunismo econômico, são desonestos
intelectualmente, e só merecem um qualificativo: são velhacos consumados...
Pois bem, meu último coup pervers foi um post sobre o inacreditável Fórum
Social Mundial. Digo inacreditável, pois que nem mesmo seus promotores desonestos
154
acreditam de fato nas bobagens que eles dizem (se o fizessem, além de desonestos,
seriam ingênuos, o que talvez seja muito pior). Eles apenas vivem daquilo, de
preferência sem trabalhar, com dinheiro público, ou melhor, com o meu, o seu, o nosso
dinheiro. Como eu tenho alergia a burrice, mas ojeriza absoluta à desonestidade
intelectual (se a palavra se aplica), eu não deixo passar uma oportunidade para cobrar
um pouco, só um pouco, de coerência nas ideias (if any), como se isso fosse possível
(mas, não custa cobrar, e eles deveriam pelo menos tentar).
Meu último post no Mundorama foi este aqui:
Triste Fim de Policarpo Social Mundial, por Paulo Roberto de Almeida
(http://mundorama.net/2010/02/02/triste-fim-de-policarpo-social-mundial-por-
paulo-roberto-de-almeida/; 2 de fevereiro de 2010)
Pois eu escrevo justamente para esses jovens idealistas que querem salvar o
mundo dele mesmo, ou melhor, salvá-lo do capitalismo globalizador (ou vice-versa),
mas que ainda leram pouco, estudaram menos ainda, e aprenderam só um tiquinho (e,
no que depender de certos professores, vão aprender menos ainda, no que lhes resta de
diversão universitária).
Como eu sou uma pessoa que aprendeu nos livros ou com pessoas mais espertas,
considero ser assim meu dever, digamos, espiritual, transmitir um pouco do que aprendi
a esses jovens sedentos de sabedoria globalizante, mas que acabam encontrando apenas
essas fontes barrentas da pilantragem universitária e das imposturas intelectuais desses
velhacos da antiglobalização.
Que posso fazer? Tenho essa vocação didática voluntária – e já vou avisando
que não é dela que retiro meu sustento, nem faço desse hobby minha ocupação principal
– e por isso fico assim de noite escrevendo para esses moços – como diria o Lupicínio
156
Rodrigues – que não sabem o que eu sei. Não por qualquer virtude extraordinária, ou
inteligência excepcional, longe disso. Eu sou apenas um gajo esforçado, que lê muito,
que pensa muito sobre o que leu, observou e retirou de sua experiência de vida, e que
coloca essas reflexões à disposição dos mais jovens, posto que eu também já fui jovem
e tive professores honestos e outros desonestos (talvez involuntariamente, concedâmo-
lhes essa dúvida).
Ser cético é um dever, mas deve-se sempre cultivar um ceticismo sadio, ou seja,
opor ideias melhores, e mais coerentes, a ideias más, que são estas que não se
conformam à realidade empírico, que não seguem os mínimos preceitos da lógica
formal, enfim, que ficam no slogan vazio em lugar de ir para a pesquisa e confrontar os
números. Ou seja, exatamente essas que estão no centro (e nas bordas também) do FSM.
Eu, na verdade, estou pouco preocupado com os velhacos do FSM, meu objeto
próprio são os jovens. Como observo com certa preocupação a marcha da
mediocrização na universidade brasileira, e como constato que os jovens que me
escrevem cada vez escrevem mais mal, sem uma exposição coerente das ideias, sem se
fazer entender direito, eu me sinto, como dizer?, compelido a escrever estas bobagens
que escrevo noite adentro, para ver se evito um pouco da mediocrização em curso e
contribuo, minimamente que seja, com a tarefa da elevação intelectual de jovens como
esse que me escreve me acusando de apologista do capitalismo.
Acho que ele não encontrou argumentos para me rebater, e aí foi logo sacando o
capitalismo e o neoliberalismo. Puxa vida, está ficando aborrecido debater assim...
157
2115. “Cui prodest? (Ou, para quem escrevo?)”, Brasília, 17 fevereiro 2010, 3 p.
Comentários a meus críticos a propósito do artigo sobre “Triste Fim de Policarpo
Social Mundial”. Postado, sob o titulo “Estudantes, estudai! (acho que é isso)”, no
blog Diplomatizzando (link: http://diplomatizzando.blogspot.com/2010/02/1681-
estudantes-estudai-acho-que-e-isso.html) e como comentário no blog Mundorama
(http://mundorama.net/2010/02/02/triste-fim-de-policarpo-social-mundial-por-
paulo-roberto-de-almeida/).
158
19. A falência da assistência oficial ao desenvolvimento
159
unanimidade dos Estados no sentido de seu tratamento multilateral. Os dois objetivos
prioritários da ONU são a cooperação entre os Estados para a preservação da paz e da
segurança internacional e para promover o desenvolvimento dos povos dos países
membros. Obviamente, como não se pode contornar a questão central do poder – ou
seja, quem manda e quem obedece –, a ONU (como, antes dela, a Liga das Nações) não
poderia dar um encaminhamento satisfatório ao primeiro conjunto de objetivos sem
fixar mecanismos não igualitários de resolução de disputas, hoje consolidados no seu
Conselho de Segurança (não muito diferente do sistema oligárquico da Liga); aí não se
trata tanto de cooperação, mas de coerção, o que, também, é por vezes necessário e, em
certas circunstâncias, até incontornável (como quando certos Estados “vilões” ameaçam
a paz e a segurança internacionais, por exemplo).
Descontados, porém, os poucos episódios de coerção multilateral – ou seja, as
operações de peace keeping (muitas) ou de peace making (pouquíssimas) da ONU – a
maior parte da agenda onusiana (PNUD e a dúzia de agências especializadas atuantes)
está prioritariamente voltada para a cooperação ao desenvolvimento, cenário que
implica a mesma relação desigual já existente na questão do poder, ou seja, países que
prestam cooperação, de um lado, e países que recebem cooperação, de outro. Esse tipo
de relação assimétrica – que desde o início da ONU dividiu os países em desenvolvidos
e em desenvolvimento, com a situação bizarra, mas temporária, dos chamados
“socialistas” – tem sido preservado desde então, sem mudanças relevantes ou
significativas no plano das capacitações nacionais.
Em outros termos, a interação entre cooperação e desenvolvimento não parece
ter produzido os resultados esperados pelos seus promotores multilateralistas de 60 anos
atrás. A questão, portanto, que deve ser colocada de forma clara é se esse tipo de ação
cooperativa, nas formas que vêm sendo prestadas tradicionalmente, pode, de fato,
produzir o que propõe, ou seja, desenvolvimento. O registro histórico do período
transcorrido desde a aplicação sistemática e institucional da cooperação técnica ao
desenvolvimento só pode ser avaliado em categorias inferiores, do tipo sucesso
moderado até o fracasso evidente, numa gradação que possui vários casos de lento
progresso, mas nenhum de rápida prosperidade em direção ao desenvolvimento.
11
Cf. William Easterly, The White Man’s Burden: Why the West’s Efforts to Aid the Rest Have
Done So Much Ill and So Little Good (New York: Penguin Books, 2007). Ver, igualmente, seu
livro anterior: The Elusive Quest for Growth: Economists’ Adventures and Misadventures in the
Tropics (Cambridge, Mass.: The MIT Press, 2002).
162
deformar ainda mais o funcionamento normal de um Estado (supondo-se que este não
seja dominado por grupos políticos que Easterly não hesita em chamar de “gangsteres”,
tal a semelhança com “colegas” dedicados inteiramente ao crime em outras
circunstâncias e países).
12
Ver, por exemplo, Peter Bauer, Economic Analysis and Policy in Underdeveloped Countries
(Durham, N.C.: Duke University Press, 1957), bem como dois outros livros seus sobre a mesma
temática: Dissent on development: studies and debates in development economics (Londres:
Weidenfeld and Nicolson, 1971); Equality, the Third World, and Economic Delusion
(Cambridge, Mass.: Harvard University Press, 1981).
163
2138. “A falência da assistência oficial ao desenvolvimento”, Shanghai, 3 maio 2010, 5
p. Sobre o fracasso da cooperação e assistência financeira externa, adaptado do
trabalho n. 2076. Publicado no portal de Economia do IG (03.05.2010).
Republicado em Mundorama (24.05.2010; link:
http://mundorama.net/2010/05/24/a-falencia-da-assistencia-oficial-ao-
desenvolvimento-por-paulo-roberto-de-almeida/#more-6091), em Via Política
(27.06.2010) e em Dom Total (8.07.2010; link:
http://www.domtotal.com/colunas/detalhes.php?artId=1461). Relação de
Publicados n. 965.
164
Quarta Parte
Política internacional, Questões estratégicas
165
20. A guerra de 1914-18 e o Brasil: impactos imediatos, efeitos
permanentes
167
começou a dedicar-se a melhorar a qualidade dos seus cafés. Na mesma época, o Brasil
estava sendo processado em tribunais de Nova York, por praticas anti-concorrenciais na
oferta de café, justamente. Foi também quando os mercados financeiros se fecharam
repentinamente para o Brasil, com o estalar da guerra em agosto desse ano. O Brasil
sempre dependeu do aporte de capitais estrangeiros, seja para financiar projetos de
investimento em infraestrutura – que eram feitos sob regime de concessão, num
esquema muito similar ao que viria a ser conhecido depois como PPP, ou seja, parcerias
público-privadas, com garantia de juros de 6% ao ano –, seja para o financiamento do
próprio Estado, que vivia permanentemente em déficit orçamentário.
O Brasil já tinha efetuado uma operação de funding-loan en 1898, isto é, um
empréstimo de consolidação trocando os títulos das dívidas anteriores por novos títulos,
e tinha conseguido fazer um novo pouco antes da guerra, e já não mais teve acesso ao
mercado de capitais durante toda a duração do conflito europeu. Este representou um
tremendo choque para a economia brasileira, pois os mercados europeus ainda eram
importantes consumidores dos produtos primários de exportação, e os principais
ofertantes de bens manufaturados, equipamentos e, sobretudo, capitais, ainda que os
Estados Unidos já fossem o principal comprador do café brasileiro desde o final do
século 19, e que suas empresas já tivessem começado a fazer investimentos diretos no
Brasil.
171
21. O mundo sem o Onze de Setembro: explorando hipóteses
172
Imaginemos, então, que não tivessem ocorrido esses ataques – aliás dotados de
“tecnologia” relativamente ingênua, cujos autores poderiam ter sido detectados e
interceptados a caminho de seu intento criminoso – ou que, simplesmente, o cérebro que
esteve por trás de seu planejamento pudesse ter continuado suas ações “normais” de
terrorismo localizado, sem conceber tal tipo de ação verdadeiramente espetacular. O
mundo não teria esse “marco fundador do século XXI” assim classificado por cronistas
e observadores contemporâneos (e que talvez seja confirmado pelos historiadores). Não
teria deixado de existir Al Qaeda e atentados terroristas, mas teríamos sido poupados do
horror desse marco simbólico do terrorismo fundamentalista da era contemporânea.
Sem esses ataques o mundo teria sido muito diferente? Vejamos, por meio de
um exercício de imaginação, como seria, ou como poderia ser, o mundo atual, sem o
Onze de Setembro.
O Afeganistão, em primeiro lugar, seguiria por alguns anos mais – não sabemos
exatamente quanto tempo mais – com o horrível regime dos talibãs, que continuaria a
oprimir as suas mulheres (e os homens também), seguiria desmantelando estátuas e
símbolos iconoclastas em sua concepção (como a lamentável destruição dos Budas
gigantes de Bamian) e continuaria, obviamente, a abrigar bases de treinamento de
grupos terroristas ao estilo da Al Qaeda (que continuaria planejando ataques contra
alvos americanos e ocidentais, como o do U.S.S. Cole, nas costas do Iêmen, ou das
embaixadas em Nairóbi e em outros lugares). O Paquistão vizinho, em segundo lugar,
continuaria abrigando grupos terroristas, que continuariam atacando alvos na Cachemira
ocupada ou na própria Índia. Palestinos e israelenses continuariam se matando uns aos
outros, em pequenos e grandes atentados. A teocracia iraniana também continuaria
oprimindo seus dissidentes e sustentando grupos terroristas e nacionalistas da região,
como os do Hamas ou do Hezbollah. A violência anticristã dos fundamentalistas
islâmicos do norte da Nigéria continuaria produzindo vítimas entre os habitantes de
pequenas aldeias no centro do país. As ditaduras árabes continuariam oprimindo seus
povos, na indiferença geral...
Os Balcãs, com exceção do Kosovo, continuariam talvez pacificados pelas
forças da OTAN, mas se encaminhariam progressivamente para a integração europeia,
como já parecia inevitável. Mas os grupos antiglobalizadores continuariam, na Europa,
nos EUA e em outros lugares, a perturbar as reuniões multilaterais, provando, mais uma
vez, que não é difícil reunir multidões de ingênuos em torno de teses idiotas que
173
pretendem lutar contra a globalização, como se fosse possível interromper marés,
maremotos e furacões...
A Europa e talvez o mundo continuariam, por alguns anos mais, como
efetivamente ocorreu, a enfrentar a doença da vaca louca, assim como a Ásia
continuaria a se debater com epidemias animais que ocasionalmente ameaçam
transmigrar para a espécie humana. Terremotos, maremotos e outros acidentes naturais
continuariam a produzir seu lote de enormes desastres humanos nos lugares e países
mais desprovidos de condições materiais para minimizar seus efeitos catastróficos.
Ecologistas ingênuos e ambientalistas científicos continuariam a anunciar as catástrofes
decorrentes da ação industrial do homem, dizendo que o “fim está próximo” se não nos
arrependermos de nossos progressos tecnológicos e não gastarmos algumas centenas de
bilhões de dólares em medidas “preventivas” de duvidoso efeito real. O bug do milênio
e a paranoia que ele despertou já teriam passado, mas hackers, crackers e outros cyber-
terrorists continuariam a trazer preocupações aos órgãos de defesa e de inteligência,
assim como aos simples webmasters de sites oficiais de governos e de empresas...
A América Latina continuaria com o seu cortejo de miséria, de desigualdades
sociais, de corrupção e, claro, com o seu lote habitual de caudilhos histriônicos e de
demagogos candidatos a qualquer coisa, a dilapidar os recursos públicos e a enganar
populações de pobres e dependentes. O Haiti, provavelmente, não teria conseguido
evitar sua trajetória de desastres naturais e humanos, e continuaria a depender da ajuda
humanitária para evitar cenários ainda mais pavorosos. A África, muito pior,
continuaria seu itinerário horroroso de conflitos étnicos, guerras civis, ditadores
bilionários e doenças endêmicas, com alguma recuperação aqui e ali, e muita assistência
pública internacional, como tem sido o caso no último meio século. Russos e cidadãos
das repúblicas da Ásia central ainda teriam remanescentes dos antigos aparatchiks
comunistas no poder, sobrevivendo na “maldição do petróleo” e continuando a construir
o “modo capitalista-mafioso de produção”, uma modalidade não exatamente prevista
por Marx.
O mundo, enfim, não seria muito diferente do que ele foi, na década que passou
desde o Onze de Setembro, e do que ele é, hoje, com seu desfile de grandezas e
misérias, grandes invenções e pequenos acidentes de percurso, filmes de Hollywood (e,
cada vez mais, de Bollywood), prêmios Nobel e prêmios igNobel (alguns imerecidos,
numa e noutra categoria), avanços dramáticos nas ciências, nas artes e na tecnologia
174
(certamente iPod, iPhone e iPad), outros recuos não menos dramáticos na ética pública e
na gestão governamental. Ou seja, certos desenvolvimentos naturais, certos processos
sociais e alguns eventos contingentes teriam sido inevitáveis, em função da flecha do
tempo e da roda impessoal da História. Resta ver, então, o que o mundo NÃO seria, no
sentido de poder ter sido melhor do que ele foi, efetivamente, ou, eventualmente, de ter
sido mais “ameno” ou simplesmente mais tranquilo, pelo menos potencialmente, na
ausência daqueles fatídicos ataques.
175
próprios desastres, com quedas espetaculares dos valores das ações, sem necessidade de
derrubada física dos papéis.
O único vínculo entre a crise atual e os ataques terroristas talvez seja o excessivo
endividamento americano, mas o enorme buraco provavelmente não existiria, se Bush
não tivesse lançado o país, irresponsavelmente, em duas custosas guerras de nation
building e de construção de democracias em países já por si problemáticos. Os EUA,
que obtiveram, espontaneamente, a imediata solidariedade de todo o mundo, no
imediato seguimento dos ataques – Nous sommes tous américains!, escreveu em letras
garrafais o Le Monde de 12 de setembro de 2001 – e que tiveram o apoio na luta contra
o terror mesmo de competidores estratégicos, passaram a ser odiados em vários
quadrantes, por causa de ações arrogantes, irrefletidas, unilaterais. Obviamente que não
se pode combater grupos terroristas apenas com base no diálogo, na cooperação e na
coordenação multilateral – que são instâncias ineficientes, ineficazes ou inexistentes,
simplesmente –, mas a escolha de uma estratégia de “enfrentamento imperial” dilapidou
rapidamente o crédito de confiança que eles tinham conquistado na conjuntura dos
ataques.
Não é seguro que uma estratégia de maior coordenação e consulta com aliados
habituais e parceiros circunstanciais teria evitado, por exemplo, os ataques terroristas de
Madrid e de Londres – para ficar apenas em dois dos mais mortíferos – mas talvez fosse
possível obter um ambiente de luta clandestina, nos bastidores e por ações mais de
inteligência do que pelo uso da força bruta, que evitasse o antiamericanismo militante
que surgiu a partir da invasão do Iraque. Grupos militantes e outros fundamentalistas
espalhados ao redor do mundo talvez não tivessem se organizado em torno do rótulo Al
Qaeda para perpetrar alguns desses ataques e tentativas de ações terroristas que foram,
em parte, estimuladas pela resposta imperial americana.
O próprio conceito de “guerra ao terror” e o caráter punitivo a que esse tipo de
enfrentamento conduz superestimam a capacidade dos grupos terroristas e realçam um
hipotético status de combatentes, no plano do direito internacional, o que eles
obviamente não são, no sentido próprio da palavra. O inteiro arcabouço jurídico
internacional da luta contra o terrorismo poderia ter avançado mais, na ausência de uma
resposta militar dos EUA aos ataques, ou mais exatamente, na ausência da estratégia
americana de “guerra preventiva”, materializada especialmente pela invasão do Iraque.
Ditadores e ditaduras foram poupados em certos cenários de “cooperação” na “guerra
176
ao terror”, e muitos deles sobreviveram e sobrevivem ainda hoje, em função das tensões
acumuladas nesse ambiente unilateralista criado pelos EUA.
178
22. Wikileaks: verso e reverso
181
americanos adotam o seguinte procedimento: primeiro consideram o assim chamado
“interesse nacional”, depois o interesse do cidadão, e bem depois, o do governo...
Nesse sentido, os “wikileaks” diplomáticos representaram uma mina riquíssima
de trouvailles e informações úteis sobre questões que já faziam objeto das investigações
dos jornalistas, mas careciam de “fontes autorizadas”: elas agora existem, e em
abundância, havendo, em diversos casos, maior ou menor grau de responsabilidade dos
editores quanto à exposição de pessoas e dados muito sensíveis ou potencialmente
prejudiciais nos planos da segurança nacional ou individual. Os donos de jornais e seus
editores parecem ter observado uma atitude bem mais responsável do que a do
“divulgador” dos documentos, resguardando dados sensíveis e informações privadas,
mesmo se circulando na esfera dos governos, ou mesmo de algumas grandes empresas
interagindo com eles (sobre segredos tecnológicos ou de natureza financeira, por
exemplo). Não se poderia pedir transparência nesses casos, pois os danos seriam muito
maiores do que os benefícios esperados ou supostos.
Não se sabe bem como foram negociados os termos do acesso aos documentos
“capturados” pelo Wikileaks e sua cessão para publicação pelos grandes jornais
internacionais selecionados pelo seu coordenador, mas não cabe nenhuma condenação
ou sequer censura moral aos editores desses jornais, pelo simples fato de que eles
receberam documentos de “interesse público” e exerceram sua capacidade jornalística
em toda a amplidão do conceito. Muitos editores devem ter tomado os cuidados
prudenciais que se impunham em face de muitos nomes de “informantes” ou
“parceiros” dos diplomatas americanos, ponderando aqui e ali sobre a oportunidade e a
conveniência de transcrever os documentos em toda a sua extensão. Alguma contenção
deve ter sido exercida em nome da responsabilidade que cada um desses jornais assume
em face de sua própria opinião pública.
Outra pode ter sido a atitude e o papel dos “transmissores de segunda mão”, que
exploram o filão, aprofundando oportunamente indícios interessantes dos documentos
originais. Em suma, se o ano de 2010 foi um annus miserabilis para os diplomatas
americanos, ele deve ter sido um annus mirabilis para os jornalistas assim
“presenteados”. A festa deve continuar em 2011, até onde a vista alcança. Que os
jornalistas façam bom proveito e informem de maneira adequada a sua clientela.
186
23. Wikileaks-Brasil: qual o impacto real da revelação dos
documentos?
195
2295. “Wikileaks-Brasil: qual o impacto real da revelação dos documentos?”, Brasília,
11 agosto 2011, 10 p. Novos comentários sobre o sentido das revelações e seu
impacto nas relações bilaterais. Publicado em Mundorama (12/08/2011; link:
http://mundorama.net/2011/08/12/wikileaks-brasil-qual-o-impacto-real-da-
revelacao-dos-documentos-por-paulo-roberto-de-almeida/). Relação de Publicados
n. 1042bis.
196
24. Digressões contrarianistas sobre o desarmamento nuclear
198
Não creio que a presidente tenha formulado ela mesma esse argumento. Ela
simplesmente o comprou do Itamaraty, que colocou tal frase no discurso porque isso faz
parte da ideologia diplomática, ou das ilusões diplomáticas -- não apenas brasileiras,
diga-se de passagem -- nos últimos 50 anos, ou mesmo mais.
Alguém já parou para pensar – e nesse processo desmantelou algumas ilusões
diplomáticas – de que pode ser exatamente o contrário: que as armas nucleares
aumentaram a segurança mundial, e evitaram muitas mortes que de outra forma seriam
inevitáveis?
Pensem um pouco – enfim, apenas os que desejarem realmente pensar – e
perguntem comigo:
Se não existissem armas nucleares, o que existiria?
Provavelmente as mesmas armas que tínhamos ao final da Segunda Guerra
Mundial, um pouco (ou bastante) mais aperfeiçoadas: tanques, canhões, bombardeiros,
granadas, minas, mísseis, lança-chamas, fuzis, baionetas, estilingues, etc., etc., etc.
Ou seja, nada que pudesse deter um dirigente maluco de deslanchar uma guerra
contra um outro país, na medida em que se tratavam de “armas normais”, de tecnologias
dominadas e, com exceção de um ou outro componente mais aperfeiçoado (fortalezas
voadoras, por exemplo, ou mísseis de longo alcance), tudo poderia ser mobilizado por
qualquer país que tivesse uma base industrial medianamente desenvolvida.
Afinal de contas, Hitler deslanchou sua guerra em duas frentes com base nesses
mesmos meios, ainda que desejasse, rapidamente, dispor de mísseis mais poderosos e
que seus cientistas apostassem, furiosamente, no domínio da tecnologia nuclear, já
teoricamente disponível em sua época.
Sorte nossa que ele não conseguiu, pois imaginem vocês se Hitler tivesse
submetido a Grã-Bretanha, neutralizado os EUA, destruído a Rússia de Stálin, e se
estabelecido como o grande ditador de todos os tempos, um Gengis Khan moderno, com
a colaboração acintosa de tiranetes como Mussolini e os fascistas-militaristas japoneses,
no trabalho de escravizar povos inteiros e colocá-los a serviço da Alemanha nazista?
Que tal a perspectiva?
Alguém iria conseguir um tratado de desarmamento contra Hitler, depois?
202
25. Um congresso de Viena para o século 21?
203
Estaríamos, por acaso, necessitados, tanto quanto a Europa do final das guerras
napoleônicas, de uma réplica do congresso de Viena, apto a reorganizar, num grande
concerto de nações, as bases de uma nova ordem mundial? Seria isso possível? Essa
pergunta me veio à mente ao ler o mais recente livro de Henry Kissinger, World Order
(New York: Penguin Press, 2014), que não coloca exatamente a questão, mas a engloba
numa grande reflexão histórica, que começa, na verdade, pelo reordenamento da paz de
Westfália. Esta, como ele indica acertadamente, não foi uma única conferência, mas um
complexo processo negociador, com acordos separados em duas diferentes cidades.
Todos os estudiosos das relações internacionais e da história diplomática
contemporânea sabem que Mister Kissinger estaria em excelente companhia, e ficaria
extremamente satisfeito, se pudesse ser tele-transportado numa máquina do tempo para
a Viena de 1815, para poder assessorar, ao mesmo tempo, Metternich e Castlereagh. Até
mesmo Talleyrand, ministro de Luís XVIII, vindo do Ancien régime aristocrático,
convertido em aliado da revolução, ministro do Império, sobrevivente na Restauração e
finalmente servidor da monarchie de Juillet, poderia receber seus conselhos de longevo
servidor de vários governos, tanto quanto o francês. Talvez seja maldade deste
articulista, mas tendo lido a admiração sincera com que Kissinger completou sua tese de
doutorado em torno dos dois primeiros estadistas, depois publicada como A World
Restored: Metternich, Castlereagh and the Problems of Peace, 1812-22 (1954), dá para
imaginar o entusiasmo com o qual ele se movimentaria apressadamente atrás de cada
uma das três delegações, para assoprar, aos ouvidos dos seus chefes respectivos, suas
sugestões sobre como organizar a melhor balança de poder possível, suscetível de
contemplar os interesses das grandes potências daquela época, e apenas os delas.
O mesmo sentido profundo da História transparece nesse seu último livro (no
sentido cronológico, apenas), intitulado simplesmente World Order, sem qualquer
subtítulo. Poucos autores na categoria das ciências humanas ousariam desafiar as
normas editoriais americanas e publicar um volume de 400 páginas, com apenas duas
palavras no seu título, o que aliás já tinha sido o caso de On China (2011), seu livro
sobre o grande contendor do novo jogo geopolítico mundial. Os dois últimos livros, e o
primeiro, nos trazem o melhor Kissinger, o pensador, o historiador, mais do que o
estrategista do equilíbrio do terror nuclear, o memorialista dos anos de Casa Branca, ou
o consultor caríssimo de governos estrangeiros, o homem que ganhou um prêmio Nobel
por razões imerecidas, e que provavelmente merece mais distinções acadêmicas por seu
trabalho intelectual do que propriamente pelas suas realizações a serviço de governos.
204
Kissinger parece o contrário de um Winston Churchill, que ganhou um prêmio
Nobel por seu trabalho como historiador (tarefa que ele desempenhou em seu próprio
benefício, obviamente), quando merecia o prêmio por ter salvo a civilização ocidental
do assalto horrífico dos bárbaros nazifascistas, e ousado resistir, ao custo de “sangue,
suor e lágrimas”, quando muitos recomendavam um pacto com o diabo em pessoa (isto
é, Hitler). Kissinger talvez merecesse um prêmio literário por sua obra acadêmica, em
especial os três livros citados, e mais Diplomacy (1994), uma vez que ele passou o seu
tempo de estrategista tentando justamente fazer pactos com os diabos (Brejnev, Mao),
como fazem, por sinal, os estadistas das grandes potências quando a ocasião lhes é dada.
Talvez nem o júri do Nobel literário concordasse com esse tipo de galardão, uma vez
que mesmo seus livros de caráter histórico estão igualmente contaminados por certa
visão do mundo – do tipo “eu sei, eu fiz, eu estava lá” – que tende a impregnar as suas
sugestões de uma “boa ordem mundial” como a única possível nas circunstâncias dadas
(este é um viés a que nem mesmo Churchill escapou, seja em sua história da Segunda
Guerra, ou na sua precedente história dos povos de língua inglesa).
O problema com Mister Kissinger é que ele teria gostado de um mundo mais
“vienense” do que o que temos atualmente, já que se trata de uma “ordem mundial” que
não é propriamente uma ordem, nem é universal, como ele mesmo reconhece no livro
homônimo. O mundo parece se estilhaçar, não em novas conflagrações globais, mas em
rivalidades hegemônicas, em proxy wars, com vilões proliferadores protegidos por uma
ou outra das grandes potências, com desafios vindos de atores não estatais, alguns até se
pretendendo califados expansionistas, ou mesmo com bravatas anti-imperialistas de
líderes de pacotilha, num estilo parecido ao de certos fascistas do entre-guerras.
Tudo isso é real, e já está acontecendo, um pouco em vários cantos do planeta,
inclusive numa Europa que já reproduziu, em pleno século 20, uma segunda “guerra de
trinta anos”, uma repetição, em larga escala, dos terríveis conflitos que deram a partida,
no século 17, à ordem westfaliana que ainda constitui o horizonte insuperável de nossa
época, e pela qual tem início, justamente, World Order. Na impossibilidade de se chegar
a novos acordos westfalianos – que, de resto, já estão incorporados na Carta da ONU –
talvez Kissinger sonhe com novo Congresso de Viena, capaz de estabelecer as bases da
nova “ordem mundial” que ele deve intimamente desejar. Talvez ele até se dispusesse a
assessorar um ou outro soberano dos novos tempos, com conselhos sempre sensatos
sobre como melhor organizar uma balança de poder entre as grandes potências, como
fizeram os estadistas de dois séculos atrás.
205
Seria isto possível? Levaria um congresso do mesmo estilo a resultados efetivos
e duráveis? Provavelmente não, pois faltaria a tal arranjo fundacional aquilo que existiu
em cada reorganização anterior da ordem mundial: uma contestação radical da ordem
anterior, com uma alteração fundamental das relações de força entre as grandes
potências, e um reordenamento baseado no novo equilíbrio de poder. Westfália veio
depois da “guerra de trinta anos”; Viena veio após as guerras napoleônicas; Versalhes e
a Liga das Nações sucederam à Grande Guerra; Ialta e Potsdam, em 1945, prepararam
São Francisco, que foi quase uma formalidade, depois que certas questões já estavam
acertadas em Teerã (1943), em Dumbarton Oaks (1944) e naqueles dois encontros
decisivos. Mas não é apenas pela falta de uma grande conflagração global que um novo
congresso de Viena – que obviamente não seria em Viena – se revela impossível em
nossos dias. O que falta, na verdade, seria uma espécie de entendimento prévio sobre o
que discutir e o que se buscar. “Na construção de uma ordem mundial”, diz Kissinger
no capítulo final de seu livro, “uma questão chave refere-se inevitavelmente à
substância de seus princípios unificadores”, mas, acrescenta ele imediatamente após,
“nos quais reside uma distinção fundamental entre as abordagens ocidentais e não
ocidentais a essa ordem” (p. 363). A distinção não é obviamente geográfica tão
simplesmente, mas fundamentalmente política e de valores.
A dificuldade, portanto, não resulta de um simples problema de agenda, ou seja,
da falta de uma ordem do dia consensual, uma lista de questões sobre a base das quais
discutir um novo arranjo global num formato similar ou equivalente àquele de 1815.
Mister Kissinger acredita que a carência de uma ordem mundial para o século 21 pode
ser explicada por aspectos, ou dimensões, que diferem da ordem precedente. Primeiro, a
natureza do estado, em si – a unidade básica da vida internacional – que tem sido
submetida à uma variedade de pressões desagregadoras (seja por falta de uma soberania
efetiva, como no caso da UE, seja pela sua contestação por novos “senhores da guerra”),
quando não se cai na falta de governança tout court, em estados falidos, ou territórios
inteiros sem governo. Depois, uma descoordenação entre as organizações econômicas e
políticas internacionais, as primeiras acompanhando o processo de globalização, mas as
segundas ainda baseadas no estado-nação. Finalmente, a falta de um mecanismo de
consulta e cooperação entre as grandes potências “on the most consequential issues” (p.
370). Aqui já estamos em face de cenas explícitas de kissingerianismo geopolítico:
todas as instâncias existentes – CSNU, Otan, Apec, G-7 ou G-8, G-20 – lhe parecem
206
carentes de maior foco, pois os chefes de governo ali presentes estão mais preocupados
com o seu público interno, e com o comunicado final, do que com problemas concretos.
Pode ser isso, ou também pode ser que o mundo de Viena já não tem mais
condições de existir: ele era a expressão de um arranjo westfaliano entre potências
europeias, ou seja cristãs, numa época em que a Europa dominava o mundo, o que ela
fez durante praticamente cinco séculos, o último junto com os Estados Unidos, mas já
contestados pelas novas potências emergentes. A própria Alemanha tinha desafiado as
bases da ordem europeia e internacional no arranjo precedente, por ter chegado tarde,
bem depois da Prússia, na mesa de negociações e nas conquistas imperiais subsequentes
(ainda que ela se tenha talhado alguns pedaços na Ásia e na África). Foi justamente o
seu desejo de redistribuir as cartas do jogo que provocou uma nova guerra de trinta anos
e a derrocada definitiva da hegemonia europeia sobre os assuntos do mundo.
