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1a edição
•3
Organização
Renato Veras
Edição
Cecilia Leal/Conexão Gravatá
Ilustração capa
Ana Oliveira/Conexão Gravatá
Revisão
Fausto Rêgo
Tradução/inglês
Taís L. Oliveira
Tradução/francês
Hortensia Maria Fleury Salek
ISBN 978-85-87897-22-0
R595 Risco à saúde: fumaça ambiental do tabaco – pontos para um debate/ GC.
Kabat, Lucien Sfez, Luiz Antônio de Castro-Santos...[et al.]; Organizador Renato
Veras. – Rio de Janeiro: Uerj, Unati, 2010.
66 p. : il
ISBN 978-85-87897-22-0
Sumário
Apresentação • 7
Comentários • 45
Lucien Sfez
Apresentação
•7
O ponto de partida é o texto de Castro Santos, a que todos os participantes
deste documento tiveram acesso para crítica e comentário, de modo a aprofundar
o tema ou simplesmente oferecer outros subsídios para a discussão.
A Universidade Aberta da Terceira Idade (UnATI) foi convidada, por
intermédio do Prof. Renato Veras, seu diretor, médico e também professor do
Instituto de Medicina Social. Veras editou recentemente um livro do pesquisador
norte-americano Geoffrey C. Kabat, que se dedica a estudos epidemiológicos
sobre os possíveis riscos provocados pelos campos eletromagnéticos, pelo radônio
e pelo “fumo passivo”, entre outros tópicos polêmicos e cruciais para o debate
público sobre a intervenção do Estado na saúde pública. Kabat também aceitou
participar e contribuir para o debate, como convidado e especialista na área da
epidemiologia do câncer.
Sabemos que muitos colegas não tiveram oportunidade de enviar seus
artigos para esta coletânea de textos. No entanto, como o propósito não é o de
excluir nenhuma das posições, os autores deste documento estão certos de que,
durante o seminário programado, outros profissionais da área da saúde coletiva
se farão presentes, certamente com novas e importantes contribuições.
Julho de 2010
Os autores
Quando a cidade sofre uma praga, é impossível remover suas vítimas. Cria-se
Luiz Antonio de Castro
um modelo de vigilância, controle e articulação dos espaços urbanos. É a
Santos (Guaratinguetá, SP,
imposição de uma grade (quadrillage, M.Foucault) sobre o território urbano
1945) é sociólogo formado pela
vigiado por intendentes, médicos e soldados. Assim, enquanto o leproso foi
PUC-Rio. Tem mestrado pela
rejeitado por um aparato de exclusão, a vítima da praga está enclausurada, Escola de Saúde Pública da
vigiada, controlada e curada através de uma rede complexa de dispositivos Universidade de Harvard e
que dividem e individualizam e, ao fazê-lo, também articulam a eficiência do doutorado em sociologia pela
controle e do poder. mesma universidade. É professor
Giorgio Agamben* associado da UERJ e pesquisador
do CNPq. Publicou inúmeros
artigos sobre saúde pública,
além dos livros O Pensamento
Los Angeles, 1993. A obsessão da saúde. Não podemos fumar em nenhum Social no Brasil (2003, Edicamp,
lugar. [...] Podemos fumar na rua, mas escondidos, porque é vergonhoso. esgotado) e, em co-autoria com
[...] Nos Estados Unidos o problema do tabaco está ligado à questão da Lina Faria, A reforma sanitária
saúde. Nas classes média-alta e alta, as quais dão o tom, em sua maior parte no Brasil: ecos da Primeira
as conversas versam sobre a saúde e ocupam um domínio que na Europa é República (Bragança Paulista:
consagrado à política. Edusf, 2003) e Saúde & História
Lucien Sfez** (São Paulo: Hucitec, 2010).
*Giorgio Agamben,
Conferência pronunciada no
I. A construção de um “comportamento desviante” Seminário “Metropoli/
Moltitudine” organizado pela
Uni Nomad em Veneza, 11 de
Novembro de 2006. Tradução de
Este é um breve ensaio sobre a produção de ideologias públicas que Arianna Bove e Pablo A. (do
italiano para o inglês e para o
buscam controlar ou banir formas contemporâneas de vida social. A ideologia espanhol).
pode ser considerada como produto de uma “consciência mistificada”, na ** Lucien Sfez, La Santé
conhecida concepção do filósofo polonês Leszek Kolakowski. As sociedades com Parfaite: Critique d´une nouvelle
utopie. Paris : Editions du Seuil,
profundo senso de valores comunitários construídos ao longo de um passado 1995, p. 62-63.
distante tendem a produzir normas e padrões rígidos, bem como ideologias que 1
Uma versão preliminar foi
definem territórios de inclusão e exclusão. Comunitarismo, um conceito obtido publicada em Contexts – um
periódico da Associação
da velha distinção sociológica alemã entre comunidade e sociedade, trata de Americana de Sociologia.
