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O Movimento Homossexual Brasileiro:

da clandestinidade à esfera pública


Marcela Peregrino Bastos de Nazaré*

Resumo
Ao longo das últimas décadas, o movimento homossexual brasileiro sofreu
modificações relativas à formulação de demandas e de estratégias políticas.
Também se configurou como um agente de transformação social, ao trazer, para
a cena pública, novos valores e travar discussões acerca das instituições
políticas e das relações sociais. Devido a sua importância na dinâmica social e
sua expressividade para as Ciências Sociais, este artigo tem como objetivo
mostrar as articulações políticas do movimento, suas reivindicações, e seus
conflitos internos do período de sua emergência, bem como discorrer sobre o
impacto do surgimento da epidemia da AIDS (do inglês Acquired
Immunodeficiency Syndrome) sobre o movimento nos anos de 1990.
Palavras-chave: Identidade sexual, Atos coletivos, Política e cultura, Cidadania

The Brazilian Homosexual Movement: from clandestinity to the public sphere


Abstract
During the last decades the Brazilian homosexual movement has undergone
changes related to the formulation of strategic and political demands. It has also
become an agent of social transformation, bringing to the public scene new
values and staging debates relating to political institutions and social relations.
Due to its importance in the social dynamics and its expressiveness to social
sciences, this article has as its objective to show the political maneuvers of the
movement, its demands and its internal conflicts in the period of its emergence,
as well as to think of the impacts of arrival of the AIDS (Acquired
Immunodeficiency Syndrome) epidemic on the movement in the 1990s.
Key words: Sexual identity, Collective acts, Politics and culture, Citizenship.

*
MARCELA PEREGRINO BASTOS DE NAZARÉ é Graduada em Ciências Sociais pela
Universidade Estadual de Maringá (UEM).

40
Parada Gay de São Paulo

Introdução O Movimento LGBT1 (Lésbicas, Gays,


Bissexuais, Travestis e Transgêneros),
No Brasil, as discussões que têm em
juntamente com o movimento feminista
foco a sexualidade, têm trazido a tona
são agentes precursores e fundamentais
temas que à primeira vista diz respeito
às minorias específicas e à vida privada. do debate na sociedade brasileira sobre a
Porém, o debate é mais amplo. Discute- ampliação do conceito de cidadania, ao
se o que deve ou não ser tolerado ou incluir temas como diversidade e os
direitos da sexualidade nas discussões
criminalizado, o que deve ou não
(SANTOS, 2006).
receber o amparo legal e a atenção de
políticas públicas. Tendo estas Suas ações coletivas, ao relacionarem
discussões um alcance maior, elas cultura e política em seus projetos e
questionam o significado do casamento, reconhecerem na cidadania uma
da família, da parentalidade e da própria estratégia de luta, tornaram possível ir
identidade pessoal, colocando em xeque
valores segundos os quais, a família só
poderia ser formada pela união legal de 1
A denominação LGBT utilizada neste trabalho
indivíduos de sexo diferente, sendo segue a fórmula recentemente aprovada pela I
consideradas crianças saudáveis, àquelas Conferência Nacional GLBT, referindo-se a
lésbicas, gays, bissexuais, travestis e
cuja família é composta por um pai e
transexuais. A denominação por meio dessa
uma mãe (SIMÕES e FACCHINI, sigla é nova. Até 1992, o termo usado era
2009). “movimento homossexual brasileiro” (MHB) e
os congressos de militância eram denominados
“encontros de homossexuais” (SIMÕES e
FACCHINI, 2009). Vale dizer que a presente
denominação é aberta e sujeita a contestações,
variações e mudanças.