A China provavelmente não tem nenhuma pretensão de ser uma nova Alemanha
nas condições do século 21, nem a Rússia tem capacidade para aspirar a tal papel, muito
embora ela ainda talvez gostasse de poder determinar o que podem e, sobretudo, o que
não podem fazer as antigas satrapias do império soviético. O problema, na verdade, não
é só de ordem geopolítica, mas também de valores e de concepções do mundo. Não se
pode ser um Metternich – como talvez gostasse Kissinger – se não se tem do outro lado,
como interlocutores afinados nesse tipo de jogo, estadistas como Castlereagh ou mesmo
Talleyrand. Aparentemente, nem Xi Jin-ping nem Putin se dispõem a amoldar-se em
papeis equivalentes aos de Hardenberg ou de Nesselrode, os representantes respectivos
da Prússia e da Rússia imperiais em Viena. O que se buscava, na capital do Império dos
Habsburgos, era um arranjo europeu, no máximo alcançando a periferia mais próxima, a
do Império Otomano e suas dependências balcânicas. Os arranjos que se fizeram com os
impérios ibéricos e suas possessões coloniais o foram por causa da herança napoleônica,
não porque as grandes potências estivessem tentando traçar um esquema equivalente a
Tordesilhas, ou seja, uma primeira divisão do mundo que só seria tentada novamente
em Ialta, quase cinco séculos mais tarde.
Kissinger talvez gostasse que Estados Unidos e China chegassem a um acordo
básico sobre as relações recíprocas, e foi em grande medida em vista desse objetivo que
ele escreveu On China, uma obra particularmente compreensiva e leniente para com as
lideranças chinesas. Da Guerra Fria política dos tempos de Stalin à nova Guerra Fria
econômica dos nossos dias, o mundo mudou perceptivelmente em termos de atores e de
interesses nacionais projetados internacionalmente. Viena-1815 nunca foi um encontro
207
filosófico entre potências cristãs interessadas primariamente no bem estar de seus
respectivos povos: o que estava em jogo ali era apenas o equilíbrio de poderes para
evitar uma nova conflagração global. Westfália se revelou mais durável porque tratou
basicamente de procedimentos, não de substância, como ele diz em outra parte do livro.
Esse objetivo, hoje em dia, está na prática assegurado pela detenção dos arsenais
atômicos, o que restringe a subida aos extremos por parte de qualquer uma das grandes
potências nucleares. Mas uma Viena do século 21 não poderia mais eludir os avanços
registrados em matéria de direito internacional, de democracia e de direitos humanos.
Tais dimensões, aparentemente, só seriam hoje defendidos pelos Estados Unidos, e se
dependesse de Mister Kissinger talvez nem isso. Tais critérios certamente não fariam
parte da agenda das outras grandes potências. Ah, sim, ainda tem a Europa, se ela é
verdadeiramente um membro dessa pequena tribo, na vertente democrática; Kissinger,
nos seus velhos tempos de guardião da paz no mundo, se perguntava: “se eu quiser falar
com a Europa, eu telefono para quem?” Parece que o problema continua o mesmo.
O que dizer, então, das chamadas “potências emergentes”? A julgar pelas
tomadas de posição de algumas delas, em suas próprias esferas regionais, talvez não se
possa contar tampouco com elas para algum arranjo nouvelle manière, seja no formato
Viena 2.0, seja uma reforma do sistema onusiano, esse dinossauro que também ostenta
um cérebro totalmente desproporcional em relação ao seu imenso corpo. Em resumo,
vamos esquecer essa história de um novo arranjo diplomático para a tal “ordem mundial
do século 21”, e nos concentrarmos em tarefas mais prosaicas de administração da
governança econômica e da defesa dos direitos humanos e da democracia onde isso for
possível. O mundo ainda é bem mais hobbesiano do que grociano, e certos dirigentes
atuais estão bem mais para Átila ou Gengis-Khan do que para Locke ou Montesquieu.
O progresso pode até ser uma fatalidade, como queria Mário de Andrade, alguns
anos antes do milonguero argentino desconfiar de qualquer avanço, mas talvez seja
porque a história parece andar a um ritmo similar ao dos carros de bois de antigamente.
Quando alguns mais apressadinhos tentaram forçar a passagem em marcha acelerada,
não deixaram de ocorrer acidentes de percurso, como descobriu, para sua infelicidade, o
último xá da Pérsia. O próprio Kissinger confessa, ao final do seu livro (p. 374), que
perdeu sua esperança de juventude de descobrir o “sentido da História”. Provavelmente,
ele não existe, pelo menos não no sentido hegeliano-marxista. Quanto ao seu ritmo,
talvez caiba se contentar com o de certas partituras: vivace, ma non troppo! Em todo
caso, poderíamos repetir com Discépolo: “Todo es igual, nada es mejor…”.
208
Recomendação de leitura:
Peter W. Dickson: Kissinger and the Meaning of History (Cambridge University Press,
1978). [Nota: o autor é um acadêmico formado em filosofia que trabalhou para a CIA, o
que revela quão eclética é essa agência de inteligência.]
2779. “Um congresso de Viena para o século 21?: Kissinger e o ‘sentido da História’”,
Hartford, 23 fevereiro 2015, 5 p. Digressões sobre a ordem mundial do século 21,
com referências aos livros de Henry Kissinger, em especial World Order. Revisto
em 6/03/2015, 6 p. Publicado sem o subtítulo em Mundorama (8/03/2015; link:
http://mundorama.net/2015/03/08/um-congresso-de-viena-para-o-seculo-21-por-
paulo-roberto-de-almeida/), republicado em Dom Total (12/03/2015; link:
http://domtotal.com/colunas/detalhes.php?artId=4903); divulgado no blog
Diplomatizzando (link: http://diplomatizzando.blogspot.com/2015/03/um-
congresso-de-viena-para-o-seculo-21.html). e novamente a partir do arquivo de
Dom Total (18/03/2015; link: http://diplomatizzando.blogspot.com/2015/03/um-
congresso-de-viena-para-o-seculo-21_18.html). Relação de Publicados n. 1166.
209
26. As ilusões perdidas do século 21
2762. “As ilusões perdidas do século 21”, Hartford, 2 fevereiro 2015, 3 p. Artigo de
comentários sobre a atualidade, destinado aos diversos periódicos aos quais ofereço
colaboração voluntária. Publicado no Boletim Mundorama (8/02/2015; link:
http://wp.me/p79nz-40a); republicado no Instituto Millenium (12/02/2015; link:
http://www.institutomillenium.org.br/artigos/iluses-perdidas-sculo-21/) e em Dom
Total (12/02/2015; link: https://domtotal.com/colunas/detalhes.php?artId=4839).
Relação de Publicados n. 1161.
213
Quinta Parte
Ideias, cultura, livros
215
27. A ideia do interesse nacional: onde estamos?
217
Beard foi o único acadêmico americano a ter exercido a presidência de duas
associações profissionais diferentes: a American Historical Association e a American
Political Science Association. Ele abre o seu livro citando um discurso do Secretário de
Estado Charles Hughes, que trabalhou sob os presidentes Harding e Coolidge na
primeira metade dos anos 1920, e que se pronunciou sobre o interesse nacional na
política externa nestes termos: “As políticas externas não são elaboradas sobre a base de
abstrações. Elas são o resultado de concepções práticas do interesse nacional que
emergem a partir de alguns requerimentos imediatos ou de fundamentos essenciais, em
perspectiva histórica. Quando mantidas por bastante tempo, essas concepções
expressam as esperanças e os temores, os objetivos de segurança e de engrandecimento,
que se tornaram dominantes na consciência nacional, transcendendo, assim, divisões
partidárias e fazendo com que se atenuem as oposições que poderiam advir de certos
grupos” (discurso na Filadélfia, em 30/11/1923). Beard analisa então todas as facetas do
interesse nacional americano em sua expressão diplomática e nas relações com o
ambiente doméstico, sobretudo em sua dimensão econômica.
É bem possível que seus argumentos, e o seu próprio livro, tenham inspirado o
célebre cientista político germano-americano Hans Morgenthau – autor do clássico
Politics Among Nations, publicado em 1948, o mesmo ano da morte de Charles Beard –
a elaborar um outro livro, chamado justamente In Defense of the National Interest
(1951), seguido, no ano seguinte, de um artigo sobre o mesmo tema: “What Is the
National Interest of the United States?” (The Annals of the American Academy of
Political and Social Science, vol. 282, jul. 1952, p. 1-7). Morgenthau também serviu
como consultor do Departamento de Estado no começo da Guerra Fria, quando um
diplomata, também célebre, George Kennan, dirigia ali a divisão de planejamento
político, o Policy Planning Staff, que trabalhou no Plano Marshall e na formulação das
principais medidas da então nascente doutrina da contenção. O próprio Kennan, aliás,
não cessava de alertar seus chefes quanto às fragilidades que poderiam emergir do ponto
de vista do interesse nacional americano a partir da erosão da posição competitiva dos
Estados Unidos no mundo e do aprofundamento dos déficits no balanço de pagamentos;
ele expressou suas preocupações, entre outros escritos, no livro Realities of American
Foreign Policy, publicado em 1954.
O livro de Morgenthau sobre o interesse nacional americano foi republicado em
1982, e talvez tenha animado o já então famoso jornalista Irving Kristol a dar início, em
1985, à revista The National Interest (http://nationalinterest.org/), apoiada nos mesmos
218
princípios da escola realista, que está identificada com a expressão política, econômica
e militar do poder americano em escala global, mas cujos fundamentos devem sempre
ser construídos internamente. Pode ser também que a mesma revista e sua ideia central
tenham inspirado o embaixador Rubens Barbosa a lançar, em 2008, a revista Interesse
Nacional (http://interessenacional.uol.com.br/), fundada em concepções similares sobre
as bases internas da expressão internacional do Brasil. Qual seria, então, o interesse
nacional brasileiro, e que tipo de políticas e orientações econômicas melhor serviriam à
sua defesa e consolidação? Difícil dizer, já que existem concepções muito diversas do
que seja o interesse nacional, como já dizia o próprio Beard em 1934.
O editor da revista brasileira se encarrega, aliás, de expressar tal dificuldade em
nota de apresentação: “Sendo necessariamente genérica, a noção de interesse nacional
não tem uma definição precisa. De um lado, porque, sobre o que seja concreta e
especificamente o interesse nacional, haverá sempre visões não coincidentes, apoiadas
em valores e/ou interesses diferentes. De outro, porque a definição do interesse nacional
requer um juízo informado, mas sempre político e não estritamente técnico, sobre riscos
e oportunidades que se apresentam à realização dos valores e interesses de um país em
cenários estratégicos de longo prazo. E estes serão, sempre, objeto de incerteza e
controvérsia” (ver: http://interessenacional.uol.com.br/index.php/sobre-a-revista/). Mas
o editorial acrescenta logo em seguida: “O interesse nacional é, pois, uma construção
política”, o que pode ser uma constatação óbvia, mas que não nos ajuda muito na busca
por uma definição mais precisa sobre qual seria o interesse nacional brasileiro.
Conceda-se, pois, que diferentes grupos políticos, e diferentes agregações de
poder, representados pelas forças políticas temporariamente predominantes no sistema
de governança, manifestem concepções diversas do chamado interesse nacional, e que
eles defendam, portanto, suas orientações particulares, ou setoriais, com base numa
legitimidade supostamente construída nas urnas, a cada escrutínio eleitoral. Esta é uma
suposição arriscada, e provavelmente falsa, pois os eleitores não possuem, geralmente,
no momento do voto, um grau suficiente de informação sobre os programas, ou sobre as
consequências de determinadas políticas do ponto de vista de seus interesses imediatos
e os de mais longo prazo, e menos ainda do ponto de vista dos interesses da nação.
Na impossibilidade de se chegar a uma definição consensual de quais seriam as
expressões efetivas do interesse nacional, talvez seja o caso de investigar numa outra
direção, ou seja, identificar aquelas políticas e orientações que se opõem, ou que podem
contrariar, o interesse nacional. Nesse caso, é melhor trabalhar com exemplos concretos
219
do que com definições abstratas, como afirmava em 1923 o secretário de Estado Charles
Hughes, em pronunciamento recuperado pelo historiador Charles Beard uma década
depois. E quais seriam, no nosso caso, os exemplos contrários ao interesse nacional que
podem ser identificados numa perspectiva mais imediata ou de mais longo prazo, que
podem ser prejudiciais ao nosso desenvolvimento e ao “engrandecimento” do país? Mas
mesmo para identificar essas ações contrárias, seja no plano interno, seja no âmbito
internacional, é preciso ter balizas mínimas sobre o que o país pretende ser como nação
e como sociedade. É preciso saber o que se quer, para rejeitar o que não serve a tal fim.
O editorial da revista Interesse Nacional nos fornece, mais uma vez, alguns dos
parâmetros que podem ser aplicados ao caso: “A democracia e a inserção internacional
são parte do interesse nacional brasileiro, aquela como valor, esta como objetivo. Se a
democracia é um valor que queremos preservar, e se a inserção internacional é hoje,
mais do que nunca, uma condição do desenvolvimento, resta perguntar como se inserir
no mundo para fortalecer a democracia e promover o desenvolvimento” (nota editorial
de Interesse Nacional, loc. cit.). A pergunta traz, portanto, um começo de resposta.
Se concordarmos com essa “plataforma”, democracia e inserção internacional
passam a ser as palavras chave do interesse nacional brasileiro. Então, qualquer ação
nacional que vise a diminuir as bases da democracia representativa, que constitui a
forma atual da governança política no Brasil, seria contrária e prejudicial ao interesse
nacional brasileiro; como, por exemplo, um famoso decreto “bolivariano” que pretende
instituir a intermediação de “conselhos populares” na definição e aprovação de políticas
públicas, quando sabemos que eles constituem uma emanação de tipo bolchevique – e
por isso mesmo foram chamados de “sovietes” – do partido gramsciano que tem a clara
intenção de se eternizar no poder. No plano externo, o apoio acintoso a regimes pouco
democráticos, ou ditatoriais de fato (e de direito), diminui a credibilidade de nossa
política externa, ao nos identificar com sistemas políticos já devidamente denunciados
em protocolos instituindo “cláusulas democráticas” a que aderimos voluntariamente, e
por força de nossa adesão (inclusive constitucional) aos valores da democracia.
Da mesma forma, qualquer política ou medida que obstaculize a integração da
economia nacional aos circuitos internacionais da interdependência econômica pode ser
considerada como contrária ao interesse nacional, na medida em que diminui nossa
capacidade de absorção de know-how e de tecnologias de ponta que são essenciais ao
processo de desenvolvimento do país. O protecionismo comercial não é apenas estúpido
no plano estritamente econômico; ele é também profundamente reacionário, no sentido
220
marxista da expressão, já que pretende “fazer rodar para trás a roda da História”, como
dito no Manifesto de 1848. Com efeito, ele representaria uma volta a um regime de
autarquia econômica que estava na base da economia hitlerista – bastante admirada por
militares brasileiros, naquela época e depois – e seria uma espécie de “stalinismo para
os ricos”, um projeto de “capitalismo num só país” que talvez ainda encante alguns
arautos da burguesia industrial tupiniquim e seus representantes acadêmicos.
Mais ainda, e com especial impacto na imagem e na confiabilidade do país no
plano internacional, ao aderir a essas medidas de duvidosa eficácia competitiva – ao
contrário, elas diminuem nossa capacidade de competir internacionalmente – o país não
apenas deixa de cumprir obrigações contraídas ao abrigo do sistema multilateral de
comércio, como também se mostra conivente com sócios do mesmo esquema regional
de integração, o Mercosul, que reincidem nas mesmas transgressões, e aqui não só
contra os próprios interesses comerciais do Brasil e contra regras do bloco comercial,
mas igualmente contrárias às normas do Gatt, de seus protocolos setoriais e de acordos
emanados da Rodada Uruguai de negociações comerciais. É, sob todos os aspectos, uma
péssima demonstração de inadimplência no tocante ao respeito a princípios do direito
internacional e, mais uma vez, de ação contrária ao interesse nacional.
Democracia e inserção internacional vêm sendo, assim, afastados de nosso
horizonte de realizações históricas, em nome de uma concepção de política interna e de
política externa que rompem com consensos nacionais laboriosamente mantidos ao
longo de um itinerário diplomático de quase dois séculos de existência efetiva. Esses
desvios de conduta – que representam, na verdade, concepções que não transcendem, ao
contrário, alimentam as “divisões partidárias”, como a elas se referia o secretário de
Estado Charles Hughes – se revelam não apenas em relação à substância mesma das
políticas seguidas, mas igualmente no tocante ao próprio instrumento diplomático, ou
seja, a ferramenta da política externa, que é o seu serviço exterior.
Charles Beard, no capítulo de seu livro dedicado à “interpretation, advancement,
and enforcement of national interest”, dizia que “By far the most important means used
to advance and enforce national interest is the ‘system’, or institution, of diplomacy” (p.
341). Ele se referia, exatamente, à administração e ao funcionamento das atividades
diplomáticas, bem como à “multitude of services performed by diplomatic agents in
behalf of the citizens” (p. 347), ou seja, a cobertura que um país é capaz de dar aos seus
cidadãos e às empresas nacionais presentes nos mais diversos cantos do mundo. Nesse
particular, a ferramenta da política externa brasileira tem custado muito pouco à nação
221
durante a maior parte de sua história: menos de 1% do orçamento da União (que parece
ter passado a menos de 0,5% atualmente). Ver essa dotação ainda mais diminuída, em
detrimento da boa qualidade, do funcionamento e, sobretudo, da respeitabilidade desse
instrumento, é a pior forma de promover o dito interesse nacional.
Os bolcheviques costumavam repetir, em seus tempos de hegemonia absoluta, e
para justificar os incontáveis crimes cometidos contra os direitos humanos, a conhecida
frase que pretende que “não se faz omelete sem quebrar os ovos”, querendo significar
que sacrifícios são necessários para obter resultados em algum objetivo qualquer. Pode
ser que seja verdade, mas no caso que nos é próximo, nem ovos, nem omelete parecem
ter resultado dos sacrifícios impostos ao instrumento diplomático nacional. Não se pode,
com efeito, fazer diplomacia, sem um mínimo de gastos com representação: o interesse
nacional, nesse caso, vem sendo atingido em sua dignidade pelos seguidos exemplos de
inadimplência no cumprimento de suas obrigações, da mesma forma como, no passado,
se decretava “moratórias soberanas” sobre os compromissos financeiros externos. A
insolvência pode até ter deixado de ser financeira, mas ela passou a ser de ordem moral.
222
28. Imperfeições dos mercados ou “perfeições” dos governos
223
Nem os agentes tradicionais de mercado nem os simples cidadãos – que entram
e saem dos mercados para conduzir uma operação qualquer – dispõem de todas as
informações em volume e na qualidade necessários para tomar suas decisões da melhor
forma possível, com total domínio sobre os fatos e amplo conhecimento de causa.
Sempre persistem zonas de sombra, quando não áreas inteiras cinzentas, e até territórios
obscuros, que induzem esses agentes e os particulares a tomarem decisões erradas, a
enveredar por caminhos perigosos, abrindo assim a janela para a formação de bolhas
especulativas, ou à simples depreciação de seus ativos, apostando nas ações ou nas
moedas “erradas”. Tais fatos, ou movimentos, acontecem, e seria incongruente colocar a
culpa nos mercados, que apenas se movimentam sob o impulso de nossas próprias
decisões, individuais ou coletivas.
Desde quando comecei a aprender um pouco de economia – bem mais nos
cadernos especializados dos grandes jornais do que na leitura dos manuais acadêmicos,
justamente – sempre desconfiei das alegações sobre as “falhas de mercado”, que
figuram em praticamente todos os livros de micro e macro, com alguns exemplos das
principais, para, a partir daí, legitimar as medidas corretivas que os governos tomam
para tornar os mercados mais “funcionais”. Os próprios dirigentes políticos, quando não
seus assessores econômicos, recorrem a essas figuras de estilo – falhas ou imperfeições
de mercado –, para implementar medidas que parecem “racionais”, numa primeira
abordagem, mas que depois podem causar mais problemas do que soluções.
Sinto discordar desse tipo de visão, e provavelmente de 90% dos acadêmicos
envolvidos nesse tipo de debate, mas me contraponho frontalmente a esse tipo de
alegação. Não é que eu não acredite nas “imperfeições” do mercado, pois minha
discordância vai bem mais além: eu não acredito é que existam “imperfeições” de
mercado, uma vez que esse é o estado natural de existência e de funcionamento dos
mercados. Ora, sendo isso natural, não há porque falar em “imperfeições”, como se
estas fosse anomalias passíveis de correção pela ação de algum grupo de sábios, ou
videntes, como se o mercado, ou os mercados mais precisamente, pudessem funcionar
de outra forma como o fazem, com todos os seus movimentos erráticos, esses altos e
baixos, essas ondas de otimismo e os vagalhões de pessimismo que os caracterizam
sempre e em qualquer circunstância. Volto a repetir: não existem imperfeições de
mercado, existem mercados, simplesmente. Tal tipo de afirmação me parece tão
evidente que dispensaria qualquer explicação, mas vamos tornar explícito o que acabo
de argumentar implicitamente.
224
O que é o mercado, ou o que são os mercados? Não existe um único mercado,
obviamente, mas dezenas, centenas, milhares deles, sempre à disposição de qualquer
agente ou um simples trabalhador, sem esquecer os famosos rentistas, que vivem, ao
que parece, de especulações nos mercados; todos eles são prontamente atendidos em
suas intenções de satisfazer seus desejos ou necessidades, de maneira perfeitamente
legal, ou até ilegal e clandestina (para drogas, por exemplo). Os mercados são simples
espaços de encontro para trocas bilaterais ou “multilaterais”, e eles existem tanto
virtualmente quanto fisicamente, desde que duas ou mais pessoas se disponham a trocar
seus ativos por outros, detidos pela outra parte interveniente nesse tipo de “escambo”.
Pode ser uma maçã contra uma banana no pátio da escola, ou milhões de dólares numa
bolsa qualquer, num agente de câmbio de divisas, ou na compra de bônus
governamental de alguma economia emergente. Quaisquer bens ou serviços que sejam
objeto de alguma preferência subjetiva quanto ao seu valor são facilmente integrados e
integráveis a um mercado qualquer, formal ou informal, de qualquer tipo, dimensão ou
“perfeição”. Mercados são perfeitamente ubíquos, mesmo quando invisíveis.
O professor Shiller afirma isto em seu artigo: “porque os mercados não são
realmente muito eficientes, o efeito desses variados fatores [níveis extremos de juros e
preços devido à confluência de múltiplos fatores precipitantes, entre eles a ansiedade]
tende a ser amplificado pela realimentação emocional. Por exemplo, quando as pessoas
começam a ver taxas e preços mudando, algumas delas decidem agir: elas são atraídas
ao mercado quando os preços estão subindo, e frequentemente o deixam quando os
preços caem. Nós então [suponho que ele esteja falando dos economistas] ficamos
surpresos pela extensão da aparente sobre-reação do mercado aos fatores precipitantes
que não pensávamos que estivessem realmente na mente de todo mundo.”
Ora, não é preciso ser prêmio Nobel de economia para descobrir que existem
fatores precipitantes, ou que as pessoas reagem de tal e tal modo ao ver os preços
subindo ou descendo nos mercados de valores. Sinto muito dizer isso, mas a afirmação
do professor Shiller não faz nenhum sentido, ou então ela expressa exatamente o
comportamento das pessoas nos mercados. Por que estes seriam pouco eficientes, então,
quando eles estão atuando exatamente como as pessoas os fizeram se movimentar? Para
a alta nos momentos otimistas, quando os preços estão subindo, e para a baixa quando
há percepção, ou movimento real, de queda. Não é preciso nenhuma exuberância
racional para explicar isso, embora as pessoas se comportem exatamente assim, com
toda a irracionalidade que permeia qualquer ação humana em face de incertezas, zonas
225
de sombra ou simples desconhecimento das dinâmicas da vida (sejam elas as forças da
natureza, ou as forças igualmente imponderáveis da economia).
Tenho para mim que os mercados são perfeitamente eficientes e altamente
perfeitos, uma vez que eles reagem exatamente em função de como as pessoas atuam
neles, ou seja, investindo ou se retirando, trocando ativos ou permanecendo paradas, e
tudo isso é feito de maneira perfeitamente descoordenada, anárquica mesma, como
devem ser mercados altamente funcionais. Agora, se você pretende que o mercado
funcione de uma determinada maneira, e não possa refletir os movimentos das pessoas,
então coloque alguns burocratas de governo para vigiá-lo, para corrigi-lo, para
discipliná-lo de algumas “imperfeições” detectadas por esses mesmos burocratas. O
mais provável é que eles estejam atuando a mando de “gestores” mais poderosos, que
por sua vez decidiram empreender alguma ação corretiva porque alguns agentes de
mercado decidiram que ele só poderia se movimentar numa direção, e não em outra:
geralmente mantendo o câmbio em determinado patamar, determinadas ações imunes
aos resultados efetivos da empresa, mercadorias em certo nível de preços do que a sua
oferta mais abundante, ou escassa, o determinaria, pelo livre movimento de produtores e
de compradores nesses mercados específicos, etc.; escolha qualquer um dos casos.
A legitimação é sempre a mesma: como os mercados não são “eficientes”, os
sábios do governo (com seus conselheiros econômicos por trás) resolvem “ajudá-los”
impondo certas regras, ou limitando o ingresso de outros participantes. Barreiras ao
ingresso de novos competidores é sempre uma maneira “eficiente” de preservar os
ganhos dos poucos participantes de algum cartel qualquer, e isso é feito não apenas nos
mercados “livres”, mas também em regime de concessões públicas (transportes, por
exemplo) ou no comércio exterior (pelas tarifas ou mediante normas técnicas, que se
tornam regulações compulsórias, como as nossas famosas tomadas “jabuticabas”). O
resultado de tudo isso é que sempre haverá ganhos para alguns – até que o dinheiro do
regulador acabe, pelo menos – e perdas para os demais, pelo menos enquanto durar a
festa, ou seja, enquanto a dinâmica do mercado não se vingar de seus “corretores” (o
que ele sempre acaba fazendo, mais cedo ou mais tarde). O exemplo mais patente dessa
realidade é o câmbio: a Venezuela e a Argentina que o digam.
O fato singelo é o seguinte: mercados livres, perfeitamente funcionais – ainda
que causando perdas para uns e outros –, sempre serão infinitamente mais eficientes do
que qualquer comitê de salvação pública econômica, e isto por uma razão muito
simples. Os mercados reagem imediatamente à entrada e saída de pessoas – ou de bens
226
e serviços – em seus espaços de intercâmbios, permitindo assim que alguns realizem
ganhos, que outros contabilizem suas perdas, e todos procuram se ajustar rapidamente, o
que torna o sistema sempre muito eficiente e quase “perfeito”, ao sinalizar pelos preços
quais são as expectativas de ganhos (oxalá) ou induzindo à redução das perdas. Quando
o comitê de sábios intervêm, ele não pode fazê-lo de maneira dirigida, ou pessoal, mas
estabelecendo regras genéricas, digamos assim, contemplando toda uma categoria de
transações, e não a movimentação individual dos agentes. Eles ainda precisam fazê-lo
por via legislativa ou mediante resoluções administrativas, que sempre são muito lentas
a serem implementadas, e mais lentas ainda a serem modificadas.
Resulta de tudo isso que medidas governamentais de “correção” dos mercados
sempre serão imperfeitas, limitadas, parciais, insuficientes e, no limite, estúpidas, para
tratar da diversidade de situações que emerge das interações dinâmicas, racionais ou
irracionais, entre pessoas e corporações transacionando nos mercados. Quanto mais
livres forem estes últimos, todos buscarão o seu benefício individual – como aliás dizia
Adam Smith por meio de sua famosa alegoria da “mão invisível”, que não é uma teoria
e sim uma simples constatação de bom senso – e ninguém supostamente será punido
pela ineficiência ou imperfeição de qualquer mercado, uma vez que todos permanecem
perfeitamente livres para entrar e sair de algum deles quando assim o desejarem. De
resto, quaisquer que sejam as eventuais “imperfeições” ou a ineficiência dos mercados,
elas sempre serão infinitamente mais benignas, e menos prejudiciais, do que as ações
dos governos, que tendem a criar camisas de força nos mercados o que só acaba ou
sufocando-os ou produzindo o conhecido fenômeno dos “contraventores de regras”.
Pense bem: qual das situações você prefere? Portanto, quando alguém vier lhe
falar numa tal de “lógica de mercado”, ou de que é preciso corrigir alguma imperfeição
detectada, responda logo: “Tudo bem: o mercado não possui nenhuma lógica, mas ela
sempre será superior à de qualquer governo; no mais, não mexa com o meu mercado,
está bem assim?”. O mundo seria bem simples sem os arquitetos da vontade alheia e
sem todos esses engenheiros sociais tentando tornar a nossa vida mais “simples”...
2767. “Imperfeições dos mercados ou ‘perfeições’ dos governos?: estabeleça quais são
as suas preferências”, Hartford, 9 fevereiro 2015, 5 p. Artigo de comentários sobre
a atualidade, destinado aos diversos periódicos aos quais ofereço colaboração
voluntária. Publicado em Mundorama (10/02/2015; links:
227
http://mundorama.net/2015/02/10/imperfeicoes-dos-mercados-ou-perfeicoes-dos-
governos-estabeleca-quais-sao-as-suas-preferencias-por-paulo-roberto-de-almeida/
e http://wp.me/p79nz-40s). Reproduzido no blog Diplomatizzando
(http://diplomatizzando.blogspot.com/2015/02/imperfeicoes-dos-mercados-ou-
perfeicoes.html); Dom Total (20/03/2015; link:
http://www.domtotal.com/colunas/detalhes.php?artId=4930); Instituto Millenium
(21/03/2015; link: http://www.institutomillenium.org.br/artigos/imperfeies-dos-
mercados-ou-perfeies-dos-governos/).Relação de Publicado n. 1163.
228
29. Miséria do Capital no século 21
Economistas são seres simplistas, por definição. Eles costumam basear suas
equações sobre a criação de renda e riqueza a partir de três fatores produtivos básicos:
trabalho, capital e recursos naturais. Muitos outros economistas já tentaram introduzir
nessas equações um outro fator: o capital humano, ou conhecimento. Mas, por diversos
motivos, este acréscimo ainda não se tornou de uso comum na ciência econômica. Em
todo caso, a riqueza das pessoas costuma ser medida sob diferentes formas: em fluxos
de renda, que é aquela derivada do trabalho, e em estoques da riqueza acumulada, que
costuma ser chamada de patrimônio, e que por sua vez pode ser imobilizado (imóveis,
iates, carros, etc.) ou utilizado para a criação de novas riquezas, sob a forma de ativos
líquidos, os quais produzem o que comumente se chama de rendas do capital.
A dinâmica populacional – composição, distribuição etária e qualidade da mão-
de-obra – varia muito de um país a outro, e influencia bastante a criação de renda e de
229
riqueza, cujos fluxos e estoques acompanham as variações e natureza daquela. Ainda
que o capital (bastante) e as pessoas (menos) possam viajar pelo mundo, não existe uma
autoridade global e uma única fonte de regulação dos fluxos e estoques em posse das
pessoas. Os Estados nacionais mantêm jurisdições próprias, com regras diferentes para
o tratamento impositivo desses fluxos e estoques, o que dificulta a concepção de um
instrumento uniforme e universalmente aplicável de taxação de renda e riqueza.
Sobre isso, se sobrepõem diferentes concepções sobre como devem ser tratadas
(ou seja, taxadas) as diferentes formas de renda e riqueza. As filosofias em vigor na
história do mundo moderno podem ser divididas, grosso modo, entre o liberalismo, que
acha que a criação de renda e riqueza deve ficar sob a competência dos indivíduos, com
um mínimo de interferência dos Estados nacionais, e o “marxismo” (ou variantes do
socialismo), que acha que esses Estados devem regular as rendas do trabalho e as do
patrimônio em benefício de todos, transferindo fluxos de renda e seus estoques entre as
pessoas, segundo critérios determinados por políticos e burocratas desses Estados.
Existem neste mundo êmulos de Marx, em todas as partes, para todos os gostos
e para todas as finalidades, alguns deles – pode ser o caso do francês Piketty – até mais
espertos do que a maioria dos crentes, aproveitando-se da adesão de muitos na teoria do
valor-trabalho para aumentar o seu próprio capital às custas desses muito crentes, que
acham que o capital só pode aumentar às custas do trabalho. Essa concepção sobre o
valor-trabalho – a única coisa errada aceita por Adam Smith – não leva em conta o
chamado capital humano, que os próprios economistas penam a integrar em suas
equações. Os êmulos de Marx acham que os Estados devem taxar mais as rendas do
capital para distribuir entre os que possuem apenas rendas do trabalho, o que
supostamente tornaria o mundo mais igualitário, ou menos desigual.
