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Riscos à saúde:
fumaça ambiental do tabaco
— pontos para um debate

Organização: Renato Veras

1a edição

Rio de Janeiro, 2010

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Organização
Renato Veras

Edição
Cecilia Leal/Conexão Gravatá

Ilustração capa
Ana Oliveira/Conexão Gravatá

Revisão
Fausto Rêgo

Tradução/inglês
Taís L. Oliveira

Tradução/francês
Hortensia Maria Fleury Salek

ISBN 978-85-87897-22-0

1a edição, Rio de Janeiro, 2010

R595 Risco à saúde: fumaça ambiental do tabaco – pontos para um debate/ GC.
Kabat, Lucien Sfez, Luiz Antônio de Castro-Santos...[et al.]; Organizador Renato
Veras. – Rio de Janeiro: Uerj, Unati, 2010.

66 p. : il

ISBN 978-85-87897-22-0

1. Tabaco. 2. Avaliação de riscos de saúde – aspectos sociais. 3. Saúde


ambiental. I. Kabat, Geoffrey C. II. Sfez, Lucien. III. Castro-Santos, Luiz
Antônio de. IV. Veras, Renato. V. Título.
CDU 663.974: 504.05
Riscos à saúde:
fumaça ambiental do tabaco
– pontos para um debate

Sumário

Apresentação • 7

Em defesa dos fumantes • 9


Luiz Antonio de Castro Santos

Sobre humilhados visíveis e invisíveis: um sonho lúcido de realidade • 21


Nelson F. de Barros

Sobre o risco e a periculosidade social — a lei antifumo em questão • 25


Joel Birman

Defesa das realizações, não do estilo, do Movimento Antifumo:


resposta ao texto “Alvo equivocado: em defesa dos fumantes”,
de Luiz Castro Santos • 31
Geoffrey C. Kabat

Onde há fumaça há desvio • 39


Josué Laguardia e Sérgio Carrara

Comentários • 45
Lucien Sfez

Nem tudo é verdade • 49


Renato Veras

Diálogos e embates entre as Ciências Sociais e a Epidemiologia:


a retórica dos riscos • 55
Alba Zaluar e Luiz Antonio de Castro Santos
6• • Riscos à saúde: fumaça ambiental do tabaco – pontos para um debate
Riscos à saúde: fumaça
ambiental do tabaco – pontos
para um debate

Apresentação

Em abril e maio deste ano, os primeiros passos de um debate urgente


foram dados pelos professores do Instituto de Medicina Social da Universidade
do Estado do Rio de Janeiro (IMS/UERJ), numa iniciativa capitaneada pelo
Prof. Luiz Antonio de Castro Santos sobre o tema “Fumaça Ambiental do Tabaco”.
Para nossa grata surpresa, vários professores se manifestaram de forma intensa
por e-mail, expressando seus pontos de vista sobre este tópico bastante
controverso. O tom recorrente das manifestações foi o de não aceitar “verdades
absolutas”, repetições de clichês ou evidências científicas parciais. Certezas e
posições definitivas foram poucas. Estava, portanto, sedimentado o caminho
para a ampliação do debate, que deverá ser retomado, após a presente publicação,
no segundo semestre de 2010.
A tradição do Instituto de Medicina Social sempre foi a de protagonizar
temas relevantes na área da saúde coletiva. Nessa acalorada discussão via internet,
que se caracterizou por seu caráter espontâneo, observarmos que boa parte das
manifestações não se colocava de modo peremptório em relação ao que se
convencionou chamar – termo também sujeito a controvérsia e a um amplo
debate no Brasil – de “fumo passivo”. Na verdade, o que se revelava era a busca
de mais debate e mais informação. Esta, aliás, é outra característica do IMS, que
sempre abraçou e debateu os tópicos polêmicos da saúde coletiva.
A constatação do interesse pelo debate fez com que Castro Santos
solicitasse à direção do IMS um seminário para discutir o tema. Para dar o
pontapé inicial, ele enviou um texto polêmico e instigante para que todos
tomassem conhecimento de sua visão sobre o assunto, a partir de uma ‘démarche’
das ciências sociais. Esta é a visão que, em linhas gerais, se apresenta aos
leitores no texto que abre a presente publicação. Estava lançada a semente para
uma fértil troca de ideias a ser realizada em futuro próximo e precedida de boa
divulgação. Este documento que se segue reúne apenas algumas das visões de
professores da casa e de alguns convidados que se prontificaram a “esquentar”
esse debate, apresentando suas primeiras impressões de forma prévia ao
seminário.

•7
O ponto de partida é o texto de Castro Santos, a que todos os participantes
deste documento tiveram acesso para crítica e comentário, de modo a aprofundar
o tema ou simplesmente oferecer outros subsídios para a discussão.
A Universidade Aberta da Terceira Idade (UnATI) foi convidada, por
intermédio do Prof. Renato Veras, seu diretor, médico e também professor do
Instituto de Medicina Social. Veras editou recentemente um livro do pesquisador
norte-americano Geoffrey C. Kabat, que se dedica a estudos epidemiológicos
sobre os possíveis riscos provocados pelos campos eletromagnéticos, pelo radônio
e pelo “fumo passivo”, entre outros tópicos polêmicos e cruciais para o debate
público sobre a intervenção do Estado na saúde pública. Kabat também aceitou
participar e contribuir para o debate, como convidado e especialista na área da
epidemiologia do câncer.
Sabemos que muitos colegas não tiveram oportunidade de enviar seus
artigos para esta coletânea de textos. No entanto, como o propósito não é o de
excluir nenhuma das posições, os autores deste documento estão certos de que,
durante o seminário programado, outros profissionais da área da saúde coletiva
se farão presentes, certamente com novas e importantes contribuições.

Julho de 2010

Os autores

8• • Riscos à saúde: fumaça ambiental do tabaco – pontos para um debate


EM DEFESA DOS FUMANTES 1
Por Luiz Antonio de Castro Santos

Quando a cidade sofre uma praga, é impossível remover suas vítimas. Cria-se
Luiz Antonio de Castro
um modelo de vigilância, controle e articulação dos espaços urbanos. É a
Santos (Guaratinguetá, SP,
imposição de uma grade (quadrillage, M.Foucault) sobre o território urbano
1945) é sociólogo formado pela
vigiado por intendentes, médicos e soldados. Assim, enquanto o leproso foi
PUC-Rio. Tem mestrado pela
rejeitado por um aparato de exclusão, a vítima da praga está enclausurada, Escola de Saúde Pública da
vigiada, controlada e curada através de uma rede complexa de dispositivos Universidade de Harvard e
que dividem e individualizam e, ao fazê-lo, também articulam a eficiência do doutorado em sociologia pela
controle e do poder. mesma universidade. É professor
Giorgio Agamben* associado da UERJ e pesquisador
do CNPq. Publicou inúmeros
artigos sobre saúde pública,
além dos livros O Pensamento
Los Angeles, 1993. A obsessão da saúde. Não podemos fumar em nenhum Social no Brasil (2003, Edicamp,
lugar. [...] Podemos fumar na rua, mas escondidos, porque é vergonhoso. esgotado) e, em co-autoria com
[...] Nos Estados Unidos o problema do tabaco está ligado à questão da Lina Faria, A reforma sanitária
saúde. Nas classes média-alta e alta, as quais dão o tom, em sua maior parte no Brasil: ecos da Primeira
as conversas versam sobre a saúde e ocupam um domínio que na Europa é República (Bragança Paulista:
consagrado à política. Edusf, 2003) e Saúde & História
Lucien Sfez** (São Paulo: Hucitec, 2010).

*Giorgio Agamben,
Conferência pronunciada no
I. A construção de um “comportamento desviante” Seminário “Metropoli/
Moltitudine” organizado pela
Uni Nomad em Veneza, 11 de
Novembro de 2006. Tradução de
Este é um breve ensaio sobre a produção de ideologias públicas que Arianna Bove e Pablo A. (do
italiano para o inglês e para o
buscam controlar ou banir formas contemporâneas de vida social. A ideologia espanhol).
pode ser considerada como produto de uma “consciência mistificada”, na ** Lucien Sfez, La Santé
conhecida concepção do filósofo polonês Leszek Kolakowski. As sociedades com Parfaite: Critique d´une nouvelle
utopie. Paris : Editions du Seuil,
profundo senso de valores comunitários construídos ao longo de um passado 1995, p. 62-63.

distante tendem a produzir normas e padrões rígidos, bem como ideologias que 1
Uma versão preliminar foi
definem territórios de inclusão e exclusão. Comunitarismo, um conceito obtido publicada em Contexts – um
periódico da Associação
da velha distinção sociológica alemã entre comunidade e sociedade, trata de Americana de Sociologia.
(Volume 8, n. 2, Verão de 2009:
um conjunto de valores e normas grupais que enfatiza laços comunitários em 72-74).
vez da solidariedade social.2 A vida social americana é muito forte em termos de 2
Veja-se o importante trabalho
valores de “solidariedade comunitária”. O ser social é a comunidade, construída de Michel Rosenfeld, “A Pluralist
Theory of Political Rights in
em torno de valores e práticas religiosas, familiares e institucionais, fortemente Times of Stress”, Benjamin N.
Cardozo School of Law, New
internalizadas e compartilhadas por seus membros. Aqueles que questionam as York, “working paper” n. 116,
2005.
formas estabelecidas de organização social são estigmatizados e discriminados,
posto que escolhem sair do ethos comunitário e de suas fontes de identidade
grupal.

• Luiz Antonio de Castro Santos •9


Um produto da “consciência mistificada” pelas raízes comunitárias foi
discutido por Joseph R. Gusfield, há mais de cinquenta anos. No estudo, que
agora é um clássico, Gusfield descreve as mulheres “das cruzadas” do Movimento
Americano de Moderação (American Temperance Movement) no final do século
19, um movimento social antiálcool, inspirado na Igreja.3 Em 1873, “um grupo
de mulheres em Ohio sentou-se em frente a tabernas protestando contra elas e
anotando os nomes dos clientes”(entrevista de JG na Addiction, 2006, 101:481-
490). Elas protestavam contra os “forasteiros” da comunidade, alvos da “obsessão
com o pecado e o vício” anglo-protestante nas comunidades rurais americanas.
Dois estudos recentes de rituais sociais e movimentos “antirrituais” nos Estados
Unidos enfatizam a superposição entre a União Cristã de Moderação das Mulheres,
a Liga contra os Bares e o Movimento Antifumo naqueles tempos de
fundamentalismo cristão4. De 1920 a 1933, a chamada “Proibição ao Álcool”
por Lei Federal culminou na defesa de valores puritanos do século passado e
levou a resultados inesperados: aumentou a violência e o crime no país, e
favoreceu a produção no mercado negro.5 De fato, as medidas antifumo do final
do século 20, bem como as contemporâneas, deveriam ser consideradas uma
expressão virulenta do paradigma antigo de “estigmatizar e banir” o
comportamento tipicamente desviante. Só que, dessa vez, o novo clima de
“temperança” resulta de um amálgama de valores urbanos neopuritanos, pesquisa
científica e, lamentavelmente, ficção. Médicos especialistas, epidemiólogos e
autoridades da saúde pública, buscando uma sociedade “sem riscos”, produziram
uma combinação explosiva de estudos científicos com “barefoot research” (sic)6
– pesquisa sem bases sólidas –, esta aconselhada por um ex-diretor do Programa
3
Joseph R. Gusfield, Symbolic de Controle do Tabaco no estado de Massachussetts, para responder rapidamente
crusade: Status politics and the
American Temperance “a questões em evidência no momento, tais como cigarros com sabor” (Karin
Movement. Urbana: University
of Illinois Press, 1963. Kiewra. “Where there’s smoke”. Harvard Public Health Review. Inverno de 2005,
4
David Wagner, The new
pp.12-17). Da mesma forma que as cruzadas morais contra o álcool em Ohio
temperance: The American tentavam fechar as tabernas no século 19, em nossos tempos, regulamentos
obsession with sin and vice.
Boulder, Colorado: Westview, draconianos da “polícia médica” banem o fumo e os fumantes de lugares públicos.
1997; Randall Collins,
Interaction ritual chains.
Princeton: Princeton University
Press, 2004.
Há uma série de razões para a imposição da proibição em locais públicos
5
como bares e restaurantes ou estações de trem e aeroportos. Basicamente,
Jeffrey A. Miron,
Libertarianism, from A to Z. repousam sobre a noção cientificamente controversa de “fumantes passivos” e
Basic Books, 2010.
alegação dos riscos de saúde daí decorrentes. A relação entre câncer de pulmão
6
Originalmente, “barefoot
doctors” eram os “médicos de e “fumo passivo” foi descrita em um estudo de 1981 pelo epidemiologista grego
pés descalços”, assim
chamados na China por ocasião
Dimitrios Trichopoulos. De fato, Trichopoulos teve uma espécie de laboratório
das campanhas sanitárias social na Grécia para tirar suas conclusões: os homens gregos eram fumantes
promovidas por Mao Tse-Tung.
A rigor, eram agentes pesados e as mulheres não fumavam. No entanto as mulheres com maridos
comunitários de saúde de
formação técnica e científica fumantes revelavam maior incidência de câncer de pulmão que as mulheres que
reduzida. A expressão
“barefoot research” é viviam em lares de não fumantes (Peter Wehrwein, “Epidemiology’s Odysseus”.
inadequada, pois uma pesquisa Harvard Public Health Review. Outono de 2004, p.31-33). A forte exposição ao
rapidamente conduzida não é
o mesmo que um trabalho de fumo de seus maridos foi a explicação para os diferentes resultados em relação
visitadores, que pode ser
perfeitamente competente e às outras mulheres.
crucial do ponto de vista da
atenção primária à saúde.

10 • • Riscos à saúde: fumaça ambiental do tabaco – pontos para um debate


Após as primeiras publicações por Trichopoulos e outros nomes
respeitados da Epidemiologia, uma avalanche de produções sobre o tópico em
décadas recentes dificilmente poderia ser classificada como literatura científica.
Os lados divergentes geraram um debate patético, infestado de retórica e palavras
evasivas. Por um lado, as conclusões de pioneiros como Trichopoulos, com seus
casais gregos, foram tomadas como verdades indevidamente generalizadas para
fumantes/não fumantes em grandes prédios e outros espaços de convivência
pública. Uma “Planilha de Fatos” com perguntas e respostas do Instituto Nacional
do Câncer dos Estados Unidos ilustra esse lado do debate. A lista é exaustiva –
a maioria das informações compilada como afirmativas ex cathedra, em um tom
autoritário, feito para desqualificar uma mente questionadora. Fato: “Não há
(...) as medidas
nível seguro de exposição para o fumante passivo”. Fato: “Não há nível seguro
de consumo de cigarros”. Fato relacionado: “Apenas três cigarros por dia podem
antifumo do
levar a uma doença cardíaca potencialmente fatal, estando as mulheres final do século
particularmente em risco” (National Cancer Institute, acesso em 8 de junho de 20, bem como
2010. http://www.cancer.gov/cancertopics/factsheet/Tobacco/ETS). Essas as
afirmativas demandam alguns pontos de interrogação. Se tomarmos os dois contemporâneas,
últimos alertas, quem foram essas mulheres avaliadas como particularmente deveriam ser
em risco? Suas idades, trabalho e vida emocional (laços de família, redes de consideradas
sociabilidade etc.) não importam? A evidência disponível leva em consideração
uma
diferentes estilos de vida? Suponhamos que uma mulher “particularmente em
expressão
risco” fume três cigarros por dia, mas mantenha uma dieta saudável, o peso
saudável, tenha atividades físicas regulares e seja adepta de “consumo de álcool virulenta do
baixo a moderado”? (Para cinco fatores de estilo de vida associados aos riscos paradigma
de doença cardíaca, ver a entrevista com Eric Rimm, “Take heart”. Harvard antigo de
Public Health Review. Inverno de 2009, pp.17-19). Em um campo carente de um “estigmatizar
sólido plano experimental para coleta de evidências, expressões cautelosas não e banir” o
seriam mais adequadas a uma publicação de base científica? comportamento
tipicamente
Se considerarmos os periódicos científicos claramente alinhados à guerra
desviante.
contra o tabaco, há pilhas de trabalhos de vários autores que podem indicar ou
uma busca continuada por resultados de pesquisa baseados em evidência, ou
apenas uma espécie de “barefoot research”, como a mencionada acima. É um
campo tomado por crenças profundamente enraizadas e nem sempre
substanciadas. O sociólogo Randall Collins fornece uma revisão cuidadosa do
debate nos Estados Unidos. Como uma observação preliminar, consideremos um
dos seus comentários: “Devido ao movimento antifumo ter uma retórica
polarizada, de tudo ou nada, ele não está preocupado em apontar que níveis de
uso de tabaco baixo ou moderado possam ser relativamente sem risco” (grifo
meu).7 Sob essas circunstâncias desfavoráveis, o debate certamente beneficia-
se com uma revisão recente da (diminuta) literatura sobre fumantes leves e
intermitentes, publicada por Schane e colegas, do Centro de Pesquisa e Educação
para Controle de Tabaco da Universidade da Califórnia, em São Francisco. O
trabalho de Rebecca E. Schane et al. (“Health effects of light and intermittent
smoking: a review”. Circulation. 2010, 121:1518-1521) deve ser comemorado 7
Collins, ibid: p. 334

• Luiz Antonio de Castro Santos • 11


por trazer luz a uma série de estudos prospectivos de grupo, estabelecendo os
riscos relativos para fumantes e não fumantes. Os pesquisadores obtiveram
evidências sobre fumantes leves e intermitentes; entretanto a discussão dos
autores sobre a literatura, bem como as conclusões a que chegaram, traem
preconceitos enraizados e um inegável conflito de interesses que reduz, desde
logo, a probabilidade de os autores analisarem os efeitos “reais” do fumo
intermitente ou leve. Os autores estão preocupados que os fumantes moderados
venham a aderir à crença “de que o fumo leve e intermitente não carrega riscos
significativos à saúde” (p.1518; grifo meu). Os autores temem que os fumantes
leves possam se sentir mais confortáveis com os “riscos à saúde”, por terem
reduzido seu nível de consumo diário ou semanal. De fato, o leitor pode sentir
a forte intenção dos autores em rejeitar ab initio qualquer possibilidade de
riscos à saúde mais baixos para níveis moderados de fumo. Apesar de
reconhecerem que a literatura disponível “não é vasta”, os autores concluem
que resultados adversos à saúde para o fumo moderado “correm paralelos aos
perigos observados no fumo diário”, particularmente para doenças
cardiovasculares (ibid: p.1518).

Uma critica adicional deve ser feita ao modelo de causalidade utilizado


pelos autores para o fumo passivo. Há problemas metodológicos decorrentes de
não avaliarem a duração e intensidade da exposição à fumaça, bem como o
efeito de mascaramento de outros fatores de difícil controle ou mensuração. “O
fumo passivo causa doença cardiovascular, câncer de pulmão, câncer de cérebro
e colo [...], doenças vasculares, infecções do trato respiratório e câncer de
mama em mulheres jovens”” (p. 1520; grifo meu). Colocado nesses termos diretos
e incondicionais, o modelo “causal” proposto é inadmissível. Esse é o aspecto
mais controverso da discussão, como argumenta o epidemiologista Jeffrey C.
Kabat em seu cuidadoso ensaio sobre fumo passivo.8 Kabat sugere cuidado com
relação a conclusões insustentáveis, tais como as que podem ser encontradas
em boa parte da literatura e, particularmente, a nosso ver, no trabalho recente
8
Geoffrey C. Kabat, Hyping de Schane, Ling e Glantz sobre fumo passivo. Também devemos argumentar que
health risks – Environmental qualquer trabalho que focalize diretamente o impacto diferencial de níveis de
hazards in daily life and the
science of epidemiology. New fumo sobre a saúde humana não pode dispensar uma discussão sobre níveis
York: Columbia University
Press, 2008. Uma edição do diferenciais de fumo passivo em não fumantes. Como afirmamos anteriormente,
livro em português foi lançada
recentemente: Riscos a duração e a intensidade de exposição têm de ser cuidadosamente avaliadas.
ambientais à saúde: mitos e
verdades. (Tradução de Edson
Um segundo comentário refere-se a uma prescrição dos autores, na conclusão
Furmankiewicz. Revisão do artigo. Ao propor que os médicos devem identificar fumantes leves, pesados
técnica e apresentação de
Renato Veras). Rio de Janeiro: e “passivos” entre seus pacientes, logo a seguir adotam uma retórica autoritária
Guanabara Koogan, 2010. Não
podemos, com seriedade, levar e inaceitável: uma vez identificados e classificados seus pacientes, os clínicos
em consideração as tentativas
dos críticos de desqualificar o
“devem trabalhar agressivamente para encorajar esses pacientes a parar de
autor como uma fonte da fumar completamente” (grifo meu; p.1521). Os autores autorizam uma
“indústria do tabaco”. O
conflito de interesses sempre é abordagem radical dos clínicos com relação a fumantes, mas não consideram os
uma questão séria, mas os
argumentos levantados por efeitos negativos que essa atitude irá criar, particularmente para fumantes
Kabat são válidos e sua voz
dissidente deve ser ouvida e
pesados, que se sentirão desencorajados a reduzir seu consumo diário. A
respeitada. psicologia social da relação médico/paciente claramente não é considerada nessa
abordagem de “abolição total”.

