Além da tensão entre a livre interação e a história, há também a um auxílio a necessidade de interpretação.

A outra, que não mais se

tensão entre a livre interação e a presença. A livre interação é a quebra
da presença. A presença de um elemento é sempre uma referência signi-
ficante e substitutiva inscrita num sistema de diferenças, e o movimento
de um 'encadeamento. A livre interação é sempre um jogo entre ausência
e presença; mas, se é necessário pensá-Ia radicalmente, a livre interação
deve ser pensada antes da alternativa de presença e ausência; a partir
da possibilidade de livre interação, e não inversamente. Se Lévi-Strauss,
melhor do que ninguém, trouxe à luz a livre interação da repetição e a
repetição da livre interação, nem por isso deixa-se de perceber em sua
obra uma espécie de ética da presença, uma ética da nostalgia das ori-
gens, uma ética da inocência arcaica e natural, de uma pureza da pre-
sença e da presença do eu na fala 15 - uma ética, nostalgia e mesmo
remorso que ele freqüentem ente apresenta como motivação do projeto
etnológico, quando se volta para sociedades arcaicas - a seus olhos,
sociedades perfeitas. Esses textos são bem conhecidos.
Enquanto preocupação com a presença, perdida ou impossível, da
•. origem ausente, esta temática estruturalista da imediação rompida vem
a ser a face triste, negativa, nostálgica, culpada, rousseauniana, do pen-
samento da livre interação, tendo como reverso a afirmação nietzschiana
- a afirmação exultante da livre interação do mundo e, sem verdade,
sem origem, oferecendo-se a uma interpretação ativa. Esta afirmação,
pois, determina o não-centro, e não a perda do centro. E joga o jogo
com segurança. Pois há um jogo seguro: aquele que se limita à substi-
tuição das peças dadas e existentes, presentes. No acaso absoluto, a
afirmação também se rende à indeterminação genética, à aventura semi-
nal do traço."
Há, portanto, duas interpretações da interpretação de estrutura, de
signo, de livre interação.
Uma procura decifrar, anseia por decifrar uma verdade ou uma
origem que é livre da livre interação e da ordem do signo, e sente como
volta à origem, afirma a livre interação e tenta ir além do homem e
do humanismo, sendo o nome homem o nome daquele ser que, através da
História da Metafísica ou da Onto-teologia - 'em outras palavras, através
da história de toda a sua história - tem sonhado com a presença total,
a fundamentação certificante, a origem e o fim do jogo. A segunda
interpretação da interpretação, cujo caminho nos foi indicado por
Nietzsche, não busca na Etno rafia como r . évi-Strallss,_
"inspiração e um novo mundo" (mais uma citação de "Introduction
à l'oeuvre de MarceI Mauss").
Hoje há indicações mais que suficientes sugerindo que podemos
perceber que essas duas interpretações da interpretação - que são abso-
lutamente irreconciliáveis, ainda que as vivamos simultaneamente, te-
. conciliando-as numa economia obscura - partilham o campo que, de
modo tão problemático, denominamos Ciências Humanas.
De minha parte, ainda que essas duas interpretações devam reco-
nhecer e acentuar suas diferenças e definir sua irredutibilidade, não
creio que hoje se coloque aqui qualquer questão de escolha - em
primeiro lugar, porque estamos aqui em uma região (chamemo-Ia, proviso-
riamente, de região de historicidade) onde a categoria escolha parece
particularmente trivial; e, em segundo lugar, porque devemos antes
tentar pensar a base comum e a diffHence dessa diferença írredutível.t?
Entra aqui uma questão, digamos, histórica, cuja concepção, formação,
gestação e parto apenas começamos a entrever. Emprego essas palavras,
admito-o, pensando no processo .•..da gravidez, mas também pensando
naqueles - entre os quais m\ incluo - que desviam o olhar ao se
depararem com o ainda não-nomeável que assim se proclama e se mani-
festa, como é necessário sempre que um nascimento está em conclusão,
apenas sob as espécies das não-espécies, na forma informe, muda, neo-
nata e aterradora da monstruosidade.