(Volume 8, n. 2, Verão de 2009:
um conjunto de valores e normas grupais que enfatiza laços comunitários em 72-74).
vez da solidariedade social.2 A vida social americana é muito forte em termos de 2
Veja-se o importante trabalho
valores de “solidariedade comunitária”. O ser social é a comunidade, construída de Michel Rosenfeld, “A Pluralist
Theory of Political Rights in
em torno de valores e práticas religiosas, familiares e institucionais, fortemente Times of Stress”, Benjamin N.
Cardozo School of Law, New
internalizadas e compartilhadas por seus membros. Aqueles que questionam as York, “working paper” n. 116,
2005.
formas estabelecidas de organização social são estigmatizados e discriminados,
posto que escolhem sair do ethos comunitário e de suas fontes de identidade
grupal.
Uma outra guerra nos tempos atuais é levada contra o cultivo do tabaco.
Um dos tratados “mais amplamente adotados na história das Nações Unidas”,
(http://whqlibdoc.who.int/publications/2003/9241591013.pdf), que tem o
Brasil como signatário, é a Framework Convention on Tobacco Control, da
Organização Mundial da Saúde – uma iniciativa conhecida como a “Convenção
Quadro”. Esta Convenção não considera seriamente os efeitos sociais e econômicos
imprevisíveis de uma de suas posições mais controversas, i.e., “dar suporte a
atividades alternativas economicamente viáveis” para o cultivo do tabaco. No
Brasil, essa posição foi interpretada como uma licença para erradicar
completamente as plantações, uma interpretação defendida por alianças contra
o fumo e por inúmeros círculos da epidemiologia brasileira. Autoridades de
saúde e cruzadas antifumo nos países signatários parecem desconsiderar que a
A erradicação Uma outra doutrina controversa da Convenção Quadro resulta de seu
objetivo central, que tudo autoriza em nome de atingir “o mais alto padrão de
das safras do
saúde” para a população (“the highest standard of health”, WHO FCCT, “Forward”,
tabaco na
p. v) . Primeiramente, o objetivo deveria ser colocado como o “mais alto padrão
América do possível”, tendo em vista a necessidade de cautela diante do espectro amplo e
Sul, que de expansão incontrolada das medidas de intervenção na saúde cotidiana e nos
ademais de hábitos das pessoas. Essas medidas, de alcance e penetração sempre crescentes,
ser uma resultam das tentativas dos epidemiologistas de analisar e atribuir riscos a uma
proposta lista extensa e interminável de fatores ligados ao estilo de vida. O “mais alto
contra a padrão” pode vir a ser considerado pelas autoridades como um mandato para
Indústria o é interferir na vida das pessoas não só através da necessária medicina preventiva
e da educação para a saúde, como também – esse é o aspecto questionável – por
também
práticas ilegítimas de policiamento médico, a exemplo das medidas de banimento
contra e estigmatização dos fumantes em todo o mundo.
milhares de
famílias A erradicação das safras do tabaco na América do Sul, que ademais de
dedicadas há ser uma proposta contra a Indústria o é também contra milhares de famílias
gerações ao dedicadas há gerações ao cultivo, deve ser considerada e avaliada no cenário
cultivo, deve difícil de adoção de alternativas para a força de trabalho. Somente no Brasil,
ser mais de duzentas mil famílias cultivam tabaco por gerações. Há, no entanto,
opções viáveis. Tomemos o caso brasileiro, a guisa de exemplo. Cooperativas de
considerada e
pequenos agricultores independentes devem ser estimuladas e fortalecidas para
avaliada no lutar contra a difusão de fertilizantes químicos e pesticidas pela Indústria,
cenário difícil preocupada apenas em aumentar a produção e reduzir os preços agrícolas. A
de adoção de Convenção Quadro deverá ser reavaliada e alterada em seus objetivos rígidos e
alternativas socialmente insustentáveis. Os programas federais agrícolas subsidiarão
para a força diretamente os pequenos agricultores, dando suporte ao emprego de métodos
de trabalho. orgânicos de produção de tabaco. Os agrônomos e técnicos de agências e serviços
de extensão rural deverão substituir os agrônomos da Indústria na assistência
aos trabalhadores. Métodos de menor impacto ecológico para a cura e secagem
das folhas do tabaco devem ser buscados por agrônomos e pesquisadores do
sistema brasileiro de assistência técnica e extensão rural. Agricultores serão
aconselhados a usar vestes de proteção para evitar o contato da pele com as
folhas molhadas da planta e assim se prevenirem contra a “doença do tabaco
verde”, conhecida nos Estados Unidos como “GTS”. Estas são formas de vencer
12
Ibid: 332-333.
