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Agradeço à Bárbara Oliveira e ao Rafael Viana pelas ideias e sugestões de referências que foram essenciais
para a elaboração deste artigo.
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MARIANA AFFONSO PENNA é Doutora em História pela Universidade Federal
Fluminense e professora de História do Ensino Básico, Técnico e Tecnológico do Instituto Federal de
Educação, Ciência e Tecnologia do Rio Grande do Sul.
1. O Anarquismo é essencialmente Afirma assim a necessidade de delimitar
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feminista? uma conceituação do Anarquismo a fim
O Anarquismo é decerto a corrente do de melhor entendê-lo. Mesmo dando este
pensamento político socialista mais passo importante, posteriormente,
mitificada e idealizada em inúmeros diversos autores consideram ainda
escritos, ainda que também uma das mais demasiada abrangente a definição
estereotipadas e difamadas. Dentre as aplicada pelo autor em sua Histórias das
formas de idealização do anarquismo Ideias e Movimentos Anarquistas.
está a de retirá-lo da sua realidade Lucien Van Der Walt e Michael Schmidt
histórica e geográfica transmutando-o (2009) preocuparam-se em demarcar
em um fenômeno atemporal e universal. historicamente o anarquismo,
Conforme afirma George Woodcock, percebendo sua formação no final do
muitos pensadores anarquistas buscaram século XIX, mais especificamente no
atribuir sua genealogia a períodos final da década de 1860. Destacam ainda
bastante remotos da humanidade. Este o contexto histórico mais amplo em que
seria o caso de Piotr Kropotkin, por se insere, assim como a íntima relação
exemplo, quando apresenta a história estabelecida entre as ideias libertárias e o
humana dividida em duas tendências, movimento social concreto
uma voltada para o apoio mútuo e outra desenvolvido por operários e outros
setores das classes populares em luta em
para o autoritarismo, sendo o
anarquismo, logicamente, variadas localidades do mundo. A
correspondente à primeira destas mesma linha de compreensão seguiram
tendências (WOODCOCK, 2007: 38- Rafael Viana e Felipe Correa (2014,
39). Buscar no passado antecedentes 2013) para quem mais que definir que
pensador seria ou não anarquista, como
para ideias e valores abraçados, valendo-
se inclusive da noção de uma espécie de o faz Woodcock, seria importante
“natureza humana” é uma forma de entender o movimento anarquista em sua
legitimação desses princípios político- concretude, criado na ação cotidiana de
ideológicos de forma a afirmar a milhares de anônimos.
viabilidade dos mesmos. Mas para Não cabe aos objetivos estabelecidos
desenvolver uma análise histórica do para este artigo aprofundar a discussão
anarquismo é preciso não nublar a sobre a formação histórica do
análise de um fenômeno histórico anarquismo, nem tampouco atribuir-lhe
específico dissolvendo-o numa noção de uma conceituação precisa. Tal tarefa foi
existência abstrata e atemporal. desempenhada, dentre outros, pelos
Woodcock inicia seu prólogo ao volume autores citados no parágrafo anterior. A
1 das Histórias das Ideias e Movimentos intenção é desenvolver uma breve e
Anarquistas com a seguinte introdutória reflexão sobre a relação
preocupação: entre o Anarquismo e o Feminismo,
destacando algumas de suas
"Todo aquele que contesta a
aproximações e distanciamentos. Mas
autoridade e luta contra ela é um
anarquista", disse Sebastien Faure. para isso, é justamente necessário fugir à
A definição é tentadora em sua tentadora simplificação que Woodcock
simplicidade, mas é justamente retoma em Sebastian Faure ao associar o
dessa simplicidade que devemos anarquismo a toda forma de
precaver-nos ao escrever uma manifestação e luta contra a autoridade,
história do anarquismo. contra qualquer opressão. Isto porque o
(WOODCOCK, 2007: 7) anarquismo não é uma ideologia etérea,
mas como fenômeno político e social 2. Feminismo e Anarquismo:
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concreto possui sua historicidade. aproximações e distanciamentos.
