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AS NUVENS DE ARISTÓFANES:

ZOMBARIA INTELECTUAL E CRÍTICA DE SUA ÉPOCA

Daniel Gomes Cunha1

Resumo: Neste texto propõe se discutir o papel critico da comédia na sociedade grega antiga,
como As Nuvens de Aristófanes reflete uma critica a educação de sua época e as implicações
que isso trouxe para a sociedade. O caricato e a zombaria explícita como artifícios de riso e
ironia. A figura cômica de Sócrates como alvo de chacota propositada e a critica a retórica
sofistica como; desnecessária, vazia e desprovida de valores morais, a ser desmerecida pela
sociedade ateniense.

Palavras-chave: Comédia. Sócrates. Aristófanes. Zombaria. Crítica. Nuvens

1. Introdução
A história de As Nuvens se passa no século V Antes da Era Cristã, e apresenta a
história de um velho endividado por causa dos caprichos do filho mimado que amava a
equitação. Certo dia determinado a se livrar das queixas e dos processos lançados contra ele
por seus credores Estrepisíades busca no pensatório, uma maneira de aprender um método
para trapacear com o discurso. A maneira como Aristófanes ilustra seus personagens, pode ser
percebido, como nada mais do que uma forma de representar as concepções existentes sobre
as personalidades que permeavam a Grécia antiga e o modo como à sociedade interpretava
suas ideias.
Lá em meio a contestações de Sócrates As Nuvens se apresentam a Estrepisíades
sugerindo que ele se entregue a escola de Sócrates para que este o ensine a alcançar seu
objetivo, mas Sócrates vê em Estrepisíades uma verdadeira catástrofe como aluno, pois não
consegue o velho aprender nada. Talvez a personagem de Sócrates esteja sendo representada
nesse caráter por se haver naquele período alguma ideia marginalizada de que ele fosse algum
tipo arrogante e sabichão. É neste momento que Estrepisíades consegue trazer seu filho
também para o pensatório para que Sócrates o ensine na arte de trapacear com o discurso.
Sócrates lhes apresenta então o Raciocínio Justo e o Raciocínio Injusto, que disputam

1
Aluno do curso de Licenciatura em Filosofia da Universidade Estadual do Sudoeste da Bahia (UESB). E-mail:
danielgcunha77@gmail.com. O presente texto foi produzido para a disciplina de Estética I, ministrada pelo
professor Jasson Martins.
entre si, a fim de demonstrar diante da plateia qual é o melhor dos raciocínios. O Raciocínio
Justo representa a tradição, os bons costumes a moral e a civilidade, já o Raciocínio injusto
representa a novidade e questiona os costumes e a educação dos antigos, como sendo
contraditórias e invalidas. Vence na disputa o Raciocínio Injusto e este passa a ensinar
Fidipides o filho de Estrepisíades. Uma disputa entre raciocínios o justo e o injusto que
claramente ilustra a contenda existente entre a tradição antiga dos valores morais e os sofistas,
como a figura socrática aqui é a ironizada, não seria tão cômico se não fosse associado à
figura séria de Sócrates aquilo que lhe causava mais inquietação e incomodo que era a postura
dos sofistas de adequar o argumento independente do fim que se alcançaria justo ou até
injusto. A criatividade irônica de Aristófanes prevalece então sobre uma das figuras mais
ilustres da racionalidade grega. No fim da historia Estrepisíades despacha seus credores que
ficam indignados com as escusas do velho matuto.
As Nuvens então proferem o castigo de Estrepisíades que é espancado por seu filho
Fidipides após uma discussão entre eles, como forma de punição por causa de suas trapaças e
seu desacato à autoridade divina delas. A suspensão da desavença, com fim da história
relatando a discussão entre pai e filho, o castigo de Estrepisíades, encerra com o ar de que a
própria vida é tão cômica quanto trágica e que nestes casos, apesar de querermos em todos os
casos prevalecer, é a própria justiça divina também hilária ao nos recompensar dos atos tolos.