15 . " . .. de Ia présence à soi dans Ia parole." DISCUSSÃO

16. "Tournée vers Ia présence, perdue ou impossible, de l'origine absente,
cette thématique structuraliste de l'immédiateté rompue est donc Ia face JEAN HYPPOLITE: Eu gostaria apenas de pedir a Derrida, cuja
triste, négatiue, nostalgique, coupable, rousseauiste, de Ia pensée du jeu dont
~ apresentação e discussão apreciei bastante, algumas explicações sobre
I'affirmation nietzschéenne, l'affirmation joyeuse du jeu du monde et de
l'innocence du devenir, l'affirmation d'un monde de signes sans faute, sans
vérité, sans origine, offert à une interprétation active, ,~erait l'autre face. 17. Por différer, no sentido de "adiar", "esquivar", "retardar". Em
Cette affirmation détermine alors le non-centre autrement que comme perte outro lugar, Derrida usa a palavra como sinônima da alemã Aufschub: "adia-
du centre. Et elle joue sans sécurité. Car il y a un jeu súr: celui qui se mento", e relaciona-a com o conceito freudiano central de Verspãtung,
limite à Ia substituition de piêces données et existentes, présentes, Dans le Nachtrãglichkeit, e ao "détours para a morte" em Beyond the Pleasure
hasard absolu, l'affirmation se livre aussi à l'indétermination génétique, à Principie de Sigmund Freud (Standard Edition, ed. James Strachey, vol.
l'aventure séminale de Ia trace." XIX, Londres, 1961), Capo V.

276 277
 algo que é, sem dúvida, o ponto de partida técnico da apresentação.
Ou seja, a questão do conceito de centro da estrutura, ou do que possa
significar um centro. Quando considero, por exemplo, a estrutura de
determinados conjuntos algébricos, onde 'está o centro? Será ele o
conhecimento de regras gerais que, segundo um modelo, nos permitem
entender a interação dos elementos? Ou será constituído por certos
elementos que desfrutam de um privilégio especial dentro do conjunto?
Minha pergunta, acho eu, é relevante, uma vez que não se pode
pensar a estrutura sem o centro, e o centro em si é "desestruturado",
não é? - o centro não é estruturado. Penso que temos muito a apren-
der ao estudar as Ciências do Homem; temos muito a aprender com as
Ciências Naturais. Elas são como que uma imagem dos problemas que,
por sua vez, se colocam para nós. Com Einstein, por exemplo, vemos
chegar ao fim uma espécie de privilégio da evidência empírica. E,
ligado a isso, vemos surgir uma constante, constante 'esta que é uma
combinação de espaço-tempo, que não pertence a nenhum dos experi-
mentadores que vivem a experiência, mas que, de certo modo, domina
a construção toda; e esta noção de constante - será ela o centro? Mas a
Ciência Natural foi muito além. Já deixou de procurar a constante.
Considero que" existem eventos, de alguma forma improváveis, que pro-
duzem por algum tempo uma estrutura e uma invariabilidade. Será,
então, que tudo se passa como se certas mutações, que não procedem
de autor algum, de mão alguma, e que, à semelhança da leitura mal
feita de um manuscrito, são entendidas como defeitos de uma estrutura,
existem simplesmente enquanto mutações? Será este o caso? Tratar-se-à
de uma estrutura que está na natureza de um genótipo produzido pelo
acaso a partir de um acontecimento improvável, de um encontro que
envolveu uma série de moléculas químicas e que as organizou de deter-
minado modo, criando um genótipo que será entendido e cuja origem
estará perdida numa mutação? E a isto que o senhor se encaminha?
Porque, de minha parte, sinto que estou indo nessa direção e que en-
contro aí o exemplo - mesmo quando falamos sobre uma espécie de
fim da História - da integração do histórico sob a forma de evento,
enquanto este é improvável, no centro mesmo da realização da estrutura,
'mas uma História que nada mais tem a ver com a História escatológica,
uma História que sempre se perde em sua própria busca, uma vez que
a origem é perpetuamente deslocada. E o senhor sabe que a linguagem
que empregamos hoje para falar à propos da linguagem, é a mesma que
se emprega para falar sobre genótipos e sobre teoria da informação.
