You are on page 1of 19

José Rodrigues

Frações burguesas em disputa


e a educação superior no Governo Lula

José Rodrigues
Universidade Federal Fluminense, Faculdade de Educação
Universidade Estadual de Campinas, Departamento de Ciência Política

O artigo expõe analiticamente os interesses A educação superior


conflituosos, no Brasil, entre a burguesia industrial, e os empresários industriais
representada pela Confederação Nacional da Indús-
tria (CNI), por um lado, e pela nova burguesia de ser- Trinta anos de
viços educacionais, representada pelo Fórum Nacio- “interação universidade-indústria”
nal de Livre-Iniciativa na Educação, por outro lado,
no que tange às finalidades e à organização da educa- Até a constituição da CNI, em 1938, o empre-
ção superior. sariado industrial buscou construir sua entidade re-
A análise indica que as atuais transformações da presentativa, mas até então essa fração da burguesia
educação superior brasileira são, em grande parte, de- não tinha sido capaz de superar suas divergências
terminadas pelos interesses do capital em converter a setoriais a fim de construir uma entidade de ampla
educação superior em uma mercadoria. Contudo, os representatividade. Portanto, a CNI, como a maior
interesses dessas duas frações da burguesia, com suas parte da estrutura sindical brasileira, teve seu nasci-
características específicas, não são imediatamente mento marcado pela Era Vargas, integrando-se ao
convergentes e, nesse sentido, terminam por desaguar sistema corporativo estabelecido pela Constituição
no cenário do Estado, particularmente no Poder Exe- do Estado Novo. Um importante passo para a
cutivo, no Governo de Luiz Inácio Lula da Silva, que, (con)formação profissional da força de trabalho in-
desde fins de 2004, vem implementando uma refor- dustrial foi dado com a fundação do Serviço Nacio-
ma da educação superior, cujo projeto de lei foi envi- nal de Aprendizagem Industrial (SENAI), por decre-
ado ao Congresso Nacional em julho de 2006. tos-lei, em 1942.1 Do ponto de vista educacional, a
O texto está organizado em três seções, a saber:
A educação superior e os empresários industriais; Os
1
empresários do ensino e a educação superior; e A re- Decretos-lei n. 4.048/42 e n. 4.936/42. Para uma análise da
forma universitária do Governo Lula da Silva. criação do SENAI, ver Rodrigues (1998) e Weinstein (2000).

120 Revista Brasileira de Educação v. 12 n. 34 jan./abr. 2007


Frações burguesas em disputa e a educação superior no Governo Lula

criação do SENAI articula-se com uma vasta legis- de 1968, toda a educação brasileira foi reestruturada,
lação promulgada entre 1942 e 1946 (já após a saída da reformulação do ensino superior à criação do 1º
de Vargas), de iniciativa do então ministro da Edu- grau, do nascimento da pós-graduação à política de
cação Gustavo Capanema, conhecida como Leis formação profissional compulsória em nível de 2º
Orgânicas do Ensino.2 grau, da instituição dos exames vestibulares unifica-
Para abarcar outras facetas da formação humana dos à extinção das cátedras universitárias.
da classe trabalhadora, foi criado, pelo decreto-lei n. Foi nesse contexto que a CNI completou a sua
9.043, de 1946, o Serviço Social da Indústria (SESI). tríade pedagógica, com a criação do Instituto Euvaldo
É no contexto mundial de prestígio da União das Re- Lodi (IEL), em 1969. Diferentemente das entidades
públicas Socialistas Soviéticas (URSS), de início da que o precederam, SENAI e SESI, o IEL não foi cria-
Guerra Fria, de relativo acirramento da luta de clas- do por força de lei. Contudo, também o IEL é marca-
ses no Brasil, de repressão ao movimento dos traba- do por uma aparente imposição, ou, no caso específi-
lhadores, conhecido como “período democrático”, que co, uma “sugestão governamental”. O IEL tem por
o SESI foi criado. Para a CNI, “era indispensável ga- objetivo “promover a integração universidade-indús-
nhar a luta ideológica no chão da fábrica, demons- tria” por meio de estudos, pesquisas e ações. O insti-
trando a superioridade do capitalismo no dia-a-dia” tuto foi criado a partir de recomendação do Grupo de
(CNI, 1996, p. 7). Trabalho (GT) da Reforma Universitária (de 1968),
Mas o quadro das instituições de caráter hege- recomendação essa, aliás, de lavra da própria confe-
mônico, da burguesia industrial, não estava ainda com- deração, conforme explicitou o documento do GT (cf.
pleto. Em dezembro de 1968, o ato institucional n. 5 IEL, 1984, p.12). Com efeito, as sugestões contidas
(AI-5) fechou (temporariamente) o Congresso Nacio- no documento final do GT da Reforma Universitária
nal, revogou o direito de habeas corpus, cassou man- apontavam para a criação de um órgão de “interação
datos, suspendeu direitos políticos, demitiu e aposen- universidade-indústria”, de cujos objetivos se desta-
tou funcionários públicos. No entanto, ao lado do ca: “c) servir de elo de ligação entre a demanda (por
terror (coerção) implantado na vida social pelas for- parte da indústria) e a oferta (por parte das universi-
ças golpistas, o país vivia a euforia econômica (con- dades)” (idem, p. 12).
vencimento): começava o período conhecido como Em fins da década de 1980, seguindo as diversas
“milagre econômico”. alterações no perfil de atuação do chamado Sistema
Com a industrialização, houve grande crescimen- CNI, o IEL também passou a sofrer mudanças (cf.
to da demanda social por educação, o que acabou por IEL, 1990). Participando ativamente das mudanças
agravar a crise do sistema educacional, servindo, as- da economia brasileira, promovidas no Governo
sim, como pretexto à celebração, a partir de 1964, de Collor de Mello, o instituto passou a atuar prioritaria-
acordos entre os governos brasileiro e norte-america- mente em projetos de desenvolvimento tecnológico e
no. Conhecidos como “Acordos MEC/USAID”, suas gerencial do parque industrial brasileiro. Com a elei-
finalidades eram prover “assistência técnica” para a ção do senador-industrial Fernando Bezerra para a
reformulação completa do sistema educacional bra- presidência da CNI, em outubro de 1995, a tríade pe-
sileiro, adequando-o à nova ordem. De fato, a partir dagógica da confederação sofre novas transformações,
em particular o IEL (cf. IEL, 1999a).
Em julho de 1999 vem a lume o chamado Plano
2
As chamadas “leis” orgânicas do ensino consistem em um Estratégico 1999-2010 (IEL, 1999b), que traça um
conjunto de decretos que reestruturam profundamente a educação novo perfil para a entidade, a partir de quatro possí-
brasileira, estabelecendo, pela primeira vez, a educação como uma veis cenários para o país, em 2020. Dos quatro cená-
questão nacional. rios, três deles são bastante favoráveis aos interesses

Revista Brasileira de Educação v. 12 n. 34 jan./abr. 2007 121


José Rodrigues

da burguesia industrial, na medida em que antevêem chamada reestruturação produtiva, a CNI divulgou o
relativa estabilidade política; já o último traça um fu- documento Competitividade industrial: uma visão
turo quase apocalíptico para a economia brasileira. estratégica para o Brasil (CNI, 1988), no qual afir-
Para cada um deles, uma idéia-força é apresentada. ma que
Com relação ao primeiro cenário, denominado “De-
senvolvimento integrado”, o IEL prevê que o país al- [...] a tarefa que se impõe é a elaboração e uma estra-
cançará altos níveis de desenvolvimento econômico tégia que permita recriar a institucionalidade, incluindo o
e uma relativamente grande integração à economia papel do Estado como agente produtivo e normativo, e a
internacional, combinada com média qualidade de viabilização de novos instrumentos que reconheçam o es-
vida, expressa em índices moderados de pobreza e gotamento do modelo substituidor de importações e a exis-
altos indicadores sociais, registrando também uma tência de um parque produtor complexo. (p. 11)
leve desconcentração regional e um baixo impacto
ambiental. Nesse contexto, o Estado assumiria um Quais seriam os novos papéis a serem desempe-
caráter “indutor e regulador ativo”; já as universida- nhados pelo Estado, pela educação superior? Para a
des e as instituições tecnológicas seriam bastante di- burguesia industrial, o sistema educacional brasilei-
nâmicas, com uma postura propícia à interação recí- ro, em todos os seus níveis e modalidades, representa
proca. As empresas, por sua vez, também aumentariam um “ponto de estrangulamento” interno na busca da
sua participação na geração/difusão do conhecimen- competitividade. Para os empresários industriais, a
to. Haveria um adensamento do espaço de articula- permanência do analfabetismo, a baixa cobertura da
ção empresas x universidades, com crescente presen- população escolarizável (tanto em nível médio quan-
ça de instituições mediadoras em nível estadual. Para to em nível superior) e a reduzida integração univer-
o IEL, a “idéia força do cenário é Educação e conhe- sidade-empresa seriam persistentes entraves à com-
cimento para a competitividade” (1999b, p. 14). petitividade. Na visão da burguesia industrial, o maior
Sem optar explicitamente por um dos quatro ce- problema para a formação de recursos humanos en-
nários para o Brasil em 2020, o documento traça nove contrar-se-ia no fato de o sistema de ensino estar “afas-
linhas de atuação para o IEL que se desdobram em 15 tado das verdadeiras necessidades geradas nas ativi-
“projetos estratégicos”, entre os quais destacamos dades econômicas” (idem, p. 19). Nesse sentido, a
dois: o Projeto de Empreendedorismo nas Instituições confederação sugere ao governo:
de Ensino e o Projeto de Modernização das Universi-
dades. Com relação ao último, o escopo seria desen- [...] atuar na formação de mão-de-obra de nível supe-
volver propostas de aperfeiçoamento dos currículos rior buscando uma maior integração universidade-empresa
universitários visando sua melhor adequação às ne- que possibilite a redefinição do sistema de ensino, de modo
cessidades de recursos humanos para a indústria, bem a atender à Pesquisa Básica e às necessidades geradas nas
como reformas institucionais e autonomia das uni- atividades econômicas. (idem, p. 20)
versidades (idem, p. 32-34).
Podemos, então, concluir que, após três décadas, Ou seja, se por um lado a CNI aponta problemas
sem se desviar de suas finalidades originais, o IEL em todos os níveis de ensino, por outro lado a preocu-
consolidou as bases para uma proposta de reforma da pação fundamental da entidade, naquele documento, é
educação superior, sobre a idéia-força “Educação e dirigida para a universidade pública. Seu objetivo é,
conhecimento para a competitividade”. com isso, subordinar a pesquisa e o ensino, ou seja, a
Na verdade, as propostas apresentadas pelo IEL universidade, às “necessidades econômicas”, isto é, às
já vinham sendo desenvolvidas pela CNI desde o fi- necessidades do grande capital industrial, e, para tal,
nal da década de 1980. Com efeito, no contexto da propõe um amplo conjunto de ações articuladas.

