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Começo com uma ideia, a ser discutida: no cenário atual presenciamos mudanças tanto no
plano das realidades socio-político-econômicas quanto nos modos de subjetivação que parecem
indicar transformações no que se constituiu como solo para o que chamamos de clínica. Se esta
impressão é correta então vale a pena pesar as consequências dessas mudanças para a psicanálise, já
que foi desse solo que também emergiu a clínica psicanalítica. Vou apresentar minhas observações
em três blocos: primeiro abordarei rapidamente algumas das premissas da clínica médica moderna,
à qual a clínica psicanalítica está historicamente referida. Em seguida farei alusão a alguns dos
elementos que permitem pensar num deslocamento atual em relação a essas premissas. Entre elas a
importância crescente da noção de risco, o aparecimento de uma biossociabilidade, o processo de
esvaziamento da dimensão da intimidade e exteriorização da vida subjetiva, e a reconfiguração das
fronteiras entre o normal e o patológico, com transformação da clínica em técnica. Finalmente
tentarei sugerir pontos cuja discussão, creio, deveria ser estimulada entre nós.
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O exemplo da passagem do sodomita para o homossexual, descrita por Foucault (1976) é esclarecedora. O primeiro é
um reincidente, alguém que pratica um ato que contraria uma regra pública. O segundo é alguém cujo desvio expressa
uma essência interna, uma natureza interior pervertida.
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II. Este quadro histórico, no entanto, sofreu imensas transformações e hoje é bastante
diferente daquele que viu a clínica psicanalítica nascer. As características do cenário social atual e
seu impacto sobre o modo pelo qual os indivíduos configuram sua experiência de sujeitos tem sido
objeto de intensa discussão não só entre psicanalistas (Birman 1999; Costa 1994, 1999; Roudinesco,
1999) como também filósofos, historiadores e cientistas sociais (Bauman 1997; Ehrenberg, 1995,
1998; Heller 1998; Lasch 1986). Não se trata, é claro, de afirmar de maneira mecanicista que
mudanças objetivas no mundo, como a implantação do projeto neoliberal na economia ou o
surgimento de tecnologias de comunicação ou de intervenção biológica automaticamente causem
mudanças nas formas de subjetivação, produzindo como consequência sujeitos diferentes. A
maneira como a realidade político-econômica de uma sociedade afeta a subjetividade e o mundo
psíquico dos indivíduos é mais complexa e indireta, e se dá fundamentalmente por meio da criação
de certos ideais, da valorização de modelos de pensamento, da propagação de certos repertórios de
conduta, da difusão de metáforas que se incorporam ao senso comum, enfim pela criação de novos
jogos de linguagem, repertório de sentidos ou jogos de verdade que dão consistência ao imaginário
de uma época, imaginário através do qual o mundo, a existência e a experiência pessoal ganham
consistência e significação.
Uma das noções que vem, nos últimos quinze anos, ganhando importância na análise das
novas formas de organização da experiência individual, estruturação das relações sociais e controle
político é a noção de risco (Beck 1992; Castel 1987, 1991; Giddens 1991). Giddens chama a
atenção para o fato de que na sociedade contemporânea, os indivíduos - livres dos
constrangimentos e repertórios tradicionais – são instados a fazer escolhas em praticamente todos os
aspectos de sua existência. Ideologia, identidade, aparência, padrão moral de conduta, tudo parece
depender de decisão individual, já que as antigas referências à tradição, classe, família, cultura local
etc, tiveram sua legitimidade questionada e seu poder normativo esvaziado.
