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O ocaso da interioridade e suas repercussões sobre a clínica 1

Benilton Bezerra Jr.2

Começo com uma ideia, a ser discutida: no cenário atual presenciamos mudanças tanto no
plano das realidades socio-político-econômicas quanto nos modos de subjetivação que parecem
indicar transformações no que se constituiu como solo para o que chamamos de clínica. Se esta
impressão é correta então vale a pena pesar as consequências dessas mudanças para a psicanálise, já
que foi desse solo que também emergiu a clínica psicanalítica. Vou apresentar minhas observações
em três blocos: primeiro abordarei rapidamente algumas das premissas da clínica médica moderna,
à qual a clínica psicanalítica está historicamente referida. Em seguida farei alusão a alguns dos
elementos que permitem pensar num deslocamento atual em relação a essas premissas. Entre elas a
importância crescente da noção de risco, o aparecimento de uma biossociabilidade, o processo de
esvaziamento da dimensão da intimidade e exteriorização da vida subjetiva, e a reconfiguração das
fronteiras entre o normal e o patológico, com transformação da clínica em técnica. Finalmente
tentarei sugerir pontos cuja discussão, creio, deveria ser estimulada entre nós.

I. Como se sabe, a clínica - entendida como um dispositivo voltado para o exame da


experiência de sofrimento de um indivíduo – não é uma invenção da psicanálise. A genialidade de
Freud está na alquimia que ele produziu a partir de certos elementos da cultura, e que resultou na
criação de uma teoria original do psiquismo e um modo inédito de lidar com o pathos psíquico.
O primeiro elemento importante é a tradição filosófica ocidental, que desde os gregos se
dedicou a explorar a natureza dos estados da alma humana e as causas do sofrimento. A relação do
pensamento freudiano com a filosofia tem, é fato, uma dupla face, de aproximação e distância. De
um lado a influência dos filósofos mais caros a Freud pode ser detectada em alguns dos principais
conceitos de sua teoria e mesmo no seu estilo, francamente (malgré lui) mais próximo da liberdade
especulativa dos amantes da sabedoria do que da correção metodológica dos produtores de ciência.
Por outro lado Freud, ao afirmar a singularidade da psicanálise, frequentemente o fez contrastando-
a com a perspectiva filosófica. Certo ou errado, não é o caso de discutir agora, Freud via na filosofia
uma ilusão que ele recusava: a de resolver, por meio de sistematizações unificadoras, a
complexidade e o caráter trágico da experiência humana. A filosofia, aos seus olhos, era presa de
uma antiga ilusão - a onipotência do pensamento – que a psicanálise ajudaria a exorcisar.3
O segundo elemento é o universo da arte. Os textos freudianos estão repletos de referências
a diversos artistas e obras de arte, e eles comparecem não apenas como ilustração para suas teorias.
De modo especial, a literatura, tal como se constituiu na modernidade ocidental, está nas origens da
psicanálise. Freud sempre reconheceu a precedência histórica dos poetas na capacidade de
mergulhar nas profundezas da alma humana e de lá extrair conhecimento, e não apenas fruição
estética. Mas o débito da psicanálise para com a literatura vai além disso e se encontra também no
fato de que, a partir do século XVI, a literatura se constituiu progressivamente num dos mais
poderosos instrumentos de criação do universo imaginário que ajudou a moldar a sensibilidade e a
subjetividade modernas. Édipo e os mitos gregos ilustram, para Freud, facetas do humano em sua
face universal. No entanto, como disse Harold Bloom, foi com Shakespeare que aprendemos a nos
reconhecer como dominados por uma profundidade obscura e insondável. Se a noção moderna de
interioridade psicológica encontra suas raízes nas reflexões de Santo Agostinho, foi com Montaigne
que a prática da introspecção se abriu para o leitor comum. Com os seus Ensaios surge um tipo de
auto-reflexão voltado não para a busca do universal inscrito no homem, mas para a exploração da
1
Publicado em: PLASTINO, C. A. (Org.). Transgressões. Rio de Janeiro: Contracapa, 2002; p. 229-239.
