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JOAO DUMANS / A sinf

si nfonia
onia dos pobres. Modernidade
Moder nidade de
Aloysio Raulino

Com a morte de Aloysio Raulino, em abril de 2013, o Brasil perdeu não apenas um de seus
melhores fotógrafos, mas um de seus mais inventivos cineastas. Tendo produzido alguns
de seus principais filmes ao longo dos anos 1970, num dos momentos mais profícuos da
história do cinema brasileiro, Raulino permaneceu, ao menos enquanto realizador, uma
espécie de marginal entre marginais, tanto pela dificuldade que ainda hoje se enfrenta para
se ter acesso a seus filmes quanto pela escassez de estudos e ensaios críticos sobre a sua
obra (o que aliás, no contexto do cinema brasileiro, não é exclusividade sua). Se como
diretor de fotografia seu nome conquistou rapidamente um lugar de destaque na história do
cinema do país (tendo trabalhado em longas como O Homem que virou suco, suco ,  Braços
cruzados, Máquinas paradas, O Baiano Fantasma, O Prisioneiro da Grade de Ferro,
Serras da Desordem, Os Residentes, entre outros), apenas nos últimos anos, contadas
raríssimas excessões, começou-se a reconhecer seriamente a sua estatura e a sua
importância enquanto realizador de filmes.

Formado na primeira turma de cinema da Universidade de São Paulo em 1970, tendo por 
mestre um dos maiores críticos brasileiros, Paulo Emílio Salles Gomes (entre outras coisas,
 bióg
iógrafo
rafo de Jean Vig
Vigo), Rauli
Raulino dedicou-se
dedicou-se quase que exclusi
exclusivamente
vamente ao curta-metragem,
desenvolvendo uma forma muito própria de "ensaísmo" fílmico – o que, se não justifica,
ao menos ajuda a explicar a pouca atenção dedicada aos trabalhos que dirigiu, sobretudo
num país de pouca tradição no gênero como o Brasil. Na verdade, os curtas que realizou
ao longo dos anos 1970 formam uma pequena ilha no interior da produção brasileira da
década, encarnando uma "modernidade" muito própria no seio mesmo da "modernidade"
 já avançada daquele período, marcada pela produção do chamado "cinema
"cinema margin
marginal
al",
", em
 particul
articular
ar pela obra de criadores excepci
excepcionai
onaiss como Rogério
Rogério Sganzerl
Sganzerla,
a, Júli
Júlio Bressane e
Ozualdo Candeias.

A agilidade e a independência de Raulino enquanto cineasta, sua indiferença pelos métodos


clássicos de se fazer filmes, pela própria idéia de uma "obra", acabaram por fazer dele uma
espécie de primitivo em sua arte, no melhor sentido da palavra, como se um jovem
cineasta dos anos 1920, por um descompasso histórico, se pusesse a filmar no Brasil dos
anos 1970. Movidos por um ímpeto de experimentação constante, seus filmes reatam a
história do cinema brasileiro com a melhor tradição do documentário de vanguarda dos
anos 1920 e 1930, aquela para a qual o cinema era ainda um meio a ser descoberto, e
cujas virtudes residiam menos na apropriação (ou mesmo na subversão) dos esquemas
narrativos clássicos do que na invenção de todo um novo conjunto de procedimentos,
efeitos e sentimentos artísticos: um cinema capaz de fazer convergir o realismo e o
surrealismo, o construtivismo e a preocupação social, e talvez, o mais importante, o ímpeto
subversivo e a poesia.

Tomemos, por exemplo, aquele que é provavelmente o seu filme mais belo: Porto de
Santos (1978). Como negar o misto de desconcerto e felicidade que se sente ao ver os
estivadores do maior porto brasileiro filmados de maneira tão confiante por Raulino, ou a
 jovem prostituta dos subúrbios de Santos ou a dança erótica do bandido "Escorregão" – 
que segundo o próprio diretor, havia ameaçado a equipe caso essa se recusasse a filmá-lo?
Como não ver aí uma afinidade com o olhar ao mesmo tempo objetivo e poético dos
 primeiros documentaristas de vanguarda: Vertov, Cavalcanti, Ivens, e, porque não, o Vigo
de À propos de Nice (1930) – filme em relação ao qual Porto de Santos se coloca como
uma espécie de duplo em negativo: balneário de repouso da elite francesa em férias versus
zona portuária dos trabalhadores brasileiros em greve?