12 • • Riscos à saúde: fumaça ambiental do tabaco – pontos para um debate


Essa discussão nos leva à outra margem – bem marginal, sem dúvida –
da disputa. Uma série de estudos indica que áreas de fumantes bem ventiladas
em restaurantes e demais espaços públicos, com equipamentos tecnicamente
adequados, não propagam ETS (fumaça ambiental do tabaco) para áreas de não
fumantes. Esses estudos são disputados e desacreditados por críticos,
alegadamente por serem feitos sob os auspícios e influências da indústria do
tabaco. Para dois exemplos dos lados da contenda, veja-se R.A.Jenkins et al.,
“Environmental Tobacco Smoke – ETS - in the Nonsmoking Section of a
Restaurant: A Case Study” [Regulatory Toxicology and Pharmacology Volume 34
(3), dezembro de 2001, pp. 213-220; J. A. Francis et al., “Challenging the
epidemiologic evidence on passive smoking: tactics of tobacco industry expert
witnesses”, Tobacco Control, 2006; 15:68-76]. É surpreendente que a literatura
do “tobacco control” raramente tenha enfocado alguns grupos específicos
expostos a altos níveis de fumo, como ocorre com garçons. Não levá-los em
conta não seria outro modo de reafirmar a inexistência de defesas ou precauções,
salvo a “abolição total”? Quando a demarcação das áreas de fumantes nos bares
e restaurantes ainda existia nos Estados Unidos, as ligas e alianças contra o
fumo, hoje muito agressivas, nunca propuseram a medida, bastante sensível,
de se adotarem áreas de autosserviço para os fumantes, que assim serviriam
suas próprias bebidas e refeições.

Leitores de estudos científicos que têm o apoio de centros de controle


de tabaco, ou são por eles diretamente produzidos e publicados, além de serem
frequentemente financiados por agências governamentais, fundações privadas
e organizações ou cruzadas contra os fumantes, deveriam estar cientes de que
hipóteses, materiais e conclusões desses estudos podem também ser tenden-
ciosos. Como pode acontecer com estudos supostamente “financiados pela
indústria”, os estudos apresentados como científicos poderiam igualmente
produzir resultados metodológica ou analiticamente falhos, quando conduzidos
por pesquisadores conhecidos como “guerreiros antifumo”, em suas trincheiras
acadêmicas ou como consultores de organizações governamentais e não-
governamentais.

Uma outra guerra nos tempos atuais é levada contra o cultivo do tabaco.
Um dos tratados “mais amplamente adotados na história das Nações Unidas”,
(http://whqlibdoc.who.int/publications/2003/9241591013.pdf), que tem o
Brasil como signatário, é a Framework Convention on Tobacco Control, da
Organização Mundial da Saúde – uma iniciativa conhecida como a “Convenção
Quadro”. Esta Convenção não considera seriamente os efeitos sociais e econômicos
imprevisíveis de uma de suas posições mais controversas, i.e., “dar suporte a
atividades alternativas economicamente viáveis” para o cultivo do tabaco. No
Brasil, essa posição foi interpretada como uma licença para erradicar
completamente as plantações, uma interpretação defendida por alianças contra
o fumo e por inúmeros círculos da epidemiologia brasileira. Autoridades de
saúde e cruzadas antifumo nos países signatários parecem desconsiderar que a

• Luiz Antonio de Castro Santos • 13


Organização Mundial da Saúde e as demais agências das Nações Unidas têm sido
incapazes de atuar com a “agressividade” que prescrevem contra o tabaco, para
reduzir a ação dos cartéis do tráfico de drogas e os mercados ilegais de
processamento de cocaína. Ao tornar os cultivadores do tabaco produtores ilegais
em um futuro próximo, a Convenção assinada em 2005 abrirá um outro grande
mercado em potencial para o narcotráfico: um mercado negro para o cultivo da
planta e, igualmente, para a produção de cigarros.



A erradicação Uma outra doutrina controversa da Convenção Quadro resulta de seu
objetivo central, que tudo autoriza em nome de atingir “o mais alto padrão de
das safras do
saúde” para a população (“the highest standard of health”, WHO FCCT, “Forward”,
tabaco na
p. v) . Primeiramente, o objetivo deveria ser colocado como o “mais alto padrão
América do possível”, tendo em vista a necessidade de cautela diante do espectro amplo e
Sul, que de expansão incontrolada das medidas de intervenção na saúde cotidiana e nos
ademais de hábitos das pessoas. Essas medidas, de alcance e penetração sempre crescentes,
ser uma resultam das tentativas dos epidemiologistas de analisar e atribuir riscos a uma
proposta lista extensa e interminável de fatores ligados ao estilo de vida. O “mais alto
contra a padrão” pode vir a ser considerado pelas autoridades como um mandato para
Indústria o é interferir na vida das pessoas não só através da necessária medicina preventiva
e da educação para a saúde, como também – esse é o aspecto questionável – por
também
práticas ilegítimas de policiamento médico, a exemplo das medidas de banimento
contra e estigmatização dos fumantes em todo o mundo.
milhares de
famílias A erradicação das safras do tabaco na América do Sul, que ademais de
dedicadas há ser uma proposta contra a Indústria o é também contra milhares de famílias
gerações ao dedicadas há gerações ao cultivo, deve ser considerada e avaliada no cenário
cultivo, deve difícil de adoção de alternativas para a força de trabalho. Somente no Brasil,
ser mais de duzentas mil famílias cultivam tabaco por gerações. Há, no entanto,
opções viáveis. Tomemos o caso brasileiro, a guisa de exemplo. Cooperativas de
considerada e
pequenos agricultores independentes devem ser estimuladas e fortalecidas para
avaliada no lutar contra a difusão de fertilizantes químicos e pesticidas pela Indústria,
cenário difícil preocupada apenas em aumentar a produção e reduzir os preços agrícolas. A
de adoção de Convenção Quadro deverá ser reavaliada e alterada em seus objetivos rígidos e
alternativas socialmente insustentáveis. Os programas federais agrícolas subsidiarão
para a força diretamente os pequenos agricultores, dando suporte ao emprego de métodos
de trabalho. orgânicos de produção de tabaco. Os agrônomos e técnicos de agências e serviços
de extensão rural deverão substituir os agrônomos da Indústria na assistência
aos trabalhadores. Métodos de menor impacto ecológico para a cura e secagem
das folhas do tabaco devem ser buscados por agrônomos e pesquisadores do
sistema brasileiro de assistência técnica e extensão rural. Agricultores serão
aconselhados a usar vestes de proteção para evitar o contato da pele com as
folhas molhadas da planta e assim se prevenirem contra a “doença do tabaco
verde”, conhecida nos Estados Unidos como “GTS”. Estas são formas de vencer

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as persistentes e crescentes pressões de erradicação. O cenário do Armagedom,
de uma planta “maldita”, vale menos do que um mal dirigido filme de horror.

II. O olhar sociológico: um chamado à tomada de posição

Com as poucas exceções já citadas, a sociologia internacional mantém


um silêncio inexplicável com relação às questões levantadas neste ensaio. Isso
é extremamente surpreendente, se nosso legado intelectual for seriamente levado
em consideração: pensemos no interacionismo simbólico de Erving Goffman,
Howard C. Becker e Joseph R. Gusfield; na etnometodologia de Harold Garfinkel;
na sociologia cognitiva de Aaron Cicourel; na psicologia social de Anselm Strauss,
Claudine Herzlich, Oracy Nogueira e Serge Moscovici, entre outros grandes nomes.
A sociologia deve muito aos grandes estudos sobre as formas com que a sociedade
e as comunidades reforçam seus valores ultrapassados, impondo estigma, imagens
deterioradas e discriminação sobre práticas consideradas inaceitáveis. Se a
poderosa “Motion Picture Association of America” não mais glamouriza o fumar
nos filmes produzidos na “América”, de forma alguma é tolerável que os fumantes
sejam agora representados em papéis moralmente condenáveis, como assassinos,
estupradores ou jovens envolvidos em violência escolar.9 O fumar, como traço
“desviante”, adquiriu um “valor simbólico generalizado”. A seguinte afirmativa
de Becker se aplica à imagem deteriorada do fumante nos EUA e em várias
regiões do mundo: “A posse de um traço desviante pode ter um valor simbólico
generalizado, de forma que as pessoas automaticamente assumam que aquele
que o possui tem outros traços indesejáveis alegadamente associados a ele”.10

A primeira epígrafe desse ensaio, do filósofo italiano Giorgio Agamben,


aponta para a existência, na história, de aparatos sociais e legais que não apenas
resultam de uma ideologia de controle sobre os espaços públicos, mas a
reproduzem e reforçam. A peste, como epidemia mortífera, representa um
paradigma histórico de aplicação de técnicas disciplinares, impostas por medidas
de “polícia médica”. Para os objetivos da presente discussão, a analogia entre a
vítima da peste e os fumantes não é a mais adequada, pois sobre eles já não
bastam “técnicas disciplinares”; como os leprosos no passado, os fumantes agora
devem ser banidos da convivência pública. Os dispositivos de vigilância não
vão longe o suficiente para os militantes antifumo; o fumante deve ser excluído
das benesses da vida social e da interação. O paradigma de exclusão do leproso
começa a ser aplicável àqueles que até recentemente eram vigiados ou
disciplinados, mas ainda não haviam sido banidos por normas de policiamento
médico. A segunda epígrafe, do sociólogo francês Lucien Sfez, é uma crítica 9
É surpreendente que a
Associação Americana de
ácida à busca pela “saúde perfeita” das ideologias e utopias contemporâneas. O Sociologia não tenha, até
hoje, exigido que a indústria
século XXI é o lugar utópico (ou ideológico) de um projeto bio-eco-religioso de do cinema pare de
saúde pública. Sfez não poderia prever que o começo do terceiro milênio muito estigmatizar ou demonizar os
fumantes.
rapidamente presenciaria um cenário global modelado pela busca norte- 10
Howard Becker, Outsiders.
americana da “saúde obsessiva”. Quem teria previsto tal difusão global de códigos New York: The Free Press,
1963. See p. 33.
e exclusões da saúde? De fato, sua descrição da proibição do tabaco nos EUA

• Luiz Antonio de Castro Santos • 15


não foi uma previsão do que estaria por vir em pouco tempo,
mesmo em sua França nativa? Em seu país, o banimento do
fumo em fevereiro de 2007 foi logo estendido ao café, o mais
“cultuado de todos os lugares para os fumantes”, como anunciou
a mídia. A recente divulgação de outdoors (2010) em Paris
mostrando fotos de pessoas “escravizadas” pelo tabaco (“Fumar
é ser escravo do tabaco”) é parte de uma campanha da associação
francesa de não fumantes. Um dos outdoors, com uma foto
particularmente vulgar de uma mulher “escrava”, possivelmente
reflete o pensamento de tantos consultores norte-americanos,
de que fartas doses de “propaganda agressiva” deveriam ser
utilizadas contra o fumante (“Stamping out cigarettes,” Health
without boundaries. Harvard School of Public Health, 2008,
p. 28).

Nos EUA, ao discutir a importância dos espaços públicos


Uma campanha vergonhosa da
da associação francesa de não
de sociabilidade para estreitar os laços emocionais e superar o individualismo,
fumantes (Association DnF — o sociólogo Randall Collins dá particular atenção aos rituais do fumo nos cafés
Direitos dos não-fumantes).
e pubs.11 Ao denunciar “o exagero retórico das alegações do movimento
antifumo,” 12 Collins questiona o uso indevido e abusivo das estatísticas. “Em
termos de doenças cardíacas coronárias, o risco de morte anual é: 7 em 100.000
para não fumantes, 104 para 100.000 para fumantes; uma razão de 15 para 1.
Entretanto, em percentagens brutas, a história pode ser contada de outra
maneira: ambas as proporções são muito baixas. [...] Assim, o fumante tem
98,9 por cento da chance anual de um não fumante de escapar da morte por
doença coronariana”. O autor prossegue: “as estatísticas per se não apresentam
um cenário tão forte de riscos à saúde pelo fumo que explique o porquê de
tantas pessoas se posicionarem tão veementemente contra ele” (...) “As
estatísticas poderiam igualmente ter sido interpretadas [...] de que há uma
chance muito pequena de ficar doente, salvo por uma exposição intensa e
prolongada ao fumo passivo”. 13 Na verdade, esse foi o caso das mulheres gregas
com câncer de pulmão, sob as condições de exposição intensa e prolongada
descritas pelo estudo pioneiro de Trichopoulos. A fim de que o argumento de
Collins não seja incompreendido e logo desqualificado, os críticos devem ser
alertados de que seu trabalho não se posiciona diante dos defensores ou
oponentes da “indústria do tabaco”: Collins escreve sobre os laços de interação
11
Randall Collins, Interaction
ritual chains. Princeton:
social e sua dimensão sociológica, não sobre as cadeias de mercado ou sua
Princeton University Press, importância econômica.
2004

12
Ibid: 332-333.
Um dos pontos fortes da tradição da sociologia médica e da sociologia
13
Ibid: pp. 332-333. da saúde é sua independência – teórico-metodológica e política – em relação à
14
Luiz A. Castro Santos, “First- epidemiologia. 14 A voz de Collins contra os “exageros retóricos” dos epidemiolo-
rate sociology or second-hand
epidemiology?” ASA Forum.
gistas e de outros círculos médicos na guerra contra o tabaco é um exemplo
Footnotes. American excelente dessa independência, tanto no campo da análise quanto no da
Sociological Association, maio/
junho 2010, p. 12. metodologia. Seu trabalho, particularmente, chama a atenção para o trauma

16 • • Riscos à saúde: fumaça ambiental do tabaco – pontos para um debate


emocional infligido por programas, alianças e convenções sobre fumantes de
todo o mundo; além disso, chama a atenção sobre a interferência descabida
desses programas sobre os espaços de interação social, tais como restaurantes e
bares ora barrados aos fumantes.

As autoridades da saúde e as estratégias reguladoras internacionais devem


ser responsabilizadas por buscarem um ambiente de “limpeza sanitária”. A maioria
das campanhas para “eliminar o tabaco da face da Terra” compôs seus dogmas
e livros litúrgicos; na verdade, as “guerras antitabagistas” em todo o mundo já
descartaram os dados epidemiológicos para legitimar sua causa. Mesmo que
novas pesquisas possam sugerir cautela e precaução em relação aos modelos
causais empregados para o estudo do fumo – particularmente no tocante ao
fumo leve ou intermitente e para a exposição ao fumo passivo —, é pouco
provável que os defensores da “extinção dos cigarros” recuem ou revelem bom
senso. Eles percorreram um longo caminho para parar agora.

A epidemiologia cumpriu um papel importante, que a sociologia deve


destacar. Os primeiros avisos sobre os males do fumo vieram das descobertas
epidemiológicas. Foi uma etapa importante e esclarecedora. Os programas de
educação para a saúde tornaram-se conscientes da necessidade de colocar os
fumantes inveterados ou compulsivos entre suas preocupações. As escolas e
faculdades de saúde pública dos anos 70 nos Estados Unidos estimaram a
prevalência de riscos altos à saúde para os fumantes pesados e discutiram a
necessidade de restringir o vício. A epidemiologia e a política social se
aproximaram de modo fortuito, em direção ao controle do consumo excessivo e
à restrição do poder ilimitado da indústria do tabaco. Áreas de fumantes e não
fumantes nos salões de restaurantes, pubs e em outros espaços públicos, como
aeroportos, foram criadas. Uma convivência pacífica e respeitosa se instaurou.

Entretanto, à medida que os primeiros passos foram dados, os defensores


da velha moral das Temperance Societies nos Estados Unidos ganharam espaço,
deixando para trás a educação para a saúde e as medidas preventivas e
transformando o fumo em uma questão de policiamento médico. As políticas
que respeitavam não fumantes e fumantes igualmente foram eliminadas.
Restaurantes e aeroportos tornaram-se os primeiros alvos dos muros de exclusão.
Nas últimas décadas, muito mais que rifles e armas ou o tráfico de cocaína ou
heroína, o fumo foi rotulado como o mal supremo e como “socialmente inacei-
tável” nos EUA e no mundo. “Vigilantes” da saúde e consultores ou especialistas
acadêmicos passaram a atuar de mãos dadas. Os espaços abertos de convívio
foram fechados por políticas que coadunam ressentimento, medo social e
exclusão.

Um ponto deve permanecer claro. A sociologia da saúde tem muito a


ganhar com o conhecimento dos campos da medicina e da epidemiologia. Os
modelos estatísticos de epidemias, recentemente aplicados para o vírus da

• Luiz Antonio de Castro Santos • 17


influenza H1N1, constituem um exemplo importante. Epidemiologistas e
especialistas põem-se em alerta, a fim de prevenirem um cenário de proporções
epidêmicas. Ainda assim, restrições a viagens e a imposição de quarentenas
sempre colocam um entrave à vida social. Se uma pandemia de influenza pode
justificar certo nível de intervenção médica nas esferas públicas e privadas, a
eliminação permanente dos espaços dos fumantes e sua progressiva
criminalização pedem a imposição de limites à autoridade médica e a seus
códigos de saúde. Os fumantes enfrentam hoje, seguramente, o maior ataque
público desfechado na era moderna aos rituais de sociabilidade e de livre convívio,
nos Estados Unidos e em várias outras regiões do mundo.

Para a sociologia, lições antigas de fecundo relacionamento com o campo


médico não podem ser esquecidas. Nos anos 70, a teoria social estimulou a
criação de laços fortes de solidariedade social, quando um livro de grande
impacto, intitulado The Gift Relationship, de autoria do sociólogo inglês Richard
Titmuss, um dos precursores da administração em saúde na Inglaterra,
pressionou, de forma bem sucedida, para a eliminação do comércio de sangue;
Titmuss enfatizava “o valor social de solidariedade” nas doações de sangue,
promovidas por campanhas nos campi e locais públicos. 15 Este foi, de fato, um
exemplo de uma sociologia pública que divulgava palavras de solidariedade
social a nações e culturas em todo o mundo.