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Psicanalista, professor do Instituto de Medicina Social da UERJ
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No entanto, mesmo nesta crítica é impossível não ver a presença de uma tradição anti-universalista, anti-essencialista,
profundamente pluralista, que Freud sabia existir em certas vertentes filosóficas (em Nietzsche, por exemplo, cuja
afinidade com a psicanálise ele não deixou de reconhecer).
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natureza fragmentária e contingente da condição humana, revelada na particularidade de cada


experiência individual. A escrita de si, que Montaigne inaugurou, transformou a literatura num
imenso laboratório no qual as formas subjetivas modernas ganharam contorno e visibilidade (Khel
2001). Depois dele, Goethe (de quem La Rochefoucauld disse que ensinou seus contemporâneos a
se apaixonar), Schiller, Flaubert, Dostoiévski, e outros tantos que Freud leu e admirou, fizeram da
ficção literária um campo de identificações, uma fonte de roteiros de subjetivação para o qual se
voltaram os indivíduos modernos.
O terceiro elemento, e o mais importante para os propósitos desta discussão, é a tradição da
terapêutica médica e o surgimento, na passagem do século XVIII para o XIX, da clínica moderna.
Segundo a leitura clássica de Foucault (1994) a invenção da clínica médica acarretou uma novidade
revolucionária: a noção de um saber sobre o individual e uma prática voltada para a experiência de
sofrimento do indivíduo. Desde os gregos conhecer significava apreender universalidades. A
ruptura conceitual promovida pela anátomo-clínica modificou profundamente o olhar médico sobre
o patológico e implicou o desaparecimento da chamada medicina das espécies (voltada para o
estudo das doenças entendidas como realidades em si mesmas, independentes de um organismo).
No seu lugar surge o que conhecemos como a clínica moderna, caracterizada fundamentalmente
pelo valor central concedido à singularidade do pathos individual. Pela primeira vez na história da
medicina ocidental o doente, e não a doença, ocupam o foco central. O indivíduo se torna objeto de
ciência. Os efeitos deste deslocamento ultrapassam em muito os limites da ciência médica: como
disse Foucault, levantada a velha proibição aristotélica “poder-se-á, finalmente, pronunciar sobre o
indivíduo um discurso de estrutura científica” (1994: XIII). Assim, a clínica médica está presente
nas origens da clínica psicanalítica de duas maneiras. Em primeiro lugar porque participa da
constituição dos a priori epistemológicos sobre os quais irão se fundar as chamadas ciências do
homem, a psicologia e a psicanálise entre elas. Em segundo, pela criação de um dispositivo – a
relação médico-paciente - voltado para o exame e o registro da experiência singular individual, e a
intervenção sobre ela.
Estes três elementos estão, é claro, articulados ao processo mais amplo de constituição do
individualismo como configuração central de valores nas sociedades capitalistas ocidentais
(Dumont 1993). Nesse processo – que inclui o racionalismo universalista dos iluministas e o
expressivismo singularizante dos românticos - emergiu uma forma subjetiva particular,
caracterizada pela interioridade psicológica, pela construção de identidades fundadas em atributos e
sentimentos privados, pela problematização e exploração do repertório afetivo íntimo. O homo
psychologicus aprendeu a organizar sua experiência em torno de um eixo situado no centro de sua
vida interior. Nas sociedades tradicionais as identidades e papeis sociais eram atribuídos por
herança, conforme laços de pertencimento definidos ao nascer. Ser alguém significava fazer parte
de um todo. Na sociedade moderna ser alguém significa ser um indivíduo, ou seja, conceber a sua
existência como uma realização pessoal, ao longo da vida. Se antes as determinações que regiam a
vida se apresentam claras e externas à experiência individual, agora elas se tornam enigmáticas e
inscritas na vida interior. A norma e o desvio – antes visíveis na exterioridade das regras instituídos
- são implantados no terreno movediço e instável de seu universo interno4. No choque com as
exigências da vida social burguesa, desejos e pulsões reprimidos produzem respostas sintomáticas
que apresentam o sofrimento psíquico como expressão de uma interioridade dilacerada. Também
no plano social, o desmonte das hierarquias tradicionais naturalizadas põe em choque os interesses
dos diversos grupos sociais, que passam a legitimamente disputar hegemonia política. Quer no
plano da cultura, quer no plano da individualidade a estabilidade e a certeza dão lugar ao
questionamento. O centro normativo da formação subjetiva moderna passa a ser o conflito.

