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ALEPH #12 ISSN 1807-6211 | Ano IV No 12 | Junho 2009

EDUCAÇÃO E MEMÓRIAS
E MAIS:
Movimentos Imagens-memórias do
Instituintes nas tempo e os ciclos A brincadeira na leitura e a
Escolas escolares leitura na brincadeira
Célia Linhares e Ana Lúcia Leila Nívea e Rejany Dominick p.31
Heckert afirma a potência dos analisa a constribuição para o
espaços públicos de educação pensar-fazer da Escola Histórias e Memórias de
p.5 contemporânea como espaço professoras
instituinte p.37
p.22
Memórias e histórias Uma prática pedagógica
instituinte
políticas da educação p.42
pública brasileira
Rita de Cássia mostra o
conceito de autonomia em
Anísio Teixeira
p.14
POLÍTICA EDITORIAL
ALEPH - Formação dos Profissionais da Educação é uma publicação
eletrônica na internet produzida pelo Aleph - Programa de Pesquisa,
Aprendizagem/Ensino e Extensão em Formação dos Profissionais da
Educação. Esta publicação é parte do projeto de pesquisa Experiências
Instituintes em Escolas Públicas e Formação de Professores: Pontes
com Múltiplas Mãos, financiado pelo CNPq através do Edital Universal
2002, coordenado pela Professora Célia Linhares e realizado no
Programa de Pós-Graduação da Faculdade de Educação da
Universidade Federal Fluminense.

... É preciso investir, entre outras frentes de construção social e


educativa, nos movimentos de autonomia e teorização dos professores,
na busca de práticas criadoras que busquem contribuir para a melhoria
da escola pública, socializando os processos de encaminhamentos com
que as escolas vão afirmando a possibilidade e a existência
(infelizmente, às vezes de forma fugaz) de outras escolas e sistemas
escolares

Célia Linhares

COMISSÃO EDITORIAL

Editora Responsável
Célia Linhares

Editora Executiva
Ruth Ramiro

Conselho Editorial
Léa da Cruz
Estela Sheivar
Rejany Dominick
Juliana Antunes (Bolsista)
Verônica Wernelinger (Bolsista)

Arquiteto e Designer da Informação


Jessé Rodrigues

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POLÍTICA DE AVALIAÇÃO

A Revista do Grupo de Pesquisa Aleph considera política e


pedagogicamente importante a transparência no processo de
seleção dos artigos escolhidos, por entender que trabalhando nesta
perspectiva contribuímos para uma aprendizagem coletiva e
democrática. Neste sentido, decidimos criar em nossa revista uma
"seção" onde apresentamos os pareceres dos artigos aprovados,
proporcionando aos leitores conhecer as razões, em que nos
apoiamos para a publicação dos artigos.
Acreditamos ainda, que este fazer dialógico, além de nos
estimular, incentriva também nossos coloboradores na elaboração de
seus textos. A conversa que se estabalece entre nós, através dos
pareceres, pode contribuir para ampliar debates e pluralizar o
pensamento educacional.

3
EXPERIÊNCIAS
INSTITUINTES

4
ARTIGO
Movimentos Instituintes nas Escolas:
Afirmando a potência dos espaços públicos de
educação.1
Por Célia Linhares e Ana Lúcia Heckert2

Iniciando a conversa sociedade, como mercadorias em desvaloriza reminiscências e,


Nossa atualidade tem desuso, ao mesmo tempo em que sobretudo, desencoraja os
demarcado como desafio a outros projetos de vida e de exercícios de perspectivar a vida,
construção de rumos mais sociedade se afirmam, sabotando-nos o direito de
respeitosos e solidários que instituindo outras formas de sonhar, como uma conjunção de
afirmem a vida em vez de produção, de convivência e de ações existenciais e político-
amesquinhá-la. Nosso tempo, educação, ainda que com pouco pedagógicas.
marcado por moralizações, reconhecimento político das Não há dúvidas de que
segregações, disputas e frestas que vão abrindo. Porém, com o desdobramento desses
preconceitos de toda ordem, nos nesse presente se formam processos que minam nossa
convoca a reinventar as práticas abismos que provocam uma das capacidade de diferir e criar,
políticas e o modo como temos mais terríveis dificuldades também se expande um mundo,
lidado com a nossa existência. políticas, existenciais: a evasão de cada vez mais desenraizado, sem
Quando a vida escorre horizontes de futuro. Se estamos vínculos afetivos com a vida, com
entre os dedos, numa espécie de ameaçados de um aprisionamento a sociedade, com a humanidade,
jogo em que uns valem mais que no presente, pronto a traduzir-se onde os sujeitos são empurrados
outros, merecem viver mais e em inércia ou ativismo reprodutor, para um cortejo de espetáculos e
melhor do que outros, jovens e este confinamento está triunfos, cujo preço é a rendição
crianças expressam em seus relacionado ao modo de produção progressiva aos processos de
cotidianos a expectativa de de bens, materiais ou culturais em reificação do mercado.
construir seu presente com outras prevalência na atualidade: um Se estes embates
tonalidades. capitalismo fascista que se penetram em todos os interstícios
Aprisionados em intensifica. sociais, cabe-nos aqui
verdades manufaturadas e Não basta gritar contra aproximarmos da escola,
requentadas ao sabor dos isso, é urgente captar os buscando fortalecer algumas
interesses da ocasião, os mecanismos sociais que relações que fazem esta
continuísmos vão ensinando que “inocentemente” se instalam e instituição social fagulhar em sua
os interesses pessoais . que permanecem como se fossem os dignidade, por retomar embates e
devem mais naturais e familiares projetos que marcaram
prevalecer, que a busca de possíveis. Nessas condições, a eticamente sua trajetória.
sucesso é que deve reger a vida. vida se divorcia de suas É por isso que não
Contudo, em meio a esta interfaces, revigorando inclusões podemos deixar de considerar as
racionalidade cínica, frestas e diferenciais e cristalizações; margens como realidades
poros denunciam inconformismos, incluindo grandes parcelas da flutuantes, brotando como sopros
indignações, invenções que população no lugar de dejeto e nas supostas centralidades do
almejam fazer da vida uma obra sucata, tornando-nos poder, desenhando bordas como
bela e ética, como nos lembrava irreconhecíveis uns para os sulcos abruptos ou cordilheiras
Foucault (1995). outros, expondo a vida a ser inesperadas. Importa atentar,
Em nosso cotidiano de leiloada num varejo de suas como nestes embates em que
trabalho com as escolas, com as partes. estão em jogo os exercícios ou as
políticas públicas de educação, Por isso mesmo, obstruções de autonomia, caem
vemos profissionais, estudantes iniciamos nossa discussão nos ombros de professores e de
de todas as idades, mães e pais chamando para a importância de estudantes uma culpabilização por
interrogando-se acerca do sentido confluirmos em nossos empenhos supostos fracassos da
da escola e buscando afirmá-la para potencializar a redefinição da escolarização. O que não
como um espaço vivo de trocas, escola como instituição social. podemos deixar de ressaltar é que
de criação, de expressão dos Afinal reconhecemos que esta é uma estratégia para aliviar
diversos modos de vida. Mas no lugar do futuro, o capitalismo e omitir as responsabilidades não
essas esperanças vão sendo fascista vai instalando uma atendidas pelo Estado e pela
asfixiadas, na escola e na volúpia por consumir que própria sociedade.

5
ARTIGO
A cada vez que são aplicação dos modelos instituídos Os movimentos instituintes e a
divulgados dados acerca dos de formação ou aperfeiçoamento formação de professores
baixos níveis de aprendizagem ou docente como de comprovada
das dificuldades impostas pelo eficácia. Modelos que vão As experiências
desemprego, e pela violência afastando professores de um instituintes não se encontram sob
generalizada, há sempre vozes trabalho coletivo de buscas e nenhum tipo de redoma que as
apontando a culpa dos estudantes construções, sobrecarregando a pudessem separar do que já está
e as carências de formação de escola com tarefas sem sentido instituído. Pelo contrário. Umas e
professores, ao mesmo tempo em em nome de gestões eficazes e outras estão sempre juntas e em
que insistem em soluções radicais modernas. Os resultados desses litígios, buscando expandir-se, ou
que tomam a competição como processos têm se mostrado não seja, penetrar no espaço e tempo
soluções, não só infalíveis, mas só insuficientes, mas desastrosos histórico. Se as experiências
únicas, sem deixar de mencionar e devastadores de tempo, de instituintes procuram desdobrar-se
a criminalização dos movimentos dinheiro, e, sobretudo, de em movimentos criadores e
sociais e a jurisdicionalização da esperanças. Terminado o período estremecer o que foi organizado
vida. Isso para não falar nas das mal chamadas pela história, o instituído também
propostas do agravamento das "capacitações", da implantação de procura incorporar o que ainda
punições penais, com a ʻnovosʼ (mas muito velhos) está se processando, buscando
diminuição das idades dos jovens modelos de gestão, os institucionalizar, normatizar o
para efeito de sanções legais. professores voltam a se encontrar instituinte.
O que fica emudecido é não só com os mesmos desafios Do nosso ponto de vista,
que tanto as desigualdades sociais, educacionais e escolares, as experiências instituintes são
sociais, como as padronizações e mas com a denegação de ações políticas, produzidas
coerções de processos culturais e experiências instituintes, historicamente, que se endereçam
educacionais, resultam de sufocadas por conta de “soluções” para uma outra educação e uma
complexas inter-relações do pontuais e descontextualizadas de outra cultura, marcadas pela
sistema político-econômico sua vida e de sua realidade construção permanente de um
internacional com parte dos política, econômica e cultural. No respeito à vida e uma dignificação
setores dirigentes e lugar de produzir novas permanente do humano em sua
intelectualizados de nosso país, perguntas, inaugurar a elaboração pluralidade ética, numa afirmação
resultando em uma influência de outros problemas, incentiva-se intransigente da igualdade
decisiva e funesta nas nossas a apresentação de soluções humana, em suas dimensões
escolas. utilitárias para questões educacionais e escolares,
Desse modo, não podemos deixar requentadas. Tudo funcionando políticas, econômicas, sociais e
de atentar para essas soluções como se não houvesse enigmas culturais.
“comprovadas”, verdadeiros civilizatórios que nos atravessam, As práticas
empreendimentos sorrateiros, cobrando de cada um de nós institucionalizadas, aliançadas
onde evidências brutais são humildade, persistência e audácia com percursos que vêm de um
“amaciadas,” com diferentes para construirmos juntos signos passado vencedor, participam de
ordens de sutilezas. Desfocando a de uma inteligência coletiva e um “cortejo triunfalista” e creditam
problemática dos direitos amorosa, que não desconsidere a si mesmas o mérito de tantas
educacionais e dos deveres nem as seduções e os tormentos vitórias. Sustentam conhecer o
educacionais do Estado e dos desta encruzilhada política nem, que pode ter êxito e tributam aos
poderes públicos, os problemas tão pouco, as fissuras que se movimentos instituintes ameaças
escolares passam a ser reabrem com o sopro de projetos de colocar a perder uma
analisados e proclamados como e utopias dos que nos civilização que até agora deu
se fossem conseqüências de antecederam, nesta procura de certo. Deu certo?
relações de causas e efeitos. Este ampliar a vida. Como diz Mia Por sua vez, as
tipo de prática e concepção Couto, escritor moçambicano, é experiências instituintes estão
procura apresentar a instituição necessário não abrir mão do sempre em “devir”, trafegando em
escolar, de forma isolada de toda direito fundamental que é o direito um terreno movediço, sem
uma malha que lhe constitui, qual à indignação. Ou seja, de certezas e comprovações da
seja a das interdependências interrogarmos o nosso presente e história, mas infiltrando-se nas
sociais e históricas. o que estamos fazendo de nós tramas instituídas, para aproveitar
O que vimos percebendo é que os mesmos. frestas e, assim, afirmar a
investimentos em formação de outridade. Afinal, não podemos
professores tem significado a esquecer que, a despeito de

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ARTIGO
profetas agourentos, a escola trabalho e gestão que se efetua matrícula no ensino fundamental,
pode ser outra, como outra pode nas escolas, buscamos nos anos 90, tem percorrido uma
ser a sociedade, e as próprias compreender os movimentos trajetória em que, de “locus” de
políticas e racionalidades que nos instituintes que se engendram nas aprendizagem e ensino escolar,
organizam. escolas públicas. Neste sentido, desliza para um tipo de organismo
Parece difícil falar de nos importa destacar que os assistencial.
experiências instituintes na avanços teóricos/tecnológicos/ Neste processo, tem
sociedade e na escola, quando o metodológicos não têm força para lidado cotidianamente com a
que tende a dominar a cultura redimensionar a escola, caso não ameaça de ser considerada não
hegemônica são traços de uma estejam conectados a outros são um espaço empobrecido,
fragmentação consumista que princípios ético-estáticos que tanto de cultura como de
parece não atentar para as estremeçam a racionalidade conhecimento e, em alguns casos,
possibilidades emergentes que hegemônica com suas exigências como um lugar onde a população
perpassam a vida e o cotidiano de participação e solidariedade. infanto-juvenil marcada para
escolar. A reinvenção da escola sobrar “precisa” ser confinada.
Em nossas redes de requer aliança com as lutas e Importa sublinhar que a crise que
trabalho, tais como o Aleph3 resistências políticas que vivemos não é só econômico-
buscamos criar um espaço- alimentam as memórias e os financeira, mas representa uma
dispositivo de materialização de projetos escolares e de formação produção de onde não escapa
pesquisas-intervenções, de professores, e são por estas nenhuma das dimensões
promovendo debates que nos alimentadas, se apoiando nas civilizatórias.
permitam não só avaliar as experiências para recriá-las. Por isso é tão importante
fronteiras dos discursos relativos à Demanda, portanto, afetar-se com atentar para as opções político-
formação dos professores, mas, os movimentos instituintes, que culturais e educacionais da nova
sobretudo, detectar as travas que irrompem no chão das escolas e direita, com suas tradições
nos têm mantido em limites das sociedades, afirmando outros colonialistas e escravocratas, que
reprodutores, apoiando, com processos de aprender e ensinar, vem adquirindo um caráter
mecanismos escolares, os como exercícios de autonomia peculiar no Brasil, ao mesmo
esquemas de desigualdade que que se renovam. tempo em que não podemos
mantém nossa sociedade silenciar a tenacidade dos
fraturada. Por isso, procuramos Processos instituintes: movimentos instituintes ou de
girar os ângulos de análise, como memória e esquecimento resistência. Por estas razões a
uma tentativa de estremecer as escola, como uma instituição
matrizes desta forma de A história da escola no social que é, vem sendo obrigada
racionalidade rigidamente Brasil vem deixando ao largo, no a repensar-se e a refazer-se, para
hierarquizadora que esquecimento, experiências que que os saberes e os trabalhos
nos constitui. têm ousado revirar a escola e escolares façam sentido para
Propomos retomar o afirmá-la como direito de todos e professores e estudantes, como
legado de tantos que antes de nós de qualquer um. Por considerar instrumentos para uma existência,
lutaram por formas mais que o registro de tais experiências uma escola e uma sociedade mais
pluralizadoras, de educação e é fundamental para fazer revigorar emancipável e feliz.
aprendizagem, como espaços por uma memória das lutas pelo De tudo isto decorre um
onde pudessem transitar mais direito à escola é que temos tipo de filiação teórico-política que
vida, mais liberdade e mais investido no mapeamento e permeia nosso trabalho. Nosso
saberes. Entendemos que só há análise de experiências propósito não é o de fazer
sentido em investir em formação educacionais tecidas no chão das pesquisas que avaliam e
de professores, se esse processo escolas e que, por serem pouco diagnosticam, externamente, o
for capaz de se articular e, de visíveis ou emudecidas, não sucesso ou o fracasso escolar,
alguma maneira, afetar as formas ganham relevo e não são mas acompanhar movimentos que
de organização do trabalho, os compartilhadas por outros vão transformando a cultura da
modos de produção da existência, profissionais implicados com a escola, fortalecendo o saber dos
desestabilizando as práticas que educação escolar, principalmente que trabalham em educação, com
atravessam o cotidiano nas a pública. exercícios de autonomia e
escolas. A escola pública participação coletiva, conjugando-
Com o objetivo de intervir brasileira, no cume de um se com movimentos sociais que
nas políticas de formação de processo de crescimento vão mostrando que um mundo
professores, no processo de provocado pela ampliação da mais solidário também tem

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ARTIGO
possibilidades de estar sendo em vários municípios brasileiros, um dispositivo de estranhamento
gestado também com a comungando dos mesmos do passado e do presente,
participação das escolas. princípios, com matrizes acentuando virtualidades que não
Estamos convencidas de conceituais que se aproximam e se atualizaram.
que a importância de investigar as de estratégias que confluem, elas Entretanto, pouco
propostas e experiências têm uma articulação precária conhecemos destes processos
educacionais, que vimos entre si e, mais ainda, com a instituintes que reinventam a
denominando como instituintes, formação de professores. Além escola cotidianamente. Nosso
reside na percepção de que nos disso, dadas as instabilidades olhar hoje se dirige muito mais
faltam instrumentos para políticas, principalmente em para um fatalismo das crises
apreendermos práticas países como o nosso, um caráter econômicas e políticas que
pedagógicas que podem ampliar transitório e provisório paira sobre entende ainda a escola como uma
nossas análises acerca da essas experiências que se correia de transmissão das tramas
formação e trabalho dos ressentem tanto dos do capitalismo, minimizando a
profissionais da educação. Ao revanchismos como do incipiente potência destas experiências,
negligenciarmos a força destes espaço de debate público, tão tornando-as indizíveis. Ou, em
processos instituintes, facilitamos necessário para a vitalização da outro extremo, conserva a face
o enfraquecimento da escola, democracia brasileira. redentora da escola para enfrentar
deixando revigorar crenças de que A irrupção e a persistência os males da civilização
esta instituição estaria presa nas destas propostas nos indicam um advogando que cabe a esta
malhas das supostas campo complexo no qual a instituição retirar crianças e jovens
obsolescências das instituições educação pública no Brasil está do lugar do ʻrisco socialʼ em que
públicas. Abdicando de soluções mergulhada, e não nos cabe forjar se encontram. Sem enfrentar
totais e dogmáticas, entendemos soluções e análises apressadas e seriamente a discussão do
que estes processos instituintes simplificadoras com relação à que vem significando abordar os
mostram que é possível problemática que lemos na grupos mais pobres da sociedade
afirmamos outras relações cartografia de seus movimentos. como presumíveis cidadãos de
pedagógicas, diferentes daquelas Até porque, os encaminhamentos ʻrisco socialʼ, as condições de vida
que foram acumuladas em países necessários não podem ser destes grupos sociais correm o
como o nosso em que políticas de vislumbrados pela opção risco de serem naturalizados, e
favores e terrores mantiveram a exclusiva dos profissionais da seus modos de vida
instituição escolar em uma terrível escola e dos estudantes, pois desqualificados.
subalternidade política e precisam ser construídas no Em virtude destas e de
epistemológica, conservando esse encontro com outros campos do outras tantas questões é que
modus operandi até os dias atuais saber e outras práticas e atores reafirmamos a existência de uma
(ainda que com novas técnicas e sociais; entrelaçando esferas de herança ética a ser contemplada e
roupagens discursivas). conhecimento e ação. que se reafirma nas históricas
As vias que se insinuam Não serão soluções lutas populares por participação
para outro tipo de políticas mirabolantes e nem técnicas no Brasil; e que ainda é silenciada
públicas em educação são as que modernas, que nos indicarão as e desqualificada no espaço
potencializam a ampliação dos pistas para criar outros processos escolar. Historicamente, a escola
campos de diálogo com as escolares. Ao contrário, é esteve divorciada da vida, não só
demandas sociais – necessário partir da "escola que em suas dimensões de troca
principalmente daqueles grupos somos", com suas memórias de cotidiana e popular, mas também
historicamente desqualificados e resistências, com as narrações do na relação descontextualizada
negligenciados pelas elites saberes e fazeres dos seus que manteve com as produções
dominantes – a fim de que sejam trabalhadores e estudantes, para das ciências, da filosofia, da
gestados encaminhamentos fabricar cotidianamente processos tecnologia e da arte.
coletivos que enfrentem os de significação que lhes facultem Portanto, nosso interesse
entraves ético-políticos do nosso a legitimação de espaços sociais. também se dirige a compreender
tempo. Conforme Benjamin como os movimentos instituintes
Embora estas (1996) indicou, ao ressaltar a apropriam-se desta memória de
experiências instituintes sejam dimensão irrequieta da memória, sonhos, utopias e lutas para
portadoras de uma imensa o fagulhar das reminiscências é ampliar a intensidade dos
riqueza, também estão um importante recurso; não para saberes. Se a escola está
atravessadas por vários desafios. restaurar um passado perdido, divorciada da vida e pouco estuda
Ainda que tenham se efetivado mas sim para fazer da memória os saberes-fazeres nela