Deirdre Hogan (2007) defende a
hipótese de que o patriarcado e o
Assim, ainda que a ideia de uma “luta capitalismo não são fenômenos
contra qualquer forma de opressão”, interdependentes. Ainda que o
comumente associada à ideologia capitalismo se beneficie em diversos
anarquista, pareça apontar para uma aspectos da opressão sobre as mulheres,
“tendência natural” de crítica ao a mesma não seria essencial para sua
machismo – e de fato observamos em permanência enquanto modo de
diversas/os pensadoras/es anarquistas produção hegemônico. Para a autora, o
uma preocupação com relação à feminismo potencialmente atrapalha os
dominação masculina sobre as mulheres lucros do empresariado, especialmente
nas sociedades patriarcais – este artigo no que diz respeito aos interesses da
sustenta que é necessário ir além de uma mulher biológica quando esta ocupa o
interpretação simplificadora caso papel de mãe, mas não é completamente
desejemos entender historicamente a antagônico à permanência do
relação entre o anarquismo e o capitalismo:
feminismo. Argumenta, portanto,
tratarem-se de fenômenos distintos, A sociedade capitalista depende da
exploração de classe. Não depende,
ainda que não necessariamente sempre
no entanto, do sexismo e poderia em
separados. Dessa forma, sustenta-se que teoria acomodar-se em grande
seria equivocado pensar o anarquismo medida a um tratamento similar de
como uma ideologia essencialmente mulheres e homens. (HOGAN,
feminista. Ao contrário, é um 2007: 5)
pensamento político encarnado em
O capitalismo, para Hogan, não é
movimentos sociais concretos que
sustentado essencialmente por uma
podem se aproximar – e efetivamente se
relação de exploração de gênero, mas de
aproximam – do feminismo, mas não
classe. Separa assim capitalismo e
invariavelmente. Devido à preocupação
machismo como fenômenos com origens
historicamente manifesta no movimento
históricas independentes e que, assim
anarquista no que diz respeito às
sendo, a permanência ou ruptura em
assimetrias não apenas econômicas, mas
relação a um ou outro ocorreria também
de poder, é possível perceber uma grande
de maneira independente:
abertura nesta corrente do pensamento
socialista para a luta contra o machismo. O fim do sexismo, portanto, não
Mas esta afinidade, que podemos levará necessariamente ao fim do
entender em termos de uma afinidade capitalismo. Da mesma maneira, o
eletiva, nem sempre se expressou no sexismo pode continuar depois de
movimento concreto. Como ocorreu (e ter sido abolida a sociedade de
classes. O sexismo é,
ocorre) em todo o movimento socialista, possivelmente, a forma de opressão
a opressão de gênero ainda que vista, mais antiga que existe, não precede
hegemonicamente, como um problema a o capitalismo; há evidência que o
ser enfrentado, foi diversas vezes sexismo também precedeu as
secundarizada – quando não até formas mais antigas da sociedade de
naturalizada e defendida – em meio a classes. (HOGAN, 2007: 5-6)
uma militância constituída por maioria O entendimento de Hogan que
masculina. desvincula a exploração de classe da
opressão de gênero em suas origens Nada disso, porém, o fez sensível à
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históricas possibilita traçar reflexões opressão milenar a que metade dos seres
mais específicas em relação ao próprio humanos é submetida. Ao contrário, num
pensamento anarquista e à ação concreta contexto em que algumas mulheres
de anarquista encarnada em seus passavam a defender abertamente maior
movimentos sociais desde o século XIX. igualdade e o direito de ocupar espaços
Para a autora, o anarquismo surge em até então dados como exclusivos para os
meio à luta de classes com o objetivo homens, Proudhon assume claramente o
claro de oposição anticapitalista. Como front ao lado da reação. Dedicou seu “A
tal, o anarquismo assumiu esta luta como Pornocracia ou as mulheres nos tempos
sua pauta estruturante. modernos” para desqualificar escritoras
da época que, em oposição às suas ideias,
Embora sempre tenha sido central buscavam direitos negados ao gênero.
ao anarquismo a ênfase na abolição Afirmando querer dignificar a mulher,
de todas as hierarquias de poder, o Proudhon defende diversas ideias que
anarquismo tem suas raízes na luta
vão desde a necessidade de a mulher
de classe, na luta para derrubar o
capitalismo, com o seu objetivo de
permanecer exclusivamente no espaço
criar uma sociedade sem classes. doméstico como mantenedora afetuosa
Como a opressão das mulheres não do lar até a defesa apaixonada de uma
está tão intimamente ligada ao suposta inferioridade não apenas na
capitalismo como luta de classe, a constituição física, como intelectual das
liberação feminina continua sendo mulheres. Reforça a ideia das diferenças
historicamente vista, em grande entre os gêneros, atribuindo ao
medida continua a ser vista, como masculino a qualidade da força e
um objetivo secundário para a intelectualidade e ao feminino a beleza.
criação de uma sociedade sem
classes, não tão importante nem tão Eu digo que o reino da mulher está
fundamental como a luta de classes. na família; que a esfera de seu brilho
(HOGAN, 2007: 7) é o domicílio conjugal; que é assim
que o homem, em quem a mulher
Esta origem histórica do anarquismo na deve amar não a beleza, mas a força,
luta de classes anticapitalista, ajuda um desenvolverá sua dignidade, sua
pouco a explicar a relação entre este e o individualidade, seu caráter, seu
movimento feminista. Ainda que não heroísmo e sua justiça, e é com o fim
de tornar esse homem cada vez mais
seja um consenso, Pierre Joseph
valoroso e justo e sua mulher,
Proudhon é visto por muitos autores consequentemente, cada vez mais
como um dos pais fundadores do rainha, que ataco a centralização, o
anarquismo ou pelo menos como um de funcionalismo, a feudalidade
seus importantes precursores. De financeira, a exorbitância
qualquer forma, fato é que suas ideias e governamental e a permanência do
posicionamentos políticos servem de estado de guerra. (PROUDHON,
influência para o encadear de ideias e 1875: 12-13).