Pode-se entender este signo sem sentido, 'este perpétuo retorno à luz
de uma filosofia da natureza, na qual a natureza não só terá produzido
uma mutação, mas também terá produzido um perpétuo mutante, o
278
homem? Ou seja, uma espécie de erro de transmissão ou de deformação
teria criado um ser que é sempre malformado, cuja adaptação é uma
perpétua aberração, e o problema do homem seria parte de um campo
muito mais vasto, no qual aquilo que o senhor pretende fazer, aquilo
que o senhor está prestes a fazer, ou seja, a perda do centro - o fato
de não existir nenhuma estrutura privilegiada ou original - poderia
ser visto sob esta forma na qual o homem seria reinstaurado. E isto
o que o senhor quis dizer, ou o senhor estava visando a uma outra coisa?
Esta é minha última pergunta e peço desculpas por ter tomado a palavra
por tanto tempo.
JACQUES DERRIDA: Posso dizer que concordo plenamente com-.a
última parte de seus comentários - mas o senhor estava fazendo uma
pergunta. E eu me perguntava se realmente sei para onde estou cami-
nhando. Nesse ca,so, eu responderia ao senhor dizendo, em primeiro \
lugar, T::.~stou precisamente tentando me c~car num ponto em q,ue
eu nã.º-.sal a mais para onde estõü ma0.« E, quanto a essa perda do
centro, recuso-me a uma idéia do "não-centro", que deixaria de ser a
tragédia da perda do centro - essa tristeza é clássica. Não quero com
isso dizer que pensei em abordar uma idéia na qual esta perda do centro
seria uma afirmação.
Quanto ao que o senhor disse a respeito da natureza e da situação
do homem entre os produtos da natureza, penso que já discutimos isso
antes. Assumirei inteiramente esta parcialidade que o senhor explicitou
- exceto no que tange à escolha das palavras; e aqui, como sempre, as
palavras são mais do que meras palavras. Ou seja, não posso aceitar
sua formalização, exatamente nos.-:.ells termos, ainda que eu não esteja
preparado para oferecer uma â\ternativa bem definida. Então, ficando
claro que não sei para onde estou indo, concordo inteiramente com o
senhor.
Com relação à primeira parte de sua pergunta, [devo dizer que]
a constante einsteiniana não é uma constante, não é um centro. E o
próprio conceito de variabilidade - é, em última análise, o conceito
de jogo. Em outras palavras, não é o conceito de algo - de um centro
a partir do qual um observador pudesse dominar o campo - mas o
próprio conceito de jogo que, aliás, eu estava tentando elaborar.
HYPPOLITE: E uma constante no jogo?
DERRIDA: E a constante do jogo.
HYPPOLITE: E a regra do jogo.
DERRIDA: E uma regra do jogo que não dirige o jogo; é uma
regra do jogo que não domina o jogo. Ora, quando a regra do jogo é
279
deslocada pelo próprio jogo, precisamos encontrar algo diferente da
palavra regra. No que tange à Álgebra, então, penso que este é um
exemplo de um grupo de figuras significantes, se o senhor assim prefe-
rir, ou de signos, destituído de centro. Mas podemos considerar a
Álgebra sob dois pontos de vista. Tanto podemos tomá-Ia como exem-
plo ou analogia desse jogo absolutamente descentrado de que falei,
quanto podemos tentar vê-Ia como um campo limitado de objetos ideais,
produtos no sentido husserliano, originando-se de uma história, de um
Lebenstoelt, de um sujeito, etc., que constituiu, que criou seus objetivos
ideais, e, conseqüentemente, sempre deveríamos poder fazer substitui-
ções, reatívando nele a origem - aquela da qual os significantes, apa-
rentemente perdidos, são as derivações. Acho que esse era o modo
clássico de pensar a Algebra. Poder-se-ia, talvez, pensá-Ia de outro modo,
como imagem do jogo. Ou então pensá-Ia como campo de objetos ideais,
produzidos pela atividade daquilo gue chamamos de sujeito, ou de
homem, ou de História, e assim recuperar a possibilidade da Álgebra
no campo do pensamento clássico; ou então considerá-Ia como espelho
perturbador de um mundo que é algébrico do começo ao fim.
HYPPOLITe: Então, o que é uma estrutura? Se não posso mais
tomar a Algebra como exemplo, que definição de estrutura, para ver onde
está o centro, o senhor me daria?