Um dos pontos fortes da tradição da sociologia médica e da sociologia
13
Ibid: pp. 332-333. da saúde é sua independência – teórico-metodológica e política – em relação à
14
Luiz A. Castro Santos, “First- epidemiologia. 14 A voz de Collins contra os “exageros retóricos” dos epidemiolo-
rate sociology or second-hand
epidemiology?” ASA Forum.
gistas e de outros círculos médicos na guerra contra o tabaco é um exemplo
Footnotes. American excelente dessa independência, tanto no campo da análise quanto no da
Sociological Association, maio/
junho 2010, p. 12. metodologia. Seu trabalho, particularmente, chama a atenção para o trauma
Há cerca de 10 anos, parei de fumar. Não pretendo voltar a fumar, Nélson F. de Barros é graduado
em Ciências Sociais, com
embora fantasie alguma tragada vez ou outra. Sou menos ingênuo agora e especialização em Ciências Sociais
acredito pouco na possibilidade de viver coletivamente sem constrangimento; Aplicadas à Saúde, mestrado e
doutorado em Saúde Coletiva, pela
isto é, sem a transformação do instinto em instituição. Consigo compreender a Universidade Estadual de
potência da disciplina, sobretudo quando a separo da vida religiosa e militar. Campinas-Unicamp e pós-
doutorado pela University of
Além disso, identifico a importância do civismo como estratégia de manutenção Leeds. Atualmente é Professor do
do processo civilizatório de uma massa de pessoas transformada em cidadãos. Departamento de Medicina
Preventiva e Social, Faculdade de
Ciências Médicas, Unicamp. Bolsista
Mas lido mal com autoritarismo, e alguns amigos dizem que estudo de Produtividade em Pesquisa do
CNPq - Nível 2. Principais temas de
sociologia por causa disso. Não gosto das formas de produção de exclusão e pesquisa: sociologia da saúde;
mantenho-me atento para evitar a humilhação social e sua (in)visibilidade. práticas alternativas,
complementares e integrativas em
saúde; metodologia de pesquisa
Em estudo baseado em observação participante sobre garis, num campus qualitativa.
• Nelson F. de Barros • 21
parte da proibição e do controle atualmente desenvolvidos no campo da saúde
procede com base no referencial da economia da saúde, mas a vida está longe
de ser reduzida à racionalidade contábil, e forçar essa associação é um
procedimento alienante.
Um novo nome foi criado para estigmatizar as pessoas acima das medidas,
pois chamá-las de obesas já não surtia os efeitos esperados. Então, atualmente,
existe no Japão um grupo chamado “metabo”, nome que vem de “metabolic
syndrome”, que é um conjunto de sintomas (obesidade abdominal, pressão alta
e altas taxas de glicose e colesterol) que pode levar a problemas vasculares.
opor-me a intervenções dogmáticas, que travam o processo civilizatório e não BARROS, Nelson F de. - Notas
sobre a humilhação social.
reconhecem o respeito à autonomia e à dignidade como um imperativo ético e Campinas: Boletim FCM. Maio
não uma delegação ou um favor; que não atentam para a difícil passagem da 2009.
heteronomia para a autonomia, que corresponde à “expulsão” do opressor de BECKER, Howard S. Outsiders -
Estudos de sociologia do desvio.
“dentro” do oprimido; que não reconhecem, por fim, que ninguém é sujeito da Rio de Janeiro: Zahar. 2009
autonomia de ninguém, que ninguém amadurece de repente. Autonomia é COSTA, Fernando Braga da –
Homens invisíveis: relatos de uma
processo, é vir a ser centrado em experiências estimuladoras da decisão e da humilhação social. São Paulo:
responsabilidade, da livre interação e da sociabilidade. Globo, 2004.