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O exemplo da passagem do sodomita para o homossexual, descrita por Foucault (1976) é esclarecedora. O primeiro é
um reincidente, alguém que pratica um ato que contraria uma regra pública. O segundo é alguém cujo desvio expressa
uma essência interna, uma natureza interior pervertida.
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II. Este quadro histórico, no entanto, sofreu imensas transformações e hoje é bastante
diferente daquele que viu a clínica psicanalítica nascer. As características do cenário social atual e
seu impacto sobre o modo pelo qual os indivíduos configuram sua experiência de sujeitos tem sido
objeto de intensa discussão não só entre psicanalistas (Birman 1999; Costa 1994, 1999; Roudinesco,
1999) como também filósofos, historiadores e cientistas sociais (Bauman 1997; Ehrenberg, 1995,
1998; Heller 1998; Lasch 1986). Não se trata, é claro, de afirmar de maneira mecanicista que
mudanças objetivas no mundo, como a implantação do projeto neoliberal na economia ou o
surgimento de tecnologias de comunicação ou de intervenção biológica automaticamente causem
mudanças nas formas de subjetivação, produzindo como consequência sujeitos diferentes. A
maneira como a realidade político-econômica de uma sociedade afeta a subjetividade e o mundo
psíquico dos indivíduos é mais complexa e indireta, e se dá fundamentalmente por meio da criação
de certos ideais, da valorização de modelos de pensamento, da propagação de certos repertórios de
conduta, da difusão de metáforas que se incorporam ao senso comum, enfim pela criação de novos
jogos de linguagem, repertório de sentidos ou jogos de verdade que dão consistência ao imaginário
de uma época, imaginário através do qual o mundo, a existência e a experiência pessoal ganham
consistência e significação.
Uma das noções que vem, nos últimos quinze anos, ganhando importância na análise das
novas formas de organização da experiência individual, estruturação das relações sociais e controle
político é a noção de risco (Beck 1992; Castel 1987, 1991; Giddens 1991). Giddens chama a
atenção para o fato de que na sociedade contemporânea, os indivíduos - livres dos
constrangimentos e repertórios tradicionais – são instados a fazer escolhas em praticamente todos os
aspectos de sua existência. Ideologia, identidade, aparência, padrão moral de conduta, tudo parece
depender de decisão individual, já que as antigas referências à tradição, classe, família, cultura local
etc, tiveram sua legitimidade questionada e seu poder normativo esvaziado.
Esta “liberdade de escolha”, porém, precisa ser sustentada de algum modo por um ambiente
que possibilite um sentimento de confiança mínimo (em sistemas abstratos como o monetário, ou
em entidades concretas como os especialistas, p. ex.) que permita ao indivíduo exorcisar a incerteza
que necessariamente o acompanha e a angústia que pode facilmente deixá-lo em pânico, ou
paralisado. Esta expectativa, no entanto, esbarra facilmente nas próprias premissas sobre as quais o
modelo político-econômico atual se ergue, ou seja: de um lado o desmantelamento das redes de
segurança fornecidos pelo Estado; de outro, as exigências de competitividade acirrada, o culto à
flexibilidade, a celebração da performance, a ideologia da prosperidade, a exaltação da competência
pessoal, etc. Os indivíduos de uma maneira geral são instados a enfrentar riscos, a se transformarem
em “empresários de si mesmo”, e a contar com sua própria capacidade de “empowerment” (Sennett
1999). Não é de espantar que este culto à autonomia e à performance acabe produzindo sujeitos
dependentes de todo tipo de ajuda especializada. Trata-se paradoxalmente, como diz Ehrenberg
(1995), de uma autonomia assistida, fundada num processo infinito de auto-exame, auto-regulação
e auto-aprimoramento, e numa demanda incessante de bens e serviços de apoio.