Por caminhos diferentes, mas partindo do mesmo lugar – o "ponto de vista documentado"
 – Raulino e Vigo alcançam resultados simples e brilhantes. E antes que se acuse o absurdo
da comparação, deixemos o cânone um pouco de lado e vejamos novamente esse filme
notável, de pouco menos de 20 minutos, e nos perguntemos com franqueza se o próprio
Vigo não saberia reconhecer sua originalidade? O jovem diretor de OAtalante (1934) e
 Zero de Conduta  (1933) é e será sempre o patrono de todo cinema livre, poético,
engajado, bem-humorado – e Porto de Santos, para roubar suas próprias palavras, é
cinema "no sentido que nenhuma arte, nenhuma ciência, poderia substituí-lo em seu
ofício"; e é também um cinema "social", na medida em que "é capaz de revelar a razão
oculta de um gesto, de extrair de uma pessoa banal e do acaso sua beleza interior ou sua
caricatura, de revelar o espírito de uma coletividade a partir de suas manifestações
1
 puramente físicas" .

Se quisermos pensar a "modernidade" de Raulino por um outro ângulo, não apenas pela via
do estilo, basta perceber como seu cinema sempre demonstrou uma enorme sensibilidade
 para os personagens, a agitação e as contradições da vida urbana. Boa parte dos filmes que
dirigiu – Lacrimosa (1970), Jardim Nova Bahia (1971), Porto de Santos, O Tigre e a
Gazela (1976), Noites Paraguaias (1982) , Inventário da Rapina (1986), dentre outros – e
vários dos que fotografou, têm como foco o universo urbano, entendido tanto pelas figuras
visuais e sonoras muito próprias que ele é capaz de criar, quanto pela experiência de vida
real de seus habitantes, sobretudo os trabalhadores, os imigrantes e os marginalizados
sociais.

A originalidade de Raulino enquanto cineasta (e de certo modo, enquanto fotógrafo, se


levarmos em conta os filmes dos quais participou) consiste em não desprezar nenhuma
dessas contribuições, produzindo uma conjunção inesperada entre dois gestos a princípio
contraditórios: um elogio poético à cidade e às suas figuras, tributário, de certo modo, das
vanguardas dos anos 1920; e outro, absolutamente político, de diagnóstico da falência do
 projeto econômico dessa mesma modernidade, sobretudo em sua vertente capitalista e
imperialista. Se é verdade que na forma seus filmes nos remetem ao espírito de livre
invenção da primeira metade do século, seu conteúdo político pertence a um momento
muito específico dos anos 1960 e 1970, aquele das guerras anticoloniais na África, dos
combates localizados contra o avanço do capitalismo no terceiro mundo, das lutas contra
as segregações econômicas e raciais e, sobretudo, das ditaduras latino-americanas. Seu
cinema se junta assim àquele de Glauber Rocha, Santiago Alvarez, Thomas Guitérrez Alea,
Fernando Solanas, entre outros – ainda que leve a investigação sobre as segregações
econômicas e sociais e um nível muito mais pessoal e poético.

É o caso de Lacrimosa e O Tigre e a Gazela, filmes separados por dez anos de distância,
mas querevelam o talento de Raulino para as soluções cinematográficas simples – e
também, se quisermos, para uma espécie de "meditação no improviso", qualidade maior do
seu estilo como cineasta e fotógrafo. Em Lacrimosa, depois de um rápido plano de
apresentação, o filme se abre com os seguintes dizeres: "Recentemente foi aberta uma
avenida em São Paulo", e em seguida: "Ela nos obriga a ver a cidade por dentro". Sem
mais, o carro de Raulino e Luna Alkalay (com quem dividiu a direção deste e de outros
filmes) começa a percorrer a Marginal Tietê. Objetividade característica do cinema de
Raulino, que nem por isso o diretor cumpre como um programa: a câmera vacila, o zoom
hesita, a paisagem se transforma rapidamente, entre prédios modernos e favelas – o que só
faz crescer, contra todo planejamento prévio, a sensação de imprevisto e o sentimento de
urgência. A certa altura, Raulino desce do carro com a câmera e entra numa favela, um
 pequeno arranjo de casas improvisadas cercadas de lixo. Alguma coisa da ordem do
indescritível e do sublime, como não é raro em seus filmes, acontece então nesse encontro
entre câmera e as crianças da favela, quando irrompe por alguns segundos o Requiem de
Mozart. A princípio simples e algo desajeitado, o filme explode numa forma nova, como se
a realidade saltasse para fora de si mesma, e os moradores daquele lugar (a criança com a
ferida na testa, a menina com a bola de borracha na cabeça, o homem com a máscara) nos
interpelassem de uma terra distante, como derrotados de um mundo pós-apocalíptico,
numa evocação simultânea de Terra sem Pão (1933) e La Jetée (1962). Quantos cineastas
souberam, com tão poucos recursos à mão, provocar sentimentos tão contraditórios? E
quantos souberam despertar a nossa indignação de maneira tão feroz, sem transformá-la
em compaixão ou piedade? A imagem do mapa do Brasil, ao fim, restitui a realidade do
filme a um espaço específico, e é seguida pelos versos de Ángel Parra, que canalizam a
energia do êxtase das sequências anteriores para uma mensagem política muito clara:
"Quisiera volverme noche / para ver llegar el día / que mi pueblo se levante / buscando
 su amanecida." 