• Nelson F. de Barros • 23
24 • • Riscos à saúde: fumaça ambiental do tabaco – pontos para um debate
SOBRE O RISCO E A
PERICULOSIDADE SOCIAL
A lei antifumo em questão
Por Joel Birman
I. Diferenças
Joel Birman é psicanalista,
professor titular do Instituto de
A lei antifumo, tal como foi recentemente instituída no Brasil com Psicologia da Universidade Federal
bastante ruído político e ressonância midiática, se inscreve certamente num do Rio de Janeiro e professor
adjunto do Instituto de Medicina
movimento internacional de proscrição do fumo, em escala planetária. Assim, Social da Universidade do Estado
chegou também nas nossas praias aquilo que já tinha sido instituído em outros do Rio de Janeiro, doutor em
Filosofia pela Universidade de São
países. No entanto a interdição de fumar não se pauta pelos mesmos padrões, Paulo, mestre em Saúde Coletiva
nas diferentes tradições sociais existentes. Pressupor a existência desta pelo Instituto de Medicina Social
da Universidade do Estado do Rio
identidade, numa homogeneização ostensiva da interdição de fumar, seria um de Janeiro, diretor de Estudos em
erro primário de leitura do que acontece efetivamente e que impossibilita a Letras e Ciências Humanas da
Universidade Paris VII, pós-
avaliação do processo em pauta. doutorado em Psicanálise e
Psicopatologia Fundamental pela
Universidade de Paris VII,
É preciso reconhecer, antes de mais nada, que a interdição de fumar pesquisador associado do
não é homogênea nas diferentes sociedades, mas fundamentalmente diferente. Laboratório de Psicanálise e
Medicina da Universidade Paris VII.
Estas diferenças se baseiam não apenas na existência de códigos culturais, Autor de diversos livros em
religiosos e sociais diversos, mas também em tradições políticas bastante português, francês e espanhol,
além de artigos em revistas
diferenciadas. Seriam tais diferenças e diversidades que estabeleceram o funda- científicas em português e francês.
mento das diferentes políticas sanitárias e do espaço da saúde pública, delineando
então a construção efetiva dos dispositivos da saúde coletiva. Vale dizer, o que
está em pauta nesta diferenciação efetiva dos dispositivos sanitários face às
ameaças do fumo não são apenas os discursos das ciências e da medicina, mas
também outras dimensões da ordem social, que delineiam os campos da ética e
da política na experiência social.
teologia. O que está em questão não é mais o pecado, mas a limpeza e a sujeira 2
Douglas, M. De la souillure.
Études sur la notion de pollution et
na cartografia do espaço social, para aludir à obra de Mary Douglas,2 na leitura de tabou. Paris, La Découverte,
que propõe sobre a periculosidade social, pela leitura das categorias acima. 1992.
• Joel Birman • 25
Assim, o que se destaca no campo da lei brasileira é a sua marca
draconiana na caracterização dos fumantes como impuros, da mesma forma
como anteriormente se realizava a caça às bruxas e às bebidas alcoólicas na
tradição norte-americana. Estabeleceu-se então a proibição de fumar em espaço
públicos, fechados e semi-fechados. Além disso, a ocupação de quartos em
hotéis passou a ser estabelecida entre os fumantes e os não fumantes, da mesma
forma que o aluguel de imóveis seguirá o mesmo padrão no futuro, como já
existe hoje nos E. Unidos. Dessa maneira, o fumante é a figuração da impureza
e da sujeira, passando a ser repudiado violentamente no espaço público.
Em outros países existe também a lei antifumo, mas sem esta marca
draconiana. Assim, na Espanha e na Argentina, continua a existir a antiga
delimitação do espaço público entre os espaços para os fumantes e os não
(...) o fumante fumantes. Em outros países europeus, como a França, existe a interdição de
é a figuração fumar em espaços fechados, mas pode-se fumar em espaços semi-fechados. O
da impureza e que isso revela é a existência de uma outra mentalidade sobre o fumo, sem a
da sujeira, presença das marcas severas da moral reformada sobre o mal,na sua leitura
sobre os campos da saúde, da doença e da morte.
passando a
ser repudiado
A intenção deste comentário é situar esquematicamente esta
violentamente problemática.
no espaço
público. II. Deslocamentos
Recordo-me da visita que fiz à casa de amigos fumantes, nos anos 90,
onde na porta do quarto de um dos filhos existia um cartaz no qual se escrevia,
em letras enormes, “proibido fumar”. Esta foi a maneira que o jovem encontrou
para impedir a entrada dos pais em seu quarto se estivessem fumando. Assim,
a separação ostensiva entre o espaço de fumantes e o de não fumantes estava já
estabelecida no espaço da família, numa antecipação fulminante do que viria a
ocorrer posteriormente no espaço social mais abrangente. Estavam então
estabelecidas as fronteiras entre os territórios dos puros e dos impuros, dos
limpos e dos sujos, no espaço privado da família, forjando assim as linhas de
força do futuro espaço social no Brasil.
