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ILHA

Revista de Antropologia

Florianópolis, volume 12, números 1 e 2


jan. a dez. 2010
(2011)
ILHA – Revista de Antropologia, publicação do Programa de Pós-Graduação em Antropologia Social (PPGAS)
da Universidade Federal de Santa Catarina.

Universidade Federal de Santa Catarina


Reitor: Prof. Alvaro Toubes Prata
Diretor do Centro de Filosofia e Ciências Humanas: Profª. Roselane Neckel
Coordenador do PPGAS: Profª. Antonella Maria Imperatriz Tassinari

Coordenação Editorial Alicia Norma González de Castells, Miriam Furtado Hartung e Vânia Zikán Cardoso
Editor do Volume Vânia Zikán Cardoso
Editor de Resenhas Marcos Aurélio da Silva
Editora Gerente Daniela Fany Hess
Conselho Editorial Alberto Groisman, Alicia Norma González de Castells, Antonella Maria Imperatriz
Tassinari, Carmen Silvia Rial, Edviges Marta Ioris, Esther Jean Langdon, Evelyn Martina Schuller Zea,
Gabriel Coutinho Barbosa, Ilka Boaventura Leite, Jeremy Paul Jean Loup Deturche, José Antonio Kelly
Luciani, Maria Eugenia Dominguez, Maria Regina Lisboa, Márnio Teixeira-Pinto, Miriam Hartung, Miriam
Pillar Grossi, Oscar Calavia Saez, Rafael José de Menezes Bastos, Rafael Victorino Devos, Scott Correll
Head, Sônia Weidner Maluf, Theophilos Rifiotis e Vânia Zikán Cardoso
Conselho Consultivo Bozidar Jezenik, Universidade de Liubidjana, Eslovênia; Claudia Fonseca, Universidade Federal
do Rio Grande do Sul; Cristiana Bastos, Universidade de Lisboa, Portugal; David Guss, Universidade de Tufts,
Estados Unidos; Fernando Giobelina Brumana, Universidade de Cádiz, Espanha; Joanna Overing, Universidade
de St. Andrews, Escócia; Manuel Gutiérrez Estévez, Universidade Complutense de Madrid, Espanha; Mariza
Peirano, Universidade de Brasília; Marc-Henri Piault, Escola de Altos Estudos em Ciências Sociais, França;
Soheila Shashahani, Shahid Beheshti University, Irã; Stephen Nugent, Universidade de Londres, Inglaterra
Projeto gráfico Isabela Benfica Barbosa
Editoração eletrônica Annye Cristiny Tessaro (Lagoa Editora)
Revisão Isabel Maria Barreiros Luclktenberg

Catalogação na fonte pela Biblioteca Universitária

Ilha – Revista de Antropologia / Universidade Federal de Santa Catarina.


Programa de Pós-Graduação em Antropologia Social. V. 12, números 1 e 2
(2010) – Florianópolis: UFSC/ PPGAS, 2011 – 300 pp.

ISSN 1517-395X

1. Antropologia 2.Periódico 1. Universidade Federal de Santa Catarina

________________________

ISSN 1517-395X

Solicita-se permuta/Exchange desired


As posições expressas nos textos assinados são de responsabilidade exclusiva de seus autores.

Toda correspondência deve ser dirigida à Comissão Editorial da Revista Ilha,


Programa de Pós-Graduação em Antropologia, Centro de Filosofia e Ciências Humanas – CFH,
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E-mail: ilha@cfh.ufsc.br sítio: http://www.periodicos.ufsc.br/index.php/ilha

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gravação ou outro, sem a autorização por escrito da comissão editorial.
SUMÁRIO
NÚMERO 1

Seção Temática: Seminário de Raposa

Apresentação 9 JOSE ANTONIO KELLY LUCIANI

O xadrez do parentesco e o parentesco do 17 ROY WAGNER


xadrez

A antropologia reversa e “nós”: alteridade e 41 SÔNIA WEIDNER MALUF


diferença

Reinventando a roda: inversões e reversões 59 SCOTT HEAD


de uma antropografia do sujeito

Sobre a ilusão de ter: reflexões an/tropológicas 85 EVELYN SCHULER ZEA

Nem plural, nem singular: ontologia, descrição 103 JUSTIN SHAFFNER


e a Nova Etnografia Melanésia

Perspectivismo multinatural como 137 JOSE ANTONIO KELLY LUCIANI


transformação estrutural
NÚMERO 2

ARTIGOS

Um pequeno, mas espinhoso, problema do 165 MARCIO SILVA


parentesco

O século de Lévi-Strauss 211 PATRICK MENGET

Alguns aspectos simbólicos acerca do gato 233 ANDRÉA OSÓRIO

RESENHAS

Métaphysiques cannibales: lignes 263 RAFAEL ROCHA PANSICA


d’anthropologie post-structurale

Arqueología de la frontera: estudios sobre los 268 HORACIO MIGUEL HERNÁN


campos del sur cordobés. ZAPATA

Ética e regulamentação na pesquisa 276 RUI MASSATO HARAYAMA


antropológica

Etnicidad S.A. 282 OSCAR CALAVIA

La fabrique des images: visions du monde et 288 JEREMY DETURCHE


formes de la représentation

Teses e dissertações do PPGAS 296


NÚMERO 1
Seção Temática
Seminário da Raposa

Organizador

Jose Antonio Kelly Luciani


Apresentação

Jose Antonio Kelly Luciani


Universidade Federal de Santa Catarina, Florianópolis, Brasil
E-mail: kamiyekeya@gmail.com
Jose Antonio Kelly

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Apresentação

E m agosto de 2011 o professor Roy Wagner realizou, a convite


do Departamento de Antropologia da UFSC, sua primeira visita
ao Brasil. Essa visita acabou sendo uma verdadeira maratona acadê-
mica de pelo menos 13 palestras e apresentações audiovisuais em
seis universidades brasileiras: UFSC, UFAM, UFRJ, USP, UFMG e
UnB. Essa visita não só respondia a recente publicação no Brasil de
sua obra emblemática A invenção da cultura (2010), mas também a
crescente influência de sua obra na antropologia feita no Brasil, ten-
do se tornado leitura obrigatória em boa parte dos programas de
pós-graduação em antropologia no país.
Na UFSC tivemos o imenso prazer de organizar o Seminário
Antropologia de Raposa – um trocadilho transetnográfico do título
de seu mais recente livro Coyote Anthropology (2010). Vários antropó-
logos foram convidados a dialogar, a partir de diversos ângulos e de
distintas experiências etnográficas, com a obra de Wagner, colocan-
do-a em relação com outras fontes de inspiração antropológica.
Nesse seminário contamos com papers do próprio Roy Wagner,
de Scott Head, Sônia Maluf, Evelyn Schuler Zea, Jose Kelly e Justin
Shaffner, os quais estão aqui reunidos. Além desses, também conta-
mos com a apresentação de papers de Eduardo Viveiros de Castro e

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Jose Antonio Kelly

Marcela Coelho de Souza, e uma mostra por Roy Wagner e Justin


Shaffner de imagens de seus trabalhos de campo. Estamos agora pre-
parando uma coletânea de todas essas apresentações, em versões
expandidas, que será publicada em 2012. O artigo aqui publicado de
Roy Wagner é um capítulo de um livro em preparação: The Place of
Invention (O lugar da invenção).
É de destaque que todos nós que tivemos o prazer de apresentar
e discutir nossos trabalhos com Roy Wagner fizemos o esforço de
inventar – para falar nos termos do próprio Wagner – a partir da
obra do autor, e não simplesmente “aplicar” – como se costuma di-
zer – seus conceitos e teoria. O leitor verá nos artigos os conceitos
wagnerianos entremeados com outros derivados do estruturalismo,
feminismo e marxismo, e envoltos em contextos etnográficos que
não se limitam à literatura amazonista ou melanesista – o lócus, até
o momento, mais visível do rendimento wagneriano na antropolo-
gia feita no Brasil. Os artigos aqui reunidos incluem reflexões sobre
as chamadas sociedades complexas e as fontes extra-antropológicas
de conceitos (Maluf), e o papel da escrita e da performance na elabo-
ração de uma antropologia do sujeito (Head). Ambos os trabalhos
mostram as possibilidades de diálogo com o trabalho de Wagner em
contextos tipicamente abordados com outras caixas de ferramentas
analíticas e que, para alguns (mal)entendidos, não são campos sus-
cetíveis a serem pensados por meios que supostamente derivam seu
potencial da alteridade a que nos remetem a Melanésia ou as Terras
Baixas da América do Sul. Estão também presentes reflexões que
colocam em relação formas de criatividade dos povos amazônicos
(Schuler Zea e Kelly) e melanésicos (Shaffner) com a semiótica
wagneriana e o perspectivismo multinatural, numa espécie de
recursividade simetrizante de teoria e etnografia.
Não poderia eu finalizar esta breve apresentação sem mencio-
nar que para nós, e acho que para todos os colegas não só na UFSC
senão também nas demais universidades, a oportunidade de trocar
formal e informalmente com Roy Wagner foi uma espécie de
refrescamento intelectual, cujo resultado com certeza ficará regis-
trado em trabalhos futuros. A organização desse seminário e das

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Apresentação

demais atividades nas universidades brasileiras constituiu ao mesmo


tempo um tributo e uma retribuição a um dos antropólogos mais
estimulantes da atualidade, no verdadeiro xamã do sentido. Conhe-
cer pessoalmente os grandes autores sempre incorre no risco de nos
desiludirmos. Não foi o caso de nossa experiência com Roy Wagner:
mais que iludidos, ficamos alucinados com sua genialidade e gene-
rosidade sempre revestidas de um humor (ou wit, como se diria em
inglês) sem par. Sabemos, para finalizar, que sua passagem pelo Bra-
sil e seus antropólogos (professores e alunos) também foram, para
Roy Wagner, revitalizantes, numa época em que em vários cantos da
antropologia se percebe, como já falou Jaques Lizot, um estado avan-
çado de delinquência.

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O xadrez do parentesco e o
parentesco do xadrez¹

Roy Wagner
University of Virginia

Tradução: Evelyn Martina Schuler Zea e Jose


Antonio Kelly Luciani
Universidade Federal de Santa Catarina, Florianópolis, Brasil

Revisão de tradução: Vânia Zikán Cardoso


Universidade Federal de Santa Catarina, Florianópolis, Brasil
Roy Wagner

Resumo Abstract

A comparação real entre o estudo an- The real comparison between the
tropológico do parentesco e o jogo de anthropological study of kinship and the
xadrez não é imediatamente aparente game of chess is not immediately apparent
a partir de suas propriedades formais, from their formal properties, and only
tornando-se relevante apenas quando becomes relevant when they are viewed as
ambos são vistos como estratégias ou strategies, or patterns of events occurring in
como padrões de eventos acontecendo time. The single proportion that both share
no tempo. A proporção simples de que in common is a kind of cross-comparison
ambos compartilham é um tipo de between dualistic variables called a
comparação cruzada entre variáveis chiasmus, illustrated in kinship by the
dualísticas denominadas quiasmas, classic cross-cousin relationship, and in
ilustradas no parentesco pela clássica chess by the asymmetric double-proportion
relação de primos cruzados e no xadrez between the king and queen, the only
pela dupla proporção assimétrica entre gendered pieces on the board, and the mo-
o Rei e a Rainha, as únicas peças ves and tokens of the other pieces in the game.
marcadas pelo gênero no tabuleiro, e os The difference may be summed up in the
movimentos e acenos das outras pe- word: mating. Chess may be described as
ças. A diferença pode ser resumida em the kinship of kinship. Failure to
uma palavra: mating. Xadrez pode ser understand the chiasmatic, or double-
descrito como o parentesco do paren- proportional essence of both has resulted in
tesco. A falha de compreensão da es- many dysfunctional models of cross-cousin
sência quiasmática ou de dupla propor- marriage, and many very quick games of
ção de ambos tem resultado em mui- chess.
tos modelos disfuncionais de casamen-
to de primos cruzados e em muitos jo- Keywords: Kinship. Chess. Humour.
gos ligeiros de xadrez. Knowledge practices. Cross-cousin
Marriage. Strange Attractor. Melanesia.
Palavras-chave: Parentesco. Xadrez.
Humor. Práticas de conhecimento.
Casamento entre primos cruzados.
Atrator estranho. Melanésia.

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O xadrez do parentesco e o parentesco do xadrez

A representação antropológica padrão do “parentesco”, apresen-


tada pela primeira vez por Lewis Henry Morgan em 1871, era
um padrão estático, útil apenas para fins comparativos, levando a dis-
ciplina para uma trajetória de autoinércia ou “estrutural funcionalista”,
na qual padrão, consistência e, especialmente, relatividade se constituí-
ram como pontos-chaves de referência. Como tal, contrastava forte-
mente com o modo pelo qual as vidas humanas são efetivamente
vividas e pensadas e com a padronização de eventos e a padronização
de estratégias. Tanto o campo de jogo quanto o elenco dos jogadores fazem
parte de um desenho mais amplo, de um quadro arbitrário para o
desdobramento de destinos.
No parentesco cruzamos (mate) no começo do jogo, no xadrez
o xeque-mate (mate) acontece no final. A palavra “mate” tem uma
etimologia muito diferente em cada caso e um sentido muito dife-
rente, mas é o mesmo som sendo usado basicamente do mesmo modo
e muito estratégico.
No xadrez você inicia com todo o seu pessoal ali de uma vez,
classificado e ordenado de modo muito específico, e, salvo algumas
exceções, você avança, diminuindo seu número no decorrer do jogo.
No parentesco você inicia conceitualmente com muito pouco pesso-
al e avança multiplicando seu número no decorrer do tempo. Em
seguida você classifica-os e ordena-os de acordo com categorias muito
específicas – geralmente genealogias e linhagens em vez das figuras
do cavaleiro, do bispo, da torre e do peão (You can always get more
pawns at a pawn-shop2).
No xadrez há uma estratégia única conhecida apenas para o
jogo em si e cada jogador tenta descobrir em que consiste. Quando
um deles se dá conta da estratégia – ela dá conta do outro. No paren-

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Roy Wagner

tesco há muitas estratégias potenciais, mas todo mundo, incluindo o


antropólogo, acha que sabe aquela que conta. Ou ao menos faz de
conta, porque não se quer que os outros jogadores vejam suas car-
tas; em todo caso, a maioria deles está blefando. E aquele que morre
com a maior quantidade de estratégias ganha.
O xadrez é um jogo considerado altamente intelectual, mas no
final das contas não tem nada de realmente intelectual – é mais como
um truque mental de Jedi ou como o papel do malandro (grifter), o
tipo de trapaceiro que preda outros trapaceiros como no filme The
Sting, de Robert Redford e Paul Newman. O trapaceiro é o meio-
termo entre o parentesco e o xadrez, e esse meio-termo chama-se
estratégia. Estratégia de quem? Exatamente, você sacou o jogo de uma
vez! O parentesco e o xadrez são mundos paralelos, definem contex-
tos sociais, culturais e físicos altamente específicos que mal se sobre-
põem. No entanto, há pelo menos um modo no qual eles são uma
única e mesma coisa.
E, embora “estratégia” praticamente o explique por completo –
essa sendo a principal razão pela qual qualquer um se importa com o
parentesco, para além de jogos classificatórios estéreis, e também
sendo a principal razão pela qual qualquer um se importa com o
xadrez, para além de, evidentemente, ganhar –, continuemos. Claro
que ninguém se importa em ganhar ou perder no parentesco – de
forma alguma! Só alguns indivíduos malconceituados, alguns chama-
dos “homens” e outros “mulheres”. Ah, e quase esqueço: “crianças”.
Há muitas coisas do parentesco que não valem para o xadrez, e
muitas coisas do xadrez que não valem para o parentesco. Mas há
uma coisa em ambos que muito nos impele, uma coisa que torna as
comparações paradoxais e, portanto, os paradoxos comparativos. Essa
é a comparação quiasmática, ou de dupla proporção, aquilo que Tony
Crook, que a descobriu em Bolivip, na Papua Nova Guiné, enquanto
decifrava o complexo sigiloso da “Casa da Mãe”, denomina “mudar
o sujeito no meio da frase” – uma espécie de “casamento de primo
cruzado” sintático, se me permitem a comparação. Os Daribi, tam-
bém da Papua Nova Guiné, o chamam de porigi e o descrevem como
po begerama pusabo po em sua língua, “a fala que volta sobre si mesma

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O xadrez do parentesco e o parentesco do xadrez

na medida em que se fala”. Ao perguntar “O que faz de um homem um


big man será sua posse de muitas mulheres ou de muitos porcos?”, os Daribi
responderão: “Um homem que pode falar porigi com efeito obtém todas as
mulheres e porcos que ele quiser”.
Antes de prosseguir demonstrando o papel crucial que o quiasma
exerce tanto no xadrez quanto no parentesco, talvez seja útil enten-
der exatamente que tipo de estratégia está envolvida nele. Por exem-
plo, o filósofo grego Heráclito ficou conhecido por suas afirmações
crípticas, tais como “Imortais Mortais, Mortais Imortais, vivendo uns
a morte dos outros, morrendo uns a vida dos outros”. Será que isso
significa que Heráclito sabia alguns segredos sobre seres humanos e
deuses, ou sobre suas estranhas relações, que os outros não sabiam?
De modo algum, Heráclito era tão inocente desse tipo de conheci-
mento quanto você ou eu; ele apenas sabia utilizar bem o ergativo,
utilizando-o numa estratégia quiasmática. Uma expressão “ergativa”
é aquela na qual uma ação ou verbo convencionalmente ativo é des-
locado para um papel passivo, com um aumento exponencial de poder
e ênfase. Observe que “viver a morte de outro” é um ergativo exem-
plar desse tipo, um pouco parecido com “morrer trabalhando” num
paraíso do trabalhador; e, quando usado quiasmaticamente numa
comparação de dupla proporção, ele invoca um efeito irônico pode-
roso, como na antiga piada soviética: “Nós fazemos de conta que
trabalhamos, e o Estado faz de conta que nos paga”.
Em outras palavras, a melhor maneira de guardar – ou mesmo
de inventar – um segredo é fazer dele uma função da forma (como o
porigi) e não do conteúdo. Desse modo, a estratégia formal comparti-
lhada pelo xadrez e pelo parentesco se parece mais com um golpe
(coup) em topologia e matemática do que com as manobras
“relacionais” ou emocionais caras aos chamados “humanistas”. Dei-
xem-me ilustrar: dito de maneira simétrica e assimétrica ao mesmo
tempo (do modo com que Heráclito configurava seus discursos pro-
féticos), o segredo de que não há segredo algum se torna uma meia
verdade sobre si mesmo e, portanto, uma dupla verdade sobre qual-
quer outra coisa – mais ou menos o que os matemáticos da fractalidade
chamam de “atrator estranho” (os anciões da Casa da Mãe em Telefolip,

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Papua Nova Guiné, de fato utilizam esse dispositivo como uma es-
tratégia de ensino para seus iniciados; e, em 2000, Mike Wesch e eu
pegamos um deles no ato de tentar usá-la – chamada nesse caso “As
Duas Bonecas” – com a gente).
No final das contas há, portanto, um problema com esse
ilusionismo de dupla incriminação (double-jeapardy illusionism); o que
é que o ancião fez com Mike e comigo que ele não teria já feito a si
mesmo? Será que o atrator estranho chamado “As Duas Bonecas”
não o controlava também? E como é que sua prepotência difere da-
quela do trapaceiro, do passe de mágica do ilusionista, do grande
mestre de xadrez ou, até mesmo, do especialista em parentesco? Era
certamente apenas um modo de falar, mas Freud de fato chamou
sua psicanálise de “a cura pela fala”. E assim também se diz que o
jogo de xadrez é muito educativo.
Onde encontramos o quiasma de dupla proporção no jogo de
xadrez? O layout do xadrez é um estudo de simetrias contrastivas; há
dois lados (ou jogadores), quadros brancos e negros (8 x 8) organi-
zados num formato totalmente simétrico, e cada jogador começa
com um layout simétrico de peças (bispos, cavalos, torres e peões,
tradicionalmente chamados de “homens”, mas com gênero não
explicitado). Estas são as “quatro forças”: sacerdócio, cavalaria, for-
tificação e infantaria, no regime militar da Antiga Índia, de onde
vem o jogo.
E depois há a outra proporção, que é aquela ditada pelas únicas
peças no tabuleiro com o gênero explicitado que, de acordo com as
regras, devem se encarar frente a frente no tabuleiro – uma assimetria
– com o branco quadrado à direita do jogador escolhido por essa cor.
Essas peças são a Rainha e o Rei, os elementos mais importantes em
jogo, aqueles que têm seus papéis tradicionais da corte revertidos (par-
te da mesma assimetria). Normalmente, na vida real, é a Rainha quem
detém a posição social do reino, enquanto o Rei “manda ver” e é o
comandante-chefe. Mas no xadrez esses papéis são invertidos, a Ra-
inha é o guerreiro mais eficaz de todos e o Rei, pela sua posição, detém
o valor do jogo.

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O xadrez do parentesco e o parentesco do xadrez

Um atrator estranho é o chamado “As Duas Bonecas”, pois ele


efetivamente energiza (ou seja, ergatiza) o jogo, fazendo dele muito
mais que um mero jogo, transformando-o em metáfora do estadismo
real. Do ponto de vista da estratégia, isso implica que dois membros
da realeza se enfrentem, um contra o outro, em contraponto com as
manobras dos dois “exércitos”. Basicamente, tudo se refere a cruza-
mento (mating). Vejamos.
Como duas bonecas Barbie, cada uma tentando ser mais Barbie
que a outra. Somos tentados a dizer que temos a mesma
contradistinção no parentesco, entre o assim chamado quadro
genealógico, que classifica e ordena o esquema, e o jogo de afins,
aqueles relacionados (“pela aliança”) através da uma explícita
interação de gênero. Mas isso é enganoso na medida em que a
genealogia é uma função tanto da interação marcada pelo gênero
quanto da afinidade, tendo a mesma fonte, e a afinidade é uma fun-
ção tanto da genealogia quanto do casamento. Portanto, a “teoria da
descendência” e a “teoria da aliança” são, como dizem os Norse,3
“dois chifres na cabeça da mesma cabra”, e não se trata de uma rela-
ção de dupla proporção. A chave do quiasma foi dada por Claude
Lévi-Strauss nAs estruturas elementares do parentesco.
Nós mesmos bem poderíamos fazer um pequeno exercício de
deslocamento de proporções e chamá-lo “O parentesco elementar
das estruturas”, tão boa foi sua virada ao avançar para uma aborda-
gem positiva ou proativa ao tema. Para completar o átomo do parentesco,
segundo Lévi-Strauss, a regra negativa de casamento configurada pela
identificação genealógica morganiana deve ser contrabalançada por
alguma contraparte explicitamente positiva, uma estratégia de paren-
tesco conhecida por se contrapor à dispersão distributiva das gera-
ções. Assim como há um tabu do incesto, deve haver um tabu do
outcest: casar dentro (marrying in), que consolida os ganhos lineares, é
tão importante quanto o casar fora (marrying out), independentemente
de outras considerações.
Até aqui tudo bem, pois temos uma contraparte de dupla pro-
porção do esquema de classificação e ordem versus aquele de inver-
são de papéis de gênero encontrado no xadrez, na medida em que a

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Roy Wagner

relação cara a cara marcada pelo gênero entre homem e mulher é


contraposta, no esquema do “átomo do parentesco” lévi-straussiano,
pelo esquema do atrator estranho – o parentesco “back to back”4 en-
gendrado pela irmã do esposo e o irmão da esposa e sua respectiva
prole –, os assim chamados “primos cruzados” no repertório de pra-
xe do parentesco.
A ressalva explícita do argumento dos “primos cruzados” de
Lévi-Strauss, que “a mulher poderia muito bem ter sido o pai de
alguém, assim como o pai poderia ter sido a mãe de alguém”, foi
feita, em diferentes momentos e contextos, por Radcliffe-Brown e
por meus anfitriões Barok da Nova Irlanda (Papua Nova Guiné), cada
um sem saber da existência do outro. Ela sugere um contrajogo
imagético (imaginal counterplay) de reprodução puramente metafóri-
ca acontecendo por trás das cenas do tratado de parentesco
morganiano – como as intrigas metafóricas do Rei e da Rainha no
xadrez vis-à-vis as manobras claras e diretas de seus “exércitos”.
Assim, o casamento dos primos cruzados, por mais classificatório
que seja, é uma resposta fácil, uma solução apressada, para o dilema
colocado pelo argumento de Lévi-Strauss, algo assim como um com-
prometimento exagerado com a premissa. Uma relação de parentes-
co motivada por um atrator estranho não tem um resultado estrutu-
ral mais certo ou previsível que uma jogada no xadrez. Ambos são
estocásticos, determinados tanto pela sua própria presença quanto
por outros fatores em jogo. Os Daribi, que chamam seus primos de
‘hai’, dizem que são “exatamente iguais aos irmãos”, mas com uma
diferença importante. Já que pertencem a diferentes grupos de par-
tilha de bens, os ‘hai’ masculinos devem trocar pagamentos contí-
nuos de bens para resgatar as demandas de direito de casamento
levirático que ambos compartilham em relação à herança das espo-
sas uns dos outros.
Só encontrei um caso de casamento de primos cruzados de ver-
dade em Karimui; isso foi em Hagani, um lugar onde morei. Um
homem de ‘Sora’ exigiu seus direitos sobre uma mulher Hagani sol-
teira. Durante dias ele ficava vadiando nos arredores da maloca gri-
tando: “Ela é minha prima cruzada, porque não posso casar com ela?”.

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O xadrez do parentesco e o parentesco do xadrez

Finalmente a gente se cansou tanto disto que simplesmente


o deixamos tê-la (como esposa).
Mas vocês não deveriam bater em ambos e dar-lhes uma dura lição
sobre como eles são pessoas ruins?
Bom, claro, idealmente sim; mas naquele momento nossas relações
com ‘Sora’ se tornaram tão incertas que decidimos desistir.

Entre os Usen Barok “matrilaterais” de Nova Irlanda a situação


é mais complexa; eles chamam esse tipo de casamento de “casamen-
to com o tau (verdadeira irmã do verdadeiro pai) ou gogup (primo
cruzado)”. Os moradores das duas aldeias ao norte, falantes de um
dos subdialetos, colocaram a questão do seguinte modo: “Os ances-
trais jamais teriam tolerado outra coisa que a adesão rigorosa à regra de casa-
mento com o tau ou gogup; no entanto, com a erosão dos valores morais nestes
tempos modernos, tudo é menos rígido, particularmente nas aldeias ao sul”.
Entre as três aldeias ao sul, falantes de outro subdialeto e onde
eu morei, eles contestaram:
Os ancestrais jamais teriam tolerado algo tão incestuoso quanto o
casamento com o tau ou gogup; no entanto, agora que os preceitos
morais estão menos rígidos, o pessoal de Belik e Lulubo está livre
para seguir seus desejos. Isso é particularmente verdadeiro no caso
da aldeia Lulubo chamada ‘Giligin’, onde todos casam com seus
tau ou gogup.

Como eu tinha bons amigos na “Ilha de Giligin”,5 como eu a


chamava, decidi checar as coisas. Felizmente, um deles não era ape-
nas fluente em inglês, mas também alfabetizado; com sua ajuda cole-
tei uma genealogia completa de Giligin com cinco gerações de pro-
fundidade e examinei cada um dos casamentos com cuidado. Mes-
mo levando em consideração o assim chamado parentesco
“classificatório” ou cálculo de parentesco por categorias, não conse-
gui encontrar nenhum caso de casamento com o tau ou gogup em
todo o conjunto. Quando terminei, disse para meu colega: “Agora
posso ver que cada um dos casamentos em Giligin se deu com um tau ou
gogup”. “Sim”, ele respondeu, sorrindo; “como eu te disse, nós aqui em
Giligin somos gente estritamente moral”.

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Roy Wagner

Falando em atratores estranhos, o único caso de casamento com


um primo cruzado direto que eu encontrei em toda a área Usen foi
na própria aldeia onde eu morei, Bakan, precisamente na área que
negava categoricamente tal prática. Tratava-se de um de meus me-
lhores amigos que morava ao lado de minha casa. Quando lhe pedi
para explicar o caso, ele disse: “foi uma questão de pura casualidade, eu
não tive nada a ver com isso”. Em seguida, esticando-se ao máximo, e
ele tinha uma altura considerável, ele explicou: “Sou conhecido como
um dos homens mais morais desta área toda”.

***

O xadrez é um jogo no qual há uma única díade, aquela dos


dois jogadores que se revezam para fazer suas jogadas, assumindo o
papel de uma das seis peças com funções específicas, como as atri-
buições profissionais de um sistema de castas militar. O parentesco
não é um jogo, é a vida para aqueles envolvidos nele e um trabalho
sério para aqueles que o estudam. Outra grande diferença é que no
parentesco, ainda que idealmente organizado em díades, cada parti-
cipante está envolvido em muitas relações diferentes ao mesmo tem-
po. E ainda que o envolvimento seja simultâneo, a partir do momen-
to do nascimento e mesmo antes, cada participante parente deve
aprender a diferenciar o que termina sendo um modo único, difuso
e englobante de relacionamento, e adaptar sua ação às especificidades
de cada papel na relação (relationship role) determinado pela cultura.
Não há nenhuma analogia direta disso no xadrez que é, em
contraste, digital no modo de jogar. Tanto Radcliffe-Brown quanto
Bateson mostraram que a adaptação do relacionar-se no parentesco
está limitada a três modos genéricos de imitação analógica, cada qual
sendo uma variação sobre um mesmo tema, o de relacionar-se ade-
quadamente. Esses são 1) relações de respeito (de deferência), como
aquelas de adoração, nas quais as obrigações entre o mais novo e o
mais velho são visivelmente exageradas; 2) relações de evitação, nas
quais a referida evitação ou ausência de relação entre as partes cons-
titui a substância da relação, ela mesma; e 3) relações jocosas, nas

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O xadrez do parentesco e o parentesco do xadrez

quais a performance de comportamentos ou de falas inapropriadas,


ou ambas, oferecem ao outro a opção de aceitação ou de rejeição, e
assim da afirmação ou da negação da vinculação preferida. Essas três
modalidades dividem o jogo dos papéis de parentesco entre elas, e a
necessidade de diferenciar entre elas é uma das primeiras coisas que
uma criança aprende.
A contraposição entre a suposta falta de seriedade, nas relações
jocosas, e o fingido exagero de seriedade, nas relações de respeito ou
deferência, nos leva à questão polêmica do propósito ou do projeto
geral do parentesco. Respondê-la não é um objetivo fácil (questioná-
la é ainda pior), pois não é nem estrutural nem funcional, e não
surpreende descobrir que ela depende do mesmo paradoxo de dupla
proporção – o atrator estranho –, que inferniza seu entrelaçamento
nos assuntos cotidianos. O parentesco é feito de “conexões
estabelecidas entre os vivos em nome dos mortos” e, ao mesmo tem-
po, “conexões entre os mortos em nome dos vivos” (Wagner, 2001),
e, portanto, nem “vida” nem “morte” podem nos oferecer uma res-
posta que não seja desdenhosa. “Num enigma cuja resposta é ‘xa-
drez,’” escreveu Jorge Luis Borges (1998), “qual é a palavra que
nunca é mencionada?”.
Em outras palavras, em vez de soluções, poderíamos começar a
adivinhar no que consiste o enigma, ele mesmo. O enigma também não
é fácil, embora nos faça lembrar as últimas linhas de um soneto escrito
por Edna Saint Vincent Millay (1934) sobre os antigos egípcios:
Their will was law, their will was not to die.
And so they had their way; or nearly so.6

Ainda assim, obtemos algumas pistas na obra de Richard


Huntington entre os Bara de Madagascar e na obra de Gregory
Bateson entre os Iatmul do Rio Sepik em Papua Nova Guiné. A mor-
te, para os Bara, consiste na cristalização dos relacionamentos e do
status adquiridos na vida – o próprio fato ou a matéria da morte ame-
aça os vivos com uma espécie de perigo de congelamento profundo,
uma absorção contagiosa da espontaneidade da vida numa matriz
perene de perfeição cristalina. (“O perfeito”, como diz o ditado, “é o

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Roy Wagner

inimigo do bom.”). Diante da presença da morte, os Bara convenci-


onalmente fazem todo o possível para reafirmar a centelha da vida;
eles estouram uma boiada na aldeia, criam confusão, ficam doida-
mente bêbados com rum, e os adolescentes em idade de casar se
reúnem na mata, cantam canções obscenas e transam promiscua-
mente. Se Millary tivesse escrito um soneto sobre as práticas Bara,
ela poderia tê-las chamado “morte acalentada” (“death warmed over”).
No entanto, o que os Bara têm a nos dizer sobre as relações de
parentesco tem pouco a ver com humor, seriedade ou evitação des-
prezível; ante a desolação da mortalidade e com o que aprendemos a
chamar de “culpa do sobrevivente”, eles fazem de conta – fazem de
conta com (verdadeira) violência, hilaridade, embalo alcoólico e êx-
tase sublime do (“Ah, se minha mãe me visse agora”) coito ilegítimo
(“adultério de Borgonha”, como um amigo meu costumava chamá-
lo – um bom nome para uma nave espacial).
E essa é uma das chaves – o “poderia ter sido” ou a “filosofia do
como se” – do enigma com o qual supomos estar lidando; não há
relação de parentesco na terra que não seja em certo ponto uma questão de fazer
de conta (ainda que no xadrez tudo isso seja fatalmente sério), uma arte
sútil que toda criança aprende desde muito cedo. Não há tal coisa como
parentesco não fictício; quando o faz de conta desmorona, também des-
morona o parentesco, e temos algo como uma lei de ferro do parentesco:
o parentesco real não é o que está acontecendo em nenhum pretexto que de
outro modo possa ser confundido com relações de parentesco.
Nem a morte mesma é o que se achava que seria, eis a lição no
Naven de Gregory Bateson. Mesmo sendo um contraefeito da dualidade
integral da vida Iatmul, algo que Bateson destacou e denominou
cismogênese, o rito fúnebre honorífico dos Iatmul é um bom exemplo
de obviação. Essa é uma alternativa altamente contraintuitiva em re-
lação ao sentido usual de completude ou consumação de uma vida
humana, uma negação positiva na qual o resultado final não é nem o
sujeito (“vida”) nem sua antítese (“morte”). O ser humano obviado
(“Tod und verklärung”, “Morte e transfiguração”, como o chamou
Richard Strauss) não está nem vivo nem morto.

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O xadrez do parentesco e o parentesco do xadrez

Na descrição de Bateson, todos os apetrechos simbólicos da vida


do falecido e suas realizações são reunidos sob a forma de uma figu-
ra humana substituta, uma efígie que representa o falecido.
Esse boneco foi montado por membros da metade
iniciatória do morto. Era uma demonstração exagerada da
grandeza de sua metade, e quando o boneco ficou pronto,
todos os homens, de ambas as metades, reuniram-se em
torno dele. Os membros da metade oposta apareceram um
por um para reivindicar feitos equivalentes. Um homem
disse: “Tenho uma ferida aqui no quadril, onde os (homens
de) Kararau me atingiram. Tomo para mim esta lança”, e
pegou a lança que estava apoiada no quadril do boneco.
Outro disse: “Matei Fulano. Tomo para mim esta lança”, e
assim por diante, até que todos os emblemas de bravura
foram removidos (Bateson, 2006, p. 202).

As práticas do ritual fúnebre Iatmul não apenas respondem ao


enigma da vida na morte e da morte na vida; elas o obviam. Obviação
é o destino dos símbolos, sendo para eles tão natural como a morte
para os humanos. A palavra “obviar” significa não apenas “tornar
óbvio aquilo que antes era obscuro”, mas também, segundo sua defi-
nição no dicionário (em inglês, para obviation), “prever e descartar.”
Prever a morte na vida é descartar a vida na morte. No que diz respeito ao
papel de Bateson em relação a isso, como antropólogo, bem podería-
mos concluir que “o historiador narra a história, a literatura interpreta
a história, mas o antropólogo obvia a história”, tornando-a inócua
como se, em primeira instância, jamais tivesse sido. O parentesco não
é obviado na forma como nós o entendemos, mas na forma como ele
nos entende. Ainda que “underdetermine” talvez seja uma palavra me-
lhor que “understand”, como no soneto de Millay.
Isso traz uma virada nova para a nossa questão, pois não temos
nada em todo o nosso repertório epistemológico que sugira que algo
tão inerte e abstrato como “o parentesco” possa ter algum poder de
compreensão, nem que alguém possa, como o fez Ingmar Bergam
no filme O sétimo selo, “jogar xadrez com a morte” (shakspielen med
döden), ainda que seja exatamente isso o que os Iatmul fazem no seu
ritual fúnebre. Os Iatmul são “compreendidos” (“understood”) tão bem

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Roy Wagner

nesse ritual que não sobra nada pelo qual possa valer a pena viver ou
morrer. De modo mais geral, no que diz respeito ao parentesco, nos-
sos padrões de pensamento não estão apenas incorporados (embodied)
nas coisas nas quais pensamos (eventos, circunstâncias, objetos), mas
elas também correm o perigo de serem “entendidas” bem demais ou
não suficiente bem por nossos pais – que é o mais próximo que po-
demos chegar ao parentesco encarnado (kinship incarnate) – e, portanto,
se desenvolverem de modo absurdo. (Os descendentes de um verda-
deiro antropólogo sempre correm algum perigo de se desenvolverem
de modo absurdo – mas, então, considerem a fonte.)
Além disso, é precisamente essa inversão de sujeito e objeto, o
ergativo, o atrator estranho, que vimos trazer tanto o xadrez quanto
o parentesco do entalhe (“out of the woodwork”) para o mundo da
realidade vivida, especialmente quando consideramos não apenas o
que os constitui, mas o que os fortalece (empower).
Metáforas falam para você; elas têm agência e mentes próprias
(mesmo admitindo que sejam um tanto esquizofrênicas). O xadrez
faz suas mãos se moverem com uma paciência e destreza que nem
um amante toleraria. No que diz respeito às peças de xadrez, elas
mesmas: “Não é a mão de Deus que nos move, mas o deus da mão”. O
parentesco que nos “compreende” (“understands”) melhor do que
nós podemos compreendê-lo e o xadrez que faz com que o jogador
entre em estados “não naturais” de concentração intensa são parte
de uma retroalimentação (“feedback loop”) englobante de dupla pro-
porção que se estende para muito além dos limites da “sociologia da
mata” e dos torneios de grandes mestres. Trata-se de um processo
que também envolve as propriedades significativas da linguagem –
tanto os modos pelos quais a língua se relaciona consigo mesma quanto
os modos pelos quais os falantes da língua se relacionam uns com os
outros –, e esse entrelaçamento faz parte de nossa herança tanto
quanto a infraestrutura de dupla hélice faz parte do DNA.
Sempre houve uma suposição tácita entre os que estudam o
parentesco de que seu tema está de algum modo relacionado à neces-
sidade de solidariedade humana – famílias, vínculos, grupos e esse
tipo de coisas. E embora seja uma ideia reconhecidamente

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O xadrez do parentesco e o parentesco do xadrez

“funcionalista”, relacionada de algum modo com a noção reconhe-


cidamente “estruturalista” de que a metáfora ou o tropo é a fonte e o
fornecedor exclusivo de significado numa língua, as conexões ne-
cessárias para aproximar ambas se estendem para além dos limites
de disciplinas e requerem um “pensar fora dos padrões convencio-
nais” (“thinking outside of the box”).
Assim, bem poderíamos começar do zero. Nunca encontramos
um coletivo humano que não possuísse tanto uma língua falada quan-
to um modo de se relacionar expresso através de uma terminologia
de parentesco. Portanto, podemos concluir que ambos são, de certo
modo, necessários para a existência e a composição da espécie Homo
sapiens, a espécie que, diga-se de passagem, foi responsável pelo con-
ceito de espécie em primeiro lugar. (Nós somos os grandes classificado-
res do mundo e nos classificamos como tais.)
Mas o sentido é o “coringa” (“wild card”), por assim dizer, uma
“caixa” (“box”) que deve necessariamente pensar fora de si mesma –
reclassificar-se para além da habilidade de classificar o que está fa-
zendo no processo de fazê-lo. Ninguém pode dizer exatamente o que
uma metáfora nova ou inovadora – uma reinvenção da língua como
o foi – significa, até que, ou a menos que, ela já esteja “cansada” e
tenha se classificado, ela mesma, entre os significantes familiares e con-
vencionais que compõem as propriedades lexicais da linguagem.
Trata-se de um modo muito enfadonho de colocar o assunto, e
já foi dito muitas vezes antes. Mas o que há de dizer sobre isso é que
o tropo ou a metáfora sempre surge ao fazer conexões cruzadas im-
prováveis e não convencionais no léxico, criando uma identidade en-
tre duas partes distintas da língua, assim como uma nova estratégia
no xadrez avança ao se fazerem combinações improváveis entre pe-
ças e jogadas (um knight-fork, por exemplo, uma de minhas favori-
tas junto com, é claro, o adultério de Borgonha). Para dizê-lo sucin-
tamente, a metáfora é a estratégia de cruzamento (mating) e significação da
linguagem, a forma necessária na qual a linguagem se relaciona consigo
mesma. Do mesmo modo, a terminologia de parentesco, o código de refe-
rência necessário das relações de parentesco (sem o qual ele não se
reconheceria pelo que pretende ser) é a maneira pela qual os falan-

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Roy Wagner

tes de uma língua se relacionam entre si. Ambos são parte integran-
te da reprodução da linguagem através de seus falantes, e a reprodução de
falantes, eles mesmos, por meio da linguagem.
Um dos melhores e mais famosos adágios de Gregory Bateson
era “Você não pode não relacionar-se”. Isso é inegavelmente certo,
mas infelizmente leva à falácia de assumir a realidade de “relações”
ingênuas e espontâneas, uma espécie de dano colateral deixado pela
era “psiquiátrica” dos anos 1970, quando se podia de fato obter di-
nheiro do governo para fingir esse tipo de coisa. Até para os jogado-
res de xadrez a necessidade de relações face a face tem sido subverti-
da pela Internet. Relacionar-se, que significa “colocar os lados jun-
tos”, é básico e essencial, e define a condição humana tanto dentro
quanto fora do tabuleiro de xadrez. Há uma grande diferença aqui.
Devemos psicoanalisar o cavaleiro para descobrir “como se sente” ao
mover dois quadros para cima e um para o lado? Acho que não.
O xadrez coloca o termo da moda “relação” em destaque. Vistos
do alto, os movimentos possíveis do cavaleiro descrevem um
octógono, mas infelizmente um cavaleiro real só pode acessar uma
dessas posições por vez. Os movimentos do bispo descrevem uma
matriz angular – a torre –, um sistema de coordenadas cartesiano,
mas apenas o tabuleiro mesmo descreve todos esses de uma só vez.
Não se trata necessariamente do quebra-cabeça do tipo cubo de Rubix
bidimensional de quatro quadros (de fato 8 x 8) que aparenta ser,
pois é igualmente concebível num formato diagonal e também pode
ser visualizado como uma série de octógonos de cavaleiro entre-en-
caixados. Cada jogador, ou “lado”, encara uma perspectiva especular
de seu layout estratégico, “consulta” o espelho de xadrez relacional,
com a singular exceção das duas peças com gênero explicitado, a
Rainha e o Rei.
Em todo caso não há respostas fáceis para a questão por que os
seres humanos consultam espelhos; talvez seja a forma de
contrainteligência própria da natureza. Pois aquele que você vê no
espelho tem os lados invertidos, assim como a dianteira e a traseira,
e ninguém jamais te verá dessa maneira. É claro que isso oferece
vantagens ao cruzamento (mating), em ambos os sentidos do termo;

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O xadrez do parentesco e o parentesco do xadrez

e, levando tudo em consideração, é a visão do xadrez de você mes-


mo: “faça a jogada e cruzamento (mate) em dois (movimentos)”.
(Me olho rapidamente no espelho antes de sair, e assim o faz minha
namorada; e, mesmo que o encontro em si não dê em nada, eles dois
se divertem juntos – quase como se estivessem jogando um jogo.)
Mas quem são esses misteriosos eles que acabam de nos roubar nossa
noite? Prossigamos.
A verdadeira diferença entre um “lado” e outro, ou entre jogo e
realidade, aparece com o realinhamento de gênero no que diz respeito
à lateralidade. Normalmente no jogo da vida um indivíduo tem ape-
nas um gênero e dois lados, a direita e a esquerda. No xadrez, no
entanto, cada jogador joga num lado só, mas tem dois gêneros, um
Rei e uma Rainha, um à esquerda e outro à direita. No contexto do
jogo, em contraposição à vida real, os jogadores não são verdadeira-
mente seres humanos, mas estão jogando os papéis do que tenho
chamado de antigêmeos (Wagner 2001, Capítulo 4), uma subvariante
de propósitos cruzados (cross-purposed) da forma humana que de al-
guma maneira é necessária para a nossa existência. Eles fazem tudo
aquilo que nós não podemos, e nós fazemos tudo aquilo que eles não
podem (“Eles lançam nossos dados, nós lançamos os deles”) (Wagner,
2011), ou nas palavras da canção tema de Mary Tyler Moore: “they
can take a nothing date and make it seem worthwhile”.
Normalmente não há tal coisa como prova no xadrez; há regras,
jogadas e bastante execução. (Imaginem Robespierre tentando substi-
tuir uma peça chamada “A Guilhotina” pelo Rei e pela Rainha.) Mas
a prova dos antigêmeos no xadrez é de que o Rei e a Rainha troca-
ram seus papéis normativos – a Rainha assume o papel normalmen-
te atribuído ao Rei na vida real: fazendo jogadas legais e elaborando
a estratégia; e o Rei exerce o direito de posição e status social, pois ele,
pela sua posição, possui o valor do jogo em si.

