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SOBRE O FUNDAMENTO DOS APÓSTOLOS

Junho 28, 2018

1. Os Santos Apóstolos Pedro e Paulo são festejados em


todas as Igrejas do Oriente e do Ocidente, nos antigos,
como nos novos calendários, na mesma data, 29 de Junho.
A Igreja do Oriente ainda hoje acomuna os dois Apóstolos
com o título de Prôtóthronoi, os «primeiros na cátedra» da
doutrina divina e salvífica. A Igreja de Roma já existia antes
da chegada de Pedro e Paulo, mas venera-os como
verdadeiros «fundadores», pois só com eles se vê como
Igreja «Apostólica», coração de Pedro, coração de Paulo. A
própria iconografia, em inumeráveis representações, junta
os dois Apóstolos e Mártires, já desde os séculos II e III,
sinal da veneração que os fiéis de Roma e do mundo inteiro
lhes dedicavam. Veneração verificável, de resto, no facto de
os túmulos dos dois grandes Apóstolos e Mártires ser a
meta da única peregrinação do mundo cristão antigo.

2. Os textos da Escritura Santa hoje abertos diante de nós


põem em relevo, naturalmente, as duas grandes figuras de
Apóstolos que hoje celebramos. O Evangelho é de Mateus
16,13-19, que é também o Evangelho do Domingo XXI, e
põe em destaque a figura de Pedro. Também a passagem
do Livro dos Atos 12,1-11 lhe é dedicada. O texto do final
da 2 Carta a Timóteo 4,6-8.17-18 põe naturalmente em
realce a figura de Paulo.

3. Cesareia de Filipe, atual Banyas, na tetrarquia de Filipe,


um dos filhos de Herodes o Grande, é o lugar certo para se
pôr a questão da identidade de JESUS, que atravessa o
inteiro Evangelho (Mateus 16,13-19). Cesareia de Filipe,
onde se encontra uma das nascentes do rio Jordão,
respirava o paganismo do deus Pã e também o culto do
Imperador. Aí construiu Herodes um templo dedicado ao
Imperador César Augusto, e o tetrarca Filipe, filho de
Herodes, deu à cidade, antes conhecida por Pânias, em
honra do deus Pã, o nome de Cesareia, também em honra
de César Augusto. Dela resta hoje a gruta do deus Pã, lugar
que os peregrinos da Terra Santa costumam visitar.