• Joel Birman • 27
se, do ponto de vista dos malefícios e do risco para a saúde, os efeitos do fumo
são piores ou não do que os que seriam produzidos pelo álcool, pelas drogas e
pela comida. Suponho que são equivalentes. Porém, o deslocamento e a
substituição efetiva de um estimulante por outro é um dado epidemiologicamente
comprovado.
No entanto o que a psicanálise nos ensina sobre isso é que tal excitabi-
lidade é constante e incontornável, pois todos nós estamos sujeitos a esta de
maneira insistente. Estaria aqui não apenas a base de nossa angústia, como
também do mal-estar que nos inquieta permanentemente. Seria em decor-
rência disso que para regular a dita excitabilidade pulsional, incontornável e
insistente, assim como a angústia e as frustrações disso decorrentes, os sujeitos
são levados à busca de estimulantes, sejam estes de diferentes ordens, inclusive
o fumo, o álcool, as drogas estimulantes e a comida.
6
Foucault, M. Il faut défendre la
société. Paris, Seuil/Gallimard,
1997.
7
Foucault, M. Naissance de la
clinique. Paris, PUF, 1963.
• Joel Birman • 29
30 • • Riscos à saúde: fumaça ambiental do tabaco – pontos para um debate
DEFESA DAS REALIZAÇÕES,
NÃO DO ESTILO, DO
MOVIMENTO ANTIFUMO:
resposta ao texto “Alvo equivocado: em defesa dos
fumantes” de Luiz Castro Santos
Geoffrey C. Kabat é
1 epidemiologista especializado em
Em seu ensaio instigante “Alvo equivocado: em defesa dos fumantes” , câncer do Department of
o professor Castro Santos assume uma posição que raramente é articulada nos Epidemiology and Population
Health (Departamento de
círculos intelectuais. Seu argumento principal, como o entendi, é que a Epidemiologia e Saúde Pública)
epidemiologia e as instituições de saúde pública têm sustentado um discurso no Albert Einstein College of
Medicine (Escola de Medicina
autoritário e dogmático no que diz respeito ao uso do tabaco, transformando os Albert Einstein), em Nova York.
fumantes em párias. Ele pede à “sociologia” que resista à hegemonia da saúde
pública e que defenda os “espaços de interação social”.
• Geoffrey C. Kabat • 31
duas questões distintas que precisam ser colocadas claramente. Em primeiro
lugar, quais são os fatos relevantes no uso do tabaco e seus efeitos sobre a
saúde? Segundo: dado esse conhecimento, que políticas a sociedade deveria
adotar para promover saúde e bem-estar e que outras considerações e valores
deveriam ser levados em consideração ao minutar tais políticas?
Índices de Morte por Câncer por Faixa Etária, *Posição de Homens, EUA, 1930-2005
*Por 100.000 ajustado por faixa etária da população padrão dos EUA, em 2000
Fonte: dados de mortalidade dos EUA, 1960 a 2005. Volumes sobre Mortalidade dos EUA, 1930 a 1959.
Centro Nacional de Estatística da Saúde, Centros de Controle e Prevenção de Doenças, 2008
• Geoffrey C. Kabat • 33
Para mim, esses são fatos cruciais, no que diz respeito ao uso do tabaco,
com os quais a maioria dos cientistas concordaria. Mais importante: acredito
que a existência desse conhecimento inevitavelmente exerce um efeito na forma
como o fumo é visto. (Não podemos voltar à era inocente, quando o fumo era
visto como benigno ou mesmo um bom hábito, mesmo entre médicos.)