***

O jogo de xadrez, é claro, não tem nada a ver com cruzamentos


(matings) humanos, jogos de poder ou arranjos domésticos, pois,

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Roy Wagner

mesmo em seu próprio mundo de fantasia, ele pertence ao topo da


cadeia alimentar política. Repleto de fantasias de casas reais e seus
jogos de poder, é todo sobre poder e o que deve ser feito para manter
o poder enquanto se controlam os movimentos dos outros. O paren-
tesco, é claro, não tem nada ver com isso… ou tem? No momento
em que se torna um objeto de estudo antropológico já é quase uma
abstração matemática, um gerador de eventos que o seu parente co-
mum dificilmente reconheceria (“Quem, eu? Um primo cruzado? Ja-
mais na vida. Eu sou um primo de beijinhos, é só perguntar para a
minha mãe, tia gêmea”). Ainda assim, como ocorre nas crises do-
mésticas mais corriqueiras, trata-se de uma negociação na margem
de lucro de controle e credibilidade. Pensando nisso, nossa reação usual
a um gerador de eventos não tem nada a ver com o que ele é ou
como ele funciona. Dogen, um sábio japonês do século XII, escre-
veu: “What is happening here and now is obstructed by happening
itself; it has sprung free from the brains of happening”.
Numa manhã de 1989 eu estive ocupado com o que pensei con-
figurar uma grande descoberta na época: que o incesto não é um
objeto tabu ou uma forma de mau comportamento, como havíamos
pensado, o oposto do parentesco, mas antes seu perfeito apositivo. É o
conteúdo sem forma de todas as relações de parentesco em
contraposição à forma sem conteúdo do modo como têm sido des-
critas e estudadas. Transportado, comecei a esboçar o primeiro re-
trato de grupo dos antigêmeos, que chamei “the twincest” (“o
gemeocesto”), “the icon of incest” (“o ícone do incesto”) e “the mirror-
gender symmetries” (“as simetrias do espelho-gênero”).
Mas o tempo realmente voa quando você está se divertindo, e
percebi que tinha me esquecido de revisar meu correio naquela ma-
nhã. Quando o fiz, encontrei um copião do manuscrito “The Incest
Passions”, de Jadran Mimica (Mimica, 1991), o melhor estudo e de
longe o mais articulado que foi concebido até agora sobre o tema do
incesto como uma fenomenalidade sui generis. Mas essa descoberta,
como Mimica bem sabia, não vem ao caso quando falamos que a
prática de fato, regular e mesmo compulsiva de relações manifesta-
mente incestuosas em todas as sociedades modernas, no âmbito das

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O xadrez do parentesco e o parentesco do xadrez

relações familiares mais próximas, excede todas as expectativas ra-


zoáveis. Para entender o que isso significa e por que continua, espe-
cialmente entre pessoas altamente qualificadas em sociedades indus-
triais modernas, teríamos que ter não apenas um tabu do incesto
(incest taboo) mas também um “outcest taboo”. E se esse “outcest taboo”
funciona tão mal quanto parece ser o caso do tabu do incesto, então
todas as racionalizações ou irracionalizações feitas para sustentá-lo
também não valeriam nada, pois não é de pensar que se trata o com-
portamento familiar. Trata-se de controle.
O parentesco, como a história, o processo natural e a estratégia
da máquina, pressupõe a lógica da consequencialidade, ou causa e
efeito, no acontecer das coisas. No entanto, a relação é um indício de
algo completamente diferente, parecendo mais com a antilógica da
ironia, na qual nos é dado primeiramente o efeito, como no cenário
de abertura ou “armação” de uma piada, e depois somos surpreendi-
dos com a improvável causalidade do desfecho (punch line). Mas,
mesmo colocado desse modo, não deixa de ser algo singular, uma
piada sobre si, pois piadas e relações – basicamente chaves inglesas
jogadas na maquinaria do pensamento – não se enquadram na con-
sistência de pensar as coisas de trás para frente (como se tivéssemos
descoberto o sistema perfeito para o pensamento não sistemático),
mas carregam uma desqualificação inerente na estratégia de seu di-
zer ou resolução (working out). Elas celebram “the uncanny” (o estra-
nho). É improvável, a partir desse ponto de vista, que as relações,
assim como o incesto e o “outcest” dos quais dependem, tenham tido
alguma vez um início – seria como procurar a origem de uma piada
(Wagner, 2001). As relações só foram palco das atenções mais tarde
na forma de “parentesco”, quando as racionalizações de causa e efeito
foram desenvolvidas para convertê-las em linhas de descendência,
genealogias, relações de afinidade e assim por diante, pois para que
servem os parentes sem nada para aparentar (for what good are relatives
with nothing to relate)? Não é apenas difícil, mas quase impossível para
um antropólogo imaginar como era o acasalamento entre os assim
chamados povos pré-culturais sem pensar imediatamente no “casa-
mento”, nem que seja apenas para projetar um padrão que possa ser

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Roy Wagner

negado convenientemente por um antitermo tal como não casamen-


to. É inevitável que isso leve o pré-historiador, outrora um indivíduo
são e sensato, a projetar uma dessas estratégias clássicas do “homem
natural”:
Antes dos seres humanos, como os conhecemos, evoluírem, eles se
acasalavam através de um sistema primitivo que poderia ser
chamado de “não-casamento”, tinham uma prole inconcebível
através de uma forma do que hoje conhecemos como disseminação,
que deixava todos se sentindo vazios e sem raízes. Apenas agora,
retrospectivamente, é que podemos traçar seus movimentos na
lama, usando lascas e ferramentas de pedra que mal arranham a
superfície.

O xadrez, é claro, é puramente “simbólico” (diga isso a um gran-


de mestre e, em seguida, saia da frente), mas o modelo de parentesco
que tenho revisado aqui é algo mais que isso. Ele não tem necessari-
amente uma origem nem um término, nem que seja pelo fato de que
seus significados e suas relações, como tenho mostrado, são tecidos
mútua e retroativamente a partir da mesma matriz geradora que te-
nho chamado de atrator estranho ou quiasma de dupla proporção. Isso
teria que incluir tanto o tabu do incesto quanto sua variante do outcest,
a arbitrária “regra, porque tem de haver regras” sobre a qual Lévi-
Strauss afirmou todo o argumento do incesto-cum-reciprocidade nAs
estruturas elementares do parentesco. Mas vimos que as interdições e as
reciprocidades desse tipo produzem tanto a proibição quanto a coisa
proibida (ou seja, tanto a prática do incesto quanto sua proibição) a
partir do mesmo fio condutor e com o mesmo jeito generoso com o
qual os Daribi tanto afirmam quanto negam a “irmandade” dos pri-
mos cruzados, e os Barok inadvertidamente tanto praticam como
proíbem o casamento direto de primos cruzados, o que resulta em
ardor moral respeitável e autocontradição em cada caso. Claro, quando
lidamos com um atrator estranho, a tradicional exceção que prova a
regra se converte rapidamente na regra que prova a exceção, então é
claro que tem que existir algum povo (“em algum lugar”) que segue
a regra de casamento entre primos cruzados diretos precisamente
como Lévi-Strauss o tinha prognosticado. Em 1964 eu passei alguns
dias com um povo assim, os falantes de Yagaria da aldeia Lagaiu, ao

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O xadrez do parentesco e o parentesco do xadrez

leste das terras altas da Papua Nova Guiné. Muito cuidadosamente,


consultando um grupo de anciões, consegui elicitar sua terminolo-
gia de parentesco, correlacionando-a exaustivamente com o registro
genealógico e determinando que eles se casavam seguindo um regi-
me estrito de casamento de primos cruzados bilaterais (eles denomina-
vam a categoria de linhas casáveis de devo’a). Ainda que não tenha
permanecido no lugar tempo suficiente para ver como o “sistema”
funcionava na prática, aposto que funcionava, pois os considero de
raciocínio muito agudo.
Onde mais na ciência podemos encontrar irrelevâncias tão pi-
carescas? Nosso herói Gregory Bateson desenvolveu a teoria do
“double-bind” da esquizofrenia a partir do modelo da cismogênese de
dupla proporção que ele descobriu no seu trabalho entre os Iatmul.
Embora tenha permanecido em voga entre os psiquiatras por um
tempo bem reduzido e logo perdido território para outras terapias
mais “clinicamente corretas”, sua teoria imitava os sintomas da
esquizofrenia como nenhuma outra coisa no mundo (ninguém ja-
mais conseguiu curar a esquizofrenia nem o casamento de primos
cruzados). Muitas vezes, o melhor que podemos fazer é imitar. Há
rumores, por exemplo, de que nosso sistema solar (o sol e seus cor-
pos satélites) se desenvolveu pelo acréscimo gravitacional a partir de
uma nuvem nebulosa em forma de um disco primordial. Nesse caso
a gravidade seria o primum mobile e a maior parte da gravidade no
sistema solar é investida no próprio sol. Mas é preciso parar um
momento, pois há uma outra proporção nessa cismogênese, já que a
maior parte do momento angular (que é a contraposição necessária da
gravidade) no sistema solar investe nos planetas, satélites, asteroides,
e até mesmo na tênue nuvem de Oort. Daí que outra “origem” para
o todo é uma possibilidade real, que é aquela segundo a qual o sol
teve uma vez uma estrela companheira localizada na vizinhança
orbital de Júpiter, uma estrela cuja explosão redistribuiu o momento
angular do sistema sob o padrão que hoje encontramos. Já que ne-
nhuma hipótese exclui a outra, a questão de qual é a “correta” é tão
trivial e inconclusiva quanto a questão de quão precisa a relação de
primos cruzados deveria ser formulada, ambas as questões reque-
rendo um atrator estranho. O problema em pensar as coisas desse
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Roy Wagner

modo, e do atrator estranho, se posso ser tão ousado, é o problema de


autoabsorção e autoenvolvimento agudo; é simplesmente que um sistema
formulado desse modo não tem a habilidade de sair de si mesmo e de se
ver como aquilo que é.

Notas
1
Nota do Editor (NE): Esta conferência, apresentada no Seminário Antropologia de
Raposa, está sendo publicada simultaneamente no Hau: Journal of Ethnographic
Theory, v. 1, n. 1, 2011.
2
Nota do Revisor (NR): Pawns são peões, mas pawnshop é uma loja de penhora na
qual é possível encontrar objetos os mais variados, não resgatados de sua penhora e
postos à venda por preços baixos.
3
Nota do Tradutor (NT): Noruegueses e escandinavos.
4
NR: Back to back significa contínuo ou consecutivo, mas o jogo de palavras aqui
também se refere ao significado literal de coisas posicionadas de costas uma para a
outra.
5
NR: Há aqui uma brincadeira com Gilligan’s Island, um popular programa da tele-
visão americana dos anos 1960.
6
“Sua vontade era lei, sua vontade era não morrer / E assim eles tiveram seu cami-
nho; ou quase.”

Referências
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retrato compósito, realizado a partir de três perspectivas, da cultura de uma
tribo da Nova Guiné. Tradução de Magda Lopes. 2. ed. São Paulo: Ed. USP,
2006.
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of the Culture of a New Guinea Tribe Drawn from Three Points of View.
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36
O xadrez do parentesco e o parentesco do xadrez

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International African Institute, v. 13, n. 3, p. 195-210, 1940.
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WARD, David S. The Sting. New York: Universal Pictures, 1973.

Recebido em: 29/09/2011


Aceite em: 10/10/2011

ILHA
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37
A antropologia reversa e “nós”:
alteridade e diferença¹

Sônia Weidner Maluf


Universidade Federal de Santa Catarina, Florianópolis, Brasil
E-mail: soniawmaluf@gmail.com
Sônia Weidner Maluf

Resumo Abstract

Este artigo busca dialogar com a noção This article aims at a dialogue with Roy
de antropologia reversa, do antropólo- Wagner’s notion of reverse anthropology,
go Roy Wagner, procurando repensar a thus rethinking the dichotomy “us and the
dicotomia “nós e os outros”, princípio other”, the foundation of anthropological
da prática e da reflexão antropológicas. practice and reflection. Taking as its focus
Tendo como foco a antropologia das the anthropology of complex societies, or
sociedades complexas, ou a antropolo- the anthropology of the contemporary, and
gia do contemporâneo, e as pesquisas this author’s own research in this area, we
realizadas pela autora nesse campo, seek to explore the inventive dimension of
busca-se discutir a dimensão de these anthropologies and the renovation of
inventividade e de renovação do cam- the anthropological field brought about by
po antropológico dessas antropologias. them. Inventing and performing what is
Inventando e performatizando o que é traditionally an anthropological
tradicionalmente uma convenção an- convention – the notion of the other and of
tropológica, a noção de outro e a noção alterity – these anthropologies make explicit
de alteridade, essas antropologias tor- the anthropological process through which
nam explícito o processo de invenção, the subjects we work with as others are
pela antropologia, desses sujeitos com invented as homogeneous unities; in
quem trabalhamos como outros como addition to demonstrating, as feminist
unidades homogêneas. Além de mos- anthropology had done, how each of these
trarem, como o fez a antropologia fe- places include their own reversibilities and
minista, como cada um desses lugares internal dialectics – the differences in
inclui suas próprias reversibilidades e difference – in a inverse direction to
dialéticas internas – as diferenças na conventional ethnographic works which
diferença, numa direção inversa a de seek unity and homogeneity within the
trabalhos etnográficos convencionais “cultures” under study.
que buscam a unidade e a
homogeneidade no interior das “cultu- Keywords: Reverse Anthropology. Complex
ras” estudadas. Societies. Alterity and Difference. Feminist
Anthropology.
Palavras-chave: Antropologia reversa.
Sociedades complexas. Alteridade e
diferença. Antropologia feminista.

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volume 12 - número 1

40
A antropologia reversa e "nós": alteridade e diferença

S cott Head e eu somos os únicos não etnólogos ameríndios ou


melanésios a participar do Seminário Antropologia de Raposa, e
justamente a nossa é a mesa que abre o Seminário, depois da confe-
rência de Roy Wagner. Espero que isso seja um bom augúrio para a
realização de um diálogo que nem sempre é fácil nem tranquilo, mas
extremamente pertinente, sobretudo pensando na importância das
questões trazidas pela obra de Roy Wagner, cujo impacto sobre a
antropologia transcende as etnologias melanésia e ameríndia. Mi-
nha apresentação, que tem como título A antropologia reversa e “nós”
(ênfase nas aspas), vai tentar pensar esse diálogo a partir de uma
reflexão sobre esse princípio antropológico que é a relação entre nós
e os outros, e repensá-la (assim como a própria ideia de uma antro-
pologia reversa) a partir de uma antropologia do próximo, de nossas
próprias sociedades.
Eu me inspiro evidentemente aqui no debate não tão recente
sobre o “grande divisor”, tema que percorre a antropologia de forma
mais explícita pelo menos desde os anos 1960, mas que foi retomado
mais recentemente de diferentes maneiras, seja na atualização da
centralidade da dicotomia nós e eles no trabalho etnográfico, seja na
discussão crítica sobre as divisões de áreas no estudo etnográfico. No
caso da antropologia brasileira, essa divisão recai sobretudo entre as
etnologias ameríndias e o estudo das chamadas sociedades comple-
xas (Goldman e Lima, 1999).
A antropologia contemporânea tem vivido uma efervescência
teórica nos últimos anos e certamente os trabalhos de Roy Wagner,
que teve apenas muito recentemente um de seus livros traduzido e
publicado no Brasil, fazem parte dessa efervescência. Acho que po-

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volume 12 - número 1

41
Sônia Weidner Maluf

demos agregar a isso os estudos no campo do perspectivismo


ameríndio, o projeto de uma antropologia simétrica e outras aborda-
gens que têm trazido um novo ar sobre a disciplina e resgatado a
potência criativa e consequentemente a potência política da antro-
pologia e da própria prática etnográfica. Existem outras dimensões
dessa transformação do campo antropológico de modo geral que não
vou ter tempo de desenvolver aqui, mas que trazem outras linhas de
reinvenção da antropologia, entre elas a perspectiva crítica da antro-
pologia feminista, sobre a qual vou falar mais adiante. Um dos resul-
tados desse movimento todo é o de que os modos de fazer e aprender
antropologia hoje não são mais os mesmos e precisamos (não só
como pesquisadoras, mas também como docentes) levar em consi-
deração essas transformações em nossas práticas cotidianas.
É interessante pensar em como essas críticas teóricas e
conceituais, esse novo discurso antropológico e sua reinvenção teó-
rico-conceitual se por um lado comportam um grau de abstração
nem sempre muito comum na antropologia (veja-se a crítica de Louis
Dumont sobre o tema), por outro elas têm no trabalho etnográfico
concreto e no “campo” certo princípio elementar da prática e do co-
nhecimento antropológico e sua diferença em relação às outras ci-
ências humanas. É também o campo o que pode legitimar as novas
invenções conceituais e teóricas. Um exemplo é o escrutínio sobre o
conceito de sociedade a partir do que as etnografias sobre a Melanésia
trouxeram: é porque não existem sociedades, nem a formulação de
um conceito de sociedade, na Melanésia que é possível fazer uma
crítica ao conceito de sociedade na antropologia, postular sua
obsolescência e mesmo sua falência como um conceito útil para a
antropologia. De certo modo, o velho tema filosófico da dialética entre
pensamento e mundo se recoloca e se atualiza na prática antropoló-
gica: os conceitos (e as teorias) são formatados pelo mundo que bus-
cam descrever ou conhecer, assim como esses mundos não podem
ser conhecidos sem a ação prévia desses conceitos (Butler, 1998 e
2000). Mas não apenas a antropologia como também outros campos
têm discutido a dependência mútua entre a representação e a cons-
trução do mundo.2

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A antropologia reversa e "nós": alteridade e diferença

É o campo e o trabalho etnográfico que legitimam as novas ques-


tões trazidas pela antropologia, que calibram as possíveis transfor-
mações no interior da disciplina e que autorizam os diálogos possí-
veis com conceitos e teorias advindos de outras áreas. Assim, teoria e
conhecimento antropológicos estão no crivo de sua interminável
desconstrução pelo campo, ou seja, pelo mundo, pelos outros. Talvez
seja isso o que determine mais a unidade de nossa disciplina do que
o que propõe Mariza Peirano, que define essa unidade a partir da
“história teórica” da antropologia, ou seja, a permanência de seus
clássicos.3 Para não falar de um terceiro fator que, a meu ver, pesa na
invenção dessa unidade: uma relativa imunização contra os cruza-
mentos ou “contaminações” de outros campos do conhecimento que
poderiam ameaçar nossa communitas.
Essa imunização, no entanto, funciona mais visivelmente no
plano da reprodução e da transmissão da teoria e da prática antropo-
lógicas, não no plano de sua criatividade e invenção – veja, por exem-
plo, a importância da linguística estrutural na formação do pensa-
mento estruturalista na antropologia, ou da hermenêutica na for-
mação de uma antropologia interpretativa, ou os trabalhos de
Merleau-Ponty para uma antropologia fenomenológica, ou os de
Deleuze e Guattari na discussão sobre o perspectivismo ameríndio.
Meu ponto nesta apresentação é, como uma antropóloga que
trabalha com esse campo heterogêneo denominado antropologia das
sociedades complexas (por mais problemática que seja essa defini-
ção), ou antropologia do contemporâneo, das sociedades modernas,
do próximo, antropologia urbana, ou também, segundo Latour, an-
tropologia do centro, pensar alguns aspectos que o projeto de uma
antropologia reversa, e os trabalhos de Roy Wagner sobretudo, tem
trazido para uma antropologia que não é nem a dos ameríndios, nem
a dos melanésios, nem a desses “outros” sujeitos clássicos dos estu-
dos antropológicos. O objetivo aqui não é o de “aplicar” a teoria da
invenção da cultura e de uma antropologia reversa aos objetos de
uma antropologia das sociedades complexas, nesse sentido peço des-
culpas por meu texto não trazer mais densamente exemplos

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43
Sônia Weidner Maluf

etnográficos e, por isso, provavelmente acabar sendo uma apresen-


tação mais chata que a que meus colegas fizeram.
Entre os comentadores dos trabalhos de Roy Wagner, dois pon-
tos são recorrentes: a recepção tardia de sua obra e uma definição
dessa obra pelo que ela não é: não é pós-moderna, propõe uma an-
tropologia reflexiva, mas não como Fabian e Habermas, porque para
esses autores haveria uma ontologia do poder e do conflito que de
maneira alguma estaria presente em Roy Wagner, que sua única
ontologia é uma ontologia da produção de sentido. É possível que a
maior parte desses comentadores, ver, por exemplo, o número espe-
cial da Social Analysis e resenhistas dentro e fora do Brasil, tenham
razão, mas não posso deixar de expressar minha impressão. Acredito
que existem nessas duas dimensões dos comentários sobre Roy
Wagner (a recepção tardia da obra e o que ela não é) uma disputa de
interpretações no campo teórico da antropologia ou, pensando mais
wagnerianamente, uma disputa sobre que antropologia(s) sua obra
constrói. Claro que a gente pode pensar a interpretação como um
campo de disputas (de novo o poder aí) entre concepções teóricas e
suas legitimações no campo antropológico mais vasto.
Mas podemos pensar outros sentidos para a ideia de interpreta-
ção. Acredito que a obra wagneriana pode ser lida como uma parti-
tura que produz muitas possíveis músicas e musicalidades. Um dos
aspectos que vejo nas aulas em que lemos e discutimos Roy Wagner
é o quanto essa leitura dá asas à imaginação antropológica dos estu-
dantes e à minha própria. É um pouco a partir dessa licença imagi-
nativa que eu gostaria de trazer questões a partir do que seria o lugar
de uma antropologia das sociedades ocidentais modernas nessa lei-
tura e na própria imaginação antropológica contemporânea. Eviden-
temente meu ponto de partida é de que essa antropologia do próximo
não é uma extensão analógica ou metafórica das outras antropologias
ou das antropologias dos tomados como evidentemente “outros”.
A questão é de tentar pensar em como temas como a relação
entre campo e teoria, a produção de conceitos e os modos de
conceitualização e de criatividade se constituem e se diferenciam, ou
não, em cada um desses campos. E como questões como alteridade e
diferença se articulam.
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A antropologia reversa e "nós": alteridade e diferença

Certo desconforto me atravessa. Mas antes um parêntese: claro


que falar em próximos, no caso de uma antropóloga brasileira, não é
exatamente a mesma coisa que falar de próximos para alguém que
trabalhe e pesquise na Europa ou nos Estados Unidos, por exemplo.
“Nós”, nesse caso, também deixa de ser uma noção tranquila, sendo
antes um campo de tensões, uma zona de certa instabilidade.
Certo desconforto me atravessa, compartilhando o mal-estar
expressado por Matei Candea (2011) diante da questão de afinal de
contas o que um antropólogo que trabalha com sociedades europeias
pode esperar e pode trazer para toda essa discussão. Vou traduzir
esse desconforto em três perguntas que vou tentar responder preca-
riamente ao longo da apresentação. Candea se refere à reflexão trazida
por Eduardo Viveiros de Castro e Antonia Walford (2011), publicada
em número especial da Common Knowledge, sobre o que daria viabili-
dade a uma endoantropologia e ao argumento defendido pelo
etnólogo brasileiro sobre a dependência crucial dessa do arejamento
teórico trazido pela exoantropologia. Meu objetivo é tentar mostrar
que a recíproca pode ser também verdadeira ou que há ares de in-
venção também na antropologia feita em “nossas” sociedades.
As três questões.
Primeiro: é possível construir um diálogo entre teorias e con-
ceitos que emergem das etnologias de outras culturas que têm como
fundamento a dicotomia entre nós e os outros, de um lado, e uma
antropologia dos mundos modernos e contemporâneos, de outro?
Ou seja, é possível um diálogo que transcenda o “grande divisor”?
A segunda, acreditando na possibilidade de algum diálogo, e
tenho investido nessa possibilidade já há alguns anos, é: quais são as
potencialidades e as consequências de um diálogo com esses outros
campos para uma antropologia das sociedades complexas, para além
de pensá-la como extensão metafórica das etnologias ameríndias ou
melanésias?
E consequente e simetricamente a terceira pergunta é: que con-
tribuições uma antropologia das sociedades complexas pode trazer
para toda essa discussão? Qual seria então o lugar dessa antropolo-
gia na definição do que é o projeto antropológico de modo geral?

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Sônia Weidner Maluf

Qual seria o lugar dessa antropologia cujos sujeitos não são tão obvi-
amente nossos “outros”, ou seja, que deslocam o fundamento
ontológico do trabalho antropológico, a dicotomia nós/eles, em que
o outro não é da dimensão do dado, mas da dimensão do feito, que
precisa ser construído como tal para que algum trabalho etnográfico
aconteça?
Essas perguntas vão se embaralhar no decorrer da exposição,
mas ficam como um roteiro implícito de meu argumento.
Otimistamente prefiro pensar que existe um diálogo possível, tanto
para imaginar no que potencialmente a teoria da invenção da cultura
pode trazer para uma antropologia das sociedades complexas quanto
para pensar o que uma antropologia das sociedades complexas pode
trazer para uma reinvenção da antropologia de modo geral.
Uma breve passagem ainda sobre a antropologia reversa: ela
seria em suma uma dupla antropologia, aquela realizada pelo antro-
pólogo em campo, que institui (inventa) o outro como cultura; e
uma outra antropologia, mais pragmática e não acadêmica, que é a
apreensão desse outro sobre nós.4 Definição que é descrita e ilustra-
da em A invenção da cultura através dos cultos de carga melanésios –
seu modo de apreender as nossas metaforizações. Um tipo de antro-
pologia pragmática que desvenda os nossos (dos antropólogos mas
também dos ocidentais) mecanismos de invenção da cultura (con-
forme sintetiza Goldman, 2011). Nesse exemplo, contrapõem-se as
sociedades tribais com a civilização industrial moderna. Mas a
reversibilidade é também um princípio dialético de organização sim-
bólica mais geral, um princípio de ordenação antropológica que tem
uma amplitude bem maior (Wagner, 1986).
Talvez uma das contribuições da antropologia do próximo seja
pensar que o conhecimento outro, a teoria outra, não necessaria-
mente são o conhecimento do outro ou a teoria do outro, ou pelo
menos desse que ocupa, na forma como a “alteridade” é pensada na
antropologia, um lugar ontologicamente dado (coisa que uma an-
tropologia reversa, levada à sua radicalidade, ajudaria a repensar, já
que, sendo os outros nossos antropólogos, somos nós os outros des-
se outro e são eles o “nós” dessa outra antropologia); nós e outros

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46
A antropologia reversa e "nós": alteridade e diferença

deixam de ser aqui lugares fixos, mas posições no interior de rela-


ções, assim como sujeito e objeto, invenção e convenção, ou mesmo
natureza e cultura, conforme o que as reflexões sobre o
perspectivismo ameríndio têm trazido. Um elemento adicional é pen-
sar o quanto cada um desses lugares inclui suas próprias
reversibilidades e dialéticas internas – as diferenças na diferença. Esse
nem sempre é um princípio tranquilo para trabalhos etnográficos
convencionais que buscam a unidade e a homogeneidade no interi-
or das “culturas” estudadas.
A noção de alteridade é um dos pressupostos das etnologias
ameríndias e melanésias (para ficar nesse que tem aparecido como o
diálogo mais evidente e visível hoje, pelo menos no Brasil, com a
obra de Roy Wagner), pelo menos dentro do campo teórico com o
qual estou dialogando aqui. Mas, em grande parte dos trabalhos
etnológicos e em sua generalização na literatura antropológica, a
alteridade é traduzida a partir do que a gente poderia chamar de uma
“metafísica da substância”, alimentada pela crença de que a formu-
lação gramatical “nós e os outros” “reflete uma realidade ontológica
anterior de substância e atributo”, para usar uma formulação da fi-
lósofa feminista Judith Butler (2003, p. 42). “Nós” e “eles” são to-
mados, assim, como sítios ontológicos dados e fixos, como a dimen-
são do dado para a antropologia e como o fundamento do próprio
projeto antropológico. No entanto, se as etnologias desse outro mais
distante podem se sentir relativamente confortáveis com esse funda-
mento, ao ponto de ele ser tomado como a dimensão não inventiva
da antropologia, ou seja, como a nossa convenção mais intocada,
uma convenção nesse caso “subsumida como o contexto implícito
de nossa ação” (Wagner, 2010, p. 165), esse não é o caso das antro-
pologias das sociedades modernas e contemporâneas. Não que cor-
tes semelhantes não tenham se construído na antropologia feita no
contexto das sociedades ocidentais, modernas. No Brasil os traba-
lhos de Louis Dumont têm inspirado trabalhos importantes sobre o
que seriam formas mais holistas e formas mais individualistas no
interior da própria sociedade brasileira. Mas alguns desses trabalhos
acabam enfatizando o momento fixo do modelo, sem incorporar a

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Sônia Weidner Maluf

sua potencial dinamicidade, trazida pela noção de “inversão hierár-


quica” – talvez uma das mais importantes e originais contribuições
do modelo hierárquico de análise de Dumont. A noção de inversão
hierárquica acentua a transformabilidade dos valores e dos vetores
de uma relação, aponta para distintos modos da diferenciação.
Diversos estudos etnográficos feitos em meio e com populações
urbanas no Brasil têm trazido uma relativização dessa dicotomização
tão exacerbada entre o individualismo e o “resto” e da própria visão
homogeneizante do individualismo no Ocidente. E têm repensado o
caráter homogêneo no interior mesmo das várias configurações do
individualismo.
De qualquer modo, a construção da alteridade e de uma noção
de “outro” na antropologia das sociedades complexas é o resultado
de um esforço muita vezes explícito de construção do distanciamento
e do estranhamento. O que é tradicionalmente uma convenção an-
tropológica precisa, no caso dessa antropologia, ser permanentemente
inventada – e performatizada. O que, no meu modo de ver, não é
nada mais do que tornar explícita uma operação que é própria a qual-
quer trabalho etnográfico, mas que usualmente é feita sem essa
autoconsciência. Na antropologia das sociedades complexas, estamos
o tempo todo “fazendo” a convenção ou, conforme Wagner, “articu-
lando deliberadamente contextos convencionais” (Wagner, 2010, p.
165). É como se, ao performatizar o que é “dado” numa circunstân-
cia etnográfica convencional, as antropólogas (e os antropólogos)
urbanas e das sociedades complexas ocupassem a mesma posição
estrutural que as drag queens, que performatizam (inventam) o que
está “dado” nas configurações hegemônicas do gênero.
Dito isso, passo agora a discutir dois exemplos de meu próprio
trabalho que podem ajudar a ilustrar algumas direções possíveis dos
diálogos entre essas várias antropologias. O primeiro deles propõe
repensar os conceitos em sua potência para ajudar a compreender
práticas e discursos a partir de uma análise de certo esgotamento do
conceito de religião para se entenderem alguns aspectos das práticas
contemporâneas. O segundo parte de um conceito já “rasurado” pelas
teorias sociais vindas de outras áreas para discutir sua utilidade no
trabalho antropológico, o conceito de sujeito.
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A antropologia reversa e "nós": alteridade e diferença

Nos anos 1990 rastreei no Sul do Brasil todo um circuito de


práticas e discursos envolvendo uma intensa circulação dos sujeitos
por vivências ecléticas e eventualmente díspares em termos rituais e
doutrinários, que tem sido rotulado genericamente como culturas
da Nova Era.5 Deixando-me levar pelo que observei e pouco conten-
te com o que a literatura antropológica sobre a óbvia temática da
religião oferecia, decidi não definir as práticas e os discursos que o
campo me trazia nessa grade conceitual – “religião” –, mas como
dimensões de invenção de si e do mundo. Para tanto, emprestei da
etnologia ameríndia o conceito de cosmologia, que considerei mais
aberto e articulador de dimensões da experiência não estritamente
religiosas, tal como uma antropologia ou uma sociologia das religi-
ões propunham. Optei por utilizar o conceito de cosmologia no lugar
do conceito de religião, buscando dar conta dessas articulações
extrarreligiosas, centrais nos sentidos dados às práticas e às trajetó-
rias dos sujeitos. O conceito de cosmologia de que me apropriei da
literatura de etnologia ameríndia me ajudou a repensar criticamente
a racionalização dos domínios da experiência e da institucionalização
e a separação das esferas do social (entre religião, política, arte etc.),
e a focar a abordagem nas práticas dos sujeitos e nos mundos que
concebiam e construíam, tentando perceber dinâmicas comuns que
eu defini a partir do conceito de sínteses cosmológicas singulares, inven-
ções individuais num fundo sociocosmológico comum.
Parti da crítica à persistência de um conceito entificado e
substantivado de religião – devedor de certa tradição intelectual oci-
dental e moderna, que reduz os fenômenos definidos como religio-
sos às instituições organizadas (a Igreja), a agentes dispostos em um
campo hierárquico e de competências e a um corpo doutrinário de-
marcado em narrativas centrais e estabelecidas. O que chamei de
culturas espirituais e terapêuticas alternativas são um exemplo de
plasticidade, dinamicidade e inventividade que os conceitos disponí-
veis – a partir dessa tradição intelectual herdada pelas ciências soci-
ais e pela antropologia – não ajudavam a explicar. A partir das no-
ções de cosmologia e de sínteses cosmológicas singulares, o que po-
deria ser tratado como religioso deixa de ser uma substância trans-
cendente e acima das práticas dos sujeitos e passa a ser um qualifica-
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Sônia Weidner Maluf

tivo de diferentes tipos de agenciamentos, não apenas centrais e


molares (as Igrejas, as doutrinas), mas também periféricos, margi-
nais, subterrâneos, em que a dimensão inventiva dos sujeitos, suas
práticas, discursos e mundos construídos aparecem como a figura
central da análise antropológica.
Outro tema que tenho trabalhado nos últimos dez anos, e que
serve como uma espécie de guarda-chuva para várias pesquisas que
coordeno e oriento, é o de uma antropologia do sujeito, que busca pen-
sar o sujeito não apenas como objeto da análise antropológica, mas
como categoria analítica e como paradigma para uma abordagem an-
tropológica do contemporâneo.6 Mas meu projeto e meu argumento
começam com uma ressalva: para teorias sociais contemporâneas
como parte da teoria feminista, a psicanálise, os estudos pós-coloni-
ais, as análises foucaultianas e a filosofia da diferença, não há “sujei-
to”, o sujeito (como ente unificado, substantivo, prévio à experiên-
cia, o sujeito da razão) é uma ficção. No entanto, tomado a partir da
história crítica que carrega (tomado então como um “conceito sob
rasura”), sujeito torna-se uma figura conceitual que pode provocar
deslocamentos, fricções e novos caminhos na antropologia contem-
porânea e na apreensão antropológica do contemporâneo, sobretu-
do se forem levadas em consideração questões que parte desse pen-
samento crítico contemporâneo tem trazido: a desconstrução da ideia
de sujeito tal como aparece no pensamento moderno, como uma
entidade unificada, substantiva, como figura central dessa “metafísica
da substância”, tão cara aos discursos centrais da modernidade. Fa-
lar, a partir daí, em sujeito é necessariamente utilizar um conceito
“sob rasura”,7 não há sujeitos, o que há são regimes e modos de
subjetivação, com suas linhas centrais e periféricas.
Contemporaneamente, a antropologia e outros campos das humani-
dades têm feito essa mesma operação em relação a conceitos como
grupo social,8 sociedade,9 identidade,10 parentesco,11 Estado12 e mes-
mo de religião, como eu falei há pouco.13 Aqui, o diálogo com uma
tradição crítica da teoria social é um fertilizante para o deslocamento
dos mapas conceituais impregnados da racionalidade e da
burocratização moderno-capitalistas (ou capitalísticas, como diriam
Deleuze e Guattari).
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A antropologia reversa e "nós": alteridade e diferença

O diálogo entre antropologia e feminismo tem produzido trans-


formações e constituído linhas de fuga no interior da própria antro-
pologia. Nos anos 1970, a antropologia feminista discutia a grande
variedade dos arranjos culturais de gênero e a universalidade das
assimetrias e desigualdades. No decorrer das décadas de 1980 e 1990,
o foco não é só a construção da diferença de gênero (o que era toma-
do como o plano da cultura), como a própria invenção do sexo e da
diferença sexual (o que era tomado como o plano da natureza). O que
era “dado” é localizado (e eventualmente “denunciado”) como in-
ventado, ou seja, como parte da convenção moderna.
A partir da crítica ao parentesco como um sistema autônomo
(baseada na distinção doméstico–público e do doméstico como sis-
tema estático e sem história, fundamentado no aspecto invariante da
relação mãe–filho), as antropólogas Collier e Yanagisako (1987) su-
gerem um questionamento das dicotomias e da afirmação de que
“masculino” e “feminino” são categorias universais. Baseadas so-
bretudo na crítica de Schneider ao modelo biológico que predomi-
naria nos estudos de parentesco, elas questionam a noção de que as
variações culturais em torno de gênero sejam elaborações e exten-
são “do mesmo fato natural” (p. 15). Para elas, gênero e parentesco
teriam se constituído como campos a partir da “concepção nativa”
(no caso, a “cultura local” é a sociedade ocidental moderna) do “fato
biológico da reprodução sexual”. Mesmo reconhecendo o que seri-
am as “causas sociais” da assimetria de gênero, os diversos estudos
no campo antropológico teriam focado na construção social de um
“fato” biológico: a capacidade biológica das mulheres de parir e nu-
trir. A afirmação de um “fato biológico” universal e primordial tem
como fundamento a pressuposição de uma permanência ontológica
e universal dos sujeitos (masculinos e femininos) fundamentada em
corpos biológicos. Outro “fato biológico” construído, ligado a esse
primeiro, seria o da “diferença anatômica”, já discutida por diversos
autores como uma construção histórica e cultural do Ocidente mo-
derno (Laqueur, 2001). É interessante relacionar o fato de que nas
sociedades ocidentais a diferença de gênero está fundamentalmente
localizada no corpo a determinados processos contemporâneos liga-
dos à manipulação, à modificação e ao remodelamento corporal
ILHA
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51
Sônia Weidner Maluf

(como o fenômeno da tatuagem ou o da cirurgia plástica estética)


como formas de construir e dar forma (ou novas formas) à diferen-
ça. Outro exemplo são as novas formas de medicalização das mulhe-
res, que podem ser lidas como tecnologias de gênero que estendem
o olhar fisicalista sobre a diferença para as dimensões das emoções e
da vida subjetiva. Se entre as histéricas do século XIX a fonte da
perturbação estava no útero e no aparelho reprodutivo feminino,
entre as deprimidas do século XXI essa fonte está nos distúrbios da
química cerebral e nos hormônios, conforme o discurso da ocasião.
Os antidepressivos atuam sobre os excessos, sobre as emoções ex-
cessivas, que certamente atrapalham o processo de racionalização e
de subjetivação dessas mulheres (duplamente colocadas historica-
mente no campo da irracionalidade e da dessubjetivação: como mu-
lheres e como pobres, populares, indígenas etc.). Aqui, tal como dis-
cute Wagner (2010) em relação aos Estados Unidos modernos, a di-
mensão do inato (a diferença sexual) “demanda a intervenção e o
controle”, entre outros dispositivos, pelos medicamentos.
O gênero (e a construção da diferença ontológica) é um modo
ocidental de inteligibilidade do sujeito. A crítica feminista (dentro e
fora da antropologia) tem trazido elementos para mostrar que, junto
com o processo de construção da diferença, ocorre um apagamento
do processo de construção que Butler irá chamar de ontologização
da diferença, que passa a ser tomada como dada.14 As “invenções”
dos/das transgêneros evidenciam que o dado é construído, elas
performatizam os modos de construção da diferença. Um cruzamento
com a noção de “obviação” de Wagner está implícito em meu argu-
mento.
O feminismo contemporâneo (incluindo a antropologia femi-
nista) deslocou a diferença sexual e de gênero do dado para o feito.
Esse é o ponto em que algo de interessante pode ser dito (a partir de
uma antropologia das sociedades ditas modernas ou contemporâne-
as e a partir de outras teorias sociais não antropológicas).
Para o feminismo, não existe um ato fundacional nem do sujei-
to nem da diferença de gênero, mas sim a reiteração de uma dinâmi-
ca, um modo permanente e reiterativo de constituição de sujeitos e

ILHA
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52
A antropologia reversa e "nós": alteridade e diferença

de relações de poder. É nos interstícios dessa repetição que outros


modos de subjetivação se engendram, que outros modos de
criatividade emergem, invertendo o vetor e os sentidos do poder e
suas linhas hegemônicas.
Para Goldman e Lima (1999, p. 84), a partilha “é a própria con-
dição do projeto antropológico e de seu exercício; [e] que seja sua
conseqüência é algo que nos cabe evitar”. Talvez uma consequência
disso para o que Roy Wagner propõe como uma antropologia mais
transparente e autoconsciente seja a de deslocar a dicotomia nós/
eles do dado (da convenção antropológica) para o feito, mostrar o
sentido inventado dessa convenção. Fazer o caminho da convenção
à diferenciação.
Isso tem algumas implicações: “nós” e “outros” deixariam de
ser unidades homogêneas e autocontidas, resolvidas em seus própri-
os e incomensuráveis termos. Ainda: se durante muito tempo vive-
mos na antropologia das sociedades complexas a “tentação da al-
deia”, a perspectiva de estender a prática antropológica nas socieda-
des não ocidentais para o estudo das “nossas” sociedades, buscando
unidades homogêneas e de contorno evidente, o feminismo colocou
uma questão interessante que é o quanto essa “homogeneidade” e
“autocontenção” dos “outros” não seria também uma “invenção”
do etnólogo. Ou seja, o feminismo coloca a questão de outras dife-
renças, as diferenças internas às sociedades tradicionalmente estu-
dadas pela antropologia, e de quanto essas diferenças foram elimina-
das nos discursos antropológicos. A questão então não é a de que a
alternativa à dicotomia nós e os outros seja talvez e unicamente o
“tédio dessa alternativa”. O que o estudo das sociedades complexas
têm trazido para o nosso campo, em diálogo com as teorias sociais
críticas de outras áreas, é que existem outras alternativas a uma con-
cepção que congela a alteridade em um dualismo dicotômico e
ontologizado, entre elas a ideia de multiplicidade dos modos de in-
venção e dos modos de diferenciação.
Outra forma de entender a alteridade é como um modo de
inteligibilidde da diferença – diferença que difere, que nunca é a
mesma. O que implica mais uma tarefa para esse “novo” fazer

ILHA
volume 12 - número 1

53
Sônia Weidner Maluf

etnográfico: a necessidade de esmiuçar o feito, não apenas reprodu-


zi-lo, obviamente. Desmontar ou fazer a engenharia reversa, para
roubar mais uma expressão de Wagner, do próprio procedimento
não explicito e não autoconsciente de invenção pela antropologia
desses sujeitos com quem trabalhamos como outros como unidades
homogêneas. Esse pode ser um dos fios para as contribuições que
uma antropologia das sociedades complexas e do moderno-contem-
porâneo pode trazer para uma antropologia mais dialética, transpa-
rente e mais autoconsciente, e sobretudo mais inventiva.

Notas
1
Trabalho apresentado no Seminário Antropologia de Raposa, em Florianópolis, na
Universidade Federal de Santa Catarina (UFSC), em agosto de 2011.
2
Conforme o próprio Roy Wagner tem discutido em, por exemplo, An Anthropology of
the Subject, entre outros trabalhos.
3
Conforme Peirano (1997).
4
Ver, por exemplo, Wagner (2010).
5
Ver Maluf (1996 e 2010).
6
Parte desta discussão retoma questões e reproduz partes de Maluf (2011).
7
Conforme a discussão de Hall (2000) sobre o conceito de identidade.
8
Wagner (1974).
9
Latour (2005); Strathern (1988); Wagner (1974).
10
Hall (2000); Lévi-Strauss (2007); entre outros.
11
Schneider (1968) apud Collier e Yanagisako (1987).
12
Abrams (1988 ); Butler e Spivak (2009); Radcliffe-Brown (1950); Trouillot (2001).
13
Maluf (1996 e 2010).
14
A crítica de Butler se dirige a uma concepção de ontologia como um fato natural e
pré-discursivo, alheio ao político. Mesmo se referindo à diferença sexual dada como
ontologia estável, essa crítica pode ser estendida a outras esferas. O trabalho de
ontologização diz respeito à invisibilização do processo de construção do “dado”.
Nesse sentido, ela prefere falar em fundamentos contingentes ou pensar o sentido
contingente da ontologia e suas condições de produção e de significação. Além de
um diálogo com a noção de obviação de Wagner, é possível uma articulação aqui
também com a apropriação que Bruno Latour faz do conceito de “instauração”, de
Éttiene Souriau, para discutir o duplo e paradoxal sentido do fetiche, fabricado num
dia e, no outro, adorado como se ninguém o tivesse fabricado (Latour, 2006).

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A antropologia reversa e "nós": alteridade e diferença

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Sônia Weidner Maluf

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Recebido em: 29/09/2011


Aceite em: 10/10/2011

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A antropologia reversa e "nós": alteridade e diferença

Reinventando a roda: inversões e


reversões de uma antropografia do
sujeito

Scott Head
Universidade Federal de Santa Catarina, Florianópolis, Brasil
E-mail: head.sc@gmail.com

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Scott Head

Resumo Abstract

Este artigo toma como seu ponto de This article takes as its point of departure
partida o “princípio da roda” tal como the “wheel principle” as elaborated by Roy
elaborado por Roy Wagner em An Wagner in An Anthropology of the Subject
Anthropology of the Subject (2001): ao (2001): in ‘reinventing’ a wheel – or other
“reinventar” uma roda – ou outro ob- object, the subject doing the inventing ends
jeto –, reinventa-se igualmente o su- up reinventing him – or herself as well.
jeito que realiza a invenção. Mas, nes- Only here, the reflexive figure in question
se caso, trata de deslocar essa figura shifts towards an apparently quite different
reflexiva rumo a uma outra “roda” yet strangely similar “wheel” – in this case
estranhamente semelhante – certa the rounded space of a certain popular
roda popular de capoeira, tal como “roda” of capoeira (an Afro-Brazilian
descrita no livro Capoeiragem: expressões danced martial art form played to musical
da Roda Livre, de Mestre Russo de accompaniment), as described in the book,
Caxias (2005). Ao tomar tal livro como Capoeiragem: expressões da Roda Livre, by
o enfoque deste ensaio, ressalta-se Mestre Russo de Caxias. In taking such a
como seu autor, ao descrever e inven- book as its focus, this essay foregrounds how
tar a roda a que seu livro diz respeito, its author, in describing and inventing the
acaba sendo reinventado, ele mesmo, “wheel-like” game, ends up himself being
pela roda – e jogo – em questão. Mas, ‘reinvented’ by the very game of which he
ao buscar compreender tal processo de writes. But in seeking to comprehend this
invenção e contrainvenção, o próprio process of invention and counterinvention,
desdobrar deste texto que segue tam- the unfolding of the very essay that follows
bém passa a ser “compreendido” por also gets caught up in and ‘comprehended’
esse seu objeto: pensar sobre a roda by the very wheel-like process it takes to be
através do livro de Mestre Russo e so- its object of analysis: thinking about the
bre ambos através de Wagner instiga roda through Mestre Russo’s book and
uma reflexão sobre o ato de escrever e thinking about both through Wagner
compor na forma de imagens. E, des- instigates a reflection on the act of writing
se modo, a relação assim ensaiada and composing in the form of images. And,
passa a ressaltar algumas claras dife- in this way, the relation thus elaborated
renças – e estranhas semelhanças – points to some clear differences – and strange
com respeito aos modos de compor e similarities – with respect to the modes of
de compreender, de textualizar e de composing and comprehending, of
contextualizar, os ‘sujeitos’ textualizing and contextualizing, the
etnográficos da antropologia. ethnographic ‘subjects’ of anthropology.