O problema todo é que essa recomendação marxista não deriva de nenhuma
análise econômica sobre a criação de renda e riqueza, sendo apenas e tão somente uma
recomendação política, baseada numa filosofia do igualitarismo. Essa filosofia orienta
os Estados a avançarem sobre o capital, ou seja, sobre o estoque de riqueza das poucas
pessoas muito ricas (que por definição são sempre em menor número), para distribuí-la
entre os que só dispõem apenas dos fluxos de pagamentos derivados do seu trabalho.
Ela tem tido algum sucesso ao redor do mundo, uma vez que as pessoas dependendo do
seu trabalho são sempre em maior número, formando a vasta maioria dos votantes nas
modernas democracias de mercado.
230
Esse tipo de recomendação aproxima a política econômica do modelo de
sociedade recomendada pelos marxistas, que é aquela na qual não existiria renda do
capital, e nenhuma riqueza acumulada, na qual todas as rendas do trabalho seriam
igualitária e equitativamente divididas pelo Estado. Não é preciso aqui grandes
digressões, com base em equações econômicas ou em séries estatísticas históricas de
renda e de riqueza, para constatar que esse tipo de sociedade não funcionou, e que os
únicos exemplos reais na história – o socialismo de tipo soviético e seus êmulos ao
redor do mundo – foram notórios fracassos econômicos na criação de renda e riqueza,
só conseguindo se manter à custa de enorme repressão política, que produziu grande
infelicidade humana (total falta de liberdade, e até mesmo alguns milhões de mortos).
Um modelo mais ameno desse tipo de igualitarismo radical – mas falso, uma vez
que os que controlam o Estado se apropriam de uma parte importante das rendas do
“valor-trabalho” – é o socialismo moderado dos regimes de tipo socialdemocrata, em
vigor em diversas democracias modernas de mercado, basicamente na Europa, com
contrafações disso no resto do mundo. Uma consulta às estatísticas correntes mais
frequentes relativas à criação de renda e riqueza nas últimas décadas (dados da OCDE,
por exemplo) demonstra que o crescimento de todas as formas de renda e riqueza foi
maior naqueles países onde foi menor a apropriação de fluxos e estoques de renda e
riqueza pelos próprios Estados. Não se trata aqui de opinião ou filosofia política, mas de
uma constatação simples, e direta, a partir de uma correlação entre níveis de carga fiscal
dos países e suas taxas de crescimento do PIB per capita, independentemente da
distribuição social dessas formas de riqueza. Maior taxação, menor crescimento, ponto.
Isso nos traz de volta ao “capital do século 21”, proposto por Piketty, que acaba
de provar que a desigualdade vem aumentando no mundo, baseada no aumento dos
fluxos e estoques de rendimentos obtidos pelo capital, sobre os simples rendimentos do
trabalho. Ele também acha que governos devem taxar mais o patrimônio e as rendas dos
muito ricos, pois o problema seria a existência de poucas pessoas muito ricas – e que
tendem a enriquecer cada vez mais –, não a existência de um imenso contingente de
pobres, ou de pessoas moderadamente ricas (classe média). Independentemente dos
problemas de agregação de dados e de processamento da informação estatística, o que
parece inevitável, dado o amplo espectro de valores e a grande dispersão cronológica
com os quais Piketty trabalhou, o que mais parece contestável em sua tese é justamente
o argumento de que a riqueza tende a caminhar mais rapidamente do que o crescimento
econômico geral das economias de mercado.
231
Tal tese – que, em sua formulação sintética, r > g, tende a assumir ares de
grande síntese genial, um pouco ao estilo da famosa equação einsteiniana, E=mc2 –
parece contradizer a lógica formal dos processos econômicos e a própria evolução
civilizatória das sociedades humanas, cada vez mais educadas e mais sofisticadas
intelectualmente, com amplo acesso à educação superior por amplas camadas de
indivíduos e grupos. Pode ser que patrimônio e a riqueza de forma geral, passem por
processos temporários e parciais de acumulação preferencial e de concentração em
certos grupos e indivíduos, em geral vinculados a atividades financeiras e comerciais;
mas daí a transformar essa constatação numa nova “lei geral da acumulação capitalista
no século 21”, como parece pretender Piketty, vai uma grande distância. Assim como
ocorreu com as teses de Marx, ela também vai ser provavelmente desmentida pela
evolução das sociedades capitalistas.
Piketty prefere empobrecer os ricos a enriquecer os pobres. Pela experiência
visual que já tivemos no século 20, esse tipo de empreendimento pode ser mais um
desastre econômico e social à espreita, do que propriamente uma forma de criar o
verdadeiro capital do século 21, baseado no conhecimento. Distribuir o dinheiro dos
ricos entre os pobres vai tornar as sociedades mais ricas? Duvidoso que ocorra, a menos
de dirigir todos os recursos para aumentar e melhorar o capital social: conhecimento.
232
30. Reformando o sistema monetário internacional
Book review:
Carol M. Connell:
Reforming the World Monetary System: Fritz Machlup and the Bellagio Group
(London: Pickering & Chatto, 2013. xii + 272 pp.; ISBN 978-1-84893-360-6; Financial
History series n. 21, $99.00; hardcover)
This book appears in a Financial History series of the Pickering & Chatto, which
has already published as diverse studies in this area as one on Argentina’s parallel
currency, another on the federal banking in Brazil, with most of titles being about
banking and finance in the North Atlantic world, from the colonial times to the 20th
century. Carol Connell is Professor of Finance and Business Management at the School
of Business, Brooklyn College, City University of New York, where she is very well
rated by her students; and she is now directing a new monograph series on Modern
Heterodox Economics, also being published by Pickering & Chatto. Connell prepared
this very well researched work benefitting from a fellowship research grant from the
Earhart Foundation, a private charitable institution that funds scholarly research; one of
its early beneficiaries was Friedrich von Hayek, who wrote The Road to Serfdom
(1944).
Some scenarios and arguments presented in this book were first made public in
academic publications, such as the Journal of Management History and the Journal of
the History of Economic Thought, and Connell’s interest in Fritz Machlup career and
work arose when she was researching about one of his students, the growth theorist
Edith Penrose. Besides the preeminent presence of Machlup, the book also deals with
233
the contributions for the discussion and reform of the international financial and
monetary system by luminaries such as Robert Triffin, William Fellner, and Milton
Friedman.
In the introduction the author states very clearly that her objective was the study
of the complex reform process that, from the Sixties up to the Seventies, led to the
adoption of a flexible exchange rate – instead of the fixed parity established at the
Bretton Woods conference (1944) – and the introduction of the special drawing rights as
the main “currency” of the International Monetary Fund (p. 1). Based on archival and
published sources, the book follows, in thirteen extensively annotated chapters, the
itinerary of the Bellagio Group, established under the leadership of Fritz Machlup, and
integrated by 32 non-government academic economists, working in intimate contact
with policy makers and IMF officials, between 1963 and 1977. Bellagio Group’s
primary documents are everywhere referenced, but there are also 299 secondary sources
in the bibliography, among them (besides the four big economists), Charles
Kindleberger, Edith Penrose, Fred Bergsten, and John Williamson.
Trying perhaps to emphasize the current appeal of her study to contemporary
policymakers and researchers, Connell states in her Introduction that there could be in
Machlup’s approach something similar to the Group of Twenty Finance Ministers and
Central Bank Governors (G20), which is clearly a non performing analogy, essentially
because of the independence of views of the former vis-à-vis the narrow interests of
today’s governments. Notwithstanding, Bellagio Group worked in close contact and
cooperation with the Group of Ten, launched simultaneously within the IMF. The
intention of the Treasury Secretary Douglas Dillon was to devise a monetary reform in
an already stressed arrangement, in a context when the ten most important countries
tried to control and minimize the imbalances of the world economy, the growing
liquidity crises, and the volatility in the price of gold (partially circumvented by the
introduction of swap facilities and the creation of the General Arrangements to Borrow).
After explaining her research questions and original hypothesis, and informing
where Machlup’s and Triffin’s papers are located (Hoover and Yale), Connell opens
Chapter 1 by describing the crisis of confidence that arouse in early Sixties, leading to
the various exercises of academic debates and institutional brain-storming that
mobilized the most important economist of that decade. Late in the Fifties, Robert
Triffin was already predicting a forthcoming crisis, and calling for a radical reform of
the monetary system in his Gold and the Dollar Crisis (1960). Feeling challenged by
234
the convening by Dillon of an IMF Studies Group, within the Group of Ten, and
excluding academic economists, Machlup, Triffin and Fellner decided to “embark on
their own study, involving economists of widely divergent views and with no problem
or proposal considered ‘out of bounds’. Hence the idea for a series of alternative
conference was born” (p. 18), and that was the Bellagio Group, which first met at this
Italian resort of the Lake of Como. A brief chronology of the monetary system events
from 1944 and 1977 and a synthetic table on the various exchange rate policies and
regimes (from gold standard to flexible) close this chapter.
Chapter 2 introduces the life and thought of Fritz Machlup, who had been
working and publishing in the area of monetary reform for many years before the
convening of his “child”, the Bellagio Group. Born (1902) in a pre-1914 Europe
(Austria) with “ten currencies, all with fixed gold parities and fixed exchange rates”,
Machlup soon afterwards (1920) was presented to a continent with “twenty-seven paper
currencies, none with a gold parity, none with fixed exchange rates and several of them
in various stages of inflation or hyperinflation” (p. 23). From 1923 to 1962 Machlup
studied and published extensively on monetary problems, particularly the gold standard,
but also dealt with patents, industrial organization, production of knowledge and theory
of the firm. His 1923 dissertation on the gold-exchange standard at the University of
Vienna was supervised by Ludwig von Mises; a decade later he was already residing in
the U.S. and teaching at the University of Buffalo; at that time, “he was already the first
economist to frame the discussion of balance of payments problems in terms of
payments adjustment, liquidity and confidence” (p. 27). John Williamson, a former
student, “attributed Machlup’s belief in the importance of the confidence to the role it
had played in the collapse of the gold-exchange standard during the Great Depression”
(p. 29). The same would occur thirty years later, with the U.S. involvement with and
expenditures for the Vietnam’s War, and European countries distrust of America’s
capacity to honor its commitments under Bretton Woods. Machlup anticipated the
scenario with his lengthy essay “Plans for Reform of International Monetary System”,
first published in 1962 and reissued in 1964, significantly updated (p. 32).
Chapter 3 is dedicated to Robert Triffin – a Belgian who worked for the Federal
Reserve and the IMF, and professor at Yale from 1951 to 1977 – and to the 1959 Triffin
Plan, proposing the replacement of gold and foreign-exchange reserves by gold-
guaranteed deposit accounts at the IMF, within a more flexible system. But, at that time,
as argued by Charles Kindleberger, even if many economists proposed the idea, “few
235
central bankers recommended flexible exchange rates as a means of eliminating … all
the problems of adjustment, liquidity and confidence” (p. 42). Even if Triffin’s solution
could be first-best economically, it was politically out of question. The head of the
Group of Ten at IMF, Otmar Emminger, “found the Triffin Plan unacceptable because
nations were not prepared to hand over so much responsibility and financial power to an
international body” (p. 42). At that juncture, confidence, not liquidity, was the problem
that made Triffin and Machlup to come together intellectually (p. 47).
Chapter 4 deals with Budapest born (1905) William Fellner, a fugitive from the
Nazis, like the two others; professor at Berkeley in 1939, he worked mainly at the
intersection of macro and microeconomics, researching and writing about inflation,
regulation, growth and balance of payments problems, including in cooperation with the
other two in monetary and exchange questions, both in theory and policy. In 1963, he
was dealing with budgetary deficits and their consequences, which led to adjustments
efforts, and also to the confidence question. Differently from the planned equilibrium
advocated by Triffin, Fellner “recommended instead letting free-market processes
perform more of the equilibrating function”(p. 57). In many papers, he proposed a
limited exchange-rate flexibility system. In fact, both Machlup and Fellner were
committed to freely floating exchange-rates, but were aware of the responsibility of
national governments, which led them to explore a myriad of possible solutions.
The title of Chapter 5, Why Economists Disagree, takes its name from
Machlup’s speech before the American Philosophical Society, in November 1964, five
months after the fourth Bellagio Group conference. He explained then his decision to
invite 32 economists from eleven countries, most of them from divergent schools of
thought, to explore solutions for the problems of the international monetary system of
the 1960s. They had to consider hybrid or compromise solutions for the identified
problems. This chapter presents each one of the participants, their background and
works. The sources of disagreement are very well abridged in a table dealing with the
four major policy proposals for reform: semi-automatic gold standard, centralized
international reserves, multiple currencies and/or flexible exchange rates (p. 76-78). All
proposals were carefully examined at a series of scenario-planning exercises through
various Bellagio conferences, allowing the economists to evaluate the “relative impact
on payments, liquidity and confidence of the four basic exchange regimes, given any
one or combination of them might have been adopted” (p. 80).
Chapters 6 and 7 deal, respectively, with the hypothesis of multiple reserve
236
currencies and Milton Friedman’s arguments for fixed versus flexible exchange rates, in
a paper he presented in 1953, making the case for a floating regime. This regime, for
him, “has the advantage of monetary independence, insulation from real shocks, and a
less disruptive adjustment mechanism in the face of nominal rigidities than it is the case
with pegged exchange rates” (p. 99). These two chapter are of a more theoretical and
historical nature, despite the fact that all questions discussed in them had a very
practical impact on each devised solution for the problems plaguing the international
monetary system.
Chapter 8, Collaboration With the Group of Ten, makes the bridge between the
two groups, the IMF technocrats and government officials, for one side, the independent
academic economists, for the other. Machlup pressed hard on his team, achieving a
detailed report, International Monetary Arrangements: The Problem of Choice, two
months before (in June 1964) the Group of Ten and the IMF staff could prepare theirs.
He also frankly explained, at the first joint meeting, later that year, the differences
between the two approaches. This led to the assignment of Group of Ten chairman,
Otmar Emminger, to the Bellagio Group, inaugurating a thirteen-year collaboration. The
tasks for the groups were the same, but working methods, and freedom of opinion, made
them very different, as well as purposes: Bellagio emphasized disagreements among the
proposals, and the nature of their differing impact on the problems dealt with. Friedman,
in 1965, criticized the report for not offering one unified solution for the crisis, but
Machlup pointed out that a consensus was achieved on the consequences of each
solution proposed by his group: governments and the IMF had food for thought.
Chapter 9, Adjustment Policies and Special Drawing Rights: Joint Meetings of
Officials and Academics, is a continuation of this kind of collaboration, now assuming
other forms of joint exercises, as the deputies of the Group of Ten start to met regularly
with the Bellagio Group, and did so from 1964 to 1977, resulting in the creation of
special reserve assets, later called the Special Drawings Rights (due to the French
Finance minister, Valery Giscard D’Estaing, insistence on considering them a credit,
not an owned reserve). The three Bellagio main economists were the organizers of those
meetings, which assumed a kind of a NGO feature. “From 1970 to 1977, discussions
would focus on the increasing liberalization of the international capital market and the
wisdom of special drawing rights for developing countries” (p. 128). This period also
corresponds to the U.S. going off the gold and to the floating of the Deutsche mark:
main questions became managed floating and international liquidity. A Basle meeting in
237
1977 was the last meeting of a Joint Academic and Officials meeting, and the first
allocation of SDRs was held in 1970. A new time, no less challenging, had arrived for
and within the international monetary system.
Chapter 10, From the Bellagio Group to the Bürgenstock Conferences, explores
the continuation of the semi-academic discussions under a new format, this time dealing
with floating exchange regimes in various guises, but always under the influence, and
the intellectual guidance, of Fritz Machlup, who intended to prepare a well conceived
book out of the exercise: this came at light in 1970, as a Princeton University Press
publication, Approaches to Greater Exchange Rate Flexibility: The Bürgenstock papers.
The analysis takes ground on the Austrian background of Machlup’s thought, which
also gave light to planning methods based on Delphi scenarios. A first meeting, with a
large number of officials, academic people but also representatives from banks and
corporations, was held in Long Island, in January 1969, followed by a second meeting
in June, in Bürgenstock, Switzerland, where five more meetings were organized.
Chapter 11, follows the lead, dealing with de facto successor of the Joint
Meeting of Officials and Academics, which was an extended Bellagio Group, the Group
of Thirty, which included members from all the current G20 financial group. The Group
of Thirty meet twice a year at the beginning of the 1980s, and was broader than the
Bellagio Group, including industrialists and private bankers, and preferred not to
commission papers from academics, establishing instead an agenda for discussion
comprising issues of capital movements and less developing countries assets,
international banking supervision, and energy (the issue of the moment). But Fritz
Machlup was still on the party, with a minor group of academics. A so-called Bellagio
Group met again in 1996, under the leadership of the general manager of the Bank for
International Settlements, and has been meeting once a year at the Italian resort, under
the intellectual guidance of professor Barry Eichengreen, from Berkeley, and always
financed by the BIS.
Chapter 12 is dedicated to Reassessing the Bellagio Group’s Impact on
International Monetary Reform; Carol Connell affirms that there are “significant
parallels between the calls for monetary system reform in the 1960s and those for
reform following the financial crisis of 2008-9” (p. 185). This comparison seems off the
mark, as the current financial G20 has achieved nothing comparable, besides pressures
for the negotiation and implementation of a more stringent set of Basel prudential rules
for the banking sector. The outcry about the dollar crisis has been responded by nothing
238
else than the confirmation of its centrality for the current financial and monetary “non-
system”. Initial rumors – at its monnaie unique début – about the strength of the euro
were replaced by recent fears of its demise.
Notwithstanding this, Connell presents a clear historical synthesis about the
importance of the Bellagio Group for the understanding of the most crucial problems of
the international monetary system as devised at Bretton Woods: all of the group
members came from G-10 countries, the same as the suppliers of the General
Arrangements to Borrow (now expanded, and with the New GAB). At least, the
academics convinced the central bankers that floating exchange regimes could work,
and that flexible currencies could cushion external shocks; that is not a minor
intellectual achievement. And, the same problems they tackled, adjustment, liquidity,
and confidence, continue to be at the center of the nightmares of the central bankers and
finance officials alike (together with new preoccupations, on the fiscal side, as
demography imposes its burdens over all). It seems that liquidity is no more an issue
today, as governments create real tsunamis of new financial assets, pushing national
debts to new higher peaks.
In the bright side, this Chapter 12 finishes with an impressive list of publications
of the Princeton Finance Section under Fritz Machlup’s leadership, from 1960 up to
1971, no less than 98 titles authored by many of the most well-known names of the
economics trade, and certainly some of Nobel-worth distinction in this profession.
Chapter 13, finally, is a beautiful piece of scholarly work: The Impact of the
Bellagio Group on International Trade and Finance Scholarship from the 1960s to the
Present, which could also be called something like “the sons and daughters of Machlup,
Triffin and Fellner” (and now their grandsons and grand-daughters, like Connell
herself). She lists some disciples of the mentors: Edith Penrose, Stephen Hymer,
Charles Kindleberger, James Tobin, Andrew Crockett, Edwin Truman, and many
others.
Conclusions, at last, summarizes the lessons drawn from each chapter, before
returning to the initial hypothesis. Great Depression and World War II influenced how
economists thought about policy, inflation, interest rates, deficits and government
intervention. Machlup, Triffin and Fellner were the intellectual masters behind much of
the conceptual thinking about the great challenges emerging from a world order devised
with some improvisation, and no practical guidance, at the end of the II World War.
With some Austrian ingenuity and innovative and creative thinking of their own, they
239
are at the core of the adjustments and arrangements that were made, in the Sixties and
the Seventies, for the current, certainly limited and incomplete, international monetary
system (or non-system, at discretion). One of her hypothesis, that of the centrality of the
Bellagio Group for the reform of the international monetary system, is largely
confirmed and deserves proper acknowledgment: they have had a real impact on
practical policies, and in the reconfiguration of the multilateral financial organizations.
And their influence on scholarship and empirical research over a so large community of
academic and applied economists is beyond recognition of traditional prizes and honors.
2705. “Reforming the World Monetary System: book review”, Hartford, 27 outubro
2014, 7 p. Book Review of Carol M. Connell: Reforming the World Monetary
System: Fritz Machlup and the Bellagio Group (London: Pickering & Chatto, 2013.
xii + 272 pp.; ISBN 978-1-84893-360-6; Financial History series n. 21, $99.00;
hardcover). Prepared for Gary Mongiovi (mongiovg@stjohns.edu), of St. John’s
University. Divulgado no Academia.edu (link:
https://www.academia.edu/10006775/2705_Reforming_the_World_Monetary_Syst
em_book_review_2014_). Publicado em Mundorama (n. 91, 22/03/2015; ISSN:
2175-2052; link: http://mundorama.net/2015/03/22/review-of-reforming-the-world-
monetary-system-of-carol-m-connell-by-paulo-roberto-de-almeida/). Relação de
Publicados n. 1164.
240
31. As quatro liberdades e um projeto para o Brasil
Como sempre fazemos quando temos tempo e estamos pela região, para
compras ou a lazer, Carmen Lícia e eu costumamos frequentar a biblioteca pública de
West Hartford, pequena, para os padrões das bibliotecas universitárias, mas enorme,
para os padrões das pequenas cidades americanas de interior. Na verdade, ela não é bem
de interior, uma vez que está adjacente à capital de Connecticut, Hartford, e é onde
mora boa parte da comunidade afluente que trabalha nesta região: belas casas,
excelentes restaurantes, supermercados e lojas superiores à média, e esta boa biblioteca,
que leva o nome do primeiro dicionarista da língua americana (sim, ele dicionarizou
vários coloquialismos do inglês da América) e provavelmente o segundo da língua
inglesa: Noah Webster, que é, aliás, o nome de um famoso dicionário, tradicional, mas
ainda hoje vibrante e atualizado, nos mais diversos formatos.
Não se trata de uma biblioteca de pesquisa ou de estudo, mas daquilo que se
pode tranquilamente chamar de biblioteca comunitária, embora muito bem guarnecida
dos grandes títulos da literatura americana e universal, e podendo servir também para
pesquisas escolares. Eu costumo frequentá-la sobretudo para emprestar os novos livros
que acabam de ser lançados, e que ainda custam mais de 30 dólares no formato hard
cover, antes que a edição brochura os torne mais acessíveis a orçamentos controlados.
Pois foi com essa intenção que lá fomos no último domingo. Saí de lá com dois livros
novos (que só podem ser emprestados por 15 dias) e com um antigo, de meio século
atrás, mas que me interessava consultar: uma edição da Modern Library contendo as
duas grandes obras políticas de Maquiavel, O Príncipe e Os Discursos (assim, não mais,
ou seja, Tito Lívio reinterpretado pelo grande pensador florentino).
241
Nada de original neste último livro, a não ser a bela introdução a Maquiavel pelo
professor Max Lerner (datada de março de 1940 e de maio de 1950), com alguma
bibliografia clássica sobre o grande patriota italiano, inclusive a recomendação, que vou
buscar, de ler a introdução ao Príncipe por Lord Acton, feita originalmente para uma
edição italiana de 1891, depois incluída no volume editado por John N. Figgis e
Reginald V Laurence, The History of Freedom and Other Essays (London: 1907). Para
este eu tenho de recorrer à biblioteca da Universidade de Yale, onde aliás tenho de ir
para devolver vários outros livros que retirei sobre Bretton Woods. Provavelmente na
próxima terça-feira, quando vou para uma palestra sobre a Rússia e Ocidente, por um
diplomata do Department of State encarregado do setor.
Mas volto aos dois livros novos que retirei, ambos conectados ao meu período
atual de pesquisas, a primeira metade do século XX e as relações internacionais do
Brasil na primeira república e na era Vargas. Eles são, respectivamente, os seguintes:
Harvey J. Kaye: The Fight for the Four Freedoms: What Made FDR and the
Greatest Generation Truly Great (New York: Simon & Schuster, 2014, 292 p.).
Neill Lochery: Brazil: The Fortunes of War, World War II and the Making of
Modern Brazil (New York: Basic Books, 2014, 314 p.)
248
32. Algumas recomendações de leituras
250
Rogério de Souza Farias: A palavra do Brasil no sistema multilateral de comércio
(1946-1994) (Brasília: Funag, 2013, 885 p.)
Uma coletânea, de alta qualidade, dos mais importantes pronunciamentos feitos por
representantes brasileiros desde as negociações que precederam a constituição do Gatt
(1946-47), passando pela Unctad (1964), até a criação da OMC (1994). O livro
representa um repositório de grande relevância para todos os pesquisadores da história
econômica brasileira, uma vez que compila documentos originais e outros materiais de
referência (fotos, resumos biográficos dos negociadores brasileiros, etc.), mas constitui,
igualmente, um instrumento de trabalho para os negociadores diplomáticos de nossos
tempos. O livro vem acompanhado por informações e fotos dos representantes e de
notas de rodapé explicativas de cada contexto negociador. O denso prefácio e a longa
introdução merecem leitura atenta; os temas abordados em cada capítulo constituem
matéria prima indispensável para conhecer a história econômica e diplomática brasileira
no plano do comércio internacional. Parece que pouco mudou...
Eugênio Vargas Garcia: Conselho de Segurança das Nações Unidas (Brasília: FUNAG,
2013, 133 p.)
Tudo o que você sempre quis saber a respeito do CSNU e nunca teve a quem
perguntar, ou onde ler. Agora já tem: neste pequeno grande livro de um historiador
diplomata que já escreveu sobre o itinerário frustrado do Brasil na Liga das Nações e
sobre as tentativas novamente frustradas para ser admitido no inner sanctum da sua
sucessora. Mais que isso: a obra refaz não apenas a trajetória histórica desse órgão
central da ONU, como percorre a geopolítica de sua atuação e funcionamento político
(com algumas tinturas jurídicas), sempre focado nas reais alavancas de poder, isto é, o
monopólio dos cinco membros permanentes (mas a China só ingressou em 1971). Uma
síntese bem sucedida, uma bibliografia atualizada e uma reflexão sobre as realidades do
poder atual, que reflete a posição brasileira em importantes questões da agenda da ONU
e do seu desejado CS.
251
criados em 1944 na pequena cidade do New Hampshire para presidir à ordem
econômica do pós-guerra. O autor é o secretário de Assuntos Internacionais da Fazenda,
e como tal segue, no G20 e em outras instâncias, as negociações para a reforma do
sistema monetário, que já passou por fases melhores do que a atual. Depois das
paridades cambiais estáveis, o regime de flutuação não ajuda a manter a estabilidade
mundial, mas o maior perigo advém dos desequilíbrios fiscais nacionais, um tema que
todavia foge do escopo deste livro.
Harvey J. Kaye: The Fight for the Four Freedoms: What Made FDR and the Greatest
Generation Truly Great (New York: Simon & Schuster, 2014, 292 p.).
O livro foi feito a partir dos papeis deixados por Franklin Delano Roosevelt em
seus arquivos de Hyde Park: o eixo central é dado pelas quatro liberdades que Roosevelt
proclamou no State of the Union de janeiro de 1941, logo após conquistar o seu terceiro
mandato, antes, portanto, que os Estados Unidos fossem atacados e entrassem na guerra.
Roosevelt, que já vinha procurando superar as resistências isolacionistas do Congresso,
para converter os EUA no “Arsenal da Democracia”, insistiu na tecla de que seria
ilusório tentar esconder-se atrás de muralhas defensivas. Os quatro grandes conceitos,
em torno dos quais os americanos deveria estar unidos, não apenas para si mesmos, mas
para todo o mundo, foram os seguintes: liberdade de expressão, de religião, da penúria e
do medo. Esses princípios seriam inscritos na Carta do Atlântico, que Roosevelt assinou
com Winston Churchill, em agosto de 1941, nas costas do Canadá, e foram consagrados
no ano seguinte na Carta das Nações Unidas, uma espécie de “New Deal for the world”,
que seria a base da Carta da ONU, assinada em San Francisco, em 1944.
Neill Lochery: Brazil: The Fortunes of War, World War II and the Making of Modern
Brazil (New York: Basic Books, 2014, 314 p.)
O autor é um historiador britânico, professor de Mediterranean and Middle Eastern
Studies do College University of London, e seu livro está dedicado ao envolvimento do
Brasil na guerra, o que é feito de maneira minuciosa e competente. A introdução da obra
já começa destacando o famoso documento-guia que Oswaldo Aranha preparou para as
conversas de Vargas com Roosevelt, no encontro que ambos tiveram no Rio Grande do
Norte, em janeiro de 1943, uma lista de objetivos de guerra que o Brasil declarava aos
EUA, mas que também podem ser vistos como uma espécie de planejamento estratégico
feito pelo grande chanceler para assegurar uma posição de realce para o Brasil na ordem
252
internacional que estaria sendo desenhada pouco mais à frente para assegurar a paz e
reconstruir o mundo. Oswaldo Aranha acreditava, pragmaticamente, que a política
tradicional do Brasil, de apoiar os Estados Unidos no mundo, em troca do seu apoio na
América do Sul, deveria ser mantida “até a vitória das armas americanas na guerra e até
a vitória e a consolidação dos ideais americanos na paz.” Os Estados Unidos iriam
liderar o mundo quando a paz fosse restaurada e seria um grave erro se o Brasil não
estivesse do seu lado. Ambas nações eram “cósmicas e universais”, com características
continentais e globais. Ele tinha plena consciência de que o Brasil era uma “nação
economicamente e militarmente fraca”, mas o seu crescimento natural, ou as migrações
do pós-guerra, lhe dariam o capital e a população que o fariam tornar-se,
“inevitavelmente um dos grandes poderes políticos do mundo”. Pena que Oswaldo
Aranha não se tornou presidente do Brasil.
Henry Kissinger: World Order (New York: Penguin Press, 2014, 433 p.)
Trata-se, provavelmente, do último livro, de tipo conceitual, de um dos mais
destacados intelectuais americanos (de origem germânica), acadêmico de longa carreira,
que também se destacou em atividades executivas, primeiro como conselheiro de
segurança nacional, depois como Secretário de Estado, ator de primeiro plano das
relações exteriores dos Estados Unidos e das próprias relações internacionais, consultor
de quase todos os presidentes americanos desde os anos 1950 e de alguns governos
estrangeiros também. Frustrante para os leitores de nossa região, o livro não devota nem
mesmo um capítulo, sequer uma mísera seção, à América Latina ou ao Brasil, nas dez
grandes unidades da obra, todas elas dedicadas aos grandes atores ou aos problemas
percebidos como relevantes para o estabelecimento ou a preservação de uma ordem que
de fato não existe. Após uma introdução de tratamento conceitual da questão título, ele
dedica dois capítulos à ordem europeia surgida com a paz de Westfália e o sistema de
balanço de poder daí resultante, um ao mundo islâmico e às desordens do Oriente
Próximo, outro voltado exclusivamente para as relações entre os Estados Unidos e o Irã,
dois outros sobre a Ásia (sua multiplicidade e a emergência de uma ordem “asiática”),
dois capítulos inteiros sobre a diplomacia dos Estados Unidos (a ideia de uma ordem
internacional na tradição wilsoniana e o seu papel atual como “superpotência
ambivalente”) e, finalmente, dois capítulos finais voltados para questões tecnológicas e
de informação e de proliferação, e sobre a evolução provável de uma ordem mundial
253
ainda largamente indefinida. Para ser mais preciso, a América Latina não aparece
sequer no índice remissivo do livro, embora nele exista a entrada western hemisphere. O
Brasil só é mencionado duas vezes, ambas en passant e de maneira irrelevante: a
primeira para falar sobre o impacto mundial das revoluções europeias de 1848, a
segunda na companhia da Índia (que recebe tratamento mais amplo nos capítulos
asiáticos da obra) como exemplo de nações emergentes. Fora isso, um grande livro.
Francis Fukuyama: The Origins of Political Order: From Prehuman Times to the
French Revolution (New York: Farrar, Straus and Giroux, 2011, 620 p.) e Political
Order and Political Decay: From the Industrial Revolution to the Globalization of
Democracy (New York: Farrar, Straus and Giroux, 2014, 660 p.)
Dois volumes que resumem o pensamento de um dos mais influentes cientistas
políticos dos EUA, que retoma o trabalho seminal que tinha sido conduzido por um de
seus mestres, o finado autor do “conflito de civilizações” (não um de seus melhores
livros), Samuel Huntington, em seu clássico Political Order in Changing Societies
(New Haven: Yale University Press, 1968), que tinha sido traduzido no Brasil por
Heitor Ferreira Lima, um dos assessores do “guru” do regime militar no Brasil, Golbery
do Couto e Silva em seus esforços de distensão e de transição política para uma ordem
pós-autoritária durante a presidência Geisel. Os dois livros valem por um tratado de
política, mas que praticamente confirmam um tese pré-concebida: o “fim da história”,
se existir, se parece muito com o modelo político americano, que é a culminação das
possibilidades democráticas nas sociedades liberais e avançadas de mercado. Mas o
próprio Fukuyama reconhece que a democracia americana está sendo gradualmente
conduzida a impasses institucionais pela rigidez do sistema bipartidário polarizado
atualmente existente.