2. A figura socrática no “pensatório” da critica aristófanica.


É certo que a figura de Sócrates apresentada no texto de As Nuvens é um tanto
contraditória quanto a sua descrição nos diálogos platônicos, nos registros de Xenofonte e em
Aristóteles. Aristófanes associa-o a retórica sofística, mesmo o fazendo parecer um
maltrapilho e o considera um examinador da natureza. A questão que permanece é se essa
identificação de Sócrates por Aristófanes é uma zombaria proposital ou apenas uma forma
inescrupulosa de se impor criticamente.
Num primeiro instante, podemos questionar a posição de Aristófanes, por concluirmos
precipitadamente que a figura socrática nada tem a ver com a realidade dos textos platônicos.
Acusaríamos então o grande comediógrafo de negligenciar uma figura tão ilustre de
sua época, em troca de chacotas desmedidas? Não seja este o caso aqui, pode se acreditar
justamente no contrário. Apenas observando os detalhes da composição da obra.
Primeiramente pode se identificar no texto uma postura intelectual assumida por
Sócrates, ante aos questionamentos mesmo que descabidos de Estrepisíades. Suas falas
percorrem longas explicações causais e sua locução interrogativa faz perceber nessa caricatura
algumas semelhanças com o retrato verídico. E por mais que sejam absurdos seus raciocínios,
pela simples questão da comicidade, fica evidente o tom superior de suas afirmações como
que um produto do mais alto rigor intelectual. É neste ponto que se torna não apenas hilário,
como também convincente, o papel do personagem e parece demonstrar certo conhecimento
de Aristófanes da personalidade a qual foi inspirada:

SÓCRATES

Suspenso numa cesta.

Por que me chama, criatura efêmera?

STREPSIADES

Para início de conversa, o que é que você está fazendo aí?

SÓCRATES

Percorro os ares e contemplo o sol.

STREPSIADES

Você está olhando dessa cesta os deuses daí de cima, e não a terra, como devia!

SÓCRATES

De fato, nunca eu poderia distinguir as coisas celestes se não tivesse elevado meu
espírito e misturado meu pensamento sutil com o ar igualmente sutil. Se eu tivesse
ficado na terra para observar de baixo as regiões superiores, jamais teria descoberto
coisa alguma, pois a terra atrai inevitavelmente para si mesma a seiva do
pensamento. Ê exatamente isto que acontece com o agrião.

(ARISTÓFANES, 2013, P.300)

É possível que neste trecho, Aristófanes estivesse zombando de algo já conhecido,


talvez já possuísse neste momento ciência de que a filosofia que Sócrates ensinava, procurava
como fim a perfeição das coisas em um mundo ideal superior. O sol como se sabe é uma
figura ilustrada em diálogos como na República. Ao estar suspenso num cesto, temos uma
ideia de busca por uma transcendência que o mundo das ideias de Sócrates parece propor. Já
não é possível raciocinar bem e alcançar a perfeição filosófica se estiver em fundamentos
rasos, mas as coisas se explicam com base numa razão transcendente que não se encontra a
não ser que estejamos numa verdade que não se estabeleceu aqui, mas que é teleologicamente
uma causa superior a nós e nossa simples concepção.
A percepção da presciência de Aristófanes em relação ao conteúdo de Sócrates não é
de todo uma novidade, como esclarece Albin Lesky na sua Historia da Literatura Grega:
O problema culminante da obra continua a ser o retrato de Sócrates e a sua relação
com a realidade. Durante muito tempo, os intérpretes contentaram-se com a fórmula
de que Aristófanes, sem se preocupar com a verdadeira natureza e actividade de
Sócrates, o tinha identificado, sem mais, com toda a Sofística. O primeiro a opor-se
a esta opinião foi KIERKEGAARD na sua sétima tese da sua promoção:
Aristophanes in Socrate depingendo proxime ad verum accessit. Em ambas as
concepções se substituíram verdades parciais pela total. Análises cuidadosas dos
últimos anos(31) manifestaram, no Sócrates de As Nuvens, uma série de traços que
não são sofísticos, mas sim precisamente socráticos. Isto torna-se mais visível pela
forma de vida ascética do homem endurecido contra as fraquezas, e chega a penetrar
em pormenores do seu método e da sua doutrina. (LESKY, 1995, p.464)

Outro detalhe inescapável é a associação de Sócrates a retórica sofista. A mesma


parece não se sustentar com base numa negligência inescrupulosa, por Aristófanes não
considerar a filosofia pregada por Sócrates. Pelo contrário, dada as colocações anteriores,
podemos inferir que não se passa apenas de uma ironia e que realça a comédia sendo
ridicularizado o flagrante aspecto marcante da personalidade.
Ultimamente estas evidências também têm levantado muitas suspeitas de que o
método de Aristófanes não foi ingenuamente escuso, mas que foi proposital de modo a
defender sua critica a nova educação representada pelos sofistas, como cita Lesky:

Em conjunto, não é difícil compreender tudo isto. Aristófanes sabia o


suficiente do Sócrates de 423 para o esboçar com uma série de características de
acordo com a realidade. Mas, por outro lado, incluía-o, sem o menor escrúpulo, no
seu ataque contra a Sofística, com o seu modo novo de pensar, de falar e de educar,
que destruía a maneira antiga, sã. Podia fazê-lo porque, sem as distinções que hoje
nos parecem naturais, Sócrates apresentava-se e tinha que se apresentar aos
Atenienses daquele tempo simplesmente como o portador de um suspeito elemento
novo, de um modo de pensar que punha tudo em questão. O que não podemos
dilucidar é até que ponto Aristófanes partilhava o pensamento da maioria ou se só se
aproveitava dele para os seus propósitos. Afirmar que teria dado sua obra um duplo
fundo, deixando-nos ver, através de toda à troça, uma imagem de Sócrates esboçada
com seriedade e oposta à Sofística, é uma suposição que não tem em conta a
natureza deste género de poesia. (LESKY, 1995, p.464)

Consideremos então que a articulação de Aristófanes não é um uso da figura famosa


do saber antigo de maneira ingênua e desavisada. Pelo contrário, seu exagero é uma
demonstração intelectual de brilhantismo que caracteriza uma postura afirmativa em defesa
daquilo que acreditava ser um ideal, o da boa educação antiga, que havia sido corrompida
pelas astucias dos sofistas. Entretanto não é possível, verificarmos qual seria o teor da relação
entre Aristófanes e Sócrates, mas percebemos que ambos tinham opositores em comum e não
somente isso, mas também valores em comum como podem perceber, na Apologia de
Sócrates que o próprio Platão se posiciona ante ao fato de que Sócrates jamais perceberia tais
ideais apresentados nesta comédia. Mas o mesmo Platão coloca Aristófanes e Sócrates em
harmonia no texto do Banquete (LEÃO, 1995, P.330). Desta forma, parece que Aristófanes
não pretende atacar a figura do Sócrates em si.

3. O elemento crítico da comédia.


A comédia pode ser utilizada também como uma forma de se fazer uma crítica a
alguém ou determinado pensamento. É também o caso de Aristófanes com As Nuvens.
Sócrates a todo instante se torna o oposto daquilo que é na realidade e sua forma de
reflexão foi extremamente feita motivo deboche. A intenção de Aristófanes a todo tempo é
critica que ele estabelece por esse meio. Percebe-se que o ideal pedagógico da Pólis havia
mudado. Já não mais imperava a educação tradicional dos tempos antigos, os valores morais
ensinados pelos antepassados que valorizavam o guerreiro, a honra, a autoridade familiar e o
valor da justiça. Agora havia uma novidade, a Ágora era o centro da educação e nela os
sofistas eram os professores que ensinavam as novas maneiras que seriam o progresso para
aqueles seus entusiastas. Podemos ver essa critica sendo tecida ao longo da narrativa exposta
no modo que Estrepisíades tenta se livrar de suas dividas pelo inovador método de trapaça
argumentativa. Mostra como Aristófanes interpretava o movimento da educação sofista, para
ele sua finalidade era um distanciamento retórico das virtudes que outrora constituíram
Atenas. Ao fazer que seu filho Fidipides estude junto ao raciocínio injusto e retorne para lhe
livrar dos credores. Estrepisíades tem então uma grande surpresa, pois colheu ainda mais
desgraça, por ver os resultados catastróficos que os valores daquele logos da injustiça
cultivaram no seu filho. Essa é puramente a intenção critica em As Nuvens. O sentimento tal
que estava exposto Aristófanes e o qual o levou a narrativa desta comédia. Assim nos
apresenta o cenário em que se encontra a crise moral que afligia Aristófanes, como cita
Medeiros e Bordin:
Com base no modelo da formação homérica, a areté aristocrática foi convelida pela
educação dos sofistas e a crítica recai sobre os métodos, os fins da educação e sobre
os resultados finais. Não se formava mais o herói, o homem virtuoso que aliava com
excelência a perfeição física e a intelectual (espiritual). Por outro lado, o produto
dessa nova educação era o disputador (erístico), um modelo de homem que tem por
objetivo sempre vencer pelo discurso e, consequentemente, ganhar dinheiro com
isso. (MEDEIROS; BORDIN, 2011, P.6)