Tornou-se corriqueira, nas frentes antitabagistas, a alegação de que “os


direitos individuais não podem sobrepor-se aos coletivos”. Os direitos coletivos
são um ponto de partida ético-político, uma premissa norteadora da política
pública, não um preceito litúrgico. Em nome da prevenção da doença, ou de
princípios de precaução, o “coletivo” não pode asfixiar o “privado”. Não à toa, a
sociologia hoje esquecida – como a de Erving Goffman nos países anglo-saxões16,
ou a de Oracy Nogueira no Brasil17 — procurou definir espaços de defesa e de
15
Richard M. Titmuss, The gift legitimidade para os “excluídos” e estigmatizados. Neste sentido, os espaços de
relationship: from human
blood to social policy. Nova convivência e convizinhança são matrizes de uma autêntica sociabilidade. O
York: Pantheon Books, 1971.
conceito oblíquo e enganoso de “fumo passivo” foi concebido nos mesmos fornos
16
Erving Goffman, Estigma –
Notas sobre manipulação da ideológicos da exclusão dos pestosos e leprosos de outros tempos. A literatura
identidade deteriorada.
Tradução de Márcia Bandeira
de ficção é farta de exemplos. Recentemente, o romance do escritor norte-
de Mello Leite Nunes. Rio de americano Thomas Mullen, The last town on earth, apresenta aldeões de um
Janeiro: Ed. Guanabara, 1988.
pequeno lugarejo tentando se proteger da pandemia de influenza de 1918. 18 Os
17
Oracy Nogueira, Vozes de
Campos do Jordão: experiên- moradores do “último povoado” votaram a favor de se fechar aos forasteiros que
cias sociais e psíquicas do
tuberculoso pulmonar no pudessem contaminar a população. Quando um soldado faminto se aproxima
Estado de São Paulo. (Primeira dos guardas na entrada da vila e pede abrigo, eles decidem impedi-lo. Mais
edição, Revista Sociologia.
1950). 2ª. edição. Rio de tarde, um aldeão abatido moralmente narraria sua história: “Nós atiramos num
Janeiro: Editora Fiocruz, 2009.
homem que tentou entrar no povoado. (...) Era um soldado. Ele era jovem.
18
Thomas Mullen, O último
povoado da terra. Trad. de Tossia e espirrava muito. Ele implorou. Começou a chorar e neste momento
Rosana Telles. São Paulo:
Editora Landscape, 2007.
Graham puxou o gatilho”. 19 A história é triste e elucidativa. Algumas vozes
19
sempre se levantarão em benefício de uma coletividade, abstrata ou real; isto
Ibid: p. 48.
não basta. Outros entre nós, de posse das lições deixadas nas melhores trilhas

18 • • Riscos à saúde: fumaça ambiental do tabaco – pontos para um debate


da sociologia mundial, argumentaremos que o suporte ao bem coletivo não
pode impedir-nos de proteger o soldado rejeitado. Os sociólogos devem fazer a
dura escolha em favor dos excluídos. Como no passado, a saúde da aldeia global
de nossos tempos tampouco pode justificar a exclusão daqueles considerados
“socialmente inaceitáveis”. Os desafios morais dos direitos das minorias vis-à-
vis o interesse público devem ser abordados com tolerância e prudência, não
através de proibições iníquas e aparatos de exclusão. As pontes de convivência
são um imperativo em nossos dias, não os muros da vergonha.
Os fumantes
Durante as últimas décadas, epidemiologistas, autoridades da saúde enfrentam hoje,
pública e legisladores contaram com a aquiescência e cumplicidade dos sociólogos, seguramente, o
que perderam a determinação de lutar contra as cerimônias degradantes que maior ataque
Harold Garfinkel descreveu nos anos 50. Acuada pela epidemiologia, a sociologia público
abriu mão de um papel ativo na vida pública. Os números da epidemiologia que
desfechado na
“demonstram riscos”, bem como os índices atuais e prospectivos de mortalidade
e morbidade, são ansiosamente procurados pelas autoridades públicas em um
era moderna aos
esforço para legitimar seus programas e práticas de saúde, mesmo quando rituais de
disparados por uma “consciência mistificada” ou instruídos por dados estatísticos sociabilidade e
colhidos ad hoc. Os sociólogos deveriam dar um passo à frente e fazê-los saber de livre convívio,
– bem como às ligas e alianças antifumo — que não se silenciarão diante de nos Estados
políticas de saúde desnecessariamente impositivas e moralmente ilegítimas.
Unidos e em
Devemos, ao contrário, interferir em tais contextos. Temos de tomar partido.
várias outras

 regiões do
mundo.
A sociologia da saúde deve externar a preocupação com os efeitos não
antecipados da intervenção epidemiológica nos espaços públicos. No caso dos
fumantes, os sociólogos devem estar conscientes dos efeitos sociais dos códigos
disciplinares, draconianos e mal elaborados. A legislação que dispõe sobre os
hospitais livres de fumo, ou as escolas e os locais de trabalho convenientemente
protegidos, deverão distinguir entre esses lugares e espaços de convívio e
sociabilidade “de tempo parcial”, como restaurantes, bares, halls de cinemas e
teatros e saguões de aeroportos, estações de trem e rodoviárias. Estes lugares,
entre muitos outros, deveriam propiciar e manter locais bem ventilados para
fumantes, ao invés de colocá-los fora dos limites, como se fossem os novos
leprosos e pestosos do século XXI.20 Nos Estados Unidos, os patrões têm sido
obrigados por planos de saúde a “estimular” seus empregados a não fumar, 20
A chamada “Lei Seca” no
mas, ao invés disso, adotam um olhar investigativo e policial em suas casas e Brasil merece uma discussão à
parte. As medidas contra os
vidas privadas, fora do local de trabalho. Isso não é “estímulo”, é intromissão motoristas que dirigem
bêbados não os expulsam dos
descabida. O foco crescente e o entusiasmo com que as autoridades bares, não impedem a
governamentais e legisladores saúdam as campanhas antifumo podem convivência plena com os
abstêmios e estimulam o
simplesmente ocultar sua derrota evidente em outros campos, a exemplo de recurso ao transporte coletivo
ou solidário. No entanto, os
seus fracassos para controlar o narcotráfico, a posse de armas e a violência níveis de intolerância para a
urbana nos EUA ou em toda a América Latina. Esses deveriam ser os alvos da “concentração de álcool por
litro de sangue” dos motoristas
política social e da sociologia, o tópico principal de agenda – não a delimitação são muito rígidos e deveriam
ser revistos.
forçada de espaços de sociabilidade ou a nova ideologia sanitária, ainda mais

• Luiz Antonio de Castro Santos • 19


autoritária e invasiva, de cidades inteiras “livres de fumo”, anunciada
triunfalmente pelos vigilantes do Terceiro Milênio. A sociologia não tem sentido
se permitir que outros campos de conhecimento social ditem o significado de
“público”. A vida pública e os rituais de solidariedade grupal devem ser cultivados
e mantidos livres de formas de controle sanitário excessivo e marginalizante.
Precisamos construir pontes entre o público e o privado, não muros de opróbrio
e estigma.

20 • • Riscos à saúde: fumaça ambiental do tabaco – pontos para um debate


SOBRE HUMILHADOS VISÍVEIS
E INVISÍVEIS: um sonho lúcido
de realidade
Por Nelson F. de Barros

Há cerca de 10 anos, parei de fumar. Não pretendo voltar a fumar, Nélson F. de Barros é graduado
em Ciências Sociais, com
embora fantasie alguma tragada vez ou outra. Sou menos ingênuo agora e especialização em Ciências Sociais
acredito pouco na possibilidade de viver coletivamente sem constrangimento; Aplicadas à Saúde, mestrado e
doutorado em Saúde Coletiva, pela
isto é, sem a transformação do instinto em instituição. Consigo compreender a Universidade Estadual de
potência da disciplina, sobretudo quando a separo da vida religiosa e militar. Campinas-Unicamp e pós-
doutorado pela University of
Além disso, identifico a importância do civismo como estratégia de manutenção Leeds. Atualmente é Professor do
do processo civilizatório de uma massa de pessoas transformada em cidadãos. Departamento de Medicina
Preventiva e Social, Faculdade de
Ciências Médicas, Unicamp. Bolsista
Mas lido mal com autoritarismo, e alguns amigos dizem que estudo de Produtividade em Pesquisa do
CNPq - Nível 2. Principais temas de
sociologia por causa disso. Não gosto das formas de produção de exclusão e pesquisa: sociologia da saúde;
mantenho-me atento para evitar a humilhação social e sua (in)visibilidade. práticas alternativas,
complementares e integrativas em
saúde; metodologia de pesquisa
Em estudo baseado em observação participante sobre garis, num campus qualitativa.

universitário, o psicólogo Fernando Braga da Costa discorre sobre as práticas de


humilhação desses “homens invisíveis”. A rigor, não são outsiders no sentido
atribuído por Becker. São invisíveis, mas não desviantes. Já os fumantes são
humilhados visíveis e desviantes. Vejamos as reflexões de José Moura Gonçalves
Filho, em magnífico prefácio ao livro de Costa:

Para os humilhados, a humilhação é golpe ou é freqüentemente sentida


como um golpe iminente, sempre a espreitá-las, onde quer que estejam, com
quem quer que estejam. (...) A humilhação crônica quebra o sentimento de
possuir direitos. (...) Marca a personalidade por imagens e palavras ligadas a
mensagens de rebaixamento arremessadas em cena pública: na escola, no trabalho,
na cidade. São gestos ou frases dos outros que penetram e não abandonam o
corpo e a alma do rebaixado. (...) A humilhação age como golpe externo, um
golpe público, mas que vai para dentro e segue agindo por dentro: um impulso
invasor, desenfreado, uma angústia. (Gonçalves Filho, in Costa, 2004, pp. 9-
48, passim)

Assim, ainda que me aborreça a fumaça do cigarro, incomoda muito


mais a vigilância ideológica, bem menos concreta e por vezes mais perniciosa,
para a construção de relações baseadas no respeito e na responsabilidade. A maior

• Nelson F. de Barros • 21
parte da proibição e do controle atualmente desenvolvidos no campo da saúde
procede com base no referencial da economia da saúde, mas a vida está longe
de ser reduzida à racionalidade contábil, e forçar essa associação é um
procedimento alienante.

Um sintoma da confusão intensa é a patologia do normal ou a “normose”,


cujos efeitos dilaceram o discernimento e conduzem à incapacidade de romper
com normas e normatizações de base autoritária. A intelligentsia está sucumbida,
sobretudo quando se esconde por detrás de políticas públicas, como da Promoção
de Saúde, que intervém, como se espera, e interdita a produção de consciência,
como não se espera, já que apregoa o “empoderamento” e a participação ativa
dos cidadãos.

Neste Neste momento, a perseguição no Brasil se volta ao uso do tabaco, em


momento, breve será à obesidade, e a lógica continua a ser a mesma que levou à Revolta
da Vacina no começo do século 20. Nos tempos atuais, de intensa medicalização,
a perseguição
não há mais uma cultura de resistência que leve a revoltas. Cabem a nós,
no Brasil se
sociólogos, alguns momentos de sonho e lucidez. Em realidade, no Japão, a
volta ao uso obesidade já é perseguida autoritariamente. Em 2008, o ministério da saúde
do tabaco, japonês, sob a orientação dos epidemiólogos clínicos da Federação Internacional
em breve de Diabetes, regulamentou o controle das medidas abdominais de homens e
será à mulheres entre 40 e 74 anos de idade. (Ardel, 2008; Onishi, 2008)
obesidade (...)
Trabalhadores e trabalhadoras nessa faixa etária são obrigados a submeter-
se a exames anuais. Se estiverem acima das medidas e, passados três meses do
diagnóstico, ainda persistir o “sobrepeso”, são obrigados a submeterem-se a
dieta alimentar. Se o “mal” persistir após seis meses, são constrangidos, sob
pena de multa e perda do direito à atenção, a tomarem parte em curso de re-
educação alimentar.

Um novo nome foi criado para estigmatizar as pessoas acima das medidas,
pois chamá-las de obesas já não surtia os efeitos esperados. Então, atualmente,
existe no Japão um grupo chamado “metabo”, nome que vem de “metabolic
syndrome”, que é um conjunto de sintomas (obesidade abdominal, pressão alta
e altas taxas de glicose e colesterol) que pode levar a problemas vasculares.

Os profissionais justificam a adoção do termo “metabo” por considerá-lo


mais inclusivo, deixando ver mais uma vez como grande parte dos programadores
e trabalhadores da saúde adere, exatamente no sentido de colar, a projetos
reducionistas e autoritários. Ainda não se deram conta dos efeitos perversos
dos rótulos sobre as vidas das pessoas, mesmo que vários trabalhos mostrem o
estigma social que deriva do ato de rotular (Becker, 2009). Recentemente
publicamos achados dessa natureza em relação à epilepsia, com uma palavra de
cautela em relação aos efeitos de chamarmos uma pessoa de “epilética” ou
“pessoa com epilepsia” (Fernandes et al, 2009). Resumidamente, as pessoas

22 • • Riscos à saúde: fumaça ambiental do tabaco – pontos para um debate


com epilepsia podem não demonstrar publicamente a doença
– não são visíveis como os fumantes – e, por isso, poderão ser
menos rejeitadas socialmente, com muito maior facilidade nos
relacionamentos sociais. Daí a cautela em relação ao rótulo.

A imagem ao lado é um pôster da campanha de perda


de peso do governo japonês exposto em clínicas de saúde
pública. As palavras em japonês anunciam: “adeus, metabo”.
Chama a atenção o terceiro elemento da figura, um cachorro
bonitinho e parecido com os “metabo”. O que será que isso
quer dizer? Homens, crianças e cães devem estar similarmente
sujeitos ao adestramento? (Onishi, 2008)

Intervenções como a que se verifica no Japão, assim


como as relativas ao controle do uso do tabaco atualmente no
Brasil, não atendem a uma pedagogia da autonomia (Freire,
1996). Esta pedagogia se volta contra a reificação promovida
pelos programas e profissionais da saúde; isto é, opõe-se à apreensão dos
fenômenos humanos como se fossem coisas, como se homens e mulheres não
fossem atores e agentes com graus de liberdade na construção e autoria do
mundo humano, e como se a desumanização e a coerção fossem a medida da REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS
vida coletiva. ARDELL, Donald Bl.- The Japanese
Approach To Weight Loss.
Disponível em: http://trusted.md/
Se a fumaça do cigarro me incomoda, incomodam mais as ações de blog/donald_b_ardell/2008/06/18/
the_japanese_approach_to_weight_loss#
violência física e simbólica. Por isso, tenho um sonho lúcido de realidade ao axzz0swGIelon

opor-me a intervenções dogmáticas, que travam o processo civilizatório e não BARROS, Nelson F de. - Notas
sobre a humilhação social.
reconhecem o respeito à autonomia e à dignidade como um imperativo ético e Campinas: Boletim FCM. Maio
não uma delegação ou um favor; que não atentam para a difícil passagem da 2009.

heteronomia para a autonomia, que corresponde à “expulsão” do opressor de BECKER, Howard S. Outsiders -
Estudos de sociologia do desvio.
“dentro” do oprimido; que não reconhecem, por fim, que ninguém é sujeito da Rio de Janeiro: Zahar. 2009
autonomia de ninguém, que ninguém amadurece de repente. Autonomia é COSTA, Fernando Braga da –
Homens invisíveis: relatos de uma
processo, é vir a ser centrado em experiências estimuladoras da decisão e da humilhação social. São Paulo:
responsabilidade, da livre interação e da sociabilidade. Globo, 2004.

FERNANDES, Paula T; Barros,


Nelson F de; Li, Li Min.- Stop
saying epileptic. Epilepsia. 2009
May;50(5):1280-3.

FREIRE, Paulo. - Pedagogia da


autonomia: saberes necessários à
prática educativa. São Paulo: Paz e
Terra. 1996. 165 p.

GONÇALVES FILHO, José Moura. -


“Prefácio: a invisibilidade pública”.
IN Costa, 2009, pp.9-48.

ONISHI, Norimitsu. - Japan,


Seeking Trim Waists, Measures
Millions. The New York Times –
Ásia Pacific. Publicado em 13 de
junho de 2008. Disponível em:
http://www.nytimes.com/2008/06/
13/world/asia/13fat.html

• Nelson F. de Barros • 23
24 • • Riscos à saúde: fumaça ambiental do tabaco – pontos para um debate
SOBRE O RISCO E A
PERICULOSIDADE SOCIAL
A lei antifumo em questão
Por Joel Birman

I. Diferenças
Joel Birman é psicanalista,
professor titular do Instituto de
A lei antifumo, tal como foi recentemente instituída no Brasil com Psicologia da Universidade Federal
bastante ruído político e ressonância midiática, se inscreve certamente num do Rio de Janeiro e professor
adjunto do Instituto de Medicina
movimento internacional de proscrição do fumo, em escala planetária. Assim, Social da Universidade do Estado
chegou também nas nossas praias aquilo que já tinha sido instituído em outros do Rio de Janeiro, doutor em
Filosofia pela Universidade de São
países. No entanto a interdição de fumar não se pauta pelos mesmos padrões, Paulo, mestre em Saúde Coletiva
nas diferentes tradições sociais existentes. Pressupor a existência desta pelo Instituto de Medicina Social
da Universidade do Estado do Rio
identidade, numa homogeneização ostensiva da interdição de fumar, seria um de Janeiro, diretor de Estudos em
erro primário de leitura do que acontece efetivamente e que impossibilita a Letras e Ciências Humanas da
Universidade Paris VII, pós-
avaliação do processo em pauta. doutorado em Psicanálise e
Psicopatologia Fundamental pela
Universidade de Paris VII,
É preciso reconhecer, antes de mais nada, que a interdição de fumar pesquisador associado do
não é homogênea nas diferentes sociedades, mas fundamentalmente diferente. Laboratório de Psicanálise e
Medicina da Universidade Paris VII.
Estas diferenças se baseiam não apenas na existência de códigos culturais, Autor de diversos livros em
religiosos e sociais diversos, mas também em tradições políticas bastante português, francês e espanhol,
além de artigos em revistas
diferenciadas. Seriam tais diferenças e diversidades que estabeleceram o funda- científicas em português e francês.
mento das diferentes políticas sanitárias e do espaço da saúde pública, delineando
então a construção efetiva dos dispositivos da saúde coletiva. Vale dizer, o que
está em pauta nesta diferenciação efetiva dos dispositivos sanitários face às
ameaças do fumo não são apenas os discursos das ciências e da medicina, mas
também outras dimensões da ordem social, que delineiam os campos da ética e
da política na experiência social.

No que concerne à lei brasileira sobre isso, podemos afirmar que se


pautou pelos padrões estabelecidos na tradição norte-americana e tem a marca
insofismável da ética protestante, para me valer aqui de uma alusão à obra
fundamental de Weber.1 Isso porque as referências à pureza e à impureza estão
inscritas no primeiro plano do projeto de proibição em pauta, se bem que estas 1
Weber, M. L´éthique protestante
et l´esprit du capitalisme. Paris,
categorias se inscrevem agora no campo da saúde pública e não mais no da Plon, 1964.

teologia. O que está em questão não é mais o pecado, mas a limpeza e a sujeira 2
Douglas, M. De la souillure.
Études sur la notion de pollution et
na cartografia do espaço social, para aludir à obra de Mary Douglas,2 na leitura de tabou. Paris, La Découverte,
que propõe sobre a periculosidade social, pela leitura das categorias acima. 1992.

• Joel Birman • 25
Assim, o que se destaca no campo da lei brasileira é a sua marca
draconiana na caracterização dos fumantes como impuros, da mesma forma
como anteriormente se realizava a caça às bruxas e às bebidas alcoólicas na
tradição norte-americana. Estabeleceu-se então a proibição de fumar em espaço
públicos, fechados e semi-fechados. Além disso, a ocupação de quartos em
hotéis passou a ser estabelecida entre os fumantes e os não fumantes, da mesma
forma que o aluguel de imóveis seguirá o mesmo padrão no futuro, como já
existe hoje nos E. Unidos. Dessa maneira, o fumante é a figuração da impureza
e da sujeira, passando a ser repudiado violentamente no espaço público.

Em outros países existe também a lei antifumo, mas sem esta marca
draconiana. Assim, na Espanha e na Argentina, continua a existir a antiga
delimitação do espaço público entre os espaços para os fumantes e os não
(...) o fumante fumantes. Em outros países europeus, como a França, existe a interdição de
é a figuração fumar em espaços fechados, mas pode-se fumar em espaços semi-fechados. O
da impureza e que isso revela é a existência de uma outra mentalidade sobre o fumo, sem a
da sujeira, presença das marcas severas da moral reformada sobre o mal,na sua leitura
sobre os campos da saúde, da doença e da morte.
passando a
ser repudiado
A intenção deste comentário é situar esquematicamente esta
violentamente problemática.
no espaço
público. II. Deslocamentos

O que se destaca de maneira ostensiva nas novas gerações é o incremento


ostensivo de consumidores de bebidas alcoólicas, sem me referir, é claro, ao
aumento efetivo de consumidores de drogas estimulantes e dos obesos, em
escala internacional. Se bem que, no que concerne aos obesos, fala-se muito na
má qualidade da alimentação, mas não há dúvida de que existe também o
incremento dos glutões na atualidade.

Habito ao lado de uma grande universidade, onde existe um famoso


botequim que é vivamente frequentado pelos estudantes. Fico espantado de
perceber o alto consumo de bebidas alcoólicas, que se dissemina como um
hábito entre os jovens, independentemente da condição de gênero desses. Com
efeito, homens e mulheres bebem para valer e enchem a cara, em mesas apinhadas
de garrafas de cerveja, no final de um dia de aula.

Não estou absolutamente censurando os jovens por isso, bem entendido.


Longe de mim qualquer intenção moralista sobre as libações dos universitários.
No entanto o que é preciso sublinhar devidamente é que o que ocorre com estes
jovens acontece igualmente com outros segmentos sociais da sociedade brasileira,
de maneira insofismável.

26 • • Riscos à saúde: fumaça ambiental do tabaco – pontos para um debate


Não se pode esquecer que estes jovens, como também a geração que os
antecedeu, são os representantes do que se convencionou denominar de geração
“saúde”, isto é, daqueles que foram socializados no culto da boa saúde e dos
bons cuidados corporais, pelos quais o imperativo da boa alimentação se
conjugava com a prática de esportes e de exercícios físicos. Tudo isso era proposto
em nome da promoção da saúde, da prevenção de doenças e da longevidade.
Porém no projeto sanitário da geração “saúde” se inscrevia também a interdição
do fumo, pelos malefícios à saúde que este provocaria.

Recordo-me da visita que fiz à casa de amigos fumantes, nos anos 90,
onde na porta do quarto de um dos filhos existia um cartaz no qual se escrevia,
em letras enormes, “proibido fumar”. Esta foi a maneira que o jovem encontrou
para impedir a entrada dos pais em seu quarto se estivessem fumando. Assim,
a separação ostensiva entre o espaço de fumantes e o de não fumantes estava já
estabelecida no espaço da família, numa antecipação fulminante do que viria a
ocorrer posteriormente no espaço social mais abrangente. Estavam então
estabelecidas as fronteiras entre os territórios dos puros e dos impuros, dos
limpos e dos sujos, no espaço privado da família, forjando assim as linhas de
força do futuro espaço social no Brasil.