254
33. Estratégia diplomática: relendo Sun Tzu para fins menos belicosos
13
Ver Paulo Roberto de Almeida, Velhos e novos manifestos: o socialismo na era da
globalização (São Paulo: Juarez Oliveira, 1999).
14
Cf. Paulo Roberto de Almeida, O Moderno Príncipe: Maquiavel revisitado (Brasília: Senado
Federal, 2010).
15
O clássico de Sun Tzu pode ser encontrado facilmente na internet, numa infinidade de edições
eletrônicas, em várias línguas e nas mais diferentes traduções e adaptações para o Português,
voltadas tanto para o contexto militar quanto para o mundo dos negócios.
255
claro, muitas regras práticas – presumivelmente redigidos pelo conhecido mestre chinês,
legitimamente considerado o “pai da estratégia” (no seu caso, militar).
Uma ED, ainda que elaborada por um governo determinado, não é, ou não
deveria ser, uma concepção e uma ação de um governo, e sim uma iniciativa e uma
postura de Estado, ou seja, interessando antes à Nação do que aos partidos e
personalidades ocupando temporariamente o poder. Como atividade típica de Estado, a
ED deve estar sujeita ao escrutínio de todas as forças, movimentos e grupos de opinião
representativos da Nação, ser objeto de discussão e de avaliação quanto a seus
fundamentos concretos, seus instrumentos operacionais, seus objetivos explícitos e suas
metas implícitas. Normalmente é isso que ocorre em sistemas democráticos, tanto mais
intensamente quanto mais abertos e transparentes são os elementos centrais que definem
e ajudam a implementar uma ED.
Os processos de concepção, elaboração e de revisão da ED se dão no corpo do
Estado, envolvendo as agências voltadas para as relações exteriores, os órgãos de defesa
e o governo central, ademais das instâncias voltadas precipuamente para planejamento
de políticas e de análises aplicadas; eles passam pelo parlamento e alcançam a
sociedade, por meio da opinião pública, devidamente informada pelos órgãos de
informação.
2251. “Formação de uma estratégia diplomática: relendo Sun Tzu para fins menos
belicosos”, Brasília, 5 março 2011, 8 p. Sun Tzu revisitado com o objetivo de traçar
uma estratégia diplomática. Publicado na Espaço Acadêmico (ano 10, n. 118, março
2011, p. 155-161; ISSN: 1519-6186; link:
http://www.periodicos.uem.br/ojs/index.php/EspacoAcademico/article/view/12696/
6714). Republicado em Mundorama (7/03/2011; link:
http://mundorama.net/2011/03/07/formacao-de-uma-estrategia-diplomatica-
relendo-sun-tzu-para-fins-menos-belicosos-por-paulo-roberto-de-almeida/).
Relação de Publicados n. 1023.
262
34. Memória e diplomacia: o verso e o reverso
Memórias, pelo menos memórias publicadas, não são para qualquer um: elas
geralmente constituem o apanágio e a distinção daqueles que tiveram um itinerário de
vida semeado de grandes e importantes cruzamentos com a vida política nacional (ou
até internacional) e que desempenharam algum papel de relevo em alguns dos
episódios. Pode ocorrer, também, com indivíduos que foram simplesmente testemunhas
desses fatos, mesmo com alguma participação mínima nesses eventos, aquilo que
Raymond Aron chamou, para si mesmo, de “espectador engajado” (ver suas Memórias,
publicadas em 1983, e o livro de depoimento, que leva justamente esse título). Todos
esses deveriam se sentir compelidos a colocar no papel, ou em qualquer outro suporte
memorialístico, aqueles registros pessoais que apresentem relevância para a
compreensão desses episódios, fatos e eventos de que tenha, ou não, participado, mas
sobre os quais podem oferecer um depoimento inteligente. Líderes da área econômica,
mesmo não tendo participado de fatos relevantes, mas que foram importantes em
processos mais estruturais de transformação produtiva na vida de um país também
podem oferecer suas “memórias do desenvolvimento”, pois de certa forma ajudaram a
construí-lo e a enriquecer a sociedade.
Os diplomatas, pela sua importância “locacional” em determinados episódios da
interface externa do país, também poderiam oferecer bons testemunhos sobre os grandes
263
eventos internacionais a que assistiram ou dos quais foram partícipes, ainda que em
posição de baixa responsabilidade decisória. Muitos deles conviveram e assessoram
estadistas, chefes de Estado e ministros, e se ocuparam justamente de processar a
informação, colocá-la no contexto, oferecer resumos sintéticos e propostas de decisão
para aqueles mesmos encarregados de tomá-las e se situam, assim, numa posição
privilegiada para relatar o que viram, ouviram e até o que fizeram. São muitos os relatos
diplomáticos e também numerosas as memórias de diplomatas, um gênero infelizmente
muito pouco cultivado no Brasil, pelo menos entre os burocratas “normais” da carreira.
Podem ser contadas nos dedos das duas mãos – e não precisamos dos dedos dos
pés – as memórias de diplomatas, o que é de certa forma lamentável, não apenas no
plano individual, mas também como evidência de uma lacuna institucional. O volume
reduzido de depoimentos pessoais significa que a Casa, o ministério (que possui uma
excelente memória coletiva) não se ocupa de resguardar as memórias individuais de
seus membros, por meio de um programa sistemático de preservação de papéis
individuais e de depoimentos organizados, que ultrapassem o aborrecido dos
burocráticos maços individuais, para alcançar o que se poderia chamar de reflexão sobre
a carreira e sobre os episódios mais relevantes que a rechearam. Elas existem, por certo,
mas bem mais como resultado de uma decisão pessoal do que por estímulo do serviço
diplomático, e de forma mais organizada numa entidade externa – o Cpdoc, por
exemplo – do que por iniciativa da própria instituição.
Algumas dessas memórias cobrem mais o trivial da carreira, como exemplo o
livro de Luis Gurgel do Amaral: O Meu Velho Itamarati (De Amanuense a Secretário
de Legação) 1905-1913 (2a. ed.: Brasília: Fundação Alexandre de Gusmão, 2008; 1ra.
ed.: Imprensa Nacional,1947), um despretensioso relato sobre os tempos do Barão e a
chamada belle époque (certamente não no Brasil, pois o Rio de Janeiro ainda estava
infestado de mosquitos da febre amarela, e o próprio Barão se refugiava em Petrópolis).
Outras são bem mais consistentes, como o excelente depoimento escrito do próprio
punho pelo ex-chanceler Mario Gibson Barboza: Na Diplomacia, o traço todo da vida
(Rio de Janeiro: Record, 1992). Na mesma época, foi publicado um livro de pretensões
mais modestas, do ex-chanceler Ramiro Saraiva Guerreiro: Lembranças de um
Empregado do Itamaraty (São Paulo: Siciliano, 1992).
Pertencentes a um período histórico ainda anterior a esses depoimentos que
cobrem, em grande medida, o período militar, figuram as memórias de Manoel Pio
Correa Jr, O mundo em que vivi (Rio de Janeiro: Expressão e Cultura, 1996, 2 volumes),
264
e as de Vasco Leitão da Cunha, Diplomacia em alto-mar: depoimento ao CPDOC (Rio
de Janeiro: Editora da Fundação Getúlio Vargas, 1994). Roberto Campos, o diplomata-
economista, também deixou suas memórias; mas elas interessam menos, talvez, ao
estudioso da história diplomática do Brasil do que ao pesquisador de sua história
econômica: A Lanterna na Popa: memórias (Rio de Janeiro: Topbooks, 1994; 4a. ed.
rev. e aum.; Rio de Janeiro: Topbooks, 2001-2004, 2 volumes). Ele era, certamente,
uma ave rara no Itamaraty, que provavelmente não soube apreciá-lo à altura de sua
capacidade, em virtude de sua posição bastante crítica à postura excessivamente
“terceiro-mundista” do Itamaraty.
O mais recente exemplo no gênero memorialístico pode ser atribuído a Ovídio
de Andrade Melo, que em seu algo desconjuntado depoimento encomendado por
colegas ideologicamente afins, Recordações de um Removedor de mofo no Itamaraty:
relatos de política externa de 1948 à atualidade (Brasília: Fundação Alexandre de
Gusmão, 2009), trata da política nuclear do Brasil e da recusa ao TNP, do
reconhecimento de Angola e dos seus périplos afro-asiáticos. Flavio Mendes de Oliveira
Castro também ofereceu um depoimento mais para o anedótico, em Caleidoscópio:
cenas da vida de um diplomata (Rio de Janeiro: Contraponto, 2007); mas ele já tinha
reunido uma importante documentação sobre a própria casa e seus chefes nesta obra de
1981, recentemente atualizada e reeditada: Dois séculos de história da organização do
Itamaraty; 1: 1808-1979; 2: 1979-2008 (Brasília: Fundação Alexandre de Gusmão,
2009, 2 volumes). Mais específica a uma determinada fase da vida de um diplomata, e
juntando memória pessoal e depoimento sobre uma época, é este livro de Carlos Alberto
Leite Barbosa: Desafio Inacabado: a política externa de Jânio Quadros (São Paulo:
Atheneu, 2007). Outros cobrem praticamente toda a vida diplomática, pelo menos
acima do conselheirato: foi o caso de Vasco Mariz em: Temas da política internacional:
ensaios, palestras e recordações diplomáticas (Rio de Janeiro: Topbooks, 2008).
Também existem aqueles que juntam discursos, conferências, palestras e artigos
publicados – muitos deles escritos por assessores – para realizar uma compilação em
formato de livro, acrescido de algumas reflexões introdutórias ou comentários esparsos,
o que parece ter sido o caso de Paulo Tarso Flecha de Lima, em seu Caminhos
Diplomáticos: 10 anos de agenda internacional (Rio de Janeiro: Francisco Alves, 1997)
ou, mais recente, de Luiz Felipe Lampreia: O Brasil e os Ventos do Mundo (Rio de
Janeiro: Objetiva, 2010). Os que não têm tempo de sequer fazer isso, apenas pedem que
se lhe juntem os discursos (raramente escritos da própria mão) e os publicam às
265
expensas do contribuinte, como já ocorreu com vários chefes da Casa. Outros
colecionam papéis, importantes, que depois eventualmente serão disponibilizados pela
família ou pessoalmente; foi o caso de Paulo Nogueira Batista, por meio desta
coletânea: Suely Braga da Silva: Paulo Nogueira Batista: o diplomata através de seu
arquivo (Rio de Janeiro: Cpdoc; Brasília: Funag, 2006); e também de um dos pioneiros
da diplomacia econômica no Itamaraty: Teresa Dias Carneiro: Otávio Augusto Dias
Carneiro, um pioneiro da diplomacia econômica (Brasília: Funag, 2005).
Relevantes, também, são os depoimentos prestados ao Cpdoc, uma vez que eles
vêm com um aparato crítico-metodológico que os próprios diplomatas não estão
habituados a preparar. Podem ser citados, nessa categoria, João Clemente Baena Soares:
Sem medo da diplomacia: depoimento ao Cpdoc (organizadores Maria Celina D’Araujo
et alii; Rio de Janeiro: FGV, 2006); Marcílio Marques Moreira: Diplomacia, Política e
Finanças (Rio de Janeiro: Objetiva, 2001); e o próprio Vasco Leitão da Cunha, já
citado. Aguarda-se agora o depoimento de Rubens Antonio Barbosa, em curso de
preparação pelo mesmo Cpdoc.
Um traço comum à maior parte dos depoimentos, memórias e entrevistas
coletadas é a adesão de quase todos eles à chamada “cultura da Casa”, feita de certo
conformismo pouco crítico com a política externa – que muitas vezes eles ajudaram a
forjar ou a defender –, uma “fidalguia” de caráter que os impede de apontar lacunas
sérias no modo de funcionamento do ministério e muita benevolência em relação às
supostas excelências do serviço diplomático brasileiro. Poucos são críticos, como
Roberto Campos, e os que são, como Ovídio Mello, o fazem por clara adesão política a
correntes que nunca pertenceram ao chamado mainstream diplomático brasileiro,
embora tenham permeado seu pensamento desenvolvimentista e terceiro-mundista.
Esse é, digamos assim, o reverso da medalha das “memórias diplomáticas”: elas
expõem ou justificam algumas políticas, mais do que discutem seus fundamentos ou
oferecem reflexões livres sobre suas implicações para o país e a sociedade.
Todos esses depoimentos, memórias e coletâneas de documentos e reflexões são
relevantes na construção de uma memória “viva” – se é o caso de se dizer – da história
diplomática brasileira; mas muito ainda falta a ser feito para se alcançar certo rigor na
tomada de depoimentos – que deveria ser um empreendimento oficial e coletivo, por
exemplo – e na sua depuração crítica, com todo o aparato da técnica historiográfica.
Mais importante, o Itamaraty não dispõe sequer de um historiador oficial, que possa
juntar os documentos mais relevantes, agrupá-los tematicamente e colocá-los à
266
disposição dos pesquisadores e do público at large, como ocorre com a U.S. Foreign
Relations series. Tempo virá, certamente, em que esse tipo de trabalho se fará em bases
permanentes e regulares, com a ajuda dos muitos historiadores que já ingressaram na
carreira diplomática.
267
35. Da democracia à ditadura: uma gradação cheia de rupturas
269
Tentações totalitárias
Regimes e situações não democráticos não desapareceram, como é óbvio para
quem observa o mundo como ele é. Alguns países, que tinham conhecido uma saudável
evolução democrática – na América Latina, na África e na Ásia, sobretudo – voltaram
experimentar desenvolvimentos autoritários. Países de democracia frágil, não
consolidada, ou submetidos a conjunturas mais ou menos traumáticas de instabilidade,
no seguimento de crises econômicas e sociais, ou de rupturas políticas fora da
normalidade – sim, porque existem rupturas políticas dentro da normalidade, como
aquela conhecida no Brasil em 2002 – podem reverter o relógio da história e recair em
tentações totalitárias (não pela vontade de seus cidadãos, por certo, mas pela
manipulação que fazem de massas não educadas líderes tendencialmente autoritários).
O que são esses regimes? São ditaduras “eleitas” – sim existe, como vimos ainda
bem perto do Brasil –, populismos personalistas baseados na manipulação
propagandística e na “compra” (literalmente) dos mais humildes e despolitizados,
cesarismos plebiscitários, enfim, uma variedade sempre criativa de regimes que, no
fundo, representam um decréscimo de qualidade da democracia formal – em vários
casos apresentando inúmeras deficiências substantivas –, mesmo coexistindo com a
manutenção do voto universal (que pode ser, como frequentemente é, manipulado). De
resto, apenas o voto não caracteriza um regime democrático, como os exemplos da
Albânia nos tempos de Enver Hodja, da URSS nos tempos de Stalin, ou ainda hoje na
Cuba dos irmãos Castro, podem amplamente confirmar...
271
(E) Ditaduras disfarçadas
Conservam certa aparência de democracia, mas consolidaram grupos ou
personalidades no poder que manipulam os processos políticos, perseguem os
opositores, concentram todo o poder e literalmente desmantelam as instituições em seu
benefício exclusivo. O exemplo mais notório é, obviamente, a Venezuela, que muitos
confundem com um regime progressista de esquerda, mas que nada mais é senão um
triste exemplo do velho fascismo por demais conhecido nos anos 1930. O caudilho
destrói todas as instituições, ou as coloca a seu serviço exclusivo.
P.S.: Quem quiser criticar minha abordagem, é obviamente livre de fazê-lo, mas
eu apreciaria receber argumentos mais consistentes do que gritos indignados. Ou seja,
aceitam-se reclamações justificadas, inclusive dos pequenos déspotas que circulam por
aí, fazendo a infelicidade de seus povos...
2145. “Da democracia à ditadura: uma gradação cheia de rupturas”, Shanghai, 22 maio
2010, 5 p. Considerações sobre os tipos de regime políticos existentes no planeta,
com uma classificação baseada em sete categorias de países, das democracias
plenas a Estados totalitários (felizmente em número reduzido). Postado no blog
Diplomatizzando (link: http://diplomatizzando.blogspot.com/2010/05/gradacoes-
da-democracia-um-exercicio-de.html). Publicado no boletim Mundorama
(31.05.2010; link: http://mundorama.net/2010/05/30/da-democracia-a-ditadura-
uma-gradacao-cheia-de-rupturas-por-paulo-roberto-de-almeida/). Relação de
Publicados n. 969.
273
Sexta Parte
O Brasil e o mundo, de um século a outro
275
36. Da diplomacia dos antigos comparada à dos modernos
Messieurs,
Eu me proponho submeter-vos algumas distinções – ainda bastante novas chez
nous – entre dois gêneros de diplomacia, cujas diferenças recíprocas podem ter, hélas,
permanecido despercebidas até aqui, ou que, pelo menos, foram pouco ressaltadas pelos
ensaístas. Uma é a diplomacia tradicional, tal como praticada pelos antigos, bastante
apreciada por eles, tanto pelos profissionais do ramo, quanto pela sociedade em geral. A
outra, é esta que estamos vendo implementada pelos modernos, e que lhes parece, a
eles, perfeitamente adequada às necessidades do país, quando, na verdade, ela só
contempla os interesses do pequeno grupo que a formulou e que a conduz. Tal exercício
de comparação, se não me engano, me parece interessante por duas razões principais.
277
Primeiramente, a confusão entre as duas espécies de diplomacia constitui entre
nós, sobretudo numa época revolucionária como esta, a causa de muitos males. O país
parece ter cansado de tantos experimentos inúteis, cujos autores, irritados pelo pouco
sucesso que tiveram nessas experiências amadoras, ainda tentam constrangê-lo a aceitar
tudo aquilo que a sociedade manifestamente não quer. Em segundo lugar, porque o
governo atual veicula uma noção de democracia e de participação popular que está nas
antípodas do que se descobriu serem os desejos – talvez confusos – dos estratos mais
esclarecidos da sociedade, que se redescobre um poder que, até aqui, ela acreditava não
possuir. Abrem-se, portanto, perspectivas diferentes daquelas que tivemos até há pouco,
desde a ruptura entre os tempos dos antigos e esta época dos modernos, chances talvez
nunca antes percebidas pela opinião pública mais engajada na participação cidadã.
Eu sei que se tenta confundir a exata apreensão e a correta compreensão dessa
realidade, apelando para falsos sinais de adequação entre a diplomacia moderna e a
antiga, supostamente equivalentes, ou ainda, tomando a primeira como funcionalmente
superior à segunda, o que é obviamente falso. A própria opinião pública hesita quanto
aos caminhos e ações que devem ser tomados para realmente conciliar o que era forte e
valioso, nos tempos antigos, e o que de novo lhe pretendem vender como sendo a sua
vontade, mas que, aparentemente, nada mais é senão o chamado ouro dos tolos, a eterna
mercadoria do populismo, envelopado na fantasia da mistificação. Vamos, portanto,
neste exercício, efetuar as distinções que se impõem entre os dois tipos de diplomacia.
278
respeitar velhos acordos e convenções já formalizadas pelos antigos, e se propunham
elevar ainda mais o novo respeito alcançado pelo país nos cenáculos externos.
No que se refere especificamente à diplomacia, a dos antigos sabia preservar o
legado de tradições profissionais ainda mais antigas, e estava, senão codificada, pelo
menos sistematizada num conjunto de práticas e de posturas que contemplavam os
grandes interesses da nação na frente externa, sem constituir necessariamente uma
alavanca poderosa para o seu desenvolvimento. Mas isto se devia a que ela era
efetivamente tradicional, e se apegava ainda a velhas doutrinas que, se tinham tido
sucesso em determinadas épocas, talvez não se prestassem mais aos novos tempos de
abertura econômica e de liberalização comercial. Os diplomatas do Ancien Régime
tinham sido treinados em escolas que valorizavam antigas noções de independência
nacional e de autonomia tecnológica, de tempos nos quais se justificava o mercantilismo
e se promovia, até com orgulho, a autarquia. No geral, contudo, eles sabiam distinguir,
de modo bastante claro, entre os interesses do Estado (e da nação) e os dos grupos
políticos que a dividiam em correntes contraditórias, passavelmente opostas entre si.
Mais importante, talvez, não tanto quanto aos temas e posturas, mas quanto aos
procedimentos e formas de trabalho, a diplomacia dos antigos se desenvolvia mediante
processos e métodos formalizados e rotineiros, que constituíam uma cadeia previsível
de decisões, transparente, eficiente. Seu formato era o de uma perfeita pirâmide: na sua
base estavam os trabalhadores manuais, aparentemente assimilados aos antigos ilotas,
mas perfeitamente treinados nas técnicas e inseridos numa organização que sabia
valorizar a competência primária e a responsabilidade individual sobre dossiês adrede
distribuídos pelas áreas de competência específica. Cada uma destas era chamada a se
manifestar sobre um determinado assunto, congregando opiniões e argumentos – todos
eles rigorosamente apoiados em dados empíricos e simulações de efeitos – que depois
eram assemblados e levados à consideração do nível superior para sua ultimação sob a
forma de instrução, prontamente transmitida a um dos muitos agentes da instituição no
exterior. Os tribunos eleitos reconheciam o valor da organização e vários chefes do
Ancien Régime se valiam dessas competências, trazendo para trabalhar junto de si um
determinado número desses profissionais, que podiam assim se exercer diretamente no
centro de comando de decisões políticas. Aparentemente funcionou a contento de todos.
Este era o universo dos antigos, no campo da diplomacia; suas tarefas não eram
unicamente compostas de missões informativas ou representativas, mas também de um
279
papel formulador e executor da própria substância da política exterior que o soberano
pretendia implementar, sempre sob estreito aconselhamento e consultas constantes entre
os técnico e os responsáveis últimos pelas decisões. Plebeus e aristocratas conviviam
nessa atmosfera ainda um pouco patrimonialista, pois as regras eram conhecidas de
todos, e mesmo servos de gleba podiam aspirar, um dia, alcançar pelos seus próprios
méritos uma posição de maior realce na hierarquia disciplinada que constituía o edifício
diplomático dos antigos. Alguns membros da casta compareciam à ágora, em algumas
ocasiões, para explicar aos cidadãos as razões de tais e tais escolhas; no mais das vezes,
contudo, se tratava de um clã bastante discreto e reservado, mesmo se alguns ousavam,
por vezes, assinar escritos explicativos ou mesmo panfletos interpretativos. Os meios
não eram especialmente abundantes, mas eram suficientes para o correto desempenho
das missões que lhes eram atribuídas, de modo claro, direto, devidamente registradas
nos anais e expedientes cuidadosamente preservados e regularmente arquivados.
280
propósitos legítimos: preservar os ganhos já alcançados pelo país na economia mundial,
avaliar eventuais ganhos oferecidos pelas novas regras que se cogitava implementar, e
decidir, apoiados no melhor conhecimento de que se dispunha, as opções apresentando
as melhores vantagens comparativas, ainda que relativas, como ensinou mestre David
Ricardo. Havendo cláusulas de exceção, ou reservas quanto a dispositivos intrusivos, se
podia fazer recurso a esse tipo de expediente de escape, ou de socorro. Opções abertas
sempre são de melhor alvitre do que obrigações muito rígidas ou regras inderrogáveis.
Em resumo, a antiga diplomacia, ou a diplomacia dos antigos, era um mélange
de conservação e de renovação, de cautela e de ousadia, de passos bem medidos, com
poucas rupturas de continuidade, tudo meticulosamente registrado, documentado, para
iluminar a memória dos contemporâneos com os registros do passado, e para instruir os
futuros cronistas sobre os motivos de terem sido conduzidos os assuntos em tal ou tal
sentido, num serviço tão tradicional quanto circunspecto em sua maneira de ser. Mais
importante: éramos respeitados em função do nosso saber (feito, na verdade, bem mais
de experiência adquirida) e da dedicação ao estudo dos dossiês. Até se dizia, vejam só,
que representávamos o consenso possível em matérias sempre tão complexas quanto são
os assuntos exteriores, envolvendo soberania e, mais que tudo, a credibilidade nacional.
Voilà Messieurs, creio ter traçado um retrato peut-être trop flatteur, mas assaz
realista da diplomacia do Ancien Régime, sem sequer precisar abordar algum tema de
substância, apenas me limitando ao seu espírito, ao seu modo de ser, vale dizer, à sua
natureza profunda. Não é preciso, aliás, penetrar nas querelas políticas, ou nas disputas
dos políticos – sempre mutáveis e inconstantes –, para refletir sobre as características
dessa diplomacia que criou escola e deixou saudades em espíritos mais sentimentais.
Ela constituía, acima de várias outras qualidades, um modo de ser, o resultado natural
de uma longa evolução, um estilo muito peculiar entre todos os demais serviços do
Estado. E, se me permitem uma referência literária, retirada do nosso caro Buffon, em
seu discours de réception na Academia, ousaria dizer que, nessa diplomacia dos antigos,
le style c’est l’homme même, ou seja, ela era fundamentalmente uma maneira de ser, ou
então, de navegar, entre um porto e outro de todas as representações abertas ao engenho
e arte dos nossos nômades profissionais.
Messieurs, essa era a diplomacia dos antigos, como penosamente me vem agora
à mente umas poucas lembranças, fugidias, de uma época não parece muito perto de
281
voltar, uma vez que estamos reduzidos à diplomacia dos modernos, nestes tempos não
convencionais, nunca antes vistos num país tão contraditório e tão cheio de surpresas.
282
erros, inclusive em tentativas frustradas dos antigos. As concepções que comandaram as
mudanças já estavam sedimentadas desde longas décadas nas mentes dos soi-disant
modernos; alguns deles, aliás, conseguiam ser ainda mais coerentemente anacrônicos:
eles mantinham as mesmas ideias desde os tempos em que o Império distribuía as cartas
um pouco em todas as partes do universo, sobretudo no hemisfério, e pretendiam aplicá-
las aos novos tempos, como se o mundo tivesse se mantido tal qual, como se o Império
fosse o mesmo, depois de quatro ou cinco décadas de mudanças não controladas.
Os modernos pretendiam rejeitar qualquer aliança com os representantes do
Império e estabelecer uma parceria dita estratégica com os representantes do Império do
Meio, que eles acreditavam ser os novos aliados preferenciais. Sequer se lembravam de
uma velha frase do mais famoso imperador do Oriente, segundo quem o imperialismo
era apenas um “tigre de papel”, e como tal deveria ser tratado. Esses companheiros
orientais, por falar nisso, abandonaram antigas diatribes anti-imperialistas e trataram de
usar a seu proveito, na máxima extensão possível, as benesses do velho Império – que
continuava novo, na verdade – para negócios dos mais diversos tipos: troca de saberes,
comércio ampliado, investimentos, pirataria, contrafação, possibilidades no campo das
capacitações humanas em ciência e tecnologia, enfim, tudo aquilo em que o Império
imperialista (se nos perdoam a redundância) continua primando pela excelência.
Totalmente ignaros quanto a essas mudanças certamente dialéticas, os modernos
inventaram uma tal de “mudança no eixo das relações de força no mundo”, para a qual
pretendiam contar com o apoio e a ação conjunta dos companheiros orientais, mas nisso
se viram frustrados pelo pouco companheirismo e reduzida coordenação da parte dos
novos companheiros. Eles até queriam inaugurar essa trouvaille bizarre que seria uma
“nova geografia do comércio internacional”, feita essencialmente de relações Sul-Sul,
como se esses intercâmbios tivessem de ser feitos à exclusão de todos os demais, com
os velhos parceiros do Norte, aliás bem mais providos de mercados e de créditos do que
os novos, os do Sul, recorrendo, por vezes, a insolvências e outras práticas heterodoxas,
digamos assim. Os modernos nem se deram conta que os companheiros orientais já
tinham inaugurado, bem antes, a tal de “nova geografia do comércio internacional”, que
era feita, justamente, de suas exportações de todos os tipos de produtos para todos os
parceiros possíveis, com ênfase especial nos mercados dos velhos imperialistas, os mais
atrativos a que podem aspirar os emergentes dinâmicos da economia mundial.
283
Em outra iniciativa infeliz, os modernos se empenharam em implodir propostas
dos velhos imperialistas de liberalizar o comércio no âmbito regional, alegando que o
que eles pretendiam não era bem integração, e sim um projeto de anexação, perverso
portanto, e como tal devendo ser devidamente sabotado pelos novos anti-imperialistas
no poder. Tal foi feito, com sucesso surpreendentemente rápido, tendo os modernos
encontrado aliados complacentes (ainda mais anti-imperialistas) no próprio continente,
o que permitiu uma implosão rápida, definitiva, sem apelo, desse projeto imperialista.
Menos feliz foi constatar que os demais possíveis parceiros na luta anti-imperialista
logo apelaram ao império para que este negociasse tratados bilaterais de adesão, que
lhes permitisse acesso privilegiado ao mercado dos velhacos imperialistas. Ah, ces
lâches, ces traîtres! Eles não percebem que estão se metendo na jaula do leão.
Inabalados por essas surpresas desagradáveis, os modernos buscaram expulsar o
império de todas as instâncias de coordenação e consulta da região, e assim também foi
feito, com a constituição de novas entidades, exclusivamente regionais, numa mostra de
orgulho e de afirmação identitários que certamente contaria com a plena aprovação dos
próceres da independência, esses antigos heróis da pátria continental, enfim liberta da
tutela imperial e de influências nefastas vindas de parceiros não desejados. Mais um
sucesso, igualmente, nessa nova empreitada, e assim passamos a dispor, graças aos
modernos, de entidades dedicadas exclusivamente aos interesses regionais, mesmo se
esses interesses estavam difusamente representados nas novas estruturas para poder
cumprir adequadamente o que supostamente eram os seus objetivos: integrar todos num
impulso vital em direção de um novo tipo de desenvolvimento, autônomo, integral,
justo, igualitário, inclusivo, progressista, soberano, ativo e altivo, bref, moderno.
Não importa muito se essa modernidade se fez em torno de velhas ideias, as tais
defendidas pelos modernos, retiradas por eles de velhos alfarrábios de outras eras, feitas
de muita intervenção estatal, de dirigismo, de protecionismo, de espaços para a
implementação de políticas setoriais de desenvolvimento nacional. Tudo isso, ao fim e
ao cabo, vai contra os objetivos da integração que se pretende impulsionar mediante
projetos grandiosos traçados nas conferências de cúpula e nos encontros políticos.
Enfim, não se pode pretender que tudo se faça ao mesmo tempo, e que tudo aconteça
como num passe de mágica, inclusive, naquilo que funcionava antes. Existia, por
exemplo, um pequeno espaço de livre comércio, que deveria evoluir para uma união
aduaneira, e depois, de maneira otimista, para um mercado comum, como o daqueles
284
velhos europeus imperialistas. O fato é que essas coisas meramente comerciais foram
julgadas pouco condizentes com o novo espírito inclusivo, progressista, dos modernos.
Não houve hesitação: o ânimo mesquinhamente comercialista que tinha presidido à
assinatura dos velhos acordos foi substituído pela nova abertura de espírito, social,
inclusivo, avançado e progressista, dos novos acordos rapidamente concluídos, todos
eles destinados a melhor defender os direitos sociais dos trabalhadores, mesmo se o
comércio – esse outro grande traidor das melhores esperanças – insistia em diminuir
perigosamente de volume e enfrentar alguns sobressaltos imprevistos.
No terreno dos procedimentos, finalmente, as mudanças foram sensíveis, lato
senso, e muito pouco sensíveis, estrito senso. A começar pela famosa pirâmide dos
processos decisórios, rapidamente invertida pelo esprit partisan, dito de centralismo
democrático (na verdade autoritário) dos modernos. Os ilotas responsáveis pelo trabalho
duro em cada uma das áreas e células em que se tinha organizado a casa antiga, numa
divisão social do trabalho dada pelas competências técnicas de cada um, passaram a ser
mais orientados pela linha do comitê central, do que preferencialmente pela análise
técnica de cada assunto do dossiê; assim, todo o processo começou a funcionar de modo
estranhamente alterado, de cima para baixo, e não segundo o curso natural das coisas,
como ocorria no Ancien Régime. De resto, como explicar decisões bizarras e tomadas de
posição inéditas, que dificilmente teriam emergido a partir do fluxo normal de estudo
dos temas, baseado na memória dos antigos e nos maços da memória coletiva? Aliás,
pergunta-se até onde, e se, algumas delas estão devidamente registradas nos cartapácios
onde antigamente se guardava todo o itinerário anotado das instruções adotadas?
Que reste-t-il de tout cela? Une photo, vieille photo, d’une ancienne demeure?
Messieurs, o quadro que estou traçando pode parecer exageradamente sombrio,
e pouco condizente com as novas disposições dos modernos, mas o fato é que nenhum
dos objetivos que eles mesmos se tinham fixado para sua diplomacia ativa e altiva – e
soberana, cela va sans dire – foram alcançados, e não foi por falta de empenho: não só o
representante le plus en vue dos modernos saiu pelo mundo em desabalada carreira de
viagens, visitas, convescotes e outras conferências grandiosas, como também o assessor
principal para essas coisas de soberania passou o tempo todo indo de um aeroporto a
outro, de uma capital a outra. Era preciso proclamar os novos tempos e as intenções de
285
mudança nas relações de força teimosamente presentes no mundo arrogante dos velhos
senhores, e de reforma do comércio internacional, em prol da tal nova geografia.
