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Resumo: Tanto o Tai Chi Chuan como o Aikido foram criados como “artes de defesa”, termo
mais adequado do que “artes marciais”, já que na mitologia romana Marte está muito mais
relacionado ao ataque e à sede de sangue do que propriamente com a esquiva e o bloqueio.
No caso do Tai Chi Chuan, também são bastante propagandeados os seus benefícios físicos. O
que precisa ficar claro é que essas práticas têm também todo um investimento na dimensão
espiritual dos praticantes. O Tai Chi Chuan floresce nos mosteiros taoistas chineses, há
aproximadamente seis séculos atrás. Já o Aikido surge ancorado por uma religião japonesa do
início do século XX, chamada Oomoto Kyo, bastante influenciada pela tradição xintoísta. Nesse
trabalho pretendemos elucidar a maneira como os próprios agentes do trânsito cultural Brasil-
China e Brasil-Japão, pela via da divulgação do Tai Chi Chuan e do Aikido nesse país,
constroem representações de si mesmos e de suas ações. Que narrativas produzem a partir
dessas práticas que em seus primórdios estiveram ligadas a religiões bastante definidas? De
que modo a menção às experiências de espiritualidade aparecem relacionadas aos exercícios
físicos que caracterizam essas modalidades práticas? Para alcançarmos as informações de que
necessitávamos utilizamos algumas obras significativas sobre essas culturas corporais e
espirituais, traduzidas e produzidas no Brasil nos últimos anos. Os divulgadores dessas
tradições parecem não exigirem que os participantes dos cursos de Tai Chi Chuan que
oferecem tenham alguma crença religiosa determinada. No caso do Aikido, algo semelhante
acontece. Do mesmo modo que as escolas de Tai Chi Chuan, elas também não demandam do
praticante filiação a tradição religiosa alguma. Essas artes corporais são, portanto, “lugares
culturais” propícios para que as bricolagens e diálogos inter-religiosos aconteçam. Na medida
em que podem ser praticadas e têm sido procuradas por pessoas que não compartilham
obrigatoriamente das crenças religiosas que marcam a origem de cada uma das artes corporais
em questão, embora sempre marcadas pela dimensão espiritual, em muitos casos poderíamos
compreendê-las como verdadeiros canteiros experimentais de “espiritualidades não-religiosas”.
Nesse trecho fica bastante evidente a noção de que a prática do Tai Chi Chuan
está associada a uma cultura que é textual, com menção que faz ao Clássico do
Caminho – Dao De Jing. Fala também da busca por uma realização maior, algo que
práticas de espiritualidade procuram perseguir. Continuando em sua explicação afirma:
O objetivo mais elevado do Tai Chi Chuan é ter vislumbres das verdades
cósmicas e finalmente vivenciar de modo direto a realidade máxima. Em
termos taoistas e do Tai Chi Chuan, isso significa alcançar o Tao ou
retornar ao grande vazio. (Kit, 2011 [1996], p.312)
Nessa citação o autor retira a diferença entre a cultura corporal do Tai Chi Chuan
e a cultura textual do Dao De Jing, nivelando-as a partir do objetivo semelhante que
perseguem: a) ter vislumbres das verdades cósmicas; e b) vivenciar de modo direto a
realidade máxima. Na tradição da filosofia ocidental, Michel Foucault nos chamou
atenção para a riqueza de culturas espirituais não religiosas de muitos filósofos gregos
e romanos que tinham como metas principais esses mesmos dois temas apontados
pelo Mestre Kiew Kit.
Bem como o Mestre Keiw Kit tem afirmado para o caso do Tai Chi Chuan e do
Daoísmo, o filósofo francês que temos citado também destaca “o encontro com a
verdade” como o ponto mais importante, culminante mesmo, almejado pelos processos
de busca empreendidos pela maioria dos filósofos gregos e romanos.
Ao mesmo tempo em que reforça a relação entre o Tai Chi Chuan e o Daoísmo,
acaba se encaminhando para um argumento que de certa forma procura retirar o viés
religioso da prática, reivindicando, nesse mesmo movimento, uma centralidade da
experiência espiritual que independeria dos conteúdos ensinados por diferentes
tradições discursivas.
III.
Esse aspecto parece também ser válido para o Aikido1, arte “marcial” japonesa
introduzida no Brasil pelo mestre japonês Reishin Kawai, a partir do início da década de
60 em São Paulo. Dentre os vários livros disponíveis em língua portuguesa sobre o
Aikido, este é um dos mais procurados, por conter palavras diretas do próprio fundador
daquela arte, palavras do Grande Mestre Morihei Ueshiba: Ensinamentos Secretos do
Aikido, publicado pela Cultrix em 2010. Wagner Bull, um dos professores de Aikido mais
famosos do Brasil, tradutor de várias obras sobre essa cultura corporal japonesa para o
português, é quem escreve a apresentação à edição brasileira dessa obra. Como as
palavras do Grande Mestre sobre sua própria prática são muito vinculadas ao Xintoísmo
e ao misticismo de uma recém-surgida religião japonesa intitulada Oomoto Kyo, do
início do século XX, referências culturais bastante distantes do universo cultural
compartilhado pela maioria dos brasileiros, Mestre Wagner Bull parece tentar esclarecer
alguns pontos, delimitar certas fronteiras, e definir melhor os conceitos:
1
Embora o fundador dessa arte “marcial”, Morihei Ueshiba (1883-1969), já viesse desenvolvendo um estilo próprio
desde a década de 20 do século passado, ela só se padroniza e toma a nomenclatura atual nos anos que se seguem ao
final da Segunda Guerra Mundial, em 1945.
Tanto o Tai Chi Chuan, como o Aikido, são práticas que têm suas origens
inegavelmente associadas a textos clássicos considerados por muitos chineses e
japoneses como sendo sagrados e míticos. No entanto, são práticas que não são
excludentes, por que foram desenvolvidas com o intuito de elaboração pessoal e
autoconhecimento, ponto importante para as religiões orientais que não veem nisso um
contraponto em relação à lógica religiosa. Ao contrário, essa autoelaboração é condição
mesma para o progresso dos sujeitos em suas relações com o que transcende a
realidade concreta, de acordo com essas tradições. Essa característica não deixa
também de ser um trunfo dessas artes corporais, no que diz respeito à sua capacidade
de expansão no interior dos mais diversificados contextos culturais.
III.
Referenciais
BIZERRIL, José. O retorno à raiz: uma linhagem taoista no Brasil. São Paulo:
CNPQ/PRONEX e Attar Editorial, 2007.
KIT, Wong Kiew. O Livro Completo do Tai Chi Chuan. São Paulo: Pensamento, 2011.
[1ª ed. 1996]
LAOZI. Dao De Jing. Tradução direta do chinês para o português por Wu Jyh Cherng.
Rio de Janeiro: Mauad X, 2011. [1ª ed. 1996]