Contudo, se evoco tudo isso, nos diferentes registros de uma etnografia


amadora e da reminiscência pessoal, é para colocar em evidência o deslocamento
que ocorreu efetivamente na sociedade brasileira. Com efeito, os jovens não
fumam hoje como faziam outrora, mas, em contrapartida, bebem e se drogam
muito mais, sem qualquer dúvida. Além disso, comem também muito mais, e
por isso a obesidade se transformou hoje num problema crucial do campo da
saúde pública.

Numa pesquisa realizada pelo Ministério da Saúde e publicada em junho


de 2010, destaca-se efetivamente que os brasileiros bebem mais que outrora,
em contraste com a queda significativa dos fumantes na população brasileira.3
Ao lado disso, evidencia-se na mesma pesquisa o incremento da obesidade.4
Não preciso evocar aqui o aumento ostensivo do consumo de drogas estimulantes,
que já é de conhecimento geral.

Este deslocamento ocorrido, no registro dos estimulantes, é talvez o


efeito inesperado e mais paradoxal que se produziu com a geração “saúde”.
Assim, pela interdição do fumo, a juventude procurou uma derivação para isso,
pelas bebidas alcoólicas, pelas drogas estimulantes e até mesmo pela comida.
Portanto, em nome do imperativo da saúde, o fumo foi substituído pelo álcool,
pela droga e pela comida.
3
O Globo, 1º caderno, edição de
A troca foi vantajosa para a população, na leitura da saúde pública? Não 22 de junho de 2010, p. 12.
cabe a mim responder imediatamente a isso, mas construir um argumento, 4
O Globo, 1º caderno, edição de
indicando o jogo das cadeiras no campo do consumo dos estimulantes. Não sei 22 de junho de 2010, p. 12.

• Joel Birman • 27
se, do ponto de vista dos malefícios e do risco para a saúde, os efeitos do fumo
são piores ou não do que os que seriam produzidos pelo álcool, pelas drogas e
pela comida. Suponho que são equivalentes. Porém, o deslocamento e a
substituição efetiva de um estimulante por outro é um dado epidemiologicamente
comprovado.

III. Normalização impossível

No entanto o que este deslocamento evidencia é que os sujeitos procuram


alguma forma de excitação e de estimulação, promovida pelas vias bioquímica e
nervosa, para suportarem o mal-estar presente na existência social. Num
comentário jocoso sobre isso, o ator Dirk Bogarde não dizia que nós viemos ao
mundo com duas doses a menos de uísque?”

No entanto suponho que Freud levaria bem a sério o comentário irônico


de Bogarde. Isso porque, na obra “Mal-estar na civilização”, Freud afirmava que
o consumo de alguma modalidade de excitantes, isto é, de fumo, de drogas
estimulantes e de álcool, era uma das formas de o sujeito lidar com o mal-estar
presente na modernidade.5

Rigorosamente falando, a psicanálise se constituiu como saber para


problematizar a relação do sujeito com o dito mal-estar na modernidade. Não
cabe aqui, neste espaço, realizar a demonstração disso. Porém é preciso evocar
apenas que o aparelho psíquico se construiria para buscar dominar as excitações
pulsionais advindas do organismo, mas que, no limite, existiria um intervalo
entre as ditas excitações e a experiência possível de satisfação. Isso porque o
que seria oferecido ficaria sempre aquém daquilo que seria desejado, de forma
que a frustração e a angústia seriam, no limite, inevitáveis. Nesta perspectiva,
o sujeito teria que aprender a conviver com a dita frustração e angústia para
viver relativamente bem. Enfim, seria isso o que pretenderia oferecer a
experiência psicanalítica ao sujeito.

No entanto o que a psicanálise nos ensina sobre isso é que tal excitabi-
lidade é constante e incontornável, pois todos nós estamos sujeitos a esta de
maneira insistente. Estaria aqui não apenas a base de nossa angústia, como
também do mal-estar que nos inquieta permanentemente. Seria em decor-
rência disso que para regular a dita excitabilidade pulsional, incontornável e
insistente, assim como a angústia e as frustrações disso decorrentes, os sujeitos
são levados à busca de estimulantes, sejam estes de diferentes ordens, inclusive
o fumo, o álcool, as drogas estimulantes e a comida.

Contudo, ao me referir à Freud e à psicanálise, não pretendo com isso


5
Freud, S. Malaise dans la dizer que a psicanálise seja o bálsamo para salvar a humanidade dos malefícios
civilisation. (1930). Paris, PUF,
1970. da excitabilidade pulsional. Longe de mim sustentar tal idéia esdrúxula e até

28 • • Riscos à saúde: fumaça ambiental do tabaco – pontos para um debate


mesmo sinistra. Porém o que a psicanálise nos evidencia é o intervalo existente
entre o imperativo constante da excitabilidade e as possibilidades efetivas de
satisfação para o sujeito na modernidade. Estariam situadas aqui as condições
concretas da possibilidade do mal-estar na modernidade.

Isso porque se nesta os sujeitos são formalmente iguais diante da lei,


não podem ter acesso aos bens que promovem o prazer de maneira igualitária.
Com esta distribuição desigual de bens que promovem o prazer, a angústia e o
mal-estar são também desigualmente distribuídos na população. O que marcou
o dispositivo da
O que implica dizer que o dito intervalo, a que Freud se refere, não pode
saúde pública,
ser objeto de um processo de normalização,6 tal como os discursos médico e
desde o século
sanitário pretendem estabelecer pela via da lei antifumo, ou de qualquer outra
lei que visaria regular a bebida, a comida e as drogas estimulantes. Por isso 19, foi a
mesmo, os deslocamentos no registro dos estimulantes foram produzidos, como tentativa de
indiquei acima. Com efeito, se o sujeito não pode fumar, ele se desloca do fumo regular a
para a bebida alcoólica, para as drogas estimulantes e para a comida. periculosidade
social,
Porém o que é também polêmico neste debate é a concepção do risco produzida na
que está presente no discurso da medicina. A noção de risco é pensada num modernidade,
quadro teórico fundado no estrito determinismo, sem que se considere também
pela construção
uma leitura probabilista e conjectural desta categoria teórica. O risco, com efeito,
não se reduz a uma dimensão estritamente biológica, mas se inscreve também
de dispositivos
numa dimensão simbólica e social, que é preciso colocar em evidência. Por isso sanitários
mesmo, é preciso inscrever o risco numa perspectiva probabilística e conjectural, voltados para a
inscrevendo-o então no campo de uma leitura interdisciplinar sobre a saúde, a regulação dos
doença e a morte. riscos, em
nome dos
Como disse acima, a distribuição dos meios para a obtenção do prazer é imperativos do
desigual. Com isso, a angústia e o mal-estar dos sujeitos são também distribuí-
discurso da
dos de forma desigual na população. A insatisfação social, em decorrência disso,
sempre se transmutou aos olhos do poder, na modernidade, em periculosidade
ciência.
social. O que marcou o dispositivo da saúde pública, desde o século 19, foi a
tentativa de regular a periculosidade social, produzida na modernidade, pela
construção de dispositivos sanitários voltados para a regulação dos riscos, em
nome dos imperativos do discurso da ciência.7 Estariam situados aqui, enfim,
os limites do discurso da saúde pública para lidar com a periculosidade social,
que, como evidenciam os deslocamentos existentes no campo dos estimulantes,
se desloca como um camaleão.

6
Foucault, M. Il faut défendre la
société. Paris, Seuil/Gallimard,
1997.

7
Foucault, M. Naissance de la
clinique. Paris, PUF, 1963.

• Joel Birman • 29
30 • • Riscos à saúde: fumaça ambiental do tabaco – pontos para um debate
DEFESA DAS REALIZAÇÕES,
NÃO DO ESTILO, DO
MOVIMENTO ANTIFUMO:
resposta ao texto “Alvo equivocado: em defesa dos
fumantes” de Luiz Castro Santos

Por Geoffrey C. Kabat

Geoffrey C. Kabat é
1 epidemiologista especializado em
Em seu ensaio instigante “Alvo equivocado: em defesa dos fumantes” , câncer do Department of
o professor Castro Santos assume uma posição que raramente é articulada nos Epidemiology and Population
Health (Departamento de
círculos intelectuais. Seu argumento principal, como o entendi, é que a Epidemiologia e Saúde Pública)
epidemiologia e as instituições de saúde pública têm sustentado um discurso no Albert Einstein College of
Medicine (Escola de Medicina
autoritário e dogmático no que diz respeito ao uso do tabaco, transformando os Albert Einstein), em Nova York.
fumantes em párias. Ele pede à “sociologia” que resista à hegemonia da saúde
pública e que defenda os “espaços de interação social”.

O professor Castro Santos levanta uma série de pontos importantes, que


ele está apto a perceber em virtude de ter a vantagem de ser um sociólogo da
medicina e alguém sensível à tradição da sociologia, que inclui figuras como
Erving Goffman, Howard Becker e Michel Foucault. Concordo com vários de
seus pontos-chave: há uma pressão puritana e absolutista no movimento
antifumo; frequentemente usa-se ciência inconsistente para dar suporte à agenda
do movimento; distinções e valores cruciais ficam perdidos na cruzada para
demonizar o fumo.

Escrevo como um epidemiologista que tentou compreender como


descobertas a partir de estudos epidemiológicos podem ser distorcidas e
exageradas e como descobertas científicas fracas em certas áreas podem se
transformar em dogma.2 Este dogma é então assumido por certas disciplinas,
grupos e instituições, e torna-se muito difícil questioná-lo. Assim, há muito
em comum entre o professor Castro Santos e eu.

Entretanto, apesar de nossas pensamentos comuns, percebo que


divergimos na questão de como a sociedade deveria lidar com a realidade do
1
SANTOS, Luis A. Castro. “Alvo
fumo. Isso pode ser devido ao fato de meu campo ser saúde pública e equivocado: em defesa dos
fumantes”.
epidemiologia – mesmo que eu, abertamente, tenha criticado certas correntes
no uso da epidemiologia –, enquanto o professor Castro Santos é um sociólogo. 2
KABAT, Geoffrey C. Hyping
Health Risks: Environmental
Hazards in Daily Life and the
Science of Epidemiology. New
Gostaria de comentar uma série de pontos levantados por ele e identificar York: Columbia University Press,
2008.
aspectos do problema que merecem mais discussão. No meu ponto de vista, há

• Geoffrey C. Kabat • 31
duas questões distintas que precisam ser colocadas claramente. Em primeiro
lugar, quais são os fatos relevantes no uso do tabaco e seus efeitos sobre a
saúde? Segundo: dado esse conhecimento, que políticas a sociedade deveria
adotar para promover saúde e bem-estar e que outras considerações e valores
deveriam ser levados em consideração ao minutar tais políticas?

Um tópico que acho que não recebeu atenção suficiente na apresentação


do professor Castro Santos foi uma apreciação completa do que nós aprendemos
nos últimos sessenta anos sobre os efeitos do fumo. Uma vez que concordo que
os fatos sobre o fumo, particularmente sobre o fumo passivo, são rotineiramente
Quais são mal apresentados, é importante fazer justiça a fatos-chave que caracterizam o
os fatos uso do tabaco. Isso inclui o que se segue. A maioria das pessoas começa a fumar
em uma idade em que ainda não estão totalmente desenvolvidas neurologi-
relevantes
camente e em que pensam que vão viver para sempre. A decisão de fumar, entre
no uso do os jovens, é muitíssimo influenciada pelo exemplo dos pais fumantes, pela
tabaco e pressão dos colegas e pela propaganda das companhias de tabaco etc. O fumo é
seus efeitos altamente viciante em alguns fumantes, e para estes pode ser virtualmente
sobre a impossível parar. Além disso, de acordo com o que aprendemos, o fumo está
saúde? associado ao aumento substancial de risco de contrair uma série de doenças
crônicas fatais (câncer de pulmão, câncer do trato alimentar superior, enfisema
etc.), ao aumento moderado de risco de outras doenças (a mais importante,
doença cardíaca) e, sobretudo, ao aumento de risco de morte.

É importante observar que o câncer de pulmão era uma doença muito


rara no início do século 20 (Figura 1)3. (Quando um caso de câncer de pulmão
era diagnosticado no hospital, médicos e estudantes eram chamados para ver
em primeira mão essa doença diferente.) Entretanto, após a introdução de
cigarros industrializados no início do século e sua distribuição para as tropas
americanas durante a Primeira Guerra Mundial, o predomínio do fumo foi
aumentando. Após várias décadas, nos EUA, o índice de morte por câncer de
pulmão em homens cresceu de 5 por 100.000, em 1930, para mais de 90 por
100.000, em 1990. Nos últimos vinte anos, os índices de câncer de pulmão em
homens nos EUA diminuíram substancialmente devido ao decréscimo do
predomínio do fumo, mas ainda está muito alto. A epidemia de câncer de pulmão
que ocorreu várias décadas depois entre as mulheres nos EUA acabou de atingir
seu pico. Assim, na Figura 1, temos uma representação gráfica da epidemia de
câncer de pulmão provocada pela fumo nos EUA. Há um gráfico similar disponível
mostrando a epidemia entre as mulheres ( http://www.cancer.org/downloads/
STT/Cancer_Facts_and_Figures_2010.pdf).

Como resultado dessa redução de consumo de cigarros nos países


desenvolvidos, a indústria do tabaco vem agressivamente promovendo o consumo
3
no mundo em desenvolvimento. Como resultado, esses países, com o tempo,
American Cancer Society.
Cancer Facts and Figures 2009. irão inevitavelmente passar pela experiência de suas próprias epidemias de
Atlanta: American Cancer
Society, 2009. doenças associadas ao tabaco.

32 • • Riscos à saúde: fumaça ambiental do tabaco – pontos para um debate


Figura 1.

Índices de Morte por Câncer por Faixa Etária, *Posição de Homens, EUA, 1930-2005

American Center Society: Surveillance and Health Policy Research, 2009


Índice por 100.000 na população masculina

*Por 100.000 ajustado por faixa etária da população padrão dos EUA, em 2000

Observação: devido a mudanças na codificação ICD - International Classification of Diseases


(Classificação Internacional de Doenças - CID), os números mudaram ao longo do tempo. Os
índices de câncer de fígado, pulmão e brônquios, cólon e reto são afetados por essas mudanças
de codificação.

Fonte: dados de mortalidade dos EUA, 1960 a 2005. Volumes sobre Mortalidade dos EUA, 1930 a 1959.
Centro Nacional de Estatística da Saúde, Centros de Controle e Prevenção de Doenças, 2008

Observando o impacto total do fumo sobre a mortalidade, os


epidemiologistas Doll e Peto estimaram que, no Reino Unido, cerca de metade
de todos os fumantes regulares de cigarros morrerá devido a seu hábito.4
Entretanto, pelo lado positivo, aqueles que pararam de fumar no início ou na
meia idade reduzem substancialmente seu risco de morrer prematuramente de
câncer de pulmão, doenças cardíacas e outras doenças associadas ao fumo.

Finalmente, há uma relação de dose-resposta na exposição individual à


fumaça do tabaco (medida por número de cigarros fumados por dia e anos de
fumo etc.) e o risco de doenças causadas pelo fumo. A existência de uma relação
dose-resposta tem duas grandes implicações. Primeiro, fumo moderado a leve
tende a aumentar o risco de contrair doenças comparado a não fumar. Mas, em
segundo lugar, e isso é a mensagem importante de redução de malefícios, se um 4
DOLL, R., PETO R., BOREHAM, J.
fumante de 20 cigarros por dia não conseguir parar, mas conseguir reduzir para & SUTHERLAND, I. Mortality in
relation to smoking: 50 years’
cinco cigarros por dia, ao longo do tempo isso levará a uma redução substancial observations on male British
doctors. BMJ, 2004. Doi:10.1136/
de seu risco de contrair doenças. bmj.38142.554479.AE

• Geoffrey C. Kabat • 33
Para mim, esses são fatos cruciais, no que diz respeito ao uso do tabaco,
com os quais a maioria dos cientistas concordaria. Mais importante: acredito
que a existência desse conhecimento inevitavelmente exerce um efeito na forma
como o fumo é visto. (Não podemos voltar à era inocente, quando o fumo era
visto como benigno ou mesmo um bom hábito, mesmo entre médicos.)

Assim, eu tomaria cuidado com a questão de ignorar o fumo “moderado”


e “leve”, como o professor Castro Santos parece fazer. Sim, há outros
comportamentos e fatores co-ocorrrentes que podem mitigar ou amplificar os
efeitos do fumo em indivíduos diferentes, mas, sobretudo, espera-se que fumantes
moderados tenham índices mais altos de doenças associadas ao tabaco que os
Não podemos fumantes leves, e que os fumantes leves tenham índices mais altos dessas doenças
voltar à era se comparados àqueles que nunca fumaram. Sim, há pessoas que podem fumar
inocente, pouco – ou mesmo em um nível mais alto – e permanecerem saudáveis na
quando o velhice. Mas não podemos identificar quem tem a genética favorável que o
protege contra toxinas e carcinogênios da fumaça do tabaco. E não são somente
fumo era
fumantes pesados que desenvolvem doenças associadas ao fumo. (Deve-se
visto como observar também que, além do quanto se fuma, a duração do hábito de fumar é
benigno ou um determinante de risco muito importante.)
mesmo um
bom hábito, Agora vejamos o que se sabe sobre os efeitos da exposição à “fumaça
mesmo entre passiva do tabaco”, também conhecida como “fumo passivo”, ou “fumaça
médicos. ambiental do tabaco” (FAT). O fumo passivo atraiu primeiro a atenção em 1981,
quando um estudo do Japão surgiu para mostrar que as mulheres não fumantes
de maridos que fumavam tinham índices mais altos de câncer de pulmão que as
esposas não fumantes de maridos que não fumavam. Vários estudos subsequentes
foram feitos e relatórios governamentais foram emitidos, declarando que o fumo
passivo era a causa do câncer de pulmão. Entretanto foi somente mais tarde –
em meados dos anos 90 – que estudos cuidadosos de medição foram feitos em
16 cidades nos EUA e em cidades da Europa e da Ásia, que indicaram que a
exposição média à fumaça passiva do tabaco entre não fumantes chega a um
milésimo da exposição à fumaça do tabaco do fumante ativo médio. Em média,
aqueles com exposição à fumaça passiva inalavam o equivalente a cerca de oito
cigarros por ano.5 É interessante observar que esses estudos foram feitos por
Roger Jenkins nos EUA, por Keith Phillips no Reino Unido, na Europa, e em
outros lugares, e foram publicados após a publicação do relatório altamente
influenciador da US Environmental Protection Agency - EPA (Agência Americana
de Proteção ao Meio Ambiente), em 1992, declarando que a fumaça passiva do
tabaco era um “carcinogênio humano conhecido”. A publicação do EPA e outros
relatórios ajudaram a criar um dogma, no que diz respeito aos efeitos do fumo
passivo de tabaco, que não poderia ser questionado. Também é interessante o
5
KABAT, G.C., Hyping Health fato de que, mais tarde, relatórios oficiais sequer citaram os trabalhos de Jenkins
Risks: Environmental Hazards in
Daily Life and the Science of e Phillips, presumivelmente porque enfraqueceriam o caso sobre os efeitos
Epidemiology. New York:
Columbia University Press, 2008, importantes na saúde devido à exposição passiva ao fumo. Desde então, grandes
pp. 164-165.
estudos epidemiológicos prospectivos mostraram ou uma associação muito fraca

34 • • Riscos à saúde: fumaça ambiental do tabaco – pontos para um debate


(grosso modo, um aumento de risco de 25% de câncer de pulmão e de doenças
cardíacas entre aqueles expostos comparados àqueles não expostos), ou nenhuma
associação entre a exposição FAT e câncer de pulmão ou doenças cardíacas.6
Mas uma associação dessa magnitude poderia muito bem ser explicada por
confusão e preconceitos que podem afetar estudos de observação. Epidemiolo-
gistas de alta reputação, incluindo Richard Peto, John Bailar e Ernst L. Wynder,
registraram como questionável a epidemiologia poder detectar riscos de magni-
tude tão baixa como os associados à FAT.

Meu ponto é que a ciência, no que diz respeito aos efeitos da exposição
FAT, é muito mais fraca do que com relação aos efeitos do fumo ativo. E isso tem
uma razão, pois o fumo ativo é algo que os fumantes fazem de forma regular e
podem contar aos pesquisadores com que idade começaram a fumar, quantos
cigarros normalmente fumam (fumavam) por dia, há quanto tempo fumam, se
pararam de fumar e, se o fizeram, há quanto tempo, enquanto a exposição FAT
é tão difusa e varia tanto com o tempo, que não estamos aptos a estimar a
exposição de uma pessoa ao longo de décadas. Portanto precisa-se enfatizar
que a exposição passiva ao fumo é muito diferente do fumo leve ou moderado.