4. É aí, em Cesareia de Filipe, cidade marcada pelo


paganismo e pelo culto do Imperador, que Jesus põe a
questão da sua identidade. Um lugar assim, marcado pelos
deuses do paganismo e pelo culto do Imperador, é
claramente o lugar certo para se pôr a questão da
identidade de JESUS. Soberanamente Jesus pergunta:
«Quem dizem as pessoas que é o Filho do Homem?»
(Mateus 16,13), para acrescentar logo de seguida, de forma
direta e enfática: «E vós, quem dizeis que Eu sou?»
(Mateus 16,15). A esta pergunta, posta por Jesus aos seus
discípulos que de há muito o seguiam, Simão Pedro foi
rápido a responder: «Tu és o Cristo, o Filho do Deus vivo!»
(Mateus 16,16). Jesus declara Feliz (makários) Simão, filho
de Jonas, não por achar que ele reunia competência
humana para expressar aquele dizer, mas por saber que o
tinha recebido do Pai (Mateus 16,17). E é sobre
este dizer de Simão Pedro, dizer, não seu, mas recebido do
Pai, que Jesus declara que construirá a sua Igreja (Mateus
16,18). Note-se a assonância «Pétros» – «pétra». Mas
note-se também que quem constrói a Igreja é Jesus, e não
Pedro, e a Igreja a construir também é de Jesus, e não de
Pedro: «sobre esta pedra (pétra) construireia minha Igreja»,
diz Jesus. Em todo o Novo Testamento, só Jesus e Pedro
recebem o apelativo de «pedra». «Rocha», «rochedo»,
«pedra firme» diz-se, em hebraico, tsûr ou sela‘,
terminologia usada no Antigo Testamento por 33 vezes para
dizer Deus e a solidez do seu amor fiel. Veja-se, por
exemplo, na boca e no coração do Salmista: «O Senhor é a
minha Rocha (sela‘) e a minha fortaleza (…), nele me abrigo,
meu Rochedo (tsûr), meu escudo e meu baluarte, minha
torre forte e meu refúgio» (Salmo 18,3).
5. Mas o hebraico conhece também o termo keph,
aramaico kêpha’, para designar a rocha, não tanto na sua
solidez, mas a rocha escavada, oca, espécie de gruta que
serve de lugar de refúgio e acolhimento, onde os pássaros
fazem os seus ninhos, os animais guardam as suas crias e
os homens se refugiam em caso de guerra: não é sólido,
mas dá solidez e proteção a uma vida nova. Este segundo
veio de termos, que traduzem a ideia de guardar, proteger,
abraçar, envolver, alarga-se num vasto campo
onomatopaico: kaph, palma da mão; keph, rochedo
esburacado (grutas); kêpha’ (aramaico), rochedo
esburacado; kêphãs (grego), rochedo esburacado e
acolhedor, nome dado por Jesus a Pedro em João 1,42,
única vez nos Evangelhos, mas várias vezes em Paulo (1
Coríntios 1,12; 3,22; 9,5; 15,5; Gálatas 1,18;
2,9.11.14); kipah, folha de palmeira, que serve para
proteger do sol, e cobertura que os judeus ortodoxos usam
na cabeça para indicar a proteção de Deus; kaphar, cobrir,
perdoar; kaporet, cobertura, perdão. Sendo de teor
onomatopaico, este som existe na composição de vocábulos
em todas as línguas. Esta terminologia abre para um Simão
Pedro novo, casa aberta e acolhedora, atento, próximo,
cuidadoso e carinhoso, frágil, com a missão pastoral de
alimentar e cuidar de todos os filhos de Deus. Mas,
entenda-se sempre bem, a casa é Deus, e são de Deus os
filhos que nela são gerados, acolhidos e alimentados.

6. Jesus declara de seguida: «Dar-te-ei as chaves do Reino


dos Céus» (Mateus 16,19). As chaves representam um
saber e um poder. Falamos de chaves de uma casa, de uma
cidade, de um tesouro, da leitura de um texto. Quem as
possui, possui um poder em sede administrativa, política,
jurídica, económica ou científica. É esclarecedor o texto de
Isaías 22,19-23, que fala do «rito das chaves» e do poder
retirado a Shebna e conferido a Eliaqîm. As chaves do Reino
dos Céus são as chaves do amor e do perdão, traves
mestras de uma comunidade unida e confiante, com os pés
na terra e o olhar fixo em Deus. Diz, na verdade, a
Constituição Dogmática Lumen Gentium: «Aprouve a Deus
salvar e santificar os homens, não individualmente, excluída
qualquer ligação entre eles, mas constituindo-os em povo»
(n.º 9).

7. É importante, porque esclarecedora e mobilizadora, esta


nota do Concílio Vaticano II. De facto, Pedro é a Pedra e
tem as Chaves do Reino dos Céus, e é-lhe ainda dada a
autoridade de ligar-desligar, isto é, de perdoar: «Tudo o
que ligares (dêsês: conj. aor. de déô) sobre a terra, ficará
para sempre ligado (dedeménon: part. perf. pass. de déô)
nos Céus, e tudo o que desligares (lýsês: conj. aor. de lýô)
sobre a terra, ficará para sempre desligado (lelyménon:
part. perf. pass. de lýô) nos Céus» (Mateus 16,19). Todavia,
no Evangelho de Mateus, e só no Evangelho de Mateus,
esta autoridade de ligar-desligar, isto é, de perdoar, é
também confiada à inteira comunidade, exatamente nos
mesmos termos em que é confiada a Pedro: «Em verdade
vos digo: tudo o que ligardes (dêsête: conj. aor. de déô)
sobre a terra, ficará para sempre ligado (dedeména: part.
perf. pass. de déô) no céu, e tudo o que desligardes (lýsête:
conj. aor. de lýô) na terra, ficará para
sempre desligado (lelyména: part. perf. pass. de lýô) no
céu» (Mateus 18,18). É belo ver a inteira comunidade
assente na Pedra, que é Pedro, como Pedro, com Pedro,
não alijando responsabilidades, mas unida, reunida e
operante na prática quotidiana do Perdão!