Vous savez, Messieurs, ce qui en est résulté de tous ces projets. Enfin, c’est le
droit, pour chacun, d’influer sur l’administration du Gouvernement, soit par la
nomination de tous ou de certains fonctionnaires, soit par des représentations, des
pétitions, des demandes, que l’autorité est plus ou moins obligée de prendre en
considération. Os modernos abusaram de todas essas prerrogativas até a exaustão,
multiplicando cargos e novas agências estatais à outrance. C’est probablement par un
coup de malchance que as aspirações não se materializaram; e não foi certamente por
falta de presença no mundo: nenhum petit village ficou à margem da nova cartografia
universal tão sabiamente desenhada pelo guia genial dos povos.
286
Que reste-t-il da fabulosa organização sem a tutela do império, que pretendia manter a
democracia e inaugurar uma nova era de desenvolvimento inclusivo, com comércio
ampliado entre os parceiros progressistas e novos direitos assegurados a todo o povo
trabalhador? Que reste-t-il de tout cela? Une photo, vieille photo?
J’avoue, Messieurs, que je n’ai pas de réponses à toutes ces questions. Começo
a desconfiar – mas esta já era uma suposição de départ – que a diplomacia dos ditos
modernos é feita, na verdade, de velharias, de ideias muito antigas, que se aposentaram
em outras paragens e que acabaram aportando por aqui e aqui ficando, pois encontraram
terreno fértil na cabeça de certos amadores da diplomacia, uma tribo de exóticos e de
sonhadores que ainda não atinou, hélas, que o mundo mudou, e que eles, sem perceber,
acabaram ficando anacrônicos. E se por acaso estivéssemos todos enganados, no sentido
287
em que os antigos são os verdadeiros modernos, e que os tais modernos se revelaram
surpreendentemente en arrière des faits et des choses ? Voyez bien, honnêtes gens!
Pode até ser que este meu relatório de minoria, Messieurs, não sirva para muita
coisa, em nossos tempos não convencionais. Mas não hesito em apresentá-lo aos
senhores, na esperança (peut-être illusoire) de que seu esprit de contradiction possa
convencer de ce formidable bouleversement du monde alguns céticos dispersos dans
cette ancienne demeure, riche de traditions, par trop respectable, mais devenue –
comment le dire Messieurs? – dispensable, superflue, négligeable?
Como diriam em certas terras exóticas, talvez bizarras: não há bem que sempre
dure, não há mal que nunca se acabe. Os anos de bonança, quando tudo parecia fácil e
alcançável, parecem aujourd’hui révolus. É tempo de pensar em revisar certas ideias
fora de lugar e fora de época; é hora de repensar os fundamentos dessa tal de diplomacia
dos modernos. Mal parafraseando os epígonos, ela se parece com aquelas estruturas
sociais desajustadas, perdidas na transição entre dois modos de produção, e que não
conseguiram combinar muito bem as forças produtivas da nação, uma infraestrutura
pujante ainda que contida por um Estado feudal, e a superestrutura das relações de
produção, que carecem de que lhes quebrem os grilhões que as prendem a noções
antiquadas, contaminadas pela poeira dos tempos, mesmo que pouco convencionais.
L’édifice bien décoré proposé en tant que modèle et hautement chanté par les modernes
ce serait-il, finalement, écroulé ?
Il est temps, Messieurs, de repartir, alors, pour de bon. J’ai confiance que les
bonnes idées prévaudront, car ce sont elles qui sont les bonnes, même anciennes. En
fait, Messieurs, les modernes, sommes nous. Ils sont les arriérés, les âmes candides, les
décervelés. Défions-nous donc, Messieurs, de cette admiration béate, déplacée, qu’ils
entretiennent pour certaines idées qui semblaient modernes, mais qui, en fait, ce sont
des réminiscences antiques, d’une époque complètement révolue. Libérons-nous de tout
cela, car nous ne sommes pas esclaves de concepts liés a des anciens despotismes. La
diplomatie antique, Messieurs, voilà la véritable modernité! En plus, elle défend les
libertés, contre les amis des dictatures et des tyrannies.
Réjouissons-nous donc de sages conseils de la diplomatie des anciens, car c’est
elle qui nous a amené les progrès que les civilisations réussies ont consenti à
288
l’Humanité toute entière. C’est elle qui nous a mené à tout ce que l’ancienne maison de
notre diplomatie a construit de bien et de durable. C’est elle qui va nous faire revenir
sur le chemin de l’avenir, car c’est elle qui correspond le mieux à l’éducation morale
des citoyens…
2822. “Da diplomacia dos antigos comparada à dos modernos”, Hartford, 4-7 maio
2015, 12 p. Artigo, da série clássicos revisitados, comparando a diplomacia dos
antigos, ou seja, pré-2003, com a dos modernos, ou seja, dos companheiros,
tomando como modelo o texto de Benjamin Constant, “De la liberté des anciens
comparée à celle des modernes”. Mundorama (20/05/2015; link:
http://mundorama.net/2015/05/20/da-diplomacia-dos-antigos-comparada-a-dos-
modernos-por-paulo-roberto-de-almeida/). Relação de Publicados n. 1178.
289
37. A ordem econômica mundial, do século 19 à Segunda Guerra
1) Como apontado no artigo, o liberalismo clássico não existe mais desde a década de
1930. O Estado ganhou papel mais ativo na sociedade, e as relações sociais
passaram a ser amplamente regulamentadas. Apesar disso, movimentos políticos,
como os libertários nos Estados Unidos, defendem a volta daquele modelo. O que
você acha disso?
PRA: Sendo breve, eu diria que não existe a menor chance disso acontecer, ou
seja, um volta ao “modelo” liberal, que não era modelo, e que de fato não existia. Mas
cabe elaborar um pouco mais a esse respeito, recolocando esse suposto “modelo” em
seu contexto histórico. Existem aqui duas questões de natureza diferente: o mundo real
e o mundo das ideias. O primeiro tem a ver com processos e eventos concretos, fatos
290
objetivos, ocorrendo no mundo das relações sociais efetivamente existentes: a produção,
a comercialização, fluxos e estoques de poupança, de investimentos, moedas, etc. O
segundo se refere a um conjunto de concepções sobre esse mundo, que podem ser
aplicadas ex-ante “por engenheiros sociais”, ou seja, para planejar e mudar a forma
como as comunidades humanas gostariam ou poderiam organizar aquelas relações, ou
implementadas a posteriori, ou seja, o que e como fazer em face de eventos ou fatos
objetivos que fogem ao processo normal de desenvolvimento das mesmas relações, e
que exigem respostas da comunidade, tomadas com base em certas ideias, pequenas,
modestas, ou grandiosas, verdadeiramente transformadoras. Quanto mais pretensiosas
essas ideias, maiores os desastres que podem esperar seus propositores e suas vítimas.
O capitalismo, tal como conhecido historicamente, pertence, obviamente, bem
mais ao mundo real do que ao mundo das ideias, mesmo quando ideólogos e filósofos
sociais buscaram teorizar ou explicar o “sistema”, desde o Iluminismo até a atualidade.
O fato é que nenhum cérebro genial “planejou” o capitalismo: ele foi sendo implantado
aos poucos, como resultados de processos “naturais” de desenvolvimento econômico e
social, sem qualquer central coordenadora de suas “boas” ou “más” variantes. Diferente
é o status do socialismo e das concepções coletivistas e de dirigismo econômico,
aplicadas tanto nos casos dos fascismos europeus do entre-guerras – como o fascismo
mussoliniano ou o nazismo hitlerista – quanto na experiência mais longeva do
socialismo de tipo soviético. O dirigismo também existiram na forma mais amena do
planejamento indicativo de diversos países europeus na segunda metade do século 20.
Aqui estamos falando de ideias que tentaram guiar o mundo real, sempre com falhas e
limitações intrínsecas, ou mesmo produzindo alguns desastres incomensuráveis.
O liberalismo clássico, que na verdade nunca existiu, de fato, correspondeu, no
campo do mundo real, ao chamado período do capitalismo laissez-faire, a belle Époque,
grosso modo do último terço do século 19 até a Primeira Guerra, e no campo das ideias,
ao pensamento liberal de corte essencialmente britânico (escocês ou inglês), com umas
poucas derivações continentais (Benjamin Constant ou Alexis de Tocqueville, na
França, por exemplo, ou Wilhelm von Humboldt, na Prússia). Se ele de fato existiu, no
terreno do mundo real e no das ideias, ele veio a termo bem antes de 1930, e pode ter
sido “enterrado”, pelo menos temporariamente, pelos eventos momentosos da Grande
Guerra e, depois, pelas crises do entre-guerras, sobretudo pela Grande Depressão.
Termina aí um suposto liberalismo, muito pouco liberal, e muito menos clássico; foram
291
apenas experimentos locais de liberalização política e de relativa liberdade econômica
que correspondem ao triunfo temporário das concepções burguesas do mundo.
O neoliberalismo, que se ensaiou no terreno das ideias a partir das primeiras
reuniões da Sociedade do Mont Pelérin (com Friedrich Hayek), no final dos anos 1940,
só conseguiu ter um tênue ressurgimento muitos anos depois, quando da ascensão de
líderes políticos conservadores, como Margaret Thatcher, no Reino Unido, em 1979, e
Ronald Reagan, nos EUA, em 1980. Na periferia do sistema, nunca chegou a existir
qualquer neoliberalismo consistente, embora tenham ocorrido, no México, no Chile, e
alguns outros (poucos) países, tímidos processos de reformas econômicas tendentes a
limitar os excessos do nacionalismo doentio e do estatismo esquizofrênico em uso e
abuso nos anos da grande euforia keynesiana, do final dos anos 1940 ao final dos 70.
Mais recentemente, tomaram pequeno impulso grupos liberais ou libertários, e
alguns “anarco-capitalistas”, que representam uma tentativa de “revival” de antigas
ideias liberais, ou libertárias, mas que provavelmente não vão prevalecer, no momento
presente, ou, provavelmente, em qualquer tempo do futuro previsível. Os fenômenos
são quase inteiramente políticos, ou seja, de círculos intelectuais, e dispõem de pouco
apoio dos verdadeiros capitalistas, estes sempre ocupados em obter algum tipo de
entendimento com as burocracias governamentais, com a máquina estatal. Ou seja, os
ideais liberais, ou libertários, se desenvolvem um pouco à margem dos processos reais
de organização econômica e social.
Depois desta contextualização histórica sobre o itinerário das ideias e processos
econômicos no último século, cabe responder à pergunta especificamente formulada
sobre as chances que teria, historicamente ou praticamente, uma volta a um modelo
liberal de capitalismo que teria existindo mais de um século atrás. Meu argumento,
como já referido, é que esse liberalismo, na verdade, nunca existiu, de fato, ou seja,
como expressão de tendências “naturais” do sistema capitalista nessa etapa de seu
desenvolvimento histórico. Respondendo rapidamente à primeira pergunta, portanto,
pode-se confirmar que o liberalismo “clássico”, se já não existia antes, não tem a mais
mínima chance de retornar agora, e não tem qualquer perspectiva futura em termos de
governança econômica ou de organização do Estado. Ele permanece uma ideia.
Não é que ele não tenha nenhuma chance teórica de voltar a conquistar corações
e mentes de acadêmicos, ou mesmo de algumas (pequenas) frações da opinião pública,
pois sempre existirão ideólogos liberais que conseguirão fazer passar a sua mensagem
292
de liberdades econômicas a espectros mais amplos de algumas sociedades. É que a
complexidade do mundo moderno, o agigantamento da burocracia, a dimensão já
alcançada por um sem número de programas estatais, ou públicos, nos mais variados
setores da vida social (e individual) tornam irrisórias essas chances de revival liberal no
futuro previsível. Será muito difícil, senão impossível fazer o Estado recuar para as
dimensões e a importância econômica que ele tinha um século atrás. Seria como se
tivéssemos de colocar o gênio para dentro da garrafa outra vez, ou, como já afirmou
uma mente privilegiada, de “enfiar a pasta para dentro do dentifrício novamente”.
O fato de que grupos liberais, libertários, façam campanha ou agitem bandeiras
proclamando a necessidade de se reduzir o papel e o peso do Estado na vida não só
econômica, mas simplesmente cotidiana, não significa que essa reversão seja factível ou
sequer imaginável. Já nem se está falando dos anarco-capitalistas, dos libertários, que
desejam uma ausência completa do Estado, pois eles são como os anarquistas do século
19: um punhado de sonhadores, um número muito reduzido de militantes utópicos. Os
liberais verdadeiros, aqueles que desejam apenas medidas racionais para uma maior
amplitude das liberdades econômicas na organização social contemporânea, não devem
esperar qualquer avanço notável em favor ou no sentido de sua pregação bastante
sensata e altamente razoável. O liberalismo não desapareceu, e não desaparecerá, mas
suas chances de se tornar hegemônico – o que ele nunca foi – continuam e continuarão
bastante reduzidas.
As razões podem ser resumidas assim: as sociedades contemporâneas dispondo
de economias avançadas, com um grau razoável de prosperidade e de bem-estar para a
maioria da população, ainda não enfrentaram crises fiscais verdadeiras para reverter a
natureza ainda essencialmente keynesiana de suas políticas econômicas; tampouco elas
conheceram rupturas severas de seus modelos previdenciários e assistencialistas, que as
obrigassem a desenhar e implementar sistemas alternativos de seguridade social, que
represente uma diminuição do tamanho e do custo do Estado benefactor. Os países e
economias socialistas desapareceram praticamente por completo – e o que restou são
apenas aberrações aguardando os taxidermistas – mas eles nunca foram modelo de nada,
a não ser para mentes alucinadas das academias. Quanto aos países emergentes e nações
em desenvolvimento, eles ainda estão construindo seus sistemas de assistência social e
de seguridade inclusiva para desistir no meio do caminho. Nos dois casos, países
desenvolvidos e em desenvolvimento, políticos demagogos, mandarins privilegiados,
293
burocracias poderosas, excessivamente poderosas, impediriam qualquer reversão no
processo de construção de um Estado babá, que aliás está em expansão contínua.
Voltando a ser breve, eu apenas apelo ao realismo ou ao bom senso: não se pode
esperar a volta do liberalismo, nos Estados Unidos ou em qualquer outro lugar. Não há
nenhum risco dessa coisa acontecer novamente, inclusive porque já não acontecia antes.
O Estado sempre foi poderoso, desde os tempos do absolutismo; ele só tinha um papel
econômico relativamente reduzido por razões próprias ao processo de construção das
modernas sociedades urbanas e à organização do modo de produção capitalista. O gênio
já tinha saído da garrafa, talvez antes mesmo da Primeira Guerra Mundial; depois,
então, ele nunca mais deixou de se espalhar por cada poro da sociedade. Esse é o mundo
real, mas também está nos corações e mentes, ou seja, o culto desmedido do Estado. Se
olharmos o povo brasileiro, por exemplo, existe uma evidente comprovação dessa tese:
por mais que ele sofra nas mãos do Estado – de um Estado semifascista como o que
aqui existe – o povo brasileiro ama o Estado, quer mais Estado, suplica por políticas
estatais, tanto quanto os capitalistas estão sempre pedindo “políticas setoriais” aos
ministros e burocratas de Brasília. Portanto, não esperem nenhum recuo por enquanto.
2) Você menciona, no artigo, que o pós-Primeira Guerra foi caracterizado pelo forte
intervencionismo estatal na economia. Após a Segunda Guerra Mundial, no entanto,
o resultado foi completamente diverso, com a adoção do multilateralismo
econômico. Como explicar resultados tão distintos, em tão curto espaço de tempo,
em face de praticamente os mesmos países?
O forte intervencionismo estatal na economia começou no próprio bojo e em
razão da Primeira Guerra, e não apenas na organização da produção industrial voltada
para a guerra, mas também em função de todos os mecanismos financeiros e monetários
que conduziram à uma quase completa subordinação da economia às razões da política
até então conhecida na história da humanidade, processos que foram exacerbados nos
casos dos fascismos europeus, e levados a um delírio extremo no caso do bolchevismo.
Vozes liberais como as de Ludwig von Mises ou de Friedrich Hayek caíram num vazio
“ensurdecedor”, ao mesmo tempo em que ascendiam as doutrinas econômicas de corte
intervencionista, mesmo na versão mais moderada do keynesianismo aplicado.
O fato de que no segundo pós-guerra se tenha caminhado, no plano das relações
econômicas internacionais, para a ordem multilateral simbolizada pelas instituições de
Bretton Woods e pelo Gatt não quer dizer que se tenha abandonado o intervencionismo
estatal na economia, que aliás não se opõe ao primeiro fenômeno, e que pode até ter
294
sido o contrário do pretendido. Quase todos os países avançados aderiram, por certo, ao
multilateralismo econômico e continuaram, ou aprofundaram, formas diversas de
intervencionismo estatal, seja na forma mais light do contratualismo de inspiração
rooseveltiana, seja na versão bem mais dirigista do socialismo europeu (com diversos
países conduzindo processos extensivos de nacionalizações e de estatização, com
experimentos de planejamento indicativo que traduziam a mesma intenção).
Os resultados, portanto, não são distintos, e não são contraditórios, pois o fato de
se trabalhar num ambiente internacional mais aberto aos intercâmbios os mais diversos
– comércio, investimentos, abertura econômica, de modo geral – não impediu governos
de estenderem a regulação estatal a setores cada vez mais “privados” da vida social, em
saúde, educação, planejamento familiar, sempre num sentido “redistributivo” – ou seja,
para corrigir “desigualdades sociais” – e geralmente intrusivo na vida pessoal. Mesmo
nos países que souberam proteger as liberdades individuais – afastando o temor do Big
Brother orwelliano, que no entanto existia plenamente na União Soviética e na China
comunista, por exemplo –, a atuação do Estado se fez mais visível e praticamente
avassaladora, ainda que estando presente de uma forma não opressiva, como ocorria nos
casos “clássicos” de ditaduras comunistas. Mas até mesmo esses regimes opressivos
terminaram por aderir ao multilateralismo, embora nunca extirpassem os aspectos mais
intrusivos do controle estatal sobre seus cidadãos. No caso ainda mais exemplar dos
países em desenvolvimento, em princípio capitalistas e aderentes formais à ordem
econômica de Bretton Woods, o papel do Estado foi igualmente determinante, quando
não dominante, em quase todas as áreas relevantes de organização econômica. Continua
a ser, de certo modo, inclusive porque vários deles, depois de breves e/ou tempestuosos
ensaios com experimentos “neoliberais”, voltaram, pela via eleitoral, ao populismo
estatizante e demagógico dos velhos tempos de keynesianismo improvisado.
A pequena reversão do estatismo exacerbado registrado nesses países no período
recente e até os processos mais consistentes de desestatização e de maior abertura
econômica – como aliás ocorre atualmente na China – não foram capazes de diminuir o
peso do Estado na vida econômica, como aliás evidenciado nas estatísticas fiscais de
todos os países no último meio século: basta observar a carga fiscal nos países da
OCDE, para constatar o progresso constante do ogro estatal em praticamente todos os
países, independentemente dos progressos do multilateralismo e da globalização desde
os anos 1990. Em síntese, não cabe equacionar o multilateralismo da ordem de Bretton
295
Woods com o fim do intervencionismo econômico – embora ele tenha eliminado os
aspectos mais discriminatórios dos regimes comerciais precedentes, assim como dos
sistemas de pagamentos – pois este continuou sob novas roupagens e em novas formas.
O dirigismo rústico dos sistemas coletivistas do entre-guerras cedeu lugar ao Estado de
bem-estar social, que logo estabeleceu outros requerimentos em termos de “extração
fiscal” e de “redistribuição” pelo alto, não pela via dos mercados.
297
não ser tão mortíferas quanto no passado, etc. – mas ele continua tão excitante, ou tão
perigoso, quanto antes...
4) Entre o final do século XIX e meados do século XX, houve um intenso processo de
tentativa e erro. Nesses processos, várias alternativas políticas e econômicas foram
testadas. Para você, quais são as principais lições desse período de grandes
ensaios?
Excelente pergunta, mas que não pode ser respondida de modo simplista, ou de
forma ideológica. Aqui também é preciso estabelecer as distinções necessárias entre, de
um lado, processos reais no bojo de um itinerário “natural” da história econômica do
sistema capitalista, e, de outro, as ideias e as concepções que justamente estiveram por
trás dos grandes experimentos de “engenharia social”, que foram todos de natureza
política. Por exemplo, a noção de uma sucessão de “grandes ensaios”, de processos de
“tentativa e erro”, não pertence ao reino das possibilidades históricas previsíveis, pois
ela pressupõe a conformação de uma formação social submetida à ação voluntária de
atores sociais determinados a implementar esses experimentos, o que geralmente não é
o caso, pelo menos não no ambiente natural das democracias de mercado, que são as
experiências mais permanentes na história humana dos últimos cinco séculos. É certo
que grandes revoluções sociais – a francesa do século 18, a bolchevique e a maoísta do
século 20, não esquecendo as convulsões sociais que levaram aos fascismos do entre-
guerras – não foram planejadas, mas as mudanças impostas à economia e à vida social e
econômica na sequência de cada uma delas foram planejadas e implementadas sem que
os “erros” fossem esperados: estes resultaram da “lei” das consequências involuntárias.
Regimes absolutistas, ditaduras abertas, tiranias comunistas e fascistas surgiram
e desapareceram enquanto experimentos de “ensaio e erro”, uma vez que violavam
certas “leis econômicas” da organização social, ou contrariavam a aspiração natural dos
seres humanos a maior autonomia, à liberdade individual, à iniciativa privada e à defesa
da propriedade. O fato de a democracia inglesa ter se mostrado durável desde 1688, ou
de a grande nação americana ter preservado até a atualidade os traços fundamentais
estabelecidos um século depois pelos “pais fundadores” deve-se provavelmente ao fato
de não terem essas duas formações políticas embarcado em processos tentativos de
“ensaio e erro”, e sim respeitado algumas regras simples do jogo democrático e da
ordem econômica.
Todas as “grandes” experiências contemporâneas nessa vertente – os fascismos
europeus do entre-guerras e suas derivações periféricas, a escravidão bolchevique e o
298
monstruoso delírio maoísta, com seus milhões de mortos – foram todas legítimos
empreendimentos de “engenharia social”, o que não ocorreu com as democracias de
mercado, independentemente de suas crises econômicas e de seus problemas sociais. No
pós-guerra, as inflações latino-americanas, as sucessivas trocas de moedas, no bojo de
catastróficos programas de “engenharia econômica” tentativamente de estabilização, as
crises intermitentes derrubando presidentes e trocando ditadores também pertencem ao
mesmo universo dos ensaios de “tentativas e erros”, sobretudo no campo econômico.
O itinerário da União Soviética é exemplar nesse sentido: socialismo de guerra e
seu cortejo de fome e miséria; Nova Política Econômica, e sua pequena janela de
liberdade para pequenos mercados capitalistas; estatização extensiva e lançamento dos
planos quinquenais; coletivização da agricultura, seguido de nova onda de fome e de
uma enorme mortandade provocada; socialismo num só país e industrialização à base de
trabalho “escravo”; estatização completa da economia e consolidação de uma divisão
entre a produção civil e a militar; esgotamento do planejamento centralizado e ensaios
parciais de mecanismos de mercado; esgotamento completo do “modo socialista de
produção” e implosão final do sistema. O itinerário maoísta é ainda mais pavoroso, com
milhões de mortos sacrificados nos diversos experimentos de engenharia social no
espaço de uma única geração: repressão contra capitalistas e grandes agricultores,
seguida de uma coletivização antinatural para os padrões sociais chineses; grande salto
para a frente, com fome e canibalismo e milhões de mortos; revolução cultural, com
outros milhares de mortos e a destruição completa do sistema educacional; no total,
dezenas de milhões de sacrificados aos grandes ensaios maoístas, com o rebaixamento
completo da economia chinesa ao longo desse processo.
Especificamente no período limitado à primeira metade do século 20, é verdade
que ocorreram outros tantos “ensaios”, ou “alternativas de políticas econômicas”, mas
as que corresponderam mais exatamente a “tentativas e erros” foram quase todas, se não
todas elas, experimentos de engenharia social conduzidas por regimes autoritários. As
democracias de mercado que atravessaram diferentes políticas econômicas ao longo do
período, geralmente não o fizeram como tentativa e erro, a não ser involuntariamente. O
que elas fizeram, na maior parte dos casos, foi tentar adaptar-se às novas circunstâncias
criadas pelos processos econômicos, pelas dinâmicas dos ciclos de negócios, quando
não pelos cataclismos políticos representados pelos enfrentamentos com as potências
militarizadas e agressivas.
299
A maior parte dos mecanismos de intervenção estatal na vida econômica foi
introduzida quando da Grande Guerra, e apenas parcialmente revertida na sequência, o
que certamente criou uma primeira “cultura intervencionista” que ressurgiria em outras
circunstâncias. As medidas econômicas, corretas ou equivocadas, adotadas por sua vez
no entre-guerras, em especial no seguimento da crise de 1929 e da Grande Depressão
iniciada em 1931 – protecionismo, manipulações cambiais, desvalorizações maciças,
controles de capitais, bilateralismo comercial, intercâmbios recíprocos de compensação
–, também corresponderam mais a respostas (ainda que improvisadas) do que a supostos
“grandes ensaios” de economia política alternativa. Estes ficaram inteiramente no
terreno das ideias, geralmente com consequências catastróficas.
O grande experimento “capitalista” que entra na categoria da história das ideias
foi certamente o conjunto de prescrições de políticas econômica mais tarde enfeixadas
sob o rótulo de keynesianismo, mas muitas dessas medidas estavam sendo seguidas ou
implementadas de modo instintivo, antes mesmo que elas se convertessem numa
espécie de corpo teórico de “receitas” de política econômica a partir da publicação da
Teoria Geral (1936). Não é seguro que o mundo capitalista tenha sido “salvo” pelo
keynesianismo aplicado, assim como não é seguro que ele tenha construído as bases das
três décadas de prosperidade e de grande crescimento econômico do segundo pós-
guerra, embora certa historiografia econômica aprecie preservar esse mito.
É certo, no entanto, que as faculdades de economia aderiram rapidamente às
novas tábuas da lei, e passaram a cultivar o receituário keynesiano (inclusive de forma
passavelmente acrítica), mas isso se deu, provavelmente, mais por preguiça conceitual
do que por suas supostas virtudes no terreno da prática econômica efetiva. Governos,
como se sabe, costumam se guiar mais pela fria realidade das contas nacionais e dos
orçamentos, do emprego e das reservas monetárias, do que por doutrinas econômicas
produzidas nos gabinetes universitários. Eles também são geralmente infensos (ainda
bem) aos ideólogos da academia, mesmo se os líderes políticos sempre tenham presente,
em suas mentes e na formulação dos discursos, as ideias de algum economista morto,
como dizia o próprio Keynes.
Em todo caso, o keynesianismo foi acumulando o seu pequeno (ou grande) lote
de contradições teóricas e de impasses práticos, até literalmente implodir na famosa
estagflação dos anos 1970, quando suas bases foram sendo minadas tanto pelos
fracassos registrados quanto pelos avanços teóricos e práticos do neoliberalismo de
300
corte austríaco. Este, no entanto, nunca foi dominante, ou ideologicamente hegemônico,
pois, a despeito de ter conquistado alguns (poucos) corações e mentes no cenário
político e em algumas (poucas) academias, ele jamais conseguiu estabelecer sólidas
bases no campo teórico ou conquistar grandes espaços para si nas políticas públicas,
permanecendo sempre marginal e relativamente incompleto na panóplia de políticas
públicas efetivamente aplicadas (que sempre estiveram inevitavelmente congeladas no
universo teórico e prático do keynesianismo).
Quais as lições, finalmente, que podem ser extraídas das grandes turbulências
econômicas da primeira metade do século 20, com seu cortejo de desastres políticos e
militares, seu desfilar de milhões de mortos e suas enormes transformações nas políticas
econômicas de quase todos os países? Elas são muitas, mas foi preciso aguardar a “saída
da servidão”, que foi a implosão final da grande alternativa ao capitalismo, representada
pelos experimentos coletivistas, para realmente confirmar o maior ensinamento prático
que se pode extrair do espetáculo de “aprendizes de feiticeiro” que constituíram esses
experimentos no espaço de três gerações. Esse ensinamento diz que mercados, em geral,
costumam ser mais “inteligentes” do que burocratas governamentais para criar renda e
riquezas sociais, sendo também mais efetivos na distribuição racional dessas mesmas
riquezas do que governos bem intencionados. O grande erro do socialismo, como já
ensinava Mises desde 1919, não foi, finalmente, ter construído um regime de opressão,
de escravidão econômica, de fraudes políticas e de degenerescência moral; foi o fato de
ter ignorado os mecanismos de mercado, e a sinalização da raridade relativa pela ação
livre dos preços, como requerimentos básicos de um sistema sustentável, e racional, de
produção e de distribuição de bens e serviços.
Esta é, sem dúvida, a maior lição do período, que aliás tinha sido consolidada no
magnum opus de Friedrich Hayek, O Caminho da Servidão (1944). O ensinamento,
contudo, não parece ter sido absorvido pelas duas gerações seguintes, sequer pela atual,
pois a maior parte dos líderes políticos e dos responsáveis econômicos continua a seguir
a trilha do dirigismo econômico, do intervencionismo estatal na vida econômica, da
manipulação de moedas e orçamentos, provocando o espocar constante e regular de
desequilíbrios fiscais e de crises financeiras. Aqui não estamos mais no itinerário
“natural” do capitalismo, mas no desenvolvimento pouco natural das doutrinas políticas
e das concepções econômicas, com certa atração distributivista dos políticos e a adesão
inconsciente das massas às aparentes facilidades do Estado-babá.
301
De modo geral, todas as experiências coletivistas – fascistas ou socialistas –
foram um fracasso completo, algumas com um custo humano inacreditável, ademais do
custo mais permanente que se manifestou de modo indireto nas orientações dirigistas
das políticas econômicas, estas parcialmente compatíveis com a dominação ideológica
keynesianismo aplicado. O socialismo pode ter sido derrotado, mais na prática do que
na teoria – que continuou seu pequeno caminho de irracionalidades nas academias,
indiferentes ao mundo real – mas o capitalismo de Estado segue seu itinerário de
realizações – na China, por exemplo – e de contradições – na maior parte da periferia
capitalista, dentro da qual os países da América Latina. Ele não parece perto de ser
aposentado, ou de ser compulsoriamente enviado ao museu dos dinossauros
econômicos, e pode ainda dispor de um belo futuro pela frente.
Volto, portanto, ao meu argumento inicial: a despeito de terem sido superados os
experimentos mais nefastos de dirigismo econômico e de “engenharia social”, em vigor
na primeira metade do século 20, não parece haver nenhum risco de volta triunfal do
liberalismo, ou sequer de um retorno parcial de suas prescrições de maior liberdade
econômica e de completa liberdade individual. Por outro lado, e como constatação final,
uma outra grande lição não parece ter sido aprendida ou absorvida de modo completo: a
de que qualquer medida de distribuição social dos benefícios do crescimento econômico
necessita começar pelo reforço dos processos de produção e de inovação tecnológica,
sem os quais o distributivismo passa a incidir bem mais sobre os estoques de riqueza já
criada ou acumulada do que sobre os novos fluxos de criação de renda e riqueza por
meio do estímulo à atividade produtiva. Em conclusão, o liberalismo ainda tem uma
longa batalha a travar contra o socialismo, mesmo nas formas amenas deste último.
Como diriam alguns, a luta continua...
302
38. The world economy, from belle Époque to Bretton Woods
This essay deals with the relevant changes in the world economy, from the belle
époque to Bretton Woods, emphasizing elements of continuity and its ruptures and
303
discontinuities, or structural changes, during the inter-war period and as a result of the
two global wars, in international trade, in world finance as well as in institutional
aspects. Among the continuities, appears the resilience of a core group of advanced
economies, which is able to draft and define the international policy agenda, and the
importance of the industrial and technological capabilities to support any exercise of
strategic and military projection by those big powers. Among the discontinuities is the
failure of some emerging powers, namely Germany and Japan, in their challenging of
this world order by means of an imperial-like power projection outside of the core
group of market economies aiming to create a global interdependence based on
democratic and liberal principles. Another emerging power during that period, the
Soviet Union, was economically irrelevant and was not able to project its own power
before the end of the World War II; but Czarist Russia was, before 1914, a promising
force in international politics and a huge experiment in economic transformation, in
terms of industrialization, foreign direct investments and international borrowing.