Quando os primeiros estudos surgiram ligando o fumo passivo a doenças


fatais, a questão do fumo passivo tornou-se útil ao movimento antifumo porque
uma coisa era os fumantes reduzirem suas próprias vidas, outra era evidência
científica de que a exposição à FAT poderia causar doenças fatais em não fumantes
e isso forneceu uma arma muito mais poderosa, que poderia ser utilizada na
oposição à indústria do tabaco e na redução do predomínio do fumo. Uma vez
o dogma estabelecido, avaliar a consistência da ciência relativa à FAT realmente
estava fora de questão, e quem o fizesse poderia ser difamado como cúmplice
da indústria do tabaco.

Como estamos no tópico do fumo passivo, gostaria de comentar que


mesmo o estudo de 1981 de Trichopoulos sobre o fumo passivo na Grécia, que o
professor Castro Santos admira, precisa ser visto criticamente. Primeiro, esse foi
um estudo de controle de caso e, como tal, há a possibilidade de as mulheres
diagnosticadas com câncer de pulmão com os hábitos de fumo de seus maridos
não nos contarem qual era a real exposição. Nenhuma informação foi coletada
sobre quanto tempo os casais verdadeiramente passavam juntos. Na Grécia, os
6
KABAT, G.C. “The Controversy
homens tendem a passar o tempo de lazer na taverna com outros homens, Over Passive Smoking.” Hyping
Health Risks: Environmental
portanto não fica muito claro quanta exposição realmente ocorreu. Finalmente, Hazards in Daily Life and the
o risco duplo relativo obtido no estudo de Trichopoulos é muito mais alto que Science of Epidemiology. New
York: Columbia University
na maioria dos outros estudos (média de risco relativo=1,25).7 Novamente, devido Press, 2008, capítulo 6.

ao fato de descobertas como aquelas de Trichopoulos serem instigantes e tão 7


TRICHOPOULOS, D.,
KALANDIDI, A., SPARROS, L.,
úteis, poucas pessoas se dispuseram a examiná-las criticamente. MACMAHON, B. Lung cancer
and passive smoking. Int J
Cancer, 1981; 27:1-4.
Concordo que não deveríamos adotar uma atitude moralizante e
estigmatizante com relação aos fumantes. Fumantes não são o mal, são

• Geoffrey C. Kabat • 35
simplesmente viciados em nicotina ou psicologicamente dependentes do fumo
– ou ambos. Mas eu acho que por muito tempo o “direito a fumar” foi tomado
como normal, enquanto levaram-se décadas para que o princípio de que os não
fumantes não deveriam respirar a fumaça do tabaco se estabelecesse. O que
quer que pensem sobre a letalidade da fumaça ambiental do tabaco, me parece
ser um grande passo em direção a uma sociedade civilizada não ter que ficar na
fila de um correio mal ventilado atrás de alguém fumando um cigarro ou charuto.
Acredito que foi um erro das autoridades sentir que tinham que justificar as
restrições ao fumo baseadas em ciência inconsistente ligando FAT a doenças
fatais. As restrições ao fumo deveriam ter sido feitas baseadas em estética e na
consideração a outras pessoas. Digo "estética" porque as pesquisas mostraram
que até mesmo os fumantes escolhem não ficar perto da fumaça do cigarro e
consideram fumar um mal hábito. E a consideração por outras pessoas acarreta
As restrições o reconhecimento de que algumas delas têm asma ou outras condições
ao fumo respiratórias que podem se agravar pela exposição à fumaça do cigarro, ou
deveriam ter simplesmente acham a fumaça desagradável. Mas essa abordagem não teria
tido o mesmo poder legal que a afirmação de que FAT causa câncer de pulmão.
sido feitas
baseadas em
Embora possa não ser encantado com os métodos adotados pelo
estética e na movimento antifumo – que se acha dono da verdade, é dogmático, distorce a
consideração a ciência –, endosso, de coração, o resultado de as restrições terem ajudado a
outras pessoas. reduzir o predomínio do fumo, o que significará, com o tempo, que menos
pessoas desenvolverão doenças associadas ao tabaco. Desde 1964, quando o
primeiro Surgeon General’s Report on Smoking and Health (Relatório Médico
sobre Fumo e Saúde) foi publicado, o predomínio do fumo nos EUA declinou de
cerca de 43% para cerca de 21%. No Reino Unido, ocorreu uma redução ainda
maior.

Concordo totalmente com o professor Castro Santos que os fumantes,


que agora são uma minoria sitiada, não deveriam ser estigmatizados. Não é
realista pensar que, mesmo com os esforços orquestrados das instituições
antifumo, das instituições de saúde e do governo, o fumo será completamente
erradicado em um futuro próximo. Mas, da mesma maneira, não estou inclinado
a lamentar a perda dessa prática em particular – por mais que tenha contribuído
para a ambience dos cafés de Paris. Temos que evitar sucumbir à nostalgia do
glamour do cigarro, que atingiu seu apogeu em meados do século passado.
Afinal, aqueles que vêm a desenvolver enfisema, vários tipos de câncer e doenças
cardíacas não estão em posição de desfrutar – ou contribuir para – os “espaços
de interação social”. Acima de tudo, acho que precisamos encontrar formas
eficazes de desencorajar os jovens de fumar, posto que eles subestimam o vício
e suas consequências a longo prazo.

Após articular meu ponto de vista sobre o assunto, estou confiante que
o professor Castro Santos e eu podemos concordar sobre uma série de pontos.

36 • • Riscos à saúde: fumaça ambiental do tabaco – pontos para um debate


Primeiro: o necessário é educação continuada feita para a população alvo, não
propaganda moralizante. Segundo: fumantes não deveriam ser estigmatizados
como fracos, imorais ou maus. Terceiro, deveria haver limites para as restrições
ao fumo, definidas, em parte, pelo senso comum. Por exemplo, é um absurdo,
sob o aspecto da saúde, proibir o fumo em praias ou a vinte e cinco pés de Nós temos que
prédios, como foi feito em algumas comunidades. Finalmente, ao invés da aprender como
abordagem absolutista, tamanho único – que não faz distinção entre os diferentes educar as
produtos do tabaco (estou me referindo aos snus do tipo sueco, que parecem
pessoas para os
eliminar até 95% do risco de câncer associado ao fumo e poderiam salvar milhões
fatores
de vidas no mundo8), indivíduos diferentes, estilos de consumo diferentes –, a
abordagem da redução do malefício tem muito mais bom senso e muito mais a importantes do
oferecer. estilo de vida
que realmente
Concluindo, acho que precisamos encarar seriamente o que aprendemos têm impacto na
sobre os efeitos do fumo na saúde. Mas, ao mesmo tempo, precisamos estar saúde e na
profundamente conscientes da tendência a passar por cima da ciência e longevidade,
estigmatizar grupos que se engajam em comportamentos “não saudáveis”. O
sem nos
professor Castro Santos está certíssimo quando coloca que algo de valor é
tornarmos um
destruído quando a sociedade exclui pessoas, devido a se desviarem do que é
visto como a norma para a saúde perfeita. Nós temos que aprender como educar
estado pajeador
as pessoas para os fatores importantes do estilo de vida que realmente têm e sem
impacto na saúde e na longevidade, sem nos tornarmos um estado pajeador e interferirmos nas
sem interferirmos nas vidas das pessoas e nas suas decisões pessoais. Mas nessas vidas das
questões altamente sensíveis e contestadas, é muito difícil traçar uma linha no pessoas e nas
lugar certo. O professor Castro Santos deu uma contribuição importante em suas decisões
direção a esse objetivo pessoais.

8
RODU, B., PHILLIPS, C.V.
“Switching to smokeless
tobacco as a smoking
cessation method: evidence
from the 2000 National Health
Interview Survey.” Harm
Reduction Journal 2008; 56:18.
http:www.harmreductionjournal.
com/content/5/1/18

• Geoffrey C. Kabat • 37
38 • • Riscos à saúde: fumaça ambiental do tabaco – pontos para um debate
ONDE HÁ FUMAÇA HÁ DESVIO

Por Josué Laguardia


e Sérgio Carrara

“...the final outcome of the moral crusade is a police force.”


H.Becker (1966)

Josué Laguardia é médico com


doutorado pela Escola Nacional de
Saúde Pública – ENSP e
pesquisador do Instituto de
Informação e Comunicação
O ensaio do professor Castro-Santos é, em suas próprias palavras, um Científica e Tecnológica em Saúde
da FIOCRUZ. Possui artigos
chamado aos sociólogos para a urgente tarefa de refletir sobre um processo
publicados nos seguintes temas:
histórico recente que, além de ser sociologicamente interessante, vem produzindo avaliação de tecnologias de
informação e comunicação na
impactos importantes no plano do exercício dos direitos e colocando em questão
saúde, raça e vigilância em saúde.
os limites da intervenção da saúde pública nas sociedades liberais. No centro de E-mail: jlaguardia@cict.fiocruz.br
tal processo está a estigmatização dos fumantes, excluídos progressivamente
de diferentes espaços sociais. Sérgio Luis Carrara é
antropólogo com doutorado pelo
Na primeira parte do texto, a discussão gira em torno da construção das Museu Nacional/UFRJ, professor do
Instituto de Medicina Social da
evidências científicas que estão na base da atual política antifumo. Como lembra UERJ e pesquisador na área de
Castro-Santos, a transformação da fumaça do cigarro, antes percebida apenas Antropologia do Corpo e da Saúde.
Possui artigos publicados nos
como incômoda ou desconfortável, em fator verificável e, principalmente, seguintes temas: sexualidade,
quantificável de risco à saúde dos não fumantes, apoia-se em estudos gênero, homossexualidade,
direitos humanos e violência.
epidemiológicos. Tais estudos justificam as ações dos movimentos sociais contra E-mail: carrara@ims.uerj.br
o fumo e embasam os relatórios governamentais, através dos quais a opinião
pública é informada acerca dos males provocados pelo cigarro dos outros. Em
larga medida, os defensores do banimento do cigarro de locais públicos
consideram essa decisão legítima porque estaria ancorada em sólido
conhecimento científico. Assim, demandam do Estado uma ação que se ajuste à
ciência. Como afirmou recentemente o médico e cruzado da boa saúde, Dráuzio
Varella:

“Defender o direito de obrigar os circundantes a fumar por tabela e a


liberdade do cidadão para prejudicar os outros sem ingerência do Estado ficou
fora de moda” [e] “justificar essa linha de pensamento é cair no ridículo” (Folha
de São Paulo, 19/06/2010).

Como se vê no discurso do médico, não é mais hipótese provável que os


fumantes possam prejudicar a saúde dos que os circundam, mas fato indiscutível

• Josué Laguardia e Sérgio Carrara • 39


que deve motivar a intervenção do Estado. Os que ousam questionar tal posição
são desacreditados a partir de uma linguagem que só os que se creem vencedores
podem utilizar: são acusados de “ridículos”, de estarem “fora de moda”.
Efetivamente, na década de 1980, a “descoberta” dos riscos à saúde dos não
fumantes provocados pela exposição à fumaça do cigarro revolucionou o
movimento antitabagista e foi crucial para as medidas legislativas que se
seguiram. À época, já se contabilizavam números decrescentes de consumidores
(...) os
de cigarro, mas a discussão em torno do ato de fumar, considerada até então
estudos
como comportamento autodestrutivo, sofreria uma espécie de reconfiguração
sobre o risco moral, quando seu foco principal passou da preocupação com a saúde do fumante
à saúde da para o impacto de seu comportamento sobre a saúde dos demais. O deslocamento
fumaça retórico da saúde dos fumantes para os direitos dos não fumantes e o surgimento
ambiental do de termos como “fumante passivo”, “fumo de segunda mão”, “fumo involuntário”
tabaco e “fumaça ambiental do tabaco” (“environmental tobacco smoke” ou ETS em
apresentam inglês) evocam uma situação onde o risco não é mais uma questão de “escolha”,
resultados mas de imposição.

contraditórios O estatuto de verdade atribuído ao risco do “fumante de segunda-mão”


e que mereceria, certamente, uma discussão muito mais aprofundada do que é possível
poderiam fazer aqui. Ressaltamos, porém, que os estudos sobre o risco à saúde da fumaça
colocar em ambiental do tabaco apresentam resultados contraditórios e que poderiam colocar
em xeque as ações de banimento do fumo em locais públicos. A estimativa da
xeque as
exposição baseada no autorrelato da história de fumo dos cônjuges, os erros de
ações de
classificação do status dos fumantes e da exposição, os efeitos de confundimento
banimento que restringem a análise às pessoas que nunca fumaram ou a ausência de controle
do fumo em para exposição simultânea à poluição atmosférica assinalam a complexidade
locais presente nas investigações da associação entre a fumaça do cigarro e a ocorrência
públicos. de doenças relacionadas. Além disso, as evidências científicas provenientes das
revisões da literatura epidemiológica sobre essa associação são influenciadas
pelo viés de publicação, ou seja, a tendência dos investigadores de submeter
manuscritos e dos editores em aceitá-los baseados na significância estatística
dos resultados da investigação. LeVois & Lyard (1995) demonstraram a existência
de viés de publicação ao comparar as estimativas dos riscos relativos agrupados,
obtidas das metanálises dos estudos publicados sobre a associação de ETS e
doença cárdio-coronariana – RR: 1,29 (1,18-1,41) – e dos estudos que não
haviam sido publicados – RR: 1,00 (0,97-1,04). Quando publicados, os estudos
com resultados negativos podem ser alvo de acusações de falhas metodológicas
ou má conduta científica, a despeito de haverem sido aprovados após uma
revisão por pares. Ao afirmar que os achados do seu estudo sugeriam que os
efeitos da fumaça ambiental do tabaco, especialmente para a doença cárdio-
coronariana e câncer de pulmão, eram consideravelmente menores do que se
acreditava, o artigo de James Enstrom e Geoffrey Kabat (2003), por exemplo,
provocou um volume expressivo de respostas, muitas delas com alegações de
que havia conflito de interesse, sob a suposição de que a pesquisa fora financiada
com recursos da indústria do tabaco. Em 2007, Enstrom (2007) fez uma descrição

40 • • Riscos à saúde: fumaça ambiental do tabaco – pontos para um debate


minuciosa do processo de desacreditação pública de que foi objeto o seu artigo
de 2003. Denominou tal ação de “McCarthismo científico” e destacou o papel
do ativismo antitabaco da American Cancer Society. Suas respostas aos ataques
foram fundamentadas em resultados de outros estudos e na opinião de
especialistas da saúde pública que mostram a sobrestimação do risco, as
estratégias para reforçá-lo por meio de revisões seletivas da literatura e das
declarações de prestigiados pesquisadores.

Porém, não submetida a uma análise crítica, a conexão causal entre a


fumaça do cigarro e problemas de saúde entre não fumantes tem sido conside-
rada cientificamente provada. As autoridades sanitárias puderam, então, pro-
por aos poderes públicos ações coercitivas que, suspendendo direitos funda-
mentais vinculados à liberdade e à propriedade, prometem erradicar a causa e
eliminar o problema na sua origem. Larsen (2008) chama a atenção para a
rápida mudança dos fatos em normas e como a arena política das tomadas de
decisão na saúde pública foi substituída pelos poderes superiores de uma
invocada necessidade legal e imperativo político. Para esse autor, é esperado
que os políticos tenham uma atitude mais ou menos paternalista em relação às
vítimas, mas não que os fumantes sejam tratados como cidadãos que merecem
ser ouvidos e ter suas opiniões respeitadas. Em nome da saúde pública, aos
donos de bares, restaurantes, cafés ou hotéis não é reconhecido, por exemplo,
o direito de decidir livremente se seus estabelecimentos se destinarão a fuman-
tes, a não fumantes ou a ambos. O tabaco está se convertendo em droga ilícita
e o fumante, em espécie de marginal. Na saúde pública, as intervenções estra-
tégicas são geralmente concebidas através de metáforas de guerra e a retórica
presente nos discursos das autoridades é atacar, conquistar e erradicar, ao
invés de promover o exercício da prudência, do equilíbrio e da contenção (Hall,
2003). Nessa guerra, o fumante é o inimigo que deve ser eliminado do espaço
público e os espaços privados são monitorados através de estudos epidemio-
lógicos em busca de novas evidências que podem servir de base para ações
ainda mais duras.

A análise sociológica sobre a importância crescente da epidemiologia


na construção das evidências científicas do risco do fumo passivo e a correlação
entre a redução na prevalência do consumo de cigarros e o cerceamento do
fumo em locais públicos é crucial para que se tenha uma melhor compreensão
dos fenômenos em curso nas últimas três décadas e seus possíveis desdobra-
mentos. Mas o processo que fez com que essa verdade científica se transformas-
se tão rapidamente em intervenção sanitária e o próprio caráter coercitivo de
tal intervenção merecem uma análise que não se atenha apenas às disputas
internas ao campo científico. Nesse plano, a reflexão sociológica deve se voltar
para relações existentes, em cada contexto histórico particular, entre ciência,
política e moral. Como lembra bem Castro-Santos, somente um amplo estudo
comparativo sobre o modo pelo qual certas práticas ou comportamentos tor-
nam-se objeto de verdadeiras cruzadas morais pode nos ajudar aqui. E, desde

• Josué Laguardia e Sérgio Carrara • 41


finais do século 19, muitas dessas cruzadas foram empreendidas em nome da
ciência ou da saúde pública, fosse contra o álcool, como se refere Castro-San-
tos, fosse contra a prostituição, a pornografia, as drogas etc.

O esquema geral de percepção gerado pela atual guerra ao fumo


assemelha-se em larga medida ao que cercou as doenças sexualmente
transmissíveis durante grande parte do século 20 e o que ainda permanece
Alguns dos vinculado à Aids (Brandt, 1985; Carrara, 1996). Nele, um mesmo diagrama
elementos a moral passa a se opor às “vítimas inocentes”, as chamadas “vítimas algozes”,
serem responsáveis em alguma medida pelo mal que as acomete. Como aconteceu no
levados em caso do combate à sífilis no passado, também atualmente, no caso do fumo, as
conta na vítimas inocentes são em geral crianças e mulheres (especialmente as grávidas),
agora ameaçadas não mais pelo comportamento sexualmente promíscuo de
análise
maridos ou amantes, mas por um grupo de poluidores irresponsáveis (Berridge,
comparativa
1998; Brandt, 1998).
das cruzadas
morais Alguns dos elementos a serem levados em conta na análise comparativa
empreendidas das cruzadas morais empreendidas em nome da saúde pública parecem ser
conjunturais, característicos de sociedades que passam por processos de inten-
em nome da
sa transformação social. Frente a revoluções (algumas silenciosas), não é incomum
saúde pública
que tradicionais valores morais, religiosos e éticos se mostrem ineficazes para
parecem ser orientar as ações e avaliações no novo contexto. Nesses momentos, pode se
conjunturais, generalizar também a desconfiança nas formas institucionalizadas de gerir e
característicos solucionar os conflitos sociais, como a política e a justiça. Frente a um mundo
de cambiante e opaco, é à ciência que se pedirá então que apresente o porto
sociedades seguro da verdade e aponte o caminho a seguir. Esse parece ter sido exatamen-
que passam te o contexto americano da segunda metade do século 19, mencionado por
por processos Castro-Santos. Nele, ao lado da proliferação de seitas milenaristas que se prepa-
ravam para a segunda vinda de Cristo e o final dos tempos, os cientistas enca-
de intensa
minhavam amplos processos de reforma social, que envolviam não apenas a
transformação saúde pública, mas também a nascente sociologia. Desenhando uma espécie de
social. despotismo sanitário, muitas das medidas então propostas eram profundamen-
te antiliberais e sua adoção não pode ser compreendida senão frente a um
discurso salvacionista, baseado em metáforas guerreiras e que se apoiava na
separação nítida entre os sãos e salvos, de um lado, e os doentes e pecadores,
de outro. Frente a uma difusa sensação de perigo, tais medidas corporificavam
o mal, prometendo combatê-lo através de medidas de segregação ou de con-
trole de certos indivíduos ou categorias sociais.