122 Revista Brasileira de Educação v. 12 n. 34 jan./abr. 2007


Frações burguesas em disputa e a educação superior no Governo Lula

Em primeiro lugar, a CNI aponta a necessidade dade, participar dos órgãos governamentais responsá-
de um maior rigor na transferência de recursos para as veis pela formulação da política tecnológica.5
universidades, condicionada à avaliação da qualidade. Além das duas ações anteriores, a confederação
Em segundo lugar, propugna-se a identificação e a di- indica ainda a necessidade de implantar, naqueles es-
vulgação dos centros de excelência, em nível de gra- paços científicos, uma “atitude empresarial” com a
duação e de pós-graduação, a partir dos “exames de finalidade de redefinir as suas funções e objetivos,
avaliação”.3 Em terceiro lugar, a criação de incentivos incluindo-se aí a meta de venda de serviços e a des-
fiscais para promover a canalização de recursos priva- burocratização das contratações de serviços externos
dos para o sistema público de ensino, desde que garan- (CNI, 1988, p. 21).
tida a participação direta das empresas na decisão so- Enfim, a competitividade é tomada como um
bre a destinação desses recursos. Como quarta ação, a verdadeiro paradigma pedagógico para a educação
implementação de programas especiais de alfabetiza- brasileira, em particular para a educação superior,
ção (português e aritmética) voltados para a força de notadamente as universidades públicas.
trabalho industrial efetivamente empregada. A quinta Em 2004, a burguesia industrial encontra a con-
ação refere-se à flexibilização no regime de dedicação juntura política propícia para atuar na “modernização
exclusiva dos docentes-pesquisadores, na medida em da universidade” em um plano mais estrutural, posto
que propõe a ampliação da “liberdade” para participa- que o Governo Lula da Silva cria o grupo interminis-
ção daqueles em consultorias externas.4 Como sexta terial de reforma universitária.6
ação, a confederação propõe ações para uma maior in-
tegração entre as empresas e as universidades (e cen- A reforma da educação superior segundo a CNI
tros de pesquisa), a partir da criação, nessas institui-
ções, de conselhos definidores de linhas estratégicas Convidada pelo então ministro da Educação Tarso
de pesquisa com a participação efetiva dos empresá- Genro a participar do debate da reforma da educação
rios. Os empresários também devem, na visão da enti- superior, a CNI7 prontamente respondeu apresentan-
do a sua proposta, consubstanciada no documento
Contribuição da indústria para a reforma da educa-
ção superior (CNI, 2004).
3
Cabe ressaltar que, a partir de 1996, o MEC inaugurou o
processo de avaliação dos cursos de graduação. Além disso, naque-
le ano, o Ministério de Ciência e Tecnologia (MCT) passou a im-
5
plementar o Programa de Apoio a Núcleos de Excelência Em maio de 2004, o presidente Lula, além de reencaminhar
(PRONEX). O Governo Lula, por meio da Coordenação de Aper- o projeto de Lei de Inovação, assinou simultaneamente uma me-
feiçoamento de Pessoal de Nível Superior (CAPES), instituiu o cha- dida provisória criando o Conselho Nacional de Desenvolvimen-
mado Programa de Excelência Acadêmica (PROEX), destinado aos to Industrial, que será responsável por traçar diretrizes de longo
programas de pós-graduação classificados com as notas 6 e 7. prazo para o desenvolvimento do setor produtivo.
4 6
Encaminhada originariamente ao Congresso Nacional em Como veremos mais adiante, as concepções do IEL, des-
2002, por Fernando Henrique Cardoso, o projeto de “Lei de Ino- critas anteriormente, servem de base à proposta de reforma da
vação” foi reencaminhado, em maio de 2004, pelo Governo Lula. educação superior da CNI, encaminhada ao Governo Lula da Sil-
A lei transforma profundamente a relação universidade-empre- va em 2004.
7
sa. Para uma análise da política de ciência & tecnologia (C&T) Cabe talvez destacar que o atual presidente da CNI, Ar-
do Governo Fernando Henrique Cardoso, ver Oliveira (2002). mando de Queiros Monteiro, é deputado federal pelo Partido Tra-
Para uma análise da educação superior no mesmo governo, ver balhista Brasileiro (PTB) de Pernambuco, que, por sua vez, inte-
Cunha (2003). gra a chamada “base do governo”.

Revista Brasileira de Educação v. 12 n. 34 jan./abr. 2007 123


José Rodrigues

Na apresentação, a CNI reafirma seus permanen- mática”, ou seja, “a universidade deve estar voltada
tes objetivos hegemônicos e lança “seis grandes de- para o setor produtivo e para o mercado de trabalho”,
safios”: pois, na “avaliação popular, universidade e indústria
são instâncias complementares” (idem, p. 13). Seguin-
1. instituir novo marco regulatório para avaliar do em sua ventriloquia, o documento afirma que os
o desempenho das instituições de educação “formadores de opinião” reconhecem a necessidade
superior (IES); da manutenção de uma educação superior gratuita de
2. implementar um processo de autonomia subs- boa qualidade. Contudo, no “quadro atual de restri-
tantiva no conjunto das universidades; ções fiscais”, o Estado deve criar mecanismos de fi-
3. desenvolver pesquisa básica e aplicada, cuja nanciamento, no caso, a “divisão dos ônus com os se-
utilidade social e econômica esteja vinculada tores que usufruem dos produtos do conhecimento”.
ao projeto de nação; Nesse ponto, novamente uma aparente incoerência,
4. aperfeiçoar os critérios de credenciamento e mas que é logo desfeita: “a pesquisa aplicada [...] se-
de avaliação praticados pelo sistema de edu- ria uma fonte de investimento para a universidade com
cação superior; embasamento na pesquisa científica” (idem, p. 14).
5. implementar padrões educacionais compatí- Já estamos em condições de sintetizar prelimi-
veis com a sociedade da informação e do co- narmente a lógica argumentativa da burguesia indus-
nhecimento; trial. Podemos dizer que, para a CNI, as universida-
6. ampliar a oferta de educação superior na área des públicas devem ser preservadas, mesmo que ainda
tecnológica. gratuitas para os estudantes; porém, devem adaptar-
se às necessidades do “setor produtivo”. E, de forma
Com vistas a sustentar o conjunto das propostas bastante inteligente, propõe um mecanismo privati-
anteriores, o documento defende, em primeiro lugar, zante para manutenção do ensino público e gratuito: a
explicitamente, o discurso da teoria do capital huma- venda dos resultados da pesquisa aplicada às empresas
no (CNI, 2004, p. 9).8 Na seção seguinte, o documen- interessadas. A CNI, portanto, não defende a privatiza-
to da confederação transpõe a relação educação-de- ção das universidades públicas da mesma forma que
senvolvimento, apresentada de forma genérica, para ocorreu com as empresas estatais, mas pretende atrelar
o plano específico da educação superior: as IES à lógica e aos propósitos do capital.
Na seção “A educação superior necessária ao
É importante ressaltar que, diante dos crescentes ní- desenvolvimento: desafios e propostas”, o documen-
veis de exigência e de complexidade no trabalho e, em fun- to enumera uma série de “propostas” que encaminha-
ção das inovações tecnológicas e das novas formas de or- riam a superação dos “desafios” postos pela CNI às
ganização da produção, o setor produtivo ressente-se da universidades brasileiras.
insuficiência e da inadequação da oferta de educação su- O primeiro “desafio”, bastante curioso pela sua
perior, na área tecnológica. (idem, p. 11, grifo meu) formulação paradoxal, é “universalizar o acesso à
educação superior com qualidade”, o que significa-
Reforçando o seu ponto de vista, o documento da ria, em cinco anos, elevar de “9% para 30% da popu-
CNI diz retratar a “percepção da sociedade brasileira lação em idade universitária” (CNI, 2004). Um breve
sobre a reforma da educação superior”, que seria “prag- comentário: “universalizar” ainda significa “genera-
lizar”, e não apenas atingir uma taxa de cobertura de
menos de um terço da população “em idade universi-
8
Sobre o capital humano, ver Frigotto (1989) e Rodrigues tária”. Mas, quais seriam as propostas para a supera-
(1997). ção desse “desafio”?