Algo muito semelhante acontece em O Tigre e a Gazela, onde a energia da junção


ritualística entre música erudita e popular, os rostos e as danças também é canalizada na
direção de uma atitude revolucionária, emblematizada aqui pelas frases do escritor 
anticolonialista Frantz Fanon. Exatos quinze anos antes, os escritos de Fanon estiveram na
 base das reflexões de Glauber Rocha sobre a "estética da fome", que procurava transpor 
 para o contexto brasileiro algumas das idéias do filósofo sobre as lutas anticoloniais na
África. Nesse processo, a violência contra o colonizador europeu se convertia na violência
da linguagem contra o cinema dominante, fixando o que, naquele momento, Glauber 
afirmava ser o projeto estético e político do Cinema Novo. A simples recuperação dos
textos de Fanon por Raulino não implica, obviamente, uma referência a esse projeto
estético, mas tem o mérito de resgatar a discussão quando ela parecia adormecida, em
meados dos anos 1970, e de reavivá-la no contexto da luta pela redemocratização do
Brasil. Como escreveu Ismail Xavier, Fanon procurou revelar em seus escritos a
dependência recíproca entre a "luta pela liberdade" e a formação de uma cultura nacional
efetivamente viva e pulsante. No filme de Raulino, a fusão dos rostos e das músicas com
os textos do escritor francês reitera essa articulação, fazendo da informalidade da festa, da
dança e do canto popular (e não necessariamente do imaginário mítico, como em Glauber)
uma espécie de reduto de insubordinação e resistência. De resto, O Tigre e a Gazela e
 Lacrimosa  provam que Raulino foi o mestre de uma arte quase esquecida: a de despertar a
confiança naqueles que filma, e mais, a de filmá-los de frente, fazendo com que a câmera
consiga expressar a tensão ou a alegria do encontro. Nenhuma imagem é mais
característica do seu cinema, aliás, do que essa iluminação que resulta do confronto da
câmera com o olhar de seus personagens, confronto sempre revelador da integridade, da
 beleza e da energia política de que estão imbuídos.

 Nesse sentido, é impossível não evocar o parentesco entre o seu trabalho e o de outro
grande realizador de sua geração, Arthur Omar, sobretudo na sua conhecida série
fotográfica Antropologia da Face Gloriosa  – título que poderia servir, numa outra chave,
 para sintetizar quase toda obra do diretor de O Tigre e a Gazela. Mais do que uma
comparação entre os filmes dos dois cineastas (que revelaria provavelmente muito mais
diferenças que semelhanças), é interessante notar como ambos assumem uma postura
totalmente própria no interior da história do cinema brasileiro, recusando a via do
documentário clássico (ou sociológico) em nome de uma investigação muito mais livre da
realidade brasileira. Essa postura implica, entre outras coisas, uma predileção pela
montagem e pela justaposição de materiais heterogêneos (músicas, documentos, imagens,
esculturas, etc.), ainda que em Omar a costura desses elementos seja muito mais
complexa, e a renúncia à função explicativa do documentário muito mais irônica e
consciente.