DERRIDA: O conceito de estrutura em si ~ digo-o de passagem _
deixou de ser satisfatório para descrever o jogo. Como definir estru-
tura? A estrutura deveria ter um centro. Mas este centro pode ser
pensado ou como um criador, um ser, um ponto fixo, como foi classi-
camente; ou então como uma deficiência, por assim dizer; ou como
algo que possibilita a "livre interaçâo", no sentido de "jeu dans Ia
machine", de "jeu des piêces", e que recebe - e é isto que chamamos
de História - uma série de determinações, de significantes que não
tem significados, em última análise, que não podem vir a ser signífi-
cantes a não ser 'enquanto originários desta deficiência. Portanto, penso
que o que eu disse pode ser entendido como uma crítica do Estrutu-
ralismo, sem dúvida.
RICHARD MACKSEY: Talvez eu esteja fora do campo ao tentar
identificar prematuramente os jogadores que podem juntar-se a seu time
na crítica da Metafísica representada pela teoria do jogo, esboçada pelo
senhor. Ainda assim, acho interessante a simpatia com que duas figuras
contemporâneas poderiam considerar a formidável proposta que o senhor
e Nietzsche nos convidam a contemplar. Estou pensando, em primeiro
lugar, na fase final da carreira de Eugen Fink, um fenomenólogo "re-
formado", com um relacionamento particularmente paradoxal com Hei-
280
degger. Já desde os colóquios em Krefeld e Royaumont ele estava pre-
parado para discutir o status secundário do mundo conceptual, para con-
siderar Sein, Wahrheit e WeU partes medutíveis de uma questão única
e fundamental. É um fato que em V or-Fragen e no último capítulo do
livro sobre Nietzsche ele apresenta uma noção zaratustriana de jogo,
enquanto passo para -Lora.....( ou para trás) d.L.Ejlosofia. É interessante
contrastar seu Nietzsche com o _de Heidegger; parece-me que o senhor
estaria de acordo com ele na inversão da primazia que Heidegger atribui
ao Sein, sobre a Seiendes, e assim acarretaria algumas conseqüências inte-
ressantes para a crítica pós-humanista de nosso tópico em discussão,
"Les sciences bumaines", Pois, certamente, em Spiel ais Weitsymboi,
o jogo mundial dominante é profundamente anterior e anônimo, ante-
rior à divisão platônica do ser e da aparência, e destituído de um centro
humano, pessoal.
A outra figura é a daquele escritor que pôs como centro mutante
de sua poética o jogo narrativo na "noite unânime", aquele arquiteto e
prisioneiro de labirinto, o criador de Pierre Menard.
DERRIDA: O senhor se refere, por certo, a Jorge Luis Borges.
CHARLESMORAzÉ: Apenas uma observação. Com relação ao diá-
logo dos últimos vinte anos com Lévi-Strauss sobre a possibilidade de
uma outra gramática que não a da linguagem - tenho grande admira-
ção pelo que Lévi-Strauss fez quanto a uma gramática das mitologias.
Eu gostaria de destacar que há também uma gramática do evento -
que é possível fazer uma gramática do evento. Ela é mais difícil de
estabelecer. Penso que nos próximos meses, nos próximos anos, come-
çaremos a aprender a construir esta gramática, ou melhor, este conjunto
de gramáticas de eventos. E [estagrâmãtica] leva a resultados - per-
mitam-me dizê-Ia, baseado em minha própria experiência - que é
um pouco menos pessimista do que o senhor sugeriu.
LUCIEN GOLDMANN: Eu gostaria de dizer que acho que Derrida
- com cujas conclusões não concordo - tem uma função catalizadora
na vida cultural francesa e, por essa razão, rendo-lhe minha homenagem.
Eu disse uma vez ,que ele me traz à mente a lembrança de quando
cheguei à França, em 1934. Naquele tempo havia entre os estudantes
um forte movimento monarquista e, de repente, surgiu um grupo igual-
mente defensor da monarquia, mas que exigia um rei merovíngio!
Neste movimento de negação do sujeito ou do centro, como prefe-
rirem, que tão bem define, Derrida está dizendo a todos os que repre-
sentam essa posição: "Mas você 'está contradizendo a si mesmo; você
nunca chega às últimas conseqüências. Em última análise, ao criticar
as mitologias, se você nega a posição, a existência do crítico e a neces-
281
 sidade de dizer qualquer coisa, você contradiz a si próprio, porque você
ainda é um Lévi-Strauss dizendo alguma coisa e, se você cria uma nova
mitologia ... " Bem, a crítica foi notável e não vale a pena refazê-Ia.