124 Revista Brasileira de Educação v. 12 n. 34 jan./abr. 2007


Frações burguesas em disputa e a educação superior no Governo Lula

A CNI insiste em fragmentar a organização da de educação superior – repetem a argumentação já


educação superior, agora propondo aquilo que Cunha apresentada, motivo pelo qual nos eximiremos de
(1980) define como “fragmentação do grau acadêmi- analisá-los (idem, p. 24-28).
co de graduação”, ou seja, a “criação de cursos e áreas O próximo desafio diz respeito ao trinômio “au-
tecnológicas voltadas a profissões emergentes” (CNI, tonomia, gestão e avaliação”: “Evoluir de uma au-
2004, p. 18). A expansão de cursos superiores de cur- tonomia formal da Universidade para uma autonomia
ta duração seria uma forma rápida de alcançar a “uni- substantiva, balizada por processos de avaliação que
versalização” da educação superior, segundo a CNI. incluam a participação da sociedade” (idem, p. 29).
Ainda nessa direção, o documento propõe enfrentar a De modo geral, o documento propõe quatro ações que
evasão de estudantes a partir da “oferta de cursos ade- visam à criação de um “novo marco regulatório”, com
quados às necessidades do mercado e flexíveis do vistas a reformar o conceito de autonomia universitá-
ponto de vista de tempo, local e espaço” (idem, p. 19). ria, atrelando essa autonomia à avaliação externa, isto
Enfim, é óbvio o método de “universalização” da edu- é, aos parâmetros da burguesia industrial:
cação superior: flexibilizar/fragmentar o modelo uni-
versitário e o modelo de curso de graduação. [...] a avaliação de desempenho deve se constituir em
Outros mecanismos para “universalizar” a edu- mecanismo orientador das políticas de educação superior, o
cação superior seriam a “atração e a retenção de mes- que não ocorre hoje. Os atuais sistemas de avaliação são com-
tres e doutores no sistema de educação superior, pro- plexos e auto-referentes. Faz-se necessário, então, propor
movendo a valorização e a fixação dos profissionais critérios de avaliação adequados que permitam ultrapassar
na academia e nas empresas” (idem, ibidem). Os ob- os limites impostos pelos muros da universidade e integrá-la
jetivos embutidos na proposta parecem claros: atrelar à economia do conhecimento. (idem, p. 31, grifo meu)
a pesquisa à demanda do parque industrial e, simulta-
neamente, baixar os custos das empresas na rubrica Em outras palavras, a CNI propõe que a univer-
pesquisa e desenvolvimento (P&D). sidade tenha a liberdade de implementar internamen-
Finalmente, a CNI propõe a utilização massiva te os desígnios estipulados, desde fora, pela burgue-
da tecnologia da informação para a vigorosa amplia- sia industrial.
ção da oferta de educação superior (graduação e pós- Após 31 páginas de análises e propostas de “mo-
graduação) à distância. Para agilizar a ampliação da dernização da universidade” com vistas a “promover
oferta, a burguesia industrial dispõe-se a auxiliar o a integração harmoniosa entre as IES e o setor produ-
MEC na criação de uma “Universidade Aberta do tivo”, finalmente o documento da CNI propõe enfren-
Brasil”, que vem a ser, de fato, uma instituição de tar o desafio de “elevar substancialmente o volume
ensino à distância, desde a alfabetização até a pós- de recursos financeiros necessários à expansão quan-
graduação (idem, p. 21-22).9 titativa e qualitativa do Sistema de Educação Supe-
De uma maneira geral, os desafios que se se- rior” (idem, p. 32). Contudo, a solução proposta pela
guem – “regionalização” e “pluralidade de modelos” burguesia industrial é pífia. Ou seja, o discurso in-
dustrial naturaliza a “crise fiscal” do Estado e, por
conseguinte, entende ser inviável a expansão da edu-
9
Em 16 de dezembro de 2005, o MEC lançou edital (publi- cação superior “no padrão de custos vigentes”. Ou
cado no Diário Oficial de 20 dez. 2005) de chamada pública para seja, é preciso expandir – quantitativa e qualitativa-
constituição do Sistema Universidade Aberta do Brasil (cf. <http:/ mente – sem o dispêndio maior de recursos orçamen-
/www.uab.mec.gov.br>). Curiosamente, até mesmo os exemplos tários, posto que estes devem continuar a ser canali-
ilustrativos das propostas são os mesmo apresentados no docu- zados para o pagamento da “dívida pública”. Como
mento da CNI. fazer? Simples: regularizar as transferências orçamen-

Revista Brasileira de Educação v. 12 n. 34 jan./abr. 2007 125


José Rodrigues

tárias atuais, gerir os recursos públicos com “eficiên- das as proposições da CNI? Percorrendo todo o do-
cia e eficácia”, vincular o incremento de recursos à cumento Contribuição da indústria para a reforma
ampliação das matrículas e, finalmente, o aumento da educação superior, não é possível distinguir for-
de recursos próprios pela “prestação de serviços à malmente o alvo da proposta da CNI, se a universida-
sociedade”. Enfim, a solução proposta pela CNI para de pública ou a privada. Contudo, a citação a seguir
o financiamento do sistema de educação superior se- esclarece a posição da CNI:
gue o receituário neoliberal padrão.10
Prosseguindo, o documento da CNI, mais uma É ainda muito pequeno o número de jovens estudan-
vez, propõe “adequar os conteúdos programáticos da tes de cursos superiores no Brasil, mesmo a despeito da
educação superior aos requisitos da sociedade do co- referida evolução da educação. De um lado, reduziu-se sen-
nhecimento”, e a “disseminação de uma cultura em- sivelmente a expansão do sistema de educação superior
preendedora em todos os níveis educacionais” (idem, público, sobretudo o subsistema de maior relevância, o fe-
p. 35). deral, composto pelo conjunto das Instituições Federais de
O penúltimo “desafio” repisa também questões Educação Superior – IFES. De outro lado, as matrículas
já postas pelo IEL desde a sua criação, e também pelo nas instituições particulares de educação superior passa-
documento ora em análise: a “interação Empresa- ram a ser majoritárias, apresentando, porém, graves defi-
Universidade”.11 As propostas já são conhecidas: in- ciências qualitativas. Esses fatores evidenciam o desequi-
cubadoras de empresas nas IES; oferta de estágio nas líbrio do sistema e sua inadequação às reais necessidades
empresas; geração de conhecimento voltado para a do país. (idem, p. 11, grifos meus)
“inovação tecnológica e a gestão empresarial” (idem,
p. 37-41). O documento, de forma tácita, assume como alvo
O último “desafio” repete o anterior, apenas es- preferencial das reformas que propõe as universida-
pecificando a pesquisa e a inovação, que é considera- des públicas, especialmente as universidades fede-
da pela CNI pouquíssimo prática, posto que, em rais.12 A CNI não escolheu buscar parceria com as
geral, não se convertem em patentes, isto é, conheci- empresas de educação superior, ou seja, torná-las alvo
mento privado. Nesse sentido, entende que as “agên- da “verdadeira revolução educacional”, pelo simples
cias tradicionais de financiamento deveriam mudar motivo de que as IES privadas não são capazes de
os seus critérios de julgamento e avaliação, agregan- responder às demandas da indústria, posto que apre-
do aos seus comitês de avaliação a participação de sentam “graves deficiências qualitativas”. Nesse sen-
especialistas do setor produtivo” (idem, p. 42). tido, é bastante curioso perceber que a fração indus-
Contudo, cabe ainda uma última questão obscu- trial da burguesia não confia no ensino-mercadoria,
ra no discurso empresarial aqui analisado: para qual tampouco no conhecimento-mercadoria, produzidos
universidade – pública ou privada – estariam volta- pela nova burguesia de serviços.
Em síntese, o documento em tela, de fato, traduz
as expectativas da indústria para a reforma da educa-
ção superior, mesmo que de forma repetitiva (talvez
10
Além de repetir a tese da flexibilização curricular, ajusta- até por procedimento pedagógico). Em momento al-
da às demandas da produção, e defender um “Sistema de gum a CNI esconde as suas finalidades ou os meios
Certificação por Competências” (CNI, 2004, p.33). Essas propos-
tas já possuem bases legais vigentes, principalmente com a pro-
mulgação do decreto n. 5.154/04, que regulamenta a educação 12
Caberia desenvolver-se um estudo sobre a relação estabe-
profissional. Para uma breve análise, ver Rodrigues (2005a). lecida entre a Federação das Indústrias do Estado de São Paulo
11
Observe-se que a ordem dos termos do binômio foi alterada. (FIESP) e as universidades estaduais paulistas.