8
ARTIGO
produzidos, este processo discussão tais experiências em radiofônica e computadorizada.
também se entranha na formação função das interrogações que Objetivávamos, também,
de professores e pode ser provocaram no momento de sua confrontar essas experimentações
apreendido na separação entre os irrupção. Consideramos, também, educacionais com os
professores que fazem a que é função política da produção procedimentos contemporâneos
educação na escola básica, acadêmica circular e trocar o de poder e de controle que
daqueles que pesquisam, trabalho que se produz no campo disputam os rumos das
publicam e são reconhecidos da pesquisa como forma de ressignificações escolares e,
como produtores de enfrentar as políticas do portanto, dos processos de
conhecimentos educacionais e esquecimento tão em voga na era formação de professores.
escolares. da descartabilidade em que Visávamos identificar as
Superar estas tensões e vivemos. práticas de apropriação de
conflitos não supõe um ato de Uma das etapas da saberes e fazeres, de
vontade individual, mas implica pesquisa que realizamos abarcou aprendizagem e ensino, para
construções coletivas que possam propostas educacionais em entender como se realizavam as
engendrar outra escola, desenvolvimento em três aquisições de conhecimento e
conjugando-a com outra administrações públicas como eram fortalecidas pelo
sociedade mais justa, mais municipais: A Escola Plural em respeito aos seus sujeitos, com
amorosa. Pesquisar estas Belo Horizonte/MG, a Escola suas experiências e saberes.
experiências, portanto, implica Cidadã em Porto Alegre/RS e a Interessava-nos acompanhar
atenção a dimensões visíveis e Escola Cabana em Belém/PA. como se efetuavam os processos
legíveis, mas também àquelas Nossos objetivos de compartilhamento destes
invisíveis ou pouco focalizaram os movimentos saberes, e de como se
compreendidas pelas ferramentas instituintes que são tecidos no relacionavam com o reativamento
conceituais das quais dispomos cotidiano escolar e que de uma memória coletiva.
atualmente. expressam formas insurgentes – A pesquisa buscou
O objetivo que contorna marcadas por exercícios de acompanhar as conexões entre as
as pesquisas que realizamos é resistência que interrogam o práticas já instituídas e as
intercambiar as produções dessas padronizado e regulado, através instituintes, estudando os
experiências, não só contribuindo de processos que expandem o processos de ruptura e de
para um diálogo entre elas, mas campo das ações educacionais. afirmação instituinte, em contraste
também com os cursos de A escolha das três com os mecanismos conformistas
formação de professores. O que experiências escolares obedeceu que os travam e que permeiam
pretendemos não é generalizar o a critérios tais como: a ações de professores, estudantes,
que encontramos como 'novo' nas possibilidade de abarcar de seus pais e de diferentes
práticas escolares, mas ampliar o diferentes aspectos da realidade instâncias sociais.
debate e horizontes de brasileira, em suas diferenças Destacamos que embora
alternativas ético-pedagógicas, regionais, bem como de haja uma produção – sobretudo
visibilizar novos percursos, marcar considerar seus diferentes graus midiática, mas também com
diferenças que potencializem de sedimentação. Como já nos representações na pesquisa
políticas educacionais que referimos, pesquisamos três acadêmica – que atende a
expressem e radicalizem, no sistemas públicos de educação. interesses políticos ligados à
sentido pleno da expressão, a Ao investigá-los, globalização de tipo neoliberal,
democracia. propusemo-nos entender estes dispostos a manterem a escola
processos pedagógicos e pública como um lugar de
Compartilhando apostas e escolares que vão se fracasso, sublinhamos o salto de
experimentações desenvolvendo nestas redes de qualidade empreendido pelos
escolas, para percebermos as sistemas escolares que
Neste artigo decidimos técnicas, os funcionamentos e os estudamos. Contudo, tal análise
por compartilhar ações efetuadas movimentos que compõem estas requer a utilização de outros
no âmbito de políticas práticas de aprendizagem e de indicadores de avaliação
educacionais implementadas em ensino. Importava-nos das políticas educacionais, ou
três municípios brasileiros. Ainda compreender como se efetuavam seja, diferenciados do padrão
que a pesquisa tenha sido suas permeabilizações com as mercadológico da produção
realizada no período de 2002- ciências mais participativas e em massa.
2003, entendemos que é abertas, com a cultura popular, As visitas de estudos às
pertinente colocar em com a comunicação televisiva, três experiências escolares

9
ARTIGO
mostraram tanto deslocamentos valorizam as conexões entre interligar os saberes da escola
da instituição escolar, atribuindo- saberes e fazeres e rompem com com os sabores da vida, como
lhe outros lugares sociais e artificialismos pedagógicos, ferramentas de construção de
circunscrevendo outras responsáveis por ensinamentos solidariedades e de
concepções e práticas educativas, estéreis. encorajamento dos processos de
como também confirmaram o Neste sentido, foi decisivo singularização, que não podem se
quanto esses processos, o número de profissionais descolar dos empenhos para
produzidos com uma alocados em cada instituição. Na superar desigualdades de todas
multiplicidade de fios históricos, Escola Plural, a relação de as ordens.
supõem texturas contraditórias. professores era de 1.5 por turma. Ao mesmo tempo, não
Porém, grifamos alguns J. na Escola Cidadã, o número de podemos negligenciar o
riscos que vão se delineando pari professores variou de acordo com esvaziamento da escola pública,
passu com os intensos avanços o ciclo. Finalmente, na Escola no que se refere a situação de
que os movimentos instituintes Cabana esta proporcionalidade trabalho dos professores e que
produzem nas escolas estudadas, encontrava-se em processo de difere diametralmente daquela
dentre o quais destacamos: a) as definição. A ampliação do número encontrada no nosso universo de
forças instituintes tanto podem ser de professores permitiu não só a pesquisa. Em muitos dos sistemas
integradas às instituições pela via constituição de iniciativas de públicos de educação,
da reificação, perdendo sua reforço e complementação constatamos que um considerável
potência criadora, como podem necessárias, mas também a percentual de professores é
expandir os processos de participação destes profissionais constituído por profissionais
invenção; b) as intervenções em atividades de formação e sua contratados precariamente, sem
instituintes podem provocar atuação em formas diversificadas direito às férias e tendo como
transformações, que vão além das de pesquisa na escola, remuneração – quando muito – o
dimensões cognitivas, ao abalar representando também correspondente a um salário
convicções, afetos, ideologias e a uma forma efetiva de valorizar a mínimo. Quando o cenário não é
própria autopercepção dos ampliação de espaços de este, hoje assistimos ao privilégio
profissionais da escola, dos discussão e compartilhamento de de práticas de gerenciamento da
estudantes e seus familiares e da experiências no espaço escolar. escola voltadas a sua
própria sociedade, gerando As discussões, seminários, cursos produtividade quantitativa e que
conflitos e tensões que não de formação e aperfeiçoamento, e tem esvaziado os possíveis
podem ser negligenciados. as reflexões elaboradas encontros destes profissionais.
Nas escolas visitadas, o conjuntamente somente são Em nome da organização
processo escolar mantinha os possíveis – sem prejuízo das da escola, da otimização de
professores permanentemente em aulas – em grande parte graças a recursos, formas de gestão cada
equipes de trabalho que discutiam este dimensionamento do corpo vez mais hierarquizadas e
e decidiam desde os critérios de docente. verticalizadas tem prevalecido. A
enturmação dos estudantes até as Estudando estas escolas, introdução de modelos gerenciais,
habilidades e conhecimentos com tantos desafios a enfrentar, via ʻpacotes de empresasʼ que
necessários para cada faixa perguntávamos continuamente: tem como objetivo a criação e
etária, organizando-as em ciclos como formar professores em disseminação de sistemas de
em correspondência às fases da nossas universidades, gestão, tem efetuado controles
vida. Buscava-se, com isso, não preparando-os para um exercício sutis do trabalho na escola,
só quebrar a noção de série e de de autonomia que supõe tanto exacerbando um tarefismo
turmas homogeneizadas, mas curiosidade e interesse teórico- planejado e pensado para e sobre
também substituí-la por uma outra conceitual no que vem sendo o professor, nunca com ele. Além
concepção e prática de elaborado cientificamente, quanto da intensa homogeneização do
aprendizagem e ensino, interesse na apreensão da trabalho que estes sistemas de
permitindo que os interesses sabedoria popular? gestão tem implicado, os espaços
comuns fossem aglutinadores das Não adianta formar coletivos de troca vem se
diferenças e garantissem uma professor mantendo a tornando ʻperda de tempoʼ útil.
coesão capaz de sustentar a fragmentação dos saberes, tão Se professores
organicidade dos ciclos. Inerente fortemente entrelaçada às lógicas descartáveis ainda fazem parte de
a esta concepção, está uma capitalistas de acumulação, uma realidade escolar teimosa, é
noção importante, a dos controle e consumo. Precisamos animador reconhecer movimentos
processos de de professores que se formem inéditos na educação que vão
transdisciplinaridade4, que continuamente no exercício de acolhendo forças instituintes, com

10
ARTIGO
suas memórias de sonhos éticos realizada merecem destaque. formação permanente dos
ainda não realizados e que vão Nessas experiências percebemos professores. A atenção voltada
pulsando e nutrindo processos de um empenho pela construção de para a construção de processos
reinvenção da escola. uma participação democrática democráticos na escola se
Nossa pesquisa indicou, e expansiva, traduzida em políticas expressa nas formas da gestão
as investigações que efetuamos vivas para a atração e a escolar, conectada as concepções
em continuidade a este trabalho permanência de grupos de e práticas que tendem a pluralizar
também vêm comprovando, que crianças e jovens, muitos beirando os saberes − relacionando-os à
embora esta reinvenção da escola os riscos e ameaças em sua memória das lutas, aos projetos e
já sinalize seus movimentos de própria sobrevivência. necessidades populares − e no
concretização, ela não prescinde Outro aspecto que incremento do diálogo e do
de movimentos situados tanto no sublinhamos é a aposta debate dos conflitos que irrompem
campo popular e educacional. permanente na participação dos na escola.
Movimentos estes que estejam professores nos rumos da escola
também conjugados aos espaços e para seu aperfeiçoamento Novos desafios, novos dilemas,
da gestão oficial, bem como aos contínuo. outras invenções
avanços científicos e tecnológicos Chamou atenção também
que abram possibilidades de o incentivo aos processos de Por considerar que a
ampliar conceitos e práticas, participação dos familiares e da escola pública é constituída de
forjando novos discursos e ações. própria comunidade nos rumos da relações híbridas e complexas,
Desse modo, é escola. Um exemplo fecundo é a navegamos na contramão de dois
fundamental indagar como estes participação dos pais e movimentos avassaladores da
movimentos instituintes vêm se comunidade nos Conselhos de escola pública, com graves
conjugando nos espaços públicos Escola, em que todos são ressonâncias na formação dos
escolares e que tipos de formação convocados para planejar e educadores e da vida política
de profissionais da educação vem acompanhar a distribuição do nacional: a tendência de apenas
sendo requeridos pelas práticas orçamento para a escola e sua registrar fracassos no âmbito
educativas exercitadas com estes proposta político-pedagógica. escolar, principalmente público,
movimentos. Ressalta-se ainda a busca sem criticar o padrão avaliatório; e
O estudo dessas de aproximação da escola com a a propensão de esvaziar a escola,
experiências nos levou a vida e a vida social. Aludimos não a sociedade e o Estado de suas
confrontar o exercício profissional só as concepções de educação responsabilidades educacionais.
dos docentes com as tendências escolar que estão impregnadas de As experiências que
em vigência nos cursos de respeito à vida, à diversidade pesquisamos, e tantas outras que
formação universitária de cultural, à produção popular, mas vigoram em nosso país, afirmam
professores. As entrevistas também a aproximação das práticas que argúem a falência da
realizadas reforçaram nossa escolas com as famílias dos escola pública como espaço de
hipótese da existência de um estudantes e com a própria aprendizagem e de
abismo entre a realidade da comunidade; revigorando os compartilhamento de
Escola Básica e os Cursos de processos de aprendizagem social experiências. Se há políticas que
Formação de Professores. A ao desenvolverem saberes incrementam o sucateamento da
maioria dos professores, e demais escolares conciliados com os escola pública, também somos
profissionais que atuam nas desafios da vida. interpelados por exercícios de
escolas, pouco sabe sobre Por fim, ressaltamos o resistência que expandem a
movimentos instituintes nas esforço em exercitar essas dimensão pública da escola, uma
escolas e sobre este esforço políticas por meio do vez que esses exercícios dizem
diversificado no Brasil e no fortalecimento do protagonismo respeito à experiência concreta
mundo. Mas, não podemos negar dos docentes na elaboração de dos sujeitos tecida coletivamente.
os movimentos instituintes que programas, no processo de Nosso desafio é ampliar
interligam universidade e escola organização do trabalho, da os vetores de comunicação entre
básica e, entre estas e os atenção compartilhada ao essas experiências de modo a
movimentos político-sociais, ético- cotidiano escolar, lendo suas enriquecer e problematizar os
estéticos e teóricos que enfatizam questões e suas indicações de processos de formação de
a participação, a mais ampla encaminhamento dos problemas, professores, como também para
possível. das decisões pedagógicas fortalecer movimentos instituintes
Alguns movimentos que colegiadas, e principalmente, da em sua potência disruptora e
observamos na pesquisa criação de oportunidades para a inventiva.

11
ARTIGO
Frente aos apelos e
invenções de nossos dias atuais,
que conjuga desde a eleição do
primeiro presidente negro na
história dos EUA, as ações
bélicas de Israel na faixa de
Gaza, a criminalização dos
movimentos sociais por parte
considerável do poder judiciário
brasileiro, o ataque moral (e
medieval) de parte da igreja
católica brasileira aos direitos das
crianças e das mulheres, até
violência que tem feito a vida
desfiar-se em brutal fragilidade,
dentre outros tantos dilemas,
entendemos que o assinalamento Notas
da potência de várias
experiências tecidas no chão da 1Parte das reflexões deste artigo foi compartilhada na Revista Presença
escola é para nós um dispositivo
Pedagógica, volume 11.
de interpelação de nosso 2As autoras são, respectivamente, professoras da UFF/RJ (Programa de
presente.
Sem maiores Pós-Graduação em Educação/UFF) e Prof. Colaboradora do Programa de P.s
Graduação em Psicologia Institucional; e Prof. da UFES/ES (Departamento
experiências inventivas, insiste-se
de Psicologia) e Prof. Permanente do Programa de Pós Graduação em
em velhos comandos e teclas que Psicologia Institucional.
já não mais respondem. Talvez 3O ALEPH mantém uma Revista bimestral que trata de Formação de
seja oportuno perguntarmos:
Professores e Experiências Instituintes em Educação – cujo endereço
perdemos nossa capacidade de eletrônico é www.aleph.org.br e um Centro de Referência em
experimentar o mundo, a vida, ou Experiências Instituintes em Educação e Formação dos Profissionais de
a congelamos em velhos e Educação.
obsoletos paradigmas? Vários 4Transdisciplinaridade tem como proposta interrogar a noção de disciplina,
são os movimentos que têm se indagando acerca da constituição histórica dos saberes. As disciplinas são
insinuado por entre as frestas do provisórias e parciais, porém se formalizaram como campos de saber
cinismo institucionalizado em hierarquizados e isolados que se naturalizaram como verdades
nosso país. Tais movimentos se universalizantes. A transdisciplinaridade não se propõe à justaposição de
expressam no hip hop dos jovens, saberes, ou a um novo olhar sobre objetos já dados/constituídos, mas sim a
em sua deserção de práticas construção de outros objetos. A transversalidade é um convite à criação de
escolares que não acolhem a vida novos problemas, novas perguntas.
que varia, nos modos de vida que
reinventam e nas redes de Referências
economia solidária.
Outras formas de política, BENJAMIN, W. Magia e técnica, arte e política. S.o Paulo: Brasiliense, 1996.
de educação e de convivência FOUCAULT, M. História da Sexualidade. Rio de Janeiro: Graal, 1985. v.1.
vem sendo experimentadas, _____________Sobre a genealogia da ética. Uma revisão do trabalho. In:
usinando outras cidadanias. Mas RABINOW, P.; DREYFUS, H. Michel Foucault. Uma trajetória filosófica. Para
também pode ser exercida nas além
escolas, quando os repetecos da do estruturalismo e da hermenêutica. Rio de Janeiro: Forense Universit.ria,
1995.
educação bancária são
LINHARES, C. Um continente a ser apropriado: a escola que somos. In:
desprezados para que a vida das Linhares, C.
aprendizagens e ensinagens nos (Org) Políticas do Conhecimento: velhos contos, novas contas. Niterói:
unam nos passos incertos e Intertexto,1999.
felizes de quem constrói outras LINHARES, C.; HECKERT, A.L. Movimentos instituintes na educação
formas de conhecer embebidas pública.
num fluxo de vida. Presença Pedagógica. Belo Horizonte, v. 11, n. 66/nov-dez, p. 30-39, 2005.

12
DOSSIÊ TEMÁTICO

13
ARTIGO
Memórias e histórias políticas da
educação pública brasileira:
O conceito de autonomia em Anísio Teixeira
Por Rita de Cássia de Almeida Costa1

Pensar o pensar, como uma produção


histórica, é um dos grandes
desafios das teorias políticas e das
políticas educacionais..
Célia Linhares

Resumo às práticas realizadas. A partir de perspectivas


A partir da reflexão sobre os princípios que orientam teóricas marcadas pelo questionamento à primazia
o Plano de Desenvolvimento da Educação, do atual das determinações econômicas sobre o campo
governo, que declara como objetivo principal da político e pelo questionamento aos modelos que
educação pública, a construção da autonomia, entendem as relações do Estado sobre a prática
promove-se um retorno ao passado para analisar social como verticalizadas, me aproximo das
como Anísio Teixeira concebeu essa relação análises que, destacando a centralidade da cultura,
educação pública/autonomia em seu plano de concebem os processos políticos como parte de
organização de um sistema democrático de uma vivência social que é sempre simbolicamente
educação para o Brasil. Resgatam-se aspectos do mediada. Particularmente, a partir das contribuições
sentido da autonomia em seu discurso em defesa da de Stephen Ball2 (1994, 2000, 2006), busco
educação como direito de todos, buscando compreender hoje, como pesquisadora, o contexto
compreender as condições materiais que o da prática nas políticas educacionais, contexto onde
produzem. Defende-se que esse olhar histórico pode as definições legais são reinterpretadas e recriadas.
contribuir para um melhor entendimento das políticas Com Linhares (2007), entendo que as políticas
educacionais do país, para além da esfera do educacionais não se limitam às problematizações e
Estado. teorizações de normas, linhas reguladoras de ação
Palavras – chave: políticas educacionais, autonomia, que emanam do Estado. As relações de
educação pública interdependência entre Estado e sociedade, como
Abstract nos mostra Linhares, evidencia a importância de se
From a reflection on the principles that guide the relevar problemáticas políticas como as memórias
current government's Education Development Plan, educacionais e as experiências instituintes3 em
which declares the construction of the autonomy as educação pública, com vistas a identificar e
the main objective of the public education, we fortalecer movimentos que ampliem em extensão e
promote a return to the past in order to analyze how intensidade as formas de participação social,
Anísio Teixeira conceived the relation between public econômica, cultural e educacional como interfaces
education and autonomy in his organization plan for constituintes da experiência política.
a democratic educational system for Brazil. We Esse trabalho busca, assim, privilegiar a
retrieve some aspects of the meaning of autonomy in dimensão histórico-cultural na reflexão sobre
his speech in defence of education as a right for políticas educacionais. Da leitura do texto onde o
everybody, trying to understand the material atual ministro da educação, Fernando Haddad,
conditions that yield to it. We argue that this historical apresenta à sociedade brasileira um amplo plano de
look can contribute for a better understanding of the ação4 das políticas e programas de governo em
contexts of the educational policies of our country.
curso, envolvendo os diferentes níveis da educação,
Key-words: educational policies, autonomy, public
é possível identificar que os princípios e
education.
fundamentos apresentados estão ancorados na
defesa da educação como direito de todos e que, de
Primeiras palavras
forma recorrente, o texto associa a educação à
Como pesquisadora e professora há trinta
construção da autonomia, sendo esta proclamada “o
anos na rede pública federal, venho refletindo nos
objetivo da educação pública” (p.40). A ênfase na
últimos anos sobre os diferentes contextos que
autonomia, ao longo do texto, suscitou alguns
configuram as políticas educacionais, da elaboração
questionamentos.