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além da noção clássica daquele Atualmente, a proposta aguarda votação
conceito, baseado até então, em ideias no plenário (MELLO, 2005). Dentre
liberais pautadas no universalismo de outros projetos de lei que se encontram
direitos, obcecadas por uma razão em discussão no Congresso Nacional, há
imparcial que se opõe ao desejo e a os referentes à adoção de crianças por
afetividade e suspende as casais homossexuais, à concessão para
particularidades dos indivíduos; na as travestis mudarem seus nomes e à
separação da vida social entre o público criminalização da homofobia no Brasil.
e o privado, em que no primeiro
Para as Ciências Sociais, o movimento
encontra-se o Estado, o exercício da
homossexual ganha cada vez mais
cidadania e da racionalidade, e no
importância nas discussões e
segundo a família, o exercício da
investigações devido a sua interferência
liberdade individual, da afetividade e do
significativa na dinâmica social. Com o
desejo (YOUNG, 1987). intuito de aprofundar o estudo sobre os
De trajetória curta no cenário brasileiro, movimentos sociais, tendo em foco o
o movimento político de lésbicas, gays, movimento homossexual, este artigo
bissexuais, travestis e transexuais vem tem por objetivo mostrar as
argumentando contra pensamentos reivindicações do movimento, seus
hegemônicos que conduzem a vida conflitos internos e suas articulações
social. Em 1988, após a políticas na virada dos anos de 1970
redemocratização, grupos homossexuais para os anos de 1980 (período de sua
organizados mobilizaram forças para emergência em meio à intensificação
assegurar na futura constituição a dos movimentos sociais em prol de uma
igualdade entre homossexuais e participação maior da sociedade civil na
heterossexuais, porém, tal expectativa esfera pública), tendo como norte as
não chegou a ser contemplada no texto expressões de suas primeiras
constitucional2. Posteriormente, em movimentações. Objetiva-se também
1994, momento da campanha de Lula discorrer sobre o impacto do surgimento
para presidente, a temática do amparo da epidemia da AIDS sobre seu formato
legal a casais homossexuais, como o organizacional nos anos de 19903.
direito à herança, a previdência, ou seja,
O surgimento da mobilização política
ao amparo aos homossexuais que
do movimento homossexual no Brasil
perderam os seus parceiros
principalmente em função da AIDS, Os trabalhos de Regina Facchini (2005)
volta à cena com a elaboração do e de Simões e Facchini (2009) são
Projeto de lei nº 1.151/ 95, de autoria da referências centrais para a bibliografia
então deputada federal por São Paulo, brasileira sobre o movimento
Marta Suplicy. homossexual, pois seus estudos
cobriram o amplo leque de questões no
O projeto sofreu várias resistências no
que diz respeito aos formatos
parlamento, sobretudo de grupos organizacionais e as agendas de luta
religiosos cristãos, passando
desse movimento no período pós década
posteriormente por modificações. de 1970.

2
O movimento LGBT no Brasil nasceu de ideias
3
de brasileiros que nos anos de 1970 tiveram Este trabalho é fruto do Projeto de Iniciação
contato com o movimento gay de luta por Científica (PIC) realizado no período de 2009 a
direitos dos Estados Unidos. 2010.

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Conforme esses autores, na primeira temáticas expressavam as reivindicações
metade da década de 1980 houve o dos homossexuais, as quais giravam em
ápice de estudos sobre as ações coletivas torno de temas tidos como minoritários,
devido ao boom movimentalista que se tais como: o combate à imagem dos
deu no Brasil durante este período. homossexuais, vistos então “como
Diante da expectativa da promessa de criaturas destroçadas por causa de seu
um Estado democrático, da anistia aos desejo, incapazes de realização pessoal e
que contestaram o regime militar e da com tendências a rejeitar a própria
criação de novos partidos, se desenhava sexualidade” (SIMÕES e FACCHINI,
a construção de um movimento político 2009, p. 85).
homossexual no país. Neste momento,
Vale dizer que o Lampião cumpriu
os homossexuais se juntavam ao coro da
também um importante papel por ser um
oposição à ditadura, segurando,
meio de divulgação de grupos para
juntamente com outros movimentos de outras organizações que não se
“minorias” oprimidas, a bandeira de luta
localizavam no eixo Rio-São Paulo.
pela a democracia e pela autonomia4 Estas, ao se informarem sobre a
(FACCHINI e SIMÕES, 2009).
existência e atuação de outros grupos
O movimento político homossexual em outros estados do Brasil,
contou com o Jornal alimentavam-se em
Lampião da Esquina termos de articulação.
e o grupo “Somos”, Quanto à estrutura
de São Paulo, como interna, o dissenso era
primeiras presente entre os
organizações de organizadores,
aparição pública e editores, escritores e
como referência de leitores do jornal.
ação política. Conflitos em torno
Lampião, cuja dos termos que seriam
primeira edição de apropriados para se
circulação restrita foi referir à
em 1978, é reconhecido hoje pela homossexualidade marcaram as
literatura que analisa a atuação política primeiras edições do Lampião. As ações
do movimento em questão como um dos coletivas influenciadas pela contra
principais meios de mobilização política cultura não colocavam como prioritária
em defesa da homossexualidade no entre suas iniciativas a relação com o
Brasil. Sendo o primeiro jornal a tratar a movimento a nível internacional. Como
homossexualidade como questão social exemplo, estas organizações
e política, sua visão orientava-se por um questionavam o uso da palavra “gay”
sentido libertário que desafiava preferindo utilizar o termo “bicha” e o
convenções e convicções políticas faziam com a justificativa de que “gay”
colocadas pelos conservadorismos, tanto era muito ligado ao movimento
de direita como de esquerda. Suas homossexual norte americano.
Outra divergência dentro do Lampião
4
consistia no debate em torno do
O termo “minorias” não está vinculado à “machismo” que causava tensão entre o
quantidade demográfica, mas sim a grupos de
pessoas que se encontram desfavorecidos de
universo das “bichas loucas” e os
meios legais que garantam a sua plena propósitos da militância “respeitada”
cidadania. que abrangia editores, colaboradores e