Meu ponto é que a ciência, no que diz respeito aos efeitos da exposição
FAT, é muito mais fraca do que com relação aos efeitos do fumo ativo. E isso tem
uma razão, pois o fumo ativo é algo que os fumantes fazem de forma regular e
podem contar aos pesquisadores com que idade começaram a fumar, quantos
cigarros normalmente fumam (fumavam) por dia, há quanto tempo fumam, se
pararam de fumar e, se o fizeram, há quanto tempo, enquanto a exposição FAT
é tão difusa e varia tanto com o tempo, que não estamos aptos a estimar a
exposição de uma pessoa ao longo de décadas. Portanto precisa-se enfatizar
que a exposição passiva ao fumo é muito diferente do fumo leve ou moderado.
• Geoffrey C. Kabat • 35
simplesmente viciados em nicotina ou psicologicamente dependentes do fumo
– ou ambos. Mas eu acho que por muito tempo o “direito a fumar” foi tomado
como normal, enquanto levaram-se décadas para que o princípio de que os não
fumantes não deveriam respirar a fumaça do tabaco se estabelecesse. O que
quer que pensem sobre a letalidade da fumaça ambiental do tabaco, me parece
ser um grande passo em direção a uma sociedade civilizada não ter que ficar na
fila de um correio mal ventilado atrás de alguém fumando um cigarro ou charuto.
Acredito que foi um erro das autoridades sentir que tinham que justificar as
restrições ao fumo baseadas em ciência inconsistente ligando FAT a doenças
fatais. As restrições ao fumo deveriam ter sido feitas baseadas em estética e na
consideração a outras pessoas. Digo "estética" porque as pesquisas mostraram
que até mesmo os fumantes escolhem não ficar perto da fumaça do cigarro e
consideram fumar um mal hábito. E a consideração por outras pessoas acarreta
As restrições o reconhecimento de que algumas delas têm asma ou outras condições
ao fumo respiratórias que podem se agravar pela exposição à fumaça do cigarro, ou
deveriam ter simplesmente acham a fumaça desagradável. Mas essa abordagem não teria
tido o mesmo poder legal que a afirmação de que FAT causa câncer de pulmão.
sido feitas
baseadas em
Embora possa não ser encantado com os métodos adotados pelo
estética e na movimento antifumo – que se acha dono da verdade, é dogmático, distorce a
consideração a ciência –, endosso, de coração, o resultado de as restrições terem ajudado a
outras pessoas. reduzir o predomínio do fumo, o que significará, com o tempo, que menos
pessoas desenvolverão doenças associadas ao tabaco. Desde 1964, quando o
primeiro Surgeon General’s Report on Smoking and Health (Relatório Médico
sobre Fumo e Saúde) foi publicado, o predomínio do fumo nos EUA declinou de
cerca de 43% para cerca de 21%. No Reino Unido, ocorreu uma redução ainda
maior.
Após articular meu ponto de vista sobre o assunto, estou confiante que
o professor Castro Santos e eu podemos concordar sobre uma série de pontos.
8
RODU, B., PHILLIPS, C.V.
“Switching to smokeless
tobacco as a smoking
cessation method: evidence
from the 2000 National Health
Interview Survey.” Harm
Reduction Journal 2008; 56:18.
http:www.harmreductionjournal.
com/content/5/1/18
• Geoffrey C. Kabat • 37
38 • • Riscos à saúde: fumaça ambiental do tabaco – pontos para um debate
ONDE HÁ FUMAÇA HÁ DESVIO
“fumantes de segunda mão” parece projetar o ato de fumar e suas consequências BERRIDGE, V. “Science and Policy:
the case of postwar British
como espécie de violência de gênero, uma vez que as vítimas inocentes seriam Smoking Policy.” In: Lock, S.;
Reynolds, L. & Tansey, EM (eds).
invariavelmente as esposas. Se, como quer Castro-Santos, certas formas de socia- Ashes to ashes: the history of
bilidade estão sendo destruídas pela moderna legislação antitabaco, devemos smoking and health. Rodopi:
Amsterdam, pp. 143-171, 1998.
acrescentar que se trata sobretudo de formas de sociabilidade masculina. Em
BRANDT, A. M. , No Magic bullets:
ambos os casos, sob a explícita referência a indivíduos abstratos que bebem ou a social history of veneral disease
in the United States since 1880.
fumam, os alvos parecem ser de fato os homens. Por de trás do abstrato smoker, New York, Oxford University Press,
temos um homem. Nesse aspecto, o que deveria ser investigado com mais 1985
atenção é a relação problemática entre o poder do Estado e o poder masculino, ____________, “Blow some my way:
passive smoking, risk and American
ou melhor, o modo como certos processos de dominação estatal esbarram nas Culture,” In: Lock, S.; Reynolds, L.