14
ARTIGO
Mas afinal, de que autonomia se está capazes de assumir uma postura crítica e criativa
falando? Para quem e com que objetivos? Numa frente ao mundo, a “educação para a
perspectiva mais ampla, questiona-se: de que autonomia”,aqui preconizada,
maneira os discursos circulantes, no campo atravessa todo o texto, nos diferentes programas
educacional, são base para a produção de sentidos que o integram.
nas políticas educacionais, em seus múltiplos Contrapondo-se à visão fragmentada da
contextos, em uma determinada época? De que educação que, segundo o documento, teria
forma essa relação educação/autonomia construída predominado no país até recentemente5, o plano
no documento pode ser compreendida à luz de suas apresenta um discurso em defesa de um sistema
particularidades históricas? nacional de educação, que não poderia ser
Foram essas questões que me mobilizaram artificialmente segmentado, de acordo com
a lançar um olhar histórico sobre o processo de conveniência administrativa ou fiscal, mas, ao
constituição de políticas educacionais, contrário precisaria ser tratado com unidade, da
problematizando os sentidos atribuídos à autonomia, creche à pós-graduação.
com o objetivo de contribuir para o entendimento de Essa visão sistêmica da educação aparece
seu uso nas políticas educacionais atuais no Brasil. como corolário da autonomia do indivíduo, na
Assim, para situar o conceito de autonomia, num medida em que, de acordo com o texto só ela
discurso contemporâneo que proclama, como se garantiria a todos e a cada um o direito a novos
fossem ecos da modernidade, a defesa da educação passos e itinerários formativos (p.10). Questões
como direito de todos, buscarei em Anísio Teixeira, como financiamento, regime de colaboração, cadeia
algumas chaves de leitura que me ajudem a melhor de responsabilização,sistema nacional de avaliação,
compreender as questões aqui apresentadas. entrelaçadas com questões como direito do
Minhas inquietações, traduzidas até aqui educando, constituição de subjetividades,
nessas primeiras palavras, me conduzem do atual desenvolvimento de competências e
Plano de Desenvolvimento da Educação, ao plano desenvolvimento da criatividade, atravessam o texto,
de organização de um sistema democrático de nos mostrando de que forma o governo , com os
educação para o Brasil elaborado por Anísio hibridismos que acompanham os movimentos da
Teixeira, nos anos quarenta do século passado. história, busca dar organicidade e sentido às suas
Como fio condutor dessa reflexão, o conceito de definições legais, que elege a autonomia como
autonomia. expressão de seu discurso “democratizante”. Antigas
questões, novos problemas? Novas questões,
I) Apresentando a questão: o Plano Nacional da antigos problemas? Como situar o conceito de
Educação e a ênfase na autonomia autonomia nas políticas educacionais?
Em abril de 2007, o ministro da educação, A tentativa de construir um referencial
Fernando Haddad, apresentou à sociedade interpretativo, que possibilitasse matizar os sentidos
brasileira os fundamentos do trabalho que vem que esse conceito assumiu em diferentes momentos
sendo desenvolvido pelo atual governo no âmbito da da história educacional brasileira, encontra-se
educação, lançando o que denominou “Plano de presente em trabalhos como os de José Mário Pires
Desenvolvimento da Educação”. Um plano executivo Azanha (1993) e de Thereza Adrião (2006). Ambos
ancorado, segundo o explicitado no texto, em procuram analisar o sentido de “autonomia da
princípios voltados para a consecução dos objetivos escola” no período correspondente ao lançamento
republicanos presentes na Constituição Brasileira. do Manifesto dos Pioneiros da Educação Nova
Um plano concebido, a partir da necessidade (1932) e o confrontam nas políticas educacionais de
constatada de se enfrentar estruturalmente a períodos mais recentes de nossa história.
desigualdade de oportunidades educacionais no Azanha identifica que no Manifesto dos
país. Como respostas a esse desafio, propõem-se Pioneiros a palavra autonomia aparece apenas duas
enlaces da educação com a ordenação do território ou três vezes e está relacionada a uma preocupação
e com o desenvolvimento econômico e social, única em se constituir um fundo especial, além das verbas
forma de garantir a todos e a cada um, o direito de de orçamento, destinado exclusivamente a atender
aprender até onde o permitam suas aptidões e empreendimentos educacionais que, assim, ficariam
vontades (p.4). a salvo das injunções estranhas à questão
Da leitura do documento em tela podemos educacional (p.38). Para Adrião, apesar de o
identificar um discurso que reconhece na educação conceito não se apresentar explicitamente no
“uma face do processo dialético que se estabelece entre pensamento educacional daquele período, a
socialização e individuação da pessoa, que tem como autonomia das escolas estaria associada a uma
objetivo a construção da autonomia” (p.5) Concebida visão descentralizadora do Estado e à flexibilização
aqui como um processo de formação de indivíduos curricular, para atendimento das especificidades

15
ARTIGO
regionais (p.49). Esses trabalhos fornecem algumas pensamento, como já foi apontado por diversos
lentes para o estudo aqui proposto, ainda que se autores.
restrinjam a uma única perspectiva: a da autonomia A forma democrática de vida defendida por
escolar. Anísio exprime a convicção de que, a despeito da
desigualdade dos indivíduos, existiria em todos eles,
II) Lançando um olhar histórico: o plano de um mínimo de inteligência que os capacitaria à
organização de um sistema democrático de participação na experiência social, contribuindo para
educação para o Brasil de Anísio Teixeira6 a sociedade. Com Rocha, entendo que para me
Anísio Teixeira, em sua trajetória, ao longo aproximar do conceito de autonomia, seria
de quarenta anos de vida pública, construiu um importante compreender de que forma Anísio
discurso em defesa de uma educação democrática. relaciona educação e democracia, indivíduo e
Um discurso situado num campo de embates sociedade, em seu plano educacional.
políticos em permanente negociação de sentidos e Da leitura de sua obra, identifico que, ao
que denota a sua explícita intenção de intervenção apontar a intrínseca relação entre Estado
nesses contextos. democrático e educação, Anísio assinala: “Com o
Da análise dos princípios filosóficos que desenvolvimento tecnológico da sociedade, a mesma se
configuraram a educação escolar tradicional, faz tão complexa, artificial e dinâmica, que todo o laissez-
faire se torna impossível e um mínimo de planejamento
especializada e alheia à vida cotidiana, fortemente
social, ajudado por um sistema de educação intencional,
marcada pelo dualismo grego – conhecimento
ou seja, escolar, de todo indispensável” (1996, p.42).
empírico ou prático x conhecimento racional - Anísio
Anísio identifica duas alternativas possíveis para
sustenta a sua defesa por uma nova escola,
esse planejamento.
moderna, prática e eficiente, a ser progressivamente
Uma delas seria o planejamento total à
construída, a partir dos fundamentos da ciência
força, característico dos regimes totalitários, onde a
experimental, ancorados na unificação desses dois
educação visaria preparar um indivíduo capaz de
campos de conhecimento. A partir dos ideais da
servir ao totalitarismo. A outra seria um planejamento
Revolução Francesa, ancora seu pensamento no
gradual e consentido, que ele caracteriza como o de
universalismo, ao defender uma escola para a
um regime democrático, onde a educação teria que
formação do cidadão comum da democracia. Como
formar um indivíduo para servir à democracia.
intelectual preocupado com a construção de uma
Contrapondo-se ao espírito monolítico e
esfera pública que contemplasse o indivíduo
uniformizante do Estado não democrático, Anísio
moderno, um cidadão que não seria um “súdito”,
constrói toda sua argumentação em defesa de uma
Anísio criticava a sociedade que formava os homens
sociedade democrática e científica, que, assim,
nas próprias matrizes estáveis das classes,
exigiria essa segunda forma de planejamento.
instituições que incorporavam a família e a religião,
Conjugando teoria e experiência, elabora o seu
como suas forças modeladoras e adaptadoras.
plano democrático de educação para o Brasil, a
Esses homens não estariam preparados para
partir de uma análise apurada da história da
compreender o progresso e dirigir a moderna
sociedade brasileira e de argumentos
sociedade industrial e seu sistema científico e
conceitualmente fundamentados na filosofia da
impessoal de trabalho. Nem estariam preparados,
educação e em um programa de ação nos moldes
nesses novos termos, para buscar a sua unidade e
do liberalismo de John Dewey. Apontando para uma
integração social.
renovação cultural, a partir da valorização da
Rocha (1996), ao analisar o pensamento
ciência, do industrialismo e da democracia,
educacional de Anísio Teixeira, aponta duas
apresenta uma concepção mais ampla de educação
dimensões que o caracterizam: o entendimento
e, em cada etapa da elaboração do plano, os
substantivo de democracia, que o leva a atentar para
fundamentos democráticos que o conformam.
a exigência de incorporação de todos os indivíduos
Segundo Anísio, uma política de força
em condições de igualdade e não de forma seletiva
impediria o funcionamento da democracia, já que
e a sua análise social que se pauta por valores de
entende que uma forma democrática de vida se
liberdade individual e política, que resgatam a noção
fundamenta na confiança na razão humana,
de individualidade sem separar o homem do
devidamente cultivada; na participação de todos na
cidadão, além de acentuar a dimensão da sociedade
formação da sociedade, com o desenvolvimento de
ao invés da do Estado. Destaca, ainda, a crítica de
suas possibilidades e no enriquecimento do
Anísio à concepção liberal fundada na “soberania do
pensamento individual de cada ser humano.
indivíduo” e numa noção de liberdade como
Defende que, com as condições necessárias de
ausência de restrições (1996, p.194). Sem dúvida,
liberdade (entendida como liberdade de inteligência
salienta o autor, uma forte influência da filosofia
e não como ausência de restrições à ação), o
social e política de John Dewey em seu

16
ARTIGO
homem aprenderia a controlar seu comportamento democrática da educação, que, segundo ele, deveria
no interesse da convivência humana. Condições ser incorporada à organização legal e institucional
sociais e escolares, enquanto medidas concretas, da educação, por intermédio dos sistemas estaduais
planejadas e executadas com essa finalidade. Na de educação estabelecidos pela Constituição
escola, por meio de um programa de atividades que Federal de 1946.
levasse a um pensamento reflexivo, o aluno Privilegiando as dinâmicas sociais locais na
aprenderia a “viver inteligentemente e a participar busca de uma integração mais ampla da sociedade,
responsavelmente da sua sociedade” (1971, p.13) no plano apresentado por Anísio, não haveria
Podemos perceber que, em Anísio, liberdade e espaço para um Estado tecno-burocrático e
responsabilidade andaram juntas na educação centralizador. Tal projeto exigiria a ampliação de
escolar. Na escola por ele preconizada, o aluno, suas funções e responsabilidades, visando oferecer
passo a passo, conquistaria o caminho para o que aos indivíduos as condições necessárias para a sua
ele considerava a sua emancipação. participação numa sociedade democrática. A
Desse modo, compreendo que para Anísio, descentralização da educação se caracterizaria para
a liberdade não seria ausência de restrições, mas ele, como uma atitude tática de confiança na
autodireção, disciplina compreendida e consentida, natureza humana. Seria a condição para uma
responsabilidade voluntária e a igualdade não seria interação educativa válida científica e eticamente.
o fácil nivelamento, mas oportunidade igual de A descentralização educacional que
conquistar o poder, o saber e o mérito, pela via da assim propugnamos não representa apenas medida
educação. Sua aquisição envolveria, assim, técnica que está, dia a dia, mais a se impor, mas também
processos organizados, planejados e voluntários. um ato político de confiança na nação e de efetivação do
A reconstrução da sociedade brasileira, princípio democrático de divisão do poder, a impedir os
estrangulamentos da centralização e dificultar a
preconizada por Anísio, coloca a educação escolar
concentração de força que nos poderia levar a regimes
como um problema público (não se trata de totalitários(1971, p.39).
vantagem – “a educação não é privilégio”); como um
direito de cada indivíduo e dever da sociedade Ao examinar as dimensões que remetem à
politicamente organizada. Essa educação teria que questão da autonomia dos sistemas educacionais
ser capaz de inculcar atitudes como o espírito de frente ao Estado, no discurso empreendido por
objetividade, de tolerância, de confiança e de amor Anísio Teixeira na proposta de regulamentação do
ao homem e o da aceitação e utilização do novo, Conselho Estadual de Educação e Cultura do
que a ciência a cada momento lhe traz. Para uma Estado da Bahia, como um órgão de representação
sociedade democrática, a educação produziria o da sociedade, de caráter deliberativo e não apenas
homem racional, independente e democrático, que consultivo7, Rocha (1996) discute a tradução de seu
estaria preparado para viver a sua vida entre
pensamento em ação. O anteprojeto de lei orgânica,
grandes forças impessoais e distantes, sem perder,
da lavra de Anísio Teixeira, então Secretário de
no entanto, as qualidades pessoais e o senso de
Educação e Cultura da Bahia, segundo o autor, tirará
pertencer à sua sociedade. Educação democrática
partido das definições constitucionais, federal e
para todos, indivíduos livres e responsáveis,
estadual baiana, para demarcar a sua proposta de
sociedade politicamente organizada. A autonomia no
autonomia educacional. (p.196) Ação estratégica
plano de educação de Anísio começa a se delinear.
que deixando as marcas de seu pensamento,
conservou o seu ideário de gestão da educação pela
III) Refletindo sobre o conceito de autonomia em
sociedade e buscou a continuidade das políticas de
Anísio.
educação para além das situações governamentais.
Da leitura dos textos de Anísio, é possível
Ideário construído não somente por sua reflexão
identificar que a tese central que orientará a
filosófica e social, mas também por suas vivências
construção de seu plano é a de que a implantação
político-educacionais.
desse regime de inteligência e liberdade não seria
Confiar taticamente na nação, na sua
algo que se pudesse promover por atos de vontade,
capacidade de pensar e agir de forma
nem pela simples não interferência governamental,
descentralizada, o desenho de uma escola, que não
mas seria o resultado de um sistema de educação
poderia ser imposta e moldada pelo centro, mas
estendido a todos e de extrema eficácia; de um
produto das condições locais e regionais, planejada,
sistema de pesquisas científicas, livre e de um
feita e realizada sob medida para a cultura da
sistema de informação pelo livro, jornal, rádio e
região, diversificada, porém una, nos objetivos e
televisão, de imparcialidade garantida. Anísio, pelos
aspirações comuns. A partir dessas premissas,
diferentes acessos, que sua trajetória profissional lhe
Anísio elabora sua crítica às políticas
permitiu percorrer, procurou reunir estudos e
centralizadoras.
evidências, visando formular a sua teoria

17
ARTIGO
Criticando a verticalização das políticas, Anísio fala seus servidores. Entendimento que os legisladores
em dever democrático do governo de oferecer ao deveriam ter, dando aos professores, por exemplo, a
brasileiro uma escola primária capaz de lhe dar a autonomia consagrada na constituição8, autonomia,
formação fundamental indispensável ao seu trabalho nela, zelosamente guardada. Autonomia que deveria
comum, uma escola média capaz de atender à variedade
“tirar os serviços da educação da engrenagem
de suas aptidões e das ocupações diversificadas de nível
burocrática da máquina estatal, normalmente
médio, e uma escola superior capaz de ao mesmo tempo
emperrada e morosa (p.159).
lhe dar a mais delicada especialização (1971, p.33).
Assim, a partir dessa perspectiva, entendo
Nesse sentido, ao pensar uma política
ser possível identificar algumas chaves de leitura
educacional mais ampla, Anísio postula um sistema
para compreender o conceito de autonomia em
de administração onde o universal se encontre com
Anísio, no esteio de seu plano de construção de uma
o particular, via descentralização, explicitada aqui
educação para todos. Dentre os seus vários estudos
como autonomia que garantiria à escola inserida ao
sobre Anísio Teixeira, Nunes (2000) analisou suas
meio local, vitalidade e dinamismo, balizados na
realizações, a partir de dois ângulos: o da educação
liberdade com responsabilidade. Um sistema que
popular, relativa à formação de crianças,
contempla o local como espaço de autonomia.
adolescentes e adultos e o da formação de
Poderíamos, então, falar em autonomia da escola?
intelectuais. Na perspectiva da educação popular, a
escola concebida por Anísio seria o espaço real no
A reconstrução educacional da nação
terá de fazer-se com essa liberdade e esse respeito pelas qual a criança do povo pudesse praticar uma vida
suas condições, como afirmação suprema da nossa melhor, com livros, revistas, recreação, saúde,
confiança no Brasil, a cujo povo, hoje unificado e enérgico, professores bem preparados, além de um ambiente
devemos entregar, com o máximo de autonomia local, a em que os agentes sociais cultivassem o sentimento
obra de sua própria formação. (1971, p.46) de responsabilidade pela escola, enquanto
instituição pública.
Para ROCHA (p.215), o que Anísio chamou Do ponto de vista da formação de
de autonomia escolar não seria outra coisa senão a intelectuais, o projeto de Anísio passaria pela criação
autonomia do setor de política pública de educação. de instituições que formulassem intelectualmente a
De acordo com o autor, a despeito de ressaltar o cultura humana, fossem pólos de irradiação da
vínculo cultural, educacional e pedagógico da ciência, literatura e filosofia e tivessem a pesquisa
escola, especialmente a primária, com a dimensão como um valor e a vinculasse à docência Nunes
local e comunitária, aí situando o impulso vital do destaca a habilidade de estrategista de Anísio, que,
processo educativo, em nenhum momento Anísio se segundo ela, colocava os órgãos sob sua condução,
refere à autonomia da unidade escolar, como como o INEP9, não só a produzir pesquisas que
acentuam hoje os proponentes da autonomia. dessem suporte ao seu projeto, como também a
Concordo com Rocha, mas gostaria de acentuar, no oferecer, através do resultado dessas pesquisas,
entanto que, em seu discurso, Anísio se refere o subsídios para um planejamento educacional.
tempo todo à autonomia educacional, e que essa Para a execução desse planejamento,
não pode ser reduzida à interpretação de autonomia convênios eram realizados entre o INEP e as
da escola, nos moldes aclamados nos dias atuais. secretarias de educação estaduais, patrocinando
Defendo que, para entender o conceito de equipamentos para as escolas e cursos de
autonomia, em Anísio, é necessário compreender, aperfeiçoamento docente, visando à formação de
em sua dimensão histórica e teórica, de que forma um profissional atualizado e competente. Segundo
ele o constrói em seu discurso, ao longo de sua Nunes, não seria por acaso que, ao mesmo tempo
trajetória. Como exposto, anteriormente, Anísio em que criava o Centro Brasileiro de Pesquisa
demonstra uma preocupação constante com a Educacional, capitalizava a luta pela escola primária
organização de um sistema de educação estendido e pelo controle da formação docente (Nunes, 2000,
a todos e de extrema eficácia. Arrisco afirmar que o p.19).
movimento de Anísio pela descentralização da A autora argumenta, assim, que haveria uma
educação estaria relacionado à perspectiva de intencionalidade em Anísio, ao buscar coordenar
assegurar o “espírito de ensaio e experimentação” diferentes ações, aparentemente desconexas. Para
que deveria presidir a implantação e a expansão dos Nunes, a meta seria a maioridade do povo brasileiro,
serviços de educação e cultura. não só pela valorização da cultura popular, mas
E é o próprio Anísio que declara: “Dentre as também pela sua transformação em instrumento
instituições a fortalecer em sua luta pela eficácia está, efetivo da construção de sua autonomia. Com uma
mais que qualquer outra, a da escola”(1996, p.130). Para educação voltada para o desenvolvimento, a
Anísio, as fontes de educação não estariam nas leis juventude brasileira estaria habilitada à tomada de
rígidas, mas na perícia, competência e visão dos

18
ARTIGO
consciência desse processo de autonomia nacional dos abalos políticos, dos atropelos, dos males da
(p.21). rigidez e da uniformidade, bem como, dos males da
Concordo com Nunes, sobre a dispersão e da fragmentação.
intencionalidade de Anísio, ao coordenar diferentes No projeto de reconstrução da sociedade
ações. Entendo que sua habilidade de estrategista brasileira, em marcha para a posse de si mesma,
seria movida por sua determinação de comprovar Anísio teria defendido, ora de forma incisiva, ora de
cientificamente sua teoria democrática da educação. forma sutil, a autonomia para a educação, enquanto
Defendo que, além de habilidoso estrategista, Anísio condição para a realização daquele projeto. E,
se pensava cientista. Sua hipótese de uma assim, passo a passo, ele teria buscado materializá-
sociedade justa e igualitária dependia, assim, da la, em diferentes contextos. Na fundamentação do
educação para ser posta à prova. À prova Capítulo de Educação e Cultura, na Constituição do
experimental da ciência. Como um bem social, essa Estado da Bahia, no ano de 1947, Anísio declara:
educação democrática precisaria ser criteriosa e Tenho quatorze anos de lutas dentro dos
eficazmente construída, disseminada, e, acima de Governos, procurando reivindicar para a educação a
tudo, protegida de interferências externas que autonomia que me parece indispensável ao
viessem a retardar ou desviar o seu curso. desenvolvimento de seus serviços (1996, p.118).
Defendo que Anísio procurou experimentá-
la, por diferente vias, em diferentes contextos E um No lugar de mantê-la sob a tutela de um
dos ensaios principais se daria no interior da escola poder central, Anísio, no clima de
pública. Nesse ensaio, seria preciso controlar as reconstitucionalização do país, fala em
variáveis do processo, que poderiam interferir nos responsabilidade solidária entre União, Estados e
resultados. Seria preciso assegurar, assim, a Municípios e dentro do espírito de organizar
eficácia da escola. Combinando métodos científicos politicamente a sociedade e de nela confiar, defende
e valores morais, articulando o local e o universal, o órgãos colegiados de composição leiga – os
singular e o plural, Anísio, concebeu o seu plano Conselhos de Educação, exercendo o poder, com
democrático de educação para o Brasil, a partir de autonomia administrativa em suas esferas de
um amplo diagnóstico dos problemas que deveriam competência. Idéias materializadas na Constituição
ser enfrentados. Federal de 1946.
Segundo ele, o sistema escolar brasileiro Autônomos e responsáveis, integrados
representava “o caso mais profundo de desajustamento em seus respectivos meios, de composição leiga e não
entre a nação real, em marcha para a posse de si mesma, técnica, teríamos, confiando a tais Conselhos a educação,
e as suas instituições escolares, herdadas de um período entregue a formação dos brasileiros à própria sociedade
de mimetismo e imitação social, sem autonomia e brasileira, em sua diversidade local, em sua variedade
regional e em sua unidade nacional. (1996, p.84)
autenticidade” (p.87) Nunes ressalta uma dimensão do
conceito de autonomia em Anísio, por ele próprio
Afastando os serviços de educação do
explicitada: a autonomia da nação. Mas em que
magma de problemas gerais da máquina de governo
termos essa autonomia se daria? De que forma ela
e sob a vigilância próxima e constante da
se expressaria no plano educacional de Anísio
comunidade local, a educação, seria organizada e
Teixeira, em seu discurso em defesa de uma
administrada sob a forma de serviços autônomos e
educação para a democracia e de uma escola para
locais, contando com recursos próprios,
todos?
Compreendo que ela estaria situada na assegurados constitucionalmente10. A partir dessa
centralidade conferida por Anísio à educação, na base financeira descentralizada, Anísio buscava
busca gradativa da grande integração da sociedade obter os elementos que estenderiam a autonomia
democrática. De indivíduo a indivíduo, de escola à até os municípios, possibilitando-lhes solucionar o
escola, de comunidade à comunidade, com uma problema da educação. A responsabilidade da
sociedade politicamente organizada, a educação, educação, assim, se define, se multiplica e se
construindo coletivamente a sua autonomia, poderia localiza.
fluir livremente, tecendo os fios da democracia que Ao buscar compreender o conceito de
forjariam a nação brasileira. Ao conceber a autonomia em Anísio, a partir da perspectiva aqui
educação escolar como um problema público, um apresentada, percebi a importância de associá-lo a
interesse público, um direito de cada indivíduo e um outros dois conceitos presentes no discurso de
dever da sociedade politicamente organizada, o Anísio: o de liberdade e o de responsabilidade,
sentido de autonomia atravessa todo o discurso de discutidos anteriormente. Dentro do contexto
Anísio, como um horizonte a ser perseguido: o de analisado, a autonomia da educação, preconizada
tornar a educação livre das amarras da burocracia por Anísio, representaria uma educação que
estatal, da irresponsabilidade e formalismo dos passaria a ser autodirigida, como ele, assim,
serviços civis comuns da administração brasileira, esclarece:

19
ARTIGO
Autonomia não é anarquia. Libertada da
intromissão estranha, a educação será responsável
perante si mesma. Não se isola, mas integra-se em si
mesma, na sua consciência profissional, no magistério que
serve e na sociedade que a serve. (1996, p.122)

Autonomia da educação. Autonomia para a nação


brasileira. Notas
1Doutoranda do Programa de Pós-graduação em
IV) Considerações Finais
Educação livre da intromissão estranha. Educação da Universidade Federal Fluminense.
Educação responsável perante si mesma. A partir Professora do Instituto Federal do Rio de Janeiro.
rita.etfq@gmail.com
desse breve diálogo com Anísio, podemos refletir se 2Stephen Ball defende a existência de três contextos
a autonomia, não se constituiria num processo de
luta permanente, e não um modo de administrar que políticos primários, indissociáveis, que se situam
num ciclo contínuo de políticas, a saber:
a reduziria apenas à operacionalização de
a) contexto de influência, onde os discursos políticos são
procedimentos administrativos, financeiros e construídos e onde acontecem as disputas entre
pedagógicos, colocando-os para funcionar de forma quem influencia a definição das finalidades sociais da
descentralizada. Esses modos descentralizados, educação e do que significa ser educado. Atuam
usados, em diferentes momentos históricos como neste contexto, diferentes redes de sociabilidade;
“marcas” da autonomia, esboçam previamente o b) contexto de produção dos textos das definições
lugar, o tempo e o conteúdo do que deverá ser políticas, o poder central propriamente dito, que
gerido autonomamente. mantém uma associação estreita com o primeiro
Hoje, no PDE, a autonomia encontra-se contexto;
relacionada à defesa de um sistema nacional de c) contexto da prática, onde as definições são
educação, que não poderia ser artificialmente reinterpretadas e recriadas.
3Um olhar atento aos processos instituintes que
segmentado, de acordo com conveniência
administrativa ou fiscal, mas, ao contrário precisaria fermentam no chão das escolas. Este é um dos
ser tratado com unidade, da creche à pós- objetivos propostos por Linhares (2001, p.13), almejando
acentuar seu caráter disruptor com relação às formas
graduação. Autonomia sob a tutela do Estado?
estabelecidas ao fabularem invenções [...], que se
Dentro desse contexto, como analisar alimentam de sonhos de justiça e autonomia, tantas
criticamente um discurso que proclama uma vezes dados como vencidos.
“educação para a autonomia”? Como compreender 4Plano de Desenvolvimento da Educação: razões,
as “finalidades sociais da educação” defendidas hoje princípios e programas. PDE. Ministério da Educação.
e o papel da escola nesse contexto? Acessível em http://www.mec.gov.br.
A breve análise histórica aqui empreendida 5Níveis, etapas e modalidades de ensino estariam
nos mostra que o peso das tradições culturais sendo tratados como se não fossem elos de uma
nacionais, os constrangimentos próprios de cada mesma cadeia, que deveriam se integrar e se reforçar
contexto de escolarização, o trabalho de mutuamente (p.7).
reinterpretação dos atores no campo escolar não 6O detalhamento desse plano educacional e a sua
podem ser menosprezados. Ball (2000) nos ajuda a tradução, em diferentes propostas de políticas
refletir sobre essas questões na atualidade, quando educacionais elaboradas e defendidas por Anísio
aponta que pela acentuada circulação e Teixeira, nos anos quarenta, como, por exemplo, a
recontextualização de múltiplos textos e discursos proposta de Lei Orgânica de Educação e Cultura do
nos contextos de produção das políticas, são Estado da Bahia, encontram-se organizadas em seu
instituídas, simultaneamente, a homogeneidade e a livro Educação é um direito.TEIXEIRA, Anísio. Educação
heterogeneidade, em constante tensão. é um direito. 2ª Ed. Rio de Janeiro: Ed UFRJ,1996.
7A Constituição baiana de 1947 estabelece o Conselho
Em um discurso combativo e coerente com
tudo aquilo que pensou, difundiu e realizou, Anísio Estadual de Educação e Cultura como um órgão
Teixeira construiu o seu plano para uma educação autônomo, administrativa e financeiramente.
8Aqui Anísio se refere à Constituição do Estado da
democrática. Ao buscar influenciar na elaboração
das políticas educacionais ou, ao buscar participar Bahia, 1947.
diretamente, de sua elaboração e execução, de 9Instituto Nacional de Estudos e Pesquisas
acordo com as condições que os cenários políticos Educacionais Anísio Teixeira.
lhe apresentavam, Anísio nos ajuda a refletir, hoje, 10A Constituição Federal de 1946 estabeleceu a
sobre a perspectiva defendida por Ball, de obrigatoriedade de dotar o Estado de serviços
indissociabilidade entre os contextos que integram educacionais, com recursos não inferiores a de 20% de
sua renda ordinária.

20
ARTIGO
as políticas educacionais, desde o momento onde
acontecem as disputas entre quem influencia a
definição das finalidades sociais da educação até a
interpretação ativa pelos profissionais que atuam no
contexto da prática.
Ao buscar inventariar os sentidos atribuídos
à autonomia no pensamento educacional de Anísio
Teixeira, dialogando, assim, com a nossa herança
intelectual, pude compreender que os discursos
circulantes nas políticas educacionais não podem
ser compreendidos fora das relações materiais que
os constituem. Em Anísio, o conceito de a autonomia
estava intimamente relacionado à sua teoria liberal,
não podendo ser entendido sob um ponto de vista
individualista, mas a partir do modo como ele
associava indivíduo e sociedade, educação e
democracia.
Enfrentar a desigualdade de oportunidades
Referências
educacionais, desafio que Anísio assumiu, nos
termos das particularidades históricas de sua época.
ADRIÃO, Theresa. Autonomia para a escola brasileira:
Desafio que a realidade atual ainda nos impõe, em
refletindo sobre o pensamento reformador em
novos contextos. educação. Dialogia, São Paulo, v.5, 2006.
Afirmar a contemporaneidade de Anísio é AZANHA, José Mário P. Autonomia da escola, um
partilhar com ele, como nos mostra Nunes, a defesa reexame. Cadernos de História e Filosofia da Educação,
irrestrita com o comprometimento da sociedade e FEUSP, v.1, n.1, 1993
dos poderes públicos com a educação, para além, BALL, Stephen. J. Education reform – a critical and
de “palavras de ordem”. post-structural approach. Buckinghan Open University,
Antigas questões, novos problemas? Novas 1994.
questões, antigos problemas? As políticas _____Education policy and social class. The select
educacionais são processos complexos e works of Stephen J. Ball. London: Routledge, 2006.
contraditórios. Caminhos sinuosos, marcados, na BRASIL, MEC. Plano de Desenvolvimento da
Educação: razões, princípios e programas. PDE.
maioria das vezes, por descontinuidades, atropelos
Ministério da Educação. http://www.mec.gov.br.
e esquecimentos. Como educadores, precisamos DEWEY, J. Democracia e educação. São Paulo:
compreender quais são os “reais móveis da ação”. Nacional, 1956.
Precisamos identificar os movimentos instituintes, LINHARES, Célia Experiências instituintes na educação
que como destaca Linhares, “não emergem em pública?Alguns porquês dessa busca. Revista de
redomas de vidro; não crescem isoladas de tecidos Educação Pública Cuiabá v. 16 n. 31, 2007
históricos, de ações coletivas e individuais, mas _____Experiências instituintes em escolas
alimentam-se de trânsitos incessantes de religação públicas.Memórias e projetos para a formação de
entre passado e futuro, entre diferentes esferas da professores. Projeto de pesquisa ,CNPQ, 2001.
atuação humana, entre afetos e produções de LOPES, Alice. Discursos nas políticas de currículo.
linguagens, saberes e conhecimentos materializados Currículo sem Fronteiras, v.6, n.2, p.33-52, jul/dez 2006.
NUNES, Clarisse. Anísio Teixeira: a poesia da ação. Rio
nos intercâmbios produzidos pela vida” ( Linhares,
de Janeiro, 1991.
2001). Tese de doutorado, PUC.
Anísio nos convida, assim, a sacudir o _____. Anísio Teixeira entre nós: A defesa da educação
conforto dos lugares instituídos e a assumir a nossa como direito de todos. Educação e Sociedade, ano XXI,
responsabilidade social, diante dos problemas n.73, Dez/2000.
contemporâneos da educação. E é com esse ROCHA, Marlos B. Mendes. Anísio Teixeira ou um
espírito que, a partir desse olhar histórico sobre o projeto mais feliz de moderno. In: TEIXEIRA, Anísio.
processo de constituição de políticas educacionais, Educação é um direito. 2ª Ed. Rio de Janeiro: Editora
problematizando o conceito de “autonomia”, que UFRJ, 1996, Posfácio.
retorno a minha pesquisa, percebendo a TEIXEIRA, Anísio. Educação é um direito. 2ª Ed. RJ:
indissociabilidade entre a sua dimensão intelectual e Editora UFRJ, 1996.
_____Educação não é privilégio. 3ª Ed. São Paulo: Ed.
política.
Nacional, 1971.
_____Pequena Introdução à Filosofia da Educação: A
escola progressiva ou a transformação da escola. 5ª Ed.
São Paulo. Ed. Nacional, 1968.

21
ARTIGO
Imagens-memórias do tempo e os
ciclos escolares:
contribuição para o pensar-fazer da Escola
contemporânea como espaço instituinte
Por Leila Nivea David e Rejany Dominick

Cada subjetividade traz em seu corpo as marcas da histórica, identificamos no conceito de tempo um fio
história humana, da cultura local na qual está imersa que pode nos ajudar a entender um pouco mais
e marcas de suas próprias experiências. Cada um sobre a racionalidade que domina o nosso fazer-
de nós, professores, carregamos imagens- pensar a escola e os processos cotidianos de
memórias1 da racionalidade dominante em nossa aprender e de ensinar.
cultura, mas também estilhaços, fragmentos e fios Nosso objetivo neste texto é apontar
de nossas vivências ímpares com as muitas formas elementos que nos ajudem a identificar, em nossas
de fazer e pensar o mundo. Somos, ao mesmo maneiras de pensar e de fazer, alguns elementos
tempo, herdeiros de imagens-memórias de uma que possam melhorar nossa compreensão e o
Modernidade cultural genérica e estamos diálogo crítico com as propostas dos ciclos
profundamente marcados por aquelas geradas no escolares. Desejamos identificar o potencial
ventre de nossa própria história cotidiana. instituinte presente nesta perspectiva de
Assim, é sempre importante, embora não organização pedagógica da escola que vem se
seja preciso – no duplo sentido apresentado por tornando política pública no Brasil. Identificamos que
Fernando Pessoa - que cada um de nós se pergunte tal política pode ser um caminho democratizante,
quanto tempo levou para aprender a andar? E para dialógico entre os diferentes ritmos de vida, de
aprender a falar? Será que todas as pessoas aprendizado e com os múltiplos saberes que estão
levaram o mesmo tempo para aprender a ler e presentes nas culturas.
escrever? Todos sabemos andar de bicicleta? Por O “tempo” é um conceito central para se
que não? Ah, diante das primeiras dificuldades e pensar os ciclos escolares e tem sido identificado na
tombos alguém disse que você não era bom para escola como um desafio para todos. Na perspectiva
isso... Possivelmente, hoje você não acreditaria e de Fischer (2004, p. 33) “os tempos da escola
continuaria experimentando e aprendendo em seu seriada são os tempos da sequência, da linearidade,
tempo. Mas, será que na infância ou na juventude da previsibilidade”. A seriação escolar é uma
todos temos uma estrutura psíquica que nos permita construção Moderna e a idéia de tempo seqüenciado
tal resiliência2? e controlado tem a mesma datação.
Não obstante às nossas diferenças, Sabemos que o tempo não é igual para
facilidades e dificuldades, tanto o leitor quanto nós, todos, o tempo não pode ser confundido com a sua
somos capazes de ler, escrever, correr e falar!!! E o mensuração. O tempo é vivência, é interação e,
processo de alfabetização, ainda continua em como afirma Fischer, citando Melucci:
nossas vidas? Nos alfabetizamos em diferentes Há um tempo cíclico, como aquele do
mito, no qual os eventos retornam idênticos a si mesmos
platôs da existência e aprendemos, a cada dia, na
com poucas variantes e se manisfestam no corpo, nas
relação com os outros. Mas, por que a escola tem, emoções, nos sonhos, como sintomas, imagens e
ainda hoje, prazos estipulados para o aprendizado comportamentos repetitivos. contemporaneamente ontem
de determinados conteúdos? Por que o tempo tem e amanhã, o meu tempo e o teu, aqui e em outro lugar.
sido marcado por ano e para cada ano há uma (2004, p. 37)
determinada quantidade de conteúdos que precisam Contudo, tal perspectiva não é consensual
ser ensinados e aprendidos em certos trimestres? hoje. Em outros tempos e em outras culturas o
Quem estipulou tal tempo? Quem selecionou tais conceito de tempo também tem passado por
conteúdos de ensino? Por que uns conteúdos e não transformações e é uma discussão que tem
outros? envolvido filósofos, cientistas, artistas, religiosos e o
As questões aqui apresentadas fazem parte homem cotidiano.
de uma trama que vem sendo tecida há mais de
quinhentos anos no ocidente e que se entranhou em Estilhaços sobre o tempo no pensamento
nossas maneiras de fazer a educação escolar de tal ocidental.
forma que nos custa muito acreditar que pode haver
uma arte de fazer diferente desta que está marcada
em nossa memória. Buscando no baú da memória

22
ARTIGO
A humanidade começou a preocupar-se com das quais é também, expiador e vingador: governo de
o tempo cronológico a partir do momento em que Zeus, radioso, senhor do instante. (Santoro, 1995, p.
deixamos de ser nômades e iniciamos o cultivo da 169-70).
terra. O céu foi a primeira referência e a posição dos Como mito, essa história do tempo se
astros um indicador temporal. Acredita-se que as perdeu e outras imagens-memórias de tempo foram
constelações foram o primeiro referente de época. sendo gravadas em nossa corporeidade.
Quando a constelação de gêmeos, por exemplo, Chauí (1996) afirma que no período pré-
estava no ponto mais alto do céu era a época de socrático dominava a idéia de que não teria havido
gêmeos e de plantar determinado alimento. Quando qualquer criação do mundo. Isto significa dizer que o
a constelação de câncer estava no ponto mais alto mundo, ou a natureza, é eterno e que tudo se
do céu e nascia uma criança, esta era identificada transforma em outra coisa, sem jamais desaparecer,
como “nascida em câncer”. E assim, esse embora a forma particular que uma coisa possua
referencial, dentre muitos outros, continua presente desapareça com ela, mas não sua matéria. O
na cultura contemporânea, com diferentes astrônomo grego Aristarco de Samos apresentou
interpretações. pela primeira vez, no século III a.C, uma teoria que
Na antigüidade vamos encontrar afirmava ser o sol o centro do universo. Hawking
instrumentos que já possibilitavam o cálculo das (1997) afirma, com base no pensamento de
horas diurnas e noturnas, como o relógio solar e o Aristóteles, que viveu nos séc. IV a.C., que o mesmo
merkhet (horas noturnas), ambos egípcios. No não concordava com a idéia da criação porque ela
entanto, o tempo para os pensadores gregos pré- contém muitos indícios da intervenção divina.
socráticos estava muito mais ligado à questão da Acreditava, portanto, que a raça humana e o mundo
origem, ordem e transformação da natureza do que que a circundava sempre tenham existido, e vão
ao tempo cotidiano. Na Teogonia de Hesíodo, que continuar existindo indefinidamente. Os antigos
viveu entre os séc. VIII-VII a.C., encontramos três consideravam ainda o argumento sobre o progresso,
gerações de deuses que representam três (...), e respondiam-lhe afirmando que tinha havido
experiências de temporalidade. Foram três gerações dilúvios, periódicos ou outros desastres que, em sua
que se sucederam no poder. Conta-nos, assim, recorrência, devolviam a raça humana aos
Hesíodo (1992, p.113): primórdios da civilização (p. 26).
Terra primeiro pariu igual a si mesma Na idade média, entre os séculos IV e V,
Céu constelado, para cercá-la toda ao redor e ser aos Santo Agostinho também fez algumas reflexões
Deuses venturosos sede irresvalável sempre. Depois de sobre o tempo, que ele dividiu em três: presente,
gerar Urano – uma primeira expressão do tempo –, Gaia passado e futuro. A visão teocêntrica de tempo e
(Terra), é fecundada repetidamente pelo Céu constelado geocêntrica de universo se articulam para responder
que, à noite, a cobre com seu manto de estrelas. às questões da época, que passavam
Desta interação nascem as Montanhas, o necessariamente pelo crivo da igreja Cristã, centro
Mar, o Oceano, a Memória e tantos outros Deuses. de saber da idade média.
Também é parido Cronos – outra dimensão do Dominando o mundo ocidental, a concepção
tempo –, de curvo pensar, e que para manter-se oficial da igreja sobre o universo começa a ser
eterno no poder devora seus filhos, criando uma ligeiramente arranhada em 1514, quando Nicolau
perspectiva de tempo repetição. Urano havia Copérnico publicou, anonimamente, sua idéia de
profetizado que um filho de Cronos iria pôr fim ao que o sol fosse o centro estático em torno do qual a
seu violento reinado, mas Rhéia, a passagem, a Terra e os planetas se deslocavam em órbitas
corrente, o fluxo, o verbo (...), quem sempre circulares. A teoria heliocêntrica fez, quase cem anos
acompanha o passar no tempo porque é sempre depois, Galileu sentir o sopro da morte quando
movente para o futuro” (Santoro, 1995, p. 169), afirmou que o sol era o centro do universo. Quase
cansada de ver seus filhos sendo devorados, suplica um século se passou antes que essa hipótese fosse
aos pais, Terra e Céu, que lhe ajudem a compor um considerada com seriedade (Hawking, 1997).
ardil que ocultasse o filho que estava para nascer. O conceito de tempo inicia seu
Ao dar à luz a Zeus (Raio) entrega à Cronos uma entrelaçamento com o de espaço e com o de
pedra envolta por um coeiro que o devorador engole. movimento dos planetas. Já no final do séc. XVII, Sir
Terra recebeu Zeus na vasta Creta para nutri-lo e Isaac Newton publica o seu livro Princípios da
criá-lo. Este filosofia natural no qual é desenvolvida a teoria de
cresce e liberta seus irmãos do ventre como os corpos se movem no espaço e no tempo,
Cronos: são os Olímpicos, geração de luz, que se insurge bem como uma complexa matemática para analisar
contra a geração de Cronos, os Titãs. Grande batalha
tais movimentos. Ele definiu o tempo como uma
acontece, a Titanomaquia, da qual saem os Olímpicos
grandeza absoluta, cuja passagem é sempre
vencedores. Novo governo se instaura e permanece
dominante por sobre as outras forças da temporalidade, constante, independentemente do observador.