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leitores do jornal. Este “machismo” SIMÕES e FACCHINI, 2009,
estaria associado à maneira de se p.91).
comportar e se vestir de alguns
Em contraste com essa visão, Peter Fry,
indivíduos que evocaria tipos
um dos escritores do Lampião, defendia
combinando estereótipos de
a imprensa caseira dos ataques de
masculinidade.
leitores que a julgavam como uma
produção machista e que empregava
A exemplo cita-se a capa do disco do
palavras vulgares. A defesa procurava
grupo norte-americano Village People
endossar o uso de palavras vistas como
no qual os componentes encarnavam
pejorativas, na medida em que eram
tipos clássicos das fantasias
ressignificadas. Como exemplo a
homoeróticas masculinas, as quais
personagem Rafaela Mambaba da
“projetavam na figura do trabalhador
coluna social denominada “Bixórdia”,
braçal negro, indígena ou mestiço, o
ao utilizar o linguajar ferino e malicioso
‘macho’ ao mesmo tempo desejado e
atribuído as travestis e as “bichas
temido” (SIMÕES e FACCHINI, 2009,
loucas”, causava desacordos entre os
p. 90). A crítica ocorria também em
editores e colaboradores do jornal.
relação às “bichas loucas”, às ditas
Muitos o consideravam pejorativo pela
“pintosas” e às travestis, cujos
relação que possuíam com o machismo,
comportamentos, declarou João Antonio
outros contestavam este posicionamento
Mascarenhas, um dos precursores do
argumentado ser este uso uma estratégia
Movimento Homossexual Brasileiro
para retirar das palavras seu potencial
(MHB) em matéria para o Lampião,
ofensivo, sendo o emprego uma maneira
alimentaram o desejo machista. Em suas
de ressignificá-las.
palavras:
Outro conflito instaurado dizia respeito
“Quando o homossexual fala com ao formato organizacional do MBH.
voz de falsete, faz ademanes Este era um debate que não só ocorria
alambicados, dá gritinhos e
dentro do Lampião, mas sim fazia parte
requebra os quadris, ele sem se dar
conta, está de um lado, imitando a da realidade de outros movimentos,
mulher objeto sexual, a mulher como é o caso do grupo Somos, primeiro
cidadã de segunda classe, a mulher grupo organizado criado em 1979. A
idealizada pelos machistas e, por discussão era em torno dos rumos da
outro lado, por deixar de aceitar a institucionalização e em relação ao
sua orientação sexual com significado da própria atuação política
naturalidade (pois a efeminação é em moldes institucionais.
evidentemente artificial) acha-se a
fornecer argumentos aos machistas Críticas e reportagens escritas no
que se negam a admiti-lo como Lampião defendiam a postura de que era
homem comum, que usa sua preciso resistir a todas as formas
sexualidade de forma pouco institucionalizadas de organização e
convencional…O travesti, então, reivindicação, avaliando que isto
leva essa atitude ao paroxismo, colocaria em risco o potencial
chegando a submeter-se a operações
cirúrgicas para ocultar a identidade.
subversivo dos grupos e incentivaria
Sua ambição máxima consiste em uma sociedade consumista e autoritária.
transfigurar-se na mulher vamp, no Porém, havia os que defendiam alianças
sofisticado objeto sexual tão políticas dos grupos com partidos
comercializado por Hollywood nas políticos, principalmente os de esquerda.
décadas de 1930 a 1950 (citado por É importante dizer que a hesitação sobre