Palabras-clave: Reflexividade. Capoei- Keywords: Reflexivity. Capoeira. Roy Wagner.


ra. Roy Wagner. Imagem. Representa- Image. Ethnographic Representation.
ção etnográfica. Sujeito. Subject.

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Reinventando a roda: inversões e reversões de uma antropografia do sujeito

i was made to believe


we who write also dance
yet no dancer writes
(the way we write)
no writer ever dances
(the way they dance)1

A ‘roda’ ao redor da qual este ensaio se desloca rodou um tanto


longe daquela com a qual Roy Wagner inicia seu capítulo com
o mesmo título – “Reinventing the Wheel” – em An Anthropology of
the Subject (Wagner, 2001, p. 191): “The wheel rolls into history under
the armored wagons of the early Babylonians and the carts and
chariots of Eurasian wanderers and conquerors”. No caso aqui con-
siderado, tanto a ‘roda’ quanto a direção em que ela roda para dentro
da história sofrem um duplo desvio de sentido: primeiramente, por
dizer respeito a uma roda de capoeira – um desvio efetuado no plano
da tradução; e segundo, por tal roda ‘rodar’ num sentido distinto
daquelas que sustentam o movimento das carroças referidas acima.
Pois, se uma roda de capoeira também envolve movimento concên-
trico, seu ângulo de rotação em relação ao chão em que se desloca é
inerentemente variável, diferindo assim da fixação perpendicular das
rodas naquelas carroças, que limitava o deslocamento para frente (ou
para trás) desses veículos de conquista e de comércio – deslocamen-
tos que propulsionaram, por sua vez, os avanços (e retrocessos) da
própria “história” referida por Wagner.
O movimento de uma roda de capoeira assemelha-se mais ao
movimento de um torno, só que nesse caso a ‘argila’ sendo modela-

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volume 12 - número 1

59
Scott Head

da consiste nos próprios corpos que brincam e lutam dançando na


roda – corpos que se deslocam não apenas para frente ou para trás,
mas igualmente para os lados e até para cima e para baixo. Assim, o
movimento envolvido nessa forma singular de roda sugere outra
imagem da história que aquela das carroças – uma imagem em tudo
menos linear, ‘progressiva’ ou ‘regressiva’. Ao mesmo tempo, tal
movimento assemelha-se bem às múltiplas circunlocuções tanto fí-
sicas quanto cosmológicas da roda, tal como reinventada no desdo-
brar do texto de Wagner a seu respeito. Pois a ‘roda’, tal como con-
ceituada naquele capítulo, envolve igualmente o processo de compre-
ender tal roda – ou, por extensão, qualquer outra coisa compreendida
através do “wheel principle” ou princípio da roda: “One can only grasp
or comprehend things to the extent that one’s process in doing so is
itself grasped or comprehended by them” (Wagner, 2001, p. 202).
Desse modo, ao tomar ‘a roda’ como o objeto desse princípio, que por
sua vez envolve tanto o processo de compreensão quanto o mundo
que compreende esse processo, Wagner volta-se para o sujeito que
faz tal objeto rodar: “Neither the wheel itself nor that simplification
by which we have come to know and use its properties exists
independently of human thought and conception” (p. 204). Ou seja,
ao “reinventar a roda”, reinventa-se igualmente o sujeito que realiza
a invenção. Como veremos, tal processo analógico (e circular) es-
tende-se igualmente à reinvenção da roda de capoeira de que se trata
neste ensaio.
Desse modo, chegamos a um terceiro desvio de sentido envolvi-
do no tecer deste diálogo entre as ideias de Wagner e a “roda” aqui
tomada como objeto: não se trata da roda de capoeira ‘em si’, mas de
uma roda tal como descrita e composta no livro popular2 Capoeiragem:
expressões da Roda Livre (Russo de Caxias, 2005). Trata-se desse livro,
mais especificamente, tal como escrito, composto e publicado por
conta própria por seu autor, Mestre Russo de Caxias. Ao tomar tal
livro como o enfoque deste ensaio, busco ressaltar como seu autor,
ao inventar a roda a que seu livro diz respeito, acaba sendo reinventado,
ele mesmo, pela roda – e jogo – em questão. Mas, à medida que
busco compreender tais processos de invenção e contrainvenção,

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60
Reinventando a roda: inversões e reversões de uma antropografia do sujeito

minha leitura também passa a ser compreendida por esse meu obje-
to: pensando através do livro de Mestre Russo, o livro me faz pensar
de outro modo sobre o próprio ato de escrever sobre ele. E, desse
modo, ao escrever sobre tal livro, a relação assim ensaiada passa a
ressaltar algumas claras diferenças – e estranhas semelhanças – com
respeito aos nossos modos de compor e de compreender, de textualizar
e de contextualizar, os ‘sujeitos’ da antropologia. Ou seja, tomar o
livro como o objeto deste ensaio desloca a roda da compreensão da
“antropologia do sujeito” de Wagner rumo a uma antropografia
(Dumont, 1986) desse sujeito – nesse caso, do sujeito tal como roda
entre essas duas formas de escrever.3
Aproximado ou contornado desse modo, o livro de Mestre Russo
oferece um modo um tanto singular de tratar do problema básico da
“anthropological reportage”, tal como estipulado no prefácio de An
Anthropology of the Subject (Wagner, 2001, p. xi): “o fato que nenhuma
perspectiva teórica em particular, mesmo combinada com outras,
pode ser usada efetivamente para obter um domínio sobre o sujeito
antropológico”.4 É evidente que a ‘antropologia do sujeito’ não é um
tema novo,5 mas o apelo da abordagem de Wagner consiste justa-
mente em não pressupor, enquadrar ou sujeitar o ‘sujeito’ de ante-
mão: os saltos constantes do livro entre coisas e conceitos, parecen-
do abordar ‘quase tudo’ menos o que convencionalmente enquadra-
ríamos como sujeitos, nos demonstram amplamente o valor de tal
indefinição premeditada. Não é que devamos dispensar todo tipo de
enquadre: Bateson (1972) já nos mostrou o quão importantes esses
são mesmo em atividades tão pretensamente ‘livres’ como brinca-
deiras e fantasias. Mas o que importa aqui é como tais enquadres
instigam composições inusitadas entre os sujeitos em questão.
Mesmo assim, a pergunta permanece: o que é um ‘sujeito an-
tropológico’? Ou, antes disso, o que é um ‘sujeito’, afinal? De modo
geral, as ‘definições’ que Wagner nos oferece no ‘Glossário de con-
ceitos não familiares’ do final de seu livro gozam da própria busca de
definições ‘claras e distintas’ que teria nos levado a consultar tal glos-
sário: certamente não é um glossário cartesiano. Ainda assim, as três
definições que Wagner oferece a respeito do ‘sujeito’, do ‘sujeito ati-

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volume 12 - número 1

61
Scott Head

vo’ e do ‘sujeito da antropologia’ parecem relativamente claras em si


e entre si, comparadas a várias outras que constam no glossário: co-
meça-se com o sujeito “[...] sujeitado ou contra-face sub-determina-
da da agencia”; procede-se ao sujeito como “ponto da ação”, com “a
potência [...] de inverter” o caráter passivo do primeiro sujeito; e
chegamos, por fim, ao “conhecimento humano daquilo que a con-
dição humana pode ser [...] como se uma síntese fosse possível”
(Wagner, 2001, p. 254). Até aqui, tudo bem (será?). Mas, traduzidos
e resumidos desse modo um tanto ‘sintético’, arriscamos perder jus-
tamente o humor nos detalhes e os detalhes do humor, tanto aqui
como na composição do livro, que constantemente nos desviam de
uma compreensão linear – detalhes que nos lembram, entre outras
coisas, justamente da dimensão subjuntiva da suposição, “como se uma
síntese fosse possível”. Ou seja, o próprio modo como Wagner nos
apresenta o ‘sujeito’ em questão já sugere que, se fôssemos dissociar
as questões sérias a seu respeito do humor como são comunicadas na
sua escrita, arriscaríamos torná-las uma piada às nossas custas – às
custas, no caso, da própria vitalidade da antropologia do ‘sujeito’
implicada no seu modo de escrever.
Passando dessa brevíssima introdução ao sujeito no livro de
Wagner, o que de fato envolveu apenas um salto de seu prefácio ao
seu glossário como apresentado, pulando por cima do corpo do livro
em si, passo à seguinte afirmação a ser elaborada aqui: se o ‘sujeito’
da antropologia for estendido para a ‘antropologia’ daquele assim
sujeitado, então o livro de Mestre Russo e o ‘Mestre Russo’ desse
livro podem juntos nos levar a uma outra compreensão desse ‘nosso’
sujeito. E, no caso considerado aqui, sugiro que a relação entre o
livro e seu autor seja uma função do duplo movimento entre o sen-
tido do movimento e o movimento do sentido que ambos implicam
de modos distintos com respeito ao movimento dos corpos na roda
de capoeira. Ou, pelo menos, é através dessa figuração cinestética
que busco traçar a relação entre a roda de capoeira, tal como com-
preendida através do livro de Mestre Russo, e a roda da compreensão,
tal como figurada por Wagner.

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62
Reinventando a roda: inversões e reversões de uma antropografia do sujeito

Desse modo, a próxima seção diz respeito ao problema da


autorreferência: se um dos principais fatores que fazem um ‘texto’
diferir do ‘discurso’ é a separação dos signos fixados no texto do elo
direto com o sujeito de enunciação (Geertz, 1973; Ricoeur, 1971),
mesmo assim, indícios desse sujeito-tornado-autor permanecem no
texto (Fernandez, 1985). No caso em questão, encontramos tais in-
dícios não só nas palavras escritas por Mestre Russo, mas no seu pró-
prio nome, assim como em imagens fotográficas e até em citações de
outros mestres que fazem parte igualmente do texto em questão.

***

Logo nas primeiras frases da Apresentação de seu livro, Mestre


Russo de Caxias afirma:
Este livro foi escrito para proporcionar ao leitor informações
relevantes sobre a história da capoeira em Duque de Caxias.
Nesse volume serão encontrados fatos que me consolidaram
como pessoa e que me deram estrutura suficiente para fazer
da minha vivência na capoeiragem uma história que se
revela em forma de documentário (2005, p. 10).

Repara-se aqui como os dois ‘sujeitos’ em questão – Mestre


Russo e a própria capoeira – estão claramente emaranhados; clara-
mente, pois só seria ‘confuso’ se fôssemos pressupor a distinção entre
eles. Repara-se igualmente no uso da primeira pessoa, mas na forma
passiva – são os próprios fatos que “me consolidaram como pessoa e
que me deram estrutura”: ao mesmo tempo que o texto assim se
coloca de um modo mais autobiográfico do que biográfico, desloca-
se a presença do ‘eu’ para além do sujeito ativo da frase. Em certa
medida, isso lembra a convenção etnográfica de minimizar a presen-
ça do ‘eu’ que escreve, incluindo tais indícios do etnógrafo no texto
apenas na medida em que autenticam os ‘fatos’ consolidados no cam-
po, mas sem tornar o próprio etnógrafo o sujeito da etnografia. Igual-
mente lembra certas experimentações etnográficas associadas à an-
tropologia dita ‘pós-moderna’ – experimentos que, ao mesmo tem-
po que tanto criticam quanto brincam com as convenções da escrita

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63
Scott Head

etnográfica, arriscam acabar mitificando o “antropólogo como he-


rói” (Kapferer, 1988).
Além do modo de escrever em si, encontramos outros indícios
do deslocamento do autor como sujeito central e ativo do livro. Evi-
dentemente, tais indícios móveis destacam-se contra o fundo de
autoposicionamentos mais convencionais, como no caso do retrato
‘close-up’ do rosto em perfil de Mestre Russo na capa de trás do livro:
ao mesmo tempo que tal foto segue a convenção de mostrar a visagem
do autor do livro, seus olhos ficam ocultos pela sombra de seu cha-
péu de palha estilo panamá – um chapéu bastante comentado, aliás,
como parecendo “ser fundido à sua cabeça, por nunca cair na hora
do jogo” (Nunes, 2004 apud Russo de Caxias, 2005, p. 127). Tal re-
trato, pelo viés da conjugação imagética do ditado que diz que os
olhos são a ‘janela da alma’ com a visagem impenetrável do bom
malandro carioca ressaltada pela sombra do chapéu, nos faz perceber
a própria ocultação de seu olhar como se revelasse sua ‘alma’ de
capoeirista, pois o que seria um capoeirista sem malandragem? (E o
que seria um malandro sem seu chapéu?)
Virando o livro para sua capa de frente, o próprio nome do au-
tor, Mestre Russo de Caxias – que é tudo menos um ‘nome próprio’
–, oferece outra face desse deslocamento do autor como um ser-em-
movimento. Percebe-se aqui como marcas do outro ‘sujeito’ do livro
– “a história da capoeira em Duque de Caxias” – já estão inscritas
nesse nome, marcas tanto da prática como do lugar: ‘Mestre’ e
‘Caxias’. Já o nome que sobra, ‘Russo’, implica algo mais (ou me-
nos) do que o ‘individuo’ por trás desses títulos sociais ou a fonte da
individuação dessas marcas. Como constatamos na legenda de uma
foto que encontramos duas páginas antes da Apresentação do autor,
de “Jonas ‘Russo’ Rabelo” e seus irmãos quando meninos, este nome,
Russo, é ele mesmo um apelido. Curiosamente, nessa foto que mos-
tra os quatro irmãos sentados em frente à entrada de uma casa, quem
menos aparece é o próprio Russo; devido à sua sobre-exposição na
foto, é como se a luz atravessasse seu corpo. Mas, ao voltarmos umas
folhas atrás para a página da Dedicatória, encontramos uma solução
possível para a charada que a escolha dessa imagem borrada do au-

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64
Reinventando a roda: inversões e reversões de uma antropografia do sujeito

tor nos apresenta. Pois aqui, nas palavras dirigidas a seu primo, o
‘Crioulo’, consta que esse primo é “a pessoa que me deu iniciação na
capoeira e incentivo para eu continuar como capoeirista, tornando a
arte do jogo a essência da minha alma” (2005, p. 4). Ou seja, levando
essas palavras a sério, podemos imaginar que, naquela foto, ‘Russo’
ainda não havia adquirido a essência daquilo que viria a defini-lo
como ‘pessoa’ – e desse modo daria substância a seu corpo.
Mesmo deixando de lado tal leitura como mera ‘brincadeira’ da
minha parte, essa e outras referências à capoeira como consistindo
na sua própria ‘alma’ sugerem que os ‘títulos sociais’ de ‘Mestre’ e
‘Caxias’, que agora fazem parte de seu nome como autor e pessoa,
são algo mais do que índices contextualizantes das conexões ou dos
compromissos com a prática e o lugar que o definem como uma
pessoa social. A substituição desses honoríficos no lugar de seu nome
e sobrenome, Jonas e Rabelo, deixando apenas o apelido no meio
como laço de continuidade, passa assim a sugerir que “sua mais cons-
tante natureza” – voltando a citar Wagner (1981, p. 139; 2010a, p.
213) – “não é a de ser mas a de devir”. Pois, se formos seguir o
processo de substituição de seus nomes, reparamos o seguinte: pri-
meiro, ‘Russo’ figura como o apelido contra o fundo de seu nome e
sobrenome – Jonas e Rabelo; mas, com a substituição eventual desses
nomes por ‘Mestre’ e ‘de Caxias’, Russo agora assume o lugar de fun-
do contra essas figuras – ao mesmo tempo que essas figuras esten-
dem-se e assim estendem o próprio Russo a outros fundos ou ‘contextos’.
Evidentemente, tal substituição de nomes, por si só, poderia ser
tomada como mera mudança na superfície da pessoa ‘pública’ que
não necessariamente afeta a substancialidade do ‘eu’ em questão.
Mas aqui o termo ‘mestre’ não se refere apenas a uma posição hie-
rárquica e institucional a ser ‘ocupada’ por dados indivíduos, mas a
“algo corporificado e encarnado, se quiserem, na pessoa” (Turner,
2005, p. 146-147). Ou seja, o título de mestre implica uma “mudan-
ça ontológica” (p. 147) efetuada por um longo processo de aprendi-
zagem ritualizado através dos anos, o que se trata não da “mera aqui-
sição de conhecimento, mas de uma mudança no ser” (p. 147). E o
que mais importa aqui é que encontramos indícios indiretos dessa
mudança no livro.
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Scott Head

Voltando à questão da ‘alma’ de Mestre Russo e dos indícios a


seu respeito que constam no livro de sua autoria, importa notar a
citação no livro de um ditado de um dos principais ‘ancestrais’ da
capoeira – tido por muitos como o principal convencionalizador do
estilo ‘tradicional’ da Capoeira Angola. O ditado encontra-se numa
seção do livro chamada “Rememorando Mestre Pastinha”, que consta,
por sua vez, como parte de uma série de outras ‘rememorações’,
todas de antigos mestres reconhecidos como ancestrais da capoeira
– exceto, talvez, a última, chamada “Rememorando Jorge Amado”.
As ‘rememorações’ não seguem uma ordem cronológica, se bem que
todas começam com referências à data de nascimento do mestre sendo
rememorada, uma convenção biográfica que só não é utilizada para o
próprio autor, cuja referência à sua data de nascimento (1956) só en-
contramos na penúltima seção do livro, “Sobre o autor”, mais um
indício do deslocamento enigmático do sujeito em questão. Mas agora
passo à citação do ditado de Mestre Pastinha: “O capoeirista não é
aquele que sabe movimentar o corpo, mas sim, aquele que deixa o
corpo ser movimentado pela sua alma” (Pastinha apud Russo de
Caxias, 2005, p. 40).
Uma vez que, em sua dedicatória ao primo, Mestre Russo já
havia afirmado que “a arte do jogo” consistia na “essência” de sua
alma, levar ambas essas afirmações a sério implica que a alma que
movimenta seu corpo no jogo é o próprio jogo tornado alma. Sem buscar
explicar ou fixar o movimento da alma do autor em questão, apenas
acrescento uma hipótese. Apropriando os termos encenados nas ‘con-
versas’ entre Wagner e o coiote em Coyote Anthropology (2010b), per-
gunto se o devir implicado no próprio nome de Mestre Russo de Caxias
e estendido nas suas rememorações de outros mestres e persona-
gens envolve menos a personificação (“impersonation”) de certa iden-
tidade sociocultural do que a ex-personificação (“expersonation”) de
sua alma como uma alma-em-movimento que, desse modo, menos
“se rememora” através das referências aos outros mestres do que se
prolifera a partir dessas variadas incorporações ancestrais da alma da
capoeira.

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66
Reinventando a roda: inversões e reversões de uma antropografia do sujeito

De todo modo, termino esta primeira seção com um último in-


dício do movimento enigmático que se realiza no livro através do
deslocamento de certas convenções com as quais se costuma
posicionar o autor como sujeito central do livro. Ainda antes da foto
borrada de Russo como menino, encontramos um retrato mais for-
mal, dessa vez de um adulto cuja barba branca já sugere certa idade.
Só que esse retrato, que assume um lugar de destaque na página
logo depois daquela do título, não é do autor do livro, mas, como diz
na legenda, consiste num retrato do “autor da pintura da capa do
livro”. Mas, antes de voltar àquela capa, desvio nossa atenção pri-
meiro para a imagem da capa de um outro livro.

***

Trata-se, no caso, de uma imagem ausente – ausente da capa de


A invenção da cultura (Wagner, 2010a), tal como traduzido e publica-
do no Brasil. A imagem em questão, presente na capa original do
livro publicado em inglês, consiste na litografia bastante familiar de
Maurits Escher, Drawing Hands. Deixo o título em inglês, no caso,
porque só quando fui traduzi-lo me dei conta de que, como ele repe-
te em palavras a própria duplicidade singular da imagem, teria que
traduzi-lo em algo como Desenhando mãos e Mãos que desenham – ao
mesmo tempo. Mesmo em inglês, portanto, para ler o título conforme
a figuração da imagem, teria que ler ambos os significados como que
simultaneamente. De fato, poderia ser dado o título Mãos que se dese-
nham, o que em inglês seria Hands Drawing Themselves, mas, desse
modo, perderia justamente o paradoxo no cerne da imagem. Ou
seja, só traduzindo ‘errado’ daria certo, mas nesse caso dando certo
perderia a graça.
Mas por que nos determos nessa imagem? Na verdade, quando
reparei sua ausência na capa de A invenção da cultura no Brasil, logo
associei tal mudança a um aspecto um tanto recorrente na recepção
em geral bastante inspirada das ideias de Roy Wagner no Brasil: no
caso, a tendência de contrapor Wagner aos proponentes de uma an-
tropologia dita ‘pós-moderna’. Pois eu vi a imagem de Escher em

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67
Scott Head

questão como se referindo a um ato comumente associado a esta


vertente teórica da antropologia – o ato de escrever; não é por acaso
que o título da principal obra referida nas críticas da ‘antropologia
pós-moderna’ no Brasil é Writing Culture (Clifford e Marcus, 1986).
Só que, em algum momento, me dei conta de algo que talvez teria
sido óbvio desde já se não fosse essa minha reação à figuração
contrastante de Wagner: que, no caso, o desenho de Escher não tra-
ta propriamente do ato de escrever, mas sim de desenhar. Portanto, a
motivação inicial por trás da minha referência à imagem ausente se
desfez.
Ainda bem! Pois foi através dessa minha ‘falha’ na percepção da
imagem que passei a reparar que é justamente nisso que consiste o
aspecto singular de Wagner com respeito à problemática do escrever
da antropologia: ele menos escreve do que desenha com palavras – e
as figurações que ele assim traça assemelham-se de certo modo a
essa do Escher. A esse respeito, Tim Ingold (2007, p. 3) oferece certo
fundo antropológico para essa figuração, ao ressaltar tanto as conti-
nuidades quanto as diferenças entre esses modos:
Enquanto o escrever for entendido em seu sentido original
como uma prática de inscrição, não pode haver nenhuma
concreta distinção entre escrever e desenhar [...]. Na
digitação e impressão, é quebrado o laço íntimo entre o
gesto manual e o traço que inscreve. O autor conduz o
sentimento por sua escolha de palavras, não pela
expressividade de suas linhas.

No caso do Wagner, o modo como ele articula suas palavras e


compõe seus conceitos e(m) seus textos introduz figuras recursivas
no fluir do argumento de que são tudo menos ‘floreios’ ou
‘embelezamentos’ às proposições teóricas e aos dados etnográficos
oferecidos.
Vejamos, por exemplo, sua discussão das formas de inscrição
iconográfica do povo Walbiri na Austrália Central, descritas por Nancy
Munn (1973 apud Wagner, 1986, p. 19-24), que dizem respeito tan-
to aos desenhos de pisadas que vários animais, assim como eles mes-
mos e seus ancestrais, deixam ao movimentar-se através da paisa-

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Reinventando a roda: inversões e reversões de uma antropografia do sujeito

gem quanto às impressões deixadas na areia que acompanham os


relatos orais dessas trajetórias. Como Wagner (1986, p. 21) comenta
a respeito dessas múltiplas formas de rastro:
Pois um rastro representa a si mesmo como um microcosmo,
como ser e movimento comprimidos em um plano bi-
dimensional, e desta forma implica na incorporação mais
plena deste ser e deste movimento como aquilo que fez o
rastro.

Mais à frente, ele estende essa observação da seguinte forma:


[…] a dialética entre codificação microcósmica e produções
estética sensorialmente ricas não é de forma alguma
limitada aos walbiri, ou aos aborígines do deserto central.
Ela é de fato a condição do simbolismo humano: uma
polaridade ou contraste que opõe uma codificação
simbólica artificialmente restrita a uma imagética icônica
também artificialmente expandida (Wagner, 1986, p. 23).

É algo nesse sentido que sugiro quando digo que Wagner es-
creve “desenhando”. De forma semelhante ao sentido figurado por
esses rastros ou pela própria imagem de Escher, ambos implicam
corpos de três dimensões, apesar de serem comprimidos em um pla-
no de apenas duas. Mas como assim? Seu modo de pensar escreven-
do e de escrever pensando não só representa ou se refere, mas – de
certa forma – se assemelha às formas culturais por ele descritas. Ape-
nas de certa forma, pois certamente não se trata de imitar tais formas,
mas de criar uma relação analógica entre os fluxos de sua escrita e os
processos de criação, convencionalização e subjetivação das formas
‘nativas’ em questão – inclusive as de sua ‘própria’ cultura. Digo isso
no sentido de que seu modo de escrever tende a configurar ou dar
corpo à dimensão não referencial, figurativa da linguagem, que tanto
sustenta quanto desloca e inverte sua função referencial. Ele escreve
com algo da duplicidade singular das palavras conjugadas do título da
imagem: Drawing Hands. Ou seja, ao desenhar tais formas-em-movi-
mento, ele tanto salta quanto ressalta as diferenças sendo traçadas – e
a relação recursiva entre elas.
Ao mesmo tempo, Michael Taussig (2009, p. 270) comenta a
respeito da conceituação do ato de desenhar de John Berger: “uma
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69
Scott Head

linha traçada é importante não tanto pelo que registra quanto pelo
que te leva a ver”. Seguindo nesse sentido, o escrever de Wagner
também se refere a outros modos de figurar a linguagem e configurar
o mundo ao redor, convertendo um no outro como se movimentan-
do num laço torcido mas contínuo, apesar de seus nós – como os
pontos dos lápis naquele desenho, onde tanto se articula à diferença
entre o ‘dentro’ e o ‘fora’ quanto a desfaz, e onde o fim se encontra
com o começo e o ‘outro’ começa onde o ‘eu’ acaba.
Tendo aberto esse longo parêntese teórico-figurativo referin-
do-me a uma imagem ausente da capa de A invenção da cultura, fecho
o parêntese referindo-me à imagem da capa de An Anthropology of the
Subject (2001), que nesse caso consiste numa figura igualmente
recursiva e autocriadora, só que essa se cria através de um relâmpa-
go saindo de duas mãos, em vez do grafite deixado pelo lápis nas
mãos de Escher – neste caso a figura foi desenhada pelo próprio
autor do livro!

Figura 1 – A rede de Indra


Fonte: Wagner, 2001, p. 14 (desenhado pelo autor).

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Reinventando a roda: inversões e reversões de uma antropografia do sujeito

***

Sem buscar ligar, por enquanto, essa discussão de volta ao ‘sujei-


to’ deste ensaio, volto nossa atenção há uns dez anos antes da publi-
cação do livro de Mestre Russo. Voltamo-nos, no caso, à certa forma
particular de roda que aconteceu no segundo andar do Sindicato dos
Petroleiros no Centro do Rio de Janeiro, onde o grupo de Capoeira
Angola ao qual eu pertencia praticava esse estilo dito ‘tradicional’ da
capoeira. Com esse outro desvio busco elaborar um pouco do fundo
etnográfico contra o qual a figura do livro de Mestre Russo de Caxias
se destaca – se bem que não é tão simples assim.
No caso, estávamos sentados numa roda, só que não no chão,
como seria o caso de uma roda de Capoeira (Angola), mas em cadei-
ras ao redor de uma ‘mesa redonda’ improvisada pelo agrupamento
de várias mesinhas de escritório que havia na sala onde treinávamos
capoeira três vezes por semana, mesas tipicamente empurradas para
os cantos da sala para abrir espaço para treinar. Toda semana, naque-
la época (entre 1994 e 1996) e naquela sala cedida pelo Sindicato,
treinávamos segundas, quartas e sextas durante duas ou até três horas,
e fazíamos, uma vez por mês, uma ‘roda de rua’ na Praça da Cinelândia,
no Centro do Rio de Janeiro. Periodicamente – também uma vez por
mês em teoria, um pouco menos na prática –, nós substituíamos
uma roda de capoeira por uma dessas rodas de leitura. Se bem que
essas ‘rodas’ eram apenas uma versão mais formal das falas que se
seguiam quase toda aula de capoeira – ‘conversas’ comumente con-
sistindo mais propriamente num monólogo do mestre que se esten-
diam às vezes por mais de uma hora.
Ou seja, tanto a substituição ‘ritualizada’ da capoeira pela
‘papoeira’ – como costumávamos brincar – quanto o próprio desloca-
mento das mesinhas dos cantos da sala para compor a ‘roda’ no seu
centro envolviam justamente uma inversão de figura e fundo, em
que o discurso metacultural literalmente tomava o lugar da prática cul-
tural da qual se falava a respeito ou ao redor.
Mas aqui as próprias conversas que se desdobraram nesses
momentos também eram capazes de, se não reverter tais inversões,
pelo menos tencionar ou vibrar as suas frestas – e, assim, permitir

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Scott Head

vislumbrar um ofuscar desses limites. Sem mais contextualização


explícita da minha parte, deixe-me passar à ‘transcrição direta’ de
uma dessas falas, apenas inserindo os nomes dos ‘sujeitos’ em ques-
tão. Nesse caso, faço uso dessa ficção objetivista de apresentar a fala
em questão, pretensamente sem ‘interferência’ da minha parte (além
de certas pequenas elisões do ‘ruído’ da oralidade), justamente para
mostrar como a própria fala que segue acaba abalando essa pretensão.
João:
– É o seguinte: a gente tem escolhido alguns textos para
fazer esses seminários de leitura. Esses textos têm um
objetivo, que é ao mesmo tempo trabalhar e aprofundar a
questão da capoeira [...] a gente entender um pouco mais
sobre aquilo que nós estamos praticando, quer dizer, o que
nós estamos treinando aqui dentro, e outros textos
também, em que se encontra [...] que nos informam sobre
a questão do negro no Brasil, sobre outros aspectos da
cultura. E este texto agora, […] que dá uma introdução
geral, apesar de ter uns erros, mas dá uma visão da capoeira,
comparando a capoeira Angola com Regional [...].
Daniela:
– Quais são os erros que tem neste texto?
João:
– É porque tem uma parte aqui onde fala que João Grande
e João Pequeno foram alunos do Mestre Bimba [...].
Sacanagem, né? Eu não sei se isso foi na hora de copiar ou
se entendeu errado, mas nenhum desses dois foi aluno do
Bimba.
Baba:
– Essa falha, esse tipo de falha ocorre. Quem não conhece direito a
história quer falar coisas que não sabe então puxa a imaginação
com esse tipo de falha. Isto é normal, a gente não tem que se
espantar […] com certas histórias que se ouve falar, ouviu dizer,
não [...]. A gente nunca deve se impressionar com isso, que às vezes
as pessoas escrevem certos textos nos jornais, às vezes até livros,
que não têm nada a ver com a coisa genuinamente da Capoeira
Angola. Não tem a ver. A gente tem que saber que [...] muita
coisa que se tem escrita, milhões de livros, simplesmente se você
pegar para ler profundamente, não tem nada a ver com capoeira
– o cara não conhece nada de Capoeira Angola, ele é um curioso
que simplesmente sabe falar meia dúzia de palavras de capoeira e

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Reinventando a roda: inversões e reversões de uma antropografia do sujeito

tem a cisma de achar que ele sabe – não sabe nada! Eu já


presenciei vários contextos dessas pessoas que botam coisas escritas
que não têm nada a ver, não manja nada, só o que um falou, o
outro disse, e alguém concluiu para ele, mas saber a fundo, não
sabe. Eu acho que a gente tem que saber que a consciência da
Capoeira Angola, ela tem que ser sempre lida, na minha concepção,
lida por quem gosta da capoeira, quem tem admiração, quem tem
laços, eu não sei, fraternos ou espirituais com a capoeira […].

Voltando-nos para o livro de Mestre Russo através da perspecti-


va afirmada acima por (atualmente, Mestre) Baba, na medida em
que a grande maioria daquele livro consiste em citações das falas e
de textos de outros praticantes e pesquisadores, ele poderia ser lido
como exemplificando justamente o pior tipo de texto sobre capoeira
– um daqueles ‘milhões’ de livros que apresentam “só o que um falou,
o outro disse, e alguém concluiu para ele [...]”. Ao mesmo tempo, Mestre
Russo claramente sabe falar bem mais do que “meia dúzia de palavras
de capoeira” – mesmo se o seu ‘sotaque’ nessa linguagem corporal
difira daquele de Baba, por nunca ter ‘se convertido’ num adepto da
Capoeira Angola. Como escreve Clícia de Miranda no Anexo do livro,
inserido logo depois da Apresentação: “O livro de Mestre Russo, mais
do que uma obra biográfica e de contextualização da capoeira cario-
ca, é uma mostra do poder de conhecimento que esta cultura permi-
te [....] um conhecimento apreendido pela arte da cabeçada e da ras-
teira” (Almeida apud Russo de Caxias, 2005, p. 14). Mas é justamen-
te aqui que reside a principal questão a ser elaborada: como figurar a
relação entre tal conhecimento corporal e a composição do livro de
Mestre Russo? Ou como tal relação é já configurada no livro? E im-
porta salientar aqui que a questão é “como” e não “qual é” tal rela-
ção: pois tal relação consiste não num ‘objeto’ ou ‘texto’ a ser inter-
pretado pelo antropólogo, mas numa figuração etnográfica e
encorporada do sujeito antropográfico.
Além do deslocamento constante dos indícios da voz autoral e
da constante substituição dessa voz por citações de outros textos e
depoimentos das mais variadas fontes, o livro apresenta centenas de
personagens de modos bastante distintos, desde a série de
‘rememorações’ dos ancestrais que já comentei, passando por cita-

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Scott Head

ções e comentários a respeito de Baden Powell, do tropicalismo, da


proibição da capoeira, da censura cultural da Ditadura Militar. Não
há nenhuma seção diretamente sobre a presença da mulher na roda,
mas há uma seção contada em primeira pessoa da experiência de
uma capoeirista mulher entrando na Roda Livre pela primeira vez e
tocando o berimbau.6 Logo após a seção criticando a ‘academização’
da capoeira como um esporte disciplinado, citam-se várias longas
passagens tiradas de teses acadêmicas que mencionam a Roda Livre.
Para além dessas referências tão variadas entremeadas com histórias
da roda de rua em si e do envolvimento do autor nessa roda, encon-
tram-se, ainda, mais de cem fotos de capoeira e retratos de pratican-
tes que frequentavam a roda – entre elas algumas de minhas foto-
grafias.
Apresentado desse modo, o livro em questão parece até uma
caricatura do comentário de Marilyn Strathern (2004, p. 10) de que
“these days not all texts are intended to ‘add up’” (“estes dias nem
todos os textos ‘se completam’”). Ela continua:
Textos que não se completam são supostamente
encontrados nos gêneros pós-modernos que
deliberadamente justapõem incomensuráveis narrativas. A
constatação que completude é uma retórica em si mesma é
incansavelmente exemplificada em colagem, ou coleções
que não coletam mas exibem a intratabilidade de elementos
díspares. [...] um tipo de acentuação de cortes de eventos
percebidos, momentos, impressões. E se os elementos são
apresentados como vários re-cortes, eles são inevitavelmente
apresentados como partes oriundas de outros tecidos, de
partes maiores em algum outro lugar (p. 11).

De fato, encontramos justamente uma colagem fotográfica de


64 retratos de capoeiristas (oito deles sendo de Mestre Russo) na
página ao lado do Sumário com a longa lista de títulos das 37 seções
do livro(!); assim localizada, a colagem poderia bem ser lida tanto
como sinédoque quanto como metáfora do livro, cujas ‘partes’ são
apresentadas mais linear e literalmente no Sumário ao lado. Mas aqui
devemos entrar na ‘roda’ dessa comparação que as palavras de
Strathern nos convidam a fazer com o livro de Mestre Russo com

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Reinventando a roda: inversões e reversões de uma antropografia do sujeito

bastante precaução, contestando a crítica ali implicada. Primeiro, o


livro de Mestre Russo certamente não foi escrito como um exemplar
da literatura ‘pós-moderna’ – em que tal forma experimental de com-
posição tornou-se certa convenção. Segundo, esse livro, como for-
ma particular de colagem, é menos dirigido a um leitor qualquer que
a pessoas que já têm alguma ligação ‘fraternal’ ou ‘espiritual’ com a
capoeira (como dizia Baba acima) – não é por acaso que Mestre Rus-
so costuma vender seu livro justamente nas rodas que frequenta.
Desse modo, o conhecimento encorporado desses leitores já ajuda a
‘saltar’ entre as citações apresentadas no texto, sem mais explicações
ou a constante presença de uma voz em terceira pessoa para interli-
gar tais ‘fragmentos’. E, terceiro, eu diria que as ‘incomensuráveis
narrativas’ desse livro, mais do que ‘deliberadas’, são improvisadas ou,
pelo menos, seu modo de textualização apela à própria natureza im-
provisada do jogo de capoeira e mais particularmente do “grupo de
rua” que inaugurou a Roda Livre.
Para dar corpo a esta última afirmação, passo às palavras de Mes-
tre Rogério (apud Russo de Caxias, 2005, p. 63), velho “companhei-
ro de batalha” de Mestre Russo, cuja voz aparece várias vezes no
livro:
Eu acho uma situação interessante com relação a nossa
saída da academia do Mestre Barbosa, que foi um racha, e
essa dissidência não virou um grupo de salão, mas virou
um grupo de rua, que é um sistema livre de se organizar
[...]. [E]ncontramos uma situação que não tinha leis
determinadas, mas existia a Lei, cada um a trazia, sabia o
que tinha que ser feito na roda de capoeira e cada um trazia
o seu pedaço [...] e não existia, na verdade, na época, uma
pessoa que dissesse ‘é assim’; [...]. Não havia um Mestre
entre nós, mas todos nós nos orientávamos em fazer a
capoeira.

Note-se, de passagem, o aspecto um tanto radical de tal afirma-


ção, no contexto da capoeira, considerando a quase obrigatoriedade
de haver um mestre, segundo tantos mestres e praticantes, para os
quais não haver um mestre costuma ser associado a uma renúncia à
própria ‘tradição’ dessa arte. Mas nesse caso foi justamente um ato

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de dissidência com tal mestre que levou à formação dessa roda de


Duque de Caxias, que se tornou, por sua vez, a roda certamente mais
‘tradicional’ no Rio de Janeiro, em grande parte por ter durado ou
‘resistido’ tanto tempo sem ‘pertencer’ a ninguém – o próprio Mes-
tre Russo faz questão de ser chamado de ‘zelador’ (em vez de ‘mes-
tre’) da Roda Livre. E foi essa própria roda de rua – como testemu-
nham vários dos ‘idealizadores’ ou de ‘expressões’ da Roda Livre –
que eventualmente passou a ‘formar’ seus mais antigos participan-
tes como reconhecidos ‘mestres’.
Mas a descrição de Rogério faz algo mais do que apontar para a
singularidade da ‘história de vida’ da Roda Livre. Quando lida como
metáfora do próprio texto em que é inserido, sugere que Mestre Russo
incorporou algo da ‘forma livre’ de expressão implicada naquela roda
na própria composição de seu livro – assim como no devir de sua
própria vida, como já discuti. Mais (ou menos) do que implicar vári-
as outras ‘partes’ cortadas de outros lugares, e desse modo uma co-
leção de fragmentos que “não se completam” (Strathern, 2004, p.
10), as variadas partes e igualmente variados personagens dos quais
o livro é composto implicam um constante movimento de recomposição –
assim como, com respeito à roda em si, cada componente “trazia o
seu pedaço” que contribuía ao mesmo tempo com a ‘Lei’ da compo-
sição da roda em questão. E, quando o livro de Mestre Russo é lido
dessa forma, como não só descrevendo ou se referindo ao jogo im-
provisado da Roda Livre, mas incorporando sua forma livre no próprio
fluir do texto, saltando entre as partes das quais é composto, tal pers-
pectiva envolve uma inversão de figura e fundo. Essa é uma inversão
semelhante – mesmo que em sentido reverso – àquela da roda de
leitura de uns dez anos atrás, tal como descrevi antes, que periodi-
camente substituía a nossa roda de capoeira no espaço improvisado
na sede do Sindicato dos Petroleiros. Quando figurada nesse sentido,
ressaltando o movimento ‘encorporado’ que anima o desdobrar do
texto, é a própria Roda Livre – que não por acaso é quase sempre
referida no livro com letras maiúsculas, assim como um nome próprio
– que se torna o principal outro sujeito ativo (ver acima Wagner, 2001)
do livro em questão, além de seu autor (ou, aliás, de seus leitores).

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Reinventando a roda: inversões e reversões de uma antropografia do sujeito

Finalizando essa reflexão, chegamos à seguinte questão: se o


livro de Mestre Russo for assim lido como um relato móvel – mas
tudo menos linear – e dançante – mas também marcado por conflitos
– da ‘história da vida’ da Roda Livre, então como é que tal vida narra-
da se relaciona com a antropologia do sujeito, tal como elaborada
por Wagner?
Aqui, deixe-me retornar nossa atenção à segunda frase da Apre-
sentação de Mestre Russo, só que dessa vez precedendo tal frase com
uma de Wagner, como se fizessem parte da mesma reflexão:
Perceber o mundo como a reação do ‘eu’ ao mundo, é claro,
é perceber um mundo refratado, defletido através do prisma
do ‘eu’ (Wagner, 1991). Nesse volume serão encontrados
fatos que me consolidaram como pessoa e que me deram
estrutura suficiente para fazer da minha vivência na
capoeiragem uma história que se revela em forma de
documentário (Russo de Caxias, 2005, p. 10).

Lidas em conjunto, tais frases nos apontam para o enigma de


como a ‘pessoa’ de Mestre Russo serviria tanto como projetor quanto
como tela de tal “documentário” sobre “a história da capoeira em
Duque de Caxias” (Russo de Caxias, 2005), como consta na frase
anterior no livro em questão. Nesse sentido, a relação entre Mestre
Russo, seu livro e a roda a que diz respeito envolveria um movimen-
to giratório semelhante àquele já comentado anteriormente com res-
peito a Drawing Hands de Escher. Tal ‘roda’ poderia ser igualmente
assemelhada aos desenhos dos Walbiri – e o “simbolismo humano”
em geral –, tais como comentados por Wagner (1986, p. 23) em
Symbols that Stand for Themselves, como envolvendo a transformação
contínua entre “uma codificação simbólica artificialmente restrita”
e “uma imagética icônica também artificialmente expandida”.
Assim como anteriormente nos voltamos para o próprio dese-
nho “autogerador” de Wagner que consta na capa de An Anthropology
of the Subject, terminamos essa reflexão voltando-nos, enfim, para a
imagem da capa da frente do livro de Mestre Russo. Pois, naquela
imagem, pintada por um pintor que virou amigo de Mestre Russo,
Aluysio Zaluar, encontramos outra figuração instigante de uma roda-
em-movimento.

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Figura 2 – Pintura de Aluysio Zaluar


Fonte: Russo de Caxias, 2005, capa de frente.

O movimento em questão, na verdade, desdobra-se com respei-


to ao próprio movimento de Mestre Russo na roda da pintura: seu
‘parceiro’ (e oponente) no jogo só aparece em uma das cinco figura-
ções do mestre na pintura. A roda, ela mesma, faz igualmente parte
do movimento figurado na pintura, pois os seus dois ‘lados’ – se um
círculo pode ter lados – encontram-se dobrados, ou desdobrados,
um por cima do outro; desse modo, as duas perspectivas contrárias –
a dos músicos e a da audiência – são figuradas no mesmo plano de
composição da pintura. Mas esse modo de figurar a roda em termos
da mútua reversão dessa perspectiva face a face compõe algo como o
fundo comum às figurações de Mestre Russo – essas parecendo des-
locar-se no sentido horário.
Assim como o livro, a pintura em questão passa a “compreen-
der” a perspectiva deste meu ensaio, desdobrando as partes que o
compõem como também envolvidas numa roda de conexões mó-

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Reinventando a roda: inversões e reversões de uma antropografia do sujeito

veis. A primeira figura de Mestre Russo na pintura é agachada ao ‘pé


do berimbau’, no canto direito acima, em frente aos músicos, com
seu braço parcialmente levantado indicando o início do movimento
ou de ‘entrada’ na roda: essa é a introdução que também introduz
indícios da ‘pessoa’ de Mestre Russo. A segunda figura mostra o
mesmo mestre fazendo uma ‘chamada na mandinga’ que consiste
em um ‘jogo dentro do jogo’ com suas próprias regras, ao mesmo
tempo que faz parte do jogo; essa é o nosso parêntese teórico-figura-
tivo sobre Drawing Hands de Escher e sobre como Wagner escreve de
forma parecida. A terceira figura consiste num jogo em pé, com
Mestre Russo “encarando” seu parceiro e oponente virtual na roda;
foi assim que, no pequeno relato etnográfico da roda de leitura, Baba
encarou de frente a pretensão de ‘representar’ a capoeira através da
escrita sem ter ‘laços fraternais’ com o jogo em questão. A quarta
imagem consiste no abraço que serve como conclusão do jogo, as-
sim como busco aqui ‘completar’ o jogo deste ensaio – mas tome
cuidado na hora de aproximar-se! E a quinta imagem (acima no can-
to esquerdo) é a própria pessoa de Mestre Russo saindo dessa ou
qualquer outra figuração e levando a Roda Livre consigo para o
mundo afora.

Notas
1
Início de um poema de Trinh T. Minh-ha (1989, p. 5): “me fizeram crer / que nós que
escrevemos também dançamos / mas nenhum dançarino escreve / (da forma como
escrevemos) / nenhum escritor dança / (assim como elas dançam)”.
2
O que é um livro ‘popular’? Tal adjetivo indica mais claramente o que não é do que
o que é: no caso, não é um texto ‘acadêmico’ – como este, por exemplo. Mas tal
distinção é capaz de confundir mais do que iluminar, na medida em que leva a
pressupor que o primeiro seja necessariamente mais legível (readerly), no sentido
dado por Barthes (1974) de se direcionar a uma leitura passiva em que o sentido do
texto é tido como pré-constituído. Como veremos, o livro em questão assemelha-se
mais ao que Barthes elabora como um texto escrevível (writerly), por prestar-se a
múltiplas leituras e por demandar que o leitor contribua ativamente no tecer de seu
significado.
3
Importa notar aqui que a ‘antropografia’, tal como conceituada por Jean-Paul Dumont
(1986), envolve uma reflexividade voltada menos às interações do etnógrafo na
situação de pesquisa do que ao próprio processo de escrever.
4
“[…] the fact that no particular theoretical approach, even in combination with
others, can be used effectively to gain a purchase over the anthropological subject.”