126 Revista Brasileira de Educação v. 12 n. 34 jan./abr. 2007


Frações burguesas em disputa e a educação superior no Governo Lula

para adequar a formação humana e a universidade com a sigla ABM,14 liderou, em 2000, a constituição
pública aos seus próprios interesses. O que a burgue- do Fórum das Entidades Representativas do Ensino
sia industrial pretende é que a estrutura universitária Superior Particular. É essa a origem do atual Fórum
pública, devidamente fragmentada na forma e no con- Nacional da Livre-Iniciativa na Educação, (re)criado
teúdo, assim como os currículos e as pesquisas de- no contexto da atual reforma da educação superior,
senvolvidas no seu interior, atendam à necessidade mais precisamente em reação ao estabelecimento do
intrínseca e fundamental do capital: acumular, acu- Programa Universidade para Todos (PROUNI).15
mular sempre. A criação e a composição do Fórum Nacional da
Livre-Iniciativa na Educação confirmam, no campo
Os empresários do ensino e a educação superior dos serviços, a anatomia da representação dos inte-
resses da burguesia (industrial) traçada por Diniz e
O Fórum Nacional da Livre-Iniciativa na Educação Boschi (2004), que indica a emergência e a convi-
vência entre um formato corporativo instaurado e su-
Os empresários do ensino, fração da nova bur- pervisionado pelo Estado e uma rede de associações
guesia de serviços, embora atuantes em todos os ní- civis paralelas, funcionando com autonomia ante o
veis e modalidades de venda do ensino-mercadoria, sistema oficial:
atuam mais fortemente na educação superior, sendo
responsáveis por mais de 70% das vagas desse nível As associações extracorporativas, organizadas em
educacional. âmbito nacional e de forma autônoma, reúnem empresas de
A nova burguesia de serviços ocupa uma posi- um determinado setor ou de setores afins, sendo a afiliação
ção particular na estrutura econômica, social e políti- e a contribuição de caráter voluntário. [...] Embora de ex-
ca brasileira. Pois se, por um lado, não dispõe do po- pressão nacional, sua capacidade de aglutinação é limita-
der econômico dos grandes grupos industriais, da, na medida em que estão também organizadas setorial-
representados pela CNI, por outro lado vem sendo mente. (p. 45)
favorecida pela posição estratégica que ocupa na po-
lítica neoliberal, posto que é herdeira direta da des- Portanto, em que pesem as diferenças de crença,
truição dos serviços públicos, promovida principal- de estatuto jurídico e de peso político específico, a
mente pelas políticas neoliberais.
Dado o seu caráter subordinado na configuração
da reprodução do capital em geral, além de bastante 14
Atualmente, a ABMES congrega 320 entidades “mante-
marcada pela emergência do neoliberalismo, no Bra- nedoras” de IES privadas (cf. <http://www.abmes.org.br/
sil, a organização centralizada dos empresários da sobre_abmes/20anos/ies_associadas.htm>. Acesso em: 4 nov. 2005.
educação, particularmente da educação superior, é 15
O fórum reúne 25 entidades de diversas naturezas jurídicas,
ainda incipiente. tais como associações, sindicatos, federações e confederação, além
Dentre a grande variedade de entidades repre- de entidades confessionais. Dentre as entidades que compõem o
sentativas dos interesses das instituições privadas de fórum, destacam-se a Associação Brasileira de Escolas Superiores
ensino destaca-se, no plano da educação superior, a Católicas (ABESC), a Associação Brasileira de Instituições Educa-
Associação Brasileira de Mantenedoras do Ensino cionais Evangélicas (ABIEE), a Associação Nacional das Universi-
Superior (ABMES).13 A ABMES, fundada em 1982 dades Particulares (ANUP), a Associação Nacional dos Centros Uni-
versitários (ANACEU), a Confederação Nacional dos Estabeleci-
mentos de Ensino (CONFENEN), o Conselho de Reitores das Uni-
13
Sobre as entidades representativas da educação privada, versidades Brasileiras (CRUB), além da própria ABMES (cf.
laicas ou confessionais, ver os estudos de Neves (1994, 2000, 2002). <www.forumdeeducacao.org.br>. Acesso em: 2 nov. 2005).

Revista Brasileira de Educação v. 12 n. 34 jan./abr. 2007 127


José Rodrigues

reforma em vias de ser encaminhada ao Congresso apresentação, que é contra in totum o anteprojeto,
Nacional pelo Governo Lula da Silva logrou unificar posto que “o mesmo não satisfaz o que o Brasil preci-
as mais importantes entidades representativas do ca- sa para criar as âncoras de sustentação de um sistema
pital investido em educação sob a profissão de fé na coerente com os atuais desafios da educação brasilei-
“livre-iniciativa”, mesmo que muitas delas reneguem ra” (idem, p. 2). A razão fundamental dessa rejeição
três vezes seus fins lucrativos. Nesse sentido, enten- pode ser resumida na interpretação de que o antepro-
dendo que o Fórum Nacional da Livre-Iniciativa na jeto possuiria um nítido “eixo intervencionista” (idem,
Educação representa uma solução de compromisso p. 3). É essa caracterização que vai efetivamente es-
entre as diversas forças econômicas e políticas no truturar toda a análise da proposta governamental de-
campo da venda de educação-mercadoria, será desen- senvolvida nesse e em outros documentos do fórum.
volvida uma análise de sua contraproposta às formu- Nesse sentido, a entidade dos empresários do ensino
lações emanadas do Poder Executivo para a reforma entende que o anteprojeto trata em um único docu-
da educação superior. mento legal de assuntos de ordens bastante distintas,
Dentre os diversos documentos e manifestações restringe a autonomia universitária, além de abrigar
públicas exaradas pelo fórum, foi selecionado para dispositivos que “transgridem princípios constitucio-
ser analisado o documento Considerações e recomen- nais”. O fórum, fazendo jus à sua denominação, cla-
dações sobre a versão preliminar do anteprojeto de ma por “livre-iniciativa”, mesmo que esta se choque
lei da reforma da educação superior (Fórum, 2005), frontalmente com outro princípio constitucional: “ga-
divulgado em 29 de março de 2005. Esse documento rantia de padrão de qualidade” da educação superior.
foi escolhido, em detrimento dos demais, dado o seu Senão, vejamos:
caráter programático, que, como tal, serviu de base
para a análise da segunda versão do anteprojeto. O Fórum reconhece que o Poder Executivo tem o
dever de zelar pelos critérios de autorização de cursos e
O fórum e a reforma instituições, bem como pela observância do princípio da
“garantia de padrão de qualidade” da educação superior,
O documento Considerações e recomendações consagrado pela Constituição Federal. (idem, p. 5, grifos
sobre a versão preliminar do anteprojeto de lei da do original)
reforma da educação superior (Fórum, 2005), com-
posto por 19 páginas, é organizado em duas partes, Contudo, o princípio da qualidade não pode cor-
além da “Apresentação”, a saber, “Breve análise do romper o maior princípio do modo de produção capi-
anteprojeto” (cerca de três páginas) e “Posições e re- talista: o direito à propriedade privada dos meios de
comendações do Fórum” (cerca de 16 páginas). produção:
Após alguns parágrafos de celebração da inicia-
tiva privada no campo educacional, além de referên- Mas entende que o zelo e o denodo governamentais
cia explícita à contenção da expansão das IES federais, postos no exercício dessa nobre função não devem ignorar
para que se fosse impedido, com isso, o crescimento e não podem atropelar o que estabelecem as normas que
do déficit público,16 o fórum logo anuncia, em sua regem matérias tão díspares quanto são as da ordem educa-
cional e as da ordem econômica pertinentes à livre atuação
da iniciativa privada. (idem, ibidem, grifos meus)
16
Sitiadas pela lógica do capital financeiro, burguesia in-
dustrial e nova burguesia de serviços educacionais irmanam-se no Em síntese, “o Fórum é contrário a quaisquer
declarado objetivo supremo de contenção do déficit público – ob- investidas contra os princípios constitucionais que
viamente, sem abrir mãos de seus subsídios. garantem a livre iniciativa na educação” (idem, p. 14).