23
ARTIGO
A idéia de que o universo sempre existira em No mundo social intensifica-se a
estado imutável, desde sua criação em algum tempo preocupação com a quantificação do tempo. O
finito no passado, era aceita pela maioria dos relógio passa a mostrar os minutos expressando
estudiosos. A absoluta aceitação de verdades uma concepção de que a imagem Moderna de
eternas constituía-se no arcabouço teórico que tempo é a da precisão. Esta é fruto e flor para o
organizava a visão do universo como eterno e desenvolvimento científico e tecnológico; é o locus
imutável. Santos (1991) afirma que essa visão da história do aprimoramento e universalização do
determinista e mecanicista de mundo foi o horizonte relógio e da cronometragem do tempo. Se no mundo
cognitivo mais adequado aos interesses da pré-Moderno o tempo local era regido pelos sinos
burguesia Moderna, que via na sociedade que das igrejas das vilas e as horas sacras dos
começava a dominar, o estágio final da evolução da mosteiros eram critérios muito elásticos de tempo,
humanidade. Hoje um modelo estático e finito do se as necessidades humanas do corpo obedeciam
universo é uma imagem amplamente superada pela ao fluxo biológico e o trabalho à necessidade da
ciência. O autor localiza no séc. XVIII o ápice da manutenção do grupo familiar (e do pagamento dos
transformação sócio-científica que se iniciou no séc. impostos), no mundo Moderno o relógio passa a ser
XVI e afirma que tais transformações culturais, sem um critério rigoroso, mais preciso do tempo
precedentes na história da humanidade, deixaram astronômico e mais diretamente articulado ao
perplexos os homens daquele tempo: o tempo trabalho humano e à produção de riquezas.
Moderno. Com uma noção científica de tempo
Na década de 1920, o astrônomo americano absoluto e a angústia de chegar logo às conquistas
Edwin Hubble, tentando compreender e explicar o do futuro de forma estruturada, a modernidade se
porquê da velocidade de afastamento das galáxias constrói na repetição de sua certeza temporal e
mais distantes de nós ser maior do que a velocidade busca com ansiedade o seu destino de sucesso
de afastamento das mais próximas chegou à teoria prometido pela força política do liberalismo e das
de que o universo originara-se de um ponto inicial produções técnico-científicas que se articulam em
que teria explodido no passado. Esse fenômeno foi um mesmo paradigma. O trabalho incansável é a
chamado de Big Bang e hoje é hegemônica a crença forma para se atingir mais rapidamente o futuro. A
de que o universo está se expandindo há 13,7 (± produção se apodera do presente-futuro, e mesmo
0,2) bilhões de anos3. algumas das formulações do ideário comunista não
se desvencilham desta noção de tempo prometido.
O tempo Moderno A modernidade se concretiza na busca
repetida de um tempo que virá e esse tempo será de
O que é o tempo Moderno? A palavra fartura, face à capacidade produtiva que o
“moderno” foi empregada pela primeira vez no final desenvolvimento científico do hoje-amanhã traria.
do século V e marcava o limite entre o presente No início do séc. XIX Marx relaciona produção,
Cristão e o passado pagão. Ser moderno, no mercadoria, tempo e trabalho, captando o espírito do
entanto, foi assumindo uma conotação de transição que vem a ser o conceito de tempo
do antigo para o novo e as idéias iluministas hegemonicamente presente naquela sociedade. Tal
francesas, que atribuem ao conhecimento científico perspectiva avançou sobre o espaço-tempo da
os ideais de perfeição, colam ao conceito de escola imprimindo-lhe uma marca que até o início do
modernidade a idéia de avanço seguro, rumo ao século XX poucos questionavam. O Tempo foi
aprimoramento social e moral. O passado românico relacionado com a produção, com a geração de
e tradicional deveria ceder lugar ao presente-futuro riqueza, time, nesta perspectiva, is money e, para
de desenvolvimento racional e técnico. Essa produzi-lo, é preciso que a sociedade e o
necessidade de avançar rumo ao futuro estabelece pensamento de cada sujeito fosse disciplinado. A
uma noção de temporalidade igualmente destruidora escola passa a ser identificada como o espaço
e produtiva. O passado é deslocado para o campo primordial para a propagação, para as novas
do ultrapassado, a busca incessante no presente gerações, desta forma de pensar e de viver no
refere-se aos rumos do futuro. Essa busca, no mundo, cujo paradigma dominante é o de uma
entanto, vai contribuindo para a produção de uma cultura e de uma ciência que se industrializam, que
subjetividade consumista que acelera a história identificam o mundo e os seres nele presentes com
gerando uma percepção de cotidiano descontínuo, as máquinas do processo industrial.
que acaba por produzir a sensação de “falta do As revoluções sociais, científicas e culturais
presente”. O tempo do mundo Moderno foi que ocorreram ao longo do século XX,
interpretado como algo cumulativo, linear e especialmente após a segunda guerra mundial,
seqüenciado, um tempo positivo de crescimento e complexificaram o mundo, a categoria tempo
progresso das coisas. enredou-se na tessitura múltipla da sociedade

24
ARTIGO
industrial e, na ciência, o conceito de tempo prova. O sinal toca, o livro é fechado e o estudante
entrelaçou-se com os vários campos da vida mergulha, de novo no seu tempo de vida, no qual a
humana produzindo concomitantemente uma Internet, o funk, o futebol, a praia, o banho de rio ou
amplificação e a necessidade de relativizar o seu tantas outras coisas que lhe interessa. Porque o
sentido. Da Arte à Antropologia, da Física à tempo da/na escola continua a ser tão separado do
Pedagogia, o tempo ganhou novas e múltiplas tempo de vida?
leituras, mas será que tais ressignificações têm É certo que cada um de nós fala a partir de
entrado pelo portão da escola? E pela porta dos um lugar, é de algum lugar que percebemos todo o
cursos de formação dos professores nas campo cultural e é gradualmente que lhe captamos a
universidades? diversidade e depreendemos um esforço situado
para compreender que não podemos aderir a uma
O tempo na escola seriada tradição sem relativizá-la, sem pensar nela em
relação com as outras por nós vividas. Contudo,
Convidamos Paul Ricoeur para nos ajudar a vamos convivendo com tal repetição e com uma
lembrar que as culturas contemporâneas são certa distância do estudante com relação aos
herdeiras de conceitos, noções e vivências de conteúdos escolares e não nos perguntamos:
tempos diferenciados. Fala-nos o autor que ao Porque o tempo escolar precisa ser tão separado do
analisar os textos presentes no livro “As culturas e tempo de vida?
o tempo” ficou-lhe a pergunta: "não existirão Mas afinal, o que é o tempo escolar?
ʻconcepçõesʼ do tempo e da história que possam ser Podemos iniciar pensando sobre tal questão
traduzidas, transcritas e expostas de acordo com a partir do que está exposto em alguns artigos da Lei
uma ordem ʻconceptualʼ que torna inessenciais todas n º 9.394 de 1996, a Lei de Diretrizes e Bases da
as maneiras de dizer?" (1975, p. 28). Ele afirma que Educação. No art. 23 podemos ler que:
ao conceitualizarmos estamos elevando a palavra Art. 23º. A educação básica poderá
acima da expressão própria da língua e do modo da organizar -se em séries anuais, períodos semestrais,
linguagem, pois se assim não o fosse, não seria ciclos, alternância regular de períodos de estudos,
possível traduzir-se de uma língua para outra, ou grupos não-seriados, com base na idade, na
mesmo dentro de uma língua de uma forma de competência e em outros critérios, ou por forma
expressão para outra. No entanto, a diversidade diversa de organização, sempre que o interesse do
original e específica defende o conceito de sua processo de aprendizagem assim o recomendar. No
universalização e, de fato, o tempo não é igual para artigo seguinte há uma definição mais detalhada e
as pessoas que vivem no campo e na cidade quantificada sobre o tempo escolar.
grande. Ele é vivido de forma diferente por uma Art. 24º. A educação básica, nos níveis
jovem mãe, por uma criança de dez anos e por um fundamental e médio, será organizada de acordo
homem aposentado. Um carteiro e um poeta não com as seguintes regras comuns:
têm com o tempo a mesma relação. O pensamento I - a carga horária mínima anual será de
humano "não produziu um sistema de categoria oitocentas horas, distribuídas por um mínimo de
universal no qual se duzentos dias de efetivo trabalho escolar, excluído o
pudesse inserir um vivido temporal e histórico, tempo reservado aos exames finais, quando houver;
também universalizável", nos afirma Ricoeur (1975, II - a classificação em qualquer série ou
p.28). O tempo é, para o autor, uma categoria etapa, exceto a primeira do ensino fundamental,
mestra não universalizável. pode ser feita:
Contudo, adentremos ao espaço-tempo a) por promoção, para alunos que cursaram,
escolar ainda dominante em nosso cotidiano. Neste, com aproveitamento, a série ou fase anterior, na
o sinal bate e os estudantes caminham para a sua própria escola;
sala de aula. Um único professor solicita que todos b) por transferência, para candidatos
abram o livro em uma determinada página. O procedentes de outras escolas;
conteúdo é explicado e o exercício deve ser feito por c) independentemente de escolarização
todos, naquele momento. Geralmente, o docente anterior, mediante avaliação feita pela escola, que
anota no diário da turma: matéria de hoje “tal”. Essa defina o grau de desenvolvimento e experiência do
cena pode acontecer no primeiro segmento do candidato e permita sua inscrição na série ou etapa
ensino fundamental, e é possível que o professor adequada, conforme regulamentação do respectivo
retorne ao conteúdo, com exercícios, em um outro sistema de ensino;
dia. Contudo, se ela ocorre nos demais segmentos III - nos estabelecimentos que adotam a
da educação básica, a próxima vez que o estudante progressão regular por série, o regimento escolar
terá contato com o tal conteúdo será por meio de pode admitir formas de progressão parcial, desde
exercícios passados para casa e, certamente, na que preservada a sequência do currículo,

25
ARTIGO
observadas as normas do respectivo sistema de “interessam” aos estudantes? Temos certeza de que
ensino; os conteúdos trabalhados por nós serão importantes
IV - poderão organizar-se classes, ou para o futuro destes estudantes? Os produtores de
turmas, com alunos de séries distintas, com níveis currículo – editores de livros didáticos, equipes
equivalentes de adiantamento na matéria, para o governamentais e equipes pedagógicas escolares –
ensino de línguas estrangeiras, artes, ou outros têm feito movimentos no sentido de explicitar e
componentes curriculares; potencializar interações entre os conteúdos
V - a verificação do rendimento escolar escolares e as realidades dos estudantes? O que os
observará os seguintes critérios: estudantes estão querendo aprender é igual ao que
a) avaliação contínua e cumulativa do nós professores estamos ensinando? Tais perguntas
desempenho do aluno, com prevalência dos suscitariam milhões de horas de debate e trilhões de
aspectos qualitativos sobre os quantitativos e dos folhas escritas. Não temos a pretensão de respondê-
resultados ao longo do período sobre os de las aqui, contudo acreditamos que seja
eventuais provas finais; indispensável refletirmos e debatermos essas e
b) possibilidade de aceleração de estudos muitas outras questões que têm sido feitas sobre a
para alunos com atraso escolar; escola e os conteúdos escolares no mundo
c) possibilidade de avanço nos cursos e nas contemporâneo e futuro.
séries mediante verificação do aprendizado; Em muitas escolas identificamos crianças,
d) aproveitamento de estudos concluídos jovens e adultos não muito estimulados pelo contato
com êxito; com os conteúdos oferecidos. Muitos não se sentem
e) obrigatoriedade de estudos de com o menor desejo de se manterem em tal espaço
recuperação, de preferência paralelos ao período que estimula a repetição e não se abre para a
letivo, para os casos de baixo rendimento escolar, a criação. Uma parte significativa do que é “ensinado”
serem disciplinados pelas instituições de ensino em fica pendurada externamente à corporeidade, como
seus regimentos; brincos de papel e fita adesiva, sem interpenetrar os
VI - o controle de freqü.ncia fica a cargo da sujeitos, e prestes a escorregar pela vala do
escola, conforme o disposto no seu regimento e nas esquecimento, sem que os fios conectores dos
normas do respectivo sistema de ensino, exigida a conhecimentos significativos sejam tecidos na
frequência mínima de setenta e cinco por cento do relação entre os sujeitos que estão convivendo
total de horas letivas para aprovação; naquele espaço-tempo, que deveria ser de
VII - cabe a cada instituição de ensino aprendizagens, e a sua significação coletiva.
expedir históricos escolares, declarações de Percebemos que os saberes da escola disciplinar
conclusão de série e diplomas ou certificados de estão ainda interagindo com a lógica dominante da
conclusão de cursos, com as especificações produção em série e se distanciam daqueles com os
cabíveis. quais contemporaneamente estamos lidando. A
leitura, a escrita, as operações matemáticas e
Observamos que não há qualquer demais conhecimentos científicos básicos para a
contradição entre a legislação e as propostas de vida na sociedade coetânea, em geral, são
organização da escola em ciclos. Identificamos por apresentados sem conexão com a cultura.
meio de conversas com profissionais de escolas Não estamos querendo apresentar ou achar
montessorianas e de outras linhas construtivistas culpados nem algozes, pois nós professores fomos
que a LDB de 1996 possibilitou que a lógica de formados nesta racionalidade e temos gravados em
organização do tempo e dos conhecimentos destas nosso corpo tal maneira de ser e de fazer no mundo.
escolas fossem contemplados. A maioria de nós repete o ritual que apresentamos
Contudo, ainda nos perguntamos: Por que em alguns parágrafos acima e justificamos a
dias letivos, ano letivo, bimestres/trimentres “dinâmica” de nossa sala de aula, devido à falta de
escolares? Existiriam outras possibilidades de tempo.
organizar o tempo escolar? Qual a relação entre o - “Temos muita matéria para dar e falta
tempo e o espaço? Quais são os espaços-tempo tempo”.
nos quais os sujeitos aprendem? Por exemplo, o De fato, a forma como os conteúdos vêm
tempo-espaço do recreio tem sido entendido como organizados nos livros didáticos não possibilita a
de aprendizagem? Os estudantes só aprendem relação com os vividos dos estudantes. A quantidade
quando o professor lhes ensina algo? O estudante de aulas que são ministradas pelos docentes da
tem sido levado a desenvolver seus mecanismos de Educação Básica no panorama contemporâneo
inteligência e de autonomia intelectual? O que os brasileiro também não possibilita que haja um
estudantes estão aprendendo nas novas mídias e envolvimento para a elaboração diferenciada. Os
uns com os outros? Quais os conteúdos que professores se sentem bastante solitários para

26
ARTIGO
mudar a “dinâmica” de suas aulas, pois são mesmas estão acontecendo. Moraes (1998, p.01)
cobrados pelos pais, pela direção da escola e até afirmou que "face ao movimento crítico que, em sua
mesmo pelos mecanismos de avaliação nacional, extensão e magnitude, tudo propõe desestruturar,
que os estudantes saibam estes e aqueles frente à desestabilização de todos os parâmetros
conteúdos em tanto tempo. É próprio e naturalizado teóricos, a explicação mais singela e ao alcance das
no trabalho docente que o conteúdo seja ensinado, mãos, quase natural, é a de que estamos em clima e
cobrado nas provas e que aqueles estudantes que em tempos de crise e, portanto, de mudança de
não souberem a lição sejam reprovados. O que paradigmas".
acontece com aqueles que são reprovados? Boaventura Santos (1991) corrobora com
Repetem o mesmo ritual no ano seguinte... e no esse pensamento afirmando que no centro das
seguinte... e abandonam a escola. Acreditam que transformações, especialmente as científicas, está o
não são bons para isso e não vêem o sentido de se conceito de tempo e que este é um conceito relativo,
manterem em uma escola que não possibilita/ assim como a própria medição do tempo é relativa.
estimula novos aprendizados! Chega a esta conclusão por um caminho pouco
Seria possível pensar e agir no tempo e no tradicional nas ciências sociais, pois vai embasar a
espaço escolar de outra forma? Será que estamos sua argumentação nos seguintes acontecimentos
prisioneiros de uma imagem-memória Moderna de científicos do século XX: na teoria da relatividade de
tempo, um tempo que se repete? Seremos Einstein; na mecânica quântica, no domínio da
devorados pela lógica do tempo de Cronos? Não micro-física, de Heisenberg e Bohr; no Teorema da
conseguiremos caminhar na escola dialogando com incompletude e nos Teoremas sobre a
o tempo que flui, o tempo de vida? impossibilidade de encontrar, dentro de um dado
sistema formal, a prova da sua consistência, de
O tempo como um conceito relativo Gödel; e, finalmente, nos avanços do conhecimento
nos domínios da microfísica, da química e da
Não podemos deixar de destacar aqui que biologia do final do século XX.
os “tempos pedagógicos” não são os mesmos que Os quatro acontecimentos estão
os “tempos políticos eleitorais” e que estes têm se interligados, mas é o primeiro deles – a Teoria da
apresentado também fortemente ligado a lógica Relatividade de Einstein – que vai produzir a tensão
Moderna. Tal perspectiva é um forte fator inicial de ruptura com a imagem Moderna de tempo.
interveniente nos processos de ensino e Einstein fez a distinção entre a simultaneidade de
aprendizagem nas escolas. Temos ciência de que o acontecimentos presentes no mesmo lugar e a
desenvolvimento de projetos político-pedagógicos simultaneidade de acontecimentos distantes. Ele se
encontra, muitas vezes, barreiras postas pelo coloca a seguinte pergunta: como o observador
calendário político-eleitoral. Geralmente, são estabelece a ordem temporal de acontecimentos no
necessários alguns anos para que a mudança de espaço? Ao tentar respondê-la, ele cai em um
habitus4, em especial ao que se refere às questões círculo vicioso, pois para determinar a
educacionais e que considerem a participação e a simultaneidade dos acontecimentos distantes é
dialogicidade necessárias e indispensáveis para a necessário conhecer a velocidade; mas para medir a
estruturação de um movimento instituinte. velocidade no espaço é necessário conhecer a
Contudo, aqueles que ocupam cargos políticos têm simultaneidade dos acontecimentos. Ele
a pressa do calendário eleitoral para apontar rompe com este círculo demonstrando que a
resultados e sobre essa questão, Chauí (1993) simultaneidade dos acontecimentos distantes não
sinaliza que: pode ser verificada, pode tão só ser definida, e é,
o tempo da política é o aqui e o agora. portanto, arbitrária. A teoria da relatividade nos
(...) Além disso, a ação política se realiza como tomada de forçou a mudar fundamentalmente os conceitos de
posição e decisão acerca de conflitos, demandas, tempo e espaço e, como nos afirma Hawking (1997),
interesses, privilégios e direitos, devendo realizar-se como "devemos aceitar que o tempo não é completamente
resposta à pluralidade de exigências sociais e econômicas isolado e independente do espaço, mas sim que eles
simultâneas (...) De todo modo, porém, a velocidade, a se combinam para formar um elemento chamado
presteza da resposta política e seu impacto simbólico são espaço-tempo", (p. 46).
fundamentais, e o seu sentido só aparecerá muito tempo
Os avanços dos conhecimentos nos
depois da ação realizada (p. 15).
domínios da microfísica, da química e da biologia
Não obstante tal constatação temos
também contribuíram muito para a ruptura com a
presente, até mesmo para aqueles que estão mais
imagem newtoniana de tempo. A crise conceitual
ligados às políticas eleitorais, que as transformações
avançou e trouxe mudanças nas ciências da vida e
sociais, científicas pelas quais estamos passando
da natureza, devido à experiências e vivências
nos últimos 100 anos têm deixado muitos perplexos.
concretas. No entanto, podemos afirmar que, desde
Outros, entretanto, sequer perceberam que as

27
ARTIGO Notas
1Essa categoria foi trabalhada por Dominick (2003) e
está relacionada ao conceito de imprinting que Morin
o século XIX, no campo crítico das chamadas desenvolveu e ao conceito de memória em Benjamin
ciências sociais têm sido produzidas teorias e ações (1985), que é processo: de um lado, é restauração,
que se opõem às “certezas” e “verdades absolutas” reconstituição; de outro, algo aberto, inacabado; a
que excluíam uma grande parte da população dos memória não é uma sucessão cronológica, a linha de
espaços políticos, científicos e educacionais. tempo pode ser quebrada e reorganizada. Nas
Muitas das teorias contemporâneas, em passagens a seguir buscamos deixar um pouco mais
diferentes campos do conhecimento, introduzem os clara a perspectiva por nós abordada. Há um imprinting
conceitos de historicidade e de processo, de cultural, cunhagem matricial que dá estrutura ao
liberdade, de auto-determinação e até de conformismo, e há uma normalização que o impõe. O
imprinting é um termo que Konrad Lorenz propôs para
consciência, que antes pertenciam apenas aos
traduzir a marca inapagável imposta pelas primeiras
humanos. Não obstante a tal construção científica, experiências do jovem animal (como o passarinho que,
no campo das políticas públicas e cotidianas ainda ao sair do ovo, faz como a mãe e vai atrás do primeiro
preservamos fortemente presentes aquelas ser vivo que passa ao seu alcance). Ora, há um
concepções que estruturaram a mentalidade e as imprinting cultural que marca os humanos, desde o
maneiras de fazer no mundo Moderno. É nascimento com o selo da cultura, primeiro familiar e
indispensável destacar que o mundo do trabalho depois escolar, e que prossegue na universidade ou no
contemporâneo é totalmente diferente daquele que exercício da profissão. Ao contrário do que
nos foi brilhantemente representado por Charles orgulhosamente pretendem os intelectuais e os sábios, o
Chaplin, no filme “Tempos Modernos”. Será que a conformismo cognitivo não é de modo nenhum um sinal
escola deve manter-se prisioneira da lógica de de subcultura que afecta principalmente as camadas
baixas da sociedade[...]. (Morin, 1992: 25) Benjamin
organização de seu tempo-espaço atrelada à
reafirmou a força do trabalho da memória: que a um só
quantidade de conteúdos programáticos, tempo destrói os nexos (na medida em que trabalha a
seqüenciadamente ofertados e cobrados aos partir de um conceito forte de presente) e (re)inscreve o
estudantes? passado no presente (Seligmann-Silva, 2003: 393).
Um tempo-espaço que tenha a possibilidade 2Consideremos a palavra resiliência a partir da origem
de retorno, de saltos, de rupturas e redesenhos do e etimológica. Do latim resiliens, significa saltar para
sobre o mundo precisa fazer parte da imagem- trás, voltar, ser impelido, recuar, encolher-se, romper.
memória da escola. Cremos que uma outra imagem- Pela origem inglesa, resilient remete à idéia de
memória venha a possibilitar uma desestruturação elasticidade e capacidade rápida de recuperação. Yunes
da hierarquia dos conhecimentos, ainda presente na (2001) refere que no dicionário da língua inglesa se
escola. encontram dois raciocínios para o termo: o primeiro se
Afinal, quais são os “ritmos” que as políticas refere à habilidade de voltar rapidamente para o seu
educacionais, como a dos Ciclos, trazem para os usual estado de saúde ou de espírito depois de passar
tempos escolares, para as rotinas e práticas dos por doenças, dificuldades etc.; a segunda definição é a
habilidade de uma substância retornar à sua forma
professores?
original quando a pressão é removida: flexibilidade. Esta
Os ciclos escolares mexem, bisbilhotam e última remete-nos ao conceito original de resiliência
estilhaçam as imagens-memórias do esquecimento, atribuída à física, que busca estudar até que ponto um
aquelas que nos fazem repetir maneiras que material sofre impacto e não se deforma. Nestas
questionamos, potencializando nossa ação política definições encontramos que o termo se aplica tanto a
para tocarmos o futuro do lado de cá, contribuindo, materiais quanto a pessoas (Pinheiro, 2004).
assim, para a geração de um tempoespaço radical 3Como teoria rival do Big Bang, persistiu por muito
de inclusão escolar, sócio-política e cultural. tempo a teoria do estado estacionário. Essa teoria se
De acordo com Fischer (2004, p. 38), “ciclos baseia no Princípio Cosmológico Perfeito, segundo o
são tempos de vida que pulsam dentro e fora do qual o universo é homogêneo, isotrópico e constante no
espaço escolar”. Complementando tal reflexão, Moll tempo. Esse modelo era bem-visto pelos físicos,
(2004, p. 105) afirma que: principalmente porque eliminava os problemas de ter
Trata-se de (des)esfacelar os tempos da havido uma origem no tempo. Esse princípio é
vida de nossos alunos, entendendo-os em seu continuum, incompatível com as observações que mostram que o
em suas dinâmicas como sujeitos “portadores” de todas as universo evolui com o tempo. (STEINER, 2006, p. 247).
4Este conceito vem sendo trabalhado nas ciências
possibilidades de aprendizagens e saberes. Trata-se de, a
partir dos processos de reflexão e ação instituídos há humanas a partir das elaborações de Bourdieu e de
muito em muitas escolas, avançar na qualificação do Elias. Aqui, seguindo os caminhos identificados por
espaço escolar como espaço de vida, como espaço de Malerba (2000), sobre o conceito em Elias, identificamos
conhecimentos e valores, como espaço no qual a vida o habitus como algo que vai sendo produzido a partir de
transita em sua complexidade e inteireza, como espaço no indivíduos interligados e interagentes, compondo
qual cada aluno e aluno, com razão e emoção, possa configurações cada vez mais complexas e interligadas
conhecer e operar com a música, com as ciências, com as quanto mais diferenciadas forem as funções no interior
artes cênicas, com as matemáticas, com a literatura... de uma sociedade (p. 214).