Mas, percorrendo esses diferentes cenários, há elementos mais perma-


nentes e, por isso mesmo, mais perturbadores. Talvez ligados a processos muito
lentos de mudança das estruturas de longa duração, eles ressurgem com ener-
gia renovada em cada momento de transformação social mais intensa. Entre
eles, gostaríamos de destacar os que se vinculam ao gênero. Eles são evidentes
demais para serem deixados de lado por uma análise sociológica mais aprofun-
dada. É muito interessante o fato de que, ao compararmos o movimento antiálcool

42 • • Riscos à saúde: fumaça ambiental do tabaco – pontos para um debate


REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS
da passagem dos séculos 19-20 e o movimento antifumo na passagem do século
20-21, apareçam nos diferentes discursos referências implícitas ao universo BECKER, H. S., Ousiders: studies in
the sociology of deviance. Free
masculino. Aliás, o estudo grego que inaugura a nova preocupação como os Press, 1963

“fumantes de segunda mão” parece projetar o ato de fumar e suas consequências BERRIDGE, V. “Science and Policy:
the case of postwar British
como espécie de violência de gênero, uma vez que as vítimas inocentes seriam Smoking Policy.” In: Lock, S.;
Reynolds, L. & Tansey, EM (eds).
invariavelmente as esposas. Se, como quer Castro-Santos, certas formas de socia- Ashes to ashes: the history of
bilidade estão sendo destruídas pela moderna legislação antitabaco, devemos smoking and health. Rodopi:
Amsterdam, pp. 143-171, 1998.
acrescentar que se trata sobretudo de formas de sociabilidade masculina. Em
BRANDT, A. M. , No Magic bullets:
ambos os casos, sob a explícita referência a indivíduos abstratos que bebem ou a social history of veneral disease
in the United States since 1880.
fumam, os alvos parecem ser de fato os homens. Por de trás do abstrato smoker, New York, Oxford University Press,
temos um homem. Nesse aspecto, o que deveria ser investigado com mais 1985

atenção é a relação problemática entre o poder do Estado e o poder masculino, ____________, “Blow some my way:
passive smoking, risk and American
ou melhor, o modo como certos processos de dominação estatal esbarram nas Culture,” In: Lock, S.; Reynolds, L.
& Tansey, EM (eds). Ashes to ashes:
prerrogativas que os homens ainda detêm em certos espaços de sociabilidade e, the history of smoking and health.
Rodopi: Amsterdam, p. 164-188,
sobretudo, no interior da família. Tudo se passa como se o processo civilizador, 1998.
concebido por Elias (1990) como a contínua expansão e o aprofundamento de
CARRARA, S. Tributo a Vênus: a
controles de tipo estatal cuja expressão individual é o refinamento constante luta contra a sífilis no Brasil, da
passagem do século aos anos 40.
do autocontrole, ainda encontrasse em certos aspectos da masculinidade um Rio de Janeiro: Fiocruz, 1996
ponto de resistência ou de choque. ELIAS, N. O processso civilizador:
uma história dos costumes. Rio de
Janeiro: Jorge Zahar, 1990.

ENSTROM, JE. “Defending


legitimate epidmeiologic research:
combating Lysenko
pseudoscience.” Epidemiologic
Perspectives & Innovations, v.4,
n.11, p. 1-28, 2007.

ENSTROM, JE; Kabat, GC.


Environmental tobbaco smoke and
tobbaco related mortality in a
prospective study of Californians,
1960-98. BMJ, 326, p. 1057-66, 2003

HALL, MA. “The scope and limits of


Public Health Law.” Perspectives in
Biology and Medicine, v. 46, n. 3, p.
S199-209, 2003

LARSEN, LT. “The political impact


of science: is tobbaco control
science- or policy driven?” Science
and Public Policy, v. 35, n. 10, p.
757-69, 2008.

LEVOIS, ME; Layard, MW.


“Publication bias in the
environmental tobbaco smoke/
coronary heart disease
epidemiologic literature.”
Regulatory Toxicology and
Pharmacology, v.21, p. 184-91, 1995

• Josué Laguardia e Sérgio Carrara • 43


44 • • Riscos à saúde: fumaça ambiental do tabaco – pontos para um debate
COMENTÁRIOS
Por Lucien Sfez

Voltei a Berkeley, nesta mesma viagem aos Estados Unidos, lembrada


pelo Prof. Castro Santos em sua citação. Em frente à entrada da Universidade, Lucien Sfez nasceu em 27 de
há um café onde é proibido fumar. Mas eu me dirigi ao jardim que cerca o café abril de 1937, em Tunis.
Adjunto de Direito Público e
e, tendo pedido algo para beber, acendi o meu cachimbo. Escândalo! Um barbudo de Ciências Políticas,
baixinho, indignado, disse-me que era proibido e passível de processo judicial. primeiramente foi Professor na
Universidade de Paris-
Dauphine antes de ser eleito
Nesta situação, não havia motivo para controle ou patrulhamento, já para a Sorbonne (Paris 1
Pantheón-Sorbonne) onde
que estávamos ao ar livre e, portanto, nem caso de tabagismo passivo seria, mas dirigiu o Centro de Pesquisas
tratava-se, antes, de uma proibição total e totalitária, significando que a simples sobre a Decisão Administrativa
e Política (C.R.E.D.A.P.), o
ideia de fumar era condenável, mesmo sem causar dano a outrem. Eis por que a D.E.A. Comunicação,
noção de setorização (quadrillage), que Agambem pediu emprestada a Foucault, Tecnologia e Poder e a Escola
Doutoral de Ciências Políticas
não se aplica a esta ocorrência. Falamos de outra coisa, de uma verdadeira da Sorbonne.
utopia social, radical, política e absoluta. Assim sendo, prefiro usar o conceito Dirige a coleção “La Politique
éclatée” nas P.U.F. (Presses
da utopia, e sua aparelhagem conceitual específica, o único meio capaz de Universitaires de France –
explicar o caráter totalitário da proibição. Imprensa Universitária
Francesa), bem como a revista
“Quaderni” (Maison des
Os marcadores do texto utópico Sciences de l’Homme – Casa
das Ciências Humanas). Autor
de 23 livros e de mais de 200
Eu havia separado os marcadores formais do texto utópico em “La Santé artigos, é Chevalier de la
Légion d’Honneur (Cavaleiro
Parfaite” (Le Seuil 1995).1 A especificidade de um relato não se caracteriza da Legião de Honra).
tanto pelo seu conteúdo, mas por seus marcadores formais que, no caso do
relato utópico, são cinco:

— O local isolado do relato. Uma ilha, por exemplo, que separa cla-
ramente o lugar da ação utópica do resto do mundo.

— O poder absoluto do narrador. Aquele que conta, que sabe e que


domina o relato, de ponta a ponta.

— As regras higiênicas de vida: castidade, alimentos controlados, asseio


do corpo e do espírito, limpeza geral.

— O imaginário técnico. Ele dá ao homem um poder sobrenatural; pela


técnica, a ordem permite resolver tudo. O acaso é excluído de um mundo sem 1
SFEZ, Lucien. A saúde
perfeita - crítica de uma nova
eventualidades, sem impurezas, sem morte nem decomposição. Um mundo
utopia. Edições Loyola, São
sobrenatural que deve sua superioridade ao artifício tecnológico. Paulo, Brasil, 1996.

• Lucien Sfez • 45
— Último critério: a volta à origem. Porque esta sobrenaturalidade é a
natureza reencontrada... À maneira do Rousseau de «L’Origine des inégalités»
[A Origem das desigualdades], esta técnica, este artifício, renaturaliza e refunde.
É preciso desembaraçar-se do que existe hoje para reencontrar o que é desde
sempre. Refundação voluntária de uma verdade natural. Este marcador é muito
interessante, pois não trata mais de um relato, mas do ponto de equilíbrio do
relato, rumo ao exercício do poder.2

Ora, estes cinco marcadores aplicam-se, admiravelmente, ao tratamento


atual de certas questões de saúde pública, em particular à questão do fumo.

Retomemos e apliquemos estes marcadores ao assunto:

— Local isolado do relato: os laboratórios que experimentam estão


desconectados do profano, por toda a complexidade e opacidade da ciência.
Eles também estão apartados entre si: o segredo e a concorrência a isso obrigam.

— O poder absoluto do narrador: aqui é o sábio que experimenta e


formula Suas leis. Ele as formula de maneira segura e certa, contra todas as
incertezas reveladas por Castro Santos.

— É a técnica que resolve tudo. É, por evidência, a técnica que oferece


suas bases à decisão da proibição.

— Regras higiênicas de vida: este é o próprio objetivo da proibição de


fumar em todos os espaços públicos possíveis (na Califórnia, inclusive nos espaços
privados, pois existe a not smoking house e, nos hotéis, os not smoking rooms).

— Enfim, o retorno à natureza faz-se aqui presente para recriar um


homem novo, despido de todo vício, como os índios do Brasil, reeducados pelos
jesuítas, grandes conhecedores e praticantes de utopias.

Do texto utópico às realidades concretas

Neste último marcador, simplesmente, passamos das utopias, dos textos


literários ou filosóficos, para as realidades concretas.
2
Para os detalhes sobre esta
demonstração dos marcadores, Onde vemos que as utopias mudaram de «código», para retomar Whilhem
ver «La Santé Parfaite», [A
Saúde Perfeita] op.cit.p. 106 a
Muhlmann3,: «Os fenômenos mudam de figura e tornam-se irreconhecíveis
114. porque seu ‘código’ muda». E ele acrescenta : «É a mesma coisa para as utopias.
3
Na sua obra «Messianismes
Podemos segui-las, como gênero literário, da República de Platão à ficção
révolutionnaires du Tiers científica atual; todavia a questão é saber se, mais uma vez, a histórica linha
Monde» [Messianismos
revolucionários do Terceiro
mestra não correrá, subterraneamente, por outro lugar, para ressurgir, sob traços
Mundo] Gallimard 1968,p.340. diferentes, na formação sionista do Estado de Israel, por exemplo, nas ditaduras
messiânicas de um Lenine ou de um Hitler, ou ainda, totalmente alhures, na

46 • • Riscos à saúde: fumaça ambiental do tabaco – pontos para um debate


sociedade do bem-estar»4. Antes de concluir, da seguinte forma : «A linguagem
científica parece ter, como função imediata, que mascarar o fato de que as
utopias se transformaram em realidades ou que podem fazê-lo. Nós não queremos
tomar consciência de nossas motivações milenaristas profundas...» 5

Muhlmann parece esclarecer bem o trajeto de nossas análises, por tê-lo


traçado em 1968:

1°) Certas práticas são realmente utopias, ainda que sua linha tenha
mudado de «código».

2°) Fantasmas utópicos e realizações práticas estão frequentemente


muito próximos. A ciência faz aqui o papel de máscara.

3°) O ideal de saúde total e de imortalidade se encontra na maior parte


dos profetismos. Não nos espantemos de reencontrá-lo nas utopias do século
21, como peça central.

Eis aqui os comentários que suscita o artigo fino, documentado, sem


jamais ceder a qualquer extremismo, do Prof. Castro Santos. Se insisti na utopia,
é que a discrepância é grande entre as análises vasculhadas do autor e a inspi-
ração totalitária da luta antifumo. E, antes de aclarar a noção de setorização
(quadrillage) moderna e industrial, ao mesmo tempo, de Foucault e Bentham,
retomada por Agambem, parece-me que o conceito de utopia explica melhor,
especialmente, este caráter totalitário.

4
Ibidem, p.341

5
Ibidem,p.343

• Lucien Sfez • 47
48 • • Riscos à saúde: fumaça ambiental do tabaco – pontos para um debate
NEM TUDO É VERDADE
Por Renato Veras

Contrariar o senso comum é o desafio do professor Luiz Antonio de


Renato P. Veras é médico com
Castro Santos. Em seu texto, que baliza as discussões deste documento, o doutorado pela Universidade de
professor Castro Santos aborda o tema da Fumaça Ambiental do Tabaco. Londres, professor associado da
UERJ, diretor da Universidade
Aberta da Terceira Idade (UnATI),
Algumas premissas se fazem necessárias. Não se contestam os efeitos pesquisador do CNPq e consultor
nocivos à saúde causados pelo tabaco. Os exemplos são vários, como o aumento de várias agências e órgãos
internacionais. Sua área de
dos riscos de câncer de pulmão e outras doenças crônicas. Desde a década de pesquisa é Saúde Coletiva e
50, quando dos primeiros estudos de Sir Richard Doll, mais tarde sistematizados Envelhecimento, na qual tem
vários artigos publicados nas
no livro de Doll e Peto (The causes of cancer, Oxford Press, 1981), existe uma principais revistas científicas do
sólida evidência desta associação. O cigarro em si é de longe a causa mais país e do exterior. Publicou alguns
livros, entre os quais, “País Jovem
importante do câncer humano no mundo — isto é, a fumaça do cigarro inalada de Cabelos Brancos” e “Terceira
pelo fumante. A epidemiologia e inúmeros estudos já demonstraram de forma Idade: Gestão Contemporânea em
Saúde”. E-mail: veras@uerj.br
insofismável que o risco de um fumante é inúmeras vezes maior que de um não
fumante de adquirir um câncer de pulmão. Portanto o debate não se deve
pautar por algo comprovado, sobre o que não existe nenhuma divergência. O
fato novo e relevante, abordado pelo texto do Prof. Castro Santos, não se refere
ao incontestável risco para os fumantes ativos, mas se se pode afirmar o mesmo
para as pessoas expostas à fumaça do tabaco.

Duvidar sempre é um saudável exercício, principalmente diante de


descobertas incompletas ou evidências científicas parciais repetidas à exaustão
para que se tornem “verdades absolutas”. Toda análise requer o máximo de
cuidado. Às vezes, riscos de nível baixo são superdimensionados, ao passo que
outros, muito maiores, são subvalorizados. E o público geral, no final das contas,
não recebe a informação adequada.

“A principal maneira de os fumantes matarem é matando a si próprios


ao fumar, e não matando outras pessoas — elas matam muito mais a si próprias
do que aos outros”. Esta frase foi proferida pelo professor de Oxford Sir Richard
Peto, a respeito dos riscos impostos pela exposição à fumaça do tabaco de
outras pessoas. Peto é um dos principais epidemiologistas do mundo e, pelas
três últimas décadas, colaborou com Sir Richard Doll, até este morrer, em 2005.

Portanto a idéia que hoje existe na sociedade, de que o mesmo mal que
o tabaco faz ao fumante também ocorre ao não fumante, para grandes nomes
da epidemiologia mundial, não se sustenta. Richard Kluger e Michael Crichton,
entre muitos outros — nenhum dos quais conhecido por servir à indústria do

• Renato Veras • 49
tabaco —, aceitam como consistente a associação da exposição à fumaça do
tabaco e o câncer pulmonar em não fumantes.

Algumas observações preliminares são adequadas. Em primeiro lugar, a


FAT, ou fumaça ambiental do tabaco, é composta da fumaça emanada pela
ponta acesa do cigarro mais a fumaça expirada pelo fumante. Em segundo lugar,
os efeitos da exposição ao fumo passivo só podem ser estudados em pessoas
que nunca fumaram, uma vez que qualquer efeito seria reduzido pelos do fumo
ativo, o qual envolve a inalação da fumaça diretamente nos pulmões, sendo
Duvidar
muito mais concentrada. Vale a pena notar, porém, que é de se esperar que
sempre é um fumantes ativos tenham maior exposição à FAT. Se de fato acreditamos no
saudável conceito de uma dose-resposta, isto é, a dose torna-se o veneno, para parafrasear
exercício, livremente Paracelso, então a dosagem recebida por um fumante passivo deve
principalmente ser uma fração minúscula da dose recebida por um fumante ativo, e, portanto,
diante de é irracional pensar que os fumantes passivos tenham um risco que entre na
descobertas ordem de magnitude de um fumante ativo.
incompletas Por outro lado, é importante frisar que não se descarta a possibilidade
ou evidências de a exposição à fumaça ambiental do cigarro causar alguns casos adicionais de
científicas câncer pulmonar e outras doenças em pessoas que nunca fumaram. É
parciais biologicamente plausível que os não fumantes cronicamente expostos a altos
repetidas à níveis da fumaça do fumante estejam em maior risco. Antes de exagerar a
exaustão para ciência e afirmar dogmaticamente que o risco da FAT está estabelecido, teria
sido mais apropriado e menos enganoso afirmar que é inteiramente plausível
que se tornem
que em alguns casos a exposição à FAT pode ser responsável por alguns casos de
“verdades câncer pulmonar em não fumantes, apesar de que, segundo qualificados
absolutas”. epidemiologistas os riscos relativos são bastante baixos para afirmações tão
categóricas e definitivas.

A partir destes delineamentos, a questão que se apresenta é a seguinte:


o que é fato, exagero ou distorção na avalanche de notícias sobre riscos à saúde
no nosso dia a dia? Onde está realmente o perigo? Nas supostas evidências
científicas ou nos interesses difusos que interpretam a ciência conforme suas
conveniências?

As supostas informações científicas que, por interesses de várias ordens,


acabam se transformando em “verdades absolutas” e tornam-se conceitos
politicamente corretos trazem a necessidade de uma postura mais cuidadosa.
Principalmente quando se sabe que alguns achados viram modismo, são adotados
pela grande mídia e refletem um desejo oculto no inconsciente da sociedade.
Nem tudo é verdade, portanto. Mas enfrentar esse desafio é um combate que
poucos estão dispostos a travar.

A evolução da medicina trouxe a ampliação do tempo de vida, mas


também o aumento dos custos. Por esse motivo, as pesquisas científicas têm
assumido uma importância cada vez maior, pois permitem antever situações e
identificar fatores de risco, facilitando o diagnóstico precoce, em especial em

50 • • Riscos à saúde: fumaça ambiental do tabaco – pontos para um debate


relação às doenças crônicas. Os benefícios são claros: o aparecimento dessas
doenças é retardado, a eficácia do tratamento e a qualidade de vida aumentam.

Mas é fundamental compreender que nem todas as pesquisas conduzem


a resultados sólidos e plenamente confiáveis. Em muitos casos, teses são
sustentadas por evidências ainda frágeis. São pesquisas que enfatizam certas
descobertas e ignoram outras, agências reguladoras que adotam posturas
precipitadas, políticos e advogados que defendem apenas seus interesses e uma
parcela da mídia que acelera preconceitos agindo de forma tendenciosa. Essa é
uma combinação perigosa, capaz de forjar uma “certeza científica” onde há
alguma ciência, mas nenhuma convicção.

Qualquer de um nós, em algum momento da vida, já teve notícia de um


“novo estudo científico” indicando que determinado comportamento, produto
ou fator ambiental está vinculado a alguma doença terrível. Assim, beber café
estaria associado ao câncer do pâncreas. Comer chocolate poderia predispor
mulheres a tumores benignos de mama. A poluição ambiental, nos diziam,
poderia causar câncer de mama. Estudos pareciam mostrar uma conexão entre
exposição a campos eletromagnéticos das linhas de transmissão de energia e
eletrodomésticos e várias doenças, começando com a leucemia infantil. O uso
de celulares poderia levar a tumores cerebrais. A exposição à fumaça indireta de
cigarros seria primeiramente associada ao câncer pulmonar, a doenças cardíacas
e, mais recentemente, ao câncer de mama. Implantes de silicone mamários
estariam associados a doenças do tecido conjuntivo. Enfim, a lista ainda poderia
se estender muito mais.

Alguns medos, como aqueles relativos a café e celulares, podem diminuir


bem rapidamente à medida que melhores estudos são publicados ou quando o
risco é colocado em perspectiva e reavaliado com mais isenção. Em outros casos,
porém, o risco pode assumir vida própria e persistir por anos ou décadas,
tornando-se foco de novas pesquisas, ações reguladoras, processos judiciais ou
campanhas.

Tomemos, por exemplo, o caso dos campos eletromagnéticos das linhas


de transmissão de energia. Bilhões de dólares foram investidos para corrigir um
problema cuja existência é incerta. E o que espanta é que, embora muitas dessas
pesquisas apresentem resultados inconsistentes, a divulgação para o grande
público é feita como se houvesse uma certeza inabalável. Não parece haver
qualquer preocupação em evitar o exagero ou, ao menos, alertar para a fragilidade
da evidência científica ou do potencial de risco.

Existem riscos de fácil entendimento. O fogo é um deles. Desde cedo,


uma criança aprende que não deve colocar a mão no fogo, pois a queimadura
será imediata. Por outro lado, a maioria dos fatores de risco precisa de um longo
período para mostrar seus efeitos. É o caso do álcool, do tabaco e da poluição
ambiental, entre outros. Uma pessoa pode estar exposta a esses fatores durante
anos, sem que nenhuma consequência mais grave se manifeste. Deve-se também

• Renato Veras • 51
frisar que a manifestação de doenças crônicas ocorre de forma lenta e gradual,
o que coloca, para muitos, a dúvida se vale a pena abrir mão destes momentos
prazerosos da vida. Além disso, o consumo de tabaco e álcool era, não faz muito
tempo, associado a algo positivo, valorizado na sociedade e retratado com glamour
nos cinemas. Exemplo marcante foi visto em Casablanca. Em plena Segunda
Guerra Mundial, duas pessoas - llsa, interpretada pela bela atriz lngrid Bergman,
apaixona-se por Rick, o charmoso galã Humphrey Bogart - conseguem viver um
romance intenso e inesquecível em Paris. O final surpreendente é mediado com
uma bem-dosada fórmula de romance, intriga, suspense, com o apoio e o charme
de um cigarro na mão do galã.