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Scott Head

5
Sherry Ortner (2007, p. 376) chega a afirmar que “o desenvolvimento da teoria
social e cultural durante todo o século XX” poderia ser figurado “como uma luta
sobre o papel do ser social – a pessoa, sujeito, ator ou agente – na sociedade e na
história”. Se assim for, a história do nosso sujeito mais especificamente antropológi-
co e textual figura-se contra esse fundo sociológico e ‘contextual’ bem mais amplo de
teorias do sujeito e afins.
6
Trata-se de Gegê, uma reconhecida capoeirista com quem eu mesmo já joguei em
outras rodas, tanto no Rio quanto nos Estados Unidos. Com respeito à questão da
‘mulher’ no livro, há também outros indícios dispersos pelo livro que no mínimo
marcam essa ausência apenas relativa – como umas poucas mulheres que constam
nas fotos ou os comentários aqui e ali da esposa de Russo, que em certo momento
diz: “Quando eu conheci o Jonas – Russo – sabia que ele era casado com a capoeira,
aceitei ser sua amante e dei a ele dois filhos” (apud Russo de Caxias, 2005, p. 94).

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Recebido em: 29/09/2011


Aceite em: 10/10/2011

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81
Sobre a ilusão de ter: reflexões an/
tropológicas1

Evelyn Schuler Zea


Universidade Federal de Santa Catarina, Florianópolis, Brasil
E-mail: evelynsz@gmail.com
Evelyn Schuler Zea

Resumo Abstract

Este artigo propõe um seguimento do This article extends the project of cultural
projeto de reconfiguração cultural de reconfiguration proposed by Roy Wagner
Roy Wagner exposto, entre outros tex- in, amongst other texts, Symbols that Stand
tos, em Symbols That Stand for for Themselves. It deals, in particular, with
Themselves. Trata-se, em particular, de the implications involved in attributing to
ver as implicâncias de atribuir à analo- analogy the role of “organizational prin-
gia o papel de “princípio de organiza- cipal”. Through a series of indirections, it
ção” cultural. Através de uma série de calls upon motifs of Saussure, Marx and
rodeios, motivos de Saussure, Marx e Wallace Stevens so as to delineate, through
Wallace Stevens são convocados para contrast, the reach of Wagner’s analogical
circunscrever, por contraste, os alcan- principle. Referring to certain conceptual
ces do princípio analógico de Wagner. figures amongst the Waiwai of North
Tomando como referência figuras Amazonia, certain modes of certainty are
conceituais entre os Waiwai do Norte shown to extend beyond the genealogy of
Amazônico, colocam-se modos even- that principle. On a supplementary note,
tuais de certeza para além das it questions the “illusion of having” as the
genealogias do princípio. De modo su- submerged part of the will of a principle.
plementar, põe-se em questão a “ilu-
são de ter” como parte submersa da Keywords: Notion of a Priciple. Analogy.
vontade de um princípio. Genealogies. Paralax. Waiwai.

Palavras-chave: Noção de princípio. Ana-


logia. Genealogias. Paralaxe. Waiwai.

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Sobre a ilusão de ter: reflexões an/tropológicas

S ymbols that Stand for Themselves, o livro de Roy Wagner publicado


em 1986, é o que poderia se denominar um ensaio em antropolo-
gia, ou seja, uma indagação sobre o que pode a metáfora – o tropo –
como “princípio de organização” da cultura. Trata-se de um amplo
projeto que Wagner desenvolve sem subtrair as grandes questões
teóricas que aparecem em tal empreendimento. Suas abordagens, às
vezes um pouco ensimesmadas ou apertadas na sua formulação, não
deixam nenhuma dúvida sobre a relevância de seus motivos. No que
segue, acompanho alguns aspectos desse projeto, formulando per-
guntas suplementárias e convocando respostas diversas.
Para Wagner, a cultura de uma comunidade está feita do fluxo e
da sedimentação das metáforas inventadas nela. As relações de sen-
tido que a constituem não são unidades introvertidas, mas analogi-
as; a mesma cultura que as tece é, por extensão, “analogy based on
(and subversive to) other analogies” (Wagner, 1986, p. 6). Esse en-
foque deixa de ver na metáfora um fenômeno local ou periférico e
assume antes sua confluência com o sentido cultural na constitui-
ção do que podemos chamar o sentido analógico da cultura. Se fosse
o caso de traçar um paralelo filosófico para apreciar devidamente o
alcance dessa tese, parece-me que não seria desatinado compará-la
com aquela declaração categórica de Nietzsche segundo a qual, “pro-
priamente, tudo é figuração” – “eigentlich ist alles Figuration”
(Nietzsche, 1973, p. 373).
O projeto wagneriano de reconfiguração analógica do mundo e
de nossa visão dele demanda uma atitude particularmente reflexiva,
posto que seu desenvolvimento suscita a cada passo excisões e deci-
sões, motiva cismas e novas alianças. Sua trajetória é, de fato, uma

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volume 12 - número 1

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Evelyn Schuler Zea

sequência de encruzilhadas relacionadas às marcas distintivas das


articulações analógicas de sentido, da fundamentação e da orienta-
ção que elas proporcionam.
Uma primeira encruzilhada tem a ver com a decisão a favor da
metáfora, com os motivos que levam Wagner a ver nela um horizon-
te alternativo. Das múltiplas respostas possíveis, gostaria de conside-
rar aqui o que pode chamar-se o fator negativo dessa opção, ou seja,
em que medida ela aparece em oposição a alguma outra colocação.
No caso de Symbols that Stand for Themselves é evidente a insatisfação
de Wagner em relação ao que ele considera que são os pressupostos
e os alcances da semiologia saussuriana como ciência dos signos.
Suas objeções apontam, sobretudo, para o fato de que, sob esse en-
foque, um sistema de códigos abstratos racionaliza e subordina
(Wagner, 1986, p. X) a vida dos sentidos. Restrição e manipulação
são outras tantas imputações a esse sistema, e, na versão de Wagner,
a figura de Saussure aparece como o resumo de tudo aquilo que seu
projeto busca repensar.
Agora bem, as críticas de Wagner se dirigem à Saussure como
suposto autor do influente Cours de Linguistique Générale. Nos últimos
anos, no entanto, temos visto emergir a figura de um Saussure radi-
calmente distinto a partir da pesquisa de seus escritos não publica-
dos. Refiro-me aos estudos de Patrice Maniglier, La vie énigmatiqué
des signes, de 2006, e, especialmente, ao estudo de Johannes Fehr,
Ferdinand de Saussure: Linguistik und Semiologie, publicado em 1997. Se
de um lado certamente seria impertinente contrapor esse Saussure
revisitado às observações formuladas por Wagner, por outro lado me
parece concebível examinar as eventuais aproximações entre eles,
posto que, em vez de um adversário, Wagner poderia encontrar um
inesperado aliado em Saussure, ainda quando apenas se trate de con-
junções parciais.
As críticas de Wagner à semiologia saussuriana modelam algu-
mas das proposições de seu próprio projeto. Em particular, o caráter
abstrato do signo saussuriano e a suposta subordinação de sentido
operada por ele incidem na definição do sentido analógico
wagneriano como uma forma de percepção e da invenção como seu modo

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Sobre a ilusão de ter: reflexões an/tropológicas

de procedimento. Com o propósito de desmarcar-se da semiologia,


Wagner procura ancorar o sentido na percepção ou, dito de outro
modo, converter a percepção num momento de sentido, assim como
tenta subverter a sujeição do sentido no signo por meio da invenção.
Revisemos brevemente, no entanto, o alcance dessas contraposições.
Numa das suas anotações acerca da vida das línguas, Saussure
diz o seguinte: “O que há [nelas] é transformação, cada vez e sempre
novamente transformação” (Saussure apud Fehr, 1997, p. 151). Isso
se vê, por exemplo, nas incessantes variações motivadas pela trans-
missão de lendas, estudadas atentamente por Saussure no caso da
Canção dos Nibelungos. Os personagens, a trama, sua eventual co-
nexão com fatos históricos, tudo vai mudando incessantemente ao
longo do tempo. Mas o que provoca essa diversificação? De onde ela
toma impulso? A resposta há de se buscar no modo da existência das
línguas. A propensão à mudança procede, segundo Saussure, da con-
dição mesma da língua como “fait social” (Saussure, 1997, p. 118),
ou seja, do fato que ela se atualiza no trânsito de um falante a outro.
É a mesma circulação – esse fator constitutivo, intrínseco à língua –
a que produz a sua transformação.
Desse movimento incessante da língua Saussure extrai
consequências radicais. Assim, em relação ao sistema da língua –
aspecto que tem sido algumas vezes celebrado e outras vezes critica-
do, frequentemente de um modo igualmente unilateral – nos diz
que não pode ser pensado como uma estrutura permanente, mas
antes como um equilíbrio precário, ameaçado de dentro ou, em todo
caso, como um sistema que “apenas existe momentaneamente” –
“immer nur ein augenblickliches [ist]” (Saussure, 1967, p. 105).
O impacto dissolvente desse mesmo fator sobre o signo
linguístico também não é pouca coisa. Do signo diz Saussure que se
caracteriza pela total incapacidade de preservar sua unidade, já que,
considerado em dois momentos diferentes, ele nunca é idêntico a si
mesmo. O signo não tem sequer, diz Saussure, a consistência de uma
“bola de sabão”, constituindo em última instância nada mais que
um vetor fantasmático – “ein Phantom” (Saussure, 1997, p. 428).
Essas anotações me parecem bastar para fazer-nos ver que a
semiologia de Saussure, longe de pretender um ordenamento rígido
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Evelyn Schuler Zea

e substancial, aspira antes ser um estudo da transmissão e transfor-


mação dos signos, ou seja, um estudo de seu processo de circulação.
Um processo do qual a invenção bem poderia ser vista como um de
seus momentos. Na elaboração de Maniglier, essa tendência vai in-
clusive tão longe como para apresentar o projeto saussuriano como
uma ontologia da multiplicidade e falar do signo como um novo tipo
de entidade que apenas existe justamente enquanto se transforma.
O que quero ressaltar, em todo caso, é que as premissas de
Saussure não bloqueiam, mas, ao contrário, favorecem uma con-
cepção dinâmica e analógica dos signos culturais. Também podemos
lembrar em relação a isso sua impaciência diante do movimento dos
novos gramáticos (die Junggrammatiker) e sua proposta de uma
linguística puramente objetiva sob o lema: Chega de figuras! (Keine
Figuren mehr). Esse, comentava Saussure, apenas pode ser o objetivo
daqueles que não têm ideia sobre a vida das palavras (Saussure apud
Fehr, 1997, p. 342).
Se a semiologia saussuriana, portanto, não é necessariamente
incompatível com um enfoque analógico como aquele que Wagner
propõe em Symbols that Stand for Themselves, parece mais difícil, no
entanto, chegar a um acordo em relação à forma do sentido cultural,
posto que a concepção de Wagner do sentido cultural como uma
forma de percepção é a outra cara de sua crítica ao caráter abstrato
do signo saussuriano. Vejamos.
O signo saussuriano é certamente abstrato, mas o é justamente
a partir de uma crítica da orientação empirista da fonética do seu
tempo, que almejava fixar o sistema dos sons na fisiologia das articu-
lações. Em relação a essa tendência, Saussure formulou um prog-
nóstico ou, também poderíamos dizê-lo assim, fez a seguinte aposta:
se pudéssemos – disse Saussure, já que nesse momento ainda não
era tecnicamente possível – fotografar infinitesimalmente cada de-
talhe de uma cadeia sonora, não por isso chegaríamos a distinguir
seus cortes significativos, o que veríamos não seria mais do que um
fluxo sonoro ininterrompido, sem poder demarcar nele nenhuma
articulação de sentido. Saussure ganhou essa aposta algumas déca-
das mais tarde, quando se conseguiu registrar em séries o movimen-

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Sobre a ilusão de ter: reflexões an/tropológicas

to da articulação e se viu que os fonemas, ao contrário do que era


suposto, não apareciam sucessivamente, mas entrelaçados, justapon-
do-se uns aos outros, de tal modo que sua diferenciação é essencial-
mente produto de um ato intelectual e não perceptivo. Do mesmo
modo, segundo Saussure, o papel da percepção na vida das línguas
também não vai muito longe, já que, por exemplo, a transformação
diária que experimenta uma palavra passa completamente desperce-
bida aos sentidos. Não percebemos que uma língua muda com cada
troca de palavras e, quando finalmente advertimos o quanto ela
mudou ao longo de um tempo, digamos ao passar de algumas déca-
das, essa observação não é produto de uma impressão dos sentidos,
mas de uma comparação intelectual.
Até aqui, certamente, estou apenas contornando a posição de
Wagner, já que ele não apenas fala de percepção, mas da percepção
em um espaço simbólico ou, como ele diz, de “perceptions through
language, so to speak” (Wagner, 1986, p. 6), de modo que tudo aci-
ma não é mais que um rodeio, mas um que considero imprescindível
dada a complexidade da proposta de Wagner – e um rodeio que, cer-
tamente, precisa ser sempre complementado por outras aproxima-
ções analógicas. No mais, o que tento aqui não são outras coisas que
rodeios, que, como tais, apostam na sua pluralidade para alcançar
eventualmente alguma forma lenta e diferida de eficácia.
Após examinar preliminarmente a opção pela metáfora, uma
segunda questão que se coloca em relação ao projeto de Wagner é a
opção pelo princípio. Por que adotar essa modalidade no momento de
reconfigurar analogicamente um mundo? Não me parece que se
possa passar por alto ou subestimar a importância dessa eleição, ten-
do em vista a complexidade de suas implicâncias. Apelar a um prin-
cípio supõe decisões, explícitas ou não, no que diz respeito a modos
de fundamentação, formas de relação e orientações de sentido. Ou,
dito de outro modo, essas são outras tantas questões em torno do
desdobramento de um princípio.
Dado que essas questões se justapõem entre si, podemos come-
çar essa abordagem in media res, isto é, examinando a especificidade
das relações na concepção de Wagner. Eis um aspecto que, embora

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Evelyn Schuler Zea

presente em Symbols that Stand for Themselves, se distingue melhor atra-


vés da ideia de extensão desenvolvida anteriormente no livro A inven-
ção da cultura. Extensão significa aí ampliação da cobertura de um
sentido cultural por efeito de sua introdução num contexto inabitual,
no qual dito sentido forja novas relações. Essa ampliação compreen-
de dois momentos: um criativo ou projetivo, no qual o sentido se
expõe abertamente à diferença; e outro de retrojeção, no qual essa
nova experiência é controlada e comunicada por meios convencio-
nais. Ambos os momentos têm a ver com o trabalho da analogia,
que, segundo a fórmula de Wagner, opera “por meio de uma exten-
são do familiar” (Wagner, 2010, p. 61). Ou dito inversamente: “a
invenção requer uma base de comunicação em convenções compar-
tilhadas para que faça sentido” (p. 76).
Tanto a parte que há, em todo evento de expansão, de prolon-
gação do já vivido e conhecido quanto a necessidade de que essa
nova experiência seja assimilada e compartilhada são preocupações
que Wagner coloca em primeiro plano na sua monografia Habu: The
Innovation of Meaning in Daribi Religion, em que os limites de uma re-
lação são marcados por sua comunicabilidade. Para Wagner, o mo-
mento do relato é crucial em toda relação ou, dito de outro modo,
não há extensão sem alguma dose de retenção. Tudo isso põe ênfase
no fator de continuidade numa relação, como se o movimento da
cultura – o vaivém da invenção e do controle – acontecesse através
de ondas que quebram e se requebram sucessivamente seguindo o
pulso de um princípio dominante.
Podemos conceber essa dinâmica de outro modo? Talvez, en-
saiando olhar em um horizonte diferente. Em Symbols that Stand for
Themselves, Marx figura como um dos autores que aparecem na vere-
da teórica oposta e, de algum modo, as críticas de Wagner aos códi-
gos e ao sistema da semiologia saussuriana são também críticas ao
marxismo. Certamente houve, antes e depois do marxismo, impor-
tantes trocas entre a linguística e a economia, particularmente no
que diz respeito às estruturas relacionais. Mas há, além desse nexo,
um ou dois aspectos nos quais Marx continua sendo de particular

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Sobre a ilusão de ter: reflexões an/tropológicas

relevância, se seguimos a interpretação que o filósofo japonês Kojin


Karatani faz de Marx em seu livro Transcritique, de 2003.
Os sistemas relacionais na teoria econômica são anteriores a
Marx e fazem parte do estado da questão com a qual ele mesmo se
confrontou. Já Samuel Bailey enfatizava que “value denotes [...]
nothing positive or intrinsic, but merely the relation in which two
objects stand to each other as exchangeable commodities” (Bailey
apud Karatani, 2003, p. 193). A ruptura que Marx provoca em rela-
ção a esse esquema de compreensão do capitalismo consiste em ado-
tar um ponto de vista heterológico que vai para além do sistema de
relações e leva em consideração as relações entre sistemas diferen-
tes. Isso é um passo decisivo, posto que, como resume Karatani, “only
where there are heterogeneous systems can money transform into
capital that gains surplus value from the exchange between systems”
(Karatani, 2003, p. 227). Ou seja, para entender a lógica capitalista é
preciso radicar-se na diferença ou, para dizê-lo com um termo que
Marx toma de Epicuro, é preciso instalar-se no espaço intermundia,
na rachadura entre mundos diferentes – como diria, por sua vez,
Carlos Castañeda, um dos autores prediletos de Wagner.
Essa distância é o intervalo no qual acontece a crítica ou, como
diz Karatani, a transcrítica de Marx. Mais que um espaço, trata-se aí
de um movimento transversal, de uma permanente transposição entre
mundos ou sistemas de relações. Esse movimento é uma alternância
que se elimina a si mesma enquanto devém outro modo de
posicionamento, seja espacial ou discursivo. Como remarca Karatani
em relação ao Marx transcrítico, “the positionality – whether or not
materialist, radical, concerned with exteriority, and so on – makes
little difference if it is caught within an enclosed discursive system”
(Karatani, 2003, p. 141). A forma de ver específica que corresponde
a esse deslocamento é a visão paralática, isto é, o olhar que não se
detém nem em um termo nem em outro, mas que insiste na sua
diferença e aprofunda nela. Essa perspectiva paralática – que tam-
bém aparece em Wagner de modo crescente em The Place of Invention
– é retomada por Karatani a partir da sua aguda formulação inicial
em Kant, que eu gostaria de citar aqui por sua relevância antropoló-

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Evelyn Schuler Zea

gica. Em Träume eines Geistersehers (Sonhos de um visionário ou, como


também poderia ser traduzido, Sonhos de um xamã), Kant escreve:
I viewed human common sense only from the standpoint
of my own; now I put myself into the position of another’s
reason outside of myself, and observe my judgments,
together with their most secret causes, from the point of
view of others. It is true that the comparison of both
observations results in pronounced parallax, but it is the
only means of preventing the optical delusion (Kant apud
Karatani, 2003, p. 47).

Ou seja, um meio para prevenir a ilusão ótica ou o delírio que


não apenas consiste em pressupor a objetividade do próprio ponto
de vista, mas também em atribuir objetividade ao ponto de vista de
Outrem.
De certa forma, Wagner realiza o movimento ao contrário, alta-
mente relevante, aí onde põe em correlação a relatividade intercultural
com a relatividade intracultural da metáfora. Wagner escreve: “trope
or metaphor, the self-referential coordinate, is relativity compounded;
it introduces relativity within coordinate systems, and within culture”
(Wagner, 1986, p. 5), de tal modo que a metáfora aparece como uma
forma de relatividade concentrada, condensada ou sintetizada. Com
isso nos deslizamos em direção à questão crucial do princípio da ana-
logia como modo de fundamentação ou, melhor dito, de
autofundamentação, já que a tese de Wagner nos fala justamente de
Symbols that Stand for Themselves.
Em relação à genealogia dessa ideia gostaria de tentar um novo
rodeio, agora – ainda que possa parecer excêntrico – através de algu-
mas notas do poeta norte-americano Wallace Stevens, sobre o qual
Wagner tem se manifestado com admiração. Em seu ensaio Effects of
Analogy, Stevens contrapõe dois exemplos clássicos do uso da analo-
gia tomados da literatura norte-americana e francesa.
De um lado, ele cita a obra de John Bunyan como exemplo de
um modo referencial da analogia, em que “we are rather less engaged
by the symbols than we are by what is simbolized” (Stevens, 1997, p.
708). De outro lado, ele considera as fábulas de La Fontaine como

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Sobre a ilusão de ter: reflexões an/tropológicas

paradigma do que poderíamos chamar de símbolos resistentes ou,


para o caso, Symbols that Stand for Themselves. Neles, “We are not
distracted. Our attention is on the symbol, which is interesting in
itself” (p. 708).
Stevens, no entanto, não se limita a contrastar essas duas mo-
dalidades, pois em seguida comenta que essa diferença talvez seja de
nacionalidade, mas que para ele se torna interessante como diferen-
ça, ou seja, naquilo que ela tem de irredutível. Eis um apontamento
que, por sua interposição, bem poderíamos considerar transcrítico
e, mais ainda, se consideramos que vem acompanhado por um efeito
paralático: “there is a third reader”, diz Stevens, e é aquele que diri-
ge sua atenção às prismatic crystallizations (Stevens, 1997, p. 709)
induzidas pelas interações do símbolo e do relato. Esse efeito
prismático converte um reflexo, isto é, o que deveria ser uma forma
de identidade, em uma refração, deixando entrever que a metáfora
não é um modo de fundamentação, mas, ao contrário, um modo de
suspensão e oscilação. Alguns dos maiores poemas de Stevens am-
plificam já no título essa visão e radicalizam-na, como ocorre, por
exemplo, através da afirmação da aparência em Description without a
Place, em que Stevens (1987) escreve:

É possível que parecer – seja ser It is possible that to seem – is to be


Como o sol é algo que aparece e é. As the sun is something seeming and it is.
O sol é um exemplo. Do que parece The sun is an example. What it seems
E é e todas as coisas são em tal parecer. It is and in such seeming all things are.

Ou também através da ideia de um projeto ou do projeto de


uma ideia em seus Apontamentos para uma ficção suprema (Notes Toward
a Supreme Fiction), em que na primeira seção – Deve ser abstrata (It must
be abstract) – podemos ler:

Há um projeto de sol. Não pede o sol, There is a project for the sun. The sun
Que ostenta ouro, um nome, porém ser Must bear no name, gold flourisher, but
Na dificuldade plena do que é ser. be in the difficulty of what is to be.

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A realidade como projeto é a realidade posta na dificuldade do


que é, e o que esses versos de Stevens parecem sugerir é que a rela-
tividade da metáfora não permite simplesmente se posicionar num
novo modo de fundamentação, dado que justamente aponta para a
impossibilidade geral dela. Com efeito, o primeiro impacto da metá-
fora é que, se algo é simultaneamente outra coisa, nenhuma das
duas pode seguir presumindo sua identidade. Dificilmente, por isso,
a metáfora pode assumir o papel de um princípio e servir como su-
porte para um esquema qualquer quando seu efeito é antes bem
corrosivo, dissolvente ou subtrativo. E o mesmo acontece com a re-
latividade cultural, essa metáfora maior, na medida em que ela não
apenas subverte as configurações da identidade, mas também as da
multiplicidade. Já que, no momento em que me asseguro da exis-
tência de outra forma de vida, minha conclusão não pode deter-se
numa redistribuição de parcelas de realidade, mas deve confrontar-
se com a eventualidade de que tanto eu quanto o outro ficamos am-
bos desprovidos de fundamento.
Se consentirmos que o que há no começo não é um princípio,
poderíamos então falar alternativamente, em vez de princípio, de uma
condição. Mas essa teria que ser a condição de alguém que sabe estar
vivendo algo assim como uma sobrevida, que é o termo que Walter
Benjamin invocava para falar de uma vida através da tradução, no
sentido de uma forma incessante de errância, para além das certezas
de um fundamento originário.2
Em torno dessa condição que assume a impropriedade como
seu modo de ser parecem girar, entretanto, as constelações do pen-
samento dos povos indígenas que se reconhecem e são reconhecidos
como Waiwai, no Norte Amazônico. Suas imagens enviesadas e seus
modos de relação cheios de interpolações consentem ser vistos como
outras tantas variações daquela ideia de Marx segundo a qual nada é
símbolo de si mesmo. Podemos pressentir já esse modo de precarie-
dade constitutiva através do olhar oblíquo com o qual recebem os
visitantes; um olhar que não pode ser reduzido nem à transparência
nem à frontalidade que nos são tão familiares: trata-se de um olhar
que afeta de um modo diferente e que vê algo diferente. Ele vê atra-

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Sobre a ilusão de ter: reflexões an/tropológicas

vés da imprecisão, da instabilidade, e poderíamos dizer que o que vê


são larvas – tanto no sentido de formas precárias, incompletas como
também no sentido de máscaras. Mas esse olhar não apenas vê, mas
também atua e revela, sendo difícil evitar seus efeitos: esse olhar
impreciso, longe de provocar algo tão contundente como um cho-
que cultural, desloca sutilmente o antropólogo, ou a quem for o outro,
ao deslocá-lo ou colocá-lo fora de foco.
Esse olhar de lado, longe de ser um modo casual ou deficiente,
anuncia outras formas de indeterminação, de não coincidência, cul-
tivadas pelos Waiwai. Entre elas, por exemplo, o traço sinuoso, indi-
reto, dos múltiplos caminhos que atravessam suas aldeias.
Disfuncionais em relação à suposta finalidade de comunicar uma
casa com outra, esses caminhos se fazem ao andar e têm a forma de
meandros ou de rodeios, menos interessados em alcançar seu objeti-
vo que em afirmar sua especificidade, sua diferença. Nessas coorde-
nadas, uma via direta tanto como um olhar direto, na medida em
que pretendem alcançar um objetivo ou descobrir um objeto claro e
distinto, não parecem constituir para os Waiwai nada mais que uma
espécie de grau zero da cultura, em que deve começar qualquer es-
forço de elaboração da experiência. Procedendo de um modo direto
e imediato, não há nada que ver, nada ao qual aceder, porque, como
mostram os Waiwai, é lateralmente como se constitui uma entidade.
E essa articulação é também a que encontramos nas constela-
ções através das quais a pessoa e o coletivo waiwai são concebidos.
Sabendo da sua precariedade, a pessoa waiwai se busca intermina-
velmente através da figura conceitual yewru yekatî, descrita por eles
como “a pequena figura que sempre se vê no olhar do outro” (Fock,
1963, p. 19), isto é, no olhar de um outro que sempre muda. Eis um
rodeio vertiginoso, volátil e rapsódico em direção a si mesmo, mas é
também o rodeio que o outro do qual dependemos precisa fazer ele
mesmo, de tal modo que ambos não têm maior sustentação que sua
imbricação através da corrente de imagens que circula entre eles.
Uma constelação semelhante aparece também naquela grande
metáfora dos Waiwai acerca dos chamados enîhni komo, povos não
vistos, como se referem aos povos em busca dos quais eles organi-

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Evelyn Schuler Zea

zam periodicamente mobilizações tão extensas que lhes brindaram


com o apelido de “argonautas do Norte Amazônico”. Para os Waiwai,
os povos não vistos são por definição aqueles que sempre se encon-
tram mais além, mas isso pouco parece importar, já que tudo passa
como se fosse justamente nesse incessante rodeio no qual os Waiwai
conseguem o mais parecido a uma certeza de si mesmo. Como refe-
ria Yakuta, um famoso líder waiwai: “he never felt more exhilarated
than when he was on the trail of a group” (Howard, 2001, p. 408),
de tal modo que, levando em conta as condições nas quais tanto a
pessoa como o coletivo waiwai se constituem, poderíamos dizer que
ambos são frutos eminentes da arte waiwai de tornar duas ou mais
incertezas numa forma eventual de certeza, numa certeza eventual.
Eis a “verdade” da impropriedade, e, no meu modo de ver, a
elaboração que os Waiwai fazem dela permite entender melhor tan-
to o intervalo paralático ao qual me referi antes assim como do que
falamos quando falamos da diferença, pois, vista como improprieda-
de, a diferença não é um fator puramente negativo, mas a dimensão
que nos permite ir ao encontro dos outros. Nesse sentido, o que
compartilhamos com eles é justamente a mútua desestabilização
provocada pela aparição seja de um, seja de outro e, inclusive, como
indica o caso dos não vistos, por efeito da sua invisibilidade. A única
coisa que os Waiwai guardam dos não vistos é uma marca mínima,
uma imagem que se limita a constatar sua ausência, seu afastamen-
to. Pode-se dizer, por isso, que essa imagem leva ao extremo ou
explicita a parte invisível de uma imagem, o não visto nela. Em ou-
tras palavras, a imagem não aparece aí como um operador de visibi-
lidade, mas, ao contrário, como um corte que interrompe a visibili-
dade – nessa descontinuidade na qual Alain Badiou vê a função es-
pecífica do cinema, do mesmo modo que um poema provoca uma
interrupção na linguagem cotidiana.
Discorrendo, até aqui, sobre as alternativas a um princípio, li-
mitei minha leitura, no entanto, a uma parte do problema com o
qual o projeto de Wagner nos confronta, posto que ter um princípio,
assim como ter um mundo, ter uma cultura, ter uma identidade e,
em geral, ter alguma razão são outras tantas formas de uma ilusão

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96
Sobre a ilusão de ter: reflexões an/tropológicas

que se renova através de diferentes objetos. Pois o ter é aí a parte


submersa, o pressuposto crucial que segue operando intocado em
nossos modos de compreensão através de todos esses modos de per-
tença.
Há talvez, no entanto, uma fórmula extrema através da qual os
alcances desse verbo, sua eficácia escondida, emergem diante de nós.
Refiro-me à fórmula densa de ter um filho. Já que nesse caso o ter
não apenas adota um sujeito, mas, além disso, tematiza sua genealogia.
Na figura de ter um filho o pressuposto do verbo, em certo modo, se
trai a si mesmo. Digamos que através dessa configuração se põe em
jogo o destino do ter ou, em outras palavras, que essa configuração é
o paradigma do ter, no sentido gramatical segundo o qual é através
dela que se definem os modos de conjugação desse verbo.
Não há de ser coincidência, por isso, que a figura do ter um
filho seja um exemplo elementar e recorrente sobre a forma em que
se constitui uma relação. Assim o podemos ver em Viveiros de Cas-
tro, quando diz que “Alguém é um pai apenas porque existe outrem
de quem ele é o pai” (2002, p. 384). A partir daí, a relação em jogo
parece ser concebida como unívoca (no sentido de que seus termos
não se confundem) e objetiva (na medida em que aparece sendo
claramente determinável). Como segue Viveiros de Castro, “[...] não
há nenhum relativismo envolvido. Isabel não é uma mãe para Nina,
do ponto de vista de Nina, no sentido usual, subjetivista, da expres-
são. Ela é a mãe de Nina, ela é real e objetivamente sua mãe [...]. A
relação é interna e genitiva (2002, p. 384).
Também Wagner convoca as associações ligadas à imagem do
“pai” para mostrar o contraponto entre extensão e convenção na
definição de uma relação. O termo “pai” significa algo diferente se-
gundo o contexto – biológico, familiar, religioso ou qualquer outro
novo contexto – em que aparece, mas seus sentidos analógicos são
controlados através de sua reintegração comunicativa. Como diz
Wagner, “comunicação é tão importante para a expressão dotada de
significado quanto a ‘extensão’” (2010, p. 80), de tal modo que am-
bos os polos trabalham para oferecer-nos um significado equilibra-
do, ao mesmo tempo inovador e reconhecível. E no fundo dessa con-

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Evelyn Schuler Zea

cepção parece ressoar ainda aquele cânone aristotélico, segundo o


qual uma linguagem plena é aquela que resulta da aliança entre cla-
ridade e estranheza, igualmente distanciadas da banalidade e do bar-
barismo (Poetik, 1458).
Do outro lado de Aristóteles e de uma concepção balanceada
(equilibrada) da imagem do pai, localiza-se, entretanto, aquele frag-
mento de Heráclito, segundo o qual “o filho é o pai do pai”. Essa
imagem opera, quer dizer, chega a ser significativa através da confu-
são de seus termos e não simplesmente por meio de uma distinção
entre eles nem de sua inversão, pois as figuras do pai e do filho resul-
tam profundamente perturbadas, aí onde não apenas um pode jogar
o papel do outro, mas pode fazê-lo correlativamente ao papel que lhe
foi atribuído. De tal modo que, nessa constelação, um termo é ao
mesmo tempo o outro e justamente na medida em que é ele mesmo.
A relação entre pai e filho não é mais unívoca, nem livre de contradi-
ção nem objetivamente determinável.
Parece, portanto, que em relação à figura do pai–filho é preciso
optar entre reforçar o que pode haver nela de princípio, ou seja, de
relação de pertença, ou, ao contrário, optar por desestabilizar essa
genealogia e ainda chegar a negá-la. E é esse caminho do desterro
que é seguido radicalmente num filme russo recente (2007) –
“Izgnanie”, “The Banishment” ou “O exílio” – que pode ser visto
como o desvelamento da ilusão de ter. No filme se conta a história de
um casal que cultiva um crescente distanciamento nas relações en-
tre si e com os outros. Nesse contexto, a mulher revela um dia a seu
marido que ela está grávida, mas que o filho não é dele. Essa revela-
ção provoca, por certo, uma crise de consequências cada vez mais
trágicas. Tudo isso, no entanto, acontece sob o pressuposto do ter. Já
que mais tarde, quase no fim do filme, o marido descobre um outro
sentido, um de alcance maior, na revelação da mulher. O que ela
queria lhe transmitir – ainda assim sem poder explicá-lo – era ter
percebido que nada nem ninguém pertence a um outro, que nada nem
ninguém pode ser objeto da presunção de ter um outro.
Tanto menos a figura de um filho ou uma filha, nos quais a
ilusão de ter e a ilusão de um princípio confluem. É através deles que

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Sobre a ilusão de ter: reflexões an/tropológicas

uma genealogia, vista como a projeção de um princípio, existe, dan-


do-nos a ilusão de uma procedência e de uma continuidade. Mas,
através de um terceiro, o marido escuta as palavras da mulher: “Não
é seu filho, porque nossos filhos não nos pertencem […]. Do mesmo
modo como nós também não somos simplesmente os filhos de nos-
sos pais”. Essa rebeldia contra a genealogia o é também contra a
gênese e contra o genitivo. Quando cai a ilusão de ter, cai também
com ela a ilusão de ter um princípio; e é essa subtração, não o esta-
belecimento de um novo princípio, a que abre a passagem para o
território da analogia.

Nota
1 Trabalho apresentado no Seminário Antropologia de Raposa, em Florianópolis, na
Universidade Federal de Santa Catarina (UFSC), em agosto de 2011.
2 De Man (1989).

Referências
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99
Evelyn Schuler Zea

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______. A invenção da cultura. São Paulo: Cosac Naify, 2010.

Recebido em: 29/09/2011


Aceite em: 10/10/2011

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Sobre a ilusão de ter: reflexões an/tropológicas

Nem plural, nem singular: ontologia,


descrição e a Nova Etnografia
Melanésia¹

Justin Shaffner
Cambridge University
E-mail: jrshaffner@gmail.com

Tradução do inglês: Fernanda Azeredo de


Morais

Revisão técnica: Jose Antonio Kelly Luciani


Universidade Federal de Santa Catarina, Florianópolis, Brasil

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Justin Shaffner

Resumo Abstract

Neste ensaio procuro esclarecer aquilo In this paper I attempt to clarify what might
que pode ser tomado como ‘ontologia’ count as ‘ontology’ in Melanesia,
na Melanésia, à luz especialmente das particularly in light of Michael Scott’s recent
recentes críticas de Michael Scott so- critiques of the New Melanesian
bre a Nova Etnografia Melanésia Ethnography (NME). I do so in relation to
(NEM). Faço esse caminho a partir de Melanesian concepts of the body, and in
conceitos melanésios do corpo e, em particular, to my own ethnography of
particular, da minha própria etnografia Marind speakers of the southern lowlands
com falantes da língua Marind das ter- of New Guinea. I claim that what the NME
ras baixas do Sul da Nova Guiné. Afir- literature has in common is the attempt to
mo que o que a literatura NEM possui obviate or displace the work that ‘nature’
em comum é a tentativa de afastar/ and ‘context’ do in ‘modern’
evitar ou deslocar a função que ‘natu- anthropological knowledge practices, and
reza’ e ‘contexto’ operam nas práticas in turn, replace it with something like a
‘modernas’ de conhecimento antropo- ‘negative symbol’. In doing so, I argue that
lógico, e, em troca, substituí-las por algo for Melanesia it is the body, whether human,
parecido com um ‘símbolo negativo’. animal, spirit, thing/gift or landscape,
Ao fazer isso, argumento que, para a which operates as a kind of negative symbol.
Melanésia, é o corpo que funciona como
um tipo de símbolo negativo. Keywords: Ontology. Body. Negative Symbol.
New Melanesian Ethnography.
Palavras-chave: Ontologia. Corpo. Sím-
bolo negativo. Nova Etnografia
Melanésia.

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Nem plural, nem singular: ontologia, descrição e a Nova Etnografia Melanésia

“Naturalmente, as quatro operações matemáticas – somar,


subtrair, multiplicar e dividir – eram impossíveis. As pedras
resistiam a aritmética como elas tinham resistido o cálculo de
probabilidade. Quarenta discos divididos poderiam resultar em
nove; por sua vez, esses nove quando divididos poderiam produzir
300.”
Jorge Luis Borges

“Não existe um, apenas o que conta-se como um. (il n’y a pas
d’un, il n’y a que le compte-pour-un).”
Alain Badiou

“A natureza não é natural e nunca poderá ser naturalizada.”


Graham Harman

“Muito preciso para pôr em palavras.”


Roy Wagner

Introdução

N Neste paper procuro esclarecer aquilo que pode ser tomado como
‘ontologia’ na Melanésia, à luz especialmente das recentes crí-
ticas de Michael Scott sobre a Nova Etnografia Melanésia (NEM).
Faço esse caminho a partir de conceitos melanésicos do corpo e, em
particular, da minha própria etnografia com falantes da língua Marind
das terras baixas do Sul da Nova Guiné. Afirmo que o que a literatu-
ra NEM possui em comum é a tentativa de afastar/evitar ou deslocar
a função que ‘natureza’ e ‘contexto’ operam nas práticas ‘modernas’
de conhecimento antropológico e, em troca, substituí-las por algo

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Justin Shaffner

parecido com um ‘símbolo negativo’. Ao fazer isso, argumento que,


para a Melanésia, é o corpo, seja humano, animal, espírito, coisa/
dádiva ou paisagem, que funciona como um tipo de símbolo negati-
vo. Nunca se sabe de antemão o que um corpo pode fazer ou quais
serão seus efeitos. Tal corpo não é singular nem plural, uma vez que
alude de uma só vez à possibilidade da conta e ao nome próprio. Ao
fazer isso, sugiro que o conceito Marind de dema, tal e como foi pri-
meiramente proposto por Adolf Jensen (1963) como uma teoria ge-
ral da religião melanésia, possa ser redescrito melhor como um pos-
sível análogo do perspectivismo ameríndio.
Esse exercício não apenas exige uma nova visita à socialidade
melanésia, como também aponta para a comparação com outras ten-
tativas na antropologia de repensar ‘natureza’ e ‘contexto’, incluin-
do o perspectivismo ameríndio, a cosmopolítica de Latour e o realis-
mo especulativo. Ao fazer isso, trago à tona as contribuições de Roy
Wagner. Dada a recente ‘virada ontológica’ na antropologia (e na
filosofia) – cosmopolíticas, perspectivismo, pensando através dos
objetos, e também realismo especulativo –, o livro A invenção da cultu-
ra, de Roy Wagner, mesmo originalmente publicado há mais de 35
anos, em 1975,2 está mais pertinente e relevante do que nunca, uma
vez que identifica a problemática central da antropologia contempo-
rânea hoje, aquela de como repensar ‘natureza’ sem perder de vista a
responsabilidade que nossas descrições acarretam.

Crítica da Nova Etnografia Melanésia

Em uma série de publicações recentes, Michael Scott (2007a,


2007b) critica a chamada ‘Nova Etnografia Melanésia’ (Josephides,
1991) e o seu modelo de ‘socialidade melanésia’ pelo que ele percebe
como seus comprometimentos ontológicos e status hegemônico em
relatos da Melanésia.
Scott afirma que os relatos etnográficos da NEM trazem em si
uma “premissa filosófica” metodologicamente inscrita, a qual ele
chama de monismo ou mono-ontologia, que pressupõe “a
consubstancialidade de todas as coisas como resultado de sua ori-

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Nem plural, nem singular: ontologia, descrição e a Nova Etnografia Melanésia

gem comum. Mitos de mono-genesis representam processos de di-


ferenciação interna e separação dentro de uma unidade de origem”
(2007a, p. 10). Ao fazer isso, ele cita a descrição de Jadran Mimica
(1981, 1988) do cosmos dos Iqwaye (Yagwoia), “que se originou da
substância do ser antropomórfico primordial, Omalyce” (2007, p.
11). Ele cita Mimica:
A unidade dos elementos primários do cosmos pode ser
entendida como expressando que o mundo primordial, a
totalidade, é uma extensão homogênea. Cada região do ser
cósmico é igual. Existe, dessa forma, semelhança do começo
ao fim do todo primordial. Todas as suas partes evidenciam
uma única auto identidade (Mimica, 1988, p. 78).
Enquanto uma totalidade original, Omalyce constituía
tudo que viria a ser, “mas ainda apenas como as
possibilidades indiferenciadas” (Mimica, 1988, p. 78,
itálicos omitidos).
A separação emerge de um corte auto-infligido que bifurca
Omalyce nos princípios binários do céu e da terra, homem
e mulher, sol e lua, dia e noite. Essa bifurcação inicial, por
sua vez, estabelece “o relacionamento entre o um e o dois,
os algarismos operativos básicos no sistema numérico
Iqwaye pelos quais todos os outros números são gerados”
(Mimica, 1988, p. 79).

Scott argumenta que uma mono-ontologia sustenta os relatos


sobre a socialidade melanésia feitos por Wagner (1967, 1974), Weiner
(1988) e Strathern (1988), mesmo na ausência de uma descrição
explícita de cosmo-genesis. Nesse modelo, a socialidade melanésia é
conceitualizada como “um mundo sem barreiras, infinito” 3
(Strathern, 1999, p. 258) e “um plano ilimitado de ser unificado que
deve ser cortado em múltiplos níveis de múltiplas formas para que
entidades reconhecíveis possam ser libertadas: sociedades, vilas, gru-
pos e pessoas” (Strathern, 1992a, p. 113). Apesar de ter colocado
anteriormente que esse modelo não descreve a ontologia melanésia,
Scott afirma que ele “insere uma mono-ontologia virtual por trás do
objeto conceitual chamado ‘socialidade melanésia’” (2007a, p. 30),
que “inevitavelmente constrói a situação etnográfica na qual é apli-

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Justin Shaffner

cado como equivalente analítico de uma mono-ontologia” (2007a,


p. 24).
Scott defende que tal modelo é incapaz de lidar com aquilo que
ele denomina de uma heterotopia Arosi, com suas manifestações
políticas e sociais, incluindo disputas de terra e cristianismo. Em con-
traste com o “modelo de socialidade melanésia” e com o que ele per-
cebe como seus comprometimentos ontológicos implícitos com o
monismo, Scott formula o que ele chama de uma poliontologia, ci-
tando o trabalho de Valerio Valeri (1995, 2001, Cap. 11) como prece-
dente, como uma forma de lidar com o conceito de auhenua dos Arosi.
Scott conta que os Arosi usam o termo composto auhenua para
se referir a qualquer coisa viva, objeto ou qualquer qualidade intrín-
seca da Ilha de Makira. Pedras, pássaros, seres míticos, espíritos, nor-
mas éticas e matrilinhagens humanas podem todos ser denomina-
dos de auhenua. Ser auhenua é ser essencial e irrevogavelmente nati-
vo da ilha. Ele afirma que “Os Arosi representam essas categorias
elementares do ser em termos de proto-humanos primordiais que
surgiram sozinhos e que se tornaram os progenitores de matri-li-
nhagens totalmente humanas através de conexões que prefiguram
uma exogamia de linhagens” (2007a, p. 10).
Scott diz que as consequências de tal pluralidade original são:
a) a cosmologia Arosi é “necessariamente poli-genética; eles são pro-
cessos de agregação através dos quais uma multiplicidade original se
torna uma totalidade construída” (2007a, p. 10); e b) “a cosmologia
Arosi é fundamentalmente poli-ontológica; isto é, ela postula um
cosmos no qual as partes precedem o todo” (2007a, p. 10). Em ou-
tras palavras, Scott sugere que auhenua – matrilinhagens nativas –
são não relacionais.
Devo primeiro dizer que respeito a crítica de Scott, especial-
mente pela tentativa de forçar a antropologia a dar conta dos concei-
tos nativos em suas descrições de ontologia e também privilegiando
as questões de multiplicidade e os limites da relacionalidade (cf.
Strathern, 2005, p. vii-x). Eu também concordo que nenhum mode-
lo deva ser hegemônico nem utilizado sem críticas. Eu aprecio a crí-
tica de Scott nesses dois sentidos, mas eu gostaria de provocar Michael

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Nem plural, nem singular: ontologia, descrição e a Nova Etnografia Melanésia

Scott em suas leituras da Nova Etnografia Melanésia e a sua impor-


tância para a articulação ‘ontologias’ melanésias. Não desejo contra-
dizer sua etnografia, mas interrogar o que queremos dizer por
‘ontologia’ e como descrever isso antropologicamente. O trabalho
de Scott proporciona tal oportunidade, especialmente sua tentativa
de articular uma antropologia de ontologias comparadas.
Em sua descrição, ‘ontologias’ são quase sinônimo de origens,
tais como cosmologias monogenéticas, que postulam origens únicas
e são vistas como monismos necessitados de diferenciação, e
cosmologias poligenéticas, aquelas que postulam múltiplas origens
que presumem um mundo já diferenciado e dividido que deve ser
remontado como unidade. Levando a crítica de Scott a sério, eu que-
ro incitá-lo em suas leituras da Nova Etnografia Melanésia e a sua
importância para a articulação ‘ontologias’ melanésias. Quero fazê-
lo nos seguintes níveis:

1. uma ontologia que pressupõe uma divisão constante de uma


entidade em partes de si mesmo, de forma que múltiplos são
frações de um, não é uma mono-ontologia, mas na verdade
uma ontologia fractal, já que ‘um’ aqui, seja na forma de um
dígito, mão ou corpo, é, ele mesmo, também uma insinua-
ção do infinito. Estamos falando aqui de uma matemática
completamente diferente – involução binária –, uma mate-
mática que obvia a distinção entre parte e todo, um e vários;
2. tal matemática ou ontologia é mais um dado
etnograficamente precipitado do que uma premissa filosófi-
ca aplicada antropologicamente. A tentativa da NEM de evi-
tar ou deslocar a função que ‘natureza’ e ‘contexto’ operam
em práticas de conhecimento euro-americanas é conscien-
te, por fidelidade, ao momento etnográfico (encontro e ex-
periência); e
3. eu gostaria de reservar o termo ‘ontologia’ para algo distinto
de ‘origens’, ou seja, conceitos nativos que exercem função
análoga que ‘natureza’ e ‘contexto’ exercem na nossa pró-
pria descrição e ontologia, isto é, para estratégias nativas de
contextualização.