Ao lado disto ocorre um deslocamento importante nas novas estratégias de intervenção na
saúde pública, caracterizado pelo abandono progressivo do ideário - até há pouco inquestionado - da
saúde como dever do Estado e direito dos cidadãos, e a adoção de um quadro ideológico no qual
esta responsabilidade é transferida para os indivíduos. Propaga-se a crença de que o indivíduo pode
e deve ser capaz não só de evitar doenças mas sobretudo gerenciar os riscos à sua saúde,
minimizando de forma consciente a possibilidade de patologias e otimizando seus próprios
recursos. A saúde exibida como espetáculo é a prova que o sujeito dá do seu direito ao
reconhecimento pessoal e social. É a consigna do chamado “healthism”, uma ideologia que
combina um estilo de vida hedonista (maximização de prazeres e evitação de desprazeres) com uma
obsessiva preocupação com práticas ascéticas cujo objetivo – longe de buscar excelência moral,
elevação espiritual ou determinação política – é otimizar a vida pelo cuidado com aparência de
saúde, beleza e fitness, atendendo assim ao que parece ser a imagem do sujeito ideal atual.
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Rabinow (1999) cunhou a expressão biossociabilidade para aludir à forma de estruturação


das relações entre os sujeitos que se cria neste contexto. Sua marca principal é a criação de novos
critérios de mérito e reconhecimento fundados regras ligadas a práticas de auto-vigilância
fisiológica, regimes de ocupação do tempo e ideais de performance física. Este tipo de sociabilidade
resulta numa hierarquização moral de atributos físicos Comportar-se de modo a exibir uma imagem
saudável significa apresentar-se a si e aos demais como um sujeito independente, responsável,
confiável, dotado de vontade e auto-estima. Recusar este imperativo ou simplesmente deixar de
privilegiá-lo em relação a outros é expor-se à reprovação moral e ao sentimento de desvio,
insuficiência pessoal ou fracasso existencial.
O que interessa aqui sublinhar é o impacto que estas regras tem sobre novas novas técnicas
de si, novos jogos de verdade, novas regras de construção das narrativas do eu, que organizam uma
subjetividade fortemente ancorada (ao contrário da subjetividade intimista do homo psychologicus)
na exterioridade visível da imagem corporal e no escrutínio e fruição das sensações físicas. Novas
formas de construção identitária– bio-identidades – são fabricadas tendo como base não num
repertório de sentimentos, crenças ou filiação a horizontes supra-individuais, mas em função de
itens ligados à natureza do organismo individual.
Dois elementos da cultura atual concorrem para reforçar essa tendência. Um é a crise dos
valores e metanarrativas tradicionais, de natureza religiosa, política ou histórica. Esta crise abriu
espaço para a hegemonia da ciência como discurso totalizante, capaz de fornecer não só explicação
para os fatos do mundo mas também – e esta é a novidade – significação para os acontecimentos da
existência. O outro é a verdadeira explosão tecnológica que vem caucionar o movimento anterior.