128 Revista Brasileira de Educação v. 12 n. 34 jan./abr. 2007


Frações burguesas em disputa e a educação superior no Governo Lula

Em que pese a peremptória afirmação inicial, de Com relação ao modelo de educação superior,
que o anteprojeto “não merece uma simples correção fundamentalmente naquilo que tange à autonomia e
de pontos”, discorre suas sugestões. ao modelo de universidade baseada na indissociabili-
Primeiramente, o documento preocupa-se com a dade ensino-pesquisa-extensão, o Fórum Nacional da
estrutura em si do anteprojeto governamental e com Livre-Iniciativa na Educação entende que tal asso-
as competências institucionais do MEC. Nesse senti- ciação é fruto da “pressão exercida pela comunidade
do, indica ao Poder Executivo que, caso a reforma seja acadêmico-científica das grandes universidades”, isto
realizada, ela deverá ser consignada por diversos dis- é, as universidades públicas. Essas universidades,
positivos legais. O fórum entende que se deveria pre- supostamente apoiadas em “visões idealistas” do sé-
liminarmente alterar o capítulo da Lei de Diretrizes e culo XX, estariam defendendo como modelo único
Bases da Educação Nacional (LDB) sobre educação para a educação superior a “universidade de pesqui-
superior. Em seguida, dever-se-ia aprovar uma “lei or- sa”. Concisamente, os empresários do ensino enten-
gânica ou estatuto” das instituições federais de educa- dem – e nisso estão plenamente em acordo com os
ção, que tratasse de aspectos relacionados à autono- empresários da indústria – que deve existir a “plurali-
mia, ao financiamento e à gestão. Em terceiro lugar, o dade”: “O Fórum defende a pluralidade de institui-
governo deveria aprovar uma lei que estabelecesse um ções de ensino superior, com diferenciados graus de
novo “marco regulatório” das relações entre o poder autonomia para o seu desenvolvimento e expansão,
público federal e as IES privadas. Nesse sentido, ca- desde que demonstrados níveis de qualidade” (Fórum,
beria a revisão do status institucional do MEC, de for- 2005, p. 11).
ma que lhe seja retirada a prerrogativa de instância Isso desde que a avaliação do “nível de qualida-
reguladora do sistema educacional, atribuindo tal po- de” não interfira na liberdade de gestão do negócio
der a uma “agência reguladora independente”. Em educacional, obviamente. Com efeito, o fórum execra
outras palavras, os empresários de ensino entendem qualquer tentativa de que se estabeleça alguma forma
ser nefasta a duplicidade de funções do MEC, que, de gestão democrática, seja pela eleição de dirigen-
simultaneamente, regula o sistema federal de educa- tes, seja a partir da instalação do chamado (na última
ção e mantém uma grande rede de educação superior.17 versão do anteprojeto de reforma) conselho social de
Postas as indicações anteriores, de como o Po- desenvolvimento. Indo adiante, o documento ainda
der Executivo deveria proceder, os empresários do ressalta que os mecanismos atuais de avaliação da
ensino tecem uma série de considerações e algumas qualidade ainda são muito incipientes, demandando
sugestões específicas quanto à reforma: melhoria da maiores discussões, inclusive pela incorporação de
qualidade, autonomia, pluralidade de instituições, representação das IES privadas nos atuais órgãos pú-
gestão democrática, avaliação, pós-graduação, inter- blicos que buscam aferir a qualidade educacional
ferência na livre-iniciativa (aliás, já mencionada), (idem, p. 13). Em outras palavras, os empresários do
democratização do acesso e da permanência, questão ensino não confiam no MEC como órgão avaliador
patrimonial, valorização do magistério, ingresso do do sistema educacional, posto que, entre outros as-
capital estrangeiro no negócio da educação-mercado- pectos, o ministério simultaneamente regula, avalia e
ria, entre outros. mantém instituições de educação superior.
Os mercadores de ensino, partindo da compreen-
são de que o conhecimento (e, portanto, a pesquisa) é
17
Cabe talvez explicitar que tal proposta é símile àquela elemento central para o desenvolvimento das forças
implementada no Governo Fernando Henrique Cardoso, quando produtivas, reconhecem que as atividades de investi-
da privatização de empresas estatais, que criou diversas agências gação institucionalizadas, no interior de suas institui-
reguladoras. ções, são bastante débeis, inclusive considerando-se

Revista Brasileira de Educação v. 12 n. 34 jan./abr. 2007 129


José Rodrigues

a pós-graduação e a fixação de professores-pesquisa- cedendo a estudos que deveriam culminar em uma


dores. Nesse sentido, os empresários do ensino aca- proposta de reforma universitária (cf. Brasil, 2003).
bam por demandar do governo mecanismos financei- Proclamada pelos seus redatores como fruto dos
ros de apoio a essas atividades (cf. Fórum, 2005, p. 15 debates ocorridos entre os agentes governamentais e
e 17, principalmente). Ou seja, a livre-iniciativa rei- o conjunto da sociedade, particularmente as entida-
vindica verbas e financiamento públicos para desen- des supra,20 o MEC divulgou, em 30 de maio de 2005,
volver pesquisa e contratar pesquisadores. a segunda versão do anteprojeto. E, finalmente, em
De uma maneira geral, as considerações e as re- 29 de julho, por ocasião da passagem do cargo de
comendações dos empresários do ensino superior aca- ministro de educação,21 Tarso Genro torna pública a
bam por confluir àquelas oriundas dos empresários então chamada “versão definitiva” do anteprojeto da
industriais, exceto o aspecto da submissão da quali- lei da reforma da educação superior.22
dade à liberdade. Em outras palavras, em última ins- Nesse sentido, confirmando a análise de diver-
tância, ambas as frações do capital pretendem que a sos autores, entre eles Boito Jr. (1999, 2005), fica claro
educação se converta plenamente em mercadoria.
20
Além da CNI e do fórum, diversas entidades, tanto do
A reforma universitária do Governo Lula da Silva campo do trabalho quanto aquelas ligadas à burguesia, além das
especificamente acadêmicas, produziram documentos que deba-
Trajetória da reforma da educação superior tem, criticam e sugerem alterações à proposta governamental.
21
Dada a crise instalada no governo desde as denúncias de
Dando prosseguimento a uma série de políticas corrupção feitas pelo então deputado governista Roberto Jefferson
que buscam implementar, de fato, uma reforma da (PTB-RJ), o Governo Lula da Silva empreendeu uma reforma mi-
educação superior brasileira,18 em 6 de dezembro de nisterial. Atualmente, Tarso Genro retornou ao Poder Executivo,
2004 o Governo Lula da Silva, através do então mi- passando a ocupar a pasta de ministro de Relações Institucionais.
nistro da Educação, Tarso Genro, divulgou o seu “An- 22
O anteprojeto e a exposição de motivos encontram-se dis-
teprojeto de Lei – versão preliminar” (Brasil, 2004), poníveis em <http://portal.mec.gov.br/arquivos/pdf/
com o propósito declarado de “recolher críticas, su- anteprojeto.pdf>, Acesso em: 4 nov. 2005. Para efeitos de referên-
gestões e opiniões visando à redação do anteprojeto cia, neste texto indicamos a exposição de motivos como Brasil
definitivo”.19 Na verdade, desde 2003, por meio da (2005a), enquanto o texto propriamente dito do anteprojeto é re-
instituição de um Grupo de Trabalho Interministerial, gistrado como Brasil (2005b). Em 8 de julho de 2006, finalmente,
coordenado pela Casa Civil, o Executivo vinha pro- o projeto de lei de reforma da educação superior foi encaminhado
ao Congresso Nacional, recebendo o n. 7.200. Após três meses da
divulgação do projeto de lei, precisamente em 2 de novembro de
18
Lei n. 10.861, de 14 abr. 2004, que cria o Sistema de Ava-
2005, O Globo noticiou em primeira página: “Racha põe em risco
liação da Educação Superior (SINAES); lei n. 10.973, de 2 dez.
reforma universitária”. A matéria jornalística informa que a “área
2004, sobre inovação tecnológica; lei n. 11.079, de 30 dez. 2004,
econômica é contra dar autonomia financeira às universidades fe-
que institui as parcerias público-privadas; lei n. 11.096, de 13 jan.
derais”, gerando com isso um impasse que ameaçaria a reforma
2005, que institui o PROUNI, já anteriormente em vigor por me-
(p. 1 e p. 12). Não por acaso, na véspera da notícia sobre a diver-
dida provisória.
gência interna no governo sobre a reforma da educação superior,
19
Para Leher (2004), o processo supostamente iniciado com
o mesmo jornal noticiou, em letras garrafais, na primeira página:
a apresentação do anteprojeto é, na verdade, uma falsificação do
“Governo Lula cumpre em 9 meses a meta fiscal do ano”. Segundo
consenso, posto que procura elidir uma série de medidas já em
a reportagem, o superávit primário alcançou 6,1% do Produto Inter-
curso. Aliás, os empresários do ensino são da mesma opinião (cf.
no Bruto (PIB), superando a taxa acordada com o Fundo Monetário
Fórum, 2005).
Internacional (FMI) (cf. O Globo, 1 nov. 2005, p. 1 e 23).