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Justin Shaffner

A Nova Etnografia Melanésia

O termo ‘Nova Etnografia Melanésia’ (New Melanesian


Ethnography) tem origem em uma revisão de Lisette Josephides (1991)
de quatro livros – Cosmopologies in the Making, de Frederik Barth (1987),
Intimiation of Infinity, de Jadran Mimica (1988), The Gender of the Gift,
de Marylin Strathern (1988), e The Heart of the Pearlshell, de James
Weiner (1988)4 –, que, segundo ela, eram unidos por uma preocu-
pação com “o processo de criação de significados culturais e relações
sociais por abordagens que tratam pessoas simultaneamente como
sujeitos e objetos e, conseqüentemente, sugere uma casualidade de
duas mãos entre criatividade e criação cultural” (p. 145). Josephides
identifica o trabalho de Roy Wagner como fornecendo “muitos dos
termos do debate” e que pode ser “lido como uma utilização, dentro
do desenvolvimento da antropologia, do método de Wagner de
obviação” (p. 145-146). Dessa forma, eu gostaria de retornar a Wagner,
precisamente ao texto que concisamente formulou o problema an-
tropológico para o qual a obviação foi uma tentativa de solução.
Em A invenção da cultura, Wagner explicita que etnografia é prin-
cipalmente um trabalho de síntese por parte do antropólogo e que,
além disso, resulta em descrição, ou seja, é sempre feita dentro de
termos euro-americanos de referência (cf. Strathern, 1988). “O que
o pesquisador em campo inventa, portanto, é o seu próprio entendi-
mento; as analogias que ele cria são extensões das suas noções e
daquelas da sua cultura, transformadas pela sua experiência de cam-
po” (1981, p. 12).
A própria personalidade do etnógrafo e suas tendências são
inevitavelmente condições ao mesmo tempo facilitadoras e limitadoras
do projeto etnográfico em si (cf. Devereux, 1967; Mimica, 2007). So-
mos propensos a colocar o outro a partir da nossa própria problemáti-
ca e metafísica, que, para a antropologia euro-americana ou ‘moder-
na’, resulta em uma natureza universal, uma cultura relativa, um in-
divíduo autônomo e uma sociedade contratual (cf. Latour, 1993).
Wagner argumenta que essa lógica é uma lógica insidiosa na
antropologia ‘moderna’, desde a antropologia econômica e ambiental
até as suas abordagens semióticas.

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Nem plural, nem singular: ontologia, descrição e a Nova Etnografia Melanésia

Ela faz com que nosso entendimento e invenção de outras


culturas seja dependente da nossa postura ante a
“realidade”, e faz da antropologia uma ferramenta do nossa
própria auto invenção [...]. Quando usamos esses controles
no estudo de outras pessoas nós inventamos as culturas
deles como análogas não do nosso todo cultural e
conceitual, mas apenas parte dele. Nós os inventamos como
análogos da Cultura (como “regras”, “normas”,
“gramáticas”, “tecnologias”) a parte do nosso mundo que
é deliberada/intencional, coletiva e “artificial”, em relação
a uma única “realidade” singular, universal e natural. Dessa
forma, eles não contrastam com a nossa cultura, ou oferecem
contra-exemplos para ela, como um sistema total de
conceituação, mas nos convidam à comparação sobre
“outras formas” de lidar com a nossa própria realidade. Nós os
incorporamos na nossa realidade, e assim incorporamos suas
formas de vida em nossa própria auto invenção. O que podemos
perceber das realidades que eles aprenderam a inventar e nas
quais vivem é relegado ao “sobrenatural” ou dispensado como
“meramente simbólico (Wagner, 1981, p. 142).

Esse é o problema da natureza e contexto, e é um problema


para nós.
A maioria dos antropólogos estão dispostos a incluir a nossa
Cultura (nossos “mitos”, “interpretações da realidade”)
nessa categoria, isso é o que o tradicional conceito de
cultura e a sua muito elogiada “relatividade” tratam afinal.
Mas o teste final (acid test) para qualquer antropologia é se
ela está disposta a aplicar essa relatividade objetivamente –
na nossa “realidade” como na dos outros – tanto quanto
subjetivamente. A não ser que façamos isso, a criatividade
das outras culturas que estudamos será sempre derivada da
nossa própria criação de realidade. A não ser que nós sejamos
capazes de responsabilizar nossos símbolos pela realidade que
criamos com eles, as nossas noções de símbolos e de cultura
de modo geral permanecerão sujeitas à “máscara” com a
qual nossa invenção esconde seus efeitos (Wagner, 1981, p.
144-145).

Então, como enfrentar a função que ‘natureza’ e ‘contexto’ têm


em práticas de descrição e leitura euro-americanas? Como respon-
sabilizar nossos próprios símbolos e descrições pela realidade que

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109
Justin Shaffner

criamos com eles? Como inventar o outro como análogo não apenas
de parte do nosso esquema conceitual – cultura –, mas do seu todo –
natureza e cultura? Em outras palavras, como pensar a natureza?
No livro Lethal Speech (1978), em que Wagner apresenta sua te-
oria de obviação simbólica, ele escreve:
Nós precisamos não de um modelo de como símbolos
interagem com a “realidade”, mas um modelo de como
símbolos interagem com outros símbolos. E claramente, já
que o compromisso com a “realidade” é tão persistente e
arraigado entre os antropólogos tanto como nos seus
sujeitos, tal modelo deve dar conta que algumas expressões
simbólicas são percebidas como “realidade” enquanto
outras não são. Deve demonstrar como e porque as pessoas
usam símbolos em relação a outros símbolos, o que as
motiva para agirem assim, e como construções simbólicas
persistem e mudam ao longo da construção (p. 21).

Aqui, no lugar da ‘natureza’ e do ‘contexto’, a teoria da obviação


substitui esses termos por algo como o ‘símbolo negativo”. Na in-
trodução da edição revista e expandida de A invenção da cultura,
publicada em 1981, Wagner discute essa noção de “símbolo negati-
vo”, o tropo que gera (ou obriga a inventar) seus próprios referen-
tes. Ele argumenta que o Tales of Power (1974), de Carlos Castañeda,
apresenta à antropologia a expressão mais clara do símbolo negativo
já vista nos conceitos de tonal e nagual.
Tonal é “tudo aquilo que pode ser nomeado”, todo o mundo da
percepção e da experiência: “Todas as palavras que você sabe, e todas
as coisas [...] que essas palavras significam, ou que elas possivelmente
poderiam significar” (Wagner, 2010, p. 38). Nagual é poder, “aquele
com o qual não lidamos”, o total oposto da realidade fenomênica. É
o que constitui a metáfora, mas sempre escapa na sua expressão.
“nagual é a diferença entre ele mesmo e qualquer outra coisa que
você pode pensar que é” (Wagner, 2010, p. 34). Não tem “limite
algum”. Mas o único tipo de nagual que você conhecerá é mais tonal.
Se o conceito é mesoamericano, o tratamento que Wagner dá a
ele é completamente melanésio. De fato, Wagner afirma que ele apren-
deu sobre obviação originalmente pouco a pouco do Taepnugiai, seu

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Nem plural, nem singular: ontologia, descrição e a Nova Etnografia Melanésia

informante sobre o mito Daribi (2011, p. 121). A contribuição de


Wagner foi uma questão de levar os conceitos Daribi a sério e gene-
ralizar esse insight (cf. Leach, 2004, p. 5) e suas implicações para a
antropologia simbólica ou simétrica. As sementes para tal antropo-
logia simétrica já estavam ali em The Curse of Souw (1967) ao colocar
o símbolo nativo e o modelo antropológico como fenômenos da
mesma ordem.
Se esse for o caso, obviação é pelo menos em algum nível próxi-
ma/aparentada com a ideologia da língua Daribi! E os insights que a
obviação proporciona em relação aos efeitos da linguagem e da des-
crição são insights melanésios. Isso inclui o conhecimento de que a
descrição cria seu próprio espaço e tempo, contém reversões de fi-
gura e fundo (figure-ground reversal) (incluindo aquelas de “inato” e
“artificial”) e o faz através da substituição (troca entre sujeito e obje-
to) e da divisão.
O “símbolo negativo” de Wagner que desloca a ‘natureza’ e o
‘contexto’ é de muitas formas o que dá a base para a chamada Nova
Etnografia Melanésia. No trabalho de Weiner isso pode ser visto na
sua ênfase no lugar da ocultação e na falta de conhecimento na
Melanésia e em sua abordagem contra o construtivismo social.
Toda a proposta de James Weiner pode ser entendida como de-
votada a isso, desde seus primeiros usos da obviação (1988) e consi-
derações atenciosas sobre ocultação e falta de conhecimento até suas
críticas ao “construtivismo social” (2011), pressupondo a existência
de algo para além da língua e da cultura, até mesmo da
relacionalidade humana, que não obstante é revelada pela língua.5
Além do modelo de socialidade melanésia de Marylin Strathern,
isso também pode ser visto na sua antropologia pós-plural (1992b) e
em teorias perspectivistas de descrição (Viveiros de Castro e Goldman,
2009) que procuram pegar no ato as várias estratégias de
contextualização euro-americanas e, consequentemente, as práticas
de conhecimento antropológico.
Na etnografia de Jardran Mimica, apesar de o cosmos Iqwaye
ter começado como o corpo indiferenciado de Omalyce, a cosmo-
ontologia elaborada por Mimica, como sua análise do sistema nu-

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Justin Shaffner

mérico indica, não é um monismo, mas um fractal ou um holograma


(Mimica, 2003).
Estamos falando aqui de uma matemática completamente dife-
rente da aritmética, que não é baseada nem na lógica de parte e todo,
nem na de um e muitos. Estamos lidando, ao contrário, com uma
matemática fractal ou involução binária. As unidades de compara-
ção não são inteiros, mas sim conjuntos. Tal matemática pressupõe a
constante divisão de uma entidade em partes de si mesma, de forma
que esses múltiplos são frações de um, mas um é também uma insi-
nuação do infinito.
No sistema numérico Iqwaye, não importa até onde se pode
contar, já que fundamentalmente é redutível a um, mas um, disfar-
çado em um único dígito, mão ou corpo, é também uma insinuação
do infinito. É dialético e recursivo. Como Wagner comenta, “De cer-
ta forma, a contagem Iqwaye é simplesmente o mapeamento de sin-
gularidade e pluralidade um sobre o outro” (1988). E como Mimica
e Wagner deixam claro, dessa forma, a matemática Iqwaye “lembra a
contagem de infinitos Cantoriana”, a não ser pelo fato de que “se
refere inteiramente a imagética do corpo humano, em seu caráter
físico e transformador (reprodutivo)” (Wagner, 1988). O que está
sendo contado como ‘um’ ou ‘dois’ não é em si singular nem plural.
Voltando à crítica de Scott, por que deve um ‘plano de existên-
cia’ indiferenciado ser conceitualizado como ou todo/um ou parte/
muitos? Por que o outro lado da diferenciação humana deve ser uma
mono-ontologia, ou um ou muitos? “No cerne de cada pessoa Arosi
encontra-se uma essência matrilinear imutável concretamente re-
presentada como um cordão umbilical inquebrável” (2007a, p. 27).
No relato de Scott, ontologia se torna sinônimo de origens e grupos
de descendência nativos. “As proto-linhagens Arosi parecem ser uma
coleção de micro mono-ontologias” (2007a, p. 14). Se esse é o caso,
o que Mimica diz sobre os Iqwaye como um ‘todo’ deveria ser verda-
deiro para cada ‘parte’ matrilinear dos Arosi. Na sua leitura, existem
múltiplos monismos, mas nenhuma multiplicidade como tal. No
entanto, na leitura fractal um e muitos são contados como um e
dois, mas aquele que está sendo contado não é nenhum dos dois. É

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Nem plural, nem singular: ontologia, descrição e a Nova Etnografia Melanésia

infinito. É Scott então que está postulando monismos para o outro


lado da diferenciação na NEM e também para as matrilinhagens Arosi.
Ao contrário, a inovação e a contribuição original da NEM se
encontra na tentativa de opor ou deslocar a função de ‘natureza’
(aquela euro-americana) e ‘contexto’ na descrição etnográfica. E, se
a NEM (pelo menos com seus autores originais) é culpada de inscre-
ver metodologicamente essa dimensão fractal, isso é feito conscien-
temente tanto no que diz respeito à noção de que toda a descrição
etnográfica é feita com nossos próprios termos quanto ao desejo de
modular esses termos a partir de algo que seja fiel com seu encontro
com a Melanésia.

Os Marind

Apresentarei agora minha etnografia dos Marind procurando


demonstrar o que pode ser entendido por ontologia melanésia. Dis-
cutirei a partir de conceitos Marind do corpo em dema e kuma.
Às vezes brinco que conduzi uma pesquisa na Amazônia da Nova
Guiné. Trabalhei nas terras baixas pantanosas com falantes de Marind,
abominados durante o início do período colonial por suas caças de
cabeças e elaboradas demonstrações rituais. Todos os sinais diacríticos
da Amazônia estavam presentes: uma ‘economia simbólica de
alteridade’ (Viveiros de Castro, 1996) organizada em torno da afini-
dade potencial, algo como perspectivismo, bem como da predação
ontológica. Os Marind também avaliam as relações sociais nos ter-
mos das relações humano–animais.
Minha pesquisa focou na economia política contemporânea das
terras baixas da Nova Guiné. Conduzi investigação etnográfica com
os Boazi e os Zimakani no Lago Murray (LM) e na região do Meio
Rio Fly (Middle Fly, MF) na Papua Nova Guiné (ambos de língua
Marind), próximo à fronteira com a Indonésia. Essas comunidades
vivem rio abaixo de duas grandes minas, Ok Tedi (cf. Kirsch, 2006) e
Porgera (Golub, 2006), que têm um impacto negativo nas atividades
econômicas e de subsistência desses povos. Detritos de Ok Tedi con-
tinuam sendo transportados rio abaixo, aumentando o nível de sedi-
mentação e enchentes, e gerando efeitos de drenagem metalífera e

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de ácidos. Outros impactos incluem a destruição do hábitat de pei-


xes, extensivo desmatamento da floreta tropical das terras baixas e
perda dos pântanos e dos jardins de sago. O sedimento ficará na re-
gião de Meio Fly por até 200 anos (Tingay, 2006). Lixo de Porgera,
contendo níveis elevados de metal, incluindo arsênico, chumbo e
prata, foi detectado na LM e no baixo do Rio Strickland (Apte, 2001).
A extração de madeira na região tem sido associada com violações
dos direitos humanos, degradação do meio ambiente e destruição de
sítios culturais (ACF e Celcor, 2006). Além disso, há uma forte pre-
sença de refugiados do oeste de Papua e de ativistas na região. Ques-
tões relacionadas a como viver com os efeitos em longo prazo da
extração de recursos e o que constitui sustentabilidade econômica e
cultural ainda têm que ser resolvidas. Trabalhei principalmente com
os Hamok-anim, ou líderes de luta, uma vez que eles tentavam conse-
guir e manter relações produtivas com várias alianças globais, de redes
locais a relações com corporações transnacionais, ONGs e Estado.
A região LM–MF é parte de um sistema ritual regional ainda
em funcionamento que inclui falantes de Marind e Yei do outro lado
da fronteira com a Indonésia – pessoas que reconhecem a região de
Meio Fly como seu lar ancestral. Os Marind se apresentam
alternadamente tanto como mono quanto como poligenéticos.6 Ao
todo, os Marind, juntamente com vários outros grupos linguísticos
da região, remontam suas origens em um conjunto de eventos que
ocorreram na região de Meio Fly e do Lago Murray na Papua Nova
Guiné. Muitas vezes, esses eventos incluem a origem do ‘homem
branco’. Mas também é verdade que muitas patrilinhagens remon-
tam suas origens, independentemente desses eventos, em relação
com o seu dema.
Vários grupos linguísticos, incluindo os Boazi, os Zimakani, os
Bian, os Marind, os Yei e os Pa, traçam sua origem a uma série de
eventos que ocorreram na região LM–MF envolvendo vários dema
ou heróis culturais errantes, incluindo Afek, Sosom, Nggiwe e Pasova
(a Velha). No começo, “todas as diferentes nações” viviam juntas
baixo a terra como seres humanos parcialmente formados, alguns
dizem como peixes outros como casoares e porcos. Eles não tinham

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Nem plural, nem singular: ontologia, descrição e a Nova Etnografia Melanésia

olhos, orelhas, narizes, bocas ou anus bem formados; e os seus de-


dos, braços e pernas eram grudados. Viviam sendo caçados como se
fossem animais por um gigante que tinha vários nomes, incluindo
Kau, Geb, Sosom, Sido, Mamusi, Satan e Nimrod. Outro dema cha-
mado de Nggiwe (também conhecido como Diwa, Ndiwa e Jesus)
(Busse, 1987, 2005) estava passando pela região e encontrou o gi-
gante sendo invitado a caçar por ele. Quando foram à caça, Nggiwe
viu o que estava acontecendo com as pessoas e sentiu pena por eles,
então ele pensou em libertá-los de seu buraco. Ele os fixou em for-
ma humana e os ensinou a viver na terra dando a eles várias institui-
ções sociais, e juntos eles se vingaram de Kau, o gigante.
Ainda que morto, a cabeça do gigante continuou falando e en-
sinando a gente a como cortar e curar o seu corpo. Seu corpo
desmembrado, e os de suas mulheres e filhas, junto com seus obje-
tos pessoais foram distribuídos entre os vários grupos e depois vira-
ram os objetos de culto das várias casas de homens da região. A ca-
beça de Kau primeiro circulou para o oeste e, ao seu comando, vol-
tou para a casa na região de Meio Fly, passada dos Yei para os Zimakani.
Além disso, outro dema, Passova ou Atu (literalmente “Mulher
Velha” – possivelmente uma das irmãs de Afek, veja Brumbaugh,
1990), desceu pelo Rio Strickland das terras altas do sul para insti-
tuir a primeira casa de culto na região (o ritual Mayo) antes de ser
morta. Esses eventos localizam a região de Meio Fly e Lago Murray
no centro de um grande sistema cosmológico e ritual regional, e
formam as bases de um sistema ritual regional não muito diferente
daquele da região da montanha Ok em torno da casa da mãe.
Todas as vezes em que estive na região de Meio Fly e do Lago
Murray, as pessoas constantemente chamavam atenção para essa
relação entre eles e aqueles vivendo do outro lado da fronteira na
Papua do Oeste, incluindo falantes de Marind, Bian e Yei-nan. Por
exemplo, um refugiado e ativista Marind-anim com quem falei em
Kiunga queria dar uma série de “palestras” nas vilas do Meio Fly
sobre a secreta relação entre o que ele percebia como os seus costu-
mes e o simbolismo da Estrela da Manhã na Bandeira da Papua do
Oeste. Ao levantar sua camisa e tocar seu umbigo, ele disse que os

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dois lados eram conectados por um cordão umbilical. Eles me fala-


ram inúmeras vezes que os Nggiwe-lek (povo Nggiwe. Ver também
“Diwa-lek” em Van Baal, 1966), ou o povo da região de Meio Fly e
Lago Murray, eram a frente da canoa e que o “oeste” era a parte de
trás. O uso do termo “canoa” (kagwa) para se referir a um sentido de
unidade ou de estar junto é muito difundido nas terras baixas do Sul
da Nova Guiné (Van Baal, 1966).
Uma vez ‘humanos’, é imperativo agora continuar sendo hu-
manos através do controle sobre a direção da predação ontológica
nas relações sociais (Viveiros de Castro, 1992). Essa responsabilidade
cabe aos chamados Kamok-anim, pessoas a quem se lhes confia o
bem-estar de outros como uma espécie de pai. Eles contaram ao pa-
dre Vertenten da missão do sagrado coração que: “Marind-anim-aha!
(Nós somos verdadeiros seres humanos!) Eles não são seres humanos, senhor!
Deixe-nos ir e pegar suas cabeças. É para isso que eles são feitos!”.
O estabelecimento de Merakue, um posto armado, nos anos
1980, pelos holandeses, foi provocado por protesto britânico de que
os Marind-anim estavam realizando missões de caça a cabeças de
longa distância do outro lado da fronteira, dentro do território da
Nova Guiné Britânica. Em 1927 os britânicos estabeleceram um
acampamento policial na região de Meio Fly para punir cerca de 200
a 300 Marind envolvidos em uma expedição em Weredai, uma co-
munidade Kiwai no baixo Rio Fly, na qual 39 pessoas foram mortas.
O objetivo declarado de tais missões de caça a cabeças foi a captura
ritual de nomes inimigos para a própria prole. Antes das missões de
caça a cabeças, os ‘chefes’ davam magia de cachorro para os seus
guerreiros para fazê-los cachorros, de forma que eles pudessem ca-
çar humanos como ‘carne’ e assim retornar com cabeças e nomes.
Humanos caçam outros humanos como se eles fossem porcos ou
casoares (‘seveka’, literalmente, carne para ser comida) e têm que se
tornar cachorros (através da magia) para fazê-lo. Homens retornam
dessas expedições com cabeças humanas e nomes para serem distri-
buídos. Relações entre grupos que se reconhecem como humanos
(relações simétricas) se envolvem em casamentos por troca de irmãs
e partilha dos segredos das casas de homens.

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Para se tornar um pai, um homem procriativo que gera vida


humana, ele tinha que ser um guerreiro consumado e o destruidor
da vida humana (Mimica, 2003). Os recipientes dessas cabeças/no-
mes assumiam a identidade da vítima e muitas vezes eram reconhe-
cidos como tal pelo inimigo. Esses nomes e identidades são proprie-
dades de clãs patrilineares e passados de pai para filho. Assim como
na caça a cabeças, a criança adquire a identidade do nome. Isso signi-
fica que uma única identidade pode viver através de múltiplos cor-
pos. Um de meus amigos, um representante Boazi na comissão do
CMCA falou: “Eu sou Zumoi, o primeiro homem”.

Dema

No relato de Scott sobre os Arosi, ontologia se torna sinônimo


de origens e grupos de linhagem nativos. No meu relato dos Marind,
que também postulam múltiplas origens, eu reservo ontologia para
me referir a algo totalmente diferente. Afirmo que, para os Marind,
os conceitos ‘dema’ e ‘kuma’ (dentro) têm uma função análoga à que
natureza e contexto exercem em descrições euro-americanas, de tal
forma que no meu próprio relato eu procuro substituí-los. O efeito é
profundo. Dema tem muitos significados, mas uma interpretação geral
pode ser aquela dimensão de qualquer coisa que escapa ou resiste à
nossa capacidade de conhecê-la. Também está relacionado a kuma,
que se refere ao interior ou à parte escondida de qualquer coisa.
Adolf Jensen (1963) propôs uma teoria da religião melanésia
baseada na generalização do conceito Marim-anim de dema como
uma categoria universal. A proposta foi bem recebida pelos estudio-
sos da religião em vários cantos da antropologia. Segundo Jensen,
todos os ancestrais míticos são dema. Aqui eu gostaria de propor que
o conceito de dema possa ser redescrito melhor como um possível
análogo melanésio do perspectivismo ameríndio (Viveiros de Castro,
1998), pois ele incorpora/corporifica a ideia de “intencionalidade apre-
endida”, assim como também desloca as noções euro-americanas de
‘natureza’ e ‘corpo’. Esse mundo está composto de sujeitos, não de
objetos.

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Apesar de o dema pertencer ao passado, eles ainda são muito


presentes. Eles se fazem presentes no corpo durante performances
rituais. Eles se fazem presentes em histórias, que não são contadas
mas encenadas com “uma atmosfera palpável de mistério” (Van Baal,
1966). Eles estão sempre presentes na paisagem, e são associados
com lugares que um dia habitaram ou visitaram, estranhas caracte-
rísticas naturais como redemoinhos, pedras com formatos estranhos
e animais ou árvores extraordinariamente grandes. Habilidade na
caça, pesca e certos tipos de bruxarias são atribuídos a relações espe-
ciais com dema. Eles são invocados em fórmula mágica de forma a
criar um efeito desejado, como convocar ou repelir tempestades, atrair
o sexo oposto ou animais de caça e causar doença e morte. Eles po-
dem ser encontrados tanto no mato quanto nos sonhos.
O dema pode aparecer sob forma humana, animal ou de planta.
Contaram-me que, quando eles assumem forma humana, são mui-
tas vezes homens brancos. Os homens têm barba longa, e as mulhe-
res parecem “asiáticas” com longos cabelos pretos. Ouvi uma histó-
ria sobre um homem que foi caçar no meio da noite e teve um estra-
nho encontro com o porco dema. Era muito grande, brilhava e anda-
va com uma quantidade incomum de outros porcos. De modo geral,
dema são associados com qualquer coisa sinistra ou esquisita. Eles
invocam a presença de espanto, medo e mau agouro, a impressão de
que alguma coisa pode acontecer a qualquer momento. Eles incor-
poram (embody) o poder sobre a vida e a morte.
Você nunca sabe de antemão o que o corpo pode fazer ou os
efeitos que possa ter. Por corpo me refiro ao de qualquer sujeito ou
pessoa, seja humano, animal, espiritual, paisagem, e coisa/dádiva.
Capacidades são sempre internas e escondidas até que provocadas
ou reveladas. Elas são sempre parcialmente ocultadas, com potencial
de capacidades ilimitadas ou infinitas. Os modos Marind de
objetificação funcionam por meio de demonstrações concretas na
fala e nas ações com o propósito de subdeterminar (under-determine)
qualquer imagem ou pensamento determinado do corpo. Isso apa-
rece especialmente nos objetos das casas de culto ao estarem associ-
ados com dema, assim como no ritual Ngmoi dos Boazi.

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Nem plural, nem singular: ontologia, descrição e a Nova Etnografia Melanésia

Tradicionalmente, essas relíquias eram mantidas coletivamente


nas casas de culto, em uma kwimba, um moisés feito de palmeira
negra, dependurado no poste central da casa de culto, e ficavam sob
os cuidados de seus pais e irmãos mais velhos. Sem esse cuidado
constante, esses objetos poderiam facilmente enlouquecer violenta-
mente, a ponto de não reconhecerem seus parentes ou com quem
possuem relações de afinidade (outras casas de culto da região) e
matarem indiscriminadamente.
Esses objetos de troca são vistos como possuindo corpo e von-
tade própria, e necessitam ser domesticados da mesma maneira que
um ‘pai’ é capaz de domesticar um animal selvagem ou um estran-
geiro. Antes de tocar no objeto, a pessoa deve esfregar as mãos em
suas axilas para que o objeto se familiarize com o cheiro de seu corpo.
Acreditando que as casas de culto atrasavam o seu desenvolvi-
mento, em 1987, três casas de culto diferentes na região de Meio Flye
e do Lago Murray foram destruídas por membros locais da Igreja Evan-
gélica de Papua Nova Guiné (Evangelical Church of Papua New Guinea
– ECPNG). Da casa de culto Mbegua, oito crânios foram levados para
os povos Pare e Samo, no Rio Strickland, um para cada clã.
Os Zimakani, no entanto, destruíram a cabeça de Kau, o gigan-
te, depois que o Museu Nacional de Papua Nova Guiné aparente-
mente recusou aceitá-lo como parte de sua coleção. Foi esmagado e
enterrado na terra, e uma casa foi recentemente construída sobre o
lugar. O museu, todavia, aparentemente aceitou outros itens da casa
de homens Zimakani, incluindo um zunidor,7 duas pedras mágicas e
a colher de cal usada por Kau. Havia outro objeto, de madeira, que
os Zimakani guardaram no recipiente de palmeira negra junto com
o crânio. Uma pessoa disse que foi encontrado boiando no rio e re-
verenciado como um objeto-espírito. Outro objeto estava sendo guar-
dado por um ancião, mas foi recentemente trocado com um falante
de Yei por um jovem por um pouco de tabaco indonésio.
Os Tomak destruíram as duas cabeças que eles possuíam, a de
uma das mulheres de Kau e também a de sua filha adotiva, que eram
mantidas em Wangawanga. Como ocorreu com a cabeça de Kau,
essas cabeças foram esmagadas e enterradas. Duas mangueiras fo-

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ram plantadas sobre elas. Aparentemente, os Kamek também guar-


davam um pequeno “avião” e uma bíblia muito antiga, mas o conhe-
cimento sobre essas peças se perdeu quando os indivíduos que as
guardavam morreram. Todavia, eles ainda guardam dois objetos se-
cretos de pedra, um dos sapatos de Nggiwe e também o espírito de
Wewaz, uma pequena ilha atrás de Tinunge que funcionava como o
barco de Nggiwe quando ele distribuía as pessoas.
Dois outros objetos, o zunidor Nggiwe e o seu cordão umbili-
cal, que ficava amarrado em sua cintura e era preso ao sol, estão
atualmente nas mãos de um homem Qozi (falante de Bian-Marind)
chamado Amandus, que é casado com uma mulher Yei e mora do
outro lado da fronteira internacional. Existe uma história circulan-
do que conta que o homem branco tem que voar até a lua, mas que
Amandus uma vez puxou a lua até a terra e deixou nela seu arco,
algumas flechas e seu cocar para que fossem encontrados por cien-
tistas (astronautas), que aparentemente encontraram e em seguida
os devolveram para ele.
Em 2001, a parte da frente e de trás da canoa, ou as regiões do
Meio Fly e de Papua do Oeste, se juntaram na aldeia de Yei-nan dos
Po na Papua do Oeste para erguer uma grande estátua de “Jesus-
Nggiwe”. De acordo com o que me contaram, o homem branco e a
Igreja Católica não foram capazes de erguer a estátua com seus ca-
minhões e equipamentos. Eles então pediram para os papuanos, a
parte de trás da canoa, se eles conseguiriam com os seus costumes
levantar a estátua. Eles tentaram e não foram capazes. Então, eles
chamaram a parte da frente da canoa, Nggiwe-lek, para ajudar. Vári-
as pessoas das aldeias do Meio Fly, especialmente Kamek, Wamek e
Komaizi, compareceram. Usando relíquias que pertencem ao povo
do Meio Fly (os Kamek, especificamente), incluindo o zunidor e o
cordão de Nggiwe, eles conseguiram fazer a estátua ficar em pé. Ela
se inclinou para frente, como se os reverenciando, antes de se assen-
tar. Também aprendi que em 2005 os Yei-nan atravessaram a fron-
teira da Indonésia para a Papua Nova Guiné para honrar e limpar
ritualmente o lugar onde Kau, o gigante, foi morto.

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Nem plural, nem singular: ontologia, descrição e a Nova Etnografia Melanésia

Durante meu trabalho de campo, a aldeia de Wangawanga, base


para grande parte da minha pesquisa, estava tentando convidar a
parte de trás da canoa à sua gia-ve ou casa de culto para as iniciações
como uma ‘retribuição’ por esse evento e outras vezes que eles fo-
ram às casas Bian e Yei-nan. Isso teria incluído encenar ritualmente
a matança de Passova, a Mulher Velha, com o uso de cocos, e tam-
bém a demonstração das relíquias que restam em uma plataforma de
bambu para que todos pudessem vê-las. Isso teria incluído o sapato
de Nggiwe, o espírito de Wewaz, aut ou zunidores e também o farog,
que foi dado a eles por Nggiwe e que liderava os grupos de caça a
cabeças atacando o inimigo, enfraquecendo-o e cansando-o sem que
ele percebesse, ficando incapaz de revidar.
Dizia-se que, quando eles viessem, eu teria que ajudar a iniciar
os homens nos segredos de Kamek, introduzindo o dedo em seus
anus, de modo a desencorajá-los a usar seu novo conhecimento para
fortalecer suas práticas de sawanggi, ou bruxaria, pela qual os
papuanos do oeste têm uma grande reputação (Van Baal, 1966). Um
dia um homem Yei-nan chegou com a mensagem de que não era
um bom momento para eles e então eles declinaram o convite, de
modo que as iniciações nunca aconteceram.
Em vez disso, eles decidiram que iriam me mostrar o ritual
Ngmoi, que, segundo eles, apresentaria o verdadeiro segredo dos
Boazi, a capacidade de “reciclar vida através da morte”. Em outras
palavras, o poder sobre a vida e a morte.
No ritual todos vão caçar, matando o máximo de porcos e
casoares possível. Enquanto os iniciados se fartam com a carne, os
anciões pegam um ou dois animais mortos, colocam-nos em uma
plataforma e decoram-nos como se fossem humanos. Quando pron-
tos, os iniciados são chamados para a plataforma com os olhos co-
bertos. Quando permitem que eles abram os olhos, o líder canta uma
canção para a cabeça cortada do gigante. Nesse momento tudo fica
imóvel e em silêncio, até os pássaros. Os iniciados então percebem o
movimento nos olhos dos animais decorados, e a plataforma é subi-
tamente puxada por uma distância. Para o choque e a admiração de
todos os presentes, o animal antes morto agora está vivo.

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Essa capacidade regenerativa está também presente na identifi-


cação da cabeça humana com o coco, e do sêmen com o leite. A
maioria das histórias contam a origem do coco como uma árvore
que brotou de uma cabeça decapitada que foi enterrada em um ni-
nho de pássaro (bush fowl). Quando os homens voltavam de uma
caça a cabeças com as cabeças de inimigos e os nomes para dar a
seus filhos, era comum que pendurassem as cabeças em cachos, como
se elas fossem cocos. Daí o reconhecimento da mesma identidade
através de corpos tanto na caça a cabeças quanto na descendência.
Quando o sêmen é coletado no ventre e começa a coagular com o
sangue feminino, é a cabeça que se forma primeiro. Quando os ho-
mens se esgotam durante a copulação ritual, entre parceiros eles
reabastecem seu sêmen e sua energia comendo coco. Juntamente
com o bambu e o sol, o coco é também um meio predominante para
se falar do ciclo da vida humana. Os mais novos custam a entender
por que suas cabeças ainda estão cheias d’água. Os velhos já estão
secos e prontos para serem plantados novamente. A criança já está
no processo de se tornar o pai. O sol também é percebido como uma
cabeça decapitada, a do gigante. O corpo é holográfico, autogenerativo
por todas suas partes (Mimica, 1981).
De certa forma, isso é exatamente o que os Boazi, a
autodenominação da gente do Meio Fly, dizem. O nome ‘Boazi’ é
um tipo de contração de ‘boan gazi’, que significa literalmente ‘gera-
ção começando’. A palavra ‘boan’ refere-se à geração em qualquer
escala, incluindo família, clã (que é muitas vezes referido como “ca-
noa”), metade, grupo territorial, nação etc., mas na maioria das ve-
zes se refere a clã (Van Baal, 1966). Também pode referir-se à genitália
humana (Busse, 1987). De fato, os Nggiwe-lek (povo Nggiwe) no
lado da Papua do Oeste são conhecidos no oeste como uvik boan, o
povo pênis.
Ter tal ‘corpo’ como substituto para natureza e contexto obvia a
imagem do cosmos ordenado e do corpo singularizado. Desloca os
efeitos das estratégias de contextualização euro-americanas, deixando
pouco terreno para caminharmos com segurança. Tal conceito do
corpo também ecoa com ideologias linguísticas melanésias, teorias
da mente, feitiçaria e o modelo de Strathern de socialidade melanésia.
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Nem plural, nem singular: ontologia, descrição e a Nova Etnografia Melanésia

Joel Robbins (2008) foi persuasivo em apontar a necessidade


de levar a sério ideologias linguísticas, especialmente no que elas
têm a dizer sobre coisas além da língua, incluindo noções de pessoa,
gênero, troca e natureza do conhecimento. Ele, entre outros, tem
escrito sobre a relação entre a ideologia linguística melanésia e as
teorias da mente. Na Melanésia as pessoas dizem que é impossível
saber o que está na cabeça de outra pessoa. Robbins observa que, “ao
ponto que tais afirmativas sobre a opacidade de outras mentes pos-
sam apontar para uma visão geral da vida humana, no contexto nos
quais os melanésios fazem essas afirmações, elas são muitas vezes
mais aguçadas do que isso, servindo de declarações metalingüísticas
sobre os limites da fala” (2008, p. 421).
Colocaria que tais ideologias linguísticas melanésias concernem
mais do que apenas aos limites da fala ao descrever a mente ou as
intenções de outras pessoas (teoria da mente), mas incluem também
os limites do conhecimento, as representações e as descrições como
tais. Somos lembrados novamente da base melanésia da teoria de
obviação simbólica de Wagner, como também da teoria de Strathern
de descrição, que se mantém agnóstica em relação a uma teoria da
mente.
Invariavelmente, descrições incluem pessoas se referindo a
outras pessoas sobre como seres pensantes e que sentem, e
atribuem o que eles dizem e fazem ao que pensam e sentem,
mas isso não é o mesmo que estudar como as pessoas pensam
e sentem, e não é essa a intenção de tal estudo. Como em
outras ocasiões, o presente trabalho permanece agnóstico
em relação as emoções, estados mentais ou processos
mentais das pessoas aqui mencionadas (Strathern, 1988, p.
117-118, 294; Strathern, 1999, p. xii; Viveiros de Castro e
Goldman, 2009, p. 27).

Mas ‘palavras’ na Melanésia são uma coisa completamente di-


ferente. Elas têm a capacidade de fazer mais do que descrever, repre-
sentar ou criar conceitos. Juntamente com certas substâncias hu-
manas e não humanas, elas têm a capacidade de afetar corpos – de
conceber e fazer crescer o corpo humano; de domesticar inimigos e
animais selvagens; de transformar guerreiros em cães caçadores de

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Justin Shaffner

cabeça; de dar vida e controlar coisas de pedra ou de madeira, muitas


vezes para matar outros seres humanos. Esses exemplos têm a in-
tenção de evidenciar isso, ao destacar uma relação completamente
diferente com coisas e palavras, uma relação que jamais subestima-
ria a alteridade ou o poder de nenhuma das duas!
Agora estamos também em um lugar no qual podemos final-
mente entender a imagem dos melanésios como sendo paranoicos e
obcecados por sexo e feitiçaria (Schwartz, 1973). Paranoicos porque
um nunca conhece/entende a mente do outro ou sabe do que seu
corpo é capaz. E a feitiçaria, de certa forma, é o modo de ação ou
pragmatismo generalizado. Se substituirmos essa concepção de cor-
po euro-americana pela melanésia nas técnicas corporais, de paren-
tesco, de magia e de troca de Mauss, podem ser vistos os efeitos dos
corpos, uns sobre os outros (cf. Viveiros de Castro, 1998). É uma
questão de experimentação pragmática: “Tentaremos só para ver”.
Mais uma vez, porque nunca sabemos o que o corpo pode fazer. A
vida social então consiste no abrir e fechar do corpo a fim de admi-
nistrar os efeitos que corpos têm uns sobre outros (Strathern, 2004).
Tal conceito de corpo é latente também na teoria da ação social
melanésia de Strathern (1988, 2004):
A imagética pode evocar a condição tanto de corpos ‘físicos’
ou ‘sociais’ (e eu lembro ao leitor que corpo também
significa ‘mente’ no contexto melanésio). Desde que
pessoas aparecem em formas masculinas, femininas e
andróginas, a possibilidade de uma forma surgir de outra é
vista como uma possibilidade que se encontra no corpo.
Devemos lembrar que pessoas objetificam relações: corpos
e mentes são, conseqüentemente, suas manifestações
reificadas. E eles sempre devem tomar uma forma clara,
isto é, demonstrar uma condição diferenciada. Por um lado,
a diferença entre um estado de mesmo-sexo [same-sex] um
estado de sexo-cruzado [cross-sex] é a de que uma é uma
transformação da outra, pelo outro lado, masculino e
feminino são versões analógicas um do outro, cada um
agindo de sua própria forma distintiva (Strathern, 1988, p.
298-299).

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Nem plural, nem singular: ontologia, descrição e a Nova Etnografia Melanésia

Cosmopolíticas

Com que tipo de cosmopolíticas, ou políticas da natureza,


estamos lidando aqui? Ressonâncias e ecos entre esse relato de
socialidade melanésia e perspectivismo ameríndio, de um lado, e re-
alismo especulativo, do outro, nos convidam à comparação (de
multiplicidades). Como o Manifesto Abaeté8 deixa claro, o trabalho
de Roy Wagner, Marilyn Strathern, Bruno Latour e Eduardo Vivei-
ros de Castro se alinham sob a égide de uma única cosmopolítica, a
de obviar dentro da antropologia a posição hegemônica da constitui-
ção moderna sob a aparência de natureza universal, cultura relativa,
indivíduo autônomo e sociedade contratual.
Não é surpreendente que Latour vá à guerra armado com uma
bomba, aquela do perspectivismo (ou do multinaturalismo – uma
cultura, várias naturezas), como ele foi em seu debate com Ulrich
Bech sobre a natureza dos cosmopolitismos e das propostas de paz
(2004). Latour afirma que Beck pensa que as pessoas estão lutando
por um ‘mundo comum’. Na verdade, Latour (2002) argumenta que
existe uma guerra de mundos. Por trás de cada política existe um
cosmos, e vice-versa. Para ele, o problema é como um ‘mundo co-
mum’ pode ser construído: “Cosmopolitas podem sonhar com o dia
em que cidadãos do mundo reconheçam que todos habitam o mes-
mo mundo, mas cosmopolíticas enfrentam uma tarefa um tanto mais
assustadora: ver como esse ‘mesmo mundo’ pode ser composto len-
tamente” (2004, p. 457).
Huon Wardle (2009), outro participante do debate, apela não
para um ‘mundo comum’, seja a priori ou a posteriori, mas sim ao
estabelecimento do ‘bom senso’ kantiano. O perspectivismo, toda-
via, parece não partilhar da tentativa de Latour ou de Wardle de cos-
turar o mundo de ‘referência’ ou ‘sentido’, mas explorar a ‘racha
entre mundos’, evocando não a lógica de filosofia do estado (Deleuze
e Guattari, 1980), mas sim uma máquina de guerra perpétua repre-
sentada por um xamã e um guerreiro a fim de descolonizar mais a
fundo o pensamento antropológico.9
Em suas relações com empresas multinacionais, ONGs e Esta-
do, os Marind não apelam para um ‘mundo comum’ nem para o

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‘bom senso’. Eles não estão preocupados com uma metafísica de parte
e todo, um e muitos. A cosmopolítica melanésia começa, em vez
disso, em uma problemática diferente – ou, deveria dizer, em uma
matemática diferente –, a infinitude do corpo.
Como no perspectivismo, a ontologia delimitada aqui para a
Melanésia faz pivô (hinges) no corpo, e não como um lugar de singu-
laridade, mas de multiplicidade. E as relações em ambos também
concernem a ontologias ilimitadas ou sínteses disjuntivas (cf. Vivei-
ros de Castro, 2010). O que é verdade em relações entre humanos e
animais no perspectivismo ameríndio também o é entre humanos
na Melanésia (cf. Strathern, 2005, p. 140). Para os Marind, mesmo a
distinção entre humanos e animais faz parte de divisões internas à
humanidade.
No perspectivismo ameríndio, o corpo cria o ponto de vista.
Mudar de ponto de vista exige mudar de corpo. Na Melanésia, por
sua vez, o ponto de vista depende da relação. “As pessoas oferecem
perspectivas umas sobre as outras por causa da relação entre elas
[...] então, ao ocupar diferentes posições, uma pessoa muda não pon-
tos de vista individuais mas relações” (Strathern, 2011). Para os
Marind, ponto de vista, seja humano ou animal, diz respeito à dire-
ção de ‘predação ontológica’ em qualquer tipo de relacionamento –
composição e decomposição (cf. Mimica, 2003 sobre ‘plantar’ e ‘co-
mer’). Para a Melanésia de modo geral, o significado do corpo de-
pende menos do seu tipo do que de suas capacidades e efeitos.
Fora da antropologia, particularmente em recentes desenvolvi-
mentos no chamado realismo especulativo, existe um número de
posições que fazem eco de certa forma ao que eu estou propondo,
seja com o símbolo negativo de Wagner ou com essa concepção do
corpo melanésio.
O que o realismo especulativo tem em comum com os autores
da chamada Nova Etnografia Melanésia – Wagner, Strathern, Weiner
e Mimica – e também com a antropologia simétrica de Latour e o
perspectivismo de Viveiros de Castro é uma crítica radical das relações
do pensamento com o ser ou da relação da cultura com a natureza.

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Nem plural, nem singular: ontologia, descrição e a Nova Etnografia Melanésia

No livro After Finitude (2008), Meillassoux defende a necessida-


de absoluta da contingência, que até as leis da natureza são contin-
gentes. Que o mundo é um tipo de hipercaos no qual o princípio da
razão suficiente é abandonado mesmo quando o princípio da não
contradição é mantido. Isso chega muito próximo da ontologia
melanésia elaborada aqui, que procura deslocar a natureza, ou colocá-
la entre parênteses, de uma vez por todas e substituí-la por um cor-
po que é sempre desconhecido e sem limites.
A noção de um corpo afastado (withrawn) ou ocluso, um corpo
que pertence tanto a ‘coisas’ quanto a ‘humanos’, também ressoa
com a filosofia orientada a objetos de Harman (2005) e Bryant
(2011),10 assim como o fato de que não é totalmente relacional, já
que não é redutível as suas relações ou efeitos.
Talvez seja apenas um acidente que o livro Being and Event, de
Badiou, tenha sido originalmente publicado no mesmo ano que o
Intimations of Infinity, de Mimica, e o Gênero da dádiva, de Strathern, o
que eles têm em comum entre si é uma tentativa de pensar em ter-
mos de conjuntos. O que a etnografia de Mimica do sistema numé-
rico dos Iqwaye, posfácio de Wagner, deixou absolutamente claro é
que o que estamos lidando ao tratarmos de conceitos de número
melanésio é de certa forma próximo à teoria de conjuntos de Cantor
no seu tratamento do infinito (cf. Strathern, 2004). Aqui, existem
muitas ressonâncias tanto com a afirmativa de Badiou, que ontologia
é matemática, especificamente teoria de conjuntos, quanto com seu
argumento para o ‘conta-como-um’, que faz uma distinção entre
multiplicidades consistentes e inconsistentes. Talvez os recentes in-
teresses em fractais (Wagner, 1991), holografia (Wagner, 2011) e até
teoria do caos (Mosko e Damon, 2005), todos advindos da etnografia
melanésia, possam ser mais bem explorados em relação à teoria de
conjuntos e à topologia, pelo menos como uma possível nova fonte
para conceitualização de pensamento e descrição.
Não devemos nunca esquecer a diferença entre escrever e ser,
mesmo que as tentativas anteriores procurem forjar uma relação entre
os dois. A cosmopolítica da antropologia não é a mesma que a
cosmopolítica das pessoas com quem trabalhamos. Descrever mun-

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127
Justin Shaffner

dos não é o mesmo que vivê-los. Para a cosmopolítica Marind, o


corpo é tanto o fator facilitador quanto limitador para determinar a
direção de predação ontológica. A questão de como permanecer hu-
mano, considerando a presença de novos gigantes na região na for-
ma das madeireiras e mineradoras transnacionais e do Estado mes-
mo, é tão relevante quanto nunca. Para a antropologia, a cosmopolítica
tem como pivô o tipo de corpo que tem uma descrição, mas, mesmo
assim, devemos ser cuidadosos para não permitir que a nossa pers-
pectiva consuma a dos outros, em uma forma de canibalismo (Vivei-
ros de Castro, 1996).
Mas, como eu espero que esse paper tenha demonstrado, todas
essas diferentes preocupações e transformações na antropologia con-
temporânea, e até na filosofia, já estavam presentes no trabalho de
Roy Wagner e na Nova Etnografia Melanésia.