28
ARTIGO
onde cada um e todos em relação possam humanizar-se e DOMINICK, Rejany dos Santos. “Imagens - memórias
singularizar-se, entendendo o mundo e entendendo-se no vividas e compartilhadas na formação docente: os fios,
mundo. os cacos e a corporificação dos saberes.” Tese de
Para se tocar o futuro do lado de cá é Doutorado. Faculdade de Educação da UNICAMP.
indispensável, entre muitos outros aspectos, a Campinas, SP: [s.n.], 2003.
construção cotidiana da noção espaçotempo, visto FISCHER, Nilton Bueno. Tempos e Saberes - interações
que esta pode contribuir para a produção de nos ciclos da escola e da vida. In: Jaqueline Moll. (Org.).
rupturas com a linha “lógica” que une passado, Ciclos na escola, tempos na vida: criando
possibilidades. 1 ed. Porto Alegre: Artmed, 2004.
presente e futuro como um contínuo interminável de
HAWKING, Stephen W. Uma breve história do tempo:
repetições. Os conceitos de tempo e de espaço do big bang aos buracos negros. 28 ed. Rio de Janeiro:
precisam ganhar rasgos e fiapos, serem Rocco, 1997.
estilhaçados para se articularem de forma que a HESÍODO. Teogonia: a origem dos Deuses. 2.ed. São
escola se recrie em nossa memória como uma Paulo: Iluminuras, 1992.
possibilidade, e não como determinação. MALERBA, Jurandir. “Para uma teoria simbólica:
No presente agimos, muitas vezes, tanto por conexões entre Elias e Bourdieu”. In: CARDOSO, Ciro
meio do habitus quanto por meio de astúcias. Flamarion,
Quando estamos no dia-a-dia escolar ou produzindo _____(orgs.) Representações: contribuição a um debate
conhecimentos científicos não estamos livres dos transdisciplinar. Campinas: Papirus, 2000. p. 199-226.
esquemas incorporados em anos de treinamentos e MATURANA, Humberto, VARELA, Francisco. A árvore
do conhecimento: as bases biológicas do entendimento
de vivências culturais que nos fazem repetir aquilo
humano. Campinas: Editoral Psy II, 1995 .
que em alguns momentos questionamos. Contudo, MOLL, Jaqueline. Os tempos da vida nos tempos da
no espaçotempo do vivido também produzimos escola – em que direção caminha a mudança? IN:
linhas de fuga que rompem com o préestabelecido e, MOLL, Jaqueline e colaboradores. Ciclos na escola,
com astúcia, produzimos artes de fazer, deixando tempos na vida. Criando possibilidades. Porto Alegre:
fluir nossas subjetividades divergentes e recriando Art Med, 2004.
possibilidades. Neste momento provocamos em nós MORAES, Maria Célia Marcondes de. "Paradigmas e
e naqueles com os quais convivemos um potencial adesões: temas para pensar a teoria e a prática em
instituinte. educação". ANPEd 1998. Texto apresentado no GT de
Acreditamos que é na vivência concreta e na Currículo. 1998.
atividade reflexiva cotidiana e interativa que está a MORIN, Edgar. O método. Lisboa: Publicações Europa-
América, 1992. V. IV: As idéias: a sua natureza, vida,
possibilidade de delineamento do perfil de cada
habitat e organização.
escola, na qual sempre é possível manter a riqueza PINHEIRO, Débora Patrícia Nemer. A resiliência em
da multiplicidade. O múltiplo apresenta-se discussão. Psicol. estud., Maringá, v. 9, n.1, 2004.
heterogêneo, com possibilidade de conexões Disponível em: http://www.scielo.br/scielo.php?
ilimitáveis e está sempre sujeito a variações script=sci_arttext&pid=S1413-73722004000100009&lng
estratégicas, criadas e recriadas nas situações =&nrm=iso>. Acesso em: 15 de outubro de 2008.
vividas. Não fomos formados para lidar com tal RICOEUR, Paul et al. “Introdução”. In As culturas e o
perspectiva na vida profissional e cotidiana, mas é tempo. Petrópolis, Vozes; São Paulo, Ed. da USP: 1975.
indispensável que aprendamos para que possamos SANTORO, Fernando. “Considerações intemporais
aceitar a nós mesmos como potencial de mudança e acerca da aurora do pensamento.” Sofia: Revista de
o outro como legítimo outro, como nos afirmam filosofia, Vitória-ES, n.º. 1, p. 163-176, jul. 1995.
SANTOS, Boaventura de Souza. Um discurso sobre as
Maturana e Varela (1995).
ciências na transição para uma ciência pós moderna.
5.ed. Porto: Afrontamento, 1991.
Referências SELIGMANN-SILVA, Márcio. "Reflexões sobre a
memória, a história e o esquecimento". Em:
BENJAMIN, Walter. Magia e técnica, arte e política. SELIGMANN-SILVA, Márcio (org). História, memória e
Tradução de Sérgio Paulo Rouanet. São Paulo: literatura: o testemunho na era das catástrofes.
Brasiliense, 1985. Campinas: Unicamp, 2003.
BOURDIEU, Pierre. “A ilusão biográfica”. In: AMADO, STEINER, João E. A origem do universo. Revista
FERREIRA, Mariera de Moraes. Usos e abusos da história estudos avançados. 20 (58): 233-48, 2006. Disponível
oral. Rio de Janeiro: Fundação Getúlio Vargas, 1996. p. em http://www.iea.usp.br/iea/revista/coletaneas/
183-91. BRASIL. Lei nº 9.394, de 20 de dezembro de histfilociencia/index.html, consultado em 15 de outubro
1996. LDB. Lei de Diretrizes e Bases da Educação de 2008.
Nacional. Diário Oficial da República Federativa do Brasil. YUNES, M. A. M. A questão triplamente controvertida da
Brasília, DF, 23 de dezembro de 1996. resiliência em famílias de baixa renda. Tese de
CHAUÍ, Marilena. Vocação política e vocação científica da Doutorado Não-Publicada. Programa de Psicologia da
universidade. Educação Brasileira, vol. 15, nº 31, pp. Educação, Pontifícia Universidade Católica de São
11-26, 1993. Paulo. 2001.

29
PULSAÇÃO

30
ARTIGO
A brincadeira na leitura e a leitura na
brincadeira
Por Luciana de Araújo Ferreira, Neiva Veiga Souza1 e Rejany Dominick2

O projeto Brincando com a leitura para construir à medida que usamos as palavras para viajar pela
aprendizagem rendizagem desenvolveu-se em uma imaginação, pelo mundo da fantasia, no qual tudo
escola da rede municipal de Niterói/RJ, com um pode acontecer. Tudo é possível quando brincamos
grupo de referência do 1° ciclo. Trabalhamos a com as palavras e com elas construímos algo que
leitura por meio do lúdico, buscando transformar tal transmita nossas emoções, medos, frustrações. Elas
processo em uma vivência mais prazerosa e livre de podem se tornar nossas amigas, companheiras,
obrigações. Neste processo os discentes interagiram aliadas poderosas na construção do pensamento, do
conosco, entre si, com os jogos e com outras formas aprendizado e da reflexão sobre o mundo.
educativas lúdicas, instituindo-se leitores. Assim, neste texto pretendemos apresentar
Explorando suas potencialidades, o aprendizado se alguns fios de nossa trajetória junto a um grupo de
torna mais natural, interativo e significativo. referência de uma escola da rede municipal de
educação de Niterói. Nossa inserção junto ao grupo
The project named Brincando com a leitura para se deu por meio do projeto “As ʻartes de fazerʼ a
cons Brincando com a leitura para construir educação em ciclos”, que envolve ações de ensino,
aprendizagem truir aprendizagem (Playing with de extensão e de pesquisa.
reading to build learning) (Playing with reading to
build learning) is being eveloped with children in the Tecendo a nossa trajetória
1st scholar cycle, in a municipal school, at Niterói/RJ.
We have worked through the reading of the playful, Estamos, desde o ano de 2007, em uma
seeking transform this process into an experience escola municipal de Niterói / RJ desenvolvendo um
more pleasant and free of obligations. In this process projeto de pesquisa participante, no qual
the students interact with us, among themselves, trabalhamos a leitura de diversas linguagens, com
with games and other forms of educational dois grupos de referência1 do 1° ciclo. Neste grupo
recreational, setting up readers. Exploring their estão presentes crianças de 06 a 09 anos.
potencial, learning becomes more natural, interactive Nosso objetivo principal é o de dialogar com
and meaningful. os atores sociais das escolas do município de Niterói
acompanhando interativamente os processos de
Palavras-chave: Aprendizagem, Leitura, Lúdico transformação desta rede que, desde 1999, está
organizada em ciclos. Tal organização visa ordenar o
Poesia trabalho escolar a partir de uma lógica mais humana
é brincar com palavras de tempo/espaço, de currículo e de relações
como se brinca interpessoais e com os conhecimentos. Trata-se de
com bola, papagaio, pião. um conjunto de períodos letivos que se diferencia
Só que bola, papagaio, pião daquele anual, presente na lógica da escola seriada.
de tanto brincar se gastam. De acordo com a portaria 125/2008, da
As palavras não: Fundação Municipal de Educação de Niterói (FME),
quanto mais se brinca com elas a proposta pedagógica de ciclos é:
mais novas ficam.
Como a água do rio ...a forma de organização do currículo,
que é água sempre nova. do espaço e do tempo escolar, baseada nas
Como cada dia características biológicas e sócioculturais do
que é sempre um novo dia. desenvolvimento humano, engendrando a realização
Vamos brincar de poesia? de um trabalho pedagógico em que a idade, os
(José Paulo Paes) interesses comuns e os aspectos cognitivo e sócio-
afetivo dos alunos são os eixos articuladores do
Iniciamos este diálogo com você leitor por meio da processo de construção de valores, de
poesia de José Paulo Paes com a intenção de levá- conhecimentos e de práticas sociais (artigo 1 § 5).
lo a refletir sobre a leitura como uma brincadeira. É
isso mesmo! Ler pode ser uma grande brincadeira Partindo de nossas reflexões sobre o trabalho
de faz-deconta, de pega-pega ou de pique-esconde elaboramos uma proposta para dar continuidade, no

31
ARTIGO
ano de 2008, às nossas ações junto às crianças do predomina na prática diária da maioria das salas de
agrupamento que aqui chamamos de “GR1C”. aula nas quais a leitura é uma obrigação que não
Havíamos identificado algumas dificuldades propicia momentos de deleite, sendo transformada
no grupo, tais como: a forma como era vista a leitura em mais um recurso disciplinar pedagógico.
e o interesse dos alunos em relação à mesma e à Apresentamos à escola tal concepção, bem
escrita foram dois pontos estratégicos, visto que como a de que, em consonância com Paulo Freire
muitos não se interessavam pelas atividades nas (1997), acreditamos que a leitura deve ser um ato
quais tivessem que trabalhar com tais habilidades. O crítico e reflexivo, não podendo ser identificada
relacionamento interpessoal, principalmente nas simplesmente como a “decodificação” da palavra
atividades em que um precisaria ouvir o outro e escrita.
prestar atenção na fala do outro foi um Entendemos que a compreensão e a
aspecto que identificamos como ser necessário de significação de todo texto só acontecerá se houver
ser melhor trabalhado com o grupo. Havia, também, uma leitura entrelaçada com a percepção do
uma forte inibição de alguns frente ao restante do contexto ao qual o sujeito pertence.
grupo. Algumas vezes, percebemos certa Na interlocução com os profissionais da
desmotivação para a realização das atividades escola soubemos que em avaliação realizada por
propostas, e em outros momentos percebíamos que eles as crianças do “GR1C” foram identificadas
o nosso trabalho servia como uma “válvula de como estando na fase alfabético ortográfico,
escape”, pois neste espaço os estudantes não segundo as etapas de alfabetização de Emília
precisariam fazer “dever”. Ferreiro4. Sendo assim, nosso trabalho em 2008 não
Desta forma, queríamos agir sobre os pontos visava o ensino das primeiras letras, embora nossa
que identificávamos como problemáticos buscando intenção venha sendo a de superar a visão
contribuir para que os mesmos fossem superados hegemônica e as ações que levam o estudante à
por meios que contribuíssem para tornar a “decodificação”, na qual se percebe ou atribui à
aprendizagem mais atrativa, mais prazerosa. leitura um valor de simples processo de
Traçamos alguns caminhos e, memorização. Temos buscado caminhar por entre os
subseqüentemente, fomos à escola para escritos e os vividos, por um viés que visa
negociarmos o novo trabalho com a equipe de desenvolver a interação crítica, a reflexão e a
referência2, pois era indispensável que criatividade para viver e reinventar a vida e a escola.
apresentássemos os resultados do trabalho do ano Dialogamos com os conhecimentos prévios dos
anterior, socializando os conhecimentos que estudantes, dos professores e também com os
havíamos sistematizado. Queríamos, também, que o nossos que, por meio da leitura de mundo e da
trabalho em 2008 abordasse algo que interessasse palavra, vão, paulatinamente, transformando nossas
àquele corpo docente, numa perspectiva real de consciências ingênuas em consciências críticas.
pesquisa participante3. Buscávamos uma relação Após o encontro com os profissionais da
dialógica e participativa com as pessoas envolvidas escola, foi-nos possível traçar alguns pontos do
no processo de pesquisa. Queríamos que nosso caminho a ser percorrido ao longo do ano de 2008.
trabalho fosse desenvolvido junto com os sujeitos Identificamos que o trabalho com a leitura por meio
daquele espaço, visto que os mesmos têm um de jogos e de atividades lúdicas possibilitaria aos
conhecimento qualificado e diferente do nosso, discentes construírem uma relação de troca entre si
sendo indispensável que houvesse uma interação e uma aprendizagem prazerosa por meio de
colaborativa. Buscamos construir um processo diferentes caminhos de leituras. Assim,
mútuo de troca constante entre os sujeitos da Escola denominamos o novo projeto de Brin Brincando com
e os da Universidade, ou seja, entre todos os a leitura cando com a leitura para construir
envolvidos. aprendizagem para construir aprendizagem. Não se
No desenvolvimento de nosso trabalho tratou de uma proposta de letramento ou de
encontramos com Rubem Alves (2004). Este autor alfabetização em seu sentido mais tradicional. Foi
também busca uma educação na perspectiva de um trabalho no qual as leituras do mundo iriam se
possibilitar uma relação de prazer dos estudantes estruturando em diálogos com os interesses-
com a leitura. Ele afirma que se “daria por feliz se as desejos dos estudantes e com as dificuldades-
nossas escolas ensinassem uma única coisa: o potencialidades dos mesmos.
prazer de ler” (p.13). Este tem sido o Norte do nosso Acreditamos que a partir da interação com os
projeto na escola, pois não abrimos mão do trabalho jogos, os estudantes tendem a desenvolver e a
voltado para o prazer com a leitura e tal perspectiva aprimorar suas habilidades de leitura, visto que o
nos possibilitou propor um caminhar por entre ações brincar é prazeroso para a criança, criando um
que articulam a dimensão lúdica e a leitura. interesse pelo que está sendo feito.
Buscamos romper com a lógica que ainda A leitura não deve ser identificada pelas

32
ARTIGO
crianças como um fardo, ela deve ser identificada
como uma atividade que faz parte da vida tal como Buscando estender a compreensão de
correr, alimentar-se, jogar ou ver televisão. infância para além da Educação Infantil estamos
Precisamos construir uma resignificação social para desenvolvendo junto às crianças do Ensino
a linguagem escrita, pois esta não pode ser Fundamental atividades que caminham tanto no
identificada apenas como algo necessário, como um sentido de ressignificar o conceito de infância, como
instrumento de trabalho ou político, mas também o de brincadeira. Queremos identificar a construção
como mais um caminho para a busca do prazer. de conhecimento com a interação com o outro e com
Entendemos que quando a criança brinca se o prazer de experimentar novas possibilidades, sem
desenvolve de forma integral, aprende a dominar e a o medo de errar.
organizar o tempo-espaço, compreende e assimila Durante o jogo crianças e adultos simulam,
algumas normas sociais. O brincar, como afirma experimentam possibilidades e com isso
Vygostky (1998), favorece a construção das funções desenvolvem e ampliam seu potencial mental e suas
superiores da mente possibilitando que a criança relações sociais. Durante o brincar são articulados
produza os caminhos para a construção simbólica e os processos de abstração, de criação e de
para a estruturação de seus processos criadores. interação com os múltiplos eventos da realidade.
Contudo, no mundo Moderno o brincar foi Assim, procurando trilhar um caminho no qual
interpretado como algo dispensável e inútil. Foi o aprendizado e o prazer estivessem juntos,
identificado como um desperdício de tempo e de elaboramos e desenvolvemos atividades de leitura
falta de responsabilidade. Para a razão dominante por meio de jogos educativos e de brincadeiras
moderna, era preciso esquecer o tempo largo e visando à formação de pessoas potentes para ler e
improvisado do mundo pré-Moderno e construir interpretar o mundo. Acompanhando o pensamento
mecanismos para que as corporeidades das novas de Maluf (2007), compreendemos que
gerações se fossem marcadas pela razão produtiva
e disciplinar industrial. O tempo para a brincadeira Quando brincamos exercitamos nossas
foi, e continua sendo, encurtado. A escola como o potencialidades, provocamos o funcionamento do
espaço-tempo de formação dos novos corpos e pensamento, adquirimos conhecimento sem
mentes deveria ser o local para gravar nas estresse ou medo, desenvolvemos a sociabilidade,
memórias a nova lógica de tempo-espaço de cultivamos a sensibilidade, nos desenvolvemos
controle e, desde cedo, as crianças, especialmente intelectualmente, socialmente e emocionalmente (p.
as das classes populares, deveriam seguir a 21).
disciplina do trabalho fabril e aprender apenas o que
fosse útil e necessário para tornar-se produtiva e, Acreditamos que potencializar o domínio da
assim, inserir-se no mercado de trabalho. leitura por meio de jogos propicia aprendizagens
Hoje, apesar de inúmeros questionamentos a mais significativas, duradouras e prazerosas.
essa racionalidade, de reflexões sobre a importância Nosso reencontro com a Equipe Pedagógica
do brinquedo para a vida humana e, especialmente, da escola se deu posteriormente à pré-definição do
para a infância de nossa espécie, percebemos que o tema. O apresentamos e a proposta foi aceita pelo
próprio conceito de infância vai sendo encurtado nas grupo de professores, que também estavam
políticas públicas e em nossas práticas cotidianas. A buscando trabalhar com o prazer da leitura no ano
idéia de educação infantil, por exemplo, ficou como de 2008. Realizamos, a seguir, observações do
algo ligado às crianças de 0 a 5 anos onde é grupo e fizemos um debate seguido de uma eleição
permitido brincar. Será que os humanos de 06 a 12 com os alunos para sabermos sobre os seus
anos deixam de ser crianças? Será que devemos interesses. No processo eles definiram o que mais
parar de brincar depois deste período de nossas haviam gostado com relação ao nosso trabalho do
vidas? ano anterior, o que não gostaram e o que gostariam
Não acreditamos nisso. Identificamos que a que fosse desenvolvido no ano de 2008 como
brincadeira e o prazer que ela proporciona deve atividades do projeto. Priorizávamos a opinião das
integrar nossas vidas e também o cotidiano escolar. crianças e, em sintonia com desejo das
Aprender, buscar novos conhecimentos, criar e pesquisadoras, os estudantes escolheram a
recriar conscientemente o mundo deve ser um ato brincadeira como meio de trabalharmos as
de prazer. Assim, acreditamos que a escola deve ser dificuldades observadas anteriormente e de
um espaço prazeroso para professores e potencializarmos novas aprendizagens.
estudantes. Dever ser um espaço de políticas Os objetivos principais do projeto eram:
afetivas, como bem nos falou Paulo Freire. oportunizar aos alunos a aproximação com a leitura
por meio de jogos e brincadeiras a fim de estimular o
O desenvolvimento das atividades desejo pela mesma dentro e fora da escola; propiciar