130 Revista Brasileira de Educação v. 12 n. 34 jan./abr. 2007


Frações burguesas em disputa e a educação superior no Governo Lula

que qualquer política pública, mesmo que de peque- vatista pulsa soberana”. Em que pesem as metamor-
na monta e que atenda aos interesses de frações pro- foses ocorridas na proposta governamental entre 4 de
dutivas do capital, precisa estar em consonância, ou dezembro de 2004 e 29 de julho de 2005,25 pode-se
melhor, submissa à política macroeconômica, de ma- concluir que a análise de Leher continua, em linhas
triz monetarista, particularmente o chamado controle gerais, correta.
do déficit público, política esta que favorece direta-
mente a fração financeira do capital.23 Educação superior como
Embora o presente texto não tenha o objetivo de bem público: a solução do Executivo
analisar o projeto de reforma da educação superior
em si, suas mutações internas ao longo de três ver- Como o Poder Executivo gerencia os interesses
sões, tampouco o conjunto de medidas legais e políti- do capital em geral, mesmo que para tal precise, even-
cas públicas que dão o contorno no qual emerge a tualmente, confrontar algum interesse particular? Para
proposta governamental de reforma da educação su- responder, mesmo que preliminarmente, tal questão,
perior, se faz necessário apresentar um panorama no deve-se analisar tanto a Exposição de motivos (Bra-
qual se insere o atual anteprojeto. sil, 2005a)26 quanto o Anteprojeto de lei da educação
Para Roberto Leher (2004),24 são cinco as prin- superior (Brasil, 2005b) propriamente dito, e
cipais linhas de força das iniciativas governamentais confrontá-los com as propostas exaradas da CNI e do
que informavam a versão original do anteprojeto de Fórum Nacional da Livre-Iniciativa na Educação.
reforma da educação superior. A primeira, a terceira e Em primeiro lugar, tanto os empresários indus-
a quarta linhas de força indicam a consolidação da triais e do ensino como o Poder Executivo partem do
educação superior como uma mercadoria a ser pressuposto de que a educação superior brasileira deve
fornecida pelas instituições privadas em resposta às contribuir para a integração do país à economia (ca-
demandas do mundo dos negócios. Posto que a edu- pitalista) mundial, ou, como formulou o IEL (1999b,
cação superior é encarada pelo governo como merca- p. 14), a idéia-força do cenário a ser perseguido é
doria, a segunda linha procura naturalizar a idéia de “Educação e conhecimento para a competitividade”.
que poucos jovens das camadas populares terão aces- Nesse sentido, tanto a burguesia industrial quan-
so aos cursos superiores de qualidade. Finalmente, a to o Governo Lula da Silva operam uma associação
quinta linha de força caracteriza a hipertrofia do con- linear e estreita entre educação e desenvolvimento
trole governamental (produtividade, eficiência e ideo- econômico. Essa aproximação explicita-se na Expo-
logia reguladas por meio da avaliação) e do mercado sição de motivos em diversos momentos, dos quais
(financiamento e utilitarismo) sobre a universidade pode ser destacada a quarta diretriz da reforma, de-
pública, inviabilizando a autonomia e, principalmen- nominada “Papel estratégico das universidades”:
te, a liberdade acadêmica.
Em síntese, para Leher (2004), com quem con-
cordamos, “o exame do anteprojeto permite eviden- 25
A título de ilustração, cabe informar que a primeira versão
ciar que, por detrás do verniz público, a torrente pri- contava com 100 artigos, enquanto a terceira versão se desdobra
em 69 artigos. Dentre os temas mais polêmicos que sofreram um
razoável enxugamento, na atual versão, destacam-se o Plano de
23
Apesar do enorme superávit primário, a manchete de O Desenvolvimento Institucional (PDI) e o Conselho Social de De-
Globo de 16 de março de 2006 é: “R$ 1.000.000.000.000,00”. A senvolvimento (CSD), que, em boa medida, entrariam em confli-
cifra de um trilhão de reais (476 bilhões de dólares) refere-se ao to com os interesses da livre-iniciativa na educação.
26
montante da dívida pública interna alcançada no dia anterior. Aliás, cabe assinalar que a exposição de motivos está dis-
24
E, de forma bastante próxima, Silva Jr. e Sguissardi (2005). tribuída por 147 parágrafos, ao longo de 29 páginas.

Revista Brasileira de Educação v. 12 n. 34 jan./abr. 2007 131


José Rodrigues

É um desafio gigantesco compatibilizar o demons- medida reafirma a teoria do capital humano, também
trado potencial de crescimento científico, ancorado na ex- se explicita, no anteprojeto, em diversos artigos. Po-
celente e bem distribuída pós-graduação no país, com a dem ser citados, apenas como exemplos, o 5º (parti-
geração de produtos capazes de competir nos mercados cularmente, incisos V e IX), que trata do “cumpri-
externo e interno e de incorporar média e alta tecnologia mento do compromisso social” por parte das IES, e,
nos processos produtivos. Assim agindo, pode a Nação tor- de forma extremamente clara, o artigo 12º, que trata
nar-se mais competitiva, gerar mais empregos e melhorar do Plano Nacional de Pós-Graduação, a ser traçado
a qualidade de vida de toda a população, fechando o ciclo pela CAPES. Senão, vejamos.
virtuoso do crescimento sustentável. (Brasil, 2005a, § 133, Artigo 12. A Coordenação de Aperfeiçoamento
p. 25, grifos meus) de Pessoal de Nível Superior (CAPES) elaborará, a
cada cinco anos, Plano Nacional de Pós-Graduação
Embora os interesses dos empresários do ensino sujeito a homologação pelo Ministro de Estado da
convirjam perfeitamente para a visão anterior, o docu- Educação, contemplando necessariamente: [...]
mento do Fórum Nacional da Livre-Iniciativa na Edu-
cação não discorre muito sobre a questão. Tal omissão II. a previsão para expansão do ensino de pós-gra-
acaba por revelar o papel mais defensivo, e mesmo duação stricto sensu, inclusive com aumento de vagas em
subordinado, do capital investido em ensino frente ao cursos de mestrado e doutorado, acadêmicos e profissio-
capital industrial. Ou seja, os empresários industriais, nais, compatível com as necessidades econômicas, sociais,
enquanto compradores de mercadoria-educação, mos- culturais, científicas e tecnológicas do país, em especial
tram-se estrategicamente mais preocupados com a qua- com as exigências desta Lei, para o gradativo incremento
lidade dos “insumos” que adquirem, chegando mes- de mestres e doutores no corpo docente das instituições de
mo a desconfiar da qualidade dos produtos ofertados ensino superior; [...]
pela livre-iniciativa privada na educação.27 IV. a consideração das áreas do conhecimento a se-
De outro lado, os seus fornecedores (isto é, os rem incentivadas, especialmente aquelas que atendam às
empresários do ensino) estão mais preocupados em demandas de política industrial e comércio exterior, pro-
preservar a liberdade de vender a sua mercadoria àque- movendo o aumento da competitividade nacional e o esta-
les que estiverem dispostos e em condições de comprá- belecimento de bases sólidas em ciência e tecnologia, com
la, particularmente os trabalhadores. Reconhecem os vistas ao processo de geração e inovação tecnológica; [...].
empresários do ensino que a conversão da educação- (Brasil, 2005b, p. 8, grifos meus)
mercadoria em mercadoria-educação é mediada ne-
cessariamente pelos seus clientes diretos – estudan- Para lograr constituir uma universidade inserida
tes-trabalhadores, em sua grande maioria. Nesse na dinâmica competitiva do padrão de acumulação
sentido, os mercadores do ensino superior acabam por flexível,29 o MEC e a CNI concordam que se faz ne-
ser mais coerentes com o pensamento neoliberal em cessário um “novo marco regulatório”, a partir do qual
educação, o qual proclama ser o mercado o ente re- o sistema de educação superior – notadamente o pú-
gulador da qualidade de ensino.28 blico – precisaria ser expandido.
A concepção compartilhada entre a burguesia Obviamente, nesse ponto o fórum diverge e lem-
industrial e o Governo Lula da Silva, que em grande bra que, se não fosse a contenção da expansão da rede
pública federal, o déficit público teria sido acrescido

27
Cf. CNI (2004, p. 11), já citada neste texto.
29
28
Sobre o tema, ver Friedman (1977), particularmente a se- Sobre o tema, ver Rodrigues (2005b); Reis e Rodrigues

ção “O papel do governo na educação”. (2006).

132 Revista Brasileira de Educação v. 12 n. 34 jan./abr. 2007


Frações burguesas em disputa e a educação superior no Governo Lula

de um trilhão de reais. Além disso, cabe lembrar que Enfim, de fato, a flexibilidade é uma caracterís-
o fórum defende a separação das atribuições regula- tica central do atual padrão de acumulação, tal qual
dora e mantenedora, até agora reunidas no Ministério teorizado por Harvey (1992). Nesse sentido, a consti-
da Educação. tuição de uma universidade pública competitiva esta-
No que diz respeito ao “compromisso social” das ria bloqueada pela má gerência administrativa, ou, em
IES privadas, os empresários do ensino afirmam já outras palavras, o problema seria que o “Estado ad-
estarem implementando-o, posto que seriam respon- ministra mal”, aliás, velho bordão neoliberal repetido
sáveis pela “democratização do acesso à educação pedagogicamente por Friedrich von Hayek e Milton
superior e de inclusão social”, e que “sem a iniciativa Friedman e também pelos presidentes Fernando Collor
privada não haveria o PROUNI”, “que tanto o gover- de Mello, Fernando Henrique Cardoso e Luiz Inácio
no enaltece” (Cf. Fórum, 2005, p. 14-15). Lula da Silva. Para superar tal obstáculo, CNI e MEC
Embora todos esses atores políticos reconheçam propõem a “autonomia substantiva” para as universi-
a necessidade de expansão da educação superior, to- dades públicas, sob a tutela a do Estado e da própria
dos também estão de acordo que a ampliação de ofer- burguesia, diretamente organizada sob um Conselho
ta de educação-mercadoria se deve dar sobre um mo- Social de Desenvolvimento (cf. artigos 19 e 21, além
delo universitário fragmentado em forma e em dos artigos 32 e 42).
conteúdo, o que foi plenamente atendido pelo ante- Ora, subsumir a universidade pública à lógica do
projeto de reforma da educação superior proposto pelo mercado e, nesse sentido, igualando-a às instituições
Governo Lula da Silva, visando tornar o Brasil uma privadas, sem dúvida, concorre para atender aos inte-
“Nação mais competitiva” (Brasil, 2005b, artigos 6º, resses do capital mercantil educacional, posto que
7º, 8º, 10, 14 e 15). retiraria das universidades públicas uma “vantagem
Com efeito, pelo anteprojeto, deverá haver uma comparativa”, considerada inaceitável pelos empre-
expansão da rede pública pela criação de universida- sários do ensino: a gratuidade e a liberdade acadêmi-
des, centros universitários e faculdades, inclusive com ca sustentadas pelas verbas públicas. Senão, vejamos.
a criação de instituições especializadas por “campo de Com as devidas medidas saneadoras, a universi-
saber”, além de instituições consorciadas (idem, art. 28). dade (fragmentada e “substantivamente” autônoma)
Curiosamente, tal proposta, inscrita no texto frio estaria apta a vender seus serviços no mercado, de for-
do anteprojeto de lei, acaba por contradizer a avalia- ma que suprisse os recursos orçamentários globais con-
ção impressa na exposição de motivos, a qual critica gelados (Brasil, 2005a, artigos 49, 50 e 51).30 Assim,
abertamente a fragmentação do sistema de educação através do contrato de gestão (codinome: PDI, art. 25,
superior, a gigantesca ampliação das IES privadas, articulado à orçamentação geral) estabelecido entre a
além da própria “banalização” do conceito de univer- universidade e o governo, a instituição (então pública)
sidade (Brasil, 2005a). Na verdade, essa incoerência alcançará aquele status jurídico que Bresser Pereira
acaba explicitando, assim, a distinção entre objetivos denominou de organização social (Brasil, 1995).31
proclamados e objetivos reais do anteprojeto.
Os empresários do ensino, talvez motivados por 30
No parágrafo 104 da Exposição de Motivos, o então mi-
interesses imediatos distintos, também defendem vi- nistro Tarso Genro afirma categoricamente que a proposta de lei
gorosamente a “pluralidade de instituições”, posto “não cria novas despesas, já que traz apenas uma regularização de
que, para o fórum (Fórum, 2005), o modelo histórico aspectos contábeis” (cf. Brasil, 2005a, p.20).
de universidade seria fruto de uma “visão idealista do 31
Disponível em: <http://www.planejamento.gov.br/gestao/
século passado”. Mais uma vez, nesse sentido, os conteudo/publicacoes/plano_diretor/portugues.htm>. Acesso em:
mercadores de ensino são mais coerentes com a ideo- 14 abr. 2005. Sintomaticamente, o plano ainda se encontra dispo-
logia neoliberal para a educação. nível no site do Ministério do Planejamento do Governo Lula.