Notas
1 Este ensaio lida com a problemática do infinito nas cosmologias melanésias, em
particular em sua relação com o corpo, seja ele humano, animal, espírito, coisa ou
terra. Eu recentemente descobri “Crystal Forest”, de Viveiros de Castro (2007), no
qual ele discute a mesma questão em relação às cosmologias amazônicas. Tivera eu
tido acesso a esse texto com antecedência, ele certamente teria contribuído para a
presente discussão.
2 Publicado no Brasil em 2010.
3 No original: “an open-ended, infinite world”.
4 1988 é também o ano de publicação original em francês do livro de Alain Badiou:
Being and Event. Certamente não é uma coincidência, já que esse é um texto ao qual
eu retornarei na conclusão.
5 Essa antropologia não relacional encontrou terreno fértil nas descrições da Melanésia
nos trabalhos de Andrew Moutu (2003) e de Tony Crook (2007) (sem mencionar
Scott e a minha própria teorização sobre o dema Marind) e também na economia do
conhecimento euro-americana de Alberto Corsin-Jimenez (2004).
6 Esta origem é fractal, conserva uma semelhança a diferentes escalas, sendo o um-
conta-como-um ou dois em si mesmo uma decisão sobre a presentação da forma.
Isso está também relacionado a duas expressões correntes no Meio Fly: 1) “Você vê
ele? Não para você pensar que somos diferentes. Somos iguais (‘koepo’)”; e 2) “Não
vá pensar que somos iguais. Somos diferentes”.
7 Tipo de instrumento musical.
8 Disponível em: <https://sites.google.com/a/abaetenet.net/nansi/abaetextos/manifes-
to-abaet%C3%A9>.
9 Na medida em que Viveiros de Castro infiltrou algo da ontologia ameríndia dentro
dos termos de referência euro-americanos e antropológicos, literalmente os trans-

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Nem plural, nem singular: ontologia, descrição e a Nova Etnografia Melanésia

formando internamente, ele infectou a antropologia com um tipo de vírus. Vamos


ver se espalha!
10 A filosofia orientada a objetos tem conhecidos antecedentes na teoria ator–rede,
especificamente na noção de actantes (cf. Harman, 2009).

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Aceite em: 10/10/2011

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133
Perspectivismo multinatural como
transformação estrutural

Jose Antonio Kelly Luciani


Universidade Federal de Santa Catarina, Santa Catarina, Brasil
E-mail: kamiyekeya@gmail.com

Tradução: Paola Gibram e Milena Argenta


Jose Antonio Kelly Luciani

Resumo Abstract

O objetivo deste artigo é demonstrar The object of this chapter is to demonstrate


que o que ficou conhecido como that what has come to be known as
perspectivismo multinatural (PM) multinatural perspectivism (MP) can be
(Viveiros de Castro, 1998) pode ser vis- seen as a structural transformation of
to como uma transformação estrutu- totemism, and that for this reason MP has
ral do totemismo e que, por essa ra- an intimate relation with Lévi-Strauss’s
zão, o PM tem uma íntima relação com canonical formula for myth (CFM). The
a fórmula canônica do mito (FCM) de first part of the chapter shows how we can
Lévi-Strauss. A primeira parte deste arrive at MP’s particular arrangement of
artigo mostra como podemos chegar the nature/culture and human/non-
à configuração das categorias nature- human categories by applying a “double
za/cultura e humano/não humano par- twist”, the CFM’s characteristic
ticular ao PM aplicando uma ‘dupla transformation, to the classic Lévi-
torção’, a transformação característica Straussian description of totemism. The
da FCM, à clássica descrição lévi- second part explores Lévi-Strauss’s own
strausseana do totemismo. A segun- thoughts on the transformations of totemism
da parte explora as reflexões de Lévi- as developed in The Savage Mind (1969).
Strauss sobre as transformações The third and last part of the essay aims to
totêmicas desenvolvidas nO pensa- elucidate the intimate relation between the
mento selvagem. A terceira e última CFM and MP drawing on elements of
parte do artigo busca elucidar a íntima Wagner’s (1978) theory of obviation. In so
relação entre a FCM e o PM com base doing, I hope to illustrate some affinities
nos elementos da teoria da obviação between Lévi-Strauss’s and Wagner’s
de Wagner (1978). approach to meaning.

Palavras-chave: Fórmula Canônica do Keywords: Canonical Formula for Myth.


Mito. Perspectivismo multinatural. Multinatural Perspectivism. Totemism.
Totemismo. Obviação. Obviation.

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volume 12 - número 1

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Perspectivismo multinatural como transformação estrutural

Introdução

O objetivo deste artigo é demonstrar que o que ficou conhecido


como perspectivismo multinatural (PM) (Viveiros de Castro,
1998) pode ser visto como uma transformação estrutural do
totemismo e que, por essa razão, o PM tem uma íntima relação com
a fórmula canônica do mito (FCM) de Lévi-Strauss. A primeira parte
deste artigo mostra como podemos chegar à configuração das cate-
gorias natureza/cultura e humano/não humano particular ao PM
aplicando uma ‘dupla torção’, a transformação característica da FCM,
à clássica descrição lévi-strausseana do totemismo. A segunda parte
explora as reflexões de Lévi-Strauss sobre as transformações
totêmicas desenvolvidas no pensamento selvagem. A terceira e última
parte do ensaio busca elucidar a íntima relação entre a FCM e o PM
com base nos elementos da teoria da obviação de Wagner (1978).
Assim procedendo, espero ilustrar algumas afinidades entre as abor-
dagens de Lévi-Strauss e Wagner sobre a significação.1

Parte I: PM e totemismo

Deixe-me agora começar a primeira parte da minha demons-


tração: de que o PM é uma verdadeira transformação estrutural do
totemismo, uma ideia inspirada numa sugestão do próprio Viveiros
de Castro (2008 p. 111-112, grifos no original) sobre essa relação:
Sobretudo, decerto não é por acaso que os dois últimos
livros “mitológicos” de Lévi-Strauss sejam construídos
como desenvolvimentos precisamente dessas duas figuras
do dualismo “anti-estático”: A oleira ciumenta (1985) é uma
ilustração sistemática da fórmula canônica, ao passo que a

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Jose Antonio Kelly Luciani

História de Lince concentra-se na instabilidade dinâmica – o


“desequilíbrio perpétuo”, expressão que fez sua primeira
aparição n’As estruturas elementares do parentesco, para
descrever o casamento avuncular dos Tupi – das dualidades
cosmo-sociológicas ameríndias. Isso me faz supor que
estamos diante de uma única macro-estrutura virtual, da
qual a fórmula canônica, que pré-desconstrói o analogismo
totêmico do tipo A/B=C/D, e o dualismo dinâmico, que
corrói a paridade estática das oposições binárias, seriam
apenas duas atualizações. Com a fórmula canônica, em
lugar de uma oposição simples entre metaforicidade
totêmica e metonimicidade sacrificial, instalamo-nos
imediatamente na equivalência entre uma relação
metafórica e uma metonímica, a “torção” que faz passar de
uma metáfora a uma metonímia ou vice-versa: a famosa
“dupla torção”, a “torção supranumerária”, o “double twist”
que na verdade é transformação estrutural por excelência.
A conversão assimétrica entre o sentido literal e o figurado,
o termo e a função, o continente e o conteúdo, o contínuo
e o descontínuo, o sistema e seu exterior – esses são os
verdadeiros temas estruturalistas, que atravessam todas as
análises lévi-straussianas da mitologia, e mais além. O devir
é uma dupla torção.

Totemismo, na clássica descrição de Lévi-Strauss (1989), esta-


belece uma relação de homologia entre as diferenças internas a uma
série natural de animais/não humanos e as diferenças internas a uma
série cultural de grupos humanos. Diferenças na série natural
correspondem, dessa forma, às diferenças nas séries culturais. Nesse
ponto de vista, nenhuma verdadeira transformação ocorre entre as
séries natural e cultural, ocorrendo apenas uma homologia entre as
relações A/B = C/D. Isso pode ser expresso pela seguinte representa-
ção gráfica – certamente não ortodoxa – do totemismo:

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Perspectivismo multinatural como transformação estrutural

Figura 1 – Representação do totemismo clássico

O ponto traçado representa uma relação, qualquer que seja, entre


animal e animal (A/B) e entre humano e humano (C/D). A sua idên-
tica localização tanto no ‘espaço natural’ como no ‘espaço cultural’
significa a homologia – a ausência de qualquer transformação na
passagem de um espaço ao outro.
Uma transformação estrutural do totemismo exigiria aplicar uma
‘dupla torção’ a essa configuração, do tipo que aparece no último
elemento da FCM: Fx(a):Fy(b)::Fx(b):Fa-1(y). Primeiro, os termos
devem substituir as relações. Isso constitui uma inversão de figura e
fundo, correspondendo à torção na FCM na qual ‘y’ em Fy(b) passa
de uma função a um termo em Fa-1(y) sobre o qual se aplica uma
função.

Figura 2 – Inversão figura e fundo do totemismo clássico

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Agora o que era um espaço transformou-se em um eixo, ou


seja, ‘natureza’ e ‘cultura’ agora operam como eixos e, de maneira
correspondente, ‘humano’ e ‘não humano’ tornam-se espaços. Isso
já nos aproxima da configuração do PM; agora, ‘natureza’ e ‘cultu-
ra’ não são dois domínios ontológicos, mas variáveis internas aos
espaços humano e não humano. Qualquer ponto traçado nesse es-
paço, ou seja, qualquer relação, é uma relação N/C que podemos
interpretar como a conjunção de uma visão reflexiva – ‘cultura’ ou
‘humanidade’ – e a ‘perspectiva do Outro’ – ‘natureza’.
A segunda torção requer que invertamos os dois novos termos
a serem relacionados, ou seja, ‘natureza’ e ‘cultura’. Isso corresponde
à torção no quarto termo da FCM de ‘a’ em ‘a-1’. Em nosso caso,
podemos interpretar ‘a’ como ‘natureza’ e ‘a-1’ como ‘natureza-1’,
que pode somente ser ‘cultura’: aquilo contra o qual a natureza é
definida.

Figura 3 – Inversão dos termos (natureza e cultura)

Dessa vez, a diferença na localização da relação traçada é uma


consequência da mudança no eixo do espaço não humano, de tal
forma que a ‘natureza’ no espaço humano corresponde à ‘cultura’
no espaço não humano. Isso representa a diferença de perspectiva
entre humanos e não humanos e deixa-nos com uma transforma-
ção bidirecional HmoNH na configuração de reciprocidade de pers-
pectiva do PM, em que N/C torna-se C/N, cada um indicando uma
dupla perspectiva (reflexiva e Outro) interna a cada espaço.

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Perspectivismo multinatural como transformação estrutural

Se essa demonstração é verdadeira, podemos dizer que existe


uma função chamada ‘transformação estrutural’ que converte o
totemismo em PM:

Ftransformação estrutural (totemismo) = PM

Na terceira parte deste artigo eu exploro algumas implicações


dessa conexão. Antes de chegar lá, no entanto, vale a pena conside-
rar algumas reflexões de Lévi-Strauss sobre as possíveis transforma-
ções do totemismo.

Parte II: Transformações do totemismo

É bem sabido que Lévi-Strauss desinstitucionalizou o totemismo


‘clássico’ e fez dele o modo primário e universal da racionalidade.
Isso ele fez principalmente em O pensamento selvagem, analisando uma
série de configurações de natureza/cultura como transformações do
totemismo. Quando discute uma forma de totemismo Tikuna, por
exemplo, ele escreve sobre o uso que eles fazem de ‘roupas’ animais
como emblemas para diferenciar grupos sociais e conclui:
A pele, as penas, o bico, os dentes podem ser meus, pois são
aquilo pelo que o animal epônimo e eu diferimos um do
outro; essa diferença é assumida pelo homem a título de
emblema e para afirmar sua relação simbólica com o animal,
ao passo que as partes consumíveis, portanto, assimiláveis,
são o índice de uma consubstancialidade real, mas que, ao
contrário do que se imagina, a proibição alimentar tem
como objetivo verdadeiro negar (Lévi-Strauss, 1989, p. 124).

Eu aponto isso porque, conforme veremos na Parte III, a FCM


oferece uma visão holográfica das relações, em que a assimetria aqui
notada por Lévi-Strauss entre semelhança e diferença, em que a pri-
meira deve ceder à última para que a cultura seja extraída da nature-
za e simultaneamente torne os grupos humanos diferentes uns dos
outros, é dissolvida e mostra-se ser reversível; é, portanto, uma ilu-
são – ainda que seja uma ilusão necessária. O que Lévi-Strauss aqui
chama de negação, tout court, a própria FCM mostra ser uma obviação

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Jose Antonio Kelly Luciani

(Wagner, 1978): a semelhança só pode ser relegada ao plano de fun-


do (backgrounded) se ignorarmos outros contextos em que será a di-
ferença que assume o plano de fundo, sendo a semelhança colocada
no primeiro plano (foregrounded). Isso é precisamente o que acontece
quando Lévi-Strauss desloca sua formulação clássica de totemismo
de um sistema de relações homólogas entre diferenças para um sis-
tema de relações homólogas entre termos.
Nesse caso, o conteúdo implícito da estrutura não será mais
que o clã 1 difere do clã 2, como por exemplo, a água do
urso, mas que o clã 1 difere do clã 2, como por exemplo, a
águia do urso, mas que a natureza do clã 1 e a natureza do
clã 2 serão isoladamente colocadas em causa, no lugar de
uma relação formal entre os dois (1989, p. 133).

Essa mudança de nós vermos a analogia como metáfora para


vê-la como semelhança coloca o sentido de ‘humanidade’ e
‘animalidade’ em questão – a natureza dos clãs são ‘mises en cause’.
Nesse estágio, Lévi-Strauss observa, mais como um experimento
ideacional, como ambos os aspectos do totemismo trabalham um
contra o outro: quanto mais as diferenças sociais entre os grupos
humanos são ressaltadas, menos a semelhança entre os animais pode
ser afirmada; e quanto mais profunda for a semelhança com ani-
mais, “ser-lhe-á cada vez mais difícil, no plano social, manter suas
ligações com outros grupos e, muito especialmente, permutar com
eles suas filhas e irmãs, pois tenderá a representá-las como se fossem
de uma ‘espécie’ particular” (Lévi-Strauss, 1989, p. 135). O efeito
que Wagner atribui ao trabalho combinado de duas formas de
simbolização – convencionalizante e diferenciante – Lévi-Strauss
enxerga no modo de operação, por assim dizer, perpendicular de
dois esforços de simbolização convencional (i.e. duas formas de clas-
sificação com propósitos cruzados). Novamente, isso é o que a FCM
de Lévi-Strauss vai ‘corrigir’, ao mostrar a intercambialidade entre
metáfora e metonímia. Entretanto, Lévi-Strauss parece não ter bus-
cado todas as consequências do totemismo, ressaltando tanto analo-
gia como metáfora (formulação totêmica clássica) quanto analogia
como semelhança (formulação totêmica deslocada). Considere, por
exemplo, seus comentários sobre uma etnografia Chickasaw em que
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Perspectivismo multinatural como transformação estrutural

a partilha de comportamentos entre humanos e animais aparece de


forma extrema (as pessoas raposa-vermelha são ladrões profissio-
nais, as pessoas gato selvagem dormem durante o dia e caçam à noi-
te etc.): “Nenhuma sociedade poderia se permitir a esse ponto ‘iludir
a natureza’, pois se cindiria numa multidão de bandos independen-
tes e hostis, cada um deles negando aos outros a qualidade humana”
(Lévi-Strauss, 1989, 137-138). Vale ressaltar que o PM exige uma
visão expandida da sociedade que deve, precisamente como aquela
que Lévi-Strauss vislumbra na impossível sociedade animal-totêmica,
ser ‘dividida’ em seres humanos e uma variedade de seres não hu-
manos, cada um, se não ‘negando a humanidade de outros’ em to-
dos os planos, definitivamente negando a humanidade, além de lhe
reconhecer uma perspectiva reflexiva pelo seu estatuto de agente.
Talvez a transformação mais interessante que Lévi-Strauss exa-
mina é aquela que converte grupos totêmicos em castas, pois essa
transformação de grupos animais totêmicos exogâmicos em castas
funcionais endogâmicas envolve uma dupla torção do tipo da FCM,
como Viveiros de Castro (2009, p. 143, tradução minha) nos lembra:
é precisamente porque as espécies totêmicas são
endopráticas – os ursos casam com ursos, lynce casa com
lynce – que são aptas para significar espécies sociais
exopráticas – a gente do clã do urso casa com os do clã do
lynce. As diferenças externas tornam-se diferenças internas,
distinções tornam-se relações, termos viram funções. Uma
fórmula canônica se esconde atrás do totemismo – Aquela
que transforma a máquina totêmica em uma máquina de
castas […].

Contrariamente à sua opinião sobre a Chickasaw – que ele des-


creve como um ‘meio caminho’ entre grupos totêmicos e castas –,
Lévi-Strauss considera as castas culturais/funcionais como uma for-
ma realizável de transformação social do totemismo. Suspeito que
isso é ao menos em parte devido à adesão de Lévi-Strauss ao compo-
nente metafórico da analogia, o que o impediria de conceber (ao
menos n’O pensamento selvagem) um conceito como o multinaturalismo
ou a associação entre natureza/unidade/estatuto de inato e cultura/
diversidade/artificialidade aparecendo em outra configuração. Isso,

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Jose Antonio Kelly Luciani

penso eu, é a essência da crítica de Wagner ao fato de Lévi-Strauss


ter-se “detido antes de chegar as conclusões completamente
relativistas”, nas páginas finais d’A invenção da cultura (1981, p. 150).
Nota-se, portanto, que é um tanto paradoxal que essas conclusões
‘completamente relativistas’ estejam disponíveis na FCM – como será
visto de forma mais detalhada na Parte III.
A seguinte passagem sobre a relação entre castas e grupos
totêmicos ilustram a aparente impossibilidade de um multinaturalismo
e uma correspondente cultura única e dada na análise de Lévi-Strauss
(1989, p. 142-143).
Com efeito, existem apenas dois modelos verdadeiros da
diversidade concreta: um, no plano da natureza, é o da
diversidade das espécies; outro, no plano da cultura, é
oferecido pela diversidade das funções. Colocado entre esses
dois modelos verdadeiros, aquele que os intercâmbios
matrimoniais ilustram apresenta um caráter ambíguo e
equívoco, pois as mulheres são semelhantes quanto à
natureza, e é somente em vista da cultura que podem ser
colocadas como diferentes: mas, se prevalece a primeira
perspectiva (como é o caso, quando o modelo da diversidade
escolhido é o modelo natural), a semelhança se sobrepõe à
diferença: sem dúvida, as mulheres devem ser trocadas, pois
se decretou que são diferentes; mas essa troca no fundo
supõe que elas sejam tidas como semelhantes.

Nessa visão, os grupos totêmicos estão sob uma ilusão, precisa-


mente porque o seu modelo de diversidade é a natureza – o que em
última análise impõe a sua unidade –, e não a cultura – que é o meio
verdadeiro de diferenciação dos seres humanos. Se a possibilidade
multinatural fosse considerada, a assimetria entre castas e grupos
totêmicos desapareceria: ambos estariam igualmente sob ilusões re-
ais. Lévi-Strauss continua (1989, p. 145-146):
Portanto, não é a mesma coisa introduzir uma diversidade
(socialmente) constituinte no seio de uma única espécie
natural, a espécie humana, ou projetar no plano social a
diversidade (naturalmente) constituída das espécies
vegetais ou animais. As sociedades de grupos totêmicos e
de seções exógamas crêem em vão que conseguem jogar o
mesmo jogo com espécies que são diferentes e com mulheres

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Perspectivismo multinatural como transformação estrutural

que são idênticas. Elas não se dão conta de que, sendo as


mulheres idênticas, só depende da vontade social torná-las
diferentes, ao passo que, sendo as espécies diferentes,
ninguém pode torná-las idênticas, ou seja, todas passíveis
do mesmo querer: os homens produzem outros homens,
não produzem avestruzes.

Aqui, o contraste entre grupos totêmicos e castas liga o caráter


inato da natureza e o caráter construído da cultura. Mais uma vez,
se a possibilidade de uma cultura dada e de uma natureza artificial
fosse concebível, Lévi-Strauss com certeza teria redirecionado esse
argumento.
Antes de continuar, quero deixar claro que o ponto dessa dis-
cussão tem sido explorar as formas como Lévi-Strauss concebeu as
transformações do totemismo. Devemos ter em mente que em ou-
tras partes do trabalho de Lévi-Strauss as coisas aparecem de forma
bastante diferente; tudo se passa como se ele estivesse puxando seu
próprio tapete. No mesmo espírito ‘totalmente relativista’ da FCM,
por exemplo, ele observa, no final de O homem nu, como a mudança
na estrutura dentro de um grupo de mitos é inseparável de um mo-
vimento correlativo de um registro semântico ao outro. Essas trans-
formações ele equipara a inversões de imagens da esquerda para a
direita, de cima para baixo, e de positivo para negativo. Em suma,
trata-se de reversões de figura e fundo “semelhantes ao mecanismo
do trocadilho que, quando usado corretamente, faz com que uma
palavra de uma frase mostre, como na forma de um negativo, o outro
significado que a mesma palavra ou frase pode assumir, se transposta
para um contexto de lógica diferente” (1990, p. 650). A semelhança
entre essa maneira de conceber a transformação estrutural e o pro-
cesso obviacional de Wagner é clara.
Merece nossa atenção uma última comparação: de acordo com
Viveiros de Castro (2009, p. 42, tradução minha), o PM é uma trans-
formação do tipo FCM do multiculturalismo.
A noção de multinaturalismo revela-se aqui útil dado seu
caráter paradoxal: nosso macro-conceito de ‘natureza’ não
pode em verdade ser colocado no plural. Isto imediatamente
nos leva a perceber o solicismo embutido na idéia de

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Jose Antonio Kelly Luciani

‘(muitas) naturezas’ e a efetuar o deslocamento corretivo


que impõe. Para parafrasear a fórmula de Deleuze sobre o
relativismo (1988:30), diremos que o multinaturalismo
Ameríndio afirma antes a naturalidade da variação que a
variedade das naturezas, ou seja, variação como natureza.
A inversão de fórmula ocidental do multiculturalismo não
aplica só aos termos (natureza e cultura) na sua
determinação de função (unidade e diversidade), mas
também aplica aos valores mesmos de ‘termo’ e ‘função’.

Dessa forma, Viveiros de Castro indica que

(1) FCM (multiculturalismo) = PM

No entanto, isso parece ter nos levado a uma contradição, uma


vez que aqui foi mostrado que

(2) FCM (totemismo) = PM

Como essas duas fórmulas podem ser ao mesmo tempo verda-


deiras? Por um lado, o totemismo = multiculturalismo, o que pare-
ce bizarro; no entanto, dedicamos um esforço considerável ao mos-
trar que o totemismo de Lévi-Strauss tem em comum com o
multiculturalismo o caráter inato e de unidade da natureza e a con-
vicção de que a verdadeira diversidade só é possível em culturas
construídas. Nesse sentido, existe uma equivalência totemismo =
multiculturalismo. Por outro lado, a equivalência estabelecida nas
duas fórmulas recai sobre diferentes aspectos da configuração natu-
reza–cultura. Em (1) recai sobre a variação unidade/diversidade de
cultura e natureza e em (2) relaciona o par humano/não humano
com o par natureza/cultura. Em (1) ‘humano’ e ‘não humano’ estão
ausentes, nada se sabendo de exato sobre quem são os sujeitos ou os
objetos de natureza e cultura. Em contraste, em (2) a questão da
diversidade e da unidade não é tratada, havendo apenas díades de
‘espaços’ humanos ou não humanos. As duas transformações, as-
sim, podem tornar visíveis diferentes aspectos do PM. Mas o que é
mais interessante, no entanto, é que podemos agora propor que o
PM, o naturalismo e o totemismo constituem um grupo de transfor-
mações de natureza e cultura sob a FCM. Se assim for, pode-se dizer

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Perspectivismo multinatural como transformação estrutural

que essas diferentes ontologias são trocadilhos uma da outra – a di-


ferença entre elas sendo ao mesmo tempo sutil e ‘fazendo toda a
diferença no mundo’.

Parte III: PM e FCM

Ao final da Parte I, sugeri que havia uma função chamada


“transformação estrutural” que converte o totemismo em PM da
seguinte maneira:

Ftransformação estrutural (totemismo) = PM

Retorno agora a essa afirmação com o foco na relação intrínse-


ca entre PM e FCM. A inspiração para esta parte do meu argumento
vem do comentário de Wagner de que uma asserção perspectivista
como a que analiso agora é a “essência do perspectivismo. A ‘analo-
gia comparativa dupla’, como a fórmula canônica do mito de Lévi-
Strauss” (comentário pessoal de Roy Wagner).
É notável que Stépanoff (2009, p. 285-286), que critica o PM
como teoria de uma ontologia e sua congruência com o material
etnográfico siberiano, de fato usa a expressão ‘fórmula canônica’ em
relação ao PM:
O perspectivismo ameríndio, em sua fórmula canônica
expressa por Viveiros de Castro (1998: 470), está
intimamente conectado à caça:
Os humanos vêem humanos como humanos, animais como
animais e espíritos (se o vêem) como espíritos; no entanto,
animais (predadores) e espíritos vêem humanos como
animais (enquanto presa) do mesmo modo como os animais
(enquanto presa) vêem os humanos como espíritos ou como
animais (predadores). Igualmente, animais e espíritos vêem
a si mesmos como humanos [...].
Uma fórmula mais abstrata do perspectivismo, de acordo
com Pedersen, seria que “o Outro verá a si mesmo como
humano, e assim verá os humanos como Outros”.

Mais adiante, falando sobre narrativas siberianas, ele oferece a


explicação seguinte:

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Jose Antonio Kelly Luciani

As Narrativas Chukchi constituem, antes de mais nada,


uma reflexão sobre relações, a saber, relações de relações, as
quais podem ser expressas satisfatoriamente numa fórmula
estrutural clássica:
[homem: foca] :: [ke’le: homem]
Que significa: a relação entre homem e foca é comparável à
relação entre espírito [ke’le] e homem. Do mesmo modo, se
pegarmos um famoso exemplo perspectivista amazônico:
[homem: cerveja] :: [jaguar: sangue]
A relação entre jaguar e sangue é comparável à relação entre
homem e cerveja. Uma formulação geral dessas histórias
perspectivistas seria:
[homem: presa do homem] :: [predador do homem:
homem]. (Stépanoff, 2009, p. 289-290, tradução minha).

Penso que Stépanoff se engana ao escolher a imagem de um


dualismo estrutural estático para estabelecer seu argumento, pois
ele dispensa o caráter ternário de muitos desses dualismos, o qual
pretendo mostrar que é também parte da essência das asserções no
PM. Lembremos quantos dualismos estruturais são em verdade
tríades, em que um termo do par contém em si um outro par
compactado. Isso é particularmente evidente nas transformações em
cascata batizadas em História de Lince como ‘desequilíbrio perpétuo’ (Lévi-
Strauss, 1991, Cap. xix) e na abordagem topológica de Lévi-Strauss
às organizações dualistas, em particular sua discussão do dualismo
diametral e concêntrico (Lévi-Strauss, 2005, p. 176-177). Outro ponto
crucial que escapa a Stépanoff é que ambos – PM e FCM – dizem
algo mais que vai além de ‘é comparável a’ quando se deparam com
a divisão humano/não humano. É a natureza dessas relações ‘:’ e ‘::’
que está em questão e que, de algum modo, subverte o significado
que adquire nas clássicas comparações estruturais duplas do tipo (x
: y :: a : b).
Minha sugestão é de que estaremos num caminho melhor ao
pensarmos o PM através da FCM. Para sustentar esse argumento,
vamos tomar agora uma situação clássica do PM e colocá-la nos ter-
mos da FCM.

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Perspectivismo multinatural como transformação estrutural

Um jaguar vê um ser humano como presa, como um


pecari, por exemplo, assim como os pecaris, vendo a si mes-
mos como humanos, veem um ser humano como um preda-
dor, como um jaguar, por exemplo.

Aqui temos três termos ou posições: humano, jaguar e pecari.


Temos também duas relações que definem essas três posições: uma
relação de reflexividade que define uma posição, aquela da humani-
dade e uma relação de predação que possui dois lados, já que alguém
pode predar ou ser predado. É por essa razão que ela define duas
posições: predador e presa. Nesse ponto o leitor pode voltar um pou-
co para trás e notar que a interpretação de Stépanoff das asserções
perspectivistas falta-lhe a posição reflexiva, o que explica por que ele
termina com um empareamento duplo e fechado que considera ape-
nas a relação predador–presa.
Agora podemos reescrever a FCM da seguinte maneira:

Fx(a):Fy(b)::Fx(b):Fa-1(y)
Fpredação (jaguar) : Freflexividade (humano) ::
Fpredação (humano) : Fjaguar-1 (reflexividade)

O lado esquerdo da equação expressa um fato verificável


etnograficamente: que o jaguar é o predador amazônico canônico
no mito e na vida, e que a humanidade, como o PM mostra, é a
forma da posição reflexiva, o ‘eu’ enunciado. Alguma relação ‘está
para’ permanece para ser desvendada quando se explora o outro lado
da equação. No lado direito da equação lemos que os humanos como
predadores têm algum tipo de relação com uma função ‘jaguar-1’,
que é uma função ‘pecari’ (a presa canônica), da reflexividade.
Como interpretar tudo isso?
O lado direito da FCM torna explícito tudo o que deve ser
obviado no lado esquerdo da equação para estabelecer a analogia lá
evocada – a relação ‘está para’. Nesse caso, explica quais relações
devem ser ignoradas e quais devem ser simultaneamente ressaltadas
no lugar para que possamos estabelecer a ‘humanidade’ como a po-
sição reflexiva e a ‘jaguaridade’ como a forma ideal de predação.

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O que o lado direito evoca é que:


a) os humanos também predam e, por isso, são em alguns con-
textos – principalmente caçando – jaguares. Os humanos devem-
jaguares. Esse é o ponto de vista dos pecaris que não estava aparente
no lado esquerdo da equação, pois aqui ‘vemos’ os humanos apenas
representando a posição reflexiva; e
b) o estatuto de presa é o correlato da posição reflexiva. Esse é o
ponto de vista do jaguar que não estava aparente no lado esquerdo
da equação. Isso diz o que todos os indígenas sabem, que eles podem
ver a si mesmos como humanos, mas eles são presas (como os pecaris
então) do jaguar ou de qualquer outro agente, como espíritos ou
outros monstros que tiram vidas humanas. Humanos, então, tam-
bém devem-pecaris.
Outro modo de ver isso se torna claro se organizarmos a FCM
como segue:2

Fpredação (jaguar) : Freflexividade (humano)


::
Fpredação (humano) : Fjaguar-1 (reflexividade)

Desse modo, podemos dizer que jaguar e humano são


‘congruentes’ quando a função predador é considerada, deixando o
terceiro – termo ainda não presente – implícito: animal (pecari) é ‘a
forma do Outro como objeto’. De modo semelhante, a humanidade
como a posição reflexiva é ‘congruente’ com a função presa da
reflexividade, ou seja, ‘a forma do Eu como objeto’ de outro olhar –
também presente apenas implicitamente: animal (jaguar ou divin-
dade, predador do humano), ‘a forma do Outro como sujeito’.
Note-se que o lado esquerdo da FCM perspectivista (doravante
FCM/PM) representa o ponto de vista humano, enquanto o lado di-
reito representa a perspectiva do Outro, que é decomposta em dois
pontos de vista: aquele do jaguar (Fjaguar-1 (reflexividade)) e aque-
le do pecari (Fpredação (humano)). A consideração de todas essas
visões revela a ‘humanidade’ em todas as suas configurações
posicionais: não apenas a forma da posição reflexiva, o ‘Eu’ enunci-

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150
Perspectivismo multinatural como transformação estrutural

ado, mas também a possibilidade de ser predador e presa, de objetificar


o outro ao devir-jaguar e ser objetificado ao devir-pecari (isto é, devir-
jaguar de outro alguém).
O lado direito de uma FCM perspectivista obvia duplamente o
lado esquerdo, ao contrastar as possibilidades do devir com a pers-
pectiva convencional de humanidade. Se “obviação é o processo atra-
vés do qual o terreno de responsabilidade humana deve ser eterna-
mente criado a partir do inato, e o terreno do inato deve ser consti-
tuído a partir do artificial” (Wagner, 1978, p. 31), podemos ver como
as perspectivas humana e aquelas derivadas do Outro fazem o papel
de ‘inato’ (convencional) e ‘artificial’ (devir) uma para a outra.
Deixe-nos agora considerar outro exemplo para ilustrar uma
variação desse exercício. Retorno aqui à autoetnografia Makuna em
Århem et al. (2004, p. 373, tradução minha).
[Quando se necessita de uma caça para rituais e festas] o
Kûmu [xamã] negocia com o mestre da casa dos animais...
Se, por exemplo, haverá uma troca com pecaris, o xamã fala
através do pensamento com Wumi buku [mestre da casa
dos animais], que após ter chegado a um acordo com o
xamã, dirige-se a Kamukuku, mestre dos pecaris, para dizer-
lhe que deve enviar certa quantidade de cestas de
determinado amido de fruta, segundo os termos acordados.
Este mestre [da espécie específica, os pecaris] pergunta o
que receberá em troca e Wumi buku lhe entrega uma cuia
de coca que o xamã havia lhe dado anteriormente... Então
Wumi buku diz a Kamukuku para ir a certa parte da floresta
para entregar o que foi solicitado.
As pessoas saem para caçar e levam cães, armas ou arco e
flecha, e assim que os pecaris percebem o grupo de pessoas
que está ali para receber as cestas solicitadas, soltam as
cestas de amido de fruta no chão; quando as pessoas lançam
suas flechas, elas acertam as cestas e os animais que
acompanham seu mestre Kamukuku saem correndo. Se a
pessoa que foi buscar as cestas de amido de fruta for uma
má caçadora e não acertar nenhuma, os animais voltam
para suas casas e dizem que entregaram as cestas, mas
ninguém quis recebê-las; neste caso, o mestre diz: “Ah certo,
não queriam nada” e a negociação deve ser repetida.

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volume 12 - número 1

151
Jose Antonio Kelly Luciani

As passagens fluidas que vão desde falar sobre animais até ces-
tas de amido de fruta, e da caça à troca, revelam o desenrolar de dois
eventos paralelos que podem ser resumidos como 3

Perspectiva dos humanos: Humanos estão caçando pecaris


Perspectiva dos animais: Humanos estão trocando amido de fruta
por coca

Podemos escrever essa FCM/PM incorporando o que acabamos


de aprender, que o lado esquerdo da equação representa a perspecti-
va humana e o lado direito representa as perspectivas derivadas do
Outro.

Ftroca (animal) : Fcaça (humano)


::
Ftroca (humano) : Fanimal-1 (caça)

Nesse caso as duas relações são aquelas da predação (caça) e da


troca, e as três posições são aquelas dos humanos, dos animais e do
amido de fruta.
O lado esquerdo da equação diz que há alguma relação ‘está
para’ entre a caça humana e a troca animal que permanece para ser
desvendada ao explorar o outro lado da equação. No lado direito da
equação, lemos que a troca humana tem algum tipo de relação com
uma função ‘animal-1’, ou seja, uma função ‘amido de fruta’ (a for-
ma canônica de comida nesse contexto Makuna) de caça. Como po-
demos ler isso?
A parte direita da FCM explica tudo o que deve ser obviado no
lado esquerdo para estabelecer a analogia lá evocada – a relação ‘está
para’. Nesse caso, explica quais relações devem ser ignoradas e quais
devem ser ressaltadas no lugar para que possamos estabelecer que a
caça humana corresponde à troca animal.
O que o lado direito evoca é que
a) são os humanos que trocam, essa é a perspectiva que os ani-
mais têm deles mesmos, eles devem-humanos. Isso não estava apa-
rente no lado esquerdo da equação porque aqui ‘vemos’ apenas ani-

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volume 12 - número 1

152
Perspectivismo multinatural como transformação estrutural

mais representando a troca e, para que isso seja verdade, a humani-


dade dos animais deve ser explicitada. A troca é uma coisa de huma-
nos; e
b) ‘animal-1’, ou seja, ‘amido de fruta’, é o correlato da caça.
Esse é o ponto de vista do mestre animal que não estava aparente no
lado esquerdo da equação. Isso diz o que os Makuna sabem, que os
animais que eles caçam e comem são na verdade amido de fruta, é
disso que se trata toda a negociação entre o xamã e o mestre animal.
Sabemos por outras partes do texto Makuna que animais devem-
amido de fruta para que sua constituição de tabaco e coca não cause
doenças aos Makuna que os comem.
A parte esquerda da FCM perspectivista acima representa o ponto
de vista dos humanos, o que inclui o reconhecimento da troca ani-
mal. Isso está particularmente presente no entendimento do xamã.
Poderíamos dizer que o ponto de vista dos humanos está dividido
internamente entre aquele dos caçadores e aquele do xamã, e o últi-
mo está de algum modo aliado ao dos animais. Essa divisão é sinali-
zada pelos comentários do narrador Makuna sobre o modo como o
xamã “trabalha seus pensamentos”; sobre como seu conhecimento
é “complicado” e “difícil de entender”; sobre ele falando de coisas e
relações que existem “apenas na imaginação”. De modo algum isso
significa que essas relações não são reais, apenas sublinha sua natu-
reza trucada e não aparente.
O lado direito nos relembra a perspectiva do Outro, que inclui
em si dois aspectos que parecem ser compartilhados por ambos –
animais e mestre animal: Ftroca (humanos) diz que os animais veem
uma transação, eles deixam as cestas na floresta como parte de uma
troca; e Fanimal-1 (caça) afirma que, particularmente no olhar do
mestre animal, ele não está distribuindo animais na forma animal (a
caça não é caça no fim das contas), mas como amido de fruta. De
fato, a coca que ele recebe como troca é a garantia da reprodução
animal. Nesse sentido, a perspectiva do mestre animal, que substitui
caça/predação por troca/amido de fruta, está ligada àquela do xamã
humano com quem a negociação se realiza.

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Jose Antonio Kelly Luciani

A congruência entre PM e FCM: algumas percepções

Se os argumentos e exemplos acima estão corretos, podemos


extrair algumas ideias interessantes:
a) uma asserção FCM/PM gera uma visão holográfica “de toda
parte”; as perspectivas e suas sombras, por assim dizer, tornam-se
aparentes. Esse fenômeno pode ser reconhecido pelas pessoas, mas
não pode ser experienciado por um agente – à exceção dos xamãs. A
qualquer momento, um ator deve “mascarar” (Wagner, 1981) algu-
mas dessas relações para ser efetivo ao impor seu ponto de vista con-
tra a provável presença de uma perspectiva Outra. Apesar de não ser
evidente nos textos Makuna, devemos presumir que, durante a caça
em si, caçadores Makuna devem se concentrar em sua excursão como
uma caça.4 Uma disjunção entre as visões e as ações do caçador (pre-
datória) e do xamã (troca) é parte da essência na caça Arara (Teixeira-
Pinto, 2009). Um bom exemplo desse mascaramento necessário vem
da descrição de Lima (1996) da caça Juruna. A caça Juruna de fato
consiste em dois eventos simultâneos: os Juruna estão caçando pecaris
enquanto os pecaris, vendo a si mesmos como humanos, estão
engajados em um ataque contra inimigos afins potenciais (os caça-
dores Juruna). Durante a caça, é de extrema importância para o ca-
çador conservar a posição de enunciador: ele não deve ter medo, ele
não deve mencionar ou fazer brincadeiras com suas presas pecaris
ou “dará voz” a elas – um movimento fatal que termina em morte
(os pecaris capturam um inimigo). Em outras palavras, não importa
quão real, durante a caça a humanidade dos pecaris não deve ser
evocada, pode apenas estar presente subjugada, no silêncio que ela
impõe, assim como as sombras da relação “está para” em um lado da
FCM só podem ser aparentes no outro lado. Isso também equivale a
dizer que a humanidade e a animalidade dos pecaris devem residir
numa relação de evitação: relacionada por separação e mediada por
uma terceira (humana) parte;
b) as relações “está para” na FCM deveriam então ser lidas como
a obviação dupla que deve existir para que a relação de qualquer um
de seus termos sujeito–predicado se mantenha verdadeira. Por exem-
plo, Freflexividade (humano), na qual a humanidade representa a

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154
Perspectivismo multinatural como transformação estrutural

posição reflexiva, só se mantém verdadeira se obviarmos a perspecti-


va do jaguar (humano como presa) e a do pecari (humano como
predador). Igualmente, Fcaça (humano) obvia a perspectiva dos ani-
mais (e do xamã Makuna) onde não há caça, mas troca, e a predação
não envolve caça e carne, mas amido de fruta. Dando um passo atrás
na FCM, é apenas com essa obviação dupla, com a estabilização de
cada termo, que as relações analógicas (“está para”) entre os termos
no mesmo lado da FCM podem manter-se verdadeiras. É também
apenas com essa fixação de uma imagem que podemos considerar
que um lado da nossa FCM/PM corresponde a uma perspectiva hu-
mana/convencional e o outro a uma perspectiva Outro-derivada que
sinaliza as possibilidades do tornar-se. Como podemos ver, há muito
mais nas relações “está para” na FCM que a leitura convencional “é
comparável a” sugere. A FCM se refere às obviações por trás da pos-
sibilidade de comparação. Viveiros de Castro escreve acima: “o devir
é uma dupla torção”, certamente ele não está apenas com a FCM em
mente, mas também com o PM. E, se Wagner (1986, p. 131) sugere
que “obviação é o oposto do estruturalismo”, pode-se também dizer
que “a FCM é o oposto do estruturalismo” e pelas mesmas razões.
Tudo isso é evidente quando contrastamos a FCM/PM com seu
dualismo ternário e sua dupla obviação – a transformação estrutural
fundamental nas palavras de Viveiros de Castro – com as analogias
duplas do estruturalismo estático. “Devir” e “obviação” são a
problematização das analogias “está para” – os sinais “:” e “::”. As
analogias ou metáforas são sempre parciais, razão pela qual elas não
são apenas mecanismos classificatórios, mas também mecanismos
infetuosos, corruptores, contraclassificadores ou dissolventes. A FCM
funciona contra si mesma ao revelar a constituição recíproca do sím-
bolo e da realidade, do eu e do outro, como faz o PM. De certo modo,
e permitindo-me o jogo de palavras, a FCM coloca a significação em
perspectiva (Lévi-Strauss nos diz ao final de O cru e o cozido que os
mitos significam significação em si), enquanto o PM coloca a signi-
ficação em perspectiva; e
c) o uso de Lévi-Strauss da FCM torna visíveis as conexões tor-
cidas entre os mitos. Nesse sentido, a FCM transforma os mitos uns

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volume 12 - número 1

155
Jose Antonio Kelly Luciani

nos outros. Mas isso sempre é feito atravessando uma divisa cultu-
ral, envolvendo povos distintos. As asserções do PM, de sua parte,
expressam transformações de perspectivas através dos campos hu-
manos/não humanos ainda dentro da visão interna de um único grupo
cultural. Esse contraste nos lembra os enigmas que nos levaram à
descrição do PM: generosidade e avareza simultâneas dos ameríndios
no que se refere ao status da humanidade, a primeira relacionada ao
animismo e a segunda ao etnocentrismo (Viveiros de Castro, 1998).
É bem sabido que as relações interétnicas e humano/não humanas
são, na sociocosmologia ameríndia, entrelaçadas, com os estrangei-
ros considerados tipicamente menos-que-humanos, e não humanos
geralmente tratados como grupos étnicos vizinhos. Sob esse aspec-
to, a congruência entre as asserções do PM e a FCM é menos surpre-
endente; a transformação que opera é a mesma, o que varia de um
caso a outro são os objetos da transformação.

Inconclusão

Em vez de um apanhado geral dos meus argumentos, termino


este artigo com um experimento adicional, uma operação final cujo
significado me escapa. Na melhor das hipóteses ofereço uma
inconclusão.
A operação é a duplicação da FCM/PM sobre si mesma.
Retornemos à primeira FCM/PM apresentada:

FCM/PM (1): Fpredação (jaguar) : Freflexividade (humano)


::
Fpredação (humano) : Fjaguar-1 (reflexividade)

Recordemos que o lado esquerdo da FCM acima representava a


visão convencional da humanidade e que o lado direito revelava pers-
pectivas derivadas do Outro, constituindo também as possibilidades
de devir-outro (tornar-se jaguar e tornar-se pecari). Mantendo isso
em mente, façamos dos termos 1 e 2 da FCM/PM (1) o primeiro
termo de uma nova FCM/PM (2). Façamos também dos termos 2 e 3
da FCM/PM (1) o segundo termo de uma FCM/PM (2). Uma vez

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156
Perspectivismo multinatural como transformação estrutural

que o lado esquerdo da equação esteja pronto, o lado direito será


dado pela fórmula em si. FCM (2) se lê a seguir.

