PARTE IV EXTRAINDO LIÇÕES DE EXPERIÊNCIAS CONCRETAS
PORTO ALEGRE: VIRTUDES E CONTRADIÇÕES
Porto Alegre representa, a experiência mais ousada e mais consistente de orçamento participativo em andamento no Brasil, foi nesta que as condições objetivas para o florescimento do empreendimento se apresentaram realmente maduras. Uma vez dado o passo inicial para a construção da cogestão entre Estado e sociedade civil organizada a propósito da elaboração da peça orçamentária, o avanço e o aprimoramento têm sido ininterruptos. Como resultado de algo conduzido com arrojo, competência e criatividade em um grau não muito comum na esquerda brasileira, o orçamento participativo de Porto Alegre tornou-se uma referência não apenas para outras administrações progressistas dentro do país, mas até mesmo para administrações locais em outros países. O caráter fortemente deliberativo do orçamento participativo porto-alegrense decorre de várias coisas, diretamente a mais importante é a pouca interferência do Estado no processo, salvo no que se refere à coordenação organizacional e apoio logístico, o que vem a justificar a caracterização do mesmo como uma genuína delegação de poder. A maioria dos “erros” de Porto Alegre, assim vistos, constitui imperfeições ao menos parcialmente (bem, diversos problemas têm a ver com obstáculos que transcendem a escala local...). O plano diretor já havia sido criticado, devido à frouxa e decepcionante amarração que lá tem a participação popular. Tecnicamente bem elaborado apesar de algumas fraquezas, mas mais distante do ideário da reforma urbana do que seria de se esperar e no qual a participação popular se acha tão frouxa ANGRA DOS REIS O plano diretor de Angra dos Reis (Lei Municipal 162/LO de 12112191) é um documento tecnicamente bem elaborado e conforme ao ideário da reforma urbana. Seus princípios são fortes e límpidos quanto a ten tativa de salvaguarda das funções sociais da cidade e da propriedade e à inversão de prioridades, isto é, o atendimento preferencial aos segmentos pobres e segregados Uma lição da experiência de Angra dos Reis é que, por mais que a sociedade civil se ache mobilizada para dar respaldo ao Executivo no momento da confecção de uma política pública ou da elaboração de um plano - e, em seu depoimento à geógrafa Adriana Cavaco, o ex-prefeito Neirobis Nagae deixou claro que a participação não havia sido cão expressiva assim, conquanto esse tema seja objeto de controvérsia -.a arrogância e o excesso de autoconfiança por parte das forças comprometidas com a mudança social devem ser evitados. Outra lição é a de que não basta que a população e mobilize até o momento de aprovação de uma lei; ela precisa continuar fiscalizando o cumprimento da lei e animando, com a sua participação, o processo de planejamento, para que ele não se desvirtue e faça do texto da lei pouco mais que letra morta RECIFE O modelo de orçamento participativo que vem sendo adotado em Recife desde 2001 buscou inspirar-se fortemente na experiência de Porto Alegre. A intenção, assim, é ousar: uma participação realmente deliberativa, e não simplesmente consultiva; um percentual significativo do tocai das despesas, e não um percentual pequeno ou mesmo ínfimo, como ocorria antes (e como ocorre em vários locais); um Conselho do Orçamento Participativo (COP) semelhante ao seu equivalente porto-alegrense, no sentido de que os representantes do Estado, indicados pelo prefeito, só têm direito a voz, e não a voto. O orçamento participativo é, ao que parece, o carro-chefe da administração petista do Recife. Com um status de secretaria, sua centralidade é afirmada por todos, inclusive por Tânia Bacelar de Araújo, à frente da Secretaria de Planejamento, entrevistada pelo autor em julho de 2001. Isso é uma condição necessária, mas está longe, muito longe de ser condição suficiente para que o orçamento Participativo do Recife deslanche e alcance a consistência do de Porto Alegre. RIO DE JANEIRO A fragmentação do tecido sociopolítico espaci al da cidade, espaços segregados, notadamente favelas, passam a ser objeto de territorialização por parte de quadrilhas e "organizações" de traficantes de drogas, e, de outra parte, cada vez mais como reação escapista à crescente sensação de insegurança em seus bairros tradicionais, elites e parte da classe média se auto segregam, buscando refúgio nas cidadelas fortificadas que são os condomínios exclusivos. Esse fenômeno, observável, de modo cabal, no Rio de Janeiro e em São Paulo, e de forma embrionária ou menos sofistica-la também em outras cidades (cf. SOUZA , 2000a) está relacionado, sem dúvida, com uma maior complexidade dos padrões de segregação: a segregação induzida (ou seja , aquela atinente aos espaços residenciais dos pobres) agrava.se, por conta da redobrada estigmatização na esteira da associação simplista entre favelas e tráfico de drogas , e a auto segregação expande e floresce. E, apesar disso, essa fragmentação é mais que uma segregação tornada mais complexa: ela representa o comprometimento da própria ideia de cidade como uma unidade na diversidade CURITIBA A imagem positiva da cidade que é passada para o pais inteiro e o exterior ("Capital de Primeiro Mundo" e "Capital Ecológica” são alguns dos rótulos explorados, há décadas O sucesso de Curitiba surpreende, principalmente, pela comparação com a maior parte das outras grandes cidades brasileiras e do ''Terceiro Mundo", e é, de fato em parte altamente significativo em si mesmo como reconhecem até muitos adversários (mesmo Jorge SAMEK (1996), político e estudioso dos problemas da cidade ligado ao Partido dos Trabalhadores não deixa de reconhecer as qualidades internacionalmente incensado sistema de transportes da cidade). O "mito'' e a ideologia começam porém quando: a) os aspectos negativos são escamoteados ou minimizados e os positivos são, de sua parte magnificados: b) as razões dos sucessos são simplificadas e distorcidas, amplificando-se a responsabilidade de alguns protagonistas na cena local e ao mesmo tempo (um pouco contraditoriamente), sugerindo extrair daí uma "receita de gestão eficiente e eficaz" exportável para outros locais, esquecendo-se a densidade e as implicações das trajetórias históricas locais e regionais