Também podemos recorrer aos clássicos franceses, como Acossado, 1960


(Jean-Luc Godard); Uma Mulher para Dois, 1962 (François Truffaut); O Desprezo,
1963 (Jean-Luc Godard); Os Guarda-Chuvas do Amor, 1964 (Jacques Demy),
entre outros, onde a presença marcante do cigarro era parte integrante da
cena. Muitas vezes o Gauloises, o mais popular entre os consumidores franceses,
se destacava nas películas das décadas de 60 a 80. Um cigarro típico pela cor
azul, de tabaco escuro, cigarro sem filtro e com alto teor de nicotina e alcatrão.
Disseminado em popularidade entre a classe trabalhadora e a elite, era também
a marca favorita do escritor Jean-Paul Sartre. O que se pretende enfatizar é que
existe todo um contexto social, ambiental e cultural que dificulta a retirada de
valores e práticas tão enraizadas na sociedade.

Além disto, vivemos em um mundo globalizado. É ingênuo imaginar


que um hábito milenar arraigado em 1,4 bilhão de pessoas no mundo, segundo
dados da Organização Mundial de Saúde, com tendência a se ampliar devido ao
avanço econômico e à ampliação do poder aquisitivo das pessoas dos países
componentes do BRIC*, particularmente China e Índia, grandes consumidores
do tabaco, será freado com simples desejos ou informações científicas. Medidas
de restrições extremas sempre se mostraram ineficientes. Ações mais eficazes e
contemporâneas possivelmente caminham em direção oposta, como a exigência
de aperfeiçoamento de produto, drásticas restrições aos componentes
cancerígenos, uso de tecnologias de ponta em ventilação para ambientes
fechados, exigência de contrapartida social, entre outras, fossem medidas mais
eficientes para beneficiar a sociedade e os não fumantes dos malefícios do
tabaco.

Mudança de hábitos não é simples. É inocência imaginar que a simples


recomendação do agente sanitário, informando o que é bom e o que é mau seja
suficiente para a transformação dos costumes e hábitos diários de uma sociedade.
A epidemiologia já listou uma série de fatores de riscos e de fatores protetores.
Se apenas a informação científica fosse capaz de tudo transformar, bastava que
todos seguissem a cartilha do life style para ter uma vida feliz, saudável e livre
* Brasil, Rússia, Índia e China de doenças.

Não é tão simples. Sabemos que ninguém escolhe conviver com um


fator de risco por puro masoquismo. O fumante conhece e sente os malefícios

52 • • Riscos à saúde: fumaça ambiental do tabaco – pontos para um debate


do seu vício. Deixar de fumar, no entanto, é uma decisão que envolve questões
bem mais complexas do que a simples informação ou o desejo das autoridades
sanitárias. É preciso levar em consideração fatores da sua vida afetiva, do seu
trabalho, da sua relação social, familiar, cultural, entre outros.

A avaliação de riscos não é um processo científico, objetivo, que se


possa reduzir a uma questão quantitativa. Fatores culturais afetam a avaliação
que os indivíduos fazem das situações de risco; experts e leigos percebem o
risco de maneira diferente. Além do mais, a ciência não é neutra. Por isso não
devem existir “verdades absolutas”, principalmente quando os resultados são
inconclusivos.

Devemos questionar o olhar verdadeiro e definitivo, a dúvida faz parte Fatores


da ciência. Não custa buscar exemplos em situações outras, como pode ser culturais
observado no filme francês Caché, lançado em 2005 e dirigido por Michael Haneke. afetam a
O filme (a palavra francesa caché significa “escondido”) é sobre um casal de avaliação que
classe alta e seu filho adolescente, que recebem fitas com imagens da frente de
os indivíduos
sua casa. As gravações foram enviadas por um remetente anônimo. Assim começa
fazem das
um mistério no filme que envolve todos os personagens presentes na trama.
situações de
As filmagens que são exibidas ao espectador não se diferenciam da risco; experts
realidade ficcional, o que coloca em xeque toda e qualquer imagem. Quando e leigos
observamos o plano geral inicial do filme, esperamos, por convenção, que um
percebem o
plano mais detalhado, possivelmente contendo os protagonistas da história
que iremos acompanhar, se suceda. Mas tais convenções cinematográficas são
risco de
quebradas pelo diretor e nos deparamos com uma imagem na qual não podemos maneira
confiar. diferente.
Alem do mais,
Haneke não está preocupado em solucionar tal enigma, e a ausência de
a ciência não é
respostas claras faz parte de uma posição política do diretor, que declarou que
“quanto mais radicalmente as respostas são negadas ao espectador, mais ele vai
neutra.
procurar sua própria verdade”.

Outra reflexão interessante, bem mais familiar e próxima, sobre esta


necessidade de decifrar o oculto se verificou no último Carnaval no Rio de
Janeiro. A escola campeã, Unidos da Tijuca, apresentou o enredo “É Segredo!”,
do carnavalesco Paulo Barros, conhecido por sua inventividade e criatividade.

A comissão de frente representou na sua dança “Nem tudo o que se vê


é o que parece ser”. Eles tiveram o auxílio de um elemento cenográfico durante
a apresentação, com movimentos rápidos e ao mesmo tempo provocando muito
mistério.

As imagens surgiam para nos revelar alguma coisa, nos dar a certeza de
que ali estavam respostas e, de repente, nada era mais como parecia ser alguns
segundos atrás. Como isso pôde acontecer, se tudo parecia tão claro? Como num
passe de mágica, o que tínhamos diante de nós se transformava em outra coisa.
Inexplicável.

• Renato Veras • 53
O carnavalesco Paulo Barros oferecia a possibilidade do desvendar que
acontecia diante de todos os olhos, mas advertia, “não esqueça que nem tudo o
que se vê é o que parece ser… E se conseguir decifrar o que está por trás, não
revele o segredo… Deixe-se levar pelo inesperado e surpreenda-se! No Carnaval,
você pode descobrir como são mutáveis as certezas que temos sobre o que vemos”.

Michael Haneke, Paulo Barros e o professor Castro Santos, cada um de


seu ponto de vista, nos mostram a complexidade do olhar definitivo.

O professor Castro Santos se rebela ao perceber que os documentos da


corrente hegemônica são essencialmente um material político, reducionista,
destinado a alcançar um objetivo específico. Seu texto tem o mérito de trazer à
tona essa discussão. Ao traçar a trajetória de cada um desses perigos, desde seu
surgimento até os dias de hoje, ele mostra como a publicação de estudos e
avaliações críticas mais rigorosas ajudaria a colocar o risco em uma perspectiva
ao mesmo tempo ampla e desafiadora.

54 • • Riscos à saúde: fumaça ambiental do tabaco – pontos para um debate


DIÁLOGOS E EMBATES ENTRE
AS CIÊNCIAS SOCIAIS E A
EPIDEMIOLOGIA: a retórica dos
riscos
Por Alba Zaluar
e Luiz Antonio de Castro Santos

Alba Zaluar é antropóloga,


“I saw guns and sharp swords professora titular do Instituto de
in the hands of young children” Medicina Social da Uerj e
Pesquisadora do CNPq. Publicou
Bob Dylan, A hard rain’s a-gonna fall, 1962 recentemente “Pesquisando no
perigo: etnografias voluntárias e
não acidentais”. MANA 15(2):
557-584, 2009.

Luiz Antonio de Castro Santos


é sociólogo, professor associado
Em palestra para o “Chá de Epidemiologia” (seminários quinzenais or- do Instituto de Medicina Social
da Uerj e pesquisador do CNPq.
ganizados por Eduardo Faerstein no Instituto de Medicina Social da Uerj), em Publicou recentemente, com Lina
Faria, Saúde & História (Hucitec,
16 de outubro de 2008, intitulada “O self como risk-taker: confrontos, aproxi- 2010).
mações e dissensões entre a epidemiologia e a sociologia”, Luiz Antonio de
Castro Santos comentou um texto sugerido para debate dias antes do evento.
Nesse texto (Béhague et alii, 2008), as autoras propõem-se a estabelecer um
diálogo entre a antropologia e a epidemiologia. Antes de colocarmos em ques-
tão outras contribuições importantes para o debate naquela manhã, iremos
focalizar de perto o texto citado.

No artigo citado, ainda que as autoras busquem discutir algumas


interfaces entre a antropologia e a epidemiologia nas pesquisas em saúde, a
nosso ver — já antecipamos uma conclusão geral —, verifica-se um diálogo
ainda bastante travado entre as disciplinas. A antropologia e, particularmente,
a sociologia estão ausentes do debate, ou têm nele uma voz oblíqua. Uma
indicação ligeira sobre o peso relativo das referências intelectuais: das dezenas
de citações no texto, apenas meia dúzia, se tanto, poderá ser rigorosamente
classificada como “literatura antropológica”.

Dominique Béhague e Helen Gonçalves são antropólogas sociais, com


inserção frequente pelos caminhos da epidemiologia. Tomemos como exemplo
da produção de Helen Gonçalves seu ensaio sobre “as percepções corporais” de
tuberculosos que abandonam o tratamento, publicado em coletânea organizada
pelos antropólogos Luiz Fernando Duarte e Ondina Leal (Gonçalves, 1998).O
ensaio reflete um primeiro momento, bastante fecundo, de sua carreira antro-

• Alba Zaluar e Luiz Antonio de Castro Santos • 55


pológica. Diferentemente do texto Anthropology and Epidemiology (Béhague et
alii, 2008), os conceitos-chave do ensaio antropológico (cujas características
formais fogem inteiramente do molde “introdução, métodos, resultados, dis-
cussão”, adotado em textos epidemiológicos) são as representações ou percep-
ções de um ator-doente. A autora dialoga com a teoria antropológica que se
poderia dizer “de raiz” (Mary Douglas e Lévi-Strauss, entre outros autores), não
apenas com a antropologia médica. Desde logo, distancia-se da antropologia
médica, não raro mais “médica” do que “antropológica”. No texto em inglês, no
qual Helen Gonçalves colabora, estamos diante de um outro conceito-base, que
é o risco. Assim, é como se os temas evocados por Helen Gonçalves caminhas-
sem sobre duas sendas distintas: no primeiro texto temos uma conceituação
antropológica do “self as risk taker” (Mary Douglas, 1992); no segundo, com
Béhague e Victora, temos uma conceituação epidemiológica do “self as risk-
averse” (ainda Mary Douglas). Esta é a baliza epistemológica do texto publica-
do em Ciência e Saúde Coletiva. Do primeiro para o segundo exemplo, passamos
da ênfase do ator que corre riscos, ou que não os considera como princípio
fundador de suas ações, para o ator que lhes é avesso, que deles foge para
maximizar suas life-chances, uma vida saudável pautada em escolhas suposta-
mente racionais. Estamos, é claro, num cenário de tipos ideais ou categorias
construídas1.

Mas há um pouco mais. No primeiro artigo, a noção de estigma aproxi-


ma a discussão antropológica sobre os tuberculosos, da discussão sociológica de
um Erving Goffman (1988) ou de um Oracy Nogueira (2009), mestres do estudo
dos processos estigmatizantes que podem advir das políticas públicas, de movi-
mentos sociais ou da própria cultura, em sociedades tribais e complexas. Pensa-
mos, desde logo, no fato de que a noção de risco, em epidemiologia, pode
conduzir as políticas antitabagistas a baixar taxas de morbidade e mortalidade.
1
Lembremos que foi No entanto um trágico efeito não antecipado (ou negligenciado) destas políti-
justamente ao procurar
distinguir categorias que cas tem sido o de tornar os fumantes uma camada de outcasts, de novos lepro-
Mary Douglas sugeriu a
adoção de diferentes
sos ou pestosos do século 21. Temos aqui, a rigor, não uma questão
mensagens para diferentes epidemiológica, mas antropológica e sociológica.
grupos culturais, nas
campanhas contra a Aids
(Douglas, 1992:102-121; Aqui chegamos a nosso comentário final sobre o texto de Béhague e
Guivant, 1998: 10).
colegas: trata-se de uma tentativa auspiciosa de demarcar pontos de conver-
2
Para uma discussão
estimulante sobre o estado gência e de reflexão crítica, mas ainda caminhamos sobre a senda do risco, não
da arte da epidemiologia das representações sociais. O texto não traz o vigor interpretativo da antropo-
dos riscos nas décadas de
1980 e 1990, logia. O desafio é estabelecer um diálogo sem sincretismos. Não há espaço
particularmente sobre a
“relatividade” dos próprios epistemológico para “médias” nem “medianas” entre os dois campos. As
“riscos relativos“e a eclosão
da “epidemia dos riscos” na (o)posições devem ser esclarecidas em sua inteireza, como propostas até certo
literatura médica, veja-se o
texto de Castiel, 1996.
ponto antípodas. 2 Isso não está lá, no texto por outras tantas razões bem-
Castiel aborda também a vindo, de Béhague e colegas. O que sentimos é que a aventura colaborativa não
extensa literatura
sociológica, apontando o traz ainda as anunciadas “epistemological lessons”, mas sim lições
cenário dos “novos agravos”
que se abre (ou se fecha?) epidemiológicas... No fundo, estamos diante de uma tentativa da epidemiologia
tanto para o campo
biomédico como para as de questionar posições hegemônicas em suas próprias fileiras, de um passo
ciências humanas.
importante para reconhecer seus limites e posicionar-se, ainda que de modo

56 • • Riscos à saúde: fumaça ambiental do tabaco – pontos para um debate


hesitante, diante do desastre ético e político de algumas políticas de saúde
entrincheiradas na noção de risco. Esse questionamento dentro do próprio ter-
ritório de disciplina talvez tenha alcançado seu ponto mais alto e previsivel-
mente polêmico no livro recente do epidemiologista Geoffrey C. Kabat, docente
do Albert Einstein College of Medicine, em Nova York, ao criticar os exageros e
distorções que, como bem aponta, têm caracterizado o tema dos riscos ambientais
à saúde (Kabat, 2010).

As noções e posições abraçadas pela literatura epidemiológica dos riscos


não levam em conta a multiplicidade de subjetividades e a própria história dos
debates e da formação conflitiva dos conceitos, embora tendendo para acordos
e consensos periódicos, na Antropologia e na Sociologia. São muitos os exem-
plos em que tais falhas transparecem no discurso epidemiológico, a despeito
dos propósitos da literatura de fazer um bom diálogo interdisciplinar. A própria
idéia, hoje corriqueira nos campos das ciências sociais, de que as representa-
ções constituem o componente mental de qualquer ação social, de que elas
constituem a mediação simbólica de cada uma das transações sociais envolven-
do seres humanos, deve conduzir à consciência, entre autores da epidemiologia,
de suas implicações teóricas profundas. Uma delas é que isso tem consequências
sobre as intervenções propostas e feitas na Saúde Pública por seus agentes, na
medida em que se faz necessário levar em conta o que pensa e pratica o sujeito
que venha a ser objeto de tais intervenções. Não apenas para a epidemiologia,
mas igualmente para a saúde coletiva, tais consequências teóricas e programáticas
representam duros desafios, que estão longe de ser enfrentados na abundante
produção do campo, a exemplo do silêncio sobre os fumantes — cujas repre-
sentações simplesmente não têm sido consideradas, como indivíduos destituí-
dos dos direitos básicos à fruição dos espaços públicos.

Um dos autores mais importantes no debate sobre riscos, o sociólogo


alemão Ulrich Beck, chega a propor que a nova modernidade é a “sociedade do
risco” (Beck, 1992). Beck não se propõe a debater, como faz Randall Collins
magistralmente, a recente vulnerabilidade dos espaços sociais que promovem
os ritos de sociabilidade, alvo das campanhas antitabagistas (Collins, 2004, esp.
cap 8; Castro Santos, 2007). As preocupações centrais de Beck, também assina-
ladas por outros autores como Anthony Giddens e Scott Lash (Beck et alii,
1994), voltam-se para os riscos tecnológicos e ambientais que poderíamos cha-
mar “de grande impacto”, no tocante às consequências para o futuro da espécie
humana e do planeta, no projeto histórico da modernidade. Diante dos confli-
tos em torno dos malefícios da tecnologia, que mudam o eixo do seguro/ inse-
guro, uma multiplicidade de grupos, associações e movimentos sociais – “peri-
tos” de toda sorte — almejam ser especialistas, ou posicionam-se como tal,
visto que a informação é cada vez mais partilhada e mais necessária para en-
frentar os efeitos da ação humana sobre o planeta. Mary Douglas e Aaron
Wildavsky situaram a questão da (in)segurança sob um ângulo fundamental-
mente cultural. Sua questão norteadora contempla culturas singulares — tan-
to sociedades tribais como complexas: ao indagarem “Quão seguro é suficiente-

• Alba Zaluar e Luiz Antonio de Castro Santos • 57


mente seguro para uma cultura em particular?”, acabam por questionar igual-
mente a possibilidade de peritos chegarem a definir níveis “universalmente”
aceitáveis de segurança. Isto é: a rigor, não existem peritos (Douglas e Wildavsky,
1982). Nas palavras da socióloga Julia Guivant, “temos que lidar com conheci-
mentos que são incertos, aspecto que a perspectiva técnica sobre os riscos não
considera ao superintelectualizar os processos decisórios e superenfatizar os
impedimentos dos leigos, classificados como irracionais” (Guivant, 1998, p. 4).

Nessa perspectiva, trata-se de comparar práticas sociais ou culturas em


ação que permitam descobrir quais impulsionam as pessoas para novos espaços,
novos experimentos, ações cujos resultados são imprevisíveis ou desconheci-
(...) questões dos, ou ainda simplesmente respostas a desafios. Tem muito mais a ver com
que sempre voar de planador, mergulhar em grande profundidade, apostar em jogos de
atormentaram azar, inclusive na bolsa de valores, correr em alta velocidade, do que fumar um
os humanos: cigarro sem saber quando, onde e se vai se contrair um câncer. Essa comparação
quando se destina-se a responder questões que sempre atormentaram os humanos: quan-
proteger, do se proteger, quanto arriscar para usar a liberdade? As respostas das culturas
quanto e das pessoas têm sido múltiplas e é preciso, antes de tudo, entender o que
está em jogo no risco.
arriscar para
usar a Mais recentemente, harmonias e discordâncias marcam o posicionamento
liberdade? As de autores da estatura de Giddens, Beck e Lash. Tanto em suas obras, como, de
respostas das modo geral, na literatura recente, há pontos de notável convergência. Os dois
culturas e das primeiros autores coincidem em propor que o conceito de sociedade de risco
passe a substituir o de sociedade de classes. Em seu excelente balanço da lite-
pessoas têm
ratura sobre os riscos ambientais e seu enfrentamento pelas ciências sociais,
sido múltiplas
Julia Guivant (1998) aponta com precisão as limitações de tal “virada”
e é preciso, interpretativa, por refletir de modo particular a situação observada nos países
antes de tudo, centrais. Giddens não supõe um caráter tão marcante nos processos de mudan-
entender o ça, como faz Beck, mas esse viés não está ausente de seus trabalhos. Guivant
que está em sugere uma “simultaneidade” de processos nos países dependentes. “Podemos
jogo no risco. considerar, por exemplo, que a sociedade brasileira é atravessada pelos proble-
mas da sociedade de escassez, na qual a distribuição da riqueza é altamente
desigual entre as classes sociais, junto com os problemas da sociedade de risco,
sem ainda contar com uma reflexividade ativa como a que Beck identifica nas
sociedades mais industrializadas” (Guivant, 1998, p. 34). Mas seria injusto com
Beck e Giddens dizer que não assinalaram como os efeitos da sociedade de risco
estão desigualmente distribuídos na sociedade. São os mais pobres os mais
vulneráveis, para os dois autores (Beck, 1992).

Justamente ao contemplar as sociedades contemporâneas, a literatura


tem procurado demonstrar o caráter plural das noções sobre os riscos e sua
(in)aceitabilidade, bem como a desintegração das certezas outrora existentes
na sociedade industrial. Na falta de consensos facilmente reconhecíveis, sem
cerne legitimador, os indivíduos têm ao mesmo tempo mais possibilidades de
fazer escolhas, de tornar seu self social, ou selves, no plural, ainda mais plurais
e complexos, e assumir uma responsabilidade maior por suas próprias biografi-

58 • • Riscos à saúde: fumaça ambiental do tabaco – pontos para um debate


as. Por isso mesmo, nessa sociedade de indivíduos, a liberdade de agir segundo
escolhas pessoais é ao mesmo tempo o apanágio e a responsabilidade de cada
um. Em outra perspectiva teórica, para sairmos do individualismo que pode
deslizar para o utilitarismo, é preciso reconhecer que a busca de novas certezas,
avatares e proteções para si e para os outros se torna como que uma compulsão
por novos elos de reconhecimento, com base nos laços sociais que unem e
constroem as subjetividades. Este é o programa de outra rede de pesquisas,
comandada pelo grupo francês do MAUSS, “Movimento Antiutilitarista nas
Ciências Sociais” — e apoiada na contribuição clássica sobre a dádiva e a reci-
procidade, do antropólogo Marcel Mauss.