Esta “liberdade de escolha”, porém, precisa ser sustentada de algum modo por um ambiente
que possibilite um sentimento de confiança mínimo (em sistemas abstratos como o monetário, ou
em entidades concretas como os especialistas, p. ex.) que permita ao indivíduo exorcisar a incerteza
que necessariamente o acompanha e a angústia que pode facilmente deixá-lo em pânico, ou
paralisado. Esta expectativa, no entanto, esbarra facilmente nas próprias premissas sobre as quais o
modelo político-econômico atual se ergue, ou seja: de um lado o desmantelamento das redes de
segurança fornecidos pelo Estado; de outro, as exigências de competitividade acirrada, o culto à
flexibilidade, a celebração da performance, a ideologia da prosperidade, a exaltação da competência
pessoal, etc. Os indivíduos de uma maneira geral são instados a enfrentar riscos, a se transformarem
em “empresários de si mesmo”, e a contar com sua própria capacidade de “empowerment” (Sennett
1999). Não é de espantar que este culto à autonomia e à performance acabe produzindo sujeitos
dependentes de todo tipo de ajuda especializada. Trata-se paradoxalmente, como diz Ehrenberg
(1995), de uma autonomia assistida, fundada num processo infinito de auto-exame, auto-regulação
e auto-aprimoramento, e numa demanda incessante de bens e serviços de apoio.
Ao lado disto ocorre um deslocamento importante nas novas estratégias de intervenção na
saúde pública, caracterizado pelo abandono progressivo do ideário - até há pouco inquestionado - da
saúde como dever do Estado e direito dos cidadãos, e a adoção de um quadro ideológico no qual
esta responsabilidade é transferida para os indivíduos. Propaga-se a crença de que o indivíduo pode
e deve ser capaz não só de evitar doenças mas sobretudo gerenciar os riscos à sua saúde,
minimizando de forma consciente a possibilidade de patologias e otimizando seus próprios
recursos. A saúde exibida como espetáculo é a prova que o sujeito dá do seu direito ao
reconhecimento pessoal e social. É a consigna do chamado “healthism”, uma ideologia que
combina um estilo de vida hedonista (maximização de prazeres e evitação de desprazeres) com uma
obsessiva preocupação com práticas ascéticas cujo objetivo – longe de buscar excelência moral,
elevação espiritual ou determinação política – é otimizar a vida pelo cuidado com aparência de
saúde, beleza e fitness, atendendo assim ao que parece ser a imagem do sujeito ideal atual.
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O que desejo, porém, sublinhar neste ponto é a paulatina reconfiguração dos critérios de
definição das experiências de sofrimento psíquico. Aos poucos modificam-se os parâmetros do
normal e do patológico no campo da vida subjetiva. A crescente incorporação de vocabulários
fisicalistas na descrição dos sentimentos e dos afetos, e a força persuasiva do cientificismo médico,
aliados ao culto da performance e da imagem, se infiltram no modo como concebemos o que seja
transtorno ou anormalidade. Se na cultura do psicológico e da intimidade o sofrimento era
experimentado como conflito interior, ou como choque entre aspirações e desejos reprimidos e as
regras rígidas das convenções sociais, hoje o quadro é outro. Na cultura das sensações e do
espetáculo, o mal-estar tende a se situar no campo da performance física ou mental que falha,
muito mais do que numa interioridade enigmática que causa estranheza. Os quadros sintomáticos
prevalentes parecem atestar isso: os fenômenos aditivos (incapacidade de restringir ou adiar a
obtenção de satisfação, que se torna compulsiva seja via drogas ilícitas, medicamentos, consumo,
ginástica, sexo, etc), transtornos vinculados à imagem ou à experiência do corpo (bulimias,
anorexias, ataques de pânico), depressões menores e distimias (ausência de desejo, motivação,
empenho).
Nestes quadros o mal-estar tende a ser experimentado menos como idiossincracia
enigmática do que como expressão de incompetência, insuficiência ou disfunção. O primeiro tipo de
experiência solicita interrogação, interpretação, deciframento e reposicionamento subjetivo. O
segundo demanda explicação e intervenção corretiva. O processo de medicalização de praticamente
todos os aspectos da vida chega a tornar plausível a crença de que toda insatisfação ou mal-estar é
indicação de um desvio, e como tal deve ser suprimido. Transformada em ideologia, a saúde física
ou mental é extraída do campo das interrogações filosóficas e políticas acerca da “boa vida”, para
ingressar na esfera das habilidades e competências a serem demonstradas no mercado da
subjetividade.