& Tansey, EM (eds). Ashes to ashes:
prerrogativas que os homens ainda detêm em certos espaços de sociabilidade e, the history of smoking and health.
Rodopi: Amsterdam, p. 164-188,
sobretudo, no interior da família. Tudo se passa como se o processo civilizador, 1998.
concebido por Elias (1990) como a contínua expansão e o aprofundamento de
CARRARA, S. Tributo a Vênus: a
controles de tipo estatal cuja expressão individual é o refinamento constante luta contra a sífilis no Brasil, da
passagem do século aos anos 40.
do autocontrole, ainda encontrasse em certos aspectos da masculinidade um Rio de Janeiro: Fiocruz, 1996
ponto de resistência ou de choque. ELIAS, N. O processso civilizador:
uma história dos costumes. Rio de
Janeiro: Jorge Zahar, 1990.
— O local isolado do relato. Uma ilha, por exemplo, que separa cla-
ramente o lugar da ação utópica do resto do mundo.
• Lucien Sfez • 45
— Último critério: a volta à origem. Porque esta sobrenaturalidade é a
natureza reencontrada... À maneira do Rousseau de «L’Origine des inégalités»
[A Origem das desigualdades], esta técnica, este artifício, renaturaliza e refunde.
É preciso desembaraçar-se do que existe hoje para reencontrar o que é desde
sempre. Refundação voluntária de uma verdade natural. Este marcador é muito
interessante, pois não trata mais de um relato, mas do ponto de equilíbrio do
relato, rumo ao exercício do poder.2
1°) Certas práticas são realmente utopias, ainda que sua linha tenha
mudado de «código».
4
Ibidem, p.341
5
Ibidem,p.343
• Lucien Sfez • 47
48 • • Riscos à saúde: fumaça ambiental do tabaco – pontos para um debate
NEM TUDO É VERDADE
Por Renato Veras
Portanto a idéia que hoje existe na sociedade, de que o mesmo mal que
o tabaco faz ao fumante também ocorre ao não fumante, para grandes nomes
da epidemiologia mundial, não se sustenta. Richard Kluger e Michael Crichton,
entre muitos outros — nenhum dos quais conhecido por servir à indústria do
• Renato Veras • 49
tabaco —, aceitam como consistente a associação da exposição à fumaça do
tabaco e o câncer pulmonar em não fumantes.
• Renato Veras • 51
frisar que a manifestação de doenças crônicas ocorre de forma lenta e gradual,
o que coloca, para muitos, a dúvida se vale a pena abrir mão destes momentos
prazerosos da vida. Além disso, o consumo de tabaco e álcool era, não faz muito
tempo, associado a algo positivo, valorizado na sociedade e retratado com glamour
nos cinemas. Exemplo marcante foi visto em Casablanca. Em plena Segunda
Guerra Mundial, duas pessoas - llsa, interpretada pela bela atriz lngrid Bergman,
apaixona-se por Rick, o charmoso galã Humphrey Bogart - conseguem viver um
romance intenso e inesquecível em Paris. O final surpreendente é mediado com
uma bem-dosada fórmula de romance, intriga, suspense, com o apoio e o charme
de um cigarro na mão do galã.
As imagens surgiam para nos revelar alguma coisa, nos dar a certeza de
que ali estavam respostas e, de repente, nada era mais como parecia ser alguns
segundos atrás. Como isso pôde acontecer, se tudo parecia tão claro? Como num
passe de mágica, o que tínhamos diante de nós se transformava em outra coisa.
Inexplicável.
• Renato Veras • 53
O carnavalesco Paulo Barros oferecia a possibilidade do desvendar que
acontecia diante de todos os olhos, mas advertia, “não esqueça que nem tudo o
que se vê é o que parece ser… E se conseguir decifrar o que está por trás, não
revele o segredo… Deixe-se levar pelo inesperado e surpreenda-se! No Carnaval,
você pode descobrir como são mutáveis as certezas que temos sobre o que vemos”.