8. Atos 12,1-11 é uma página assombrosa, que sai fora do


estilo lucano, e se aproxima mais do estilo do evangelista
Marcos. Não admira. É mesmo para casa de Maria, mãe de
João Marcos, que Pedro se dirige no episódio seguinte (Atos
12,12-17). Na página de hoje, Pedro é salvo
miraculosamente pela intervenção do Anjo de Deus, do
próprio Deus, portanto. São significativos os cinco
imperativos que o Anjo dirige a Pedro: Levanta-te (1),
cinge-te (2), calça as sandálias (3), cobre-te com o teu
manto (4) e segue-me! (5) (Atos 12,8). Com o primeiro
imperativo, caem das mãos de Pedro as correntes de ferro.
Assim começa a liberdade! Passam depois, sem qualquer
sobressalto, um após outro, dois postos da guarda, e abre-
se automaticamente (automátê) o portão de ferro que dava
para fora (Atos 12,10). Quando Pedro cai em si, está numa
rua de Jerusalém, e reconhece a mão de Deus nesta
espetacular ação de libertação em que é libertado das mãos
de Herodes (Atos 12,10-11). Trata-se agora de Herodes
Agripa I, neto de Herodes o Grande. Favorecido, primeiro
por Calígula, depois por Cláudio, foi vendo, a partir do ano
37, começar e aumentar o seu reinado de norte para sul:
em 37, é libertado das suas cadeias de ferro – estava preso
em Roma – por Calígula, que lhe entrega, juntamente com
o título de rei, as tetrarquias de Filipe e de Lisânias; em 40,
recebe a tetrarquia de Herodes Antipas, acabando de 41 a
44, ano da sua morte, por se tornar rei também sobre a
Judeia, de certo modo refazendo o antigo reino de Herodes
o Grande. É no decurso destes últimos anos que se situam
os acontecimentos relatados ou apenas acenados na lição
de hoje, nomeadamente o martírio de Tiago, filho de
Zebedeu, e a prisão de Pedro.

9. A cena da libertação de Pedro acontece na noite de


Páscoa, em paralelismo com os hebreus que, no Egito
celebraram a Páscoa da libertação. Também aí acontece a
intervenção de Deus (Êxodo 12,8.12), também de noite, e
os hebreus, como Pedro agora, comem a Páscoa com os
rins cingidos e sandálias nos pés (Êxodo 12,11). E, de novo
em paralelismo com os hebreus na saída do Egito, que
saem para as estradas do mundo, também Pedro deve
caminhar pelas ruas da cidade e pelos caminhos do mundo.
É aí que Pedro e os Apóstolos devem agora fazer falar a
Palavra, e não já no Templo, como sucedeu no relato da
libertação dos Apóstolos narrado um pouco atrás, em Atos
5,18-21.
10. Na verdade, quando Pedro dá por si, encontra-se na rua!
Dirige-se então para casa de Maria, mãe de João Marcos,
onde era usual os cristãos se reunirem para rezar (Atos
12,12). Pedro bate insistentemente ao portão exterior que
dá para o pátio interior da casa, e, apercebendo-se, veio
uma criada, de nome Rode [= Rosa] ver quem era (Atos
12,13). Mal reconheceu a voz de Pedro, ficou tão contente
que, em vez de abrir o portão, correu para dentro
anunciando que Pedro estava lá fora (Atos 12,14).
Responderam-lhe que estava maluca (maínê) (Atos 12,15).
Quando finalmente abriram o portão, que não se abre
automaticamente como o da cadeia, ficaram assombrados,
fora de si (exístêmi) (Atos 12,16). É este o assombro
maravilhoso que toma conta de Marcos, que enche o seu
Evangelho, e esta página de eleição!