Revista Brasileira de Educação v. 12 n. 34 jan./abr. 2007 133


José Rodrigues

Assim, simultaneamente livre dos recursos or- forma, entraria em conflito com os interesses dos ven-
çamentários necessários para sua manutenção e seu dedores de educação-mercadoria.
desenvolvimento, e livre para vender ensino-merca- Na verdade, ao longo de 12 parágrafos, o docu-
doria (diplomas) e conhecimento-mercadoria (paten- mento deixa bastante claro que encara a educação
tes), a universidade (pública?) estará pronta para dis- como uma mercadoria de tipo especial, uma merca-
putar no mercado, inclusive concorrendo com as doria que precisa ter sua produção e distribuição con-
universidades privadas, os recursos necessários para trolada pelo Estado:
permanecer existindo.
Nesse quadro institucional, também não faria Cabe ao Estado proteger a sociedade da ação perni-
mais sentido a manutenção “rígida” dos contratos de ciosa de instituições de educação superior que não formam
trabalho sob o regime jurídico único, tampouco a per- bons egressos. Os serviços prestados por graduados de ní-
manência real da dedicação exclusiva dos professo- vel superior, quando de má qualidade, causam riscos à so-
res, que doravante estarão também disponíveis, além ciedade e prejuízos aos cidadãos. Então, o sistema de ava-
de juridicamente “protegidos”, para prestarem servi- liação da qualidade e os efeitos regulatórios dela decorren-
ços (inclusive pesquisa e desenvolvimento) diretamen- tes a serem exercidos pelo Estado é uma ação preventiva
te nas instalações das indústrias, ou ainda nos labora- em benefício da coletividade. (idem, p. 12)
tórios das universidades.
Mais uma vez, essas medidas acabarão por eli- Mais uma vez, há uma convergência bastante es-
minar as “vantagens comparativas”, no jargão da pecífica entre as propostas da CNI e do Governo Lula,
vulgata economicista, das universidades públicas ante na medida em que ambos desconfiam da qualidade da
as privadas, colocando-as em pé de igualdade na dis- educação e do conhecimento distribuídos pela burgue-
puta por mercados. sia de serviços que atua no mercado educacional.
Toda a argumentação até aqui desenvolvida bus-
ca demonstrar como a educação e o conhecimento As associações entre o poder público, no plano local,
são encarados, e, mais do que isso, produzidos pela e a iniciativa privada, sob supervisão do Estado, poderão
perspectiva da produção mercantil. Para os empresá- orientar em quais áreas de conhecimento prioritárias esse
rios industriais, o conhecimento e a educação produ- investimento poderia ocorrer de forma a expandir e a aten-
zidos nas universidades são vistos como mercadoria- der melhor às demandas dos estudantes por educação supe-
educação, isto é, como insumos necessários à rior. (idem, ibidem, grifo meu)
reprodução ampliada do capital.
Nesse sentido, a educação e o conhecimento con- Burguesia industrial e governo entendem a edu-
verter-se-iam em uma mercadoria a ser incorporada cação superior e o conhecimento como elementos fun-
ao processo produtivo sob controle do capital indus- damentais para o processo produtivo e, portanto, para
trial. Logo, nessa perspectiva, a educação superior transformação do país numa economia competitiva.
perderia seu status de direito social e subjetivo, nos Em última instância, tal compreensão concorre dire-
termos da doutrina liberal, transformando-se em um tamente para os interesses da burguesia industrial mais
bem comercializável. preocupada na incorporação do conhecimento como
Contudo, a exposição de motivos parece contra- insumo produtivo, isto é, mercadoria-educação, do que
dizer peremptoriamente os interesses imediatos da como mercadoria final, isto é, educação-mercadoria,
burguesia industrial, na medida em que propõe tal qual a entendem os empresários do ensino.
“refundar a missão pública do sistema de educação A solução incompleta, esboçada pelo Executivo
superior”, afirmando assim a “educação como direito para essa contradição, é o estabelecimento da educa-
e bem público” (Brasil, 2005a, p. 10), o que, de certa ção superior como um “bem público”, isto é, uma

134 Revista Brasileira de Educação v. 12 n. 34 jan./abr. 2007


Frações burguesas em disputa e a educação superior no Governo Lula

mercadoria especial, cuja produção, distribuição e BRASIL. Presidência da República. Plano diretor da reforma do
venda deva ser controlada, tal qual medicamentos Estado. Brasília, 1995.
psicotrópicos. Ora, nesse sentido, a proposta gover- . Poder Executivo, Grupo de Trabalho Interministe-
namental vai de encontro à liberdade mercantil rial. Bases para o enfrentamento da crise emergencial das univer-
propugnada pela burguesia de serviços educacionais, sidades federais e roteiro para a reforma universitária brasileira.
mesmo que esta tenha sido levada a propor a criação Brasília, 2003 (mimeo.).
de uma agência reguladora independente. . Ministério da Educação. Anteprojeto de lei: versão
Em síntese, pode-se afirmar, por um lado, que preliminar, 6 de dezembro de 2004. Disponível em: <http://
há uma convergência específica entre o capital indus- www.mec.gov.br/reforma/Documentos/DOCUMENTOS/
trial e o governo em submeter a educação superior 2004.12.6.16.20.53.pdf>. Acesso em: 14 abr. 2005.
brasileira, em particular as universidade públicas, à . Ministério da Educação. Exposição de motivos do
lógica de produção do valor, particularmente, atre- anteprojeto de lei da educação superior. Brasília: MEC, 2005a.
lando a produção do conhecimento às demandas de . Ministério da Educação. Anteprojeto de lei da refor-
uma economia competitiva.32 Por outro lado, também ma da educação superior. Brasília: MEC, 2005b.
existe uma convergência específica entre os interes- CNI – Confederação Nacional da Indústria. Competitividade in-
ses da nova burguesia de serviços educacionais e os dustrial: uma visão estratégica para o Brasil. Rio de Janeiro: CNI,
do governo, posto que a submissão da universidade 1988.
pública à racionalidade burguesa e às práticas mer- . CNI: Indústria & Produtividade. Brasília: CNI, n.
cantis acabaria por tornar mais “equânime” a concor- 295, 1996.
rência entre as instituições privadas e públicas. . Contribuição da indústria para a reforma da edu-
Enfim, há uma convergência geral entre os inte- cação superior. Brasília: CNI/SESI/SENAI/IEL, 2004.
resses dos empresários do ensino e dos empresários CUNHA, Luiz Antonio. Educação e desenvolvimento social no
industriais, que se materializam, mesmo que de for- Brasil. Rio de Janeiro: Francisco Alves, 1980.
ma às vezes conflituosa, nas ações do Poder Executi- . O ensino superior no octênio FHC. Educação e So-
vo, posto que ambas as formas do capital (mercantil ciedade, Campinas: CEDES, v. 24, n. 82, p. 37-61, abr. 2003.
educacional e industrial) têm na transformação da DINIZ, Eli. Crise, reforma do Estado e governabilidade: Brasil,
educação – isto é, uma relação social estabelecida en- 1985-95. Rio de Janeiro: EdFGV, 1997.
tre homens – em mercadoria (mesmo que especial) – DINIZ, Eli; BOSCHI, Renato Raul. Empresários, interesses e
ou seja, uma forma fantasmagórica de relação entre mercado: dilemas do desenvolvimento no Brasil. Belo Horizonte:
coisas – a mediação para seu interesse mais geral: a EdUFMG; Rio de Janeiro: IUPERJ, 2004.
valorização do valor pela exploração do trabalho vivo. FÓRUM Nacional da Livre-Iniciativa na Educação. Considera-
ções e recomendações sobre a versão preliminar do anteprojeto
Referências bibliográficas de lei da reforma da educação superior. Brasília, 2005.
FRIEDMAN, Milton. Capitalismo e liberdade. S.l.: Artenova,
BOITO JR., Armando. Política neoliberal e sindicalismo no Bra- 1977.
sil. São Paulo: Xamã, 1999. FRIGOTTO, Gaudêncio. A produtividade da escola improdutiva:
. A burguesia no Governo Lula. Crítica Marxista, Rio um (re)exame das relações entre educação e estrutura econômico-
de Janeiro, Revan, n. 21, p. 52-76, nov. 2005. social capitalista. 3. ed. São Paulo: Cortez; Campinas: Autores
Associados, 1989.
HARVEY, David. Condição pós-moderna: uma pesquisa sobre as
32
A íntima articulação entre a reforma da educação superior origens da mudança cultural. 5. ed. São Paulo: Loyola, 1992.
e a Lei de Inovação é explicitada logo no § 7 da Exposição de IEL – Instituto Euvaldo Lodi. O Instituto Euvaldo Lodi. Rio de
motivos (Brasil, 2005a, p. 2). Janeiro: IEL, 1984.