O alcance e os limites da precaução.

Algumas políticas de saúde, impostas como soluções para a redução dos


3
“riscos relativos”, têm ignorado, como vimos afirmando, a livre fruição de laços Para uma posição em defesa
do princípio da precaução no
sociais que produzem e reproduzem as subjetividades. No caso do cerco aos Brasil, consulte-se Dallari,
2006. Em importante trabalho,
fumantes, estamos diante do não-lugar da sociabilidade, ou da limpeza “sani- diz a autora: “De certo modo,
pode-se afirmar que a análise
tária” dos espaços públicos, para livrarmo-nos de comportamentos suposta- dos elementos que constituem
mente desviantes. Um novo conceito, de roupagem sociológica, jurídica e mé- o princípio de precaução
remonta aos fundamentos da
dica, tem sido aclamado como o “princípio da precaução”, um mandato para Saúde Pública. Fica evidente
(sic) que para instaurar a
que ações em defesa da saúde pública por parte dos governos em todo o mundo prevenção, elemento
historicamente essencial ao
sejam consideradas legitimas, mesmo na ausência de evidências cientificas in- conceito de Saúde Pública, é
contestáveis3. indispensável a contínua
vigilância não só dos dados
epidemiológicos, como do
Ora, uma provocação recente de Bruno Latour sobre essas questões ambiente político em que eles
ocorrem, implicando,
(Latour, 2010) convida-nos a virar pelo avesso o próprio princípio da precau- sobretudo, os grandes valores
que a sociedade pretende
ção, do modo como vem sendo interpretado pelos governos e aplicado por legis- abrigar, sua opção ética. É
justo reconhecer, portanto,
ladores e autoridades da saúde, liderados pela comunidade epidemiológica. Latour que o novo ‘princípio de
postula humildemente a adoção de “novas regras” do método experimental, precaução’ tem servido mesmo
para despertar o Estado para
não mais as antigas “regras” de Emile Durkheim, que, por vias transversas, uma de suas missões essenciais
e prioritárias: proteger e
continuam presentes em toda démarche científica. Há tempos, diz Latour, a preservar a Saúde Pública”
(Dallari, 2006, p.25). Vemos
ação racional se supunha decorrente do saber científico – “le savoir expert”. A com preocupação o aceno para
passagem do saber à ação era legitimada pela suposição do conhecimento com- a conduta missionária do
Estado, que pode vir a
pleto sobre causas e consequências (ibid: p. 1). Um especialista ou consultor de “despertá-lo” para a
formulação de políticas de
saúde pública, na ausência de um conhecimento sólido sobre causas e efeitos, saúde eticamente infundadas e
politicamente autoritárias,
toma “precaução” contra o risco, para eliminá-lo. Na leitura latouriana, a pre- ainda que em nome “dos
caução deve conduzir à convivência com riscos, sob certas condições. Não se grandes valores que a
sociedade pretende abrigar”.
trata de uma ressurreição de um ethos anarquista ou revolucionário. Na verda- (Agradecemos à médica
sanitarista Sylvia Ripper nos ter
de, a ação precavida ou prevenida, movida pelo princípio correspondente, con- chamado a atenção para o
artigo de Dallari).
siste em “sondar, explorar, tatear”, ter em conta as vozes do outro (p. 1). “Pour
s’entendre, il faut entendre “ (p. 2). 4
“Autrement dit, dans tous
les modèles d’action, la
Os riscos “nunca exatamente calculados” têm a necessária contrapartida vigilance va de pair avec la
prise de risque. (...) Plus je
de uma responsabilidade compartilhada, de uma accountability social, de uma prends de risque plus
j’apprends comment et
“vigilância permanente” pela sociedade, não sobre ela. 4 Nos termos emprega- surtout face à quoi devenir
dos pelo campo da saúde no Brasil, trata-se da vigilância não imposta vigilant”. (Latour, 2010, p. 1).

• Alba Zaluar e Luiz Antonio de Castro Santos • 59


institucionalmente, mas vivida como “controle social” – tampouco o controle
como conceito sociológico durkheimiano, que remete às normas e regras sociais
introjetadas pelos sujeitos, mas o controle como exercício de estreita atenção e
avaliação da população sobre os próprios dispositivos da vigilância institucional.
A vigilância é, na verdade, outra coisa, diferente da “vigilância sanitária” — é
a atenção, o conhecimento informado, participado e participativo diante do
risco. Não se coloca como um aspecto acessório da precaução; ao contrário, é
A vigilância é, seu elemento essencial. Do mesmo modo, ao se romperem os liames estreitos
na verdade, entre a expertise e a ação, a perplexidade ganha espaço no lugar da certeza,
outra coisa, como nova parceira da vigilância e da própria ação consciente do risco. A ciên-
diferente da cia experimental torna-se agora, sugere Latour, “uma ciência experimental co-
letiva”, ampliada para o próprio terreno da ação e das experiências coletivas,
“vigilância
mergulhada “na dura incerteza das controvérsias”. (p. 3). “O princípio da pre-
sanitária” — caução nos impede, no fundo, de desqualificar o interlocutor com quem se faz
é a atenção, necessário o entendimento” (p. 2). Em suma, a voz do saber não é tampouco a
o conhecimento voz de um dono da expertise diante de “peritos alternativos”, mas diante do
informado, não-saber dos leigos, colaboradores de vastas experiências em escala globalizada.
participado e O modelo experimental subsiste num sentido estreito, mas a ciência experi-
participativo mental «coletiva» de que nos fala Latour corresponde a processos de larga am-
diante do risco. plitude para tornar possível um outro princípio, o princípio do bom governo.
Cauteloso diante da busca dos famosos “determinantes sociais” da saúde pela
epidemiologia, o bom governo deverá de fato contemplar as “indeterminações”
do mundo real (Guivant, 1998,p. 35) e divulgar os limites da certeza científica
à população sensível ao risco cotidiano e ao modo de enfrentá-lo.

As drogas e a cultura

Se a literatura anglo-saxã sobre riscos e cultura foi o destaque a partir


da década de 1980, particularmente com a contribuição de Mary Douglas, auto-
res franceses têm sido bastante presentes na produção internacional recente.
Já sublinhamos a crítica notável de Latour às conceituações da “precaução”.
Outras presenças devem agora ser consideradas. Alguns intelectuais importan-
tes no debate sobre o tema, na França, além de pesquisadores de outros países,
participaram de um encontro internacional, “Drogues et Cultures”, organizado
pela agência OFTD (Observatoire Français des Drogues et des Toxicomanies) e
pela Chaire Santé de Science Po, realizado em Paris, de 11 a 13 de dezembro de
2008. [http://www.drugsandcultures2008.com]. A efervescência extraordiná-
ria dos debates foi assinalada na conferência de encerramento pelo sociólogo
Robert Castel (ibid: 13 de dezembro de 2008, vídeo). Castel enfeixou algumas
das questões e conclusões mais candentes, sugerindo cautela na análise da
toxicomania, ao distinguir entre usuários e toxicômanos e ao apontar a conve-
niência de limites para a adoção dos chamados “heterocontroles” sobre usuári-
os, inclusive sobre os consumidores pesados. Castel aponta para a necessária
prudência na adoção de práticas institucionais coercitivas e punitivas, com
base no saber médico e jurídico. O consumidor — leve ou pesado — é um

60 • • Riscos à saúde: fumaça ambiental do tabaco – pontos para um debate


sujeito social; o consumo de drogas é um comportamento social que deve ser
trabalhado pela ciência social. Esta é uma afirmação banal para os cientistas
sociais, lembra Castel; no entanto parece escapar aos saberes de ordem médica
e jurídica, cuja aplicação chega mesmo a prescindir do cientista social. Ainda
que não tenha diretamente abordado as questões do narcotráfico, suas obser-
vações são por certo igualmente aplicáveis a este último tema, no qual o dis-
curso forense e policial tende a desconsiderar as análises de sociólogos e antro-
pólogos.

Na produção francesa mais recente, reforçam-se o tom e a crítica das


contribuições pioneiras no campo, com releituras e apreciações dos trabalhos
de Mary Douglas, além de uma interessante adaptação do clássico de Howard S.
Becker sobre a “carreira moral” dos usuários de maconha. Desta feita, o tema de
Becker é revisto pela mira dos novos outsiders do século XXI, os fumantes
franceses (Becker, 1963; Peretti-Watel, 2007). Acentua-se a variada exposição
ao risco — em que se observa, para o tabaco e para as drogas, a questão da
regularidade e da quantidade de consumo. Estas últimas, surpreendentemente,
são quase sempre negligenciadas nas análises dos males derivados do fumo,
como se qualquer nível de exposição produzisse agravos idênticos. Discutem-
se as atitudes sociais de grupo, bastante diferenciadas em relação aos riscos e
relacionadas a representações sociais igualmente diferenciadas. Em sua pales-
tra no Seminário “Drogues et Cultures”, o sociólogo Patrick Peretti-Watel enfatiza
o caráter polissêmico da noção de risco e os modelos da epidemiologia que
levam ao conhecimento/desconhecimento do comportamento social do usuário
de drogas (Conférence Drogues et Cultures, 13 dezembro de 2008, vídeo).

Outro autor nesse debate na França, o antropólogo David Le Breton


(1991, 2004), ressalta em seus trabalhos o gosto pelo risco que caracteriza
algumas categorias de pessoas, tais como empreendedores e desportistas. Em
vez de evitar a ação arriscada, esses indivíduos e suas “tribos” optam por bus-
car o risco, procurando e valorizando justamente a experiência, ao enfrentá-lo,
de vivenciar “paixões de risco” (ibid, 1991) e “condutas de risco” (ibid: 2004).
A lógica desta procura não pode ser entendida sob a ótica da racionalidade na
aversão ao risco, ou, acrescentamos, a partir dos paradigmas da escolha racio-
nal, mas sim como uma forma de se confrontar inconscientemente com a morte
e buscar o reconhecimento ou um sentido na vida pessoal e diante de seu
“grupo de referência”. Esse sentido, como têm mostrado os sociólogos
interacionistas, pode ser proporcionado pelo “grupo de referência”, ou construído
na ação do próprio sujeito, mesmo sem a interferência efetiva ou direta do
grupo ou da coletividade.

O risco incerto

Decorre do exposto que a própria idéia da preservação da vida acima de


tudo, a valorização da longevidade e a opção pela tranquila vida dos que não se
arriscam, deve ser relativizada para que se compreenda por que algumas pesso-
• Alba Zaluar e Luiz Antonio de Castro Santos • 61
as e alguns grupos preferem justamente o curso oposto. A definição do risco na
abordagem das ciências sociais é, portanto, uma construção social múltipla,
polifônica, sendo um dos seus presentes sentidos aquele usado na Epidemiologia
e tomado, como indicamos neste ensaio, de modo quase sempre polêmico por
sociólogos e antropólogos. Essa discussão torna-se crucial para entendermos o
que está em questão. Se considerarmos o risco dentro de esquemas de
racionalidades que enfatizam o cálculo, a partir de variáveis socioeconômicas
O apego a
ou ecológicas, todas elas probabilísticas, deixaremos de lado o que não pode ser
redes de medido porque pertence à esfera da liberdade humana, daquilo que um funda-
suporte social, dor da Antropologia – Bronislaw Malinowski – chamou “os imponderáveis da
recentemente vida real”. Esses imponderáveis são considerados por todo cientista social nas
enfatizadas em suas tentativas de entender, explicar ou interpretar o mundo. A retórica da
trabalhos de Epidemiologia não abre espaço para a intersubjetividade necessária na incorpo-
epidemiologistas ração, pelo observador despido da arrogância racionalista da filosofia do sujei-
– o cultivo de to, das representações sociais plurais, diferenciadas e coexistentes na situação
vivida na pesquisa. Perdem-se assim, nas interpretações correntes, os recursos
“supportive
interpretativos da Antropologia e da Sociologia, particularmente no uso dos
relationships” –
conceitos que poderiam criar variáveis quantificáveis mais confiáveis.
teria muito a
ganhar com o Por isso mesmo, não se podem deixar de lado antigas teorias sobre a
cuidadoso diferenciação de gêneros, de classes sociais, de formações sociais e as mais
contemporâneas, de interações simbólicas e definições da situação vivida e da
exame dos
sociabilidade. O apego a redes de suporte social, recentemente enfatizadas em
trabalhos dos
trabalhos de epidemiologistas – o cultivo de “supportive relationships” – teria
interacionistas muito a ganhar com o cuidadoso exame dos trabalhos dos interacionistas sim-
simbólicos bólicos sobre os rituais de convivência social que possam vir a reduzir o impac-
sobre os rituais to dos “riscos” sobre a saúde de maneiras insuspeitadas ou inesperadas (a exemplo
de convivência de Collins, 2004).
social que Há, por certo, rituais destrutivos ou antissociais que têm sua
possam vir a racionalidade igualmente avessa ao cálculo. Nas sociedades urbanas contempo-
reduzir o râneas aparecem inegáveis diferenças na relação que os jovens das classes po-
impacto dos pulares têm com a sua masculinidade, claramente atrelada, por sua vez, à capa-
“riscos” sobre a cidade de tomar e enfrentar riscos. Estes jovens procuram brigas e “rachas” de
saúde de carro, como forma de entretenimento e fortalecimento de suas cliques. São
maneiras muitos os estilos de masculinidade entre jovens de classes médias e altas, entre
“nativos” e migrantes de outros estados, entre jovens da segunda geração de
insuspeitadas
migrantes, entre os jovens negros, pretos, pardos, mulatos de diferentes áreas
ou inesperadas.
das cidades brasileiras. Por outro lado, não cabe generalizar e associar os estu-
dos que correlacionam as formas hegemônicas de socialização do homem, vol-
tadas para comportamentos de coragem, de agressividade, de combate, de
competitividade e de desafio aos perigos, com condutas violentas e de risco.
Tais estudos criariam um “macho genérico” estereotipado e “essencializado”,
sempre propenso à violência e ao perigo, o que significaria afirmar uma deter-
minação direta, sem mediações, entre ser homem e adotar condutas de risco.

62 • • Riscos à saúde: fumaça ambiental do tabaco – pontos para um debate


REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS
Se considerarmos a violência e o risco como polifônicos, torna-se im-
prescindível incluir as definições, sensibilidades e sentimentos das pessoas BECK, Ulrich. Risk society.
Towards a new modernity.
envolvidas na situação ou na interação em foco. Do ponto de vista do Londres: Sage, 1992
BECK, Ulrich; GIDDENS,
ordenamento social, pode-se dizer que uma manifestação de força torna-se Anthony; LASH, Scott.
Reflexive Modernization:
violência quando ultrapassa um limite ou perturba acordos tácitos e regras que politics, tradition and
aesthetics in the modern social
ordenam relações. É, portanto, a percepção do limite (e do sofrimento que order. Cambridge: Polity Press,
provoca) que vai caracterizar um ato como violento. Do mesmo modo, o risco é 1994.

também aquele ato ou situação que ultrapassa a capacidade de cada um, ou de BECKER, Howard S., Outsiders:
Studies in the sociology of
um grupo social, de contemplar possíveis desfechos e sondar (“explorar, tatear”, deviance. New York: The Free
Press, 1963.
nos lembra Latour) os resultados (in)esperados. Estamos diante de outra lógica,
de riscos nunca exatamente calculados. BÉHAGUE, Dominique P.;
GONÇALVES, Helen; VICTORA,
Cesar G. “Anthropology and
Risco e incerteza se fundem. A detecção da conduta do risco e da con- Epidemiology: learning
epistemological lessons
duta violenta depende das sensibilidades ou emoções, tais como o medo e a through a collaborative
venture”. Ciênc. saúde coletiva
orientação do ator para este sentimento. O conhecimento maior ou menor dos vol.13 no. 6 Rio de Janeiro
Nov./dec. 2008. p. 1701-1710.
efeitos maléficos que pode trazer uma situação definida como de risco, tanto
para o indivíduo como para seu grupo de referência ou para a coletividade, CASTIEL, Luis David. “Vivendo
entre exposições e agravos: a
pode influir no curso da ação tomada pelo ator. Não obstante, os valores e teoria da relatividade do
risco” História, Ciências, Saúde
disposições do sujeito para enfrentá-la, individualmente ou em grupo, podem - Manguinhos, Rio de Janeiro,
v. 3, n. 2, p. 237-254, 1996.
ser decisivos e contrariar a ação que se “esperaria” daquele conhecimento ou da
CASTRO SANTOS, Luiz A.
informação sobre efeitos maléficos. “Um sociólogo e seus rituais”.
Ciências Sociais Unisinos
Por isso mesmo, é preciso atentar para as zonas existentes de conflito 43 (3): 279-282, setembro/
dezembro, 2007.
social e basear qualquer tentativa de prevenção de violência, redução de riscos
COLLINS, Randall. Interaction
ou de “agravos”, na interatividade dos personagens nelas envolvidos. Se o Ritual Chains. Princeton,
Princeton University Press,
comportamento é essencialmente social, se o sujeito é um ator social, isto não 2004.
significa que as políticas de redução de conflitos possam prescindir do DALLARI, Sueli G. “O direito
envolvimento de cada ator, da palavra de cada um deles. Estamos diante de sanitário como campo
fundamental da vigilância
diferentes personagens, nos bastidores das relações de grupo e zonas de confli- sanitária”. In MARQUES, MCC
et alii (orgs) Vigilância
to. É preciso, pois, analisar como os atores vivenciam o risco, se eles o procuram Sanitária: da gestão ao risco
sanitário. São Carlos: RiMa,
ou são tragados por ele, no duplo sentido para os fumantes de tabaco e para o 2006.
usuário de drogas ilegais. (Do mesmo modo, ça va sans dire, a ciência social não
DOUGLAS, Mary. Risk and
pode ser tragada pela retórica dos riscos). blame: essays in cultural
theory. Londres: Routledge,
1992.
Do ponto de vista sociológico e antropológico, importa entender como
DOUGLAS, Mary e
os atores avaliam os efeitos de uma droga sobre seus corpos e mentes e o WILDAVSKY, Aaron. Risk and
culture: an essay on the
quantum de prazer ou de sofrimento que lhes proporcionam. A própria idéia de selection of technical and
compulsão e de excesso deve ser relativizada e incluir a subjetividade dos agen- environmental dangers.
Berkeley, CA: University of
tes. Mesmo assim, é possível conceber uma grade de condutas que variam entre California Press, 1982.
GOFFMAN, Erving, Estigma –
o controle da ação e a compulsão, entre o racional e o irracional, entre precau- Notas sobre manipulação da
identidade deteriorada. Rio de
ções tomadas para diminuir os efeitos maléficos e a exposição desabrida e desa- Janeiro: Ed. Guanabara, 1988
fiadora, apesar do conhecimento supostamente adquirido sobre tais efeitos. GONÇALVES, Helen. “Corpo
doente: estudo acerca da
Talvez se possa conseguir traçar, como fez Becker há tanto tempo, alguns perfis percepção corporal da
tuberculose”. In: Luis
sociais daqueles que buscam ou não fogem das condutas arriscadas, desde a Fernando Dias Duarte; Ondina
Fachel Leal. (Orgs.). Doença,
rebeldia juvenil até uma indiferença diante do desfecho que apenas apressaria sofrimento, perturbação:
perspectivas etnográficas. Rio
a finitude humana. Como conduzir tais atores a contemplar ações pautadas em de Janeiro, RJ: Fiocruz, 1998,
p. 105-117.

• Alba Zaluar e Luiz Antonio de Castro Santos • 63


GUIVANT, Julia Silva,
algum nível de precaução? Estamos de volta aos imponderáveis da vida real, às
“Trajetórias das análises de suas indeterminações, às tentativas ainda assim necessárias de devolver aos
risco: da periferia ao centro da
teoria social”. BIB - Revista homens e mulheres o sentimento do mundo, com seus desígnios e segredos
Brasileira de Informação
Bibliográfica em Ciências finalmente libertos para “sondar, explorar, tatear”, livres de leis e regulações
Sociais. , v.46, p.3 - 38, 1998.
pré-fabricadas e precariamente negociadas.
KABAT, Geoffrey C. Riscos
ambientais à saúde: mitos e
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brasileira de Renato Veras. Trad.
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64 • • Riscos à saúde: fumaça ambiental do tabaco – pontos para um debate


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