Ao longo do anos 1970 e início dos anos 1980, destacam-se nos filmes de Raulino a
agilidade e espontaneidade do fazer, de modo que o corpo a corpo do fotógrafo com a
realidade não exclui, mas prevalece sobre a forma ensaística mais cerebral. Esse período
coincide também com a dominância do preto e branco como opção estética, num gesto
2
deliberado de recusa da imposição da cor pelo mercado de cinema brasileiro . Alguma
coisa nesse cenário se transforma a partir de 1982, quando o cineasta realiza seu primeiro
longa ficcional, Noites Paraguaias, e em seguida o média-metragem Inventário da
 Rapina, filme em que a opção pelo "ensaio" aparece de maneira muito mais radical do que
em qualquer outro trabalho que realizou. Assim como O Tigre e a Gazela, esse curta
também reflete sobre o processo de redemocratização do Brasil – o que não significa
apenas a reivindicação da abertura política, mas algo como uma "redemocratização total"
da sociedade, em que a voz dos marginalizados passaria finalmente ao primeiro plano. A
ferocidade do filme anterior dá lugar aqui a um drama mais onírico, em que intervém
abertamente o jogo com o surrealismo e o simbólico. Nessa costura de psicologia íntima
com a "questão nacional", Inventário da Rapina  parece interrogar o futuro de um país
novo, em busca de uma imagem do Brasil com a qual seria possível ainda se identificar,
sem recorrer ao ufanismo característico do regime militar.

Como símbolo desse "país novo", Raulino elege uma imagem banal e algo pueril – 
 poderíamos dizer, um clichê – mas que em seu cinema explode com uma violência
singular: o rosto das crianças. De Lacrimosa a  Inventário da Rapina, são elas as que
melhor encarnam essa dimensão utópica da revolução e da transformação política, o que
faz com seus filmes se ofereçam como um desfile de olhares e de rostos jovens, muitas
vezes marcados cedo demais pelo signo da pobreza e da marginalidade, mas sempre plenos
de ternura e de coragem. Nenhum trabalho de Raulino expressa essa idéia de modo mais
eloquente do que Teremos Infância  (1974), filme que alterna o depoimento de um
imigrante nordestino em São Paulo, Arnulfo da Silva Fenômeno, com as imagens de duas
crianças de rua. Enquanto Arnulfo, ele mesmo numa situação de extrema pobreza, conta
sua história e reflete com uma clareza notável sobre a importância da infância, Raulino
mostra as duas crianças que assistem ao seu depoimento, fazendo em seguida uma espécie
de "estudo fotográfico" de ambos. Como os demais filmes do diretor, Teremos Infância
também revela o seu gosto por construções não homogêneas, fragmentadas, musicais – em
que depoimentos, flagrantes fotográficos, canções e imagens urbanas associam-se de
maneira livre e poética, através de um trabalho de montagem ao mesmo intelectual e
intuitivo.

O trabalho com o som e com a música também sempre teve um papel central no cinema
de Raulino. Nesse sentido, seus filmes sempre fizeram jus à riqueza sonora do cinema da
Boca do Lixo, que foi o que melhor soube explorar criativamente as limitações técnicas de
 produção – pensemos, por exemplo, em seu amigo e parceiro Ozualdo Candeias – 
reinventando a função do som direto e da dublagem, abusando dos ruídos sonoros e,
sobretudo, retirando definitivamente a música do seu lugar de acompanhamento para
integrá-la à narrativa, ora sob a forma do comentário, ora como evocação de uma cena
cultural específica, ora pelo simples prazer de fazer ouvi-la. Quanto a Raulino, a conclusão
óbvia que se chega ao ver qualquer um de seus curtas é que eles não apenas " usam"  muito
 bem a trilha sonora, como são eles mesmos – na dinâmica dos cortes, na alternância de
 planos curtos e longos, de tomadas fixas e panorâmicas – profundamente musicais em sua
estrutura.
Chama a atenção, por exemplo, o uso que seus filmes fazem do silêncio. Astuto, Raulino
sabe que a melhor forma de fazer ouvir o silêncio não é pela completa ausência de som
(como nos filmes mudos) nem pelo abuso da trilha incidental (como em numerosos filmes
experimentais contemporâneos), mas pelo uso expressivo do contraste. Assim, alguns de
seus melhores curtas recorrem a este expediente: usam sem ressalvas ruídos e músicas,
mas pela simples subtração do som em alguns momentos estratégicos, nos fazem ver com
uma profundidade inesperada aquilo que segundos atrás poderia parecer insignificante. Uso
 poético e construtivo do silêncio e, de certo modo, uso brechtiano: diante de um rosto, ou
mesmo do canteiro de uma rodovia, nos sentimos subitamente olhados do outro lado, ou
nos descobrimos, simplesmente, a ver. É assim em Porto de Santos, filme em que o som
entretém com a imagem um jogo maravilhosamente calculado de aproximações e
afastamentos, e também em Lacrimosa, essa espécie de sinfonia do século XX ao avesso,
em que o próprio carro corta a autoestrada como o arco de instrumento.