Com as novas tecnologias biológicas e cibernéticas começa-se a aspirar a uma “ética
indolor” (Lipovetsky 1994) na qual o sofrimento psíquico passa a ser considerado como um limite a
ser retirado de nosso horizonte, assim como fazemos hoje com a dor física, para a qual nossas
sociedades não reservam mais valor moral algum5. Ao contrário do sujeito freudiano cujo
sentimento de liberdade e autonomia pressupunha a capacidade de internalizar proibições e
experimentar o conflito entre suas aspirações e idiossincrasias, e os obstáculos à sua realização, o
sujeito atual, “preocupado em retirar de si a essência de todo conflito”(Roudinesco1999:19) é
levado a crer que o bem-estar é seu dever maior, e que a experiência de sofrimento ou de mal-estar
é sinal de falência em suas obrigações existenciais.
III. Quando comparamos o quadro atual ao cenário da invenção da clínica psicanalítica não
podemos deixar de reconhecer mudanças: antes, uma concepção teórica e uma experiência de
sujeito marcada pela forte presença normativa de uma interioridade conflituada, pelo exercício de
uma sensibilidade psicológica acentuada (a capacidade de descrever em termos sentimentais e
afetivos as vicissitudes da vida), pela valorização de uma atitude interpretativa diante dos problemas
pessoais, pela busca de um sentido singular para a própria existência, e assim por diante.
No presente , ao contrário, a presença crescente de uma subjetividade exteriormente
centrada, avessa à experiência de conflito interno, esvaziada em sua dimensão privada
idiossincrática, e mergulhada numa cultura cientificista que privilegia a neuroquímica do cérebro
em detrimento de crenças, desejos e afetos. A clínica médica, que participou da constituição do
indivíduo moderno e de sua experiência de singularidade, vem mudando sua orientação: ela
pretende ser cada vez mais “científica”, o que significa basear-se em evidências estatísticas,
imagens computadorizadas e dados de laboratório, relegando a um segundo plano a singularidade
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A este respeito ver em http://www.huxley.net: “The Brave New World? A Defence of Paradise Engineering”; em
http://www.hedweb.com : “The Hedonist Imperative”. Há duzentos anos, dizem os autores, sonhar com uma vida na
qual a dor física pudesse ser eliminada do cotidiano parecia absurdo e vagamente imoral. Para eles, a resistência atual
ao projeto de abolição da dor psíquica é, do mesmo modo, uma reação historicamente datada.
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do caso, e a subjetividade do doente. Ocupada com os riscos mais do que apenas com os eventos
patológicos, ela tende a dissolver seu objeto e seus objetivos privilegiados (sai o indivíduo, entram
as práticas e condições de risco; saem a prevenção e tratamento, entram a antecipação e a produção
de saúde). Ao contrário do que disse René Leriche, a saúde não é mais hoje “a vida no silêncio dos
órgãos”: ela é um espetáculo estridente na superfície da imagem corporal. A patologia que já foi
compreendida e vivida como transgressão, ruptura ou desafio é experimentada como disfunção e
desvio, assim como a clínica, que já foi ars curandi, transforma-se, sob a obrigação de
cientificidade, em técnica de correção e modelagem.
Assim, é possível perceber na hegemonia da ideologia científica, na espetacularização da
vida social e na tecnificação da medicina, a indicação de um processo de deslocamento importante
no que chamamos – ainda que de maneira imprecisa e esquemática – de solo tradicional da clínica.
Isto nos leva a duas direções. Em primeiro lugar, vale a pena interrogar nossa compreensão habitual
das figuras psicopatológicas tradicionais. Não se pode analisar, por exemplo, a expansão
impressionante do consumo de drogas e das adições em geral sem atentar para os efeitos de um
ambiente social incapaz de oferecer uma experiência de reasseguramento facilitador de um
sentimento espontâneo de continuidade da existência. As drogas pesadas ainda podem ser vividas
como propiciadoras de experiência de transgressão, mas para a maioria absoluta dos adictos hoje em
dia, a adição representa outra coisa. Bauman chama o indivíduo pós-moderno de “colecionador de
instantâneos”, mas se esta expressão indica a presença de uma temporalidade comprimida num
presente implacável e uma busca sôfrega de satisfações imediatas, ela acaba apontando
indiretamente para outro aspecto: em um ambiente cuja provisão de confiança e reasseguramento
aos sujeitos é extremamente insuficiente, é o próprio sentimento de continuidade da existência que
se põe em risco6. Aderir compulsivamente ao barato da droga, ao prazer do sexo, à endorfina do
exercício, ao gozo dos objetos, mais do que a busca frenética de satisfação, pode ser uma resposta a
este tipo de perigo, que a estrutura social atual parece exacerbar.