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a aproximação dos grupos aos partidos todo, em contraste com outros grupos do
de esquerda estava concentrada na MHB que demonstravam menor
polarização entre a prioridade das lutas envolvimento com projetos mais amplos
específicas dos homossexuais, ou como de transformação e uma ação voltada
acontecia com outros grupos, das para a garantia dos direitos civis e
mulheres e dos negros, e a prioridade da contra a violência e discriminação aos
chamada luta maior contra a ditadura e homossexuais (SIMÕES e FACCHINI,
pela transformação social. 2009).
A redemocratização foi um dos fatores
que liquidaram com a imprensa
alternativa ao permitir que seus temas
fossem absorvidos pela grande
imprensa. A crise financeira originada
pela diminuição da venda dos
exemplares, o desentendimento entre os
No caso do Somos, o membro que editores, a concorrência com revista que
procurasse manter uma ponte entre trazia fotos de nu masculino, a pressão
ambas as posições passava a ser visto exercida por inquéritos policiais
com crescente desconfiança, sendo baseados em supostas ofensas do jornal
acusado de pretender manipular o grupo. à moral e aos bons costumes, e os
Na produção categorial do grupo, as atentados às bancas de revistas, em
extremidades eram compostas pelas 1980, promovidos por grupos
“chicórias” que defendiam a autonomia paramilitares contribuíram para o fim do
e “proclamavam um vago anarquismo Lampião da Esquina e para a
muitas vezes assimilado à desconfiança desmobilização dos grupos do
em relação à política dos partidos em movimento homossexual, tendo em
geral” (SIMÕES e FACCHINI, 2009, p. vista, que aquele era o principal meio de
105) e as “beterrabas” que defendiam comunicação pelo qual circulavam
alianças políticas mais amplas, ideias dos grupos e divulgavam-se suas
principalmente junto à esquerda. Outro atividades por todo o país.
conflito deu-se em torno da proposta de A avaliação da bibliografia mencionada
apoiar os trabalhadores em greve do vai na direção de considerar este
ABC paulista. Alguns membros, momento – a virada dos anos de 1970
alegando que o Somos estava com sua para os anos de 1980 – como período
participação política comprometida em marcado pela primeira mobilização
virtude de alguns atuarem juntamente política de pessoas que se identificam
com organizações políticos partidárias, como homossexuais; como celeiro da
anunciaram uma cisão marcada pela organização política de indivíduos que
saída de nove pessoas do grupo. No tinham por objetivo sair do gueto e
Somos-SP (existia outro grupo deste no trazer a público suas identidades e suas
Rio de Janeiro), tanto as lideranças de demandas como sujeito político.
posição “autonomista” quanto as que
tinham uma posição a favor de alianças Cabe dizer que, desde os anos de 1950,
com partidos políticos, grupos de ou até mesmo antes, existia em grandes
esquerda e outros movimentos que não cidades brasileiras o esforço de
se identificavam como “movimentos de articulação de pessoas em organizar
minorias” tinham projetos de lugares de sociabilidade, aglutinando
transformação da sociedade como um principalmente homens, que promoviam