33
ARTIGO
relações com as práticas sociais das linguagens prazeroso, pois os estudantes foram capazes de
escrita e oral, em suas diversas modalidades: interpretar a letra da música por meio de desenho,
imagética, sonora, signos, etc. Desejávamos, como ou seja, transpuseram a linguagem escrita expressa
pesquisadoras, perceber se por meio da interação na letra da música em linguagem pictórica,
entre leitura e jogos os alunos construiriam uma expressando uma outra forma de interpretação
relação entre prazer e aprendizado. Nosso trabalho textual.
estava voltado para oportunizar ao aluno: o gosto e Seguindo o caminho do trabalho com
o maior envolvimento com a arte em suas diversas diferentes linguagens e de experimentarmos uma
formas de expressão; enfatizar a utilização de regras mesma história contada e vista de diversas formas,
e, por meio destas, construir valores e princípios de exibimos o filme “Deu a louca na Chapeuzinho”7.
respeito ao outro como legítimo outro, como nos Esta foi uma oportunidadede interação com as
propõem Maturana e Varela (1995: 263)5. Enfim, crianças diferente das já vividas por nós em sala de
buscávamos melhorar os relacionamentos aula. Foi uma experiência singular! Vamos contar
interpessoal e coletivo visando-os como mediadores porque.
para o aprendizado significativo. No encontro seguinte ao da exibição do filme
A primeira atividade que dinamizamos com as lemos para eles a história da “Chapeuzinho
crianças foi um jogo que consistia na divisão do Vermelho” que estava escrita em um livro
grupo em dois subgrupos. Era um jogo com peças infantojuvenil. Neste, a versão era diferente daquela
grandes, denominadas de casas, que formavam um presente no filme. A partir destas duas versões da
caminho no chão, no qual o representante de cada história solicitamos aos estudantes que produzissem
grupo jogava um dado e andava o número de casas um outro texto sobre a “Chapeuzinho Vermelho” e
referente ao valor que havia saído na face do dado, que fizessem a ilustração do mesmo.
sendo eles mesmos os pinos. Na medida em que o Muitos ficaram presos à história que eles já
jogador avançava nas casas, o subgrupo teria que conheciam e que está, evidentemente, internalizada.
responder perguntas sobre os conteúdos escolares Outros desenvolveram plenamente a proposta da
desenvolvidos pela professora até aquele momento, atividade utilizando para tal a criatividade e a
chegando até o final do percurso. imaginação. Por exemplo: João Paulo adicionou
Antes de iniciarmos o jogo discutimos e vários elementos, criando uma nova história e
elegemos com eles as regras que orientariam a Marllon relatou em seu texto que a “Chapeuzinho” foi
brincadeira. Como tais regras foram criadas à praia. Leiam:
coletivamente, percebemos que o respeito a elas e a
lembrança sobre o que podia ou não podia passou a
ser uma responsabilidade de todos. Percebemos
que houve um respeito muito grande ao que havia
sido acordado e que os objetivos desta atividade,
que eram o de produzirmos, utilizarmos e
respeitarmos as regras elaboradas coletivamente foi
atingido.
A segunda atividade aconteceu mais ou
menos assim: distribuímos para as crianças frases
de uma música e cada uma leu, em voz alta, aquela
que recebeu. Eles descobriram que era a música
interpretada por Adriana Partimpim: “Fico assim sem
você”6. Em seguida, escreveram-na no quadro, na
ordem em que eles acreditavam ser a letra da
música. Após terem escrito toda a música, que eles
organizaram certinho, lemos e cantamos juntos.
Subseqüentemente solicitamos que as crianças
fizessem um desenho correspondendo à frase que
haviam recebido. Explicamos que montaríamos um
painel sobre a música. Este foi exposto na escola.
Pretendíamos com tal atividade demonstrar
para as crianças que a leitura pode ser realizada de
diferentes maneiras e que existem diferentes
gêneros textuais. O resultado desta atividade foi
muito interessante e

34
ARTIGO
A maioria dos estudantes, contudo, teve dificuldade
para fugir do texto oficial e se autorizar a incluir
elementos novos a história. Tal acontecimento nos
levou a refletir sobre o processo de reprodução que
vai sendo incorporado pelos estudantes devido às
atividades de repetição presentes, de forma
hegemônica, tanto nas escolas da educação básica
quanto na Universidade. Estas conduzem os
discentes a desenvolverem uma postura de
responder às perguntas repetindo o que está no Notas
texto e não se sentem autorizados a extrapolarem-
1De acordo com a portaria 125 da rede municipal de
no, reconstruindo-o e/ou desconstruindoo. Não nos
são, em geral, apresentadas perspectivas de educação de Niterói (2008): Entende-se por Grupo de
interação, intervenção e de reflexão sobre o texto Referência o conjunto de alunos organizado no início de
lido. Os textos são apresentados como verdade em cada Período Letivo, mediante processo de
si, a possibilidade de criação de histórias próprias, Agrupamento. Considera-se Agrupamento o processo
inicial de organização dos alunos nos Grupos de
de interpretações a partir da realidade de cada um
Referência. No Ensino Fundamental, o critério para
não é apresentada. Fica-se na repetição da voz do Agrupamento será predominantemente etário,
autor. Cremos que esta visão hegemônica seja um agrupando-se os alunos com idades contíguas, também
dos problemas que vem dificultando a conexão entre podendo ser considerados os critérios cognitivo e sócio-
leitura e prazer. afetivo, mediante parecer emitido pela Equipe de
Por fim, na última atividade do 1º semestre de Articulação Pedagógica e pela Equipe de Referência do
2008, distribuímos para os alunos e lemos com eles Ciclo (artigo 3 – grifo das autoras).
uma história em quadrinhos: “Os Kapos e suas 2Segundo a Portaria 125/2008 FME/Niterói, art. 13, a
aventuras iradas”8. Em seguida, propusemos que Equipe de Referência é composta pelos Professores do
eles produzissem histórias em quadrinho e Ciclo e por um Pedagogo, Supervisor Educacional ou
disponibilizamos uma folha com quadrinhos. Orientador Educacional da Unidade Escolar.
3Conceito abordado por Carlos Rodrigues Brandão
Priorizamos a imaginação e a criatividade dos
educandos para que eles escrevessem e (2003).
4A escola realizou, no ano de 2007 e em 2008, uma
desenhassem histórias. Contudo, houve um pouco
de resistência com relação ao fato de se criar algo. avaliação dos grupos de referência com base nas
A proposta de escrever uma história com quadrinhos etapas de alfabetização de Emília Ferreiro para que
também não foi muito bem recebida, mas, por fim, fossem desenvolvidas as atividades de reagrupamento
eles caminharam. A maioria dos alunos copiou as dos estudantes.
5A aceitação do outro como legítimo outro é descrita
imagens da revista ou usou os seus personagens
reproduzindo elementos da história proposta. pelos autores como a aceitação de um outro como um
Contudo, nos chamou atenção a produção de Ana igual na diferença, aceitando-o ao nosso lado na
convivência. Eles afirmam ainda que tudo o que limita a
Cibele, que optou por abordar a Festa Junina. Vejam
aceitação do outro – seja a competição, a posse da
vocês mesmos o trabalho dela. verdade ou a certeza ideológica – destrói ou restringe a
Ana Cibele construiu uma história sobre a ocorrência do fenômeno social e, portanto, também o
Festa Junina, um tema que era recorrente na época. humano, porque destrói o processo biológico que o gera.
Acreditamos que nossos objetivos com esta aluna Destrói a espécie, a cultura humana. (Maturana e Varela,
foram atingidos, visto que, ela conseguiu se deixar 1995, p. 263)
guiar pela sua imaginação, abrindo as portas para a 6Abdullah & Cacá Moraes. Fico assim sem você.
criação e para o diálogo com sua realidade. Ana Interpretada por Adriana Calcanhoto. Álbum Adriana
expressou, naquele momento, a capacidade de Partimpim, vol. 1, faixa 4. Gravadora BMG, 2004.
romper com a lógica da repetição e ressignificou a 7Filme: Deu a Louca na Chapeuzinho. Direção: Cory
escrita, trazendo para sua produção a sua própria Edwards, Todd Edwards, Tony Leech. Produção:
experiência. Acreditamos que todas as crianças Maurice Kanbar, David Lovegren, Sue Bea Montgomery,
sejam capazes desta ressignificação, mas ainda não Preston Stutzman. Distribuidora: Europa Filmes
tínhamos muita certeza sobre os caminhos para Hoodwinked, EUA, 2005.
potencializar tal ruptura. 8Essa história em quadrinhos foi distribuída
Ao final do primeiro semestre não gratuitamente por um fabricante de bebidas e foi
conseguimos sistematizar o nosso trabalho com a considerada como publicidade abusiva pelo Instituto
professora e a equipe pedagógica da escola, Alana. A revista chama-se Os Kapos e suas aventuras
contudo observamos que teríamos que priorizar o iradas. Texto: Ana Paula Perovano e Lorena Vicini.
trabalho coletivo, ou seja, realizar, principalmente, Roteiro: Megatério. Ilustrações: Cor e imagem. Editora
Globo. 2008.

35
ARTIGO
atividades em grupos, visto que a inibição de muitos
alunos persistia. Acreditávamos que as atividades de
grupos possibilitariam um melhor desenvolvimento
das potencialidades. Percebemos também, que as
atividades de jogos e brincadeiras solicitadas pelas
crianças não estavam presentes da forma como eles
queriam, pois os mesmos nos lembravam de que
queriam jogos constantemente.
O que e como foi o desenvolvimento deste
trabalho no segundo semestre de 2008 ficará para
um próximo artigo.

Concluímos que...

Consideramos este projeto um grande passo


para compreendermos um pouco mais sobre as
dificuldades e potencialidades presentes no
cotidiano da sala de aula. Avaliamos que a leitura e
a produção textual devam ser trabalhadas para além
da obrigação e dever dos alunos, estas devem ser
apresentados aos estudantes como um meio
prazeroso para conhecer e “viajar” pelos diferentes
saberes que estão disponíveis no mundo. A leitura e
a escrita são instrumentos de expressão e de
criatividade do homem e este aspecto não pode ser
esquecido em nome do pragmatismo e do uso
instrumental dos mesmos. A leitura e a escrita
fazem parte da vida e podem ser ressignificados na
escola participando do espaço das brincadeiras, do
faz de conta, dos jogos e dos momentos de prazer e
de criação.
Consideramos que o desenvolvimento deste
projeto possibilitou aprendizagens significativas para
todos os envolvidos, com valor inestimável para a
nossa formação docente e para a reflexão sobre a
sala de aula como espaço de prazer e de
aprendizados. À medida que experimentamos as Referências
possibilidades e dificuldades de aprendizagem dos
alunos e buscamos caminhos para que eles ALVES, Rubem. Ao Professor, com Meu Carinho.
construíssem conhecimentos nós também Campinas, SP: Verus, 2004.
aprendíamos. Percebemos na ação que na profissão BRANDÃO, Carlos Rodrigues. A pergunta a várias
docente é possível aprender sempre, é uma prática mãos: a experiência da pesquisa no trabalho do
educador. . . . São Paulo: Cortez, 2003.
inacabada, conforme defende Paulo Freire (1996).
FME – Fundação Municipal de Educação de Niterói.
Somos seres em processo contínuo e infindável de Portarias 125 e 132. 2008.
conhecimento, somos, portanto, seres inacabados www.niteroi.rj.gov.br Acessado em 13 de junho de 2008.
em formação. FREIRE, Paulo. A importância do ato de ler em três
artigos que se completam. 33. ed. São Paulo: Cortez,
1997.
_____Pedagogia da Autonomia: saberes necessários à
prática educativa. São Paulo: Paz e Terra, 1996.
MALUF, Angela Cristina Munhoz. Brincar: prazer e
aprendizado. 5ª ed. Petrópolis: Vozes, 2007.
MATURANA, Humberto, VARELA, Francisco. A árvore
do conhecimento: as bases biológicas do entendimento
humano. Campinas: Editoral Psy II, 1995.
VYGOSTSKY, L. S. A formação social da mente: o
desenvolvimento dos processos psicológicos superiores.
6. ed. São Paulo: Martins Fontes, 1998.

36
ARTIGO
Histórias e Memórias de Professoras
Por Inês Ferreira de Souza Bragança1

RESUMO: são elas que nos impulsionam para a busca de


O presente texto busca a análise da importância da caminhos. Caminhos que, neste texto, apontam para
memória na tessitura da formação docente e na os movimentos formativos e para a presença da
constituição dos modos de “ser e estar” na profissão. memória nesse processo. Nóvoa (1995, 1992a,
A reflexão teórica ancorada em Walter Benjamin se 1992b) traz grande contribuição a esse debate, pois
articula à análise de fragmentos da memória de com ele vemos os modos de “ser e estar na
professoras e nos ajudam a levantar pistas sobre a profissão”, como influência de um complexo conjunto
temática proposta. A leitura das narrativas traz a de fatores, e tal complexidade não se cristaliza em
centralidade da produção de múltiplos sentidos; um ponto ideal, mas está sempre em movimento de
cada texto narrativo apresenta-se não como um “vir-a-ser”.
“símbolo”, mas sim como uma “alegoria”, já que é A vivência na escola básica como aluna e
aberto a diferentes interpretações. professora, os encontros com professores/
professoras e o estudo da pesquisa educacional
PALAVRAS-CHAVE: MEMÓRIA – HISTÓRIA DE sinalizam que a atuação docente é constituída de
VIDA - FORMAÇÃO DOCENTE múltiplos fios, onde se encontram a formação
acadêmica institucional, a história familiar e pessoal /
SUMMARY: de vida, opções e trajetórias religiosas, a memória
This text searches for bringing the analysis of the escolar e tantas outras dimensões que vão tecendo
memory influence on the process of teaching a particularidade do ofício docente materializado em
knowledge production and on the construction of the cada professor/professora. A complexidade desses
“to be in the profession” and “to be the profession” fatores, juntamente com a experiência docente
ways. The theoretical reflection is articulated to the configura-se de diferentes modos nas várias etapas
teachers´ memory fragments and helps us to do desenvolvimento profissional e se concretiza na
compose an analysis chart on the thematic prática cotidiana da sala de aula.
proposed. The reading of the above mentioned A memória e a narração integram esse
narratives brings the centrality of the multiple senses processo como possibilidade de romper com a
production. Each narrative text is presented not as a linearidade do cotidiano, como interrupção de um
“symbol”, but yet as an “allegory”, once different tempo “cronológico” e “vazio” e resgate da
interpretations are possible. multiplicidade do tempo e de experiências plenas
(BENJAMIN, 1993). O sentido da experiência plena
KEY-WORDS: MEMORY – LIVE HISTORY - é definido pela natureza coletiva de sua construção
TEACHING EDUCATION e a narração como partilha e reconstrução dessas
experiências. A formação vai conjugando as
1- A memória e os modos de ser e estar na múltiplas instâncias de produção dos saberes
profissão docentes e possibilitando entrelaçar as experiências
do passado e do presente, vislumbrando a
O presente texto busca analisar a construção de projetos de futuro.
importância da memória na tessitura da formação O presente trabalho busca, assim, a
docente e na constituição dos modos de “ser e estar” centralidade da discussão da memória e da narração
na profissão. Quais os processos constituem a na formação de professores. Em contraposição à
formação docente como movimento que se dá ao racionalidade técnica, procura afirmar a constituição
longo da vida? De que forma a memória integra da docência como um movimento que se dá ao
esses processos? Qual o sentido da rememoração longo da vida e, nesse sentido, precisa incorporar
no processo permanente de formação, de uma multiplicidade de experiências pessoais,
construção de saberes, de reconstrução dos projetos acadêmicas e profissionais.
de futuro pessoais e coletivos sobre a vida e a
profissão? O trabalho com as histórias de vida em 2- Um olhar sobre o passado: relatos de
formação de professores/as pode contribuir na professoras do Ensino Fundamental
busca de uma racionalidade mais humana, sensível
e partilhada? Registramos, aqui, fragmentos de textos que nos
As questões são certamente muito maiores apresentam lampejos da memória docente. O
do que nossas possibilidades de respondê-las, mas material pesquisado é constituído de memoriais

37
ARTIGO
produzidos por alunas2 do Curso de Pedagogia, da se apropria do passado “refazendo”, ressignificando.
Faculdade de Formação de Professores da Tal movimento não significa, contudo, jogar no “fogo
Universidade do Estado do Rio de Janeiro, que são crematório” as experiências anteriores, mas a
professoras dos anos iniciais do Ensino possibilidade de “re-construir”, com o olhar de hoje,
Fundamental. Percebemos, por meio da leitura dos as experiências anteriores. Essa reconstrução não é
relatos, que as alunas-professoras trazem de sua possível ao “homo clausus”, ao indivíduo isolado,
memória, múltiplas imagens da prática pedagógica. mas afirma-se como conquista coletiva. (ELIAS,
E são as possibilidades que afloram da memória 1994, p. 9-20, 214-251 e BRAGANÇA, 1998, p.45)
escolar, juntamente com a formação acadêmica e as
experiências docentes cotidianas que vão traduzindo Neste colégio é que realmente me tornei
o processo identitário docente. professora, pois aprendi muito com os coordenadores e
Destacamos, assim, fragmentos dos textos até mesmo pela minha própria busca, uma vez que o
das alunasprofessoras, articulando esses colégio era bastante exigente. Isso foi muito bom... (Maria)
fragmentos a indícios que sinalizam para o
movimento de construção do conhecimento docente. No caso de Maria, a presença de
coordenadores com quem pôde partilhar foi
O período que estava no 2º grau foi inquietante, essencial ao processo de construção do
pois buscava resposta para algumas perguntas: Como conhecimento. Processo que se afirma de forma
ensinar? Que tipo de educadora seria? Como trabalhar plena pela possibilidade de intercâmbio e interação
para mudar a situação na educação? Não encontrei estas entre o conjunto de professores/professoras, alunos/
respostas nos livros ou coleções pedagógicas, mas sim na alunas. Podemos, assim, sinalizar que os “modos de
minha própria reflexão com a realidade do cotidiano ser e estar” são construídos por uma rede de
escolar. (Izabela) relações entre os sujeitos pedagógicos.

A memória do processo de formação leva a ...Com essa base puramente tradicional comecei
aluna a um conjunto de questões que remetem ao a dar aula. E comecei a reproduzir tudo que tinha sido
processo de identificação com a docência e com a ensinado. E as minhas aulas eram expositivas, os meus
possibilidade de definir sua identidade profissional: alunos não podiam conversar, tinham que sentar um atrás
“Como ensinar? Que tipo de educadora seria?”. O do outro. Só que depois, conversando com alguns
desejo de querer definir, previamente, a partir dos professores, lendo alguns livros sobre a tendência
construtivista, mudei a minha forma de dar aula. (Ana)
referenciais teóricos da formação acadêmica, o
futuro perfil profissional. Mas, efetivamente, a
A reflexão sobre a memória ajuda-nos a
professora constata que as respostas que buscava
perceber que os processos de produção do saber
não viriam dos livros, mas da reflexão sobre a
docente não se desprendem da “base”, retomando,
prática. As respostas encontradas por Izabela foram
com essa expressão, a fala de Ana. Esta “base”
certamente provisórias já que o processo identitário
aponta para um conjunto de saberes produzidos
é dinâmico e se afirma na incerteza. Os modos de
pela professora, saberes que foram articulando
“ser e estar” na profissão vão se constituindo e
experiências vindas de várias dimensões da vida,
dando resposta a cada desafio posto na trajetória
experiências essencialmente coletivas. E é esta
profissional. Nesse sentido encontramos as
base que a professora percebe como mobilizadora
formulações de Fátima.
de sua práxis educativa.
Sua narrativa vai se desenrolando e parece
Comecei a lecionar em uma escola
pública na qual estava sendo implantado o sistema de estabelecer um tom épico, até que a “censura”
ʻciclosʼ foi tudo muito confuso já que nós não conhecíamos interrompe a linearidade e sinaliza a possibilidade do
bem esta proposta. Relacionando minha vida de estudante “novo”: “mudei minha forma de dar aula”. Esta
com a minha vida profissional, comecei a buscar novos expressão parece querer estabelecer um corte
caminhos, desfazendo tudo, para reconstruir. (Fátima) brusco entre a “base” anteriormente citada e as
novas experiências que vêm por meio da leitura, da
A fala de Fátima sinaliza um movimento que formação acadêmica. Ela cita ainda a “tendência
caracteriza o ofício docente: a busca de caminhos. construtivista” como impulso para esta nova visão e
Um desafio foi colocado e, a partir dele, a prática educativa que procura instaurar. Como se dá
necessidade de articular saberes construídos em a apropriação, pelas professoras, de novos saberes
diferentes instâncias, especialmente na formação e práticas? Será que essa apropriação se efetiva por
acadêmica institucional e no cotidiano da escola. A meio de cortes e rupturas? Trazendo a discussão
professora afirma a necessidade de reconstruir. A tecida sobre a memória, somos levados a refletir que
palavra reconstruir indica um processo onde existe as novas formulações não se desprendem da
uma longa construção, assim o momento presente “base”, ou seja, da história de vida construída por