práticas que consolidam o fenômeno Caberia então ao homem desenvolver
histórico do anarquismo. Proudhon tem seu “caráter” e “heroísmo” enquanto a
o mérito de denunciar a exploração de mulher ocuparia o espaço de “rainha” do
classe, a dominação política das classes lar dedicada a proporcionar-lhe este
dominantes e de propor modelos de ambiente favorável ao amplo
organização política com base na desenvolvimento de suas capacidades
horizontalidade do poder. masculinas. Capacidades estas que
implicitamente torná-lo-iam inclusive "Eu nunca encontrei uma mulher
que fosse capaz de acompanhar um 18
capaz de se opor às injustiças, já que o
espaço público é reservado ao homem, raciocínio durante quinze minutos.
que preservaria a mulher da barbárie, Elas têm qualidades que nos faltam,
como um cavalheiro medieval – qualidades de um encanto
particular, inexprimível, mas em
permitindo uma comparação infame –
termos de razão, de lógica, de
protege seus servos da violência do capacidade de articular ideias,
barbarismo: encadear os princípios e as
Quanto às coisas externas, eu não as consequências e de perceber as
quis, não as quero para a mulher, e relações entre eles, a mulher,
pelos mesmos motivos, a guerra, mesmo a mais superior, raramente
porque a guerra combina tão pouco alcança o nível de um homem de
com a beleza quanto à servidão. capacidade medíocre."
(PROUDHON, 1875: 26-27).
Eu não quero a política, pois a
política é a guerra. Para completar seu culto a misoginia,
Eu não quero as funções jurídicas, Proudhon atribui esta total incapacidade
policiais ou governamentais, porque intelectual feminina à sua reduzida
elas são sempre a guerra. atividade cerebral:
(PROUDHON, 1875: 12)
Interroguem à frenologia. Ela nos
Mas a preservação das mulheres em diz que o cérebro da mulher não é
relação ao ambiente externo que não o constituído da mesma forma que o
doméstico, não se limitaria a não do homem. De fato, as divisões
combinar com a “guerra”, mas sim a uma cerebrais que correspondem, até
incapacidade das mulheres em onde se pode garantir por milhares
desempenhar tais funções. Assim, de observações, às faculdades
poderosas do espírito, da
Proudhon alega que os fatos estariam em
causalidade, da comparação, da
contradições aos anseios por igualdade generalização, da idealização, do
daquelas mulheres contra quem tão aperfeiçoamento ou progresso, têm,
apaixonadamente ele deseja expressar assim como os instintos polêmicos e
sua oposição: guerreiros, de comando, de firmeza
Fatos! Eu vos cito de uma só vez e de personalidade, maior
sessenta mil patentes de invenções e desenvolvimento no homem, menor
aperfeiçoamentos obtidas por desenvolvimento na mulher. Em
homens, na França, desde 1791, compensação, e como se a natureza,
contra uma meia dúzia obtidas por não contente com essa superioridade
mulheres em artigos de moda! de potência concedida ao sexo
masculino, tivesse querido prevenir
Fatos! Eu vos cito ainda a Biografia toda insurreição da parte do sexo
universal; calculem quantos dos fraco, deu a este,
indivíduos de cada sexo se predominantemente, a veneração, a
distinguiram na filosofia, no direito, subordinação, o apego, a residência,
nas ciências, na poesia, na arte, em a cautela, a necessidade de
suma, em todos os exercícios do aprovação e de elogio, todas elas
espírito; confio em vocês quanto ao faculdades que revelam a
resultado. desconfiança que a mulher tem de
seus recursos, enfim, uma espécie
(...). Tudo o que foi dito a este
de espírito intuitivo e divinatório
respeito se reduz a estas palavras de
que faz as vezes, na mulher de
Lamennais:
raciocínio e convicção. E como se
isso ainda não bastasse para a paz muito, como secundária à
doméstica, para a ordem das emancipação dos trabalhadores, um 19
sociedades e para o destino final do problema que seria resolvido
gênero humano, a massa total do ‘depois da revolução’ (Ackelsberg
cérebro é menor na mulher, na 2005: 38)” (SHANNON &
proporção média de 3 libras e 4 ROGUE, 2011).
onças contra 3 libras e 8 onças.