The essay draws from the already huge literature in economic history dealing
with that period, including some contemporary analysts and observers, such as the
economist Ludwig von Mises and the novelist Stefan Zweig, but rely on interpretive
modern works by some well known economic historians like Rondo Cameron, Herman
Van Der Wee, and others. It constitutes a synthesis of this kind of research and offers a
broad framework for the more detailed analysis which is being conducted by the author
in connection with each one of the main economic leverages of the world economy
during that period: international trade, global finance, immigration, early regionalism
and first essays at economic multilateralism (within the League of Nations, for
instance).
World economy, during the half century going from the last decade of the 19th
century to mid 20th century, is a confuse patchwork of national economies, and their
respective colonial territories and semi-colonial dependent exporting economies, linked
diffusedly through voluntary or compulsory strings, made of trade in commodities
(from the periphery) and manufactured goods (from the industrial core), services,
capital, work-force (before the immigration restraining of the 1920s and 1930s) and
technology. A main feature of this world economy was its asymmetries and the growing
304
disparities in income and industrial capabilities between the advanced industrial
countries and the dependent periphery. Economic divergence is the main analytical
phenomenon at that period, but at the geopolitical level elements of continuity are also
relevant.
After the demise of the liberal order of the late 19th century and the beginning of
the 20th, world economy enters in the turbulent period of high inflation, external debts
insolvencies, currency devaluations and capital controls, and a high tide of intervention
and protectionism of the 1920s and 30s, just to converge – with the exception of the
soviet socialist economy – at Bretton Woods to a new order, characterized by economic
multilateralism and market principles, which are a formidable progress compared to the
era of the unequal treaties of the 19th century.
2809. “How many world economic orders existed, from the late 19th century up to the
Second World War?; Changes and continuities”, Hartford, 11 Abril 2015, 5 p.
Textos suplementares, em inglês, ao trabalho n. 2758, para fins de divulgação no
sistema da RBPI (enviado para: secretaria@ibri-rbpi.org). Publicado, sob o título de
“The world economy, from belle Époque to Bretton Woods”, em Mundorama
(21/10/2015, link: http://mundorama.net/2015/10/21/the-world-economy-from-
belle-epoque-to-bretton-woods-by-paulo-roberto-de-almeida/).
305
39. Relações Brasil-EUA no início do século 21: desencontros
Os anos 1990 foram marcados por características transicionais – pós-Guerra Fria, desaparecimento da União Soviética e fim de
alternativas ao sistema capitalista – e pela intensificação do processo de globalização – com grandes turbulências financeiras
que atingiram também o Brasil –, coincidindo com um grande crescimento da economia americana e seu distanciamento,
absoluto e relativo, de várias outras potências médias, situação evidente no terreno militar. O Brasil conheceu um processo de
ajuste macroeconômico bem sucedido ao longo do período, mas teve de socorrer-se financeiramente em Washington, tanto no
contexto bilateral, como no quadro do FMI.
307
introduzir novos elementos na agenda internacional, que passou a ser dominada pela
luta contra o terrorismo, o que refletiu-se igualmente na região (narcoterrorismo e
lavagem de dinheiro). Ademais da cooperação financeira, a agenda bilateral continuou a
ser dominada por fricções comerciais persistentes e por concepções diferentes do
processo de liberalização, marcado a partir de 1994 pelas negociações da Área de Livre
Comércio das Américas (Alca), mas desde 2005 sem qualquer agenda factível.
O regime inaugurado em 2003 no Brasil introduziu mudanças significativas no
padrão de relacionamento, ainda que a retórica diplomática tenha procurado manter a
aparência de continuidade. Na verdade, muitas das iniciativas tomadas pelos governos
lulo-petistas foram no sentido de consolidar uma orientação dita “anti-hegemônica” na
política externa e de constituir organismos de consulta e de coordenação regionais
afastados da esfera de influência dos EUA, a começar pelo implosão do projeto
americano da Alca. Nesse sentido, o relacionamento passou pelo mesmo ciclo anterior
de altos e baixos, com fases de reaproximação seguidas de afastamentos por falta de
entendimentos políticos – como no caso da espionagem sobre as comunicações
brasileiras feita pela National Security Agency – e por promessas de reativação das
relações econômicas e comerciais que nem sempre se traduziram em ações concretas.
308
Cone Sul. Desde a segunda metade do século 19, os EUA despontam como o principal
comprador do principal produto brasileiro de exportação, ainda que a Grã-Bretanha se
mantivesse como o principal fornecedor dos produtos de importação, de serviços e de
capitais financeiros e de investimento direto.
Tanto por parte das grandes potências europeias, como no caso dos EUA, o
Brasil se vê confrontado a posturas externas que vão do desprezo ao que mais tarde se
chamaria de benign neglect. No terreno econômico, em todo caso, a fase corresponde a
uma intensificação dos investimentos privados dos EUA na região e no Brasil em
particular, com a instalação de diversas empresas explorando serviços públicos – em
comunicações por exemplo –, na indústria de processamento alimentar ou de bens
duráveis e crescentemente em serviços financeiros, situação parcialmente revertida nas
fases posteriores de afirmação do nacionalismo brasileiro, seja durante a era Vargas,
seja durante o regime militar.
O período da administração de Roosevelt – que coincide grosso modo com a
primeira era Vargas – modificará em parte a postura isolacionista de seus predecessores,
buscando uma nova relação menos intervencionistas com os vizinhos da América
Latina, mas ele também coincide com as crises econômicas e financeiras dos anos 1930,
com o fechamento dos mercados e a ruptura dos equilíbrios internacionais, na Europa e
309
depois em escala mundial. O Brasil passa definitivamente da esfera britânica e da
utilização da libra como meio de pagamento e reserva para o âmbito do dólar e dos
financiamentos americanos, não sem alguma disputa de mercados e jogo de influências
envolvendo as potências nazifascistas europeias e mediante acordos de renegociação da
dívida externa com os dois grandes investidores ocidentais.
Tem lugar nesse período uma das mais importantes negociações bilaterais da
história das relações entre o Brasil e os EUA, relativa ao financiamento da implantação
de uma indústria siderúrgica no Brasil, processo iniciado ainda antes da guerra e
concluído já durante a fase de aliança estratégica entre os dois países. Os EUA emergem
como a potência militar incontrastável do pós-Segunda Guerra e o Brasil fará as apostas
corretas ao se aliar aos esforços de guerra (inclusive mediante a cessão de bases
militares no Nordeste) e consolidar seu alinhamento ideológico desde o início da Guerra
Fria. A cooperação nos campos de batalha da Europa tornaria o establishment militar
brasileiro bem mais permeável às concepções e doutrinas defendidas pela primeira
potência ocidental.
310
A prática da política externa independente, nos conturbados anos Jânio Quadros-
João Goulart, representa uma espécie de parênteses inovador num continuum
diplomático dominado pelo conflito Leste-Oeste. O impacto da revolução cubana e o
processo de descolonização tinham trazido o neutralismo e o não-alinhamento ao
primeiro plano do cenário internacional, ao lado da competição cada vez mais acirrada
entre as duas superpotências pela preeminência tecnológica e pela influência política
junto às jovens nações independentes. A aliança preferencial com os Estados Unidos
passar a ser pensada mais em termos de vantagens econômicas a serem negociadas do
que em função do tradicional xadrez geopolítico da Guerra Fria.
Essa situação de ambiguidade dura pouco, uma vez que já em 1964 se opera
uma volta ao alinhamento. Entretanto, o reenquadramento do Brasil no conflito
ideológico global representou mais uma espécie de “pedágio” a pagar pelo apoio dado
pelos Estados Unidos no momento do golpe militar contra o regime populista do que
propriamente uma operação de reconversão ideológica da diplomacia brasileira. Em
todo caso, observa-se um curto período de alinhamento político, durante o qual o Brasil
adere estritamente aos cânones oficiais do pan-americanismo, tal como definidos em
Washington: ocorre, numa sequência de poucos meses, a ruptura de relações
diplomáticas com Cuba e com a maior parte dos países socialistas, assim como a
participação na força de intervenção por ocasião da crise da República Dominicana. A
política multilateral, de modo geral, passa por uma “reversão de expectativas”, para
frustração da nova geração de diplomatas que tinha sido educada nos anos da política
externa independente. Basicamente, essas atitudes se manifestaram nos primeiros anos
do pós-guerra e no seguimento imediato do movimento militar de 1964, para serem logo
em seguida substituídas por atitudes mais pragmáticas.
Tem início, a partir de 1967, uma fase de revisão ideológica e de busca de
autonomia tecnológica. A atitude contemplativa em relação aos EUA cede lugar a uma
diplomacia profissionalizada, preocupada com a adaptação dos instrumentos de ação a
um mundo em mutação, e instrumentalizada para o atingimento dos objetivos nacionais
de crescimento econômico. Praticou-se uma diplomacia do desenvolvimento,
consubstanciada na conquista de novos mercados (abrindo fricções comerciais com os
EUA em calçados e café solúvel) e na busca da autonomia tecnológica, inclusive
nuclear. Tem lugar, em 1975, a assinatura de um acordo de cooperação com a
Alemanha, motivando imediata e intensa oposição dos EUA, basicamente devido a
311
preocupações com a proliferação (o Brasil tinha recusado, em 1968, o tratado de não-
proliferação nuclear, por considerá-lo discriminatório e desigual).
A afirmação marcada da ação do Estado no plano interno e externo se fez em
grande medida à custa de conflitos com os EUA, como por exemplo na denúncia, em
1977, do acordo bilateral de cooperação militar (de 1952), por motivo de interferência
nos “assuntos internos” do País, de fato por causa do contencioso nuclear e da questão
dos direitos humanos). Observa-se no período a confirmação da fragilidade econômica
do País, ao não terem sido eliminados os constrangimentos de balança de pagamentos
que marcaram historicamente o processo de desenvolvimento: as crises do petróleo, em
1973 e 1979, seguida pela da dívida externa, em 1982, marcam, a despeito da
cooperação financeira, o começo do declínio do regime militar.
312
mas também por um irritante conflito comercial com os Estados Unidos. Os EUA se
queixavam de uma lei sobre informática que proibia a importação de computadores
pessoais assim como associações com o capital estrangeiro neste setor. O código
brasileiro de propriedade industrial, ainda que em conformidade com a legislação
internacional, constituía outro ponto de controvérsia, já que não reconhecia patentes
farmacêuticas. O governo dos EUA adotou, unilateralmente e de maneira ilegal em
relação ao direito internacional, medidas de represália comercial ao Brasil, que levou o
assunto ao GATT. Outros pontos de tensão nesse período se referiam a posições
divergentes nas negociações comerciais multilaterais da Rodada Uruguai, notadamente
nos temas de serviços e de propriedade intelectual.
O restabelecimento, em junho de 1986, de relações diplomáticas com Cuba,
rompidas pelos militares em 1964, não parece ter introduzido maiores divergências de
ordem política entre os dois países, assim como a busca, pelo Brasil, de uma
aproximação com os dois gigantes do mundo (então) socialista: pela primeira vez na
história do Brasil, um presidente visitou a China e a URSS. Com o gigante asiático, o
Brasil estabeleceu um programa de cooperação no domínio científico e tecnológico que
previa, entre outros, o lançamento de satélites sino-brasileiros a partir de foguetes
chineses. Ao mesmo tempo, tentativas de fazer avançar o programa espacial brasileiro
na área de lançamento de vetores eram dificultadas pela obstrução feita pelos EUA à
transferência de tecnologia de parceiros potenciais (França).
A cooperação financeira, entretanto, ingressa em uma fase de stress a partir da
decisão brasileira de decretar a moratória do serviço da dívida comercial, coroamento de
um longo processo de deterioração do equilíbrio financeiro externo do Brasil, que tinha
sido iniciado com a crise da dívida externa latino-americana em 1982, a partir da
moratória mexicana de agosto desse ano, seguida da inadimplência técnica do Brasil.
Diversos programas de sustentação financeira foram concluídos a partir de então com o
FMI, com a participação mais ou menos voluntária da banca privada, mas a erosão da
capacidade de pagamento foi se agravando ao longo de toda a década. O episódio da
moratória de 1987 revelou que o crédito político e financeiro do Brasil, junto aos EUA e
aos demais credores, era, nessa época, extremamente reduzido.
A gestão Fernando Collor de Mello (1990-92) foi basicamente infeliz no
domínio da economia, mas introduziu em contrapartida mudanças significativas na
política externa, a começar pelo processo de integração no Cone Sul (com a criação do
313
Mercosul, agregando o Paraguai e o Uruguai ao projeto de mercado comum já
concertado com a Argentina), que foi continuado na área nuclear, onde não apenas se
observa uma real distensão bilateral, mas também o início da revisão da doutrina de
capacitação nuclear adotada algumas décadas antes por militares e diplomatas. A reação
do governo brasileiro à proposta do presidente George Bush (pai) de estabelecimento
progressivo de uma zona de livre-comércio no hemisfério foi bastante cautelosa,
refletindo mais a postura do Itamaraty do que a disposição do presidente: com efeito,
Collor tinha dado início, logo no começo de seu governo, a um processo acelerado de
abertura econômica e de liberalização comercial, que seria confirmado por um
programa de redução tarifária (entre outubro de 1990 e julho de 1993), coincidente com
o estabelecimento da Tarifa Externa Comum prevista no Mercosul.
As relações políticas e econômicas com os EUA conheceram uma melhoria
parcial nesse período, como resultado da disposição de Collor em “liquidar” algumas
hipotecas herdadas do passado, que serviam como focos dos contenciosos bilaterais.
Assim, foram desmantelados os mecanismos protecionistas da Lei de Informática de
1984, ao mesmo tempo em que se revia a lei do software e se dava início à elaboração
de um novo Código de Propriedade Industrial, capaz de acolher o patenteamento
farmacêutico, centro dos conflitos e das retaliações dos EUA nos anos 1980. A
distensão se estendeu ao terreno financeiro, com a ação mais ortodoxa dos responsáveis
econômicos. Impedido o presidente Collor pelo Congresso, no final de 1992, seu vice
Itamar Franco assume o poder com uma plataforma bem menos reformista, mas ainda
assim dá continuidade ao processo de privatizações e de reforma tarifária.
A partir da presença do Senador Fernando Henrique Cardoso na condução dos
negócios da Fazenda, a partir de maio de 1993, e uma brilhante equipe de assessores
econômicos em postos estratégicos do governo Itamar Franco, foi possível conduzir um
processo realista e consistente de ajuste estrutural que, via desindexação planejada da
economia, acabaria levando ao plano Real, passando pela solução parcial do problema
da dívida externa em abril de 1994 e a suspensão da moratória.
314
econômicas e políticas no Brasil como às personalidades e à vontade política dos
respectivos mandatários, FHC, de um lado, William J. Clinton, de outro. De modo
geral, pode-se caracterizar essa fase como de ausência de desentendimentos políticos, de
um diálogo substantivo em temas de alcance regional e mesmo de âmbito econômico
multilateral, mas também de permanência residual de velhas e novas fontes de
contenciosos comerciais, alguns de ordem sistêmica ou estrutural (como o uso abusivo
de antidumping ou os subsídios agrícolas), outros de âmbito setorial (salvaguardas em
aço, protecionismo localizado em áreas agrícolas, como suco de laranja e tabaco).
FHC sempre ostentou uma visão pragmática das relações econômicas
internacionais, desmentindo os temores quanto à ideologia da “dependência” e de um
modelo de desenvolvimento baseado no modelo “cepalino”. Importante espaço, em sua
ação diplomática, foi ocupado pelo Mercosul e pelo projeto de conformação de um
espaço econômico sul-americano: FHC sempre recordou que foi em sua passagem à
frente do Itamarati, em 1992-1993, que foi lançada a iniciativa brasileira de uma “zona
de livre-comércio sul-americana”, sem tentativas excludentes, entretanto, já que as
relações com os EUA, reconhecidos enquanto parceiro econômico mais importante,
eram consideradas como prioritárias. Participante, como presidente eleito, da
conferência de Miami em dezembro de 1994, FHC revelou que foi “surpreendido pelo
prazo prematuro” com que foi lançado o projeto da Alca, tendo, ao final de seu governo,
estabelecido na cúpula hemisférica de Québec (abril 2001), as condições pelas quais o
Brasil poderia aceitar uma Alca.
Toda a segunda gestão FHC (1999-2002) foi marcada pela administração das
crises financeiras internacionais, com a negociação de dois pacotes de sustentação
financeira pelo FMI, com o apoio decisivo dos EUA em todas as operações. À diferença
dos brutais choques ocorridos na Ásia e na Rússia, elas foram implementadas sempre de
maneira preventiva a qualquer crise ou ameaça de default, não na sequência de cessação
de pagamentos ou de quebras bancárias ou empresariais; o Brasil teve porém de mudar
o regime cambial, abandonando o sistema de bandas pela flutuação em janeiro de 1999.
Ainda que o Brasil não tenha conseguido, nesse período, realçar sua posição no plano internacional, como talvez pretendesse
FHC, em virtude do impacto das crises financeiras, o País conquistou, mesmo assim, um alto nível de interlocução nos planos
multilateral e bilateral, dada a qualidade de seus dirigentes – em especial da equipe econômica – e o profissionalismo de sua
diplomacia. Os EUA também emergiram, no final do período, como o principal parceiro comercial do Brasil (em torno de
25%), superando os países da União (ex-Comunidade) Europeia, que em anos anteriores chegaram a concentrar quase um terço
do comércio exterior do Brasil.
315
Os desenvolvimentos financeiros dos dois últimos anos do governo FHC
ocorreram sob a nova administração George Bush, presumivelmente menos propensa a
pacotes de socorro financeiro ou a tratamento leniente para países emergentes por parte
das instituições financeiras multilaterais. Não obstante, o Brasil continuou a dispor de
canais abertos junto aos responsáveis financeiros de Washington, em grande medida
dada a seriedade dos compromissos do País com a estabilização macroeconômica e
também a credibilidade confirmada das autoridades brasileiras nessa área.
Um dos elementos relevantes da política externa brasileira na segunda metade dos anos 1990 foi, de maneira geral, a prática
extensiva da diplomacia presidencial e, de modo particular no plano bilateral, a intensa relação pessoal cultivada pelos
presidentes dos dois países, o que trouxe a interação entre o Brasil e os EUA ao melhor ponto de entendimentos políticos
alcançado em toda a história passada. Esse novo patamar do relacionamento resultou da coincidência de visões políticas nos
dois países (valorização da democracia, dos direitos humanos, do desenvolvimento social, uma filosofia econômica em geral
adepta da globalização), mas também do alto grau de envolvimento pessoal logrado ao longo desses anos, com diversos
encontros realizados bilateralmente ou à margem de reuniões multilaterais. Merece destaque, nesse particular, a visita bem
sucedida de FHC a Camp David, confirmando os laços pessoais travados pelos dois dirigentes e que se prolongaram além e à
margem das obrigações estritamente bilaterais, com consultas telefônicas sobre outros temas da agenda internacional.
316
passou a ocupar a quinta posição entre os países receptores de investimentos diretos dos
EUA, atrás da Alemanha e à frente do Japão. Parte desses investimentos dirigiu-se aos
leilões de privatização em áreas de infraestrutura abertos à participação estrangeira
(como telefonia e energia), mas um volume crescente também foi aplicado em setores
industriais e crescentemente nos serviços. A despeito da intensificação de laços
empresariais não foi possível negociar com os EUA um acordo para evitar a
bitributação (neste caso por dificuldades meramente técnicas, vinculadas à
determinação de algumas fontes de receita) nem um de promoção e garantia dos
investimentos (aqui em virtude da oposição de setores políticos no Brasil à cláusula de
arbitragem investidor-Estado e da cobertura da proteção a ser concedida).
A evolução foi favorável a ponto de os EUA terem admitido assinar com o
Brasil, depois de muita relutância dos responsáveis pela área de segurança, um acordo
de salvaguardas tecnológicas para a utilização da base de Alcântara para o lançamento
de satélites e equipamentos contendo tecnologia americana. O Brasil era o demandeur,
neste caso, e as resistências de alguns setores da administração americana – ainda
basicamente motivadas por preocupações de segurança e de não-proliferação, mesmo se
considerações comerciais não possam ser excluídas – foram vencidas mediante contato
direto de FHC com o presidente Clinton.
Assinado em abril de 2000, o acordo sobre Alcântara foi submetido a duras
críticas no Congresso brasileiro, em razão de seus efeitos eventualmente negativos em
termos de acesso brasileiro à tecnologia de ponta no setor espacial, adicionalmente a
outras considerações de caráter político ou econômico (quando seu objetivo precípuo
não era a transferência de tecnologia, mas sim, mais precisamente, o seu controle). O
novo governo Lula, em maio de 2003, determinou a retirada desse instrumento do
Congresso, assim como desistiu de vez de ratificar qualquer um dos muitos acordos de
promoção e proteção de investimentos estrangeiros que tinham sido assinados com
parceiros tradicionais, muitos dos quais pelo mesmo chanceler que depois serviria
durante os oito anos do seu governo. O acordo de salvaguardas de Alcântara foi
substituído por um inócuo acordo bilateral com a Ucrânia, que revelou-se inteiramente
ineficaz para os fins pretendidos, e todo o exercício pode ser considerado como uma
imensa perda de oportunidades pelo Brasil, por razões basicamente ideológicas.
317
A campanha presidencial de 2002, ao antecipar fortes tendências mudancistas,
alimentou certo recrudescimento das preocupações dos mercados financeiros com a
manutenção das linhas da política macroeconômica seguida na administração FHC, o
que se manifestou nos indicadores de risco, com a sensível deterioração do câmbio, dos
preços dos títulos negociados e a diminuição geral das linhas de crédito comercial e dos
fluxos de investimentos (diretos e de portfólio). O comportamento moderado do
candidato da oposição – que sinalizou seu apoio ao acordo com o FMI em agosto de
2002 e confirmou a aceitação dos princípios da intangibilidade dos contratos da dívida
externa e da responsabilidade fiscal – permitiu desanuviar possíveis tensões com o
governo conservador americano, que revelou então boa disposição para o diálogo tão
logo confirmada a vitória do candidato Lula. O presidente Bush não apenas telefonou
imediata e pessoalmente para cumprimentar o vitorioso desde o anúncio dos resultados,
como formulou convite para uma primeira visita de contato e de discussão informal.
Numa estratégia diplomática muito bem medida, o candidato eleito definiu poucas
viagens externas antes da posse, com destaque para uma visita aos mais importantes
líderes do Cone Sul e a aceitação do convite feito pelo presidente americano.
Nessa primeira visita de trabalho a Washington, realizada em 10 de dezembro de
2002 registrou-se visível empatia entre o líder da principal potência mundial e o futuro
presidente do maior país da América do Sul, ocorrendo a entrevista em ambiente
descontraído e com boa disposição para dar início a uma agenda cooperativa entre os
dois países. Partiu do mandatário americano a sugestão de uma reunião de alto nível
(envolvendo membros do gabinete) ainda no decorrer do primeiro semestre de 2003 (o
que por um momento pareceu ameaçado pelos desenvolvimentos do conflito dos EUA
com o Iraque). Em sua primeira viagem a Washington, o presidente eleito do Brasil
confirmou o interesse de seu governo em dar início a quatro anos de relações francas,
construtivas e mutuamente benéficas para os dois países, desarmando assim os críticos
conservadores dos EUA e surpreendendo grupos radicais no próprio Brasil.
De sua parte, os interlocutores americanos, que tomaram conhecimento nesse
mesmo dia do nome do ministro da Fazenda designado, na pessoa de Antonio Palocci,
um dos acompanhantes da delegação, ficaram positivamente impressionados pela
confirmação da manutenção das grandes linhas da política macroeconômica anterior, o
que sem dúvida desarmou o grave cenário de deterioração dos indicadores que vinha
manifestando-se até então.
318
De fato, a inauguração e o início do governo Lula foram auspiciosos e mesmo
surpreendentes em termos de ativismo diplomático. Confirmando a atenção especial a
ser dada pelo seu governo aos países da região, a começar pelo fortalecimento do
Mercosul, assim como a alguns grandes países em desenvolvimento, o presidente Lula
afirmou, em seu discurso de posse, que procuraria ter com os EUA “uma parceria
madura, com base no interesse recíproco e no respeito mútuo.” O novo chanceler,
escolhido na pessoa do experiente diplomata profissional Celso Amorim (já ministro
das relações exteriores de Itamar Franco), soube colocar as relações entre os dois países
no patamar correto, ao buscar a coordenação e o diálogo em todos os terrenos de
interesse comum, sem eludir, porém, as diferenças de posição em torno de pontos
concretos (como as negociações comerciais multilaterais e hemisféricas, por exemplo).
Os pontos de divergência pareciam superar os de convergência, manifestando-se
em especial em relação aos problemas da Venezuela, dos direitos humanos em Cuba e
do problema do Iraque no Conselho de Segurança. A “agenda positiva” prometida por
ambos presidentes pareceu algumas vezes comprometida em função do conflito no
Iraque, cujo impacto negativo foi temido no Brasil não apenas como resultado de
possíveis efeitos recessivos na economia mundial mas também por seus efeitos
corrosivos no sistema político multilateral. A eventual incorporação do Brasil como
membro permanente do CSNU realizaria um sonho acalentado pelas lideranças políticas
e diplomáticas desde a era da Liga das Nações ou, pelo menos, desde a conferência de
São Francisco que criou a ONU, mas ele vem sendo postergado desde muitos anos não
tanto em função das conhecidas limitações objetivas do Brasil, mas em decorrência das
próprias dificuldades em se lograr aceitação de uma reforma da Carta da ONU. Os EUA
sinalizaram seu apoio ao ingresso seletivo de novos membros, como sendo a Índia e o
Japão e alguns países em desenvolvimento capazes de assumir responsabilidades na
frente da segurança internacional, mas preferiram insistir, nos últimos anos, na tese da
reforma da ONU enquanto organismo burocrático superdimensionado, deixando o
espinhoso tema da reforma da Carta a ocasião mais oportuna.
Mas a relação também foi dificultada pela falta de entendimento em torno de
algumas questões importantes, como a da Alca, por exemplo, o que colocou as duas
administrações em posições díspares, uma vez que Lula e Amorim já tinha decidido
implodir esse projeto americano, o que finalmente conseguiram, dois anos depois – na
conferência de cúpula de Mar del Plata, em novembro de 2005 – com a ajuda dos
319
aliados Kirchner, da Argentina, e Chávez, da Venezuela. O restante da primeira
administração Lula e todo o seu segundo mandato foi ocupado, quase inteiramente, por
iniciativas e projetos brasileiros de “afastamento” da América do Sul da influência dos
EUA, consubstanciados na proposta da Comunidade Sul-Americana de Nações, que
representaria, segundo seus promotores, um mecanismo de coordenação próprio à
região e sem a “tutela do império”.
De fato, a implosão da Alca significou que muitos países do hemisfério,
interessados no acesso de seus produtos ao grande mercado americano e na atração de
investimentos dos EUA em suas economias, passaram a negociar diretamente com o
gigante americano acordos de livre comércio e de facilitação de investimentos, num
esquema não mais hemisférico, mas “minilateralista”, com os EUA determinando o
padrão e o conteúdo dessas relações econômicas. Acabaram ficando de fora os países do
Mercosul, e os chamados “bolivarianos” que, sob o comando de Hugo Chávez, se
decidiram por uma bizarra Aliança Bolivariana dos Povos da América, feira mais de
comércio administrado e de intercâmbios estatais do que de integração econômica.
O Brasil e o Mercosul passaram a promover mais ativamente a chamada
diplomacia Sul-Sul, pretendendo criar uma “nova geografia do comércio mundial”, que
se revelou, no entanto, extremamente modesta em seu escopo e alcance geográfico:
apenas três modestos acordos de liberalização limitada do comércio, com parceiros não
tradicionais – Israel e Palestina – e com a Índia, que sempre manteve a mesma postura
protecionista e dirigista dos dois principais parceiros do Mercosul, o Brasil e a
Argentina. Essa postura foi também agravada por desentendimentos persistentes com os
EUA no âmbito das negociações comerciais multilaterais da Rodada Doha, que não
apenas não foram concluídas durante o mandato originalmente acordado em 2001,
como se prolongaram em diversas tentativas frustradas no decorrer dessa década, e se
encontra praticamente estagnada desde o início da presente década.
O caráter morno – para não dizer moroso – das relações bilaterais Brasil-EUA
durante grande parte da era Lula, a despeito de uma retórica aparentemente amistosa e
sempre declarada positiva, pode estar ligada à partidarização evidente da diplomacia
brasileira sob a hegemonia do PT e do antiamericanismo indisfarçável de vários dos
dirigentes lulo-petistas. Não deixa de ser um fato que o PT se apresenta como um típico
partido esquerdista latino-americano, com maiores simpatias por certos aliados ditos
“progressistas” – quando não declaradamente comunistas ou socialistas, como os
320
regimes cubano e chavista – do que pelas democracias liberais de mercado, postura que
dificulta o estabelecimento ou o reforço de diversas iniciativas diplomáticas que, de
outra forma, poderiam estar sendo conduzidas pelo staff profissional do Itamaraty. Esse
elemento, sempre negado oficialmente, se mostrou evidente em vários episódios das
relações bilaterais ou no tratamento de diversos temas da agenda multilateral. Ainda que
Lula procurasse destacar suas boas relações com George Bush, não foi registrada
qualquer grande iniciativa econômica ou política que pudesse colocar essas relações em
outro patamar.
321
Dilma Rousseff se encontrava preparando uma visita de Estado a Washington, em
meados de 2013. A viagem foi obviamente suspensa, mas a amplitude e a acrimônia da
reação brasileira – bem mais intensas do que as registradas em países e por líderes
políticos aliados, igualmente espionados, como a chanceler alemã Angela Merkel, por
exemplo – provavelmente tem mais a ver com considerações de natureza política
doméstica do que propriamente com questões diretamente diplomáticas ou como
resultado de um desentendimento fundamental em relação a temas diversos da agenda
diplomática internacional. Afinal de contas, não é segredo para ninguém que os EUA,
como grande potência mundial, arrogante e unilateralista como podem ser os hegemons,
se dedicam a esses exercícios de espionagem – da mesma forma como todas as demais
potências relevantes – e vão continuar recorrendo a esse tipo de expediente, à margem e
independentemente da natureza de suas relações – de amizade, de cooperação ou de
desconfiança ou mesmo de animosidade momentânea – com parceiros, aliados e, a mais
forte razão, com países com os quais mantenham relações marcadas pela ambiguidade.
Ora, não é tampouco segredo para ninguém que o regime lulo-petista tem entre seus
aliados preferenciais alguns dos piores inimigos dos EUA – como cubanos, bolivarianos
e adeptos de regimes “anti-hegemônicos” como China e Rússia, por exemplo – e com
eles colabora abertamente em temas e agendas que têm como objetivo declarado
“mudar a relação de forças” no mundo, num sentido “pós-imperial”.
Não se pode esperar, nessas circunstâncias, que o “império” mantenha o projeto
de uma relação especial, estratégica ou cooperativa, com um governo que trabalha para
minimizar as fontes e o exercício desse poder hegemônico em diferentes âmbitos do
cenário mundial. De certo modo, foi o Brasil quem alimentou, historicamente, vãs
esperanças e ilusões ingênuas de uma relação especial com os EUA. Recorde-se, por
exemplo, a questão nem sempre bem colocada, e de certo modo totalmente artificial, da
“opção” (ou da oposição) entre uma “política externa tradicional” – por definição
“alinhada” – e uma “política externa independente”, problema dramatizado por anos de
enfrentamento bipolar no cenário geopolítico global.
Superado, contudo, o invólucro ideológico da postura externa do Brasil nesse
período ultrapassado (mas que parece estar voltando a partir das novas posturas da
Rússia e da China), e mesmo os diversos “rótulos” com os quais se procurou classificar
a diplomacia da era militar, assume importância primordial, atualmente, a questão do
desenvolvimento econômico, verdadeiro leit motiv da diplomacia brasileira
322
contemporânea. É por esse prisma que o Brasil identifica seus interesses prioritários e é
nessa postura que ele espera confortar seus temores mais manifestos, entre eles o de
uma dominação econômica americana, mais imaginada do que realmente realizada,
sequer em estado potencial. Parece incrível, nesse particular, que os mesmos críticos da
postura “arrogante” e “unilateralista” do império do passado (e do presente) não
reconheçam na China os mesmos elementos de dominação econômica que sempre
caracterizaram a presença das principais potências capitalistas ocidentais em direção do
Terceiro Mundo em geral, e de alguns países periféricos em particular (em especial
aqueles especialmente suscetíveis de serem inseridos de maneira produtiva na grande
divisão internacional do trabalho).
Um século atrás, os colonialismos europeus, e os imperialismos ocidentais de
maneira ampla, mantinham as mesmas práticas comerciais e faziam os mesmos tipos de
investimentos utilitários em transportes e comunicações, em infraestrutura no seu
sentido amplo, em direção da periferia colonizada ou semicolonial que hoje motivam a
China e seus ávidos novos capitalistas nos grandes programas de penetração dos
mesmos territórios e regiões suscetíveis de serem absorvidos pela grande máquina de
produção de massa localizada no gigante da Ásia do Pacífico. O que haveria de
fundamentalmente diferente com a atual postura chinesa, a não ser a ausência de uma
motivação colonialista explícita?