FCM/PM (2): Fconv (humano) : Ftornar-se (não humano/Outro)


::
Fconv (não humano/Outro) : Fhumano-1 (tornar-se)

Mantendo nossas convenções interpretativas, o lado direito da


FCM/PM (2) revela o que o esquerdo encobre: que não humanos
também têm convenções, ou seja, que humanos e não humanos são
congruentes no que se refere à função “convenção”. Mas a relação
entre os termos 2 e 4 se torna recíproca e tautológica: diz que a
função “humano-1” (não humano) do devir é congruente à função
“devir” dos não humanos. Em outras palavras, no lado esquerdo não
humanos “significa” devir e no lado direito é o devir que “significa”
não humanidade. Com a duplicação da FCM/PM sobre si mesma,
uma FCM/PM de segunda ordem, algo se fecha sobre si mesmo: é
uma involução (uma função que é igual ao seu inverso), mas uma
que também diz que o devir-Outro é tautologia (Viveiros de Castro,
2009, p. 149), e vice-versa. Dito de outro modo, a FCM (2) se torna
uma função espelho estabelecendo não só a reversibilidade das rela-
ções do humano com o animal, mas também que a relação dos hu-
manos com os animais é aquela dos animais com o devir.5
Além disso, a duplicação da FCM/PM sobre si mesma é equiva-
lente a construir uma FCM/PM com duas anteriores. A construção
dos termos 1 + 2 e 3 + 4 é equivalente à construção seguinte:

FCM/PM (a) :: FCM/PM (b)

O caráter tautológico da FCM/PM (2) poderia talvez ser enten-


dido como a equivalência de todas as formulações FCM/PM entre si.
Todas as asserções do PM têm a simetria de perspectivas e a divisão
canônica entre humano e não humano como um dado de regimes
sociocosmológicos ameríndios. Tomada individualmente, no entan-
to, qualquer FCM/PM vai introduzir algo mais que “percepções” ou
perspectivas. Como mostram nossos exemplos, qualquer FCM/PM

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157
Jose Antonio Kelly Luciani

envolve relações específicas de reflexividade, predação, troca, termos


humanos e não humanos específicos como caçadores, xamãs, ja-
guares, pecaris, mestres animais e amido de fruta. FCM/PM (2) tam-
bém parece obviar a obviação em si, apresentando um arranjo simé-
trico fechado de perspectivas que parece tautológico. Se assim for, a
passagem da FCM/PM (2) para qualquer FCM/PM, em que relações
específicas entram em jogo, é equivalente, para usar a formulação
pertinente de Almeida (2008, p. 168), a “desorientar um julgamen-
to”; é uma transição com quebra de simetria, isto é, uma quebra
topológica:
No pensamento mítico, rasgar um juízo orientado e
reconectá-lo através de um salto descontínuo, abolindo
com isso a separação entre predicado e sujeito e invertendo
termos, é como passar de cilindro, uma superfície orientada,
para uma faixa de Moebius, superfície não-orientável na
qual avesso e direito não têm existência separada.

Essa passagem, posso apenas supor, é onde contingência e mo-


tivação entram em jogo e, para pagar tributo a Roy Wagner, é O lugar
da invenção.

Notas
1
Deve-se notar que o próprio Wagner escreveu sobre as diferenças entre a análise
estrutural de Lévi-Strauss e a obviação simbólica (1978, p. 31-37; 1981, p. 150-151;
1986, p. 131). Aqui estou mais especificamente preocupado com a fórmula canônica
do mito, através da qual as abordagens de Lévi-Strauss e Wagner sobre mito e
significado parecem apresentar mais aproximações entre uma e outra.
2
Este esquema e argumentação segue Almeida (2008, p. 167).
3
Esta interpretação da caça Makuna envolvendo eventos paralelos e implicados vem
diretamente da análise de Lima (1996) das caçadas Juruna. Naquele caso, em vez
de um paralelismo caça/intercâmbio, encontra-se um paralelismo caça/guerra.
4
De acordo com Lima (1996), a mesma operação de mascaramento deve manter-se
entre as duas linhas de vida implicadas da pessoa Juruna e sua alma, que devem
manter-se ignorantes dos afazeres um do outro.
5
Estas interpretações são de Eduardo Viveiros de Castro.

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158
Perspectivismo multinatural como transformação estrutural

Referências
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LÉVI-STRAUSS, Claude. O pensamento selvagem. Chicago: University of
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______. The Naked Man. Chicago: University of Chicago Press, 1990.
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LIMA, Tânia Stolze. O dois e seu múltiplo: reflexões sobre o perspectivismo
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TEIXEIRA-PINTO, Márnio. Lévi-Strauss, as luzes e os instrumentos das
trevas: sobre a moralidade selvagem. Ilha: Revista de Antropologia, Florianópolis:
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1992.
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In: QUEIROZ, Ruben Caixeta; NOBRE, Renarde Freire (Eds.). Lévi-Strauss:
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______. Métaphysiques Cannibals: Lignes d’Anthropologie Post-Structurale.
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WAGNER, Roy. Analogic Kinship: A Daribi Example. American Ethnologist,
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______. Lethal Speech: Daribi Myth as Symbolic Obviation. Ithaca: Cornell
University Press, 1978.
______. The Invention of Culture. Chicago: University of Chicago Press, 1981.

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159
Jose Antonio Kelly Luciani

______. Symbols that Stand for Themselves. Chicago: Chicago University Press,
1986.

Recebido em: 29/09/2011


Aceite em: 10/10/2011

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A longa tarde de um fauno

NÚMERO 2

ILHA
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Um pequeno, mas espinhoso,
problema do parentesco¹

Marcio Silva
Universidade de São Paulo, São Paulo, Brasil
E-mail: marciofs@uol.com.br
Marcio Silva

Resumo Abstract

Este texto tem por objetivo chamar a This essay seeks to call attention to the
atenção para a contribuição pioneira pioneering contribution of Robert Carneiro
de Robert Carneiro no debate sobre a to the debate regarding the difference between
diferença entre os métodos de cruza- Dravidian and Iroquois kinship systems,
mento do parentesco dravidiano e pointed out by Morgan in 1871. The essay
iroquês, apontada por Morgan em briefly contextualizes the issue and offers
1871. O texto oferece uma breve an overview of the debates in its regard from
contextualização do problema e faz um the nineteenth century onwards. The
sobrevoo do debate por ele suscitado, remarkable contribution of Robert Carnei-
do século XIX ao XXI. A notável con- ro remained unnoticed for more than 50
tribuição de Robert Carneiro permane- years, due to circumstances that became
ceu mais de cinquenta anos invisível, known only because of a letter sent to Eduar-
por circunstâncias que só agora conhe- do Viveiros de Castro by Robert Carneiro,
cemos, graças a uma carta enviada a who has granted me permission to translate
Eduardo Viveiros de Castro que Robert and publish it.
Carneiro me autorizou a traduzir e pu-
blicar. Keywords: Robert Carneiro. Dravidian.
Iroquois. Crossing. Kinship Theory.
Palavras-chave: Robert Carneiro.
Dravidiano. Iroquês. Cruzamento. Te-
oria do parentesco.

ILHA
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Um pequeno, mas espinhoso, problema do parentesco

Duas notas de rodapé e duas cartas

E m meados dos anos 1960, uma nota de rodapé, de autoria de


Floyd Lounsbury, viraria uma página da história dos estudos de
parentesco. A nota (Lounsbury, 1964, n. 4) que, segundo Trautmann
e Barnes (1998, p. 27), “deve ser a mais famosa na antropologia”
elucida a diferença fundamental entre sistemas de parentesco2 de
tipo “iroquês” e “dravidiano”, dissipando uma densa névoa que, por
mais de um século, se formou sobre a questão, induzida pela crença
generalizada na identidade essencial dos dois tipos. Retomando o
material de Morgan sobre o Sêneca-Iroquês, Lounsbury chama a
atenção de que “iroquês” e “dravidiano” são radicalmente opostos
nos métodos pelos quais os parentes colaterais distantes são compu-
tados como paralelos ou cruzados (Trautmann, 1987, p. 240).
Lounsbury divide os louros de seu notável achado com o colega
Leopold Pospisil, que, do outro lado do mundo, chega às mesmas
conclusões. Entre os anos 1954 e 1955, ambos percebem o proble-
ma: Lounsbury na biblioteca, debruçado sobre os Sistemas de
consanguinidade e afinidade da família humana; Pospisil no campo, en-
tre os Kapauku-Papua da Nova Guiné, povo que desenvolveu um
sistema idêntico ao Sêneca-Iroquês. A partir de sua divulgação em
1964, a descoberta de Lounsbury–Pospisil vem sendo tomada como
referência em numerosas contribuições, como as análises de Kay
(1965, 1967), Tyler (1966), Atkins (1974), Scheffler (1971), Héritier
(1981), Trautmann (1981, 1987), Kronenfeld (1989, 2004), Viveiros
de Castro (1993, 1996, 1998, 2002), Coelho de Souza (1995),
Trautmann e Barnes (1998), Tjon Sie Fat (1998) e Barbosa de Almeida
(2010).

ILHA
volume 12 - número 2

165
Marcio Silva

Mas o nome de Robert Carneiro poderia também ser lembrado


como coautor da façanha.3 Em um trabalho de fim de curso, apre-
sentado ao professor Leslie White na primavera de 1952, o jovem
doutorando da Universidade de Michigan, que depois se tornaria um
dos mais importantes antropólogos evolucionistas da atualidade,
chegaria às mesmas conclusões de Lounsbury e Pospisil. Essa con-
tribuição, entretanto, por uma série de “circunstâncias incomuns,
quase bizarras”, nunca veio à tona. Reverenciado por suas teorias
sobre formação do Estado, pré-história da América do Sul e agricul-
tura dos povos alto-xinguanos, Robert Carneiro aparentemente dei-
xou de se preocupar com os debates do parentesco desde então. Só
aparentemente, como já se verá. O único rastro de sua descoberta é
aquele que jaz em um agradecimento registrado por Gertrude Dole
(1957, p. 178) em sua tese de doutorado inédita, pelo fato de Robert
Carneiro ter chamado sua atenção para a “diferença significativa”
entre os sistemas de tipo “iroquês” e “dravidiano”, por ela denomina-
dos “de fusão bifurcada” e “de primos cruzados”, respectivamente.
Viveiros de Castro (1998, p. 376-377), também em nota de rodapé
(n. 5), faz uma breve alusão a tal agradecimento e se pergunta se
Carneiro e Dole tiveram contato com a versão preliminar da contri-
buição de Lounsbury, apresentada oralmente em 1956, oito anos antes
de a célebre nota de rodapé vir à luz. Uma carta de Robert Carneiro a
Eduardo Viveiros de Castro, de 14 de julho de 2010, retomando a
nota de rodapé deste último, traz em primeira mão elementos que
revelam a antecipação do autor na solução deste “pequeno, mas es-
pinhoso, problema” –, a expressão é de Carneiro e tomo emprestado
como título deste texto. A carta traz uma lição de parentesco e um
apólogo (machadiano, eu diria) inextrincavelmente imbricados, como
os leitores poderão notar.
Outra carta de Robert Carneiro a mim destinada, de 7 de janei-
ro de 2011, manifesta sua satisfação na divulgação da correspondên-
cia que descreve seu achado sexagenário e as circunstâncias que pro-
duziram sua invisibilidade, atendendo a um pedido meu. “Talvez ago-
ra [diz o remetente] eu possa parar de bater a cabeça na parede”.
Publico assim as duas cartas, precedidas de um breve sobrevoo
do tal “pequeno, mas espinhoso, problema”, referido nas duas notas
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volume 12 - número 2

166
Um pequeno, mas espinhoso, problema do parentesco

de rodapé. O que vem a seguir visa situar o tema das cartas em um


breve quadro de referências e não mapear detalhadamente a sua evo-
lução nos estudos de parentesco.4 É provável que o marco inicial de
sua história seja uma descrição de um sistema iroquês, de autoria do
Pe. Lafitau da Companhia de Jesus, em sua obra Moeurs des Sauvages
Americains, Comparées avec Moeurs des Premiers Temps, publicada em 1724
(vol. i, p. 552).5 Um artigo recente de Barbosa de Almeida (2010),
que retoma o tal “pequeno, mas espinhoso, problema”, com ferra-
mentas matemáticas de alta precisão, nos faz acreditar que águas
continuem a brotar da velha fonte.

Um breve sobrevoo da questão

Lewis Henri Morgan, Sêneca por adoção e herói fundador da


antropologia norte-americana, oferece um detalhado painel
etnográfico e histórico da vida social iroquesa em seu livro Liga dos
HO-DE’-NO-SAU-NEE ou iroqueses, publicado em meados do século
XIX (Morgan, 1851). Sobre o sistema de parentesco daquele povo, o
autor afirma o seguinte no Volume I, Livro I, Capítulo IV daquela
obra:
O modo iroquês de computar graus de consangüinidade
era diferente das leis civil ou canônica. Nenhuma distinção
era feita entre linhas lineares e colaterais, nas séries
ascendentes ou descendentes. Para entender este ponto, é
preciso ter em mente que apenas a avó materna era
necessariamente ancestral e era genitor apenas a mãe; que
na linha descendente, apenas os filhos das irmãs podiam
ser da mesma tribo [...]. A avó materna e suas irmãs eram
igualmente avós; a mãe e suas irmãs eram igualmente mães;
os filhos de uma das irmãs da mãe eram irmãos e irmãs [...].
Fora da tribo, o avô paterno e seus irmãos eram igualmente
avós; o pai e seus irmãos eram igualmente pais; as irmãs do
pai eram tias, enquanto no interior da tribo, os irmãos da
mãe eram tios; os filhos das irmãs do pai eram primos como
na lei civil; os filhos desses primos eram sobrinhos e
sobrinhas, e seus filhos eram netos [...]. Ainda, os filhos de
um irmão eram seus filhos e os netos de um irmão eram
seus netos; também os filhos dos irmãos do pai eram seus
irmãos e irmãs, e não primos, tal como prevê a lei civil [...].

ILHA
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167
Marcio Silva

É a matéria central da lei iroquesa de descendência a


confluência da linha colateral na linear, como aparece
suficientemente esboçado acima. Pelo o modo de cômputo
da lei civil, os graus de parentesco vão se tornando demasiado
remotos para serem traçados entre os colaterais; enquanto
que, pelo modo iroquês, nenhum dos colaterais era perdido
pela distância do grau (Morgan, 1851, p. 81-82).

Essa longa citação se justifica por conter os ingredientes bási-


cos do tal “pequeno, mas espinhoso, problema” aqui destacados:

• o sistema de parentesco Sêneca-Iroquês é essencialmente dife-


rente dos sistemas de tradição europeia, que são regidos por
cômputos definidos pelo direito romano (lei civil) e/ou pela
Igreja Católica (lei canônica); e
• os sistemas europeus repousam sobre a distinção entre pa-
rentes lineares e colaterais que atravessa as gerações. Em seu
lugar, o Sêneca-Iroquês se caracteriza por subdividir o con-
junto dos parentes colaterais e por unir um desses
subconjuntos ao dos parentes lineares. Dessa maneira, na
tradição europeia, “pai” se distingue dos “irmãos do pai e da
mãe”, unidos na categoria “tio”; enquanto isso, na tradição
iroquesa, “pai” e “tios paternos”, juntos em uma única clas-
se, se distinguem dos “tios maternos”, e assim por diante.

O trecho de Morgan contém ainda sua sugestão de que o côm-


puto de parentesco característico dos Sêneca-Iroquês era
consequência direta do regime de descendência (matrilinear) que
organizava os grupos políticos. Nos anos seguintes à publicação da
Liga..., Morgan generalizou seu modelo Sêneca-Iroquês para toda a
vasta paisagem etnográfica norte-americana que se descortinava di-
ante de seus olhos e para a qual cunhou o pitoresco neologismo
Ganowaniana, composto das palavras do dialeto Sêneca (Gä’-no) “fle-
cha” e (Wäi-ã’-no) “arco”.6 Essa generalização o encorajou a sofisticar
a descrição semântica do sistema, que passou a incorporar suas di-
versas variações reveladas no exercício comparativo (Morgan, 1871,
p. 131-149, Parte II, Cap. 1).7 Mas sua ousadia não se contentou com

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volume 12 - número 2

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Um pequeno, mas espinhoso, problema do parentesco

os limites do continente norte-americano, onde se concentravam os


povos da família “do Arco e Flecha”.
Em meados de 1859, quando estava mergulhado na pesquisa
etnográfica e documental que deu origem aos Sistemas de
consanguinidade.., Morgan tem acesso a descrições cuidadosas de dois
sistemas sul-indianos, o Tamil e o Telugo, fornecidas pelo missionário
Dr. Henry M. Scudder (Tooker, 1997, p. ix). Esse é o ingrediente que
faltava para compor o nosso “pequeno, mas espinhoso, problema”.
Os materiais que acabavam de cair em suas mãos revelavam extraor-
dinárias semelhanças entre as famílias Turaniana (“dravidiana”) e
Ganowaniana (“iroquesa”), corroborando conclusivamente a tese da
origem asiática dos povos do Novo Mundo. Isso não era pouco!
E isso não era tudo. Para além daquelas variações observadas no
interior da paisagem norte-americana, o autor nota também a
recorrência de um curioso contraste entre as estruturas
terminológicas da América do Norte e aquelas documentadas na Ín-
dia. A despeito de suas extraordinárias semelhanças, os sistemas
Turanianos (“dravidianos”) e Ganowanianos (“iroqueses”) classifica-
vam sistematicamente, de maneiras opostas, os filhos de alguns pri-
mos mais distantes. Morgan, em princípio, não arrisca uma inter-
pretação conclusiva para o contraste, mas faz questão de registrá-lo
no capítulo dedicado à descrição do caso Tamil (dravidiano):
É um tanto singular que os filhos de meu primo, sendo
Ego um homem, sejam meus sobrinhos e sobrinhas, e não
meus filhos e filhas, e que os filhos de minhas primas sejam
meus filhos e filhas ao invés de sobrinhos e sobrinhas, como
é requerido pelas analogias do sistema. Este é o único
particular em que [o sistema Tamil] difere materialmente
da forma Sêneca-Iroquesa; e nisso o Sêneca está em maior
conformidade lógica com os princípios do sistema que o
Tamil. É difícil encontrar qualquer explicação desta
variância (Morgan, 1871, p. 391).

Mas Morgan não desiste tão facilmente diante do enigma. Na


conclusão de seu livro, esboça uma discreta tentativa de solução
conjetural para o problema que, veremos a seguir, será apropriada
por McLennan contra Morgan e sem reconhecimento de autoria:

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Marcio Silva

A menos que [entre os Tamil] eu coabite com todas as minhas


primas e seja excluído da coabitação com as esposas de todos
os meus primos, essas relações não podem ser explicadas da
natureza dos descendentes. Na família ganowaniana, essa
classificação é reversa [...] (Morgan, 1871, p. 486, meus
grifos).

Contudo, o autor aparentemente não dá muita importância à


“variância”. Eram as semelhanças o que chamava sua atenção. A
“variância” Sêneca (iroquesa)/Tamil (dravidiana) é o tal “pequeno,
mas espinhoso, problema” legado por Morgan, com o qual Robert
Carneiro se defronta oitenta anos depois. Usando uma linguagem
mais atual, embora também out of style, “iroquês” e “dravidiano” eram
para Morgan transformações de uma estrutura semântico-lexical
instaurada pela descendência. Para Lounsbury (1964), tal crença te-
ria obscurecido por tanto tempo o caminho para a solução do enig-
ma. As regras enunciadas por Morgan sobre os sistemas iroqueses,
segundo o autor da célebre nota de rodapé, descreviam adequada-
mente apenas os parentes próximos de Ego, mas falhavam quando se
voltavam às classificações de parentes distantes. Segundo Lounsbury,
as regras de Morgan geravam classificações que eram compatíveis
com os sistemas dravidianos. Morgan, em suma, teria atirado no que
viu e acertado o que não viu.
O primeiro a enfrentar a tal “variância” notada por Morgan foi
precisamente seu arquirrival John Ferguson McLennan, para o qual,
além da matrilinearidade (“parentesco feminino”, como preferia cha-
mar, “matriarcado” para Morgan), que fazia com que os filhos de
duas irmãs se considerassem irmãos entre si, pois eram do “mesmo
grupo de sangue”, era preciso acrescentar duas outras razões funda-
mentais. Uma delas era a exogamia, princípio pelo qual os irmãos
estavam proibidos de se casarem. Tal proscrição explicava, por exem-
plo, por que os filhos de irmãos de sexo oposto não podiam se consi-
derar irmãos, e sim primos. Outra variável era a poliandria, que per-
mitia entender como era possível dado indivíduo ter muitos pais:
todos eram maridos da mãe. Basicamente, a combinação dessas três
instituições – descendência, exogamia e poliandria – explicava “sis-
temas classificatórios” como o sêneca-iroquês (McLennan,

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Um pequeno, mas espinhoso, problema do parentesco

1886[1876], p. 290-297). Para entender o caso tamil-dravidiano, era


preciso associar a ele uma quarta instituição, o costume do casa-
mento de primos, que esclarecia por que os filhos de primos cruza-
dos de sexo oposto eram considerados filhos de dado indivíduo
(McLennan, 1886, p. 298-300).
Façamos aqui um breve rasante em nosso sobrevoo. A meu ver,
carece de exatidão o juízo generalizado, que inclusive se manifesta
na própria carta de Robert Carneiro, de que foi McLennan quem
primeiro teve a ideia de trazer o casamento de primos ao debate para
explicar as terminologias dravidianas. É verdade que o autor é o pri-
meiro a desenvolver essa tese convincentemente, ao longo de quatro
páginas de sua resenha do livro de Morgan. Mas foi Morgan (1871,
p. 486), e não McLennan, o primeiro a ter a ideia. Se não, que outra
coisa quer dizer, no trecho de Morgan acima transcrito, a coabitação
“com todas as primas” e a “não coabitação com as esposas de todos
os meus primos” (isto é, com todas as minhas “irmãs”, em sentido
funcional, isto é, com mulheres não “coabitáveis”)?
Convém também dizer que a disputa de McLennan com Morgan
não se deu no plano dos detalhes analíticos, mas na arena central da
questão. Segundo McLennan, os Sistemas de consanguinidade...
gravitavam em torno de dois erros crassos. Em primeiro lugar, a aná-
lise de Morgan não procurava “a origem do sistema na provável ori-
gem da classificação”, isto é, não explicava por que os sistemas eram
como eram. Em segundo lugar, a análise conferia aos vocabulários
uma importância sociológica que eles não tinham, já que não passa-
vam de fórmulas de boas maneiras selvagens ou, em suas próprias
palavras, “sistemas de saudações mútuas” (McLennan, 1886[1876],
p. 366). Resumindo, para McLennan, a contribuição de Morgan
correspondia a um monumental exercício de erudição em torno de
fenômenos absolutamente irrelevantes. Nesse sentido, McLennan
chama a atenção de que Lafitau já alertava que “os termos do siste-
ma classificatório [...] não eram de relação de sangue, mas de cha-
mamento [...] para indicar simplesmente graus de respeito”
(McLennan, 1886, p. 306, App. I). Os nativos, argumenta McLennan,
empregavam termos como “tio” e “sobrinho” com estrangeiros e

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Marcio Silva

com inimigos com os quais, evidentemente, não tinham qualquer


relação de parentesco.8
A resenha de McLennan não fica sem resposta. No ano seguin-
te, chega a hora de Morgan revidar no mesmo tom:
Os ataques de McLennan explicam-se pela simples razão
de esses quadros, na medida em que exprimem sistemas de
afinidade e consangüinidade, contradizerem e refutarem
as principais hipóteses e teorias apresentadas em Casamento
Primitivo. Seria de esperar, pois, que o autor de Casamento
Primitivo acudisse em defesa das suas idéias preconcebidas
(Morgan, 1978[1877], p. 257).

Como aquelas cenas noturnas, em início dos filmes de terror,


de um casarão às escuras sob uma tempestade de raios, antecipando
para o espectador o que vem pela frente, o primeiro debate da antro-
pologia do parentesco é um índice das condições severas de visibili-
dade que nosso sobrevoo deverá enfrentar.9 Morgan e McLennan
morreram logo depois, no mesmo ano de 1881, legando aos seus
sucessores o tal “pequeno, mas espinhoso, problema”, além de um
debate em que os envolvidos, às vezes, não escutam muito bem seus
interlocutores.
Pouco tempo depois, coube a Tylor retomar a questão: “[O]
sistema [iroquês], tal como encontrado entre os indígenas norte-
-americanos, o Sr. Morgan mostrou ser muito proximamente análo-
go ao das nações dravidianas do Sul da Índia” (Tylor, 1971[1889], p.
26). Coube a Tylor também esclarecer a noção de “casamento de
primos”. E coube a Tylor finalmente fazer as pazes entre os dois ri-
vais, unificando os conceitos de exogamia e sistema classificatório, que
para ele se tratava dos dois lados da mesma instituição. Em tom con-
ciliador, o autor conclui que McLennan e Morgan se enfrentaram
desnecessariamente e morreram sem saber que “foram o tempo todo
aliados, tocando para frente, de lados diferentes, a mesma doutrina”
(Tylor, 1971, p. 26).
Tal conciliação foi um passo importante na história do proble-
ma, mas trouxe um inesperado complicador, como veremos a se-
guir. Antes, porém, devemos destacar a contribuição de Tylor, autor

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Um pequeno, mas espinhoso, problema do parentesco

da expressão “primo cruzado” que, desde então, passa a ser uma das
joias da coroa dos estudos de parentesco:
Na tabulação de nações do mundo, encontrei um grupo de
vinte um povos cujo costume de casamento de primos de
primeiro grau é notável, tal que os filhos de dois irmãos
não podem se casar, nem os filhos de duas irmãs, mas os
filhos de um irmão podem se casar com os filhos da irmã.
Parece óbvio que este “casamento de primo-cruzado”, como
pode ser chamado, deve ser o resultado direto da mais
simples forma de exogamia, em que uma população é
dividida em duas classes ou seções, com a lei de que um
homem que pertence à classe A só pode tomar uma esposa
da classe B (Tylor, 1971, p. 26, grifos meus).

E agora o elemento complicador a que, há pouco, me referi:


Tylor observa que a relação entre as duas instituições, casamento de
primos e exogamia (em sua redução dualista), “não é de derivação,
mas de identidade, sendo o casamento de primos eventualmente uma
forma parcial ou uma afirmação imperfeita da lei de exogamia” (Tylor,
1971, p. 26).
Anos depois, Rivers (1914, p. 47-48) retomaria casamento de pri-
mos e organização dualista como uma sequência histórica, diante dos
materiais de campo produzidos pelo próprio autor. Em meados do sé-
culo XX, Lévi-Strauss (1967[1949]) reinterpretá-la-ia como expres-
são de dois métodos distintos, o das classes e o das relações. Mas Rivers
não tem o mesmo espírito conciliador de Tylor. Para Rivers (1991[1913],
p. 75-76) , era preciso tomar o partido de Morgan contra McLennan.10
Aqueles que adotaram [as ideias de McLennan] geralmente
se contentam em repetir a conclusão de que o sistema
classificatório não é nada mais que um corpo de saudações
mútuas e formas de tratamento. Eles não conseguem
perceber que, ainda assim, permanece necessário explicar
como os termos do sistema classificatório passaram a ser
usados em saudações recíprocas, falhando em reconhecer
que estão rejeitando o princípio do determinismo na
sociologia, ou apenas colocando a uma distância
conveniente a consideração do problema de como e por
que os classificatórios passaram a ser utilizados por tantos
povos da Terra [...]. Uma das diversas conseqüências funestas
da crença de McLennan sobre a importância da poliandria

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Marcio Silva

na história da sociedade humana, foi a incapacidade, por


parte de seus seguidores, de perceber a importância do
sistema classificatório [...].

É verdade que foi McLennan que inventou sozinho o conceito


de “poliandria”. Mas sejamos justos: essa forma de casamento não
era, para McLennan, a única razão que explicava as classificações
dravidianas:
Uma prevalência de casamentos de primos em tempos pretéritos
dos povos Tamil, entre primos que não sejam do mesmo sangue,
seria uma explicação completa. Onde um primo casa com sua
prima, seus filhos de fato serão, a um só tempo, filhos do primo
e da prima (McLennan, 1886[1876], p. 298).

Sobre a contribuição de Rivers, pode-se dizer que ela desenvol-


ve com vigor a hipótese de Tylor, que associa as terminologias
classificatórias à regra de casamento de primos e à organização
dualista, provavelmente reforçada pelo acúmulo dos materiais aus-
tralianos de Fison e outros. Certamente, por não ter encontrado or-
ganizações dualistas, mas apenas casamento de primos, nos contex-
tos etnográficos que lhe eram familiares, como os do Estreito de Tor-
res e da Índia, o autor tenha interpretado a primeira como um esta-
do anterior da segunda (Rivers, 1991, p. 47-49).
A lealdade de Rivers a Morgan da mesma forma se manifesta
por ocasião do célebre ataque de Alfred Kroeber (1969) à noção de
“sistema classificatório”. O aluno de Boas, recordemos, havia argu-
mentado que, como fatos da linguagem, “[o]s termos de parentesco
refletem a Psicologia, não a Sociologia. São determinados, antes de
mais nada, pela língua” (1969[1909], p. 25) e, portanto, era um equí-
voco de Morgan interpretá-los como correlatos linguísticos neces-
sários de instituições sociais. Rivers (1991[1914], p. 88-89) toma
para si a insolência de Kroeber e contra-ataca:
Se não fosse pelo matrimônio entre primos cruzados, o que
pode existir para dar ao irmão da mãe uma maior semelhança
psicológica com o sogro do que o irmão do pai, ou à irmã do
pai uma maior semelhança psicológica com a sogra do que
a irmã da mãe? [...] como é possível que os termos das
relações de parentesco não reflitam a sociologia, se tais

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Um pequeno, mas espinhoso, problema do parentesco

similaridades psicológicas são elas mesmas o resultado do


matrimônio de primos cruzados?

Mas a sugestão de “dessociologização” do debate apresentada


por Kroeber foi bem recebida em seu próprio país por seu colega
Robert Lowie. Para este último, contudo, a saída não era “psicologizar”
o problema, mas “culturalizá-lo”, à maneira boasiana. Plenamente
de acordo com os dispositivos descritivos de Kroeber (1969), apre-
sentados sob a forma de oito categorias (parâmetros semânticos) cuja
variação explicaria as diferenças formais entre os sistemas, Lowie
estava convencido de que o estudo das terminologias não deveria
diferir da investigação de outros elementos culturais, como fenôme-
nos históricos, submetidos a processos de difusão de uma cultura à
outra e de integração aos novos contextos culturais. Portanto, era
preciso ter cautela diante da tentação de fazer correlações sincrônicas
e diretas entre padrões terminológicos e instituições sociais: “Um
costume recentemente adquirido pode não ter ainda desenvolvido
uma nomenclatura apropriada, enquanto [...] uma nomenclatura
pode sobreviver depois que o costume se tornar obsoleto” (Lowie,
1929[1917], p. 173).
A contribuição de Lowie ao “pequeno, mas espinhoso, proble-
ma” foi juntar os sistemas iroqueses e dravidianos em um dos quatro
taxa de sua famosa macrotipologia: aquele em que “cada geração é
bipartida de tal maneira que apenas metade dos parentes colaterais é
fundida com os lineais” (Lowie, 1928). Esses eram chamados de “sis-
temas de fusão bifurcada”. Não obstante, o autor não deixa de notar
que “[n]omenclaturas típicas de fusão bifurcada ocorrem entre os
povos do Sul da Índia (incluindo os Toda) e o Vedda do Ceilão. Aqui,
[...] são afetadas pelo casamento de primos cruzados” (1968[1929],
p. 49), fazendo eco às contribuições de Morgan, McLennan, Tylor,
Rivers e Hocart. Este último, vale lembrar, publicara, no ano anteri-
or, um cuidadoso estudo comparativo, antropológico e linguístico
de nomenclaturas de parentesco indo-europeias e de regiões vizi-
nhas. Diante dos materiais da Índia do Sul e de Ceilão, o autor propõe
o rótulo “sistemas de primo cruzado” para aqueles vocabulários que
expressassem tal regime matrimonial (Hocart, 1987[1928], p. 61).

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Marcio Silva

Se a classificação de Lowie amalgama a distinção “dravidiano”


e “iroquês”, a macrotipologia de Murdock, publicada vinte anos de-
pois, com grande impacto nos estudos de parentesco, aparentemen-
te acaba por varrê-la para baixo do tapete. Mas a diferença entre os
esquemas classificatórios de Lowie e de Murdock é, a meu ver, discre-
ta. Se, por um lado, em suas respectivas tipologias, Lowie privilegia a
primeira geração ascendente e Murdock, os parentes da geração de
Ego, e Lowie define quatro macrotipos, enquanto Murdock define seis,
por outro lado, ambos supõem a repetição de seus padrões através das
gerações. Além disso, Lowie assinala uma tripartição no interior dos
sistemas de fusão bifurcada, opondo, exatamente como fez Murdock
(1949, p. 223-224), os sistemas a) iroquês, b) omaha e c) crow. Recorde-
mos os três esquemas estabelecidos até a metade do século XX:

Morgan 1871 Lowie 1928 Murdock 1949


Classificatório Geracional Havaiano
Ausência da Pai = Irmão do Pai Irmão = primo paralelo = primo cruzado
oposição entre = Irmão da Mãe
parentes lineares e Fusão Bifurcada Iroquês
colaterais e caráter
Pai = Irmão do Pai Irmão = primo paralelo z primo cruzado
mais sintético do
z Irmão da Mãe
sistema Crow
Irmão = primo paralelo z primo cruzado
(primo cruzado matrilateral = filho; primo
cruzado patrilateral = pai)

Omaha
Irmão = primo paralelo z primo cruzado
(primo cruzado matrilateral = tio materno;
primo cruzado patrilateral = filho da irmã)

Descritivo Linear Esquimó


Presença da Pai z Irmão do Pai Irmão z primo paralelo = primo cruzado
oposição entre = Irmão da Mãe
parentes lineares e Colateralidade Sudanês
colaterais e caráter Bifurcada Irmão z primo paralelo z primo cruzado
mais analítico do Pai z Irmão do Pai z
sistema Irmão da Mãe
Tabela 1 – Macrotipologias clássicas dos sistemas de parentesco
Fonte: Adaptado de Trautmann (1987, p. 262).
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Um pequeno, mas espinhoso, problema do parentesco

Ao contrário de Lowie, preocupado apenas com a distribuição


geográfica de seus quatro tipos, desigualmente espalhados em todos
os continentes, Murdock (1949, p. 224) enfrenta o desafio de cata-
logar as diferentes combinações de cada padrão com diferentes re-
gras de descendência, gerando os assim denominados “tipos primá-
rios de organização social”, todos rotulados com etnônimos, assim
como fez com as terminologias, o que gerou alguma confusão com
os rótulos. Por exemplo, o tipo primário de organização social
“Dakota” é uma combinação de vocabulário “iroquês” e descendên-
cia “patrilinear”, o tipo “Iroquês” por seu turno, uma combinação
de vocabulário “iroquês” e descendência “matrilinear” etc. Não con-
tente com a hiperinflação de termos exóticos, os tipos primários de
Murdock se desdobravam em uma grande quantidade de subtipos
como “Sudanês-Normal”, “Neo-Havaiano”, “Bi-Fox”, “Avuncu-
Nankanse” etc., que não conheço quem os saiba de cor.
Fora dos Estados Unidos, a reflexão sobre o “pequeno, mas es-
pinhoso, problema” tomava outros rumos. Kirchhoff (1932, p. 42)
traz de volta ao debate o levirato e o sororato como variáveis sociologi-
camente significativas. Enquanto isso, nos marcos da teoria da des-
cendência que ajudou a consolidar, Radcliffe-Brown apostava suas
fichas no “princípio da solidariedade do grupo de irmãos” como a
única explicação aceitável dos sistemas que no esquema de Lowie
eram chamados de fusão bifurcada:
[...] é óbvio que toda a teoria de Morgan não tem qualquer
base. O sistema classificatório [...] depende do
reconhecimento dos fortes vínculos sociais que unem
irmãos e irmãs da mesma família elementar [...]. Em parte
alguma do mundo existem os laços entre um homem e
seus próprios filhos ou entre os filhos de um pai mais fortes
que nas tribos australianas, que, como é sabido, apresentam
um exemplo máximo de terminologias classificatórias
(Radcliffe-Brown, 1941, p. 87-89).

O autor, em um de seus últimos textos, ancora o tal princípio


de solidariedade em um mecanismo de dupla filiação que vertebraria
as terminologias de tipo “australiano-dravidiano” (Radcliffe-Brown,
1953). Enquanto isso, Lévi-Strauss (1967[1949], p. 114-115), na

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Marcio Silva

construção de sua teoria da aliança matrimonial, retoma a hipótese


de Tylor–Rivers, reiterando a harmonia perfeita entre os sistemas de
fusão bifurcada e a organização dualista.

Kariera, dravidiano e iroquês

O breve sobrevoo até aqui dá uma ideia da névoa que pouco a


pouco foi cobrindo o “pequeno, mas espinhoso, problema”. Na me-
tade do século XX, quando Robert Carneiro o enfrentou em um tra-
balho de fim de curso, as condições de visibilidade na região eram
próximas de zero. Remeto o leitor à carta que expõe com clareza seu
argumento, contribuindo para a dissipação da neblina. Para os pro-
pósitos deste sobrevoo, é suficiente dizer que, segundo Robert Car-
neiro, a diferença entre os sistemas dravidiano e iroquês se explicava,
como Morgan e McLennan intuíram, pela presença ou ausência,
respectivamente, da prática de casamento de primos cruzados. Essa
prática, como Carneiro sublinha na carta, também era verificada entre
os Kariera da Austrália.
Em sua tese de doutorado, como dito, Gertrude Dole (1957, p.
147) agradece a Robert Carneiro por chamar sua atenção para a di-
ferença entre os dois padrões terminológicos que Lowie (1928) reu-
nira sob o rótulo “fusão bifurcada”. Nesse sentido, a autora distin-
gue um padrão de “fusão bifurcada” propriamente dito, o iroquês, de
outro que denomina, seguindo uma sugestão de Hocart (1987), de
“sistema de casamento de primos cruzados”, o dravidiano (1957, p.
178). Mas curiosamente a interpretação da diferença, para Dole, não
é rigorosamente idêntica àquela exposta na carta de Robert Carnei-
ro. Para a autora, a distinção não correspondia a uma oposição pri-
vativa, isto é, presença ou ausência de casamento de primos cruza-
dos, opondo dravidiano e iroquês, respectivamente, mas dizia respeito
a seu caráter obrigatório e regular em um caso (dravidiano), opcional
e assistemático em outro (iroquês). Esses tipos, em sua opinião, esta-
riam relacionados a instituições de parentesco mais simples ou mais
complexas: duais no dravidiano, não segmentares no iroquês (1957, p.
186-187 e p. 425). Ao longo de sua contribuição, Dole esboça uma
interpretação que, de certa forma, antecipa em alguns anos o debate

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Um pequeno, mas espinhoso, problema do parentesco

proposto por Needham (1958), posteriormente esvaziado por Lévi-


Strauss em seu prefácio à segunda edição d’As estruturas elementares do
parentesco, entre prescrição e preferência.
Mais ou menos na mesma época, a variação no interior da clas-
se dos sistemas de “fusão bifurcada” é retomada por Dumont
(1975a[1953], 1975b[1957], 1975c[1970]), que se concentra nos
casos indianos (dravidiano) e australianos (Kariera), sem levar em conta
as variantes iroquesas. Para o autor, as diferenças entre esses tipos,
ambos refratados pelo casamento de primos, eram as seguintes:

1. expressão de uma fórmula local e um método egocentrado


(dravidiano) ou de uma fórmula global e um método
sociocentrado (Kariera); e
2. expressão da unilinearidade, presente no Kariera, opondo pa-
rentes de todas as gerações, e ausente no dravidiano, que neu-
traliza as diferenças entre parentes nas gerações dos netos e
dos avós, mesmo quando operados em contextos marcados
pelos grupos de descendência.

No mesmo sentido que o ponto (1) de Dumont, Shapiro (1970,


p. 384) assinala que, nos sistemas australianos, filho e filha são dife-
rentes para um homem e sua esposa e idênticos para um homem e
sua irmã. Nos sistemas indianos, a situação se inverte. Como Vivei-
ros de Castro (1998) chama a atenção, o sentido do cruzamento na
Índia, para Dumont, é a oposição consanguinidade e afinidade, enquanto
que, na Austrália, a diferença entre os parentes repousa no contraste
entre grupos exogâmicos alternos (nosso grupo e outro grupo).

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Marcio Silva

Figura 1 – Dravidiano e Kariera, Ego masculino e feminino


Fonte: Adaptado de Dumont (1975a[1953], 1975b[1957], 1975c[1970]).

Os diagramas acima conectam pelo casamento dois pares de


irmãos do sexo oposto ao longo de cinco gerações. A comparação
dos diagramas permite verificar as principais diferenças entre os dois
tipos. Antes, porém, devemos ter em mente que, no esquema, um
indivíduo é igual a um irmão de mesmo sexo. Assim, Ego homem é
igual a seu irmão; Ego mulher, a sua irmã; o pai de Ego, igual aos tios
paternos; a mãe de Ego, às tias maternas, e assim por diante. Os indi-
víduos pretos e brancos são, respectivamente, consanguíneos e afins
no esquema dravidiano, do meu grupo e do grupo alterno no australia-
no. Observe-se que os dois diagramas australianos são rigorosamen-
te idênticos, independentemente do sexo de Ego, enquanto que os
dravidianos invertem as classificações de Ego homem ou mulher na
geração de seus filhos.
Note-se também que, apenas na geração de Ego, os quatro dia-
gramas coincidem, embora não expressem exatamente as mesmas
coisas, uma vez que a alternância de cores, no caso australiano, de-
corre de um cálculo de descendência (no caso, patrilinear) e, no caso
dravidiano, de um cálculo de cruzamento. Em outras palavras, nos
exemplos australianos, cada indivíduo é preto ou branco em função
da cor atribuída ao grupo de seu pai e, graças à exogamia, está casa-
do com um indivíduo de cor oposta. Enquanto isso, nos exemplos
dravidianos, nas três gerações mediais (a de Ego, a de seus pais e a de
seus filhos), cada indivíduo é preto ou branco em função do sexo de
um parente de ligação.11
ILHA
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Um pequeno, mas espinhoso, problema do parentesco

Em suma, Kariera e dravidiano têm uma semelhança básica, a


prescrição do casamento de primos cruzados bilaterais, e uma diferença bá-
sica, já que operam cômputos distintos, de descendência e de cruza-
mento, respectivamente. Uma evidência suplementar, fornecida por
Dumont, da irrelevância da descendência no dravidiano se manifesta-
va na neutralização da oposição consanguíneo e afim nas gerações distais,
dos netos e dos avós. Nos diagramas acima, todos os indivíduos da-
quelas gerações são pretos. Retomando o ponto (2) de Dumont assi-
nalado anteriormente, tal neutralização torna idênticos, por exemplo,
avós paterno e materno (ambos pretos no diagrama), mesmo em pai-
sagens marcadas pela existência de grupos unilineares em que, por
definição, esses parentes estão alocados em segmentos distintos.
Por sua vez, a nota mais famosa de Lounsbury, focada na distin-
ção entre dravidiano e iroquês, chama a atenção de que o conceito
de cruzamento, subjacente a ambos, é operado de modos radical-
mente distintos. No cálculo iroquês, os filhos de parentes do mesmo
sexo da geração de Ego são paralelos (pretos), os filhos de parentes
de sexo oposto são cruzados (brancos), independentemente do grau de
cruzamento (preto ou branco) de seus pais. Enquanto isso, no cálculo
dravidiano, os filhos de parentes paralelos do mesmo sexo ou cruzados
de sexo oposto da geração de Ego são paralelos (pretos), os filhos de
parentes paralelos do sexo oposto ou cruzados do mesmo sexo são cru-
zados (brancos).

Figura 2 – Dravidiano e iroquês


Fonte: Adaptado de Lounsbury (1964).

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Marcio Silva

A diferença entre os cálculos de cruzamento dravidiano e


iroquês, como Carneiro enfatiza em sua carta, está ancorada na pre-
sença ou ausência da regra de casamento de primos. Segundo Dumont
(1975a[1953], 1975b[1957]), no dravidiano, o sentido sociológico
da dicotomia terminológica paralelo e cruzado é consanguinidade e
afinidade, categorias que, recordemos, nos horizontes da teoria lévi-
straussiana, correspondem aos conceitos de proibição do incesto e
do intercâmbio matrimonial.
Nos sistemas dravidianos, as referidas dicotomias coincidem:
um parente cruzado é um afim, um parente paralelo é um
consanguíneo, o que na maioria dos casos tem como consequência a
inexistência, nesses sistemas, de um conjunto de termos exclusivos
para a afinidade, como “sogro”, “genro”, “cunhado” etc. Por essa
razão, no dravidiano, tio materno e sogro são posições comumente
cobertas por um único termo, assim como sobrinho e genro, primo
cruzado e cunhado, e assim por diante. Enquanto isso, um sistema
iroquês, exatamente por não embutir a regra de casamento, tende a
apresentar uma série de termos específicos para a afinidade, diferen-
tes daqueles reservados aos parentes cruzados. Em suma, métodos
distintos de cruzamento e, em caráter coadjuvante, presença ou au-
sência de termos exclusivos de afinidade foram os parâmetros con-
sagrados para o diagnóstico diferencial entre dravidiano e iroquês.
A contribuição de Scheffler (1971) referenda a análise de
Lounsbury, mas se contrapõe à de Dumont. Para Scheffler, dravidiano
e iroquês se distinguem basicamente por operar métodos distintos
de cruzamento. O autor chama a atenção também para a existência
de um terceiro método de cruzamento, documentado entre os Kuma.
Contudo, o autor não concorda com a hipótese de relação direta en-
tre o dravidiano e a regra de casamento, já que muitas culturas que o
praticam proíbem o casamento de primos cruzados próximos, ou-
tras têm termos exclusivos para a afinidade e há sistemas iroqueses
que identificam parentes cruzados com certas posições de afinidade.
O esquema a seguir aponta as diferenças entre os métodos de
cruzamento dravidiano, iroquês e kuma, assinaladas por Scheffler
(1971), que são aceitas até hoje. Se, para os primos de primeiro grau,

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Um pequeno, mas espinhoso, problema do parentesco

os cômputos chegam a resultados idênticos, tudo muda de figura a


partir dos primos segundos (primos, filhos de primos) ou mais dis-
tantes. No dravidiano, na Geração Ø, todos os primos segundos, fi-
lhos de primos primeiros (Geração +1) do mesmo sexo (=), por sua
vez filhos de irmãos (Geração +2) do sexo oposto (z), são cruzados
(X); todos os primos segundos, filhos de primos primeiros (Geração
+1) do sexo oposto (z), por sua vez filhos de irmãos (Geração +2)
do sexo oposto (z), são paralelos (//), e assim por diante. Observe-se
na figura abaixo que o cruzamento iroquês, ao contrário do
dravidiano e do kuma, leva em conta exclusivamente o cruzamento
na Geração +1.