Em segundo lugar é melhor não adotar uma posição melancólica ou nostálgica. O processo
de diluição da importância da interioridade não deixa de conter algumas possibilidades
interessantes. Talvez possamos nos livrar das “tiranias da intimidade” (Sennett 1988) que se
tornaram substância da subjetividade burguesa, com o privilégio da introspecção sobre a ação,
ênfase excessiva no mundo privado em detrimento do mundo público, etc. Talvez, seguindo a
sugestão de Foucault, possamos finalmente destronar o “sexo-rei” e colocar outra coisa no lugar de
centro de nossas identidades subjetivas. Quem sabe se torna mais visível o fato de que somos
constituídos por laços sociais, e que autonomia implica dependências relativas. A diluição da
espessura ontológica interior na descrição de estados mentais já produziu um efeito positivo da
reordenação dos diagnósticos em psiquiatria, por exemplo. Faz muita diferença “apresentar um
transtorno bipolar” ao invés de “ser um psicótico maníaco-depressivo”7.
O horizonte que se vislumbra para a intervenção na vida por meio da genética, da
inteligência artificial e das tecnologias cognitivas só tem os limites da nossa imaginação. A ação
humana paulatinamente se livra das restrições importas pela sua biologia. É possível também que
descolemos finalmente nossas concepções do humano, da subjetividade e do sujeito, das formas
naturais que até agora lhe têm servido de suporte. Talvez então exorcizemos de vez o “fantasma na
máquina”. É claro que novas formas de dominação e controle virão. Mas podemos também
imaginar novas modalidades de resistência, novas subjetivas, novas modos de existência, mais
livres e criativos.
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Suprir o sentimento de uma vivência real parece ser a promessa paradoxal das próximas cyber drugs e suas
experiências virtuais. A aposta é utilizar nanotecnologia e informática para gravar sensações, emoções e pensamentos e
produzir drogas digitais (não mais químicas) que as transmitam para o organismo receptor. Sobre isso cf.
www.alchemind.org/newtechnology.htm .
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O problema da psiquiatria biológica não está na recusa de um essencialismo psicológico, que supostamente a
psicanálise acarretava nas classificações anteriores. Está no equívoco (epistêmico e ético) da adoção de outro, o
essencialismo fisicalista, que reduz experiência subjetiva a mero comportamento.
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A psicanálise tem sido criticada como uma espécie de ícone de uma cultura que ficou para
trás, sepultada pelas ciências da mente e pela sociedade “pós-humana”. O antifreudismo é uma onda
que ainda está crescendo. Mas seu destino não está nas mãos dos ideólogos do mercado ou da
ciência. O que vai determinar o lugar da psicanálise no cenário social das próximas décadas será sua
capacidade de atualizar aquilo que está na origem de sua clínica: a sustentação de um campo de
prática que põe qualquer tipo de experiência humana sob o crivo da interrogação.
Bibliografia
Giddens, A (1991) Modernity and Self-Identity: Self and Society in Late Modern Age. Stanford:
Stanford University Press.
Lasch, C. (1986) O mínimo eu: sobrevivência psíquica em tempor difíceis. São Paulo: Brasiliense
Lipovetsky, G.(1994) O crepúsculo do dever: a ética indolor dos novos tempos democráticos.
Lisboa: Dom Quixote.
Roudinesco, E. (1999) Por que a psicanálise? Rio de Janeiro: Jorge Zahar Editor.
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