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eventos como concurso de miss¸ shows existentes se desestruturava, acontecia
de travestis e concursos de fantasias. Os uma exposição publicitária do
militantes do então emergente “espetáculo gay” fazendo aumentar
movimento homossexual colocavam inclusive a visibilidade das travestis e
essas movimentações como transexuais na mídia. É o caso da
despolitizada e até mesmo “reforçadora transexual Roberta Close, vedete do
da vergonha e do preconceito que verão carioca, no ano da campanha das
atingiam a homossexualidade” Diretas Já, que vivia o auge do
(SIMÕES e FACCHINI, 2009, p. 63). reconhecimento como modelo de beleza
Porém, é de reconhecimento da feminina brasileira. Nesta ocasião,
literatura que essas organizações foram também se verificava um grande
formas criativas e relevantes de número de matérias sensacionalistas na
expressão de sujeitos atingidos pelo imprensa, que ecoavam o preconceito de
estigma da homossexualidade em uma algumas autoridades médicas e de
época de maior clandestinidade e políticos ligados a grupos religiosos e o
repressão. aumento de crimes violentos a gays e
travestis.
A AIDS e as articulações do
movimento homossexual perante a Dentro deste contexto, os grupos
crise organizados da sociedade civil
conseguiram dar respostas à epidemia e
Em 1982, os primeiros doentes de AIDS
a articulada imagem degradante dos
foram identificados no Brasil. A partir
homossexuais. O surgimento da
deste momento, começaram a surgir
epidemia da AIDS, ao mesmo tempo em
insistentes conexões entre
que foi devastador para o MHB, foi
homossexualidade e AIDS, propagadas
elemento que deu força organizacional
pelos médicos, o que reforçou ainda
ao movimento. O fato dos homossexuais
mais a crítica a moral arraigada no
serem classificados como um dos
discurso dos militantes. Nesta ocasião,
“grupos de risco” “acabou se revertendo
uma das grandes posições defendidas
em justificativa da importância de traçar
pelo movimento era questionar o
estratégias especificas para essas
discurso médico e a ideia do
populações” (FACCHINI, 2005, p. 165).
homossexual como doente mental.
Neste sentido, a atenção dada às
A questão da AIDS era vista pelos políticas de enfrentamento à doença,
antigos militantes como um argumento possibilitou que grupos com
pseudocientífico para oprimir os dificuldades de captar recursos fossem
homossexuais, fazê-los retornar ao financiados por agências de cooperação
gueto de onde haviam saído. Porém, internacional e por organismos
outros ativistas, que na época estiveram governamentais (GALVÃO, 2000, p.
nos Estados Unidos e viram que os 81-84, apud, FACCHINI, 2005, p. 165).
americanos não defendiam mais as
Os recursos advindos do Programa
antigas posições, começaram a ver a
Nacional DST (Doença sexualmente
questão com outro prisma e trouxeram
transmissível) /AIDS (CN – DST/
essa observação para os militantes no
AIDS), criado em 1988 para o
Brasil (SIMÕES e FACCHINI, 2009).
desenvolvimento de projetos,
A AIDS surpreendeu o universo do contribuíram bastante para que o
movimento homossexual brasileiro em movimento homossexual se organizasse
um momento paradoxal. Enquanto e ganhasse visibilidade política.
grande parte dos grupos organizados Segundo Green:

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A organização em torno das legado a discussão pública sobre
questões relacionadas à AIDS tem homossexualidade, como também a
atraído não só indivíduos em busca visibilidade e reconhecimento da
de informações e suporte, como existência disseminada socialmente dos
também tem provido novos recursos
desejos e das práticas homossexuais.
e infra-estrutura. Os grupos têm
aprendido como concorrer por
Logo, a epidemia ao mesmo tempo em
fundos dos Estados e dos que trouxe morte e desespero, trouxe luz
ministérios de saúde para educação sobre as circunstâncias relacionadas à
e prevenção em relação à AIDS. Em sexualidade, tirando-as da
alguns casos, um escritório alugado clandestinidade e trazendo-as para o
com suporte financeiro também tem debate público.
servido como um espaço de
encontro para grupos gays e É importante salientar que a
lésbicos locais (GREEN, 1998, p. aproximação dos grupos do MHB com o
103, apud, FACCHINI, 2005, p. Estado por meio da relação com as
165). políticas estatais de direitos humanos e o
controle de DST e AIDS emanou na
A alternativa para o movimento de configuração do MHB, transformações
organizar sua atuação política via que serão apresentadas a seguir.
projetos financiados surgiu a partir da
elaboração da resposta coletiva à AIDS. Impacto da epidemia na configuração do
Por meio da participação de projetos do movimento nos anos de 1990
governo federal, e de financiamentos Se você ainda não relaxou, aprenda
advindos do Estado para executar tais a se divertir. Saia de casa
projetos, a ação coletiva da comunidade desencanado, nem ligue se vai ouvir
LGBT pode alcançar, nos anos de 1990, desaforo de algum aleijo. Não dá
maior visibilidade como representantes mais para ficar se sentindo
de determinado “grupo social “inferior”. Essa postura ficou para
discriminado”. A intensificação das trás, em algum lugar dos anos
relações dos grupos e associações com o 1980. Você está nos anos 1990, meu
bem. É tempo de gozar (com
Estado não só alimentaram projetos
camisinha!). E sentir orgulho disso!
específicos, mas também patrocinaram a (Trecho da matéria “Pride São
realização de encontros nacionais, nos Paulo” publicada na revista Sui
quais os grupos podiam trocar Generis, pelo jornalista André
informações, experiências, e traçar Hidalgo, 1995).
estratégias. A relação do movimento
com o Estado foi fundamental para o O trecho da matéria da revista Sui
fortalecimento e a articulação do Generis (a segunda tentativa em quase
movimento LGBT (SIMÕES e quinze anos desde o final do Lampião
FACCHINI, 2009) de produzir um meio de comunicação
voltado ao público homossexual que não
Contudo, a importância da eclosão da se resumisse na exposição de pessoas
AIDS vai além do financiamento nuas, e tratasse de cultura) reflete o
recebido pelos grupos, dos incentivos à clima dos novos tempos, em que o
organização do movimento. Como ativismo pelos direitos dos
coloca Facchini, o surgimento da AIDS homossexuais voltou a florescer. Como
abriu oportunidades nunca antes vistas expressão dessa nova época, encontros
para se debater socialmente a nacionais passaram a ocorrer com
sexualidade e a homossexualidade, em periodicidade mais frequente, com
particular. A epidemia deixou como aumento significativo da participação