De resto, no que se refere aos objetivos propriamente econômicos dos dois tipos
de empreendimento, a ofensiva chinesa não parece ser muito diferente, no início do
século 21, em relação ao que se praticava um século atrás, embora as condições
geopolíticas tenham sido fundamentalmente alteradas depois do encerramento dos dois
grandes conflitos globais do início do século 20. No que se refere, por sua vez, a
projetos de desenvolvimento em escala nacional, alguns países latino-americanos
continuam a mostrar-se mais propensos a um modelo de desenvolvimento menos
dominado pelos mercados e pelos empresários privados, e bem mais orientado pelos
governos e burocracia nacionais e, de certa forma, parcialmente afastados das redes de
integração produtiva que se desenham em outras regiões, em especial na Ásia Pacífico,
justamente. Nem todos, porém, seguem as mesmas reticências protecionistas e temores
de “desnacionalização”, que parecem motivar atualmente líderes da Argentina e do
Brasil, entre outros; vários outros, aos quais se poderia aplicar o qualificativo de
323
“globalizadores”, parecem bem mais propensos a se integrarem nessas redes, como são
os membros da Aliança do Pacífico: Chile, Peru, Colômbia e México.
No caso da atual diplomacia brasileira, ao início do século 21, e em grande
medida graças ao exercício da diplomacia presidencial tanto por parte de FHC, como
por Lula, o relacionamento do Brasil com os EUA parece ter se tornado mais maduro e
isento de preconceitos ideológicos e de ilusões quanto a qualquer tipo de “relação
especial”, como ocorreu em diversas ocasiões de um passado não tão remoto. A
expectativa, registre-se, é bem mais, ou exclusivamente, brasileira, do que americana,
uma vez que a grande potência do Norte não tem, ao Sul, nenhuma ameaça à sua
segurança e portanto não atribui, às suas fronteiras meridionais o mesmo grau de
atenção estratégica do que a outras regiões, a começar pela Ásia Pacífico, pelo Oriente
Médio ou mesmo pela Europa central e oriental.
O Mercosul e a formação de um espaço econômico integrado na América do Sul
há muito deixaram de vistos, na agenda diplomática “imperial”, como um desafio à sua
hegemonia hemisférica, passando a serem vistos, naturalmente, como alavancas de um
processo de desenvolvimento que pode beneficiar a todos. Eliminada a hipótese de uma
grande área de livre comércio hemisférica, a Alca, patrocinada pelos Estados Unidos em
moldes similares aos da primeira tentativa efetuada na conferência americana de 1889-
90, o que ficou foi uma colcha de retalhos feita de diversos acordos minilateralistas com
parceiros mais propensos a aceitarem essa relação pragmática proposta pelo império. Os
temores, alimentados de forma recorrente durante anos, ou quiçá décadas, por parte de
líderes políticos, de uma “dominação econômica” do Brasil pelo gigante hemisférico, há
muito se esvaneceram, e começam a ser imaginados, doravante, os incômodos de uma
grande dependência econômica e financeira da China, menos imperial, talvez, mas
igualmente ambiciosa em suas pretensões econômicas unilaterais.
O relacionamento bilateral Brasil-EUA padeceu, durante muito tempo, de uma
“crosta” feita de declarações contínuas de interesse recíproco de parte e outra, mas de
um afastamento também contínuo ao longo do tempo, bem mais alimentado pelo Brasil
do que pelos EUA (que de fato teriam uma “não-percepção do Brasil”). Existiria, talvez,
um receio do Brasil de que uma aproximação com os EUA se faria em detrimento dos
interesses do País, daí as tendências a querer ganhar tempo, achando que mais tarde
estaríamos mais fortes e mais preparados. Isso obviamente nunca ocorreu, como
tampouco ocorrerá em relação à China. Enquanto o Brasil não se lançar decisivamente
324
nos circuitos sempre revoltos da globalização produtiva e da interdependência
capitalista, ele nunca estará preparado, psicologicamente, para inserir-se de maneira
autônoma nos grandes circuitos competitivos da economia global.
Os conflitos comerciais bilaterais ou multilaterais com os EUA e mesmo, dentro
de certos limites, certa oposição de interesses estratégicos são, nessa visão, compatíveis
com um bom nível geral de relacionamento político-diplomático, quando não com um
entendimento no plano estratégico, ainda que essa vertente seja por muitos considerada
prematura (pelas mesmas razões, percebidas e reais, de “assimetria estrutural”). Em
todo caso, os dois países parecem ter dado início a um estilo de relações desprovido de
a-prioris ou de condicionalidades estranhas ao próprio contexto bilateral e regional. O
terreno foi semeado nesse sentido ao longo das últimas décadas de reformas econômicas
no Brasil e pode estar sendo preparado, na atual fase de importantes ajustes econômicos
por parte do Brasil, para uma nova etapa de colheitas políticas e diplomáticas que
contribuirão provavelmente de maneira decisiva para a definição de uma nova relação
dos EUA com o Brasil e com a América Latina.
O desafio da China nos planos global, regional e bilateral, não deixa de colocar
novos elementos na agenda bilateral Brasil-EUA, e pode estar criando uma realidade
inédita no hemisfério, ainda a ser confirmada pelos fatos e processos nos próximos
anos: a de que os dois maiores países do continente precisam manter um nível adequado
de entendimento em torno de questões relevantes nas áreas da segurança estratégica, da
estabilidade democrática e do desenvolvimento econômico e social, inclusive para
superar décadas, senão séculos, de divisão entre as duas partes do hemisfério. Se bem
sucedido esse cenário, ele talvez nos leve de volta ao tipo de relação imaginado no
começo do século 20 por um chanceler tão distinguido quanto Rio Branco, que via na
relação dos dois países uma das chaves para uma projeção estratégica favorável do
Brasil na América do Sul.
Do ponto de vista da administração americana, por sua vez, a seleção de um
“parceiro privilegiado” no continente não é matéria fácil, nos planos diplomático ou
militar, e provavelmente ela não se fará de modo explícito, nem acarretará instrumentos
exclusivos de coordenação político-militar. Mas, o fato de o governo brasileiro estar
sendo ocupado por lideranças extraídas dos mesmos grupos que, no passado, relutavam
na adesão a certas teses econômicas ou políticas de extração “liberal” – para não dizer
que se opunham claramente ao “projeto americano” para a região – e o fato de que essas
325
mesmas lideranças demonstrem, agora, maior dose de pragmatismo na condução dos
negócios econômicos e da agenda diplomática, podem eventualmente significar que o
Brasil passa a simbolizar, aos olhos dos EUA, a superação de velhos comportamentos
atávicos na região, tendentes a equiparar anti-imperialismo e antiamericanismo ou a
adesão a regras responsáveis de gestão governamental a uma suposta submissão a
ditames econômicos emanados de um fantasmagórico “Consenso de Washington”.
Pode ser que essas ingenuidades esquerdistas e essas bobagens econômicas
estejam sendo, finalmente, superadas em favor de uma agenda bilateral mais realista do
que aquela imaginada pelos ideólogos anacrônicos do velho partido neobolchevique que
pretendia “revolucionar” a região contra o império, e que ela passe a estar totalmente
focada em resultados concretos. Pode ser: como no famoso teste britânico do pudim, a
resposta só pode vir da prática que resulte na sua efetivação. Vamos esperar para ver...
326
40. A falácia dos modelos de desenvolvimento
327
representar uma suposta nova receita de desenvolvimento, geralmente de vida efêmera
(isto é, enquanto duram as taxas robustas de crescimento de um país que serve
alegadamente de modelo).
Se quisermos ser abusados, diríamos que o modelo artificialmente construído só
dura enquanto se mantiverem as condições favoráveis do caso selecionado, um pouco
como o socialismo, que só dura enquanto durar o dinheiro dos outros. Modelos
verdadeiros deveriam ser experiências de fracasso, pois é mais fácil saber o que não dá
certo do que identificar claramente as condicionantes de um processo bem sucedido de
desenvolvimento. Como também se diz habitualmente, o sucesso pode ter muitos pais,
mas o fracasso raramente encontra uma miserável de uma mãe. No entanto, seria mais
útil saber o que pode dar errado, segundo a conhecida lei de Murphy, do que se por a
buscar todos os elementos que compõem uma receita de sucesso.
E não precisamos ir muito longe para recolher uma série inteira de fracassos
históricos. A América Latina é um imenso laboratório de experiências fracassadas de
desenvolvimento econômico. Não fosse por isso, não estaríamos exportando matérias
primas há quinhentos anos, e não teríamos sido ultrapassados por outros países e regiões
que já estiveram muito mais baixos e já andaram muito mais atrasados do que nós nos
níveis de desenvolvimento econômico e social. Digo isto com certo cuidado, uma vez
que na escala do desenvolvimento, a América Latina sempre foi uma espécie de classe
média do desenvolvimento, abaixo da periferia europeia, mas acima de muitos países
asiáticos e certamente bem acima da acumulação de misérias do continente africano,
este sim um modelo de não desenvolvimento, cujo fracasso histórico deve ser estudado
com cuidado, justamente como receita do que não fazer.
Em todo caso, uma história econômica diferente da América Latina seria uma
que se dedicasse a fazer o relato de seus fracassos apenas para desmentir essa falácia
dos modelos de desenvolvimento, uma vez que já tivemos, no passado, países inseridos
nessa categoria falaciosa, a começar pelo próprio Brasil. De modo geral, como já
referido, nenhum país é modelo para qualquer outro país, a não ser como modelo
negativo, sobre o que não fazer, e nessa categoria a América Latina tem dado sobejas
demonstrações de equívocos repetidamente repetidos, se ouso ser redundante. Não
querendo tripudiar sobre alguém, em especial, mas o fazendo, cabe reconhecer que a
Argentina, em particular, vem cometendo bobagens há mais de 80 anos, e isso contínua
e repetidamente, para ser ainda mais redundante.
328
Mas, não cabe aí nenhum orgulho patrioteiro sobre nosso progresso relativo em
relação ao mais importante vizinho: o Brasil segue os passos da Argentina, ainda que
moderadamente. Não tivemos a desgraça de cair no fascismo caudilhista e de construir
um sistema que perdura, como o peronismo, e que assombra todo o país, capturando até
algumas de suas inteligências mais refinadas, e que mantém a nação refém de um
cadáver insepulto, aliás mais de um. Nós tivemos o nosso fascismo moderado, apoiado
no positivismo castilhista, e mais recentemente um peronismo de botequim que, para
nossa sorte, não tinha nenhuma doutrina, só esperteza e demagogia (além de algumas
outras qualidades pouco recomendáveis).
De uns tempos para cá, o Chile foi apontado como modelo de desenvolvimento,
apenas porque cresceu vigorosamente nos anos 1990 e se tornou uma espécie de tigre
latino-americano, tendo inclusive conquistado a honra de ser admitido nesse clube de
ricos que se chama OCDE. Mas o Chile não é modelo de nada, ou para nada, apenas
uma resposta adequada que suas elites souberam oferecer, num determinado momento,
a desafios surgidos a partir de uma séria crise econômica e política. Ao que parece,
essas elites, consideradas de direita, neoliberais ou o que seja, julgaram conveniente
abrir o país economicamente, liberalizar amplamente seu comércio exterior e enfatizar
as velhas vantagens ricardianas que derivam de certas especializações produtivas.
No Brasil sempre se desprezou o “modelo chileno”, se modelo existiu – o que eu
não acredito – a pretexto de que se tratava de uma economia pequena, de um abandono
completo de uma suposta vocação industrial – que todo grande país deveria ter – e de
uma dependência em alguns poucos produtos primários de exportação, e que portanto,
segundo esses críticos superficiais, estaria fadado ao fracasso inevitável. Confesso que
nunca me impressionou essa história de crítica às especializações limitadas, à falta de
um projeto industrial, ou essa outra alegação ainda mais estúpida que se prendia à
pequena magnitude econômica do país. Em termos de sucesso ou fracasso, não existem
países grandes ou pequenos, aliás sob qualquer outro critério; existem apenas políticas
econômicas que funcionam e outras que não funcionam, medidas macro e setoriais que
são de boa qualidade, e outras que são de péssima qualidade. Sob esse ponto de vista, o
Chile foi de fato um sucesso relativo, pelo menos durante certo tempo (ou até que os
socialistas resolvessem mudar algumas regras do “modelo” anterior).
Em todo caso, qualquer país que ofereça uma perspectiva de crescimento
sustentado e de prosperidade a seu povo, que mantenha a qualidade das políticas
329
econômicas, macro e setoriais, pode ser considerado um exemplo de sucesso, mas isso
em seus próprios termos, dentro de suas circunstâncias, não como receita para os
demais, pois essas experiências são sempre “irrepetíveis”, se ouso dizer. O Chile,
justamente, parece que se cansou de ser neoliberal e agora vem tentado ser um pouco
mais socialista. Será que vai dar certo? Cabe acompanhar de perto, para alguma
hipótese do experimento desandar.
Alguns acham, otimistas, que o Chile é o caminho para o Brasil, que está
cansado de ser dirigista e protecionista, e talvez se aproxime um pouco mais de um
modelo mais aberto. Liberal? Esqueçam. Não há nenhum risco dessa coisa acontecer
por aqui nos próximos 30 ou 40 anos. Vamos continuar trilhando nosso pequeno e
medíocre itinerário de voo de galinha, como gostam de repetir os economistas, ou seja,
crescimento satisfatório, durante algum tempo – por autoindução, ou por empurrão da
China – e depois desabamos novamente para alguma crise fiscal ou de transações
correntes. Parece ser a nossa sina, ou pelo menos vejo isto, ao ouvir, até enjoar, a
conversa de políticos entendidos no assunto, que prometem continuar lutando para
garantir crescimento com emprego e distribuição de renda, desde que as políticas
corretas sejam aplicadas pelo governo, isto é, por eles mesmos. Acho que não vai ser
ainda desta vez...
Mas, se o Chile não é o modelo, para nós, ou para qualquer outro país, qual seria
o “bom modelo” a ser seguido? A Coreia (do Sul, of course), a China? Não me falem da
Grécia, por favor, esse país latino-americano (malgré lui) perdido na UE. Sobra quem,
afinal? Não tenho a menor ideia, e só me resta repetir: não existem modelos disso ou
daquilo, seja de crescimento rápido, seja de desenvolvimento “inclusivo”, seja de
qualquer outra coisa. Existem apenas modelos de fracasso, países que abusaram da
irresponsabilidade emissionista, que manipularam juros e câmbio, que cercearam a
iniciativa privada, que gastaram mais do que podiam, que se endividaram em excesso,
que praticaram um protecionismo rastaquera e um nacionalismo doentio, que
descuraram da boa governança e de uma educação de qualidade, enfim, todas essas
mazelas que todos vocês conhecem muito bem.
Estou falando do Brasil? Nem por sonho, imaginem se eu seria capaz disso?!
Estudo o Brasil há quase meio século e ainda não consegui perceber qual é a nossa, um
passo para a frente, dois para trás, tentativas de ensaio e erro, com mais erros do que
acertos, enfim, um país que decididamente não é normal, como já declarei em tantas
330
ocasiões (para uma experiência recente, meio desanimadora com a nossa “normalidade
anormal”, vejam este link: http://diplomatizzando.blogspot.com.br/2015/07/uma-estada-
breve-mas-suficiente-na.html). Então qual é a nossa? Qual é a saída?
Sou obrigado a me repetir mais uma vez, e me desculpo por mais esta
redundância. O caminho para o Brasil, para o Chile, para a Argentina, para a China,
para qualquer país candidato a um processo de crescimento sustentado, com distribuição
dos benefícios desse crescimento, que são a base do desenvolvimento econômico e
social, é muito simples (mas também é complicado, ao que parece). Eu resumiria as
minhas cinco regrinhas, que já desenvolvi em vários dos meus trabalhos sobre o assunto
(prometo pescar os links e postar depois em addendum a esta nota), nestes pontos:
1) estabilidade macroeconômica;
2) competitividade microeconômica;
3) boa governança;
4) alta qualidade dos recursos humanos;
5) abertura ao comércio internacional e aos investimentos estrangeiros.
Pronto, fico por aqui e não preciso acrescentar mais nada, pois acredito que os
cinco requerimentos são self-explaining. Não vou ficar dando consultoria de graça neste
momento, mas também não sou candidato a conselheiro do príncipe nem a “aspone” de
qualquer governante, pelo menos não dos que estão aí (eles não precisam, sabem errar
sozinhos). Só acrescento mais isto: as cinco regrinhas são suficientemente vagas para
servir a todos os casos de doentes renitentes nessas coisas de políticas macroeconômicas
e setoriais, mas elas devem ser, a cada vez, adaptadas às circunstâncias nacionais, o que
é o “óbvio ululante”, como já dizia Nelson Rodrigues.
O mesmo finado escritor, de tão grata memória em várias outras coisas (mas não
necessariamente em economia), também lembrava que subdesenvolvimento não se
improvisa, é obra de séculos, como ele mesmo improvisava. Eu discordo dele. Acho que
o subdesenvolvimento é, antes de mais nada, um estado mental, pelo menos no caso do
Brasil varonil. Sorry patrioteiros...
332
41. O TransPacific Partnership e seu impacto sobre o Mercosul
333
contrariamente ao artigo primeiro do GATT, certo grau de discriminação contra
parceiros comerciais não membros desse acordo mais restrito.
No caso desse acordo do Pacífico, como também de outros blocos comerciais
em vigor – em geral sob a forma de áreas preferenciais de comércio ou de zonas de livre
comércio, com alguns poucos casos de uniões aduaneiras, como a UE e, tentativamente,
o Mercosul –, a redução das tarifas aduaneiras aplicadas ao comércio recíproco nem
constitui o aspecto mais importante do esquema: as tarifas comerciais já são, para todos
os efeitos, muito baixas (com possíveis exceções na área agrícola, terreno, aliás, de
muitas das exclusões pontuais à liberalização), ou inexistentes, inclusive por força de
acordos já concluídos, como é o caso do famoso ITA, o acordo que zera as tarifas para
uma imensa gama de bens tecnológicos (geralmente de informática, ou eletrônicos em
geral). Com exceção do Mercosul, e de alguns outros blocos comerciais incipientes
entre países em desenvolvimento, as tarifas industriais entre parceiros avançados e em
vigor nos grandes acordos de comércio – como os de “associação” patrocinados pela
UE – as barreiras tarifárias não costumam ter a função protecionista que elas assumem
no âmbito do chamado “Sul Global”, embora as exceções pontuais e o tratamento
especial dado a alguns setores (agricultura, em grande medida) possam ser relevantes.
Mas, se as tarifas não são tão importantes nesse acordo do Pacífico, por que, então, as
dificuldades negociadoras, e as relutâncias já expressas por legisladores (sobretudo nos
Estados Unidos) aos seus termos?
Isto se deve a que o TransPacific Partnership não é um simples acordo de acesso
a mercados, ou seja, tratando apenas de tarifas de bens, e sim um acordo abrangente que
se estende às muitas áreas que, na linguagem da OMC, são introduzidas pela expressão
“aspectos comerciais de...”, ou seja, temas regulatórios e normas. Aqui figuram, entre
outros, investimentos, barreiras técnicas, propriedade intelectual, normas fitossanitárias,
meio ambiente, regulações laborais, compras governamentais, aperfeiçoamento dos
mecanismos de solução de controvérsias, sem mencionar o importante campo dos
serviços (sobretudo os financeiros, onde atualmente se destacam gigantes como os
próprios EUA, mas também cidades-Estados como Cingapura, ou “enclaves” como
Hong Kong). O Vietnã, por exemplo, terá de atender a alguns dos critérios expressos no
acordo que regulam normas laborais, permitindo a criação de sindicatos independentes,
que possam lutar pelos interesses reais dos trabalhadores, sem a interferência do partido
comunista, que mantêm a postura contrária a sindicatos livres dos marxistas no poder.
334
São esses os terrenos que passarão a ocupar um espaço significativamente maior
do que o próprio comércio de bens nos intercâmbios entre essas economias, que a julgar
por estimativas apresentadas recentemente já representariam 40% do PIB mundial (mas
menos de 30% pelo critério da paridade de poder de compra). Na verdade, os membros
do TPP são ainda mais relevantes do que a simples agregação dos PIBs nacionais, e os
seus números desafiam qualquer comparação com o Mercosul, e ultrapassam até mesmo
os indicadores mastodônticos vinculados à UE com seus 27 membros. O Mercosul,
mesmo incorporando Venezuela e Bolívia (que não poderiam, a rigor, ser considerados
membros plenos do bloco, sendo antes países associados a ele), empalidece em face dos
dois grandes blocos comerciais da atualidade, como também da China, o novo gigante
da economia mundial; o coeficiente de comércio exterior do Mercosul, por exemplo,
representa apenas 19% do PIB, contra 24% da China, 25% da UE e mais de 31% para o
TPP. A tabela abaixo, com estatísticas de PIB segundo o critério da paridade de poder
de compra, apresenta os mais importantes indicadores vinculados a comércio.
Indicadores econômicos por países e blocos (TPP, Mercosul, UE, China, Mundo)
País/Bloco População PIB ppp Export Import Xs - Ms
Austrália 23.490 1.100.000 250.800 245.900 4.900
Brunei 422 32.110 11.380 4.308 7.072
Canadá 34.834 1.579.000 465.100 482.100 - 17.000
Chile 17.363 410.300 76.980 70.670 6.310
Cingapura 5.567 445.200 445.200 375.500 69.700
EUA 318.892 17.460.000 1.610.000 2.334.000 - 724.000
Japão 127.103 4.807.000 710.500 811.900 - 101.400
México 120.286 2.143.000 406.400 407.600 - 1.200
N. Zelândia 4.401 158.700 40.210 40.710 - 500
Peru 31.400 376.700 36.430 40.250 - 3.820
Vietnã 93.421 509.500 147.000 138.600 8.400
TPP 777.179 29.020.810 4.203.900 4.951.628 - 751.538
Argentina 43.024 540.200 76.470 65.900 10.570
Bolívia 10.631 70.380 12.340 9.513 2.827
Brasil 202.770 3.073.000 242.700 241.900 800
Paraguai 6.703 57.870 14.610 12.370 2.240
Uruguai 3.332 69.380 11.000 12.050 - 1.050
Venezuela 28.868 545.700 83.200 50.340 32.860
Mercosul 295.810 4.356.530 440.320 392.073 48.247
China 1.355.692 17.630.000 2.252.000 1.949.000 303.000
UE 511.434 17.610.000 2.173.000 2.312.000 139.000
Mundo 7.256.490 107.005.000 19.080.000 18.860.000 220.000
Fonte: CIA Fact Book (https://www.cia.gov/library/publications/resources/the-world-factbook/;
acesso: 09/10/2015); valores: milhões de dólares correntes (PIB= ppp).
335
Uma comparação entre esses blocos em seus respectivos indicadores permite
verificar seu potencial impacto mundial em termos econômicos e comerciais. O TPP,
por exemplo, com apenas um décimo da população mundial realiza mais de 22% das
exportações globais, contra valores respectivos de 7% da população total para a UE,
com apenas 11% das exportações mundiais. A China, um gigante populacional, com
mais de 18% dos habitantes do planeta, ultrapassa a UE em matéria de exportações,
perfazendo sozinha 11,8% das vendas mundiais. O Mercosul a seis países, ainda que
detendo mais de 4% da população do mundo, representa apenas 2,3% das exportações
totais, mas apenas 1,8% do total quando reduzido aos seus quatro membros originais.
Em termos do PIB global, os contrastes são igualmente significativos: o TPP
representa 27,12% do valor agregado mundial (ppp), contra números relativamente
similares entre a China (16,47%) e a UE (16,45); o Mercosul a seis, em contraste,
representa apenas 4,07% do PIB mundial, mas tão somente 3,5% no formato a quatro
países. A importância do comércio exterior na economia de cada um dos blocos é
bastante diferenciada, mostrando o dinamismo relativo de cada economia tal como
refletido nas exportações respectivas: os países do TPP exportam, na média, US$ 6,41
per capita, ao passo que esse valor cai para US$ 4,27 no caso da UE e para apenas US$
1,66 por cada chinês; em contraste, os valores das exportações por habitante no
Mercosul a seis são de apenas US$ 1,44 e ainda inferior no caso do bloco reduzido a
quatro países: US$ 1,16. Aqui se trata de valores brutos das exportações, sem considerar
sua composição, o que certamente redundaria numa participação ainda mais irrelevante
no caso do Mercosul em termos de bens de maior valor agregado, ou seja, de mais
elevada elasticidade-preço (o Mercosul, na verdade, não vende muito ao mundo, apenas
é requisitado em termos de oferta de commodities e matérias-primas energéticas).
336
possuem seus próprios canais e mecanismos de fixação de preços) e dos parceiros sul-
americanos. Um outro aspecto de alta relevância é o de que, mesmo sendo um acordo
“regional”, é evidente que o TPP vai influenciar o formato, o escopo e a abrangência de
outros acordos do gênero, além dos próprios acordos multilaterais, seja um Doha
redivivo, ou qualquer outro esquema substituto ou sucessor, não esquecendo as
negociações em curso para um acordo bi-regional UE-Mercosul. Possivelmente, ou
quase certamente, novas rodadas de negociações, no plano multilateral ou em escala
mais limitada geograficamente, passarão a incorporar demandas por sua ampliação das
tradicionais barganhas por acesso a mercados a aspectos regulatórios já mencionados.
Em terceiro, e talvez mais importante lugar, esse acordo, assim como os demais
já existentes ou em negociação – como o “transatlântico”, entre EUA e UE – tendem a
conformar o padrão das trocas internacionais no futuro previsível e já definem, desde
muito, o processo em curso de integração mundial das cadeias produtivas, das quais o
Brasil e seus “sócios” do Mercosul estão em grande medida excluídos. Depois das
decisões tomadas na era Collor de abertura econômica e de liberalização comercial
unilateral – ou seja, uma reforma tarifária feita essencialmente no interesse do próprio
Brasil – e que influenciaram positivamente os ganhos de produtividade e o aumento da
competitividade dos produtos brasileiros, o país nunca mais experimentou uma redução
significativa de barreiras aduaneiras, tendo, ao contrário, aumentado o seu grau ainda
elevado de protecionismo comercial (sem mencionar a Argentina, que se excedeu nesse
tipo de restrição).
Não estranha, assim, que todas as avaliações feitas a propósito do TPP no Brasil
foram num tom de lamento conformado com o nosso isolamento mundial (em grande
medida atribuído à “bola de ferro” do Mercosul). Todos os observadores se perguntam
se o Brasil vai continuar na mesma letargia registrada nos últimos anos, apostando todas
as suas fichas num longínquo acordo multilateral ou no sucesso de um pouco plausível
arranjo Mercosul-UE. O país paga o preço, atualmente, pelos muitos anos de retração
comercial e introversão econômica, e quiçá por décadas de políticas setoriais
excessivamente calcadas no mercado interno, sobre as quais vieram agregar-se a miopia
inacreditável que consistiu na preferencia ideológica por uma tal de diplomacia Sul-Sul,
além da tolerância para com os desmandos argentinos em relação ao livre comércio no
Mercosul. Tudo tem um custo, e o Brasil conhece hoje os danos provocados pelas
políticas equivocadas dos últimos doze ou treze anos.
337
2887. “O megabloco do Pacífico e o Brasil”, Hartford 6 outubro 2015, 3 p.
Considerações sobre seus efeitos para o país, reconhecendo o protecionismo das
políticas econômicas adotadas na era recente. Versão mais ampla, de 5 p., sob o
título de “O TransPacific Partnership e seu impacto sobre o Mercosul”, para
Mundorama. Publicado (n. 98, 15/10/2015; link:
http://mundorama.net/2015/10/15/o-transpacific-partnership-e-seu-impacto-sobre-
o-mercosul-por-paulo-roberto-de-
almeida/?utm_source=feedburner&utm_medium=email&utm_campaign=Feed%3
A+Mundorama+%28Mundorama%29); divulgado no blog Diplomatizzando
(10/10/2015; link: http://diplomatizzando.blogspot.com/2015/10/o-transpacific-
partnership-e-seu.html). Relação de Publicados n. 1197.
338
42. Quais são as grandes ameaças ao Brasil?
339
dependências políticas e nos fornecedores de matérias primas essenciais do chamado
Terceiro Mundo, daí derivando os pontos de fricção e as “proxy wars”, as guerras por
procuração nas fronteiras distantes do capitalismo, no extremo asiático, na África ou na
América Latina. Nossos militares e a comunidade de informações também mantinham
programas de estudos sobre essas ameaças externas representadas pelo “movimento
comunista internacional” e seus poderosos representantes internos, muitos dos quais
eliminados, até brutalmente, pelos donos do poder.
Mas, é claro que o pobre e periférico Brasil não podia levar esses inimigos muito
a sério: ninguém então esperava, nem mesmo o mais anticomunista dos militares, que a
União Soviética fosse invadir o Brasil, ou que o Partidão estivesse próximo de subverter
a ordem desconstituída pelos milicos. O que não impediu, acidentalmente, que cubanos
e soviéticos penetrassem nossos códigos de criptografia, como já foi documentado em
registros e relatos de ex-servidores do finado regime comunista. O que ocorreu, então,
foi que, dentre as ameaças à soberania e à integridade territorial do Brasil, passaram a
figurar ações do próprio império, em princípio o grande aliado estratégico na luta contra
o comunismo. Não obstante a identidade geral de propósitos no plano geopolítico, ele
passou a ser considerado suspeito de buscar inviabilizar o desenvolvimento integral do
Brasil, não só nossa capacitação plena em tecnologias sensíveis –na área espacial, por
exemplo, sobretudo mísseis, mas também no domínio nuclear – mas também, e pior que
tudo, estaria supostamente comprometido com a internacionalização da Amazônia, ou
seja, o pecado maior de tentar subtrair aquele imenso território à soberania nacional.
A paranoia nessa área chegou a níveis ridículos, mas o fato é que os militares,
nacionalistas por definição, passaram a desconfiar dos EUA, o que reforçou o mesmo
sentimento cultivado pelos diplomatas, e pela opinião pública de modo geral. O Brasil é
um país que adora o capital estrangeiro, mas detesta o capitalista estrangeiro. Sempre se
considerou entre nós que a principal potência econômica e militar do planeta atua única
e exclusivamente em prol de seus próprios interesses egoístas, sacrificando em qualquer
circunstância projetos nacionais de desenvolvimento que possam representar alguma
ameaça – inclusive de natureza comercial – aos objetivos das grandes multinacionais
americanas. A França também padece do mesmo mal, e em ambos países têm sucesso
garantido publicações que agitam a ameaça do imperialismo americano.
Como a Guerra Fria já terminou – embora substituída, ao que parece, pelo que
eu chamo de “guerra fria econômica” –, trata-se agora de determinar quais seriam as
340
grandes ameaças ao Brasil. Ainda que a Rússia de Putin se comporte, em certa medida
como a ex-URSS, já não existe mais o movimento comunista internacional; os próprios
comunistas brasileiros preferem ficar amigos dos capitalistas para melhor extorqui-los
(mas tudo numa boa, claro, sempre em prol dos “negócios”). Será que vão mesmo
internacionalizar a Amazônia, ou cercar a Amazônia azul com uma nova frota? Será que
as empresas americanas continuam tão gananciosas como antigamente? Que tal desafiar
os estrategistas de academia, ou mesmo um militar com pretensões teóricas, a listar as
ameaças credíveis, de origem externa, à soberania e à segurança do Brasil?
Penso, penso, mas não consigo ver alguma ameaça verdadeiramente desafiadora
ao nosso país, embora os paranoicos de carteirinha sempre agitarão as rotas marítimas, o
cerceamento tecnológico, o narcotráfico ou a imigração selvagem como possíveis fontes
de preocupações relevantes para a manutenção da boa ordem na casa. Não imagino que
essas supostas ameaças sejam realmente problemas que necessitem a mobilização de
forças reais, além das pranchetas e apresentações dos pesquisadores e planejadores
estratégicos, que são pagos para isso mesmo: agitar corações e mentes. Algum inimigo
externo ameaça nossa soberania sobre o território e os recursos nacionais? A situação
regional seria assim tão preocupante a ponto de justificar simulações e ações tendentes a
dissuadir potenciais invasores ou aliados de grandes potências extracontinentais? Tudo
leva a crer que as alegadas evidências a esse respeito são, até o momento, inconclusivas.
O alegado “déficit de soberania” na Amazônia, onde se processa o narcotráfico,
e a vulnerabilidade das fronteiras sulinas ao tráfico de armas e de pessoas constituem,
de fato, problemas policiais, derivados de deficiências da presença do Estado em tais
regiões, que podem ser resolvidos na prática com o adensamento de forças já existentes.