Quanto à música propriamente dita, os filmes de Raulino recorrem a um vasto leque de


opções e significados. Sem falar de Noites Paraguaias, sobre as aventuras de um grupo
musical paraguaio no Brasil, A morte de um poeta (1981), em que registra o enterro do
sambista Cartola, e Arrasta a bandeira colorida (1970), sobre o carnaval de rua de São
Paulo, todos os seus filmes nutrem um diálogo intenso com a música, ora numa chave
mais engajada e militante, como em Lacrimosa e Inventário da Rapina, ora para embalar 
os sonhos e as fantasias dos homens comuns, como em O Tigre e a Gazela, Porto de
Santos  e, especialmente,  Jardim Nova Bahia.

De todos os filmes dirigidos por Raulino, Jardim Nova Bahia é sem dúvida o mais famoso,
e foi o que mereceu, até hoje, a maior atenção dos críticos e estudiosos brasileiros, graças
ao importante ensaio que Jean-Claude Bernadet dedicou a ele no livro Cineastas e
 Imagens do Povo. O curta constrói o retrato de um lavador de carros de São Paulo, um
imigrante nordestino, Deutrudes Carlos da Rocha, a quem Raulino entrega a câmera para
que ele próprio realize algumas das imagens do filme. No ensaio que escreveu sobre
 Jardim Nova Bahia, Bernadet enxergou neste gesto de Raulino um ponto de inflexão
marcante na história do documentário brasileiro, sobretudo por insinuar uma reação à
estratégia do documentário clássico, de fundo pedagógico e sociológico, que teria
 predominado ao longo dos anos 1950 e 1960: entregar a câmera ao personagem filmado
significava, ao menos no plano simbólico, uma tentativa de subverter o antigo esquema de
 poder que fazia do povo um mero "objeto" do documentarista – ou, na melhor das
hipóteses, uma projeção de seus desejos e contradições pessoais.

A importância deste estudo e, por outro lado, a carência de novos textos críticos sobre o
assunto, acabaram fazendo com que Jardim Nova Bahia ficasse até hoje refém da análise
de Bernadet – ela mesma, aliás, de forte viés sociologizante. Ao sobrevalorizar a
importância do gesto de entrega da câmera para o entrevistado, Bernadet deixava em
segundo plano a liberdade poética e a força "construtiva" que sempre caracterizaram o
estilo de Raulino – e o seu desejo explícito de captar, nesse filme, o lado imaginativo,
romântico e fabular do seu personagem, mesmo que para isso tivesse que intervir 
violentamente na imagem. É o que acontece, por exemplo, quando a música dos Beatles
(Strawberry fields forever , interpretada por Richie Havens) irrompe de maneira
absolutamente inesperada na trilha sonora, enquanto Deutrudes e seus amigos caminham
 pela Praia de Santos, numa das sequência mais melancólicas e comoventes do seu cinema.
Raulino internalizou, na própria forma de seus filmes, a idéia de que nenhuma revolução
 política é possível sem a compreensão íntima do prazer e do sonho, e é por isso que a
atenção que dedica aos homens comuns caminha lado a lado com a representação de seus
delírios e fantasias. Como o próprio Bernadet já havia notado, "Raulino interessa-se pelo
trabalhador enquanto não-trabalhador" – o que faz, justamente, com que alcance uma
liberdade e uma profundidade muito raras na representação da realidade brasileira.

Como já se notou inúmeras vezes, a abertura ao diálogo com a cultura popular era uma das
características mais marcantes da produção brasileira da época, fossem nos filmes ditos
marginais ou mesmo nos desdobramentos do Cinema Novo. A obra de Raulino, no
entanto, só viria a colher abertamente os frutos dessa aproximação no início dos anos
1980, com Noites Paraguaias  – filme que realiza, dentre outras façanhas, a de nos fazer 
 pensar em cineastas tão diferentes quanto Ozu, Ruiz, Godard e Buñuel.