Revista Brasileira de Educação v. 12 n. 34 jan./abr. 2007 135


José Rodrigues

. Relatório anual. Rio de Janeiro: IEL, 1976. Trabalho, Educação e Saúde, Rio de Janeiro, v. 3, n. 3, p. 259-
. Relatório anual. Rio de Janeiro: IEL, 1990. 282, 2005a.
. Instituto Euvaldo Lodi: 30 anos de parceria univer- . A nova educação superior brasileira no padrão de
sidade-indústria, 1969-1999. Brasília: IEL, 1999a. acumulação flexível. In: QUARTIERO, Elisa Maria;
. Plano estratégico 1999-2010: versão executiva. BIANCHETTI, Lucidio (Orgs.). Educação corporativa: mundo
Brasília, IEL, 1999b. do trabalho e do conhecimento: aproximações. São Paulo: Cortez,
LEHER, Roberto. Considerações sobre o projeto de lei da educa- 2005b. p. 246-273.
ção superior: versão de 6 de dezembro. Rio de Janeiro, 2004 SILVA JR., João dos Reis; SGUISSARDI, Valdemar. A nova lei
(mimeo.). da educação superior. Revista Brasileira de Educação, n. 29, p. 5-
NEVES, Lúcia. Educação e política no Brasil de hoje. São Paulo: 27, maio/./ago. 2005.
Cortez, 1994. WEINSTEIN, Bárbara. (Re)formação da classe trabalhadora no
. (Org.). Educação e política no limiar do século XXI. Brasil: 1920-1964. São Paulo: Cortez, 2000.
Campinas: Autores Associados, 2000.
. (Org.). O empresariamento da educação: novos con-
JOSÉ RODRIGUES, doutor em filosofia e história da edu-
tornos do ensino superior no Brasil dos anos 1990. São Paulo: cação na Universidade Estadual de Campinas (UNICAMP), é pro-
Xamã, 2002.
fessor da Faculdade de Educação da Universidade Federal
OLIVEIRA, Marcos Marques de. A política governamental de ciên- Fluminense (UFF) e pesquisador do Conselho Nacional de De-
cia e tecnologia: da C&T à CT&I. In: NEVES, L. (Org.). O em-
senvolvimento Científico e Tecnológico (CNPq). Atualmente está
presariamento da educação: novos contornos do ensino superior em estágio de pós-doutoramento no Departamento de Ciência
no Brasil dos anos 1990. São Paulo: Xamã, 2002. p. 65-84.
Política da UNICAMP, no qual desenvolve a pesquisa “Frações
REIS, Ronaldo Rosas; RODRIGUES, José. O declínio da univer- burguesas em disputa no Governo Lula da Silva: o cenário da edu-
sidade pública: considerações sobre o atual quadro das relações cação superior”. Publicações mais importantes: O moderno prín-
sociais de produção da educação superior pública brasileira. Ca- cipe industrial: o pensamento pedagógico da Confederação Na-
dernos Cemarx, Campinas: Cemarx-IFCH-UNICAMP, n. 3, v. 1, cional da Indústria (Campinas: Autores Associados, 1998), A edu-
p. 183-194, 2006.. cação politécnica no Brasil (Niterói: EDUFF, 1998); A nova edu-
RODRIGUES, José. Da teoria do capital humano à empregabili- cação superior brasileira no padrão de acumulação flexível (In:
dade: um ensaio sobre as crises do capital e a educação brasileira. QUARTIERO, Elisa Maria; BIANCHETTI, Lucídio (Orgs.). Edu-
Trabalho & Educação, Belo Horizonte: NETE-UFMG, n. 2, p. 215- cação corporativa: mundo do trabalho e do conhecimento: apro-
230, ago./dez. 1997. ximações. São Paulo: Cortez, 2005. p. 246-273). E-mail:
. O moderno príncipe industrial: o pensamento peda- jrodrig@vm.uff.br
gógico da Confederação Nacional da Indústria. Campinas: Auto-
res Associados, 1998.
. Ainda a educação politécnica: o novo decreto da Recebido em setembro de 2006

educação profissional e a permanência da dualidade estrutural. Aprovado em dezembro de 2006

136 Revista Brasileira de Educação v. 12 n. 34 jan./abr. 2007


Resumos/Abstracts/Resumens

Resumos/Abstracts/Resumens

plementando uma reforma da educação education into a commodity.


José Rodrigues superior, cujo projeto de lei foi enviado Nevertheless, the interests of these two
Frações burguesas em disputa e a ao Congresso Nacional em julho de fractions of the bourgeoisie, each with
educação superior no Governo Lula 2006. their specific characteristics, do not
O artigo expõe analiticamente os inte- Palavras-chave: política de educação immediately converge. Thus, they tend
resses conflituosos, no Brasil, entre a superior; frações de classe burguesa; to place their different demands before
burguesia industrial, representada pela Brasil: Governo Lula the State, and in particular before the
Confederação Nacional da Indústria Bourgeois fractions in dispute and Executive power, which has, since the
(CNI), por um lado, e pela nova bur- higher education in the Lula end of 2004, been implementing an
guesia de serviços educacionais, repre- Government educational reform, that has been
sentada pelo Fórum Nacional de Livre- This article seeks to explain transformed into a proposed bill of
Iniciativa na Educação, por outro lado, analytically the present scenario of law, sent to Congress in July of the
no que tange às finalidades e à organi- conflicting interests in Brazil regarding present year.
zação da educação superior. A análise the structure and main objectives of Key words: higher education policy;
indica que as atuais transformações da university education at national level. bourgeois fractions; Brazil: Lula
educação superior brasileira são, em The conflict arises between the indus- Government
grande parte, determinadas pelos inte- trial bourgeoisie represented by the Fracciones burguesas en disputa y la
resses do capital em converter a educa- National Confederation of Industry educación superior en el Gobierno
ção superior em uma mercadoria. Con- (known as CNI) on the one hand and, Lula
tudo, os interesses dessas duas frações on the other, by the new bourgeoisie of El artículo expone analíticamente los
da burguesia, com suas características the area of private educational intereses conflictuosos, en Brasil, entre
específicas, não são imediatamente services, represented by the National la burguesía industrial, representada
convergentes e, nesse sentido, termi- Forum for Free Initiative in Education. por la Confederación Nacional de la
nam por desaguar no cenário do Esta- This analysis shows that the changes Industria (CNI), por un lado, y por la
do, particularmente no Poder Executi- within higher education in Brazil are nueva burguesía de srvicios
vo, no Governo de Luiz Inácio Lula da mainly determined by the interests of educacionales, representada por el
Silva, que, desde fins de 2004, vem im- capital to transform this sector of

180 Revista Brasileira de Educação v. 12 n. 34 jan./abr. 2007


Resumos/Abstracts/Resumens

Foro Nacional de Libre Iniciativa en la


Educación, por otro lado, lo que
respecta a las finalidades y a la
organización de la educación superior.
El análisis indica que las actuales
transformaciones de la educación su-
perior brasileña son, en gran parte,
determinadas por los intereses del ca-
pital en convertir la educación supe-
rior en una mercadería. Sin embargo,
los intereses de estas dos fracciones de
la burguesía, con sus características
específicas, no son inmediatamente
convergentes y, en ese sentido,
terminan por desaguar en el escenario
del Estado, en particular en el Poder
Ejecutivo, en el Gobierno de Luiz
Inácio Lula da Silva, que, desde finales
del 2004, viene implementando una re-
forma de la educación superior, cuyo
proyecto de ley fue enviado al
Congreso Nacional en julio de 2006.
Palabras claves: política de educación
superior; fracciones de clase burgue-
sa; Brasil; Gobierno Lula

Revista Brasileira de Educação v. 12 n. 34 jan./abr. 2007 181

You might also like