Se destaquei umas poucas palavras que foram acrescentadas ao texto
e que tinham um caráter destrutivo, podemos discuti-lo ao nível da
Semiologia. Porém, eu gostaria de fazer uma pergunta a Derrida:
Suponhamos que, em lugar de discutir com base numa série de postu-
lados em direção aos quais se orientam todas as correntes contemporâ-
neas, irracionalistas e formalistas, o senhor se colocasse diante de uma
posição bem diferente, digamos, a posição dialética. Em linhas bem
gerais, o seguinte: o senhor pensa que a ciência é algo que os homens
fazem, que a história não é um erro, que aquilo que o senhor chama
de teologia a algo aceitável, uma tentativa, não de dizer que o mundo
é ordenado, que é teológico, mas sim que o ser humano é alguém que
.::E.0sta na possibilidade de dar significação a uma palavra que, even-
tualmente, num determinado ponto, resistirá a essa significação. E a
origem ou fundamento daquilo que é anterior a um estado típico de
dicotomia do qual o senhor fala (ou, na gramatologia, a ação que registra
antes de haver uma significação) é algo que estamos estudando hoje,
mas que não podemos nem mesmo queremos investigar de dentro para
fora, porque- só se pode aí penetrar no silêncio, ao passo que queremos
entendê-Ia segundo a lógica por nós elaborada, com a qual tentamos,
de um modo ou de outro, ir sempre mais além, não para descobrir um
significado escondido por alguma divindade, mas para dar um sentido
a um mundo onde esta é a função do homem (sem saber, além disso,
de onde vem o homem, não podemos ser totalmente coerentes, pois, se a
pergunta é clara, sabemo-Io, se dissermos que o homem vem de Deus,
alguém perguntará "De onde vem Deus?", e se dissermos que o homem
vem da natureza, alguém perguntará: "De onde vem a natureza?", e
assim por diante). Mas estamos dentro, estamos nesta situação. A seu
ver, esta posição ainda é contraditória?
JAN KOTT: Num dado momento esta famosa frase de Mallarmé
parecia muito significante: "Um lance de dados jamais eliminará o
acaso". ["Un coup de dês n'abolira jamais le hasard'"] Depois da lição
que nos deu o senhor, não é possível dizer que: "E o acaso jamais eli-
minará o lance de dados" ["Et le hasard n'abolira jamais le coup de
dês".] ?
DERRIDA: Ao sr. Kott respondo imediatamente que sim. Quanto
ao que me disse o sr. Goldmann, sinto que ele destacou, naquilo que eu
disse, o aspecto que chama de destrutivo. Creio, porém, que fui bas-
tante explícito quanto ao fato de que nada do que eu disse tinha um
282
sentido destrutivo. Aqui e ali empreguei a palavra déconstruction, que
não tem nada a ver com destruição. Isto é, trata-se simplesmente de
(e esta é uma necessidade da crítica na acepção clássica da palavra) estar
alerta às implicações, à sedimentação histórica da linguagem que em-
pregamos - e isto não é aestruição. Acredito na necessidade do traba-
lho científico no sentido clássico; acredito na necessidade de tudo o que
está sendo feito e até mesmo daquilo que o senhor está fazendo, mas
não vejo por que eu, ou qualquer outro, devesse renunciar ao radica-
lismo de um trabalho crítico sob o pretexto de que há risco de esteriliza-
ção da ciência, da humanidade, do progresso, da origem do significado,
etc. Creio que o risco de esterilidade e de esterilização é e sempre foi o
reço da lucidez. Quanto à anedota do início, ela me parece inadequada,
pois me define como um ultramonarquista, ou um "ultra", como se
dizia em meu país há não muito tempo, enquanto tenho um conceito
muito mais humilde, modesto e clássico daquilo que estou fazendo.
Com relação a alusão do sr. Morazé à gramática do evento, tenho
que lhe devolver a pergunta, pois não sei o que seja uma gramática do
evento.
SERGEDouBROVSKY: O senhor se refere sempre a um não-centro.