As chamadas tecnologias cognitivas, no campo da informática e da computação, têm de fato
transformado a realidade em que vivemos e redesenhado nossa visão do mundo. Basta tomar o
exemplo da internet para verificar como nossa percepção de espaço se modificou, com a criação de
um lugar virtual no qual laços subjetivos intensos proliferam de uma maneira que era impensável há
poucos anos. Mas é no campo das biotecnologias que o impacto é mais profundo. Quando
Canguilhem escreveu O normal e o patológico, em 1943, a vida ainda se apresentava como algo
para além das possibilidades humanas de descrição objetiva ou intervenção redirecionadora. Não
podíamos nos imaginar decifrando seus mistérios, quebrando os seus códigos. Hoje estas
expressões tornaram-se comuns, e em grande parte é a capacidade da ciência surpreender os
contemporâneos com este tipo de conquista que explica o fato de que o mito da cientificidade
desapropriou outros terrenos de significação, e tomou para si quase o monopólio da validação
ideológica.
A hegemonia do mito científico como fonte de sentido invade o modo como os indivíduos
se apropriam de sua experiência subjetiva. Por exemplo: a difusão, no imaginário social, de
explicações fisicalistas do funcionamento da mente e do sofrimento psíquico estimula o privilégio
concedido à dimensão biológica da vida subjetiva em detrimento da psicológica ou intersubjetiva.
No vocabulário do cotidiano palavras comuns e despidas de conotação médica ou científica como
“tristeza”, “desencanto” ou mesmo “angústia” cedem rapidamente lugar a expressões como
“depressão” ou “distimia”, ou síndrome do pânico” supostamente mais precisas ou objetivas. O
engajamento dos sujeitos neste roteiro de auto-descrição baseado no léxico médico retroalimenta, é
claro, sua dependência em relação aos especialistas do bem estar (médicos, indústria farmacêutica,
etc), mas o mais importante, creio, é que intensifica o processo de “somatização” da experiência
subjetiva e o esvaziamento da relevância da esfera da intimidade e do mundo privado. Não é só que
o privado deixe de se constituir num polo privilegiado de estruturação da vida subjetiva (que, em
contraste com o mundo público, preservava para o sujeito um espaço de segredo, inviolabilidade e
singularização). Faz parte das regras do sucesso conseguir tornar-se visível. Na sociedade do
espetáculo o anonimato não tem valor positivo. O surpreendente despudor com que se aceita exibir
intimidades só indica o quanto é a própria privacidade, ou os contornos do que sejam as esferas do
público e do privado que estão desmontados.
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O que desejo, porém, sublinhar neste ponto é a paulatina reconfiguração dos critérios de
definição das experiências de sofrimento psíquico. Aos poucos modificam-se os parâmetros do
normal e do patológico no campo da vida subjetiva. A crescente incorporação de vocabulários
fisicalistas na descrição dos sentimentos e dos afetos, e a força persuasiva do cientificismo médico,
aliados ao culto da performance e da imagem, se infiltram no modo como concebemos o que seja
transtorno ou anormalidade. Se na cultura do psicológico e da intimidade o sofrimento era
experimentado como conflito interior, ou como choque entre aspirações e desejos reprimidos e as
regras rígidas das convenções sociais, hoje o quadro é outro. Na cultura das sensações e do
espetáculo, o mal-estar tende a se situar no campo da performance física ou mental que falha,
muito mais do que numa interioridade enigmática que causa estranheza. Os quadros sintomáticos
prevalentes parecem atestar isso: os fenômenos aditivos (incapacidade de restringir ou adiar a
obtenção de satisfação, que se torna compulsiva seja via drogas ilícitas, medicamentos, consumo,
ginástica, sexo, etc), transtornos vinculados à imagem ou à experiência do corpo (bulimias,
anorexias, ataques de pânico), depressões menores e distimias (ausência de desejo, motivação,
empenho).
Nestes quadros o mal-estar tende a ser experimentado menos como idiossincracia
enigmática do que como expressão de incompetência, insuficiência ou disfunção. O primeiro tipo de
experiência solicita interrogação, interpretação, deciframento e reposicionamento subjetivo. O
segundo demanda explicação e intervenção corretiva. O processo de medicalização de praticamente
todos os aspectos da vida chega a tornar plausível a crença de que toda insatisfação ou mal-estar é
indicação de um desvio, e como tal deve ser suprimido. Transformada em ideologia, a saúde física
ou mental é extraída do campo das interrogações filosóficas e políticas acerca da “boa vida”, para
ingressar na esfera das habilidades e competências a serem demonstradas no mercado da
subjetividade.