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dos grupos; redes de grupos e Em relação a outras características,
associações foram criadas; encontros observou-se uma maior presença na
específicos de mulheres homossexuais mídia; ampla participação em
passaram a ocorrer regulamente; movimentos de defesa dos direitos
travestis e transexuais foram humanos e de reposta a AIDS;
incorporados ao movimento por meio do vinculação a redes e associações
Encontro Nacional de Travestis e internacionais de defesa de direitos
Transexuais que Atuam na Luta Contra humanos e de gays e lésbicas; ação
a AIDS (Entlaids) que vem se junto aos parlamentares com proposição
realizando desde 1993. de projetos de leis nos níveis federal,
estadual e municipal; atuação junto a
O movimento revigorado apresenta
agências estatais ligadas a prevenção
distinções em relação ao emergente
DST e AIDS e promoção de direitos
MHB dos anos de 1980. É de
conhecimento da literatura tomada como humanos; formulação de diversas
respostas diante da exclusão das
base para este artigo que, apesar da
diminuição do número de grupos no organizações religiosas; criação de redes
de grupos ou associações em âmbito
período de 1981 a 1991, houve uma
nacional e local; e organização de
mudança no estilo de militância neste
eventos de rua como as Paradas de
período, proporcionado, em grande
orgulho LGBT realizadas em várias
parte, pelo novo contexto social político
cidades do Brasil.
da redemocratização e também pela
eclosão da epidemia HIV- AIDS. Esta Quanto ao formato organizacional nos
mudança consistiu em pouco ou nenhum anos de 1990, o modelo de ONGs
envolvimento em posições ideológicas (Organizações não governamentais)
de esquerda ou anarquista, na passa a preponderar. A organização de
preocupação em estabelecer grupos por meio de ONGs é uma
organizações de caráter formal, em uma característica marcante dos anos de
menor rejeição à ação no campo 1990, porém não só do movimento
institucional. homossexual. Este formato
organizacional é presente também na
Com a abertura política, os partidos se
definição da identidade do movimento
converteram em canais para se tornar
visíveis as demandas dos movimentos feminista na América Latina
(ALVAREZ, 2000). Dentre outros
sociais e articulá-las politicamente.
Durante a década de 1990, houve uma fatores, o que caracteriza esse processo
é a valorização da competência técnica;
intensificação da construção da
a profissionalização e a especialização
legitimidade das temáticas LGBT em
partidos tais como o PT (Partidos dos
Trabalhadores) e o PSTU (Partido
Socialista dos Trabalhadores promoção à cidadania homossexual”, lançado
Unificados), embora o reconhecimento em 2004. Esta ação foi elaborada por meio de
alianças entre lideranças do movimento, o
das questões nas políticas públicas e nos Ministério da Saúde e o Conselho Nacional de
programas de governo só apareça com Combate à Discriminação. O programa é uma
mais intensidade nos anos 20005. agenda comum do governo e do movimento que
engloba ações a serem executadas por diversas
organizações estatais nas áreas da educação,
saúde, justiça, e segurança, destinadas a apoiar
5
Este é o caso do programa de governo “Brasil projetos de ONGs de caráter público que
sem homofobia: programa de combate à trabalham no combate da homofobia e pela
violência e à discriminação contra GLBT e de promoção da cidadania LGBT.