 No conjunto, Noites Paraguaias é um belo filme, atravessado por uma energia criativa
imensa, e com momentos mais e menos felizes, mas que em nenhum momento deixa de
despertar o interesse mais vivo em quem o assiste. O filme resgata um tema muito caro a
Raulino e ao cinema brasileiro ( Zézero, Liliam M , O baiano fantasma, O homem que
virou suco, entre outros): o da imigração, aqui na forma da viagem do campo para a
cidade. No filme, um imigrante paraguaio vai a São Paulo em busca de melhores condições
de vida, o que acaba servindo como pretexto para uma série de encontros documentais,
digressões surrealistas e números teatrais. No início predomina o registro plácido e
cadenciado, o gosto pelos planos longos, a reflexão sobre a passagem do tempo e sobre os
ciclos da vida. Num dado momento, porém, a aparição jocosa e performática de Cláudio
Mamberti como o turista brasileiro marca a virada desse estilo inicial, anunciando a chave
muito mais paródica e burlesca em que será tratada a realidade do país. Como acontece
também em cineastas tão diferentes quanto José Agrippino, Joaquim Pedro de Andrade,
Fernando Coni Campos, Waldir Onofre ou Carlos Prates Corrêa, apenas o exagero teatral
 parece dar conta da realidade do imaginário brasileiro, povoado por ridículos surtos de
nacionalismo, euforia e delírios de grandeza. É notável nesse filme também a inteligência
das soluções narrativas de Raulino, a frontalidade da encenação e a riqueza dos números
teatrais, que mesmo quando não fazem rir, chamam a atenção pelo espírito de liberdade e
inventividade com que foram feitos.

 Na verdade, a polifonia e a heterogeneidade do único longa de ficção que Raulino dirigiu
surpreendem apenas na medida em que o considerarmos um curta-metragista qualquer, e
não o criador inquieto que nunca deixou de ser, preocupado em transmitir sempre, ao lado
de uma idéia política, uma idéia cinematográfica. A aposta no registro ficcional e os
achados burlescos do filme contrastam efetivamente com a simplicidade das experiências
anteriores, mas podem ser entendidos também como um desdobramento natural de seu
 pendor para o risco e para a experimentação – ainda que isso significasse, aqui, entrar em
áreas já bastante exploradas pelo cinema brasileiro, como o diálogo com a chanchada. De
todo modo, Noites Paraguaias  é um filme que só faz lamentar o fato de seu diretor não
ter podido realizar outros nesse mesmo espírito – o espírito subversivo que sempre foi o de
Raulino: fotógrafo brilhante, cineasta engajado e comediante nato.

Por muito tempo ainda será preciso reter uma outra lição do seu cinema, talvez a mais
importante: além dos méritos de seus próprios filmes, a história de Raulino como realizador 
e fotógrafo nos deixou o testemunho de uma inquietação constante no que diz respeito às
diferentes maneiras de se fazer cinema. Poucos artistas na história do cinema brasileiro
tiveram a chance de experimentar e de participar da construção de tantas formas distintas
de se fazer filmes, tantas formas de se organizar em grupo, tantas diferentes maneiras de
mobilizar os recursos técnicos necessários ou de se relacionar com as pessoas que são
filmadas. Cada um dos filmes que realizou, e boa parte dos que fotografou, propôs à sua
maneira, ao lado de um conjunto de imagens e sons, uma certa dinâmica produtiva, que
implicou de diferentes maneiras suas respectivas equipes, o aparato cinematográfico, o
tempo de trabalho e, sobretudo, as pessoas filmadas. Raulino não é apenas um inventor de
formas. Sua vida e sua trajetória enquanto realizador e fotógrafo – como a de todo
vanguardista que se preze – testemunham elas mesmas a pluralidade de modos possíveis
de trabalhar, de viver o cinema, de fazer filmes.

 João Dumans

 Agradecimentos: Ana Siqueira, Ewerton Belico, Mateus Araújo Silva

Uma versão preliminar desse texto foi publicada no catálogo do forumdoc.bh 2014, por ocasião da
restrospectiva Aloysio Raulino.
1"Vers un cinéma social " ("Por um cinema social"), texto de apresentação lido por Vigo antes da exibição de  À propos de
 Nice, em 1930. Não se deve esquecer, pela beleza da coincidência, que um dos primeiros biógrafos do cineasta francês,
Paulo Emílio Salles Gomes, foi também uma das principais referências intelectuais de Raulino na USP, onde esse último se
formou nos anos 1970.

2 "Foi ass im: eu me encantei com isso na medida que vi que o B&P resistia tanto, no momento em que a cor estava s endo
imposta aqui com pulso de ferro, ou seja, num momento em que éramos obrigados a filmar em colorido, sob pena de não
sobreviver. E eu disse: não. Eu desobedeço e continuo a trabalhar em preto e branco." Entrevista com Aloysio Raulino,
 Filme Cultura, n. 38/39, Ago/Nov de 1981.

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