Com as novas tecnologias biológicas e cibernéticas começa-se a aspirar a uma “ética
indolor” (Lipovetsky 1994) na qual o sofrimento psíquico passa a ser considerado como um limite a
ser retirado de nosso horizonte, assim como fazemos hoje com a dor física, para a qual nossas
sociedades não reservam mais valor moral algum5. Ao contrário do sujeito freudiano cujo
sentimento de liberdade e autonomia pressupunha a capacidade de internalizar proibições e
experimentar o conflito entre suas aspirações e idiossincrasias, e os obstáculos à sua realização, o
sujeito atual, “preocupado em retirar de si a essência de todo conflito”(Roudinesco1999:19) é
levado a crer que o bem-estar é seu dever maior, e que a experiência de sofrimento ou de mal-estar
é sinal de falência em suas obrigações existenciais.

III. Quando comparamos o quadro atual ao cenário da invenção da clínica psicanalítica não
podemos deixar de reconhecer mudanças: antes, uma concepção teórica e uma experiência de
sujeito marcada pela forte presença normativa de uma interioridade conflituada, pelo exercício de
uma sensibilidade psicológica acentuada (a capacidade de descrever em termos sentimentais e
afetivos as vicissitudes da vida), pela valorização de uma atitude interpretativa diante dos problemas
pessoais, pela busca de um sentido singular para a própria existência, e assim por diante.
No presente , ao contrário, a presença crescente de uma subjetividade exteriormente
centrada, avessa à experiência de conflito interno, esvaziada em sua dimensão privada
idiossincrática, e mergulhada numa cultura cientificista que privilegia a neuroquímica do cérebro
em detrimento de crenças, desejos e afetos. A clínica médica, que participou da constituição do
indivíduo moderno e de sua experiência de singularidade, vem mudando sua orientação: ela
pretende ser cada vez mais “científica”, o que significa basear-se em evidências estatísticas,
imagens computadorizadas e dados de laboratório, relegando a um segundo plano a singularidade

5
A este respeito ver em http://www.huxley.net: “The Brave New World? A Defence of Paradise Engineering”; em
http://www.hedweb.com : “The Hedonist Imperative”. Há duzentos anos, dizem os autores, sonhar com uma vida na
qual a dor física pudesse ser eliminada do cotidiano parecia absurdo e vagamente imoral. Para eles, a resistência atual
ao projeto de abolição da dor psíquica é, do mesmo modo, uma reação historicamente datada.
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do caso, e a subjetividade do doente. Ocupada com os riscos mais do que apenas com os eventos
patológicos, ela tende a dissolver seu objeto e seus objetivos privilegiados (sai o indivíduo, entram
as práticas e condições de risco; saem a prevenção e tratamento, entram a antecipação e a produção
de saúde). Ao contrário do que disse René Leriche, a saúde não é mais hoje “a vida no silêncio dos
órgãos”: ela é um espetáculo estridente na superfície da imagem corporal. A patologia que já foi
compreendida e vivida como transgressão, ruptura ou desafio é experimentada como disfunção e
desvio, assim como a clínica, que já foi ars curandi, transforma-se, sob a obrigação de
cientificidade, em técnica de correção e modelagem.
Assim, é possível perceber na hegemonia da ideologia científica, na espetacularização da
vida social e na tecnificação da medicina, a indicação de um processo de deslocamento importante
no que chamamos – ainda que de maneira imprecisa e esquemática – de solo tradicional da clínica.