11. Chegámos finalmente a Paulo e ao final da sua 2 Carta


a Timóteo 4,6-8.17-18, em que Paulo traça, por assim dizer,
o seu testamento autobiográfico, recorrendo a três imagens.
A primeira provém do culto, do rito de libação (2 Timóteo
4,6), hebraico nesek (Êxodo 29,40; Levítico 23,13), que
consiste em derramar um pouco de vinho ou de mosto
(cerca de 1,5 litros) sobre o altar, onde será queimado
juntamente com a oferenda (minhah), subindo o seu
perfume para o alto, para Deus. Do mesmo modo, a inteira
vida de Paulo foi uma incessante subida para o seu Senhor,
nada retendo para si mesmo, cá em baixo. A segunda
provém do mundo militar. É o combate (agôn), que Paulo
combateu a vida inteira, e que qualifica de «belo» e «bom»
(kalós) (2 Timóteo 4,7); de notar que a etimologia
de agôn (combate) é a mesma de agápê(amor), sendo, na
verdade, o amor verdadeiro uma guerra que requer
combates diários. A terceira provém do mundo desportivo,
concretamente do atletismo. «Completei a
minha corrida (drómos)» (2 Timóteo 4,7). Como o atleta
sacrifica tudo para alcançar a vitória, também Paulo
despendeu todas as suas energias para alcançar «a coroa
da justiça» que o Senhor lhe dará (2 Timóteo 4,8), e que é
bem diferente da «coroa corruptível» que os atletas
conquistam no estádio (1 Coríntios 9,25). Seja-nos
permitido ir buscar ainda uma quarta imagem ao mundo
dos marinheiros. «O tempo (ho kairós) começou já
a recolher as velas(systéllô)» (1 Cor 7,29). Paulo sabe que
está a chegar ao porto, depois de ter atravessado
tempestades de toda a ordem, sempre, no entanto,
assistido pelo seu Senhor, para que se cumprisse o anúncio
(kêrygma) do Evangelho a todas as nações (2 Timóteo
4,17). E termina tudo com uma bela doxologia: «A Ele a
glória pelos séculos dos séculos. Ámen» (2 Timóteo 4,18).

12. O Salmo 34 põe nos lábios dos pobres a bênção


(berakah), que os une a Deus para sempre, e o louvor
jubiloso e intenso (tehillah), que é a sua verdadeira razão
de viver (vv. 2-3). O pobre enche o olhar de Deus e fica
radiante, luminoso (v. 6), sabe que Deus o escuta e o salva,
e convida a saborear a bondade de Deus (v. 9). Ou talvez
mais do que isso. Na versão grega deste v. 9, muito
utilizado no momento da comunhão, também nas liturgias
de rito bizantino, lê-se: «geúsasthe kaì ídete hóti chrêstós
ho Kýrios» [«Saboreai e vede que Bom é o Senhor»], em
que o adjetivo chrêstós, «bom», é lido na pronúncia
viva: christós, o que vem a resultar, na atualização cristã:
«Saboreai e vede que Cristo é o Senhor». Belo e saboroso,
sem dúvida. Deus segue sempre o pobre de perto, cerca-o
de amor (v. 8), protege até os seus ossos para não serem
quebrados (v. 21), tal como é dito do cordeiro pascal, o
mais alto símbolo de libertação. No seu Caminho de
perfeição, Santa Teresa de Ávila deixa-nos, talvez, um dos
mais belos e e incisivos discursos sobre a pobreza: «A
pobreza é um bem que contém em si todos os bens do
mundo; ela confere um império imenso, torna-nos
verdadeiramente donos de todos os bens cá de baixo desde
o momento em que os faz cair aos pés».
António Couto

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