De que modo o senhor explica ou, pelo menos, entende, dentro de sua
perspectiva, o que seja uma percepção? Pois uma percepção é precisa-
mente o modo pelo qual para mim a palavra parece centrada. E a lingua-
gem, o senhor a representa como plana ou 'em níveis? Bem, a linguagem
é ainda outra coisa. É, como disse Merleau-Ponty, uma intencionali-
dade corpórea. E a partir desse emprego da linguagem, na medida em
que há uma intenção de linguagem, inevitavelmente encontro de novo
um centro. Pois não é "algué!!.l". q1,l~ fala, mas sim "Eu". E, mesmo
que se reduza o eu, é-se obrigado a encontrar mais uma vez o conceito
de intencionalidade, que - creio - está na base de todo um pensa-
mento, o qual, além do mais, o senhor não nega. Portanto, pergunto
de que modo o senhor o reconcilia com suas propostas atuais?
DERRIDA: Em primeiro lugar, eu não disse que não houve um
centr0;uS podíamos passar sem centro. Acredito que o centro i
..!!IDa un a não um ser - yma realidade, mas uma função. E essa
função é absolutamente indispensável. O sujeito é absolutamente indis-
pensável. Eu não destruo o sujeito; situo-o. Isto é, acho que num de-
terminado nível, tanto da experiência quanto do discurso filosófico e
científico, não se pode passar sem a noção de sujeito. É uma questão
de saber de onde ele vem e como funciona. Portanto, mantenho o
conceito de centro que, como expliquei, é indispensável, bem como
o de sujeito, e todo o sistema de conceitos ao qual o senhor se referiu.
283
 Já que o senhor mencionou a intencional idade, procuro simples-
mente ver os qu'e estão fundando o movimento de intencional idade -
o que não se pode conceber no termo intencionalidade. Quanto à per-
cepção, tempo houve em que me pareceu uma conservação necessária.
Eu era extremamente conservador. Agora não sei o que seja percepção
e não acredito que exista algo como percepção. Percepção é precisa-
mente um conceito, um conceito de uma intuição ou de um dado origi-
nário da própria coisa, presente no seu significado, independentemente A TRAGÉDIA GREGA
da linguagem, do sistema de referências. E acho que a percepção está PROBLEMAS DE INTERPRETAÇÃO 1
em relação de interdependência com o conceito de origem e de centro,
e, conseqüentemente, qualquer ataque à Metafísica de que {alei incide
também sobre o próprio conceito de percepção. Não creio que exista
J EAN-PIERRE VERNANT
Êcole Pratique des Hautes Êtudes
percepção.

Em primeiro lugar, por que a tragédia grega? Por que um proble-

ma de interpretação? Como qualquer outra obra humana, uma tragédia
grega não pode ser lida diretamente. :fi antes uma mensagem, uma
mensagem a ser decifrada. Eu gostaria de mostrar aos senhores a série
de problemas colocados pela decifração de um texto como uma tragédia
grega, salientando sobretudo a necessidade de um estudo do contexto,
num sentido que definirei em seguida. Não se trata de um contexto
social e psicológico, nem de um contexto exterior, alheio aos significados
e às estruturas internas da tragédia. Na minha opinião, a compreensão
de uma tragédia grega não é a elaboração de um quadro histórico da
sociedade grega ou ateniense, pelo simples fato de tratar-se de uma
tragédia ática do século V a.c. _
Entendo contexto no segt1inte· se;tido. Se eu disser aos senhores
"Que lindo dia estamos tendo hoje!" o significado dessa sentença e os
recursos estilísticos que eu empregar diferirão conforme o tempo que
os senhores olharem pela janela, e verificarem que o sol está brilhando
ou que está chovendo torrencialmente. Em suma, toda mensagem implica
numa cumplicidade necessária entre o interlocutor e seus ouvintes. Isto
é o que chamo de contexto. Toda mensagem baseia-se num conjunto
comum de conhecimentos que permite o emprego de alusões. Tal é o
caso na tragédia grega. Só que, no caso da tragédia, uma obra literária,
uma mensagem que subsiste e pertence à história humana, que é lida

1 . "La Tragédie Grecque: problêrnes d'interprétation". O texto que

se segue é uma tradução e, em alguns casos, uma paráfrase da gravação da
conferência do sr. Vernant. O texto de apoio distribuído no Simp6sio está
publicado na edição original dos anais. As notas e algumas citações do texto
em inglês foram acrescentadas pelo tradutor [para o inglês].

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