As drogas e a cultura
O risco incerto
também aquele ato ou situação que ultrapassa a capacidade de cada um, ou de BECKER, Howard S., Outsiders:
Studies in the sociology of
um grupo social, de contemplar possíveis desfechos e sondar (“explorar, tatear”, deviance. New York: The Free
Press, 1963.
nos lembra Latour) os resultados (in)esperados. Estamos diante de outra lógica,
de riscos nunca exatamente calculados. BÉHAGUE, Dominique P.;
GONÇALVES, Helen; VICTORA,
Cesar G. “Anthropology and
Risco e incerteza se fundem. A detecção da conduta do risco e da con- Epidemiology: learning
epistemological lessons
duta violenta depende das sensibilidades ou emoções, tais como o medo e a through a collaborative
venture”. Ciênc. saúde coletiva
orientação do ator para este sentimento. O conhecimento maior ou menor dos vol.13 no. 6 Rio de Janeiro
Nov./dec. 2008. p. 1701-1710.
efeitos maléficos que pode trazer uma situação definida como de risco, tanto
para o indivíduo como para seu grupo de referência ou para a coletividade, CASTIEL, Luis David. “Vivendo
entre exposições e agravos: a
pode influir no curso da ação tomada pelo ator. Não obstante, os valores e teoria da relatividade do
risco” História, Ciências, Saúde
disposições do sujeito para enfrentá-la, individualmente ou em grupo, podem - Manguinhos, Rio de Janeiro,
v. 3, n. 2, p. 237-254, 1996.
ser decisivos e contrariar a ação que se “esperaria” daquele conhecimento ou da
CASTRO SANTOS, Luiz A.
informação sobre efeitos maléficos. “Um sociólogo e seus rituais”.
Ciências Sociais Unisinos
Por isso mesmo, é preciso atentar para as zonas existentes de conflito 43 (3): 279-282, setembro/
dezembro, 2007.
social e basear qualquer tentativa de prevenção de violência, redução de riscos
COLLINS, Randall. Interaction
ou de “agravos”, na interatividade dos personagens nelas envolvidos. Se o Ritual Chains. Princeton,
Princeton University Press,
comportamento é essencialmente social, se o sujeito é um ator social, isto não 2004.
significa que as políticas de redução de conflitos possam prescindir do DALLARI, Sueli G. “O direito
envolvimento de cada ator, da palavra de cada um deles. Estamos diante de sanitário como campo
fundamental da vigilância
diferentes personagens, nos bastidores das relações de grupo e zonas de confli- sanitária”. In MARQUES, MCC
et alii (orgs) Vigilância
to. É preciso, pois, analisar como os atores vivenciam o risco, se eles o procuram Sanitária: da gestão ao risco
sanitário. São Carlos: RiMa,
ou são tragados por ele, no duplo sentido para os fumantes de tabaco e para o 2006.
usuário de drogas ilegais. (Do mesmo modo, ça va sans dire, a ciência social não
DOUGLAS, Mary. Risk and
pode ser tragada pela retórica dos riscos). blame: essays in cultural
theory. Londres: Routledge,
1992.
Do ponto de vista sociológico e antropológico, importa entender como
DOUGLAS, Mary e
os atores avaliam os efeitos de uma droga sobre seus corpos e mentes e o WILDAVSKY, Aaron. Risk and
culture: an essay on the
quantum de prazer ou de sofrimento que lhes proporcionam. A própria idéia de selection of technical and
compulsão e de excesso deve ser relativizada e incluir a subjetividade dos agen- environmental dangers.
Berkeley, CA: University of
tes. Mesmo assim, é possível conceber uma grade de condutas que variam entre California Press, 1982.
GOFFMAN, Erving, Estigma –
o controle da ação e a compulsão, entre o racional e o irracional, entre precau- Notas sobre manipulação da
identidade deteriorada. Rio de
ções tomadas para diminuir os efeitos maléficos e a exposição desabrida e desa- Janeiro: Ed. Guanabara, 1988
fiadora, apesar do conhecimento supostamente adquirido sobre tais efeitos. GONÇALVES, Helen. “Corpo
doente: estudo acerca da
Talvez se possa conseguir traçar, como fez Becker há tanto tempo, alguns perfis percepção corporal da
tuberculose”. In: Luis
sociais daqueles que buscam ou não fogem das condutas arriscadas, desde a Fernando Dias Duarte; Ondina
Fachel Leal. (Orgs.). Doença,
rebeldia juvenil até uma indiferença diante do desfecho que apenas apressaria sofrimento, perturbação:
perspectivas etnográficas. Rio
a finitude humana. Como conduzir tais atores a contemplar ações pautadas em de Janeiro, RJ: Fiocruz, 1998,
p. 105-117.
PERETTI-WATEL, Patrick.
“Becoming a smoker: Adapting
Becker’s model of deviance for
adolescent smoking.” Health
Sociology Review. Vol. 16 (1)
2007: 53-67.