Isto nos leva a duas direções. Em primeiro lugar, vale a pena interrogar nossa compreensão habitual
das figuras psicopatológicas tradicionais. Não se pode analisar, por exemplo, a expansão
impressionante do consumo de drogas e das adições em geral sem atentar para os efeitos de um
ambiente social incapaz de oferecer uma experiência de reasseguramento facilitador de um
sentimento espontâneo de continuidade da existência. As drogas pesadas ainda podem ser vividas
como propiciadoras de experiência de transgressão, mas para a maioria absoluta dos adictos hoje em
dia, a adição representa outra coisa. Bauman chama o indivíduo pós-moderno de “colecionador de
instantâneos”, mas se esta expressão indica a presença de uma temporalidade comprimida num
presente implacável e uma busca sôfrega de satisfações imediatas, ela acaba apontando
indiretamente para outro aspecto: em um ambiente cuja provisão de confiança e reasseguramento
aos sujeitos é extremamente insuficiente, é o próprio sentimento de continuidade da existência que
se põe em risco6. Aderir compulsivamente ao barato da droga, ao prazer do sexo, à endorfina do
exercício, ao gozo dos objetos, mais do que a busca frenética de satisfação, pode ser uma resposta a
este tipo de perigo, que a estrutura social atual parece exacerbar.
Em segundo lugar é melhor não adotar uma posição melancólica ou nostálgica. O processo
de diluição da importância da interioridade não deixa de conter algumas possibilidades
interessantes. Talvez possamos nos livrar das “tiranias da intimidade” (Sennett 1988) que se
tornaram substância da subjetividade burguesa, com o privilégio da introspecção sobre a ação,
ênfase excessiva no mundo privado em detrimento do mundo público, etc. Talvez, seguindo a
sugestão de Foucault, possamos finalmente destronar o “sexo-rei” e colocar outra coisa no lugar de
centro de nossas identidades subjetivas. Quem sabe se torna mais visível o fato de que somos
constituídos por laços sociais, e que autonomia implica dependências relativas. A diluição da
espessura ontológica interior na descrição de estados mentais já produziu um efeito positivo da
reordenação dos diagnósticos em psiquiatria, por exemplo. Faz muita diferença “apresentar um
transtorno bipolar” ao invés de “ser um psicótico maníaco-depressivo”7.
O horizonte que se vislumbra para a intervenção na vida por meio da genética, da
inteligência artificial e das tecnologias cognitivas só tem os limites da nossa imaginação. A ação
humana paulatinamente se livra das restrições importas pela sua biologia. É possível também que
descolemos finalmente nossas concepções do humano, da subjetividade e do sujeito, das formas
naturais que até agora lhe têm servido de suporte. Talvez então exorcizemos de vez o “fantasma na
máquina”. É claro que novas formas de dominação e controle virão. Mas podemos também
imaginar novas modalidades de resistência, novas subjetivas, novas modos de existência, mais
livres e criativos.
6
Suprir o sentimento de uma vivência real parece ser a promessa paradoxal das próximas cyber drugs e suas
experiências virtuais. A aposta é utilizar nanotecnologia e informática para gravar sensações, emoções e pensamentos e
produzir drogas digitais (não mais químicas) que as transmitam para o organismo receptor. Sobre isso cf.
www.alchemind.org/newtechnology.htm .
7
O problema da psiquiatria biológica não está na recusa de um essencialismo psicológico, que supostamente a
psicanálise acarretava nas classificações anteriores. Está no equívoco (epistêmico e ético) da adoção de outro, o
essencialismo fisicalista, que reduz experiência subjetiva a mero comportamento.
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A psicanálise tem sido criticada como uma espécie de ícone de uma cultura que ficou para
trás, sepultada pelas ciências da mente e pela sociedade “pós-humana”. O antifreudismo é uma onda
que ainda está crescendo. Mas seu destino não está nas mãos dos ideólogos do mercado ou da
ciência. O que vai determinar o lugar da psicanálise no cenário social das próximas décadas será sua
capacidade de atualizar aquilo que está na origem de sua clínica: a sustentação de um campo de
prática que põe qualquer tipo de experiência humana sob o crivo da interrogação.

Bibliografia

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