(PROUDHON, 1875: 28-29) Deirdre Hogan também observa que a
secundarização da luta feminista foi uma
Este último trecho dispensa muitas constante até o momento presente e que
observações, visto representar um mesmo quando a emancipação feminina
exemplo extremo de justificativa é adotada formalmente como pauta das
reacionária para a “submissão” feminina, organizações e movimentos anarquistas,
necessária à natural “ordem das na vida cotidiana as práticas de
sociedades”. O importante desta longa manutenção do machismo como sistema
exposição do pensamento proudhoniano de dominação ainda encontram terreno
sobre o papel que as mulheres deveriam fértil:
ocupar na sociedade serve para
As mulheres faziam a ligação entre
percebermos através do exemplo deste
a emancipação política e a pessoal,
ícone dos primórdios do pensamento esperando que o socialismo poderia
anarquista – assim como socialista de fazer novas mulheres e novos
maneira ampla – que a luta contra a homens por democratizar todos os
opressão feminina estava longe de ser aspectos das relações humanas. No
um consenso. Ainda que Proudhon não entanto, achei muito difícil, por
expressasse um posicionamento exemplo, convencer meus próprios
hegemônico, o fato de uma grande companheiros de que a desigualdade
referência política como ele defender tais da divisão do trabalho dentro de
ideias, demonstra que o meio militante casa era uma questão política
possivelmente não as rechaçava de importante. Nas palavras de Hannah
Mitchell, ativista socialista e
maneira substancial.
feminista de princípios do século 20
Assim, ainda que a misoginia declarada na Inglaterra, em sua jornada de
de Proudhon possa ser uma postura não trabalho fora e dentro do lar:
hegemônica, decerto havia espaço para “Mesmo os domingos de tempo
que se expressasse, ao menos naquele livre se foram, quando descobri que
período. E mesmo que posteriormente grande parte do discurso socialista
questionada, visto que sobre a liberdade, era só discurso e
hegemonicamente é possível identificar que estes jovens homens socialistas
uma tendência a incorporar a luta das esperavam jantares de domingo e
mulheres como bandeira do movimento chás com enormes bolos caseiros,
patês de carnes e tortas exatamente
libertário:
como seus companheiros
(...) muitos homens anarquistas reacionários”. (HOGAN, 2007: 8)
desmereceram as questões das Este descompasso entre o discurso
mulheres. Parte da razão pela qual a
socialista e uma prática que efetivamente
Mujeres Libres viu a necessidade de
uma organização separada de contribuísse para a emancipação
mulheres durante a época da Guerra feminina é observada pela autora, da
Civil Espanhola porque “muitos mesma maneira que o fazem Shannon e
anarquistas tratavam a questão da Rogue no que diz respeito ao movimento
subordinação das mulheres, quando anarquista em específico. A Revolução
Espanhola, evento histórico dos mais 3. As mulheres anarquistas e o
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reconhecidos pela expressiva feminismo: conflito e idealização das
participação anarquista – quiçá até relações de gênero
hegemônica – na condução do processo
revolucionário, é também um exemplo O surgimento de grupos específicos de
emblemático, como vimos, da relação mulheres como as Mujeres Libres na
nem sempre harmônica entre Espanha coloca, portanto, claramente em
anarquismo e a luta contra a opressão das cheque a ideia de ter ocorrido uma
mulheres. A revolução evidenciou por harmonia constante e absoluta na relação
via da formação das Mujeres Libres,1 entre os gêneros no decorrer da história
que a lua pela emancipação das classes do anarquismo. No entanto, Margareth
subalternar não andava necessariamente Rago argumenta – com base no estudo
lado a lado e em todo momento à luta biográfico desenvolvido acerca da
contra a opressão de gênero. A força do anarquista italiana radicada no Uruguai,
hábito e dos privilégios, muitas das vezes Luce Fabbri – que as mulheres militantes
se fazia superior aos discursos de conseguiriam alcançar um grau de
igualdade quando se tratava da relação autonomia significativamente superior
com as mulheres: ao que era permitido às demais mulheres
na primeira metade do século XX:
As mulheres anarquistas na Sem querer absolutizar, creio que
Espanha, na época da revolução pertencer ao meio libertário naquele
social de 1936, tinham queixas período alterava em muito a
semelhantes ao encontrar que a situação das mulheres. Não apenas
igualdade homem-mulher não se os homens anarquistas já possuíam
levava bem com as relações íntimas. uma reflexão maior sobre a
Martha Ackelsberg escreve no seu condição das mulheres e do
livro Free Women of Spain que, feminismo, como trabalhavam ao
embora a igualdade entre homens e lado de outras companheiras, muitas
mulheres fora aprovada das quais mulheres bastante
oficialmente pelo movimento diferenciadas em termos de ousadia
anarquista espanhol, logo em 1876: e coragem. (RAGO, 2000: 236-237)