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da militância; a busca de autonomia em fornecem incentivos para suas ações
relação ao Estado, juntamente com a coletivas e contribuem para a
disputa por recursos para a manutenção configuração do movimento LGBT
de estruturas tais como sedes, como importante ator político que tem
equipamentos e funcionários como desafio a luta pelo
(CARRARA e RAMOS, 2006). “reconhecimento da diferença”.
Observou-se que, os anos de 1990
configuraram-se como período de Referências
fortalecimento do movimento
ALVAREZ, Sonia. A “globalização” dos
homossexual no Brasil. Traços tais feminismos latino-americanos. In: Sonia E.
como: organização em modelos de ALVAREZ; DAGNINO, Evelina; ESCOBAR,
ONGs financiadas muitas vezes pelo Arturo (Orgs.). Cultura e política nos
Ministério da Saúde, vinculação a redes movimentos sociais latino-americanos: novas
internacionais de direitos humanos e de leituras. Belo Horizonte: Editora da UFMG,
2000a. p. 383-426.
direitos gays, ação junto aos
parlamentares com proposição de CARRARA, Sérgio e RAMOS, Silvia. A
projetos de leis, organizações de eventos Constituição da Problemática da Violência
contra Homossexuais: a Articulação entre
de rua, visibilidade na mídia, que Ativismo e Academia na Elaboração de
surgiram ou se intensificaram naquele Políticas Públicas. PHYSIS: Rev. Saúde
momento, são referências utilizadas Coletiva, Rio de Janeiro, 16(2):185-205, 2006.
pelos pesquisadores para pensar as FACCHINI, Regina. Sopa de Letrinhas?
características do movimento nos anos Movimento homossexual e produção de
2000. identidades coletivas nos anos 90. Rio de
Janeiro: Garamond, 2005
Considerações finais
MELLO, Luiz. Novas Famílias:
Como dito, o movimento homossexual Conjugalidade homossexual no Brasil
juntamente com o movimento feminista contemporâneo. Rio de Janeiro, Garamond,
politizaram o pessoal, ou seja, incluíram 2005.
questões como o trabalho doméstico, SANTOS, Gustavo Gomes da Costa. Estado,
sexualidade e reprodução nas pautas das Projetos Políticos e Trajetórias Individuais:
Um Estudo Com As Lideranças
discussões públicas, expandindo o
Homossexuais Na Cidade de São Paulo.
repertório da contestação para além da Dissertação de Mestrado. Campinas,
redistribuição sócio-econômica. Universidade Estadual de Campinas, 2006.
Este artigo procurou mostrar um pouco SIMÕES, Assis Júlio e FACCHINI, Regina. Na
da história do movimento LGBT, bem trilha do arco- íris- movimento homossexual
ao LGBT. Ed. Fundação Perseu Abramo, 2009.
como seus conflitos internos e o que
Sidney Tarrow (2009) chamou de TARROW, Sidney. O poder em movimento:
“oportunidades políticas”. Como foi Movimentos sociais e confronto político.
Tradução de Ana Maria Sallum. Petrópolis, Rio
visto, a redemocratização e a de Janeiro. Vozes, 2009.
aproximação do Estado em relação aos
grupos do movimento desenharam-se YOUNG, Marion Iris. A imparcialidade e o
público cívico: Algumas implicações das
como oportunidades para a construção críticas feministas da teoria moral e política.
da legitimidade das temáticas LGBT, da In: Feminismo como crítica da modernidade.
expressão de suas reivindicações e do Tradução de Nathanael da Costa Caixeiro. Rio
fortalecimento dos grupos. Essas de Janeiro. Rosa dos Tempos, 1987.
dimensões do ambiente político

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