38
ARTIGO
cada professora e, assim, o novo já nasce velho, com estes rótulos e as crianças liam o que conheciam.
porque entranhado das experiências anteriores. Fizemos também um canto de leitura, onde colocamos os
livros de histórias que as próprias crianças levavam e
Durante minha passagem pelo Instituto “X”, pude alguns que eu mesma tinha. Dedicávamos alguns minutos
perceber que se tratava de um ambiente escolar ao manuseio desses livros e as crianças comentavam
tradicional, extremamente conservador, magistrocêntrico, sobre os mesmos e criavam suas próprias histórias.
onde os professores faziam questão de estar enquadrados (Maria)
a este padrão. Somente uma professora me fez vibrar e
sentir alegria em ir à escola todos os dias; através dela Em uma situação de impasse a professora
que surgiu em mim o desejo de ser professora. Eu sempre procura um sentido para sua ação, respostas para
dizia a ela que gostaria de ser uma ʻtiaʼ tão legal como ela caminhar. Observamos que o sentido foi sendo
era pra gente. Lembro-me dela com muitas saudades, pois produzido pela professora, por meio de experiências
com seu carisma e sua autenticidade, conseguia ʻfugirʼ que vivenciou com seus alunos, de ações que foi
daquele esquema melancólico, ameaçador e assustador e buscando implementar no cotidiano da sala de aula.
nos transformava em seres críticos e pensantes, autores
Encontramos, assim, uma reflexão sobre a
da nossa própria aprendizagem. (Priscila)
vida de professoras, mulheres que vão, ao longo dos
anos, produzindo a vida pessoal e profissional.
A busca pelo retorno à “origem”, por sua
Como Maria, vão construindo o cotidiano, “o
identificação com o magistério leva Priscila ao
concreto, o aqui e agora, com os materiais que
encontro com a memória de práticas escolares
dispõem para fazer a prática, mas também com os
conservadoras. Mas a narrativa de tom nostálgico dá
projetos e sonhos”. (BRAGANÇA, 1998, p.45)
espaço à lembrança de uma professora que, por sua
prática diferenciada, foi decisiva na aproximação de
3- Interrupção alegórica: produção de sentidos
sua aluna com a profissão. Esse encontro com a
A leitura das narrativas nos permite buscar
profissão é mediatizado pela memória de antigas
reflexões que articulam memória, narração e
experiências escolares. Experiências que trazem
formação docente. São histórias e memórias dos
múltiplas imagens da escola: o
processos de formação, de trajetórias pessoais e
conservadorismo se antagoniza com uma prática
profissionais que se entrelaçam, sinalizando
que produz alegria no processo de aprender.
imagens da docência em construção. Os lampejos
das proposições benjaminianas nos ajudam a
Agradeço muito a oportunidade que tive de
trabalhar com as turmas de CA. Mesmo sem ter pensar sobre os caminhos da formação docente
conhecimento de nenhum método, sem ajuda da como trama que se dá ao longo da vida.
coordenação pedagógica, que também nada entendia de Ressaltamos, inicialmente, algumas
alfabetização, iniciei com a minha turma o método de reflexões que nos ajudam na leitura dos registros
silabação. das professoras. A síntese a seguir tem como
referência a obra “Magia e Técnica, Arte e
Comecei, então, a pesquisar. Solicitei aos alunos Política” (BENJAMIN, 1993) e “História e Narração
que levassem para a sala de aula rótulos dos produtos em Walter Benjamin” (GAGNEBIN, 1994).
que as mães utilizavam em casa. Organizamos cartazes

39
ARTIGO
Cada texto narrativo apresenta-se não como
um símbolo, mas sim como uma alegoria. A alegoria
ressalta a deficiência da linguagem em que o sentido
nunca é alcançado. O símbolo é; a alegoria significa.
Temos, nesse conceito, a centralidade da pluralidade
dos sentidos para Benjamin e o processo coletivo de
sua produção. A alegoria possibilita uma
multiplicidade de significados, a interpretação
alegórica é uma produção abundante de sentido, a
partir da ausência de um sentido último. (TODOROV,
apud GAGNEBIN, 1994, p. 41)
O texto não é símbolo nem mesmo para
quem o escreveu, ou seja, o sentido da experiência
narrada não é único para o narrador como também
não o é para o ouvinte. Este, ao ler, lê com o sentido
de suas próprias experiências, com o seu próprio
olhar, dando, portanto, novos e múltiplos
significados. Assim, os comentários de cada texto se
colocam como uma dentre outras possibilidades de
sentido.
Os textos (auto)biográficos trazem a
perspectiva da construção coletiva do saber
docente, as experiências instituintes da formação
não se afirmam de forma individual, mas, ao
contrário, como essencialmente coletivas. Ao fazer o
relato de sua infância em Berlim, Walter Benjamin
traz a tensão de uma memória individual produzida
no coletivo e é assim que aponta para um conjunto
de mediações sociais, políticas, para os movimentos
da própria cidade. A memória docente é prenhe
dessas relações e pensar na forma como “estamos
sendo” professores/as sinaliza a necessidade de Notas
trazer a intensidade desses movimentos. Maurice
Halbwachs estudou a dimensão coletiva da memória 1Doutoranda da Universidade de Évora, Portugal,
e afirma: “um homem, para evocar seu próprio Mestre em Educação e Pedagoga pela Universidade
passado, tem frequentemente necessidade de fazer Federal Fluminense, Professora da Faculdade de
apelo às lembranças dos outros. Ele se reporta aos Formação de Professores da Universidade do Estado do
pontos de referência que existem fora dele, e que Rio de Janeiro (FFP/UERJ) e do Curso de Pedagogia da
são fixados pela sociedade” (HALBWACHS, 1990, p. Universidade Estácio de Sá. inesbraganca@uol.com.br.
54). 2Agradeço às alunas que autorizaram a publicação de
As narrativas estudadas, por meio dos fragmentos de seus memoriais.
memoriais das professoras, indicam a marca da
linearidade quanto ao desenrolar cronológico dos
acontecimentos, o que sinaliza a concepção
Referências
recorrente de história. Contudo, a força da
BENJAMIN, W. Magia e Técnica, Arte e Política. São
temporalidade múltipla se manifesta em movimentos Paulo: Brasiliense, 1993 .
de “censura” e de volta à “origem”, acontecimentos BRAGANÇA, Inês F. S. Os sapatinhos vermelhos.
que destroem a continuidade e afloram uma Espaços da Escola, ano 4, nº 28, p. 43-46. 1998.
experiência com o presente. O memorial possibilita o ELIAS, Norbert. O Processo Civilizador. Rio de Janeiro:
resgate de experiências esquecidas e que têm Jorge Zahar Ed., vol.2, 1994.
importância na significação do presente. Em Walter GAGNEBIN, Jeanne Marie. História e Narração em
Benjamin, a noção de origem não sinaliza a recusa Walter Benjamin. São Paulo: Perspectiva, 1994.
da modernidade, exigência de retorno a um estado HALBWACHS, Maurice. A memória coletiva. São Paulo:
perdido. Esta noção deve servir de base a uma Vértice Editora, 1990.
historiografia regida por uma outra temporalidade NÓVOA, António (Ed.). Os professores e sua formação.
Lisboa: Publicações Dom Quixote, 1992a.
que não a da causalidade linear, exterior ao evento.
________ (Ed.). Vidas de professores. Portugal: Porto
É a possibilidade do salto que pára o tempo infinito a Editora, 1992b.

40
ARTIGO
fim de permitir ao passado esquecido ressurgir de
novo e ser retomado e resgatado (GAGNEBIN,
1994, p.12).
A censura se afirma como “princípio de
interrupção do discurso inerente ao discurso mesmo,
a censura inscreve no coração da linguagem seu
fundamento verdadeiro pela própria supressão
desta: ali também podem como que retomar fôlego e
ressurgir”. Vemos assim, que, em Benjamin, este
conceito não tem um caráter negativo, constitui uma
fratura, falha essencial no discurso de onde pode
emergir outra história ou verdade. A idéia de
interrupção que marca o conceito de censura tem a
função de criticar uma relação trivial da concepção
de história, onde está presente a causalidade
determinística, a interrupção da narração pode
provocar um significado inédito. A censura provoca
uma ruptura no desenvolvimento falsamente “épico”
da narrativa. Ela destrói a continuidade que se erige
em totalidade histórica universal e salva o
surgimento do sentimento na intensidade do
presente (ibid., p. 118).
A narração das histórias de vida vem como
movimento propriamente humano de contar histórias
e ressignificar experiências do passado que vão se
desdobrando em projetos de futuro. No caso da
formação docente, ao narrar o passado vemos surgir
uma versão sobre os encontros com a profissão e
com as imagens da docência entranhadas no
imaginário coletivo e individual. E as narrativas,
porque sempre socialmente tecidas, vão dando tom
e sentido aos múltiplos fios da práxis docente.
Encontramos, nos relatos (auto)biográficos, a
formação como movimento produzido na incerteza,
incerteza que possibilita a abertura para os novos e
cotidianos desafios da prática docente.

41
ARTIGO
Uma prática pedagógica instituinte:
a sala de xadrez
Por Fernanda Galvão, Nathália Monteiro e Vanessa Barcellos1

RESUMO: conversas e entrevistas. É uma prática aberta,


O presente artigo traz o relato de uma experiência coletiva, que foge da unilateralidade das relações
vivida no contexto do Estágio Supervisionado III, do instituídas na escola. Todos ali, na sala de xadrez,
Curso de Pedagogia, da FFP/UERJ. O objetivo é constroem juntos o espaço/tempo da aula, alunos e
apresentar a experiência da “sala de xadrez” professores, numa relação dialógica, lutando juntos,
desenvolvida no Instituto de Educação Clélia Nanci a exemplo da conquista do espaço físico que têm
(IECN), no Município de São Gonçalo, destacando hoje, processo marcado por dificuldades e conflitos.
suas possibilidades e sentidos instituintes. O projeto tem como título “Esporte,
PALAVRAS-CHAVE: experiência instituinte – prática conscientização, cidadania e inclusão” e é conhecido
docente – autonomia. pelos alunos como “sala de xadrez”. Algumas
questões mobilizaram o grupo no desenvolvimento
Introdução da pesquisa, tais como: a relação entre professor e
aluno, entre escola e o projeto, a concepção de
O presente artigo traz o relato de uma aprendizagem de alunos e do professor, as
experiência vivida no contexto do Estágio dificuldades encontradas pelo professor para colocar
Supervisionado III, do Curso de Pedagogia, da FFP/ o projeto em prática e as suas estratégias para
UERJ. O referido Estágio focaliza a Formação de superá-las. Buscamos, portanto, compreender estas
Professores e foi realizado no Instituto de Educação e outras questões por meio de observação do
Clélia Nanci (IECN), visando à observação dos cotidiano da sala de xadrez, confrontando com
espaços e da dinâmica das aulas, o conversas e encontros formais e informais com o
desenvolvimento de oficinas pedagógicas com os professor e com os alunos e, sobretudo, com as
alunos, bem como a participação na pesquisa reflexões pedagógicas que se referem às
“Instituto de Educação Clélia Nanci: lugar de possibilidades de invenção de uma outra escola.
memórias”2. O envolvimento com a pesquisa Partimos da convicção de que o processo de
possibilitou a cada grupo de alunos/as levantar aprendizagem ocorre em diferentes contextos e a
questões e desenvolver análises de temáticas interação entre os sujeitos propicia novas
definidas por cada um deles. aprendizagens. Assim, a sala de xadrez é um
Localizado no município de São Gonçalo, espaço escolar diferenciado de construção de
região metropolitana do Rio de Janeiro, o IECN tem, conhecimento que se contrapõe ao conjunto de
atualmente, mais de três mil alunos, cursando entre práticas institucionalizadas tão marcadas pelo
a Educação Infantil e o Ensino Médio. Nesse controle sobre os indivíduos, pela vigilância, pelo
tradicional espaço de formação de professores uma silêncio. Por isso essa prática se colocou para nós
prática se diferencia, uma prática, ainda, não- como um importante espaço de pesquisa e
institucionalizada no interior de um sistema de formação.
ensino estadual, elaborada e coordenada por um
professor de Educação Física. Um projeto em Conhecendo a sala de xadrez
processo: a sala de xadrez. Foi esta sala que
chamou a atenção de nosso grupo, quando, Como já mencionamos, na primeira visita ao
acompanhados pela professora de Estágio e por Instituto de Educação Clélia Nanci nos deparamos
nossa turma, visitamos a escola. Optamos, então, com a sala de xadrez. Neste espaço a ordem do
por permear a experiência do Estágio pelo silêncio é quebrada pela liberdade de expressão, a
acompanhamento da prática educativa que se dá arbitrariedade do professor cede lugar à construção
nesta “sala de aula”. coletiva entre ele e os alunos.
O objetivo deste trabalho é, portanto, No dia em que conhecemos o espaço,
apresentar esta experiência, bem como seu sentido ouvimos uma breve apresentação do projeto pelo
instituinte. O que seria a prática instituinte? Segundo professor Ubiracy Martins Figueiredo. O projeto foi
Bragança (2006), a prática que questiona o que está criado por ele e há dois anos utiliza o local onde
estabelecido, uma forma de afirmar o sentido e a funcionava uma cantina. O ambiente é bem
potência de estar na profissão docente, o que convidativo já que está localizado em frente à
expressa as palavras do professor, em nossas quadra de Educação Física. Isto favorece as

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ARTIGO
atividades que são realizadas como jogos de dama, centrada em experiências estimuladoras da decisão
xadrez, ping pong, jogos de computadores, corda, e da responsabilidade, vale dizer, em experiências
futebol, queimado, permitindo integrar os alunos revigorantes de liberdade. Enquanto nós educadores
participantes. acharmos que podemos pensar pelo aluno e
Quem pode participar? Todos os alunos que respondê-lo sempre qual é a melhor forma de agir e
quiserem. Independente de serem alunos das estar no mundo não estaremos possibilitando que
turmas de Educação Física ou não. O professor tem eles construam e formulem suas próprias estratégias
os horários específicos em que fica responsável de superação das dificuldades. É importante
pelas turmas, como todos os professores, mas a lembrar, aqui, outra
sala não pertence a uma turma específica. É um referência freireana: "A liberdade sem limites é tão
entra e sai o tempo todo e foi assim que percebemos negada quanto a liberdade asfixiada ou castrada".
sua dinâmica: o aluno vai se quiser, joga, lê um livro, Percebemos, na prática observada, a liberdade
bate papo, assiste os outros jogando e pode sair consciente, em que os alunos são desafiados,
quando quiser. estimulados a pensar sobre seus atos, são
O professor se formou em Educação Física, chamados à responsabilidade de suas atitudes. Uma
justamente porque acreditava ser este um caminho liberdade que possibilita a autoridade sem
pelo qual poderia exercer a prática educativa em que autoritarismo.
acreditava, já que esta, segundo ele, sempre foi O professor é chamado de “careca” pelos
vista de forma peculiar em relação às outras alunos. Isto nos parece dizer muito sobre a relação
disciplinas, principalmente no que se refere aos professor-aluno existente, em que o respeito é
parâmetros destinados a este curso que visa baseado no diálogo e na quebra da verticalidade.
desenvolver. Esse é um dos pontos nos quais percebemos que a
Em nossas conversas e entrevistas, o relação entre professoraluno e aluno-aluno, neste
professor destacou três dimensões da Educação espaço, atende ao aspecto afetivo, pois a sala de
Física: a psicomotricidade, a cognição e a xadrez é para os alunos um lugar de ludicidade e
afetividade. Em sua experiência com alunos de amizade. A não obrigatoriedade de estar ali ou ter
escolas públicas, em São Gonçalo, percebe que os que realizar uma atividade determinada torna este
estudantes já desenvolvem em outros espaços, além espaço um lugar de prazer. Isso fica claro na fala de
da escola, atividades psicomotoras, como por uma aluna do Curso Normal: “aqui é legal, a gente
exemplo: brincam em um campinho próximo a casa, vem pra cá quando não tem nada para fazer”, ou
participam de brincadeiras de rua, assim, ele prioriza seja, o fato dela estar ali se relaciona com uma
trabalhar a cognição e o afeto. escolha pessoal e autônoma do aluno.
A cognição é intensificada em debates sobre Ao conversarmos com o professor sobre a
assuntos diversos do cotidiano, muitos trazidos obrigatoriedade de cumprir o currículo, ele afirmou
pelos próprios alunos ou alguma situação ocorrida. que este também é um diferencial da Educação
Outra proposta desenvolvida com esta finalidade é a Física:
questão do dia. Todos os dias o professor desafia os
alunos com uma pergunta, conhecida por eles como A educação física sempre teve a “glória” de ser
“pergunta do dia”. Durante nossa pesquisa muitos uma coisa sem importância. É menos importante para o
alunos, de diferentes idades, vinham saber com o aluno saber jogar bola... Ele tem que saber História,
professor qual era a pergunta do dia e saiam para Português, Matemática. Para mim a Educação Física foi a
porta para eu entrar e fazer o que penso, tenho uma
pesquisar. Uns iam procurar em livros, outros na
internet, outros iam saber com professores. Dessa liberdade muito maior3.
forma, as perguntas estimulam os alunos a
construírem mecanismos de pesquisa, pois têm A prática pedagógica pesquisada rompe
plena liberdade para buscarem as respostas. Essa com o conceito formal de aprendizagem, pois o
prática nos remete a Paulo Freire quando afirma que professor acredita que independente de usar provas,
“o educador não pode negar-se o dever de, na sua livros, questionários, a aprendizagem acontece de
prática docente, reforçar a capacidade crítica do diferentes formas. Mas, para alguns alunos, essa
educando, sua curiosidade, sua prática acaba causando a sensação de não estar
insubmissão” (FREIRE, 1996). aprendendo nada, pois já estão habituados ao
A experiência que tivemos na sala de xadrez modelo tradicional de escola.
nos fez retomar, também, os conceitos freireanos Ao conversarmos com alguns de seus
como diálogo e autonomia. A autonomia, enquanto alunos que estavam na sala, procuramos saber o
amadurecimento do ser para si, é processo, é vir a que eles aprendem ali e tivemos como retorno uma
ser. Não ocorre em data marcada. É neste sentido concepção diferente da apresentada pelo professor:
que uma pedagogia da autonomia tem de estar “Ah, a gente não aprende nada, eu fico por aí”. Já o
professor fala que essa sensação de não estar

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ARTIGO
aprendendo nada acontece em vários momentos da computadores da sala de xadrez sejam utilizados
nossa vida, sem nos darmos conta de quando e com para os alunos digitarem trabalhos escolares.
quem aprendemos muitas coisas. Assim, segundo Nas palavras do professor Ubiracy
ele, também acontece com os conhecimentos que encontramos sua visão sobre sentidos de ser aluno
são construídos ali e que interferem na formação do e professor:
indivíduo. Encontramos, nessa discussão,
concepções importantes de educação e liberdade Há um problema muito grande do professor que
que mostram o que é ensinar e aprender para cada se acha autoridade, o detentor do conhecimento. Sabe
um deles, professor e alunos. como eu vejo? Uma criança dessa. Ele é o aprendiz, como
O jogo de xadrez foi estimulado na escola eu sou o aprendiz.
pelo professor com o objetivo de incentivar um
melhor relacionamento entre os alunos. Ele Um termo central parece nortear a prática do
começou a trazer para suas aulas de Educação projeto: respeito. Este termo aparece quando
Física o jogo de xadrez e aos poucos alguns alunos perguntamos ao professor sobre a indisciplina e
foram criando o hábito de se reunirem para brigas entre alunos. De uma forma geral, os
conversar e jogar. A prática de xadrez no IECN professores acreditam que precisam manter a
existe regularmente desde 1992, porém o espaço ordem, o silêncio para se ter respeito dos alunos. O
utilizado hoje só foi conquistado em 2006. que observamos rompe com esta verticalidade, onde
Esta conquista foi resultado da luta da quem direciona unilateralmente a prática educativa é
comunidade escolar. Alunos, pais e alguns o professor. Na sala de xadrez, professor e alunos,
professores se uniram com o objetivo de não permitir de diferentes turmas e idades, “dialogam”.
que a sala fosse novamente uma cantina. Alguns Percebemos, então, nessa prática uma
vídeos foram feitos com relatos de pais, alguns possibilidade instituinte no cotidiano da escola por se
professores, alunos e ex-alunos, afirmando a referenciar em pressupostos que fogem daquilo que
importância do projeto. Tivemos acesso a estes está, na maioria das vezes, consagrado na escola,
vídeos e selecionamos algumas falas. por ressignificar as relações de aprendizagem,
O relato de um ex-aluno do Instituto, aluno atribuindo novos sentidos e novos olhares que
da Escola Estadual Aurelino Leal, ressalta a valorizam o coletivo e a partilha, permitindo que
importância da sala de xadrez: vislumbremos uma educação em sentido
emancipatório.
(...)Estudei aqui no Instituto, com o professor
Ubiracy, de Educação Física, gostava muito,
principalmente do projeto de xadrez, influenciou muito na
minha vida, me fez crescer espiritualmente, mentalmente,
como pessoa, me deu vários amigos e hoje eu to aqui pra
falar que eu apoio este projeto.

No depoimento de uma professora do IECN


podemos notar que os conhecimentos desenvolvidos
na sala de xadrez são percebidos em outros
espaços, como na sala de aula: Notas
1Granduandas do Curso de Pedagogia da Faculdade de
Eu tenho visto resultado no clube de xadrez, acho
que vale a pena o meu incentivo porque o pessoal tem Formação de Professores da UERJ.
crescido, as crianças têm se envolvido, não só no 2Pesquisa desenvolvida pela Professora Inês F. S.
raciocínio lógico, mas na questão também da afetividade, Bragança, responsável pela referida turma de Estágio
do companheirismo e tudo mais. Supervisionado III – 1º semestre de 2008.
3Depoimento oral do professor Ubiracy Martins
Além deste vídeo, foi organizada uma Figueiredo.
assembléia com toda a comunidade escolar e feito
um abaixo-assinado para que permanecessem no
espaço da sala. Atualmente, o projeto conta com a Referências
doação de alguns alunos e ex-alunos de tabuleiros
de jogos, controles eletrônicos, além dos próprios FREIRE, Paulo. Pedagogia da autonomia. Saberes
recursos do professor. Há um laboratório de necessários à prática educativa. São Paulo: Paz e Terra,
1996.
informática na escola, mas não fica aberto em todos
BRAGANÇA, Inês Ferreira de Souza. Memórias e
os horários, isto faz com que, algumas vezes, os Práticas Instituintes na Escola. A Página da Educação.
Portugal, p.42 - 42, 2006.

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CONSELHO CIENTÍFICO
Adriana Püiggrós
Univ. de Buenos Aires, Argentina

Cecília Coimbra
UFF, RJ

Clarice Nunes
UFF/UNESA, RJ

Eliana Yunes
PUC, RJ

Elizabeth Barros
Univ. Federal do E. Santo, ES

Maria Cristina Leal


UERJ, RJ

Maria Nazaret Trindade


Universidade de Évora, Portugal

Sílvio Gallo
Unicamp, SP

Solange Jobim
PUC, RJ

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