Ao final da peça o velho Estrepisíades empreende sua vingança pelo fim desgraçado
que levou. Vai junto com seus servos queimar o pensatório. Ali pode ser percebido no teor da
critica; a intenção de que os sofistas não apenas trariam desgraça como também sua escola
não deveria perpetuar. Talvez aqui a imaginação de Aristófanes ousasse não só o cômico,
como também apontava para uma sugestão; aquela educação, aquela artimanha sofistica cuja
finalidade é desvirtuar os jovens dos valores tradicionais, não merece outro fim se não o de
queimar, como aponta Gervasio.
Na verdade, Estrepisíades incendeia o Pensatório punindo seus moradores como
atitude que demonstra refreamento e recusa à educação lá propugnada, pois
queimando o local onde poderiam ser feitas descobertas científicas, ele estaria,
então, repondo o tradicionalismo, bem como devolvendo aos deuses a qualidade de
seres superiores e importantes para a formação do povo grego. (GERVASIO, 2011,
P.170)

É interessante ressaltar que aparentemente o ápice da critica de Aristófanes se dá ao


fazer todo o publico rir e zombar daquilo que ele expõe como alvo de suas criticas, a saber, os
sofistas. Vejamos que os discípulos do pensatório sempre se surpreendem com as descobertas
mais absurdas e isto é ressaltado para nós leitores não como algo bobo de que se deve achar
graça, mas num sentido mais escuso, Aristófanes ridiculariza os objetos da reflexão dos
sofistas que seriam na verdade, coisas absurdas e desnecessárias ao ver do poeta. As
abstrações e o fato de estarem ligados as questões superiores deveriam ser vistas como coisas
insignificantes, assim como é bem feito o ato do lagarto “cagar” na boca de Sócrates e fazer a
este descer de suas celestes contemplações. É como relata Almeida e Pompeu, a intenção final
de Aristófanes ao criar esse enredo, que é demonstrar a fragilidade da sofistica.
A contradição entre o relato do discípulo e a reação do velho demonstra a potência e
a fragilidade dessa retórica. Estrepsíades ri de Sócrates quando elogia tanta
sapiência, enquanto, certamente, o público ri dos filósofos. (ALMEIDA; POMPEU,
2012 ,p.201)

Aristófanes coloca todo o discurso dos sofistas como vazio, por isso muitas vezes
procura concentrar os diálogos em coisas relacionadas ao ar, pois da mesma forma que as
nuvens são consideradas, as divindades dos que ganham a vida pela palavra, como coisas que
estão no alto, ou superiores, as mesmas também são feitas de ar, da mesma forma que a
flatulência de Estrepisíades (ALMEIDA; POMPEU, 2012, p. 204). Talvez por estas questões
deva se atribuir ao intelecto de Aristófanes, não apenas a graça da comicidade, sua
irreverência na zombaria, mas também; sagacidade e astúcia pelo poder critico que empenhou
na comédia.
4. Considerações Finais
Portanto reafirma se que o proposito da comédia aristófânica é realmente o de criticar
a crise ética e pedagógica vivida naquele período e que em sua opinião é trazida graças à
novidade proposta pela retórica sofista.
Vale salientar que a posição de Aristófanes quanto a Sócrates, parece não ser uma
critica especifica a este filósofo, mas o associa a escola sofista por entender que ele se tornou
a figura proeminente do momento intelectual grego, e que este nada mais era do que também
um adversário dos sofistas. As intenções de Aristófanes vão além da mera ofensa a Sócrates,
se concentram em ofender aos sofistas como desvairados que corrompem a educação dos
jovens e lançam fora a tradição louvada pelo comediógrafo nas Nuvens.
Por fim, as pesquisas apresentadas mostram que não há sequer motivos para se
debruçar unilateralmente quanto ao sentimento pessoal e posicionamento de Aristófanes
quanto a Sócrates, mas que seu intuito no geral era utilizar a comédia como um instrumento
politico.

Referências

ARISTÓFANES: As Nuvens. Rio de Janeiro: Zahar, 2013

LESKY, Albin: História da literatura Grega. Lisboa: Fundação Calouste Gulbenkian,


Lisboa, 1995.

MEDEIROS, Andressa C.; BORDIN, Reginaldo A. Aristófanes, a educação em As Nuvens.


Anais da jornada de estudos antigos e medievais. Maringá, 2011

LEÃO, Delfim F.: Retrato físico de Sócrates nas nuvens e em Platão — Breve apontamento.
Coimbra, Hvmanitas, Vol. XLVII, 1995.

GERVASIO, Thalles Lopes; A linguagem cômica em Nuvens, de Aristófanes: uma crítica à


educação sofística. Cadernos do CNLF, Vol. XV, Nº 5, t. 1. Rio de Janeiro: CiFEFiL, 2011

ALMEIDA, Solange Maria S.; POMPEU, Ana Maria C.: Estrepsíades ri de Sócrates em As
Nuvens. O riso no mundo antigo. P. 197-205. Fortaleza: Expressão, 2012

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