Quais seriam, então, as principais ameaças ao Brasil, enquanto país, enquanto nação,
enquanto corpo político e enquanto economia organizada? Elas são muitas, e aponto
várias em seguida. Mas, primeiro, vamos ver as falsas ameaças, aquelas que encantam
certos acadêmicos e militantes de causas surrealistas, sem qualquer consistência porém.
Será que o Brasil está ameaçado de perder soberania e de ter o seu processo de
desenvolvimento prejudicado pela suposta “concentração de poder” no plano mundial
por um punhado de grandes potências, algumas capitalistas, outras nem tanto? Esta é
uma falsa ameaça agitada de forma recorrente por um dos ideólogos mais conhecidos de
certas causas alternativas, e que vive alertando para o grande perigo que representaria a
“concentração extraordinária” de poder econômico, político, tecnológico, militar e até
341
ideológico, propriamente, que caracterizaria o cenário internacional atualmente. Não
parece haver nenhuma novidade nessa “ameaça”; o mundo sempre esteve marcado pela
dominação de grandes impérios sobre regiões e países “dependentes” ou periféricos, o
que não impediu alguns dos grandes de decaírem – Espanha, China, Grã-Bretanha – e
de alguns “emergentes” de ascenderem na escala do poder mundial – Estados Unidos,
Japão, a mesma China. Grandes impérios tendem a favorecer um ambiente de paz e de
estabilidade para justamente poder aproveitar das benesses permitidas por tal condição:
sua preeminência econômica, tecnológica e militar lhes permite extrair renda de seus
dependentes ou do resto do mundo, o que não impede alguns destes de também
lucrarem fornecendo matérias primas, mão-de-obra ou manufaturas padronizadas aos
ricos do centro do sistema. Aquele ideólogo já leu Emmanuel Todd?
Pode-se, portanto, descartar essa falsa ameaça, contra a qual lutam certos
“soberanistas econômicos” que pretendem subtrair o Brasil da ameaça de dominação
econômica das grandes potências, o que só redunda em atraso relativo e perda de
oportunidades no comércio internacional e nos mais diversos intercâmbios de
intangíveis, inclusive ideias inovadoras para a modernização do sistema nacional. A
outra falsa ameaça seria aquela representada pela “deterioração dos termos de
intercâmbio”, que estaria supostamente associada à concentração da economia na
exportação de matérias primas e à dependência da importação de produtos mais
sofisticados. O mais curioso é que os que proclamam tal tese – por sinal falsa, mas
aceita como verdadeira, pois era proveniente de um dos gurus da economia do
desenvolvimento, ninguém menos do que Raúl Prebisch, aliás secundado por outro, o
sueco Gunnar Myrdal – são os mesmos que proclamavam (alguns ainda proclamam) a
necessidade de o Estado controlar, por companhias estatais, a produção e exportação de
matérias primas estratégicas, como minério de ferro e petróleo.
Será que ainda é preciso apontar a falácia desse tipo de argumento determinista?
Será que o sucesso da Vale privatizada – que contribui muito mais pagando impostos ao
governo do que antes com seus magros dividendos de exploração – e a miséria de vários
países exportadores de petróleo, monopolistas estatais no setor, não é suficiente para
demonstrar a falsidade de certas “teses” relativas à ameaça de “perder o controle” de
seus produtos “estratégicos”? A falsa ameaça da “dependência tecnológica” para, a
partir daí, construir custosos elefantes brancos de capacitação tecnológica por indução
estatal, pertence ao mesmo universo das falácias econômicas sustentadas justamente
342
pelo temor de um “atraso tecnológico irremediável”, caso o Estado não “viabilize
pesquisa de ponta”, em setores escolhidos por burocratas, não por empresários
competindo num mercado livre e aberto a todos os inovadores estrangeiros.
Em defesa da ação estatal para remediar tal tipo de “ameaça”, os ideólogos
costumam insistir no suposto papel preeminente do Pentágono na introdução de
tecnologias “revolucionárias”, que começam no setor militar e depois são disseminadas
na economia civil, trazendo uma prosperidade inédita aos EUA, que por acaso também
são uma potência econômica e militar justamente “devido aos gastos do Pentágono”.
Não ocorre aos que assim pensam que os EUA são poderosos a despeito do Pentágono,
não por causa dele, e que aquele exemplo perfeito de stalinismo militar nada poderia
fazer se a sociedade americana – engenheiros, cientistas, empresas inovadoras, simples
inventores isolados no fundo de alguma garagem doméstica – não fornecesse a base
essencial, sem a qual o Pentágono nada poderia oferecer, por mais dinheiro que gastasse
(aliás, geralmente muito mal). Não ocorre a essas mentes iluminadas que o segredo do
“sucesso” do Pentágono está, não nos generais estrelados e cheios de medalhinhas e
brasões, mas na professorinha de aldeia e na cadeia educativa que tem total liberdade de
inovar (e de fracassar), o que é típico do sistema americano. Essas mentes não se dão
conta que os EUA conceberam, involuntária e naturalmente, um “modo inventivo de
produção” que passa longe dos modelos marxianos de sucessão de modos de produção,
um sistema intangível jamais imaginado pelos adeptos do materialismo dialético.
Poderíamos continuar desfilando muitos outros exemplos, econômicos ou não,
de “ameaças” falaciosas à soberania e ao progresso do Brasil, mas cabe agora identificar
as verdadeiras ameaças ao desenvolvimento e à prosperidade da nação, com base numa
simples constatação visual de quais são os males que nos atingem, quais são as pragas
que nos afligem, quais são os verdadeiros obstáculos ao avanço do país a patamares
mais elevados de bem-estar e de prosperidade. Um exercício desse tipo não requer
nenhuma pesquisa sofisticada, nenhum relatório de organismo internacional, nenhum
comitê de sábios a se debruçarem sobre as fontes dos nossos males, as nossas mazelas
mais evidentes. Quais seriam elas, então?
Eu colocaria, em primeiro lugar, a inépcia em políticas macroeconômicas e
setoriais (embora estas últimas sejam dispensáveis, em minha modesta opinião). A mais
importante é, obviamente, a mania de gastar além da conta, o que acaba redundando ou
em emissionismo irresponsável – e portanto em mais inflação – ou em crescimento
343
exagerado da dívida pública, gravando proporcionalmente as atuais e futuras gerações,
que terão de suportar impostos acrescidos para o serviço da dívida, ou mais inflação. A
ameaça associada a essa mania é a deriva fiscal, ou seja, o desequilíbrio orçamentário e
a busca de expedientes de fôlego curto para resolver um problema estrutural, que é a
incapacidade de tornar compatíveis receitas e despesas, resultando numa carga fiscal
que simplesmente retira capacidade de poupança dos particulares e competitividade das
empresas, interna e externamente. Uma outra ameaça que sempre paira sobre os ineptos
econômicos é a ilusão de pretender controlar juros e câmbio em patamares julgados
ideais, ou de “equilíbrio”, o que é sempre desmentido pela dinâmica dos mercados e
pela esperteza superior dos agentes privados sobre a “sabedoria” dos burocratas. Juros e
taxa de câmbio flutuando ao sabor da oferta e da demanda respectivas são bem mais
adequados a uma economia moderna e competitiva do que o dirigismo caolho de
keynesianos de botequim que pretendem “corrigir” as “falhas de mercado”, dirigindo
esses dois preços fundamentais em toda economia a patamares que eles julgam serem os
melhores para o país (geralmente é em favor de uma tribo bem articulada de lobistas).
Tão devastadora quando a inépcia macroeconômica – poderíamos citar
abundantes exemplos aqui mesmo nessa nossa terrinha tão sofrida, a única no mundo a
ter conhecido oito moedas sucessivas no espaço de três gerações, sendo seis no tempo
de meia geração – é a cartelização da economia, e a completa ausência de competição
microeconômica em setores inteiros da oferta doméstica, o que redunda obviamente em
preços altos e proteção indevida aos espertos amigos do rei. Não é preciso referir as
imensas agruras enfrentadas pelos usuários dos serviços de telefonia, não porque o setor
tenha sido inteiramente privatizado – pois a continuar estatal os brasileiros não teriam a
oferta variada de celulares de que dispõem atualmente, ainda que a preços abusivos –,
mas porque se trata de um serviço inteiramente cartelizado, o que permite justamente
tripudiar sobre os consumidores. A cartelização é uma decisão totalmente estatal, como
é, igualmente, a super-taxação (à altura de 40%) do setor, uma das melhores “vacas
extrativas” tanto por parte do Estado, quanto envolvidas em negociatas fraudulentas.
A terceira maior ameaça ao Brasil, ainda de origem interna, é a má governança,
representada por um sistema político disfuncional, um judiciário ineficiente – já que
demorando oito anos, em média, para resolver uma pendência – e um “contrato social”
derivado de um arranjo constitucional peculiarmente esquizofrênico para os fins de
crescimento sustentado (oferecendo, ao contrário, todas as condições para a expansão
344
continuada dos gastos públicos, ou seja, para a sucção crescente dos recursos privados).
Todo e qualquer economista é capaz de reconhecer que a arquitetura institucional criada
no Brasil, a despeito do Estado “hiperdesenvolvido”, é a responsável pelos altos custos
de transação que caracterizam as relações econômicas no Brasil: não é novidade para
ninguém que Estado cartorial e burocratismo exacerbado das relações contratuais fazem
parte desse cenário dantesco no ambiente de negócios, o que uma simples consulta ao
relatório do Banco Mundial “Fazendo Negócios” pode amplamente confirmar. Reflexos
da má governança aparecem na corrupção política, na infraestrutura precária, e no
próprio fato de que os cidadãos contribuintes se submetem aos ukases despóticos de um
Estado fascista, que pretende regular aspectos íntimos da vida de cada um deles, de nós.
A quarta ameaça ao Brasil, provavelmente a maior de todas elas, é a persistência
de um sistema educacional incapaz de fornecer uma educação de qualidade à imensa
maioria da população brasileira, o que se reflete nos níveis baixíssimos de produtividade
e de inovação, que são os principais responsáveis pelo fato de nossa indústria continuar
sendo pouco competitiva no plano internacional, sempre buscando proteção tarifária e
de subsídios diretos ou indiretos à exportação, como aliás a tradicional pressão pela
desvalorização da moeda. Uma simples consulta aos resultados do PISA da OCDE – o
programa internacional de avaliação do desempenho de jovens no domínio da língua
pátria e em conhecimentos elementares em ciências e em matemática – pode confirmar
o cenário pavoroso que nos espera nos anos à frente. De fato, quando o atual bônus
demográfico – a melhor relação possível entre ativos e dependentes na força laboral –
terminar, em pouco mais de uma década, o Brasil não terá acumulado riqueza suficiente
para cobrir gastos previdenciários e custos de saúde para sua crescente população idosa,
sem mencionar o fato de que nossos gastos de seguridade social já alcançam uma fração
do PIB desproporcional em relação ao peso relativo da população de idade avançada.
Finalmente, a quinta, mas não a última, grande ameaça ao presente e ao futuro
do país se situa no ridiculamente pequeno coeficiente de abertura externa, ou seja, a
participação do comércio exterior na formação do PIB; sobre isso se agrega uma
histórica desconfiança da presença do capital estrangeiro em setores considerados
“estratégicos” da vida nacional, o que incluía, até pouco tempo atrás, além da
infraestrutura e das mesmas commodities “estratégicas” – minério de ferro, petróleo –
as comunicações e imprensa, e até mesmo, por incrível que pareça, o corpo docente das
345
instituições de ensino superior (proibição constitucional levantada na revisão de 1993,
mas ainda refletida na fraquíssima internacionalização das universidades brasileiras).
Repassando cada um desses cinco conjuntos de ameaças ao Brasil, ao seu futuro
e ao bem-estar de seus filhos, impossível não concluir que os grandes inimigos do Brasil
somos nós mesmos, ou melhor, nossas elites ineptas, nossa classe política despreparada
e nossos capitalistas corporatistas e mercantilistas. Não é preciso lembrar aqui uma série
inteira de outros males de raiz, alguns herdados do cartorialismo lusitano, outros
continuamente criados por legisladores ignaros do que se chama custo-oportunidade e
ainda reforçados por juízes malucos firmemente imbuídos da missão sagrada de fazer
justiça social a golpes de liminares politicamente corretas e de sentenças corretoras da
nossa histórica desigualdade. E o que dizer da nossa academia mentalmente atrasada,
repleta de gramscianos que nunca ouviram falar de Plekhanov e que acham que o Brasil
foi, alguma vez, “neoliberal”? Mais alguns anos, vão talvez chegar a Edward Bernstein.
Tais ameaças “made in Brazil” superam qualquer intento de dominação imperial
e quaisquer conspirações estrangeiras contra um utópico, mas sempre requerido “projeto
nacional de desenvolvimento”, mais um desses fantasmas cuja suposta ausência serve
de bode expiatório para nossos fracassos auto-infligidos. Ainda temos necessidade, ou
espaço, para inimigos externos? Que tal deixar a geopolítica de lado e passar a cuidar
principalmente da economia doméstica?
2855. “Quais são as grandes ameaças ao Brasil?”, Hartford, 15 agosto 2015, 7 p. Sobre
as supostas ameaças externas e nossos males “made in Brazil”. Boletim
Mundorama (16/08/2015, link: http://mundorama.net/2015/08/16/quais-sao-as-
grandes-ameacas-ao-brasil-por-paulo-roberto-de-almeida/). Postado no blog
Diplomatizzando (link: http://diplomatizzando.blogspot.com/2015/08/quais-sao-as-
grandes-ameacas-ao-brasil.html). Relação de Publicados n. 1188.
346
43. Desafios externos ao Brasil no futuro próximo
348
ambos são, ou seriam, extremamente relevantes para o progresso nacional, em prol do
crescimento. Se eles não figuram na pauta do atual governo, que permanece tímido, ou
reativo, defensivo e introvertido nos dois aspectos e nas duas vertentes, a culpa incumbe
inteiramente aos últimos governos, especialmente ao atual, em seus dois mandatos.
Com a virtual paralização, e o provável encerramento melancólico da Rodada Doha de
negociações comerciais multilaterais da OMC, os grandes atores adotam soluções
regionais, ou minilateralistas, de que são exemplos o recém concluído acordo de
parceria transpacífica, o TPP, e o possível acordo transatlântico entre os Estados Unidos
e a União Europeia. Essas novas realidades deixam claro o isolamento total do Brasil e
do Mercosul nesse mundo, e a ausência de uma política comercial clara, de inserção do
país no mundo.
349
público e em diversas outras vertentes com potencial impacto em nossa inserção
externa. Os erros conceituais e os equívocos operacionais foram clamorosos, o que se
reflete no quadro atual de inédita recessão, pela sua duração, e de virtual estagnação nos
próximos anos.
350
reformas e adotar as políticas adequadas. Existe alguma chance de que eles sejam
encaminhados de modo satisfatório no futuro imediato? A atual conjuntura de quase
anomia no plano econômico, de erosão política e institucional e de persistência de
comportamentos rentistas – quando não claramente extrativos – no plano político
incitam a uma resposta negativa à questão.
351
Apêndices
Relação cronológica dos ensaios publicados
no Boletim Mundorama
Relação dos artigos publicados anteriormente em
RelNet
Livros publicados pelo autor
Nota sobre o autor
353
Boletim Mundorama: lista de artigos publicados
Divulgação Científica em Relações Internacionais – ISSN 2175-2052
http://mundorama.net/
O que é Mundorama:
Mundorama é uma abordagem ágil sobre os temas da agenda internacional e da política
externa brasileira. No Boletim Mundorama são publicadas contribuições breves
versando sobre os temas da agenda internacional contemporânea. A iniciativa divulga
também análises de conjuntura, notas técnicas, teses de doutorado, dissertações de
mestrado, artigos científicos, relatórios de pesquisa, notícias de eventos e notícias sobre
o acervo em formato digital de periódicos especializados. A publicação oferece uma
abordagem não-exaustiva, mas cuidadosa e atenta aos rumos do desenvolvimento da
comunidade especializada em Relações Internacionais no Brasil.
54) “Desafios externos ao Brasil no futuro próximo”, Mundorama (n. 100; 4/12/2015;
ISSN: 2175-2052; link: http://mundorama.net/2015/12/04/desafios-externos-ao-
brasil-no-futuro-proximo-por-paulo-roberto-de-almeida/). Relação de Originais n.
2893; Publicados n. 1203.
53) “The world economy, from belle Époque to Bretton Woods”, Mundorama
(21/10/2015, link: http://mundorama.net/2015/10/21/the-world-economy-from-
belle-epoque-to-bretton-woods-by-paulo-roberto-de-almeida/). Relação de
Originais n. 2809; Publicados n. 1200.
47) “Da diplomacia dos antigos comparada à dos modernos”, Mundorama (20/05/2015;
link: http://mundorama.net/2015/05/20/da-diplomacia-dos-antigos-comparada-a-dos-
modernos-por-paulo-roberto-de-almeida/);). Relação de Originais n. 2822;
Publicados n. 1178.
46) “O Brasil e a agenda econômica internacional, 4: o que o Brasil deveria fazer para
maximizar a “sua” agenda?”, Mundorama (06/05/2015; l nk:
http://mundorama.net/2015/05/06/o-brasil-e-a-agenda-economica-internacional-o-
que-o-brasil-deveria-fazer-para-maximizar-a-sua-agenda-por-paulo-roberto-de-
almeida/). Relação de Originais n. 2815; Publicados n. 1177.
45) “O Brasil e a agenda econômica internacional, 3: como e qual seria uma (ou a)
agenda ideal para o Brasil?”, Mundorama (29/04/2015; link:
http://mundorama.net/2015/04/29/o-brasil-e-a-agenda-economica-internacional-
como-e-qual-seria-uma-ou-a-agenda-ideal-para-o-brasil-por-paulo-roberto-de-
almeida/). Relação de Originais n. 2814; Publicados n. 1176.
356
41) “Desafios da economia brasileira na interdependência global”, Mundorama
(30/03/2015; link: http://mundorama.net/2015/03/30/desafios-da-economia-
brasileira-na-interdependencia-global-por-paulo-roberto-de-almeida/). Relação de
Originais n. 2781; Publicados n. 1167.
40) “Reforming the World Monetary System: book review”, [Book Review of Carol M.
Connell: Reforming the World Monetary System: Fritz Machlup and the Bellagio
Group (London: Pickering & Chatto, 2013. xii + 272 pp.; ISBN 978-1-84893-360-6;
Financial History series n. 21, $99.00; hardcover)], em Mundorama (n. 91,
22/03/2015; ISSN: 2175-2052; link: http://mundorama.net/2015/03/22/review-of-
reforming-the-world-monetary-system-of-carol-m-connell-by-paulo-roberto-de-
almeida/). Relação de Originais n. 2705; Publicados n. 1164.
38) “Um congresso de Viena para o século 21?: Kissinger e o ‘sentido da História’”,
Publicado, sem o subtítulo, em Mundorama (8/03/2015; link:
http://mundorama.net/2015/03/08/um-congresso-de-viena-para-o-seculo-21-por-
paulo-roberto-de-almeida/); linkado na página da Amazon, resenhas do livro World
Order, de Henry Kissinger (http://www.amazon.com/review/ROIR90NVFAQJP).
Relação de Originais n. 2779; Publicados n. 1166.
37) “Imperfeições dos mercados ou ‘perfeições’ dos governos?: estabeleça quais são as
suas preferências”, Mundorama (n. 88, 10/02/2015; link:
http://mundorama.net/2015/02/10/imperfeicoes-dos-mercados-ou-perfeicoes-dos-
governos-estabeleca-quais-sao-as-suas-preferencias-por-paulo-roberto-de-almeida/).
Relação de Originais n. 2767; Publicados n. 1163.
35) “Miséria do Capital no Século 21”, Mundorama (n. 19, 31/01/2015; links:
http://wp.me/p79nz-3ZG ou http://mundorama.net/2015/01/31/miseria-do-capital-no-
seculo-21-a-proposito-do-livro-de-thomas-piketty-por-paulo-roberto-de-almeida/);
publicada em versão resumida no jornal O Estado de S. Paulo (10/02/2015; link:
http://opiniao.estadao.com.br/noticias/geral,miseria-do-capital-no-seculo-21-imp-
,1632135). Relação de Originais n. 2726; Publicados n. 1160.
34) “Fim das utopias na Casa de Rio Branco?”, Mundorama (n. 88, 31/12/2014; link
para o boletim: http://mundorama.net/2014/12/31/boletim-mundorama-no-88-
dezembro2014/; link para o artigo: http://mundorama.net/2014/12/30/fim-das-
utopias-na-casa-de-rio-branco-por-paulo-roberto-de-almeida/). Relação de Originais
n. 2739; Publicados n. 1158.
357
33) “O Instituto Brasileiro de Relações Internacionais e a Revista Brasileira de Política
Internacional: contribuição intelectual, de 1954 a 2014”, Mundorama (n. 88,
31/12/2014; link para o boletim: http://mundorama.net/2014/12/31/boletim-
mundorama-no-88-dezembro2014/; link para o artigo:
http://mundorama.net/2014/12/23/o-instituto-brasileiro-de-relacoes-internacionais-e-
a-revista-brasileira-de-politica-internacional-contribuicao-intelectual-1954-a-2014-
por-paulo-roberto-de-almeida/); reproduzido em Meridiano 47 (vol. 15, n. 146,
novembro-dezembro 2014, p. 3-18; ISSN: 1518-1219; link:
http://periodicos.unb.br/index.php/MED/article/download/12508/8881; boletim
completo, link: http://periodicos.unb.br/index.php/MED/article/view/12698/8880).
Relação de Originais n. 2724; Publicados n. 1155.
31) “As Quatro Liberdades e um Projeto para o Brasil: leitura de dois livros recentes,
por Paulo Roberto de Almeida”, Mundorama (n. 87, 9/11/2014; link:
http://mundorama.net/2014/11/09/as-quatro-liberdades-e-um-projeto-para-o-brasil-
leitura-de-dois-livros-recentes-por-paulo-roberto-de-almeida/); notas sobre os livros
de Harvey J. Kaye: The Fight for the Four Freedoms, e de Neill Lochery: Brazil:
The Fortunes of War. Relação de Originais n. 2713; Publicados n. 1151.
358
26) “Digressões contrarianistas sobre o desarmamento nuclear”, Mundorama
(27/09/2011; link: http://mundorama.net/2011/09/27/digressoes-contrarianistas-
sobre-o-desarmamento-nuclear-por-paulo-roberto-de-almeida/). Relação de Originais
n. 2320; Publicados n. 1053.
25) “O mundo sem o Onze de Setembro: explorando hipóteses”, Mundorama (n. 48,
12/09/2011; link: http://mundorama.net/2011/09/12/o-mundo-sem-o-onze-de-
setembro-explorando-hipoteses-por-paulo-roberto-de-almeida/; Twitter:
http://t.co/0cLk2qk). Relação de Originais n. 2310; Publicados n. 1046.
22) “Formação de uma estratégia diplomática: relendo Sun Tzu para fins menos
belicosos”, Mundorama (7/03/2011; link:
http://mundorama.net/2011/03/07/formacao-de-uma-estrategia-diplomatica-relendo-
sun-tzu-para-fins-menos-belicosos-por-paulo-roberto-de-almeida/). Relação de
Originais n. 2251; Publicados n. 1023.
18) “A diplomacia brasileira numa nova conjuntura política”, Mundorama (n. 40,
29/12/2010; link: http://mundorama.net/2010/12/29/a-diplomacia-brasileira-numa-
nova-conjuntura-politica-por-paulo-roberto-de-almeida/). Relação de Originais n.
2226; Publicados n. 1012.
17) “Memória e diplomacia: o verso e o reverso”, Mundorama (n. 37, 23/09/2010; link:
http://mundorama.net/2010/09/23/memoria-e-diplomacia-o-verso-e-o-reverso-por-
paulo-roberto-de-almeida/#more-6474). Relação de Originais n. 2187; Publicados n.
992.
359
16) “Fluxos financeiros internacionais: é racional a proposta de taxação?”, Mundorama
(n. 34, 14/06/2010; link: http://mundorama.net/2010/06/14/fluxos-financeiros-
internacionais-e-racional-a-proposta-de-taxacao-por-paulo-roberto-de-almeida/).
Relação de Originais n. 2150; Publicados n. 975.
10) “O Fim da História, de Fukuyama, vinte anos depois: o que ficou?”, Mundorama
(21.01.2010; link: http://mundorama.net/2010/01/21/o-fim-da-historia-de-fukuyama-
vinte-anos-depois-o-que-ficou-por-paulo-roberto-de-almeida/); republicado em
Meridiano 47 (n. 114, janeiro 2010, p. 8-17; ISSN: 1518-1219; link:
http://periodicos.unb.br/index.php/MED/article/view/476/291). Relação de Originais
n. 2101; Publicados n. 949.
362
Relação dos artigos publicados anteriormente em Relnet
30) “Uma frase (in)feliz?: o que é bom para os EUA é bom para o Brasil?”, Colunas de
RelNet, n. 7, mês 1-6, ano 2003, link:
http://www.relnet.com.br/Arquivos/html/2003/A_7627.html
29) “Contra a Corrente: Treze Idéias Fora do Lugar, VI”, Colunas de RelNet, n. 7, mês
1-6, ano 2003, link: http://www.relnet.com.br/Arquivos/html/2003/A_7539.html
28) “Contra a Corrente: Treze Idéias Fora do Lugar, V”, Colunas de RelNet, n. 7, mês
1-6, ano 2003, link: http://www.relnet.com.br/Arquivos/html/2003/A_7538.html
27) “Contra a Corrente: Treze Idéias Fora do Lugar, IV”, Colunas de RelNet, n. 7, mês
1-6, ano 2003, link: http://www.relnet.com.br/Arquivos/html/2003/A_7537.html
26) “Contra a Corrente: Treze Idéias Fora do Lugar, III”, Colunas de RelNet, n. 7, mês
1-6, ano 2003, link: http://www.relnet.com.br/Arquivos/html/2003/A_7536.html
25) “Contra a Corrente: Treze Idéias Fora do Lugar, II”, Colunas de RelNet, n. 7, mês
1-6, ano 2003, link: http://www.relnet.com.br/Arquivos/html/2003/A_7535.html
24) “Contra a Corrente: Treze Idéias Fora do Lugar, I”, Colunas de RelNet, n. 7, mês 1-
6, ano 2003, link: http://www.relnet.com.br/Arquivos/html/2003/A_7534.html
23) “O Brasil e o FMI: meio século de idas e vindas”, Colunas de RelNet, n. 7, mês 1-6,
ano 2003, link: http://www.relnet.com.br/Arquivos/html/2003/A_7581.html
22) “Sinais Trocadas na Alca, Quarta e última Parte”, Colunas de RelNet, n. 7, mês 1-6,
ano 2003, link: http://www.relnet.com.br/Arquivos/html/2003/A_7618.html
21) “Sinais Trocadas na Alca, Terceira Parte”, Colunas de RelNet, n. 7, mês 1-6, ano
2003, link: http://www.relnet.com.br/Arquivos/html/2003/A_7617.html
20) “Sinais Trocados na Alca, Segunda Parte”, Colunas de RelNet, n. 7, mês 1-6, ano
2003, link: http://www.relnet.com.br/Arquivos/html/2003/A_7616.html
19) “Sinais Trocados na Alca, Primeira Parte”, Colunas de RelNet, n. 7, mês 1-6, ano
2003, link: http://www.relnet.com.br/Arquivos/html/2003/A_7615.html
18) “Uma longa moratória, permeada de ajustes?: a lógica da dívida externa brasileira
na visão acadêmica”, Colunas de RelNet, n. 7, mês 1-6, ano 2003, link:
http://www.relnet.com.br/Arquivos/html/2003/A_7628.html
364
16) “Camaradas, agora é oficial: acabou o socialismo, V”, Colunas de RelNet no. 8, mês
7-12, ano 2003; link: http://www.relnet.com.br/Arquivos/html/2003/A_7530.html
13) “Camaradas, agora é oficial: acabou o socialismo, II”, Colunas de RelNet, n. 8, mês
7-12, ano 2003; link: http://www.relnet.com.br/Arquivos/html/2003/A_7527.html
12) “Camaradas, agora é oficial: acabou o socialismo, I”, Colunas de RelNet, n. 6, mês
7-12, ano 2002, link: http://www.relnet.com.br/Arquivos/html/2003/A_7526.html
11) “O Boletim do Império”, Colunas de RelNet, n. 6, mês 7-12, ano 2002, link:
http://www.relnet.com.br/Arquivos/html/2003/A_7578.html
9) “Ideologia da política externa: sete teses idealistas, quarta e última parte”, Colunas de
RelNet, n. 4, mês 7-12, ano 2001, link:
http://www.relnet.com.br/Arquivos/html/2003/A_7674.html
6) “O ‘day after’: o Mercosul depois da Alca”, Colunas de RelNet n. 3, mês 1-6, ano
2001, link: http://www.relnet.com.br/Arquivos/html/2003/A_7583.html
365
2) “A Alca significa desnacionalização da economia brasileira?”, Colunas de RelNet, n.
2, mês 7-12, 2000; link: http://www.relnet.com.br/Arquivos/html/2003/A_7635.html
366
Livros próprios de Paulo Roberto de Almeida
32) Going Global: Brazil and Latin America in International Context (Rockville,
MD: Global South Press, 2016).
29) Die brasilianische Diplomatie aus historischer Sicht: Essays über die
Auslandsbeziehungen und Außenpolitik Brasiliens (Saarbrücken: Akademiker
Verlag, 2015, 204 p.; Übersetzung aus dem Portugiesischen ins Deutsche: Ulrich
Dressel; ISBN: 978-3-639-86648-3).
367
23) Polindo a Prata da Casa: mini-resenhas de livros de diplomatas (Amazon Digital
Services: Kindle edition, 2014, 151 p., 484 KB; ASIN: B00OL05KYG; disponível
no link: http://www.amazon.com/dp/B00OL05KYG; e na plataforma
Academia.edu; link:
https://www.academia.edu/8815100/23_Polindo_a_Prata_da_Casa_mini-
resenhas_de_livros_de_diplomatas_2014_). Prefácio e Sumário disponíveis no blog
Diplomatizzando (link: http://diplomatizzando.blogspot.com/2014/10/mini-
resenhas-de-livros-de-diplomatas.html). Relação de Originais n. 2693. Relação de
Publicados n. 1145.
22) Prata da Casa: os livros dos diplomatas (book reviews; Edição de Autor; Versão
de: 16/07/2014, 663 p.); (Academia.edu, link:
https://www.academia.edu/5763121/Prata_da_Casa_os_livros_dos_diplomatas_Edi
cao_de_Autor_2014_). Relação de Originais n. 2533. Relação de Publicados n.
1136.
19) Integração Regional: uma introdução (São Paulo: Saraiva, 2013, 174 p.; ISBN:
978-85-02-19963-7; site da Editora:
http://www.saraivauni.com.br/Obra.aspx?isbn=9788502199637). Relação de
Originais ns. 2996, 2998, 2300, 2303, 2304, 2313, 2316, 2317, 2373, 2383, 2431,
2438 e 2449. Divulgado no blog Diplomatizzando (link:
http://diplomatizzando.blogspot.com/2013/04/integracao-regional-novo-livro-
enfim.html). (Academia.edu, link:
https://www.academia.edu/attachments/32644653/download_file). Relação de
Publicados n. 1093.
15) O Moderno Príncipe: Maquiavel revisitado (Rio de Janeiro: Freitas Bastos, edição
eletrônica, 2009, 191 p.; ISBN: 978-85-99960-99-8; R$ 12,00; disponível para
aquisição no seguinte link: http://freitasbas.lojatemporaria.com/o-moderno-
principe.html). Anunciado no site pessoal (link:
http://www.pralmeida.org/01Livros/2FramesBooks/95maquiavelrevisitado.html) e
no blog Diplomatizzando (21.12.2009; link:
http://diplomatizzando.blogspot.com/2009/12/1591-novo-livro-pra-o-moderno-
principe.html), com livre disponibilidade do Prefácio, da Dedicatória, da carta a
Maquiavel e das Recomendações de Leitura. (Academia.edu, link:
https://www.academia.edu/5546980/15_O_Moderno_Principe_Maquiavel_revisita
do_2009_e-pub). Relação de Originais n. 1804. Relação de Publicados n. 940.
10) Une histoire du Brésil: pour comprendre le Brésil contemporain (avec Katia de
Queiroz Mattoso; Paris: Editions L’Harmattan, 2002, 142 p.; ISBN: 2-7475-1453-
6; link:
http://www.pralmeida.org/01Livros/2FramesBooks/48HistoireBresil2002.html).
(Academia.edu, link:
https://www.academia.edu/attachments/32642309/download_file).
Para os capítulos do Autor em livros coletivos, consultar o site ou ver esta lista:
https://www.academia.edu/9068537/List_of_AUthors_chapters_in_collective_books_N
ov._2014_
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Nota sobre o Autor:
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Redigido em MS Word 2011,
Composto em MacBook Air
Por Paulo Roberto de Almeida
Em 4/12/2015
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pralmeida@me.com
Tel.: (55.61) 9176-9412
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