Tabela 2 – Métodos de cruzamento dravidiano, iroquês e kuma


Fonte: Adaptado de Trautmann (1981, p. 87).

Dez anos depois, na obra que se tornou referência principal so-


bre os sistemas indianos, Trautmann (1981) alia o método descritivo
(linguístico) e o caso Kuma, trazidos por Scheffler ao debate, à inter-
pretação antropológica de Dumont. Trautmann, contudo, mostra que
a neutralização da oposição paralelo e cruzado nas gerações dos avós
e dos netos, enfatizada por Dumont, não podia ser tomada como
traço distintivo dos sistemas dravidianos. A expansão da base
etnográfica revelou a existência de alguns sistemas dravidianos com
contrastes entre parentes paralelos (consanguíneos) e cruzados

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Marcio Silva

(afins) em todas as gerações. Com isso, os sistemas com neutralização,


conhecidos desde Morgan (1871), foram rotulados por Trautmann e
Barnes (1998) de “modelo – A” – os que operam a distinção em to-
das as gerações, posteriormente incluídos no debate – e de “modelo
– B”, numa tentativa de descolar a estrutura classificatória de mode-
los icônicos.

Figura 3 – Dravidiano A e B
Fonte: Adaptado de Trautmann (1981).

É importante assinalar que o “modelo – B” não se confunde


com a fórmula Kariera, apresentada na Figura 1, embora ambos de-
finam, a cada geração, um par de indivíduos de cada cor. Mas como
se pode observar na comparação dos diagramas das Figuras 1 e 3, o
dravidiano “modelo – B” varia segundo o sexo de Ego, enquanto o
Kariera não.
Na tabela a seguir, achei melhor reintroduzir os rótulos por ra-
zões expositivas, embora Viveiros de Castro pondere que o uso das
etiquetas etnográficas paga um preço que pode ser alto. Afinal, “houve
quem suspeitasse que os Iroqueses não usavam uma terminologia
‘iroquesa’, a generalidade do paradigma ‘dravidiano’ [...] foi questio-
nada para a própria Índia [...] e os Kariera não são um bom exemplo
da terminologia homônima” (Viveiros de Castro, 1996, p. 10).

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Um pequeno, mas espinhoso, problema do parentesco

A (dravidiano) B (iroquês)
Modelo: Variantes:
A (cruzamento nas Gerações +1, 0 e -1) 1 (cruzamento nas Gerações +1, 0 e -1)
B (cruzamento em todas as Gerações) 2 (cruzamento parcialmente perdido
nas Gerações +1 e -1)
3 (cruzamento totalmente perdido na
Geração 0)
4 (cruzamento parcialmente perdido
nas Gerações +1 e -1 e totalmente
perdido na Geração 0 )

Tabela 3 – Tipo de cruzamento


Fonte: Trautmann e Barnes (1998, p. 30-34).

Com o conjunto de contribuições de Dumont, Lounsbury,


Scheffler e Trautmann e outras evocadas até aqui, a névoa que co-
bria o “pequeno, mas espinhoso, problema” proposto por Morgan
em 1871 parece ter, pouco a pouco, se dissipado completamente.
Isso não significa dizer que o debate tenha se encerrado. Ao contrá-
rio, como veremos a seguir.
Com o céu claro, o problema tem sido retomado em algumas
frentes. Dedico a última parte deste sobrevoo a uma dessas frentes,
nos horizontes da teoria estruturalista do parentesco, inaugurada
por Lévi-Strauss.

A troca de irmãos como estrutura de intercâmbio

Para o autor d’As estruturas elementares do parentesco, o sentido da


distinção paralelo e cruzado é matrimonial (Lévi-Strauss, 1967[1949],
p. 135 e p. 149). Dessa perspectiva, em sua contribuição, Viveiros de
Castro (1996, p. 34) chama a atenção de que “o cruzamento é uma
manifestação específica da aliança, e não o contrário”. O autor de-
fende, como Dumont e contra Scheffler, que, no dravidiano, “o sig-
nificado estrutural primário da categoria que traduzimos como MB
é matrimonial”. Consequentemente, no dravidiano, o irmão da mãe
“é antes de mais nada” um cunhado do pai e um sogro: “os irmãos

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Marcio Silva

reais da mãe seriam apenas casos particulares desta posição eminen-


temente afim”.
Essa interpretação do cruzamento como manifestação da alian-
ça faz eco à maioria das descrições de variantes amazônicas, desde a
monografia pioneira de Overing-Kaplan (1975), que inaugura o di-
álogo entre a Índia e a América do Sul, revelando semelhanças e
diferenças entre os sistemas de parentesco das duas regiões. Talvez, a
principal semelhança assinalada por Overing-Kaplan seja o sentido
da regra de casamento de primos na Índia e na Amazônia, que opera
não como um dispositivo de reafirmação de laços de consanguinidade,
mas como efeito de uma afinidade herdada. Enquanto isso, a princi-
pal diferença entre esses sistemas, apontada por Viveiros de Castro
(1993), está radicada no modo como a oposição consanguinidade e
afinidade se apresenta nas duas regiões, “equiestatutária” na Índia,
“hierárquica” na Amazônia.
Mas consanguinidade e afinidade não são noções compreendidas
exatamente da mesma forma nem mesmo entre os especialistas na
Índia. Para Dumont (1975a[1953], 1975b[1957]), tais noções defi-
nem relações apenas entre pessoas do mesmo sexo. Assim, por exem-
plo, dois cunhados ou duas cunhadas seriam afins, mas marido e
esposa não seriam. A opção de Dumont é útil para descrever o pro-
cesso de transmissão da consanguinidade e da afinidade nos sistemas
dravidianos de uma geração para a outra: um homem transmite seus
parentes consanguíneos e afins para seu filho, uma mulher, para sua
filha. Trautmann (1981), entretanto, descarta esse caminho. Como
o autor demonstra, consanguinidade e afinidade são categorias
terminológicas válidas tanto entre parentes de mesmo sexo quanto
entre os de sexo oposto. A meu ver, ambos têm razão talvez porque
observam o mesmo problema de ângulos diferentes. Pelo menos no
caso dravidiano com o qual tenho mais familiaridade (Silva, 1995,
2009), tais noções, igualmente significativas entre pessoas de mes-
mo sexo e de sexo oposto, dizem coisas diferentes nos dois casos.
Sobre os Waimiri-Atroari, observei alhures que apenas as relações
entre parentes do mesmo sexo são “expressões máximas” da
consanguinidade ou da afinidade. Paralelos e cruzados do mesmo

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Um pequeno, mas espinhoso, problema do parentesco

sexo serão sempre consanguíneos e afins, respectivamente, assim


como seus descendentes. Enquanto isso, parentes de sexo oposto
definem-nas de modo ambíguo como “expressões mínimas”, uma
vez que irmãos ou primos paralelos de sexo oposto são consanguíneos
entre si, mas geram afins na geração seguinte. Inversamente, pri-
mos cruzados de sexo oposto são afins entre si, mas seus filhos serão
consanguíneos uns dos outros. Naquela época, concluí que “a ex-
pressão mínima da consangüinidade equivale a um princípio de afi-
nidade entre germanos e, inversamente, a expressão mínima da afi-
nidade remete a um princípio de consangüinidade entre afins” (Sil-
va, 1995, p. 55-56).
Viveiros de Castro (1996, 1998) entra no debate sobre o “pe-
queno, mas espinhoso, problema”, intuindo, como Morgan, uma
identidade essencial entre as diferentes manifestações dos assim cha-
mados sistemas classificatórios. Sua contribuição parte da premissa de
que os diferentes métodos de cruzamentos revelados pela etnografia
são formalmente compatíveis com algum regime de troca matrimo-
nial. Nesse sentido, o autor lembra que se o casamento de primos é
prescrito no caso dravidiano e proscrito no caso iroquês, por outro
lado, as etnografias não deixam dúvidas de que a troca de irmãs
corresponde a uma estrutura de intercâmbio em ambos os casos. No
modelo dravidiano, a troca, uma vez estabelecida em dada geração, é
reiterada na geração seguinte. Enquanto isso, no modelo iroquês, a
troca, uma vez efetivada, não pode se repetir na geração seguinte.
Mas – e isso vai por minha conta – talvez pudesse voltar a ocor-
rer algumas gerações depois, quando, por exemplo, a primeira troca
fosse “esquecida”. Na minha própria experiência de campo com ou-
tro povo amazônico sobre o qual voltarei a falar no fim deste
sobrevoo, um indivíduo idoso fornece, com segurança, informa-
ções genealógicas e outras, como o clã, a linha do clã e os nomes de
seu pai e de sua mãe falecidos. Mas a partir daí a coisa muda. Fre-
quentemente, alega não se lembrar mais dessas mesmas informa-
ções sobre seus avós, mortos há muito tempo. Isso sugere que as
trocas matrimoniais, apesar de deixarem rastros nas redes empíricas
de alianças, talvez lá sejam “esquecidas” em intervalos de sessenta
ou oitenta anos.
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Marcio Silva

Viveiros de Castro (1996, 1998) chama a atenção de que, além


dos métodos dravidiano e iroquês, observados por Morgan (1871), e
do kuma, trazido ao debate por Scheffler, exatamente um século
depois, a etnografia agora oferece à reflexão pelo menos dois novos
métodos de cruzamento, verificados entre os Ngawbe e os Iafar:

Tabela 4 – Métodos de cruzamento Ngawbe e Iafar


Fonte: Adaptado de Viveiros de Castro (1996).

Diante da proliferação dos cálculos de cruzamento, Viveiros de


Castro enfrenta o “pequeno problema” do parentesco exatamente
como Lévi-Strauss enfrentou a “ilusão totêmica”. Recordemos o
método com uma paródia daquela passagem muito conhecida d’O
totemismo hoje: o exercício passa a ser o de definir, de fora, em seus
aspectos mais gerais, o campo semântico no seio do qual se situam
fenômenos agrupados sob o nome de... cruzamento. Como? Recorde-
mos os três passos da análise estrutural:
1º) Definir o fenômeno a ser estudado como uma relação
entre dois ou mais termos reais ou virtuais;
2º) Construir o quadro de permutações possíveis entre esses
termos;
3º) Tomar este quadro por objeto geral de uma análise que,
somente neste nível, pode chegar a conexões necessárias,
sendo o fenômeno empírico visado desde já apenas uma
combinação possível entre outras, cujo sistema total deverá
ser previamente reconstruído (Lévi-Strauss, 1975, p. 26).

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Um pequeno, mas espinhoso, problema do parentesco

O “objeto geral” definido por Viveiros de Castro (1996, p. 62) é


o que denomina o “padrão geral de fusão bifurcada isogeracional e
sexualmente simétrica”, isto é, padrão que não tem a pretensão de
dar conta dos sistemas de fusão bifurcada oblíquos, do tipo crow/omaha
ou avuncular/amital. Os termos de seu “quadro de permutações” são
geração (G2, G1 e GØ), sexo relativo (0 = mesmo sexo; 1 = sexo opos-
to, em G2 e G1) e cruzamento ou desposabilidade (0 = paralelo ou
consanguíneo; 1 = cruzado ou afim, em GØ). Os diferentes méto-
dos de cruzamento são agora descritos por uma série ordenada de
números de quatro algarismos na base dois. Se preferirmos expres-
sar sua proposta na clave das mitológicas, podemos dizer que os di-
ferentes métodos de cruzamento (dravidiano, iroquês etc.) passam a
integrar um grupo de transformação. Para Lévi-Strauss, como aca-
bamos de ver, é somente nesse nível que se “pode chegar a conexões
necessárias”.

Tabela 5 – Variações do cruzamento modeladas por Viveiros de Castro (1996, 1998)


Fonte: Adaptado de Viveiros de Castro (1996, 1998).

A série em questão (de 0000 a 0111), revelada na linha GØ,


prevê mais oito casos, de 1000 a 1111. Alguns, como a variante 1000,
seriam etnograficamente improváveis, assinala o autor, já que filhos
de filhos de mesmo sexo de irmãos de mesmo sexo são paralelos em
todos os sistemas conhecidos. Enquanto isso, o primeiro e o último
número da série de 16, a saber, 0000 e 1111, remeteriam a situações
em que, respectivamente, nenhum ou todos os primos segundos são
casáveis.12
A solução elegante de Viveiros de Castro para o “pequeno, mas
espinhoso, problema”, aqui drasticamente resumida, aguarda até hoje
sua apropriação pela pesquisa empírica. A espera de 15 anos se justi-
fica, entre outras coisas, porque seu modelo reclama condições de
verificação que dependem de dados etnográficos de “alta resolução”.

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189
Marcio Silva

Mas talvez sua entrada na fase de testes não tarde muito a acontecer,
com o desenvolvimento de técnicas e ferramentas computacionais
para o tratamento das redes empíricas de aliança, documentadas pela
pesquisa etnográfica. Técnicas e ferramentas com as quais Lévi-
Strauss já sonhava nos anos 1960, como naquela conferência que
retoma aquele outro “pequeno, mas espinhoso, problema” do pa-
rentesco, o dos sistemas Crow–Omaha em que, segundo o autor,
“a história vem para o primeiro plano” (Lévi-Strauss, 1969[1965],
p. 142) e cujo funcionamento real não se pode estudar “sem o au-
xílio dos computadores” (p. 143). O mesmo poderia ser dito em
relação a outras contribuições não menos elegantes, como as re-
centes explorações matemáticas do problema feitas por Tjon Sie
Fat (1998) e Barbosa de Almeida (2010), que igualmente esperam
sua vez nas pistas de prova.

Em uma coletânea recente que retoma vigorosamente os de-


safios propostos por Morgan, seus editores caracterizam os estu-
dos de parentesco como um jano de dupla face, uma delas voltada
para o Ocidente de seus princípios classificatórios, em que se dese-
nha “o parentesco frio, matemático, de beleza exata, lúcida e cal-
ma”, outra para o Oriente de suas práticas, em que se vê o paren-
tesco “quente, vermelho em dentes e garras” (Godelier, Trautmann
e Tjon Sie Fat, 1998, p. 5). Na reta final, já bem próximos da pista
de pouso, somos obrigados a admitir que nosso sobrevoo ficou cir-
cunscrito à porção ocidental do território do “problema”, se qui-
sermos seguir com a metáfora.
Aos que chegaram até aqui, agradeço e espero que este texto
tenha contribuído para evidenciar a importância da carta de Robert
Carneiro. Além disso, espero ter convencido o leitor de que a coleção
de modelos que acabamos de evocar, voltada ao “pequeno, mas espi-
nhoso, problema”, tem lugar assegurado no acervo do museu da
antropologia. Mas é preciso reconhecer também que a carta inédita
de Robert Carneiro assim como a discussão aparentemente antiqua-
da que ela levanta não são apenas relíquias históricas da disciplina, o

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190
Um pequeno, mas espinhoso, problema do parentesco

que, aliás, não seria pouca coisa. Em breve, outro sobrevoo da ques-
tão, dessa vez rumo ao Oriente hobbesiano do parentesco, poderá
revelar a instrumentalidade de tal coleção para dar conta das práti-
cas de povos contemporâneos, que, na falta de modelos como es-
ses, permaneceriam invisíveis e, eventualmente, perdidas para sem-
pre. No rumo ao Oriente, tais modelos se apresentam como instru-
mentos de navegação, sem os quais os sobrevoos são voos cegos.
Em suma, os velhos modelos continuam úteis, séculos depois de
sua invenção, como as velhas bússolas, que convivem sem favor ao
lado dos GPSs de última geração, nos painéis de qualquer avião
moderno. Afinal, diante de uma pane elétrica total, só as bússolas
continuam funcionando.
Sobre o próximo sobrevoo rumo ao Oriente, os limites deste
artigo me obrigam a restringir seu plano a poucas palavras: uma
análise do funcionamento real de um sistema iroquês sul-americano
que pratica intensamente o intercâmbio de irmãos entre famílias que
são impedidas de replicar essas alianças nas gerações subsequentes,
mas que ainda assim acabam por produzir e permitir repetições de
certos padrões matrimoniais. Esse regime de aliança, por sua vez,
está inextrincavelmente articulado a um sistema de clãs patrilineares
que se fundam não em ideologias de consubstancialidade, mas no
exercício da troca e de suas consequências na vida social.
Nesse próximo sobrevoo, Morgan talvez comemorasse a desco-
berta de um genuíno exemplo da família ganowaniana, provindo da
América do Sul, continente que, por força das circunstâncias, ficou
fora de sua síntese. Enquanto isso, Lowie reencontraria a fusão
bifurcada e Murdock, um novo exemplo do tipo básico de organiza-
ção social “Dakota Normal”. Por sua vez, é provável que Héritier,
pelo fato de todos os fechamentos (bouclages) da rede genealógica
serem iniciados por irmãos do mesmo sexo, tivesse interesse em in-
cluir o método iroquês em um novo exercício, nos moldes daquele
publicado em 1981. Finalmente, Viveiros de Castro (1996, p. 53),
diante desses mesmos fenômenos, talvez reconhecesse uma trans-
formação neolítica de seu modelo (paleolítico) de aliança iroquesa
ou, eventualmente, o interesse de sua projeção em direção aos pri-

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Marcio Silva

mos terceiros ou quartos, já que se, por um lado, casamentos com os


primos segundos MMBSD, FFZDD, MFZSD e FMBDD não se verifi-
cam na rede documentada pela pesquisa etnográfica, por outro lado,
casamentos como FFFZSSD e FFMBSSD são considerados corretos.
Tais casamentos, convém que se diga, correspondem precisamente a
posições cruzadas, segundo o método iroquês, de primos terceiros,
que são netos de primos de primeiro grau. Assim é como me parece
a Liga dos Enawene-Nawe, com a qual venho trabalhando.
O povo a que me refiro conta atualmente com uma população
de pouco mais de seiscentas pessoas de carne e osso, concentradas
em uma única aldeia, localizada na região dos formadores do Rio
Tapajós, na Amazônia Brasileira. Nesse contexto, o rastreamento dos
circuitos de aliança, favorecido pelo tratamento informático, reve-
lou a imbricação de mais de setenta mil anéis matrimoniais, em uma
rede de “complicação impossível” (Goldenweiser, 1912 apud Lévi-
Strauss, 1967[1949], p. 145) cuja concatenação, no eixo temporal,
está menos para a mecânica celeste que para o jogo de dados. Para
ser exato, sua evolução lembra uma partida de Tetris (Dal Poz e Silva,
2009) em que várias peças de formato diferentes caem ao mesmo
tempo do topo da janela, produzindo encaixes sobre encaixes anteri-
ores, como nos sistemas semicomplexos, “num estado de turbulên-
cia permanente” (Lévi-Strauss, 1969[1965], p. 140). As ligações de
filiação e casamento que aí se produzem compõem uma rede empírica
de parentesco cujos nós são seus próprios jogadores, que tentam
acomodar como podem, da melhor maneira possível, o encaixe de
novas peças que não param de cair. Enquanto isso, pouco a pouco,
esquecem aqueles encaixes efetuados há muito tempo. Como as con-
dições meteorológicas em uma região, as possibilidades de encaixes
matrimoniais mudam a cada momento, parcialmente determinadas
por condições anteriores, parcialmente determinadas por novos even-
tos. Parcialmente, bem entendido, pois sabemos que o bater das asas
de uma borboleta em Tóquio pode, um mês depois, causar um fura-
cão em Santa Catarina.

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Um pequeno, mas espinhoso, problema do parentesco

Notas:
1
Agradeço a Robert Carneiro a autorização para traduzir e publicar sua carta, a Eduar-
do Viveiros de Castro, por ter me chamado a atenção para a contribuição que ela
trazia à história dos estudos de parentesco, à Fernanda Areas Peixoto, pela leitura
atenta da primeira versão deste artigo, e à Adriana Queiroz Testa, pela tradução
cuidadosa das cartas. As cartas estão em anexo.
2
Neste texto, alterno livremente as expressões “sistema”, “nomenclatura”, “termi-
nologia” e “vocabulário de parentesco”.
3
Ironicamente, o título da versão brasileira do texto de Viveiros de Castro que explora
o tal “pequeno, mas espinhoso, problema”, elucidado por Lounsbury e Pospisil,
revelou um sentido profético com a entrada em cena de Carneiro: o texto se chama
“Ambos os três”.
4
Os interessados em aprofundar a reflexão sobre o problema encontrarão elementos
suficientes nas contribuições de Tjon Sie Fat (1998), Trautmann e Barnes (1998),
Viveiros de Castro (1996, 1998) e Barbosa de Almeida (2010).
5
Trazido ao debate por McLennan (1886[1876]) – Appendix to the Classificatory…, Note
A, p. X, – contra Morgan (1871), que, aparentemente, não o leva em conta.
6
Segundo Morgan (1871, p. 131), o termo por ele forjado se justificava por sua
analogia a “‘Ariano’, de arya, que, de acordo com Müller, significa ‘aquele que ara ou
cultiva’, e a ‘Turaniano’, de tura, que, de acordo com o mesmo erudito autor, ‘sugere
a rapidez do cavaleiro’”.
7
As variantes formais notadas por Morgan, posteriormente, deram origem aos tipos
que ficaram conhecidos como “iroquês”, “crow”, “omaha” e “havaiano”.
8
O uso de termos como “tio” (irmão da mãe), “sobrinho” (filho da irmã), “cunhado”
(primo cruzado) entre não parentes é também muito frequente nos materiais sul-
americanos.
9
Se Morgan não se livrara do fantasma do matriarcado, o mesmo se pode dizer de
McLennan em relação à sua obsessão pela poliandria, sempre acompanhada de sua
outra obsessão, a exogamia, que, para o autor, marcavam os primórdios da história
humana (McLennan, 1886, p. 230-231). Compartilhar a mulher com vários homens
(poliandria) ou raptar a mulher de outro grupo (exogamia) eram as alternativas do
homem primitivo diante da escassez de mulheres causada pelo infanticídio femini-
no, que se justificava pelas condições de penúria alimentar (McLennan, 1970[1865]).
Observe-se, de passagem que, para McLennan, a quem devemos a introdução do
termo no debate antropológico, exogamia correspondia a uma instituição social. A
partir de Lévi-Strauss, seu sentido passa ser o de condição do social, o que não é a
mesma coisa.
10
As afinidades intelectuais no campo do parentesco são razões suficientes para Rivers
tomar partido de Morgan na querela com McLennan. Sem qualquer veleidade de
contribuir em seara que não é a minha, meu palpite para os historiadores das ideias
da antropologia é de que a aliança com Morgan decorra também do ponto de vista
frontalmente oposto que McLennan sustentava em relação à pesquisa de campo.
Método privilegiado da disciplina tanto para Morgan quanto para Rivers, o trabalho
de campo marcou definitivamente a obra de ambos, que se tornaram antropólogos
a partir de suas vivências no país dos Sêneca-Iroqueses e no Estreito de Torres,
respectivamente. Enquanto isso, para McLennan, a pesquisa de campo correspondia
a uma atividade enganosa e supérflua, como se lê no trecho abaixo, extraído de sua
crítica que desqualifica a hipótese de Morgan sobre os “sistemas classificatórios” por

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estar baseada na experiência etnográfica: “Lafitau nos conta que, já em seu tempo,
se dizia que os índios haviam abandonado muito os seus costumes antigos. É de se
esperar que eles tenham mudado muito desde então, e isso pode explicar as dife-
renças entre Lafitau e o Sr. Morgan. [Portanto,] estudar índios contemporâneos em
meados do século XIX não é, por si só, o melhor modo de aprender a verdade sobre
os costumes e instituições indígenas, quando são acessíveis copiosos registros des-
ses dados de mais de duzentos anos atrás” (McLennan, 1886[1876], p. 308).
11
Se não houver parente de ligação entre Ego e Alter, Alter é de cor preta (isto é,
consanguíneo).
12
A modelagem de Viveiros de Castro encoraja a realização de novos exercícios. Um
deles poderia ser a ampliação do número de gerações consideradas no cálculo de
cruzamento, diante de sistemas como o Inca, cujo casamento aparentemente fre-
quente de um homem com sua FFFZDDD, segundo Zuidema (1977), é o que induz
a concepção nativa do grupo local como uma estrutura endogâmica (ayllu).

Anexos

Duas cartas de Robert Carneiro:


14 de julho de 2010
Caro Eduardo,
Recentemente, meu colega Peter Whiteley que, entre outras
coisas, é um especialista em parentesco chamou minha atenção para
seu capítulo: “Dravidian and Related Kinship Systems” na coletânea
Transformations of Kinship, editada por Maurice Godelier et al. Anos
atrás, eu mesmo teria me deparado com esse texto, quando era tam-
bém um aficionado por parentesco. Mas esses dias há muito passa-
ram (que pena!). De todo modo, o motivo pelo qual Peter chamou
minha atenção para seu artigo foi a nota de rodapé n. 5, nas páginas
376-377, em que você coloca a seguinte questão: “É impossível sa-
ber se Carneiro e Dole tinham conhecimento do artigo de Lounsbury”
de 1964 etc.
Pretendo responder sua pergunta, mas tem uma longa história
inédita por trás dessa resposta que eu acho que pode ser do seu inte-
resse, já que você é um grande estudioso dos sistemas de parentesco
iroquês/dravidiano, e expressou curiosidade quanto ao meu
envolvimento nesse assunto tão interessante. Nesta altura, descortinar
tudo isso pode lhe parecer um pouco autocomplacente. Sem dúvida
é. Mas, mesmo assim, é tudo verdade. Então, lá vai.
Na primavera de 1952, quando fazia pós-graduação na Univer-
sidade de Michigan, fiz um curso de parentesco com Leslie White.

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Um pequeno, mas espinhoso, problema do parentesco

Uma das atividades do curso era ler algo substancial sobre parentes-
co e escrever um trabalho final inspirado nesse texto. Escolhi ler
(pelo menos em parte) Sistemas de consangüinidade e afinidade da famí-
lia humana, de Lewis H. Morgan. Foi Morgan que iniciou os estudos
de parentesco, seguindo sua descoberta, enquanto vivia com os
Sêneca-Iroqueses, que seu sistema para designar parentes era consi-
deravelmente diferente de qualquer sistema conhecido por europeus.
Posteriormente, as viagens feitas por Morgan levaram-no ao
norte do meio-oeste onde ele descobriu que os Winnebago e os
Menominee tinham sistemas de parentesco parecidos com o iroquês.
Despertada sua curiosidade, ele resolveu ver como eram os sistemas
de parentesco mundo afora. Suas pesquisas extensivas e sistemáticas
nessa linha levaram à publicação da sua grande obra: Sistemas...
Enquanto comparava os muitos sistemas de parentesco que havia
coletado, ele se espantou com a similaridade entre o sistema iroquês
e o dos Tamil, falantes de línguas dravidianas do Sul da Índia. Ele
descobriu, de fato, que os dois eram quase idênticos. Mas nem tanto.
Para oito tipos de parentes entre os mais de 200 que estavam entre
suas anotações, os Tamil apresentavam formas diferentes das
iroquesas. Morgan não deixou de notar essas diferenças, mas estava
realmente mais impressionado com as semelhanças. E, embora não
tentasse varrer as diferenças por baixo do tapete, ele tampouco se
dedicou a explicá-las. De qualquer modo, ele não apresentou uma
explicação para elas.
(Como você sabe, o casamento de primos cruzados está na raiz
dessas diferenças, mas um dos motivos pelos quais Morgan não ti-
nha condições de perceber isso foi que ele não estava familiarizado
com o fato de que para muitas sociedades primitivas um primo não é
apenas um primo. Existe uma profunda e consistente diferença en-
tre um primo paralelo e um primo cruzado. Mas tal distinção não era
do conhecimento de Morgan, pois só seria introduzida na antropo-
logia anos mais tarde por E. B. Tylor.)
O problema sem solução das diferenças entre os sistemas de
parentesco iroquês e tamil chamou minha atenção enquanto avan-
çava pelas páginas dos Sistemas... E, embora as diferenças fossem pou-

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195
Marcio Silva

cas, elas eram completamente sistemáticas e regulares. Elas se mani-


festavam na forma particular como os Tamil designavam os filhos dos seus
primos cruzados. É nesse ponto dos seus sistemas de parentesco – e em
nenhum outro – que os termos consangüíneos tamil e iroqueses
diferem. E aqui estava, a meu ver, um bom problema a enfrentar. As
poucas diferenças entre as duas terminologias de parentesco eram
tão específicas e regulares que tinha de haver uma forma sistemática
de dar conta delas. Mas como fazer isso?
Hoje, passado mais de meio século, não lembro exatamente o
que me levou à conclusão. É bem provável que tenha sido o fato de
Leslie White ter destacado, no curso de parentesco, certos aspectos
terminológicos (e.g., a equação entre o marido da irmã do pai com o
irmão da mãe) que resultavam de casamentos com primos cruzados.
De qualquer forma, em algum momento, enquanto estudava o pro-
blema iroquês/tamil, de repente me veio a idéia de que o casamento
entre primos cruzados explicaria – de forma simples e completa – as
diferenças entre as terminologias tamil e iroquesas: os Tamil pratica-
vam o casamento entre primos cruzados, e os iroqueses não.
Sei que você já sabe de tudo isso, mas gostaria, com auxílio de
alguns diagramas, apresentar o raciocínio que me levou a formular
a solução desse problema. Tomando o sistema iroquês como a forma
“básica”, vejamos como a introdução do casamento de primos cru-
zados mudaria a forma como os iroqueses designavam os filhos des-
ses primos, tornando-a idêntica à forma como os Tamil designam
esses parentes.
O Diagrama 1 mostra, em parte, a metade patrilateral de um
diagrama de parentesco padrão, Ego sendo masculino. (A metade
matrilateral apresentaria os mesmos resultados, mas, para simplifi-
car, pode ser ignorada nesse exercício.) O Diagrama 1 mostra, pri-
meiro, a forma iroquesa de como um Ego masculino chamaria o fi-
lho e a filha do seu primo cruzado. Vemos que ele os chama I e J, os
mesmos termos que aplica aos seus próprios filho e filha. Por outro
lado, observamos que ele chama o filho e a filha da sua prima cruza-
da K e L, os mesmos termos usados para os filhos e as filhas da sua
irmã. Esses termos podem ser considerados essencialmente equiva-
lentes a “sobrinho” e à “sobrinha”.
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Um pequeno, mas espinhoso, problema do parentesco

O fato de que não são os termos para “filho” e “filha” que um


Ego masculino aplicaria aos filhos e às filhas do seu irmão indica algo
de profunda importância na forma de pensar o parentesco primitivo:
a diferença entre parentes do mesmo sexo e de sexo oposto. Mas, por
importante e fundamental que seja essa distinção em sociedades pri-
mitivas – de fato é a base da distinção entre primos cruzados e, por-
tanto, do casamento entre primos cruzados –, ela merece ainda mais
atenção do que os especialistas em parentesco têm dado.
Veja agora o Diagrama 2, em que, diferentemente do Diagrama
1, aparecem os cônjuges dos primos cruzados de Ego. Observe o que
acontece quando introduzimos o casamento entre primos cruzados
no sistema. O primo G de Ego pode, muito bem, ter casado com a
irmã de Ego, que é também sua prima cruzada. Portanto, os descen-
dentes do primo cruzado de Ego se tornam também os descendentes
da sua irmã. Isso, é claro, implica uma escolha terminológica: Ego
pode considerar essas crianças filho e filha do filho da irmã do seu
pai ou como filho e filha da sua irmã. Se ele escolhe a primeira alter-
nativa, ele vai chamá-las “filho” e “filha” – como fazem os iroqueses.
Mas, se ele escolhe a segunda opção, isso indica que ele as considera
primeiramente como filho e filha da sua irmã, sendo, então, chama-
dos K e L, isto é, “sobrinho” e “sobrinha”.

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Parece totalmente razoável que Ego trace sua relação com esses
parentes através da irmã, e não do primo cruzado. Afinal, é clara-
mente o caminho mais curto e próximo dentre as duas opções. E,
evidentemente, essa é a escolha que sociedades do tipo Tamil/
Dravidianas fazem de forma consistente e rotineira.
Mas é exatamente o inverso que ocorre quando consideramos
os descendentes da prima cruzada de Ego. Em muitos, se não na
maioria dos casos, ela teria casado com o irmão de Ego – possivel-
mente o próprio Ego! Então, para Ego a escolha terminológica é tra-
çar sua relação com essas crianças através da filha da irmã do pai –
chamando, então, essas crianças de K e L (“sobrinho” e “sobrinha”)
ou através do seu irmão –, que casou com sua prima casada (que é
também prima cruzada de Ego). Nesse caso, Ego chamará essas cri-
anças I e J, “filho” e “filha”. Claramente, é mais razoável que Ego
trace essa relação através do seu irmão – o caminho mais curto – e
então considere essas crianças (e as chamará) “filho” e “filha”.
(O mesmo tipo de explicação serviria se considerássemos o lado
matrilateral do diagrama e lidássemos com os primos cruzados ma-
ternos de Ego.)

Voltando a 1952, essa explicação me pareceu tão simples, re-


donda e completa que eu estava certo de que tinha de estar correta.
Mesmo assim, quis testá-la examinando outra sociedade fora da Ín-
dia que também praticasse o casamento entre primos cruzados para
ver como ela designava os filhos dos primos cruzados. Para tanto,
escolhi os Kariera da Austrália Central e descobri que eles realmente
chamavam os filhos dos primos cruzados exatamente conforme a
minha teoria.
Como você sabe, Eduardo, entre os Kariera, assim como em
muitas sociedades aborígenes da Austrália, existem seções e subseções
nomeadas que recebem termos sociocêntricos – termos que são sobre-
postos à nomenclatura regular de parentesco egocentrado. Infelizmen-
te, isso tem servido para obscurecer e confundir o problema nas
mentes de vários especialistas em parentesco que batalham com o

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Um pequeno, mas espinhoso, problema do parentesco

problema iroquês/dravidiano. No entanto, o fato é que a nomencla-


tura de parentesco dravidiana é independente de e não é afetada pela
existência de quaisquer grupos unilineares de parentesco – sibs,
metades, seções etc. Como você destacou (nota de rodapé 24, página
380 do seu texto): “[...] terminologias dravidianas [...] não são ne-
cessariamente associadas à patrilinearidade (no Sul da Índia estão
presentes em sociedades patrilineares e matrilineares, no Sri Lanka
em sociedades cognáticas [...]”). E, como você sabe, melhor do que
qualquer outra pessoa, isso também é verdadeiro em sociedades
cognáticas na Amazônia.
Bem, essa é apenas uma parte da história. Aqui vai a continuação.
Eu fiquei eufórico com essa “descoberta” e resolvi apresentá-la
em uma comunicação na reunião da Academia de Ciências, Artes e
Letras de Michigan. Nós, pós-graduandos em antropologia, éramos
instigados a apresentar trabalhos nessas reuniões para que pudésse-
mos tentar nossos primeiros vôos. Eu havia apresentado uma comu-
nicação na reunião do ano anterior e teria feito o mesmo naquele
ano de 1952, se não tivesse acontecido um problema. Pouco antes da
reunião, enquanto lia Studies in Ancient History, de J. F. McLennan
(1886), eu descobri que McLennan tinha apresentado um pedaço da
solução ao problema do parentesco iroquês/tamil. E, embora ele não
tivesse explicado de forma completa, ele estava no rumo certo. O
suficiente para que eu me sentisse um pouco acanhado ao saber que
não era o único a resolver o problema. E pode ter sido isso que me
inibiu e impediu de escrever um texto formal. Em vez disso, acabei
apenas apresentando a solução oralmente, sem sequer recorrer às
minhas anotações.
Mas as coisas tomaram um rumo inesperado quando, pouco
antes da reunião, James Griffen (um arqueólogo de Michigan) me
informou que o antropólogo da Universidade do Estado de Michigan
responsável por preparar o programa da sessão tinha sido despedido
da Universidade por “indignidade moral”! Esse quinhão de fofoca
seria completamente irrelevante à minha apresentação se não fosse
uma coisa: a pessoa que preparou o programa em seu lugar certa-
mente não era um antropólogo. Ela embaralhou completamente o

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título da minha comunicação oral – um título que indicava clara-


mente que eu considerava ter resolvido o problema do parentesco
iroquês/tamil. Se meu título tivesse sido impresso corretamente no
programa, teria fornecido alguma prova tangível que eu poderia de-
pois ter apresentado para defender minha precedência em ter resol-
vido o problema. Entretanto, o título embaralhado tornou isso prati-
camente impossível. A única coisa impressa hoje que indica mini-
mamente que eu teria resolvido o problema antes de qualquer outra
pessoa (pace McLennan) é a breve referência na tese de Gertrude
Dole, que apareceu em 1956.
Bem, após apresentar minha solução na reunião na Universi-
dade do Estado de Michigan, não fiz mais nada a respeito. No ano
seguinte, 1953, vi uma referência no periódico Man a um artigo de
Louis Dumont intitulado “The Dravidian Kinship Terminology as an
Expression of Marriage”. O mero título sugeria que Dumont tam-
bém teria resolvido o problema do parentesco iroquês/tamil. Ai, como
bati minha cabeça na parede! Eu havia perdido a precedência e esta-
va dolorosamente desapontado. Tanto que sequer li o artigo de
Dumont, pelo menos durante os cinqüenta anos seguintes! Na verdade,
durante anos, eu rangia os dentes sempre que encontrava uma refe-
rência ao artigo de Dumont.
Mas, em 2003, numa correspondência com Nick Allen, de
Oxford, que começou por causa de algo completamente desconexo,
surgiu o problema do parentesco iroquês/tamil (dravidiano). Since-
ramente, antes disso, eu sequer sabia que Nick Allen existia, quanto
menos que era um especialista em parentesco dravidiano. Conforme
nossa correspondência seguia no assunto, meu interesse adormeci-
do pelo parentesco despertou e decidi, cinqüenta anos depois, que,
finalmente, estava na hora de ler o artigo de Dumont.
No final das contas, o artigo era muito obscuro. (Radcliffe-
Brown havia dito a seu respeito: “Não consigo entender o artigo
sobre o parentesco dravidiano do Sr. Dumont, embora eu o tenha
lido atentamente várias vezes”.) Mesmo assim, perseverei até o final.
E, aí, eu realmente bati a cabeça na parede! Além de Dumont não ter
resolvido o problema do parentesco iroquês/tamil, ele sequer notou

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Um pequeno, mas espinhoso, problema do parentesco

sua existência!!! (Como dizemos no jargão do beisebol, “ele nem en-


costou a luva!”.) Trabalhando na Índia, Dumont estava familiarizado
com o sistema de parentesco tamil (dravidiano), mas ele ignorava
totalmente o fato de que os iroqueses tinham um sistema de nomen-
clatura de parentesco muito semelhante, mas não exatamente idên-
tico. Ele sabia da prática de casamento entre primos cruzados entre
os dravidianos e sabia que em certos casos (e.g., chamar o irmão da
mãe de “sogro”) refletia o casamento entre primos cruzados. Mas
ele deixou de notar completamente que a forma como os dravidianos
designavam os filhos e as filhas dos primos cruzados representava
uma inversão em relação à forma de designação iroquesa. Era natural
que, não tendo familiaridade com o sistema iroquês, ele não fizesse
idéia de que o sistema tamil tivesse, como característica, uma inversão
de como esses parentes são designados. Mas essa inversão é de longe
a diferença mais conspícua – de fato a única – entre os sistemas
iroquês e tamil na sua terminologia de parentesco consangüíneo.
Como disse, não era de se esperar que Dumont resolvesse um
problema que ele sequer soubesse que existia. Mas é claro que eu
não sabia que Dumont não soubesse. Droga! Se eu soubesse disso lá
atrás em 1953, eu teria realmente lido seu artigo. E, se o tivesse feito,
teria sem dúvida me dado ao ímpeto que precisava para escrever mi-
nha solução ao problema do parentesco iroquês/tamil e submetê-la à
publicação.
Mas a questão ainda estava em aberto – se Dumont não foi o
primeiro a publicar uma solução para o problema iroquês/tamil, quem
foi? Conforme eu continuava a ler sobre o assunto, o dedo parecia
apontar para Floyd Lounsbury. Eu já sabia que Lounsbury era um
cara brilhante, um dos antropólogos mais inteligentes que já conhe-
ci. Então, ele certamente tinha os neurônios para resolver o proble-
ma. (Não que isso demandasse tanto!) Sobretudo, ele era um especi-
alista na língua iroquesa, então ele certamente conhecia seu sistema
de parentesco de trás pra frente. Em 1964, como você sabe, Lounsbury
publicou um artigo intitulado: “The Structural Analysis of Kinship
Semantics”, e foi nesse artigo, conforme foi dito, que sua solução
para o problema apareceu. Então, voltei para esse artigo.

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Marcio Silva

Aí veio outra surpresa! Havia muito pouco nesse artigo sobre o


problema iroquês/dravidiano. Na verdade, a discussão se limitava a
uma nota de rodapé na página 1079 que, em sua totalidade, dizia:
Existem sistemas que classificam os tipos de parentes da
forma como imaginávamos que os iroqueses faziam. Esses
são os sistemas de tipo “dravidiano”. O interessante é que
eles geralmente não são fundados em razão de clãs ou
metades, mas no modo de bifurcação que, diferente dos
Iroqueses, leva em conta o sexo de todos os parentes de
ligação. Os tipos dravidianos e iroqueses raramente são
distinguidos na literatura antropológica, passando todos
sob o rótulo do ‘tipo iroquês’. Na verdade, são todos sistemas
cuja premissa está baseada em princípios muito diferentes
de raciocínio e derivam de estruturas sociais que são
fundamentalmente diversas.

Aí está. Isso foi tudo que Lounsbury tinha a dizer sobre o as-
sunto. Ele percebeu que os sistemas de parentesco iroquês e
dravidiano eram diferentes em certos aspectos, embora fosse um tanto
críptico no que disse. Ele disse que o sistema dravidiano levava em
conta o sexo de todos os parentes de ligação. Mas ele deixou de espe-
cificar o que exatamente eram essas ligações. Nem tampouco expli-
cou quais eram as diferenças em estrutura social que acarretavam as
características especiais do sistema de parentesco dravidiano, ou como
isso ocorria. Francamente, não consigo encontrar na afirmação de
Lounsbury qualquer indício claro e convincente de que ele tinha
acertado o casamento entre primos cruzados como a característica
distintiva que transformava a nomenclatura iroquesa em dravidiana.
Estou bastante convencido de que ele sabia o que era, mas não disse.
De fato, não acho que alguém possa atestar, com base na afir-
mação de Lounsbury, que ele estava incontestavelmente ciente da
diferença específica entre as duas terminologias, a saber, que residia
na inversão dos termos aplicados aos filhos dos primos cruzados.
É claro que, afinal de contas, alguém apontou essa diferença.
Mas se não foi Lounsbury, quem foi? Trautman? Scheffler? Allen?
Quem?

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Um pequeno, mas espinhoso, problema do parentesco

De certo modo, a esta altura, já não me importo. Já estava claro


para mim que, pelo menos, até 1964, ninguém o havia feito. Pois – de
novo – eu estava dolorosamente ciente de que tinha perdido o trem.
Se eu tivesse publicado meu trabalho entre 1952 e 1964... ou mes-
mo depois, eu teria estabelecido minha precedência no assunto.
Mas, afinal de contas, no contexto maior, as diferenças entre os
sistemas iroquês e tamil são café pequeno. Porém, tais são as vaida-
des dos homens!
Na verdade, agora que saí do banco de reservas e voltei ao jogo,
estou interessado em saber quem, desde então, propôs uma solução
para esse pequeno, mas espinhoso, problema de parentesco. Acabo
de encomendar uma cópia do livro que contém o artigo de 1971 de
Scheffler para ver se foi ele que finalmente o resolveu. Se não foi
Scheffler, foi Trautman? Allen? Shapiro? Quem? Acho que continu-
arei nessa busca até descobrir.
Entrando no assunto de forma tão longa e tortuosa, temo que
possa ter extrapolado sua paciência comigo, então paro por aqui.
Não preciso dizer que, se algo disso reacende seu interesse pela ques-
tão iroquesa/dravidiana, eu realmente gostaria de continuar essa con-
versa com você.
Com estima,
Robert L. Carneiro

7 de janeiro de 2011
Caro Marcio,
Primeiramente, por favor desculpe meu longo atraso em res-
ponder à sua carta de 3 de dezembro. Deixe-me explicar o motivo
pelo atraso. Eu e minha esposa temos uma pequena casa nas matas
de Rhode Island, e tive que gastar um tempo extraordinário tentan-
do lidar com um problema que tivemos com a água do poço, inclu-
indo a presença de E. coli “em quantidade grande demais para
contabilizar”, de acordo com o laudo do laboratório. Tudo isso me
manteve afastado da minha escrivaninha em Nova York.
Mas, voltando ao assunto em pauta, estou muito feliz com a
possibilidade de ter a carta que escrevi ao Eduardo Viveiros de Castro

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203
Marcio Silva

publicada numa tradução para o português. Você certamente tem


minha permissão para prosseguir com a tradução dessa carta e
publicá-la na revista.
Muito obrigado pela cópia do seu livro sobre os Waimiri-Atroari.
Lembro quando primeiro soubemos da sua existência, e estou ansi-
oso para aprender mais sobre eles.
Novamente, peço desculpa pelo longo atraso em respondê-lo.
Estou muito animado com a apresentação do meu trabalho sobre o
problema do parentesco iroquês/tamil (dravidiano). Quem sabe ago-
ra possa parar de bater a cabeça na parede!
Com estima,
Robert L. Carneiro
Tradução de Adriana Queiroz Testa.

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Recebido em: 01/11/2011.


Aceite em: 15/11/2011.
ILHA
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O século de Lévi-Strauss

Patrick Menget¹
École Pratique de Hautes Étude
E-mail: pmenget@gmail.com

Tradução: Miriam F. Hartung


Patrick Menget

Resumo Résumé

Este artigo, escrito e proferido na oca- Cet article, “O século de Lévi-Strauss”, écrit
sião do centenário de Claude Lévi- et prononcé à l’occasion du centenaire de ce
Strauss, retraça, primeiramente, as dernier, retrace d’abord les grandes étapes
grandes etapas de sua vida e de sua de sa vie et de sa formation d’anthropologue.
formação como antropólogo. Antes de Avant son travail d’ethnographe au Brésil,
seu trabalho como etnógrafo no Brasil, il se forme comme professeur de philosophie
ele se forma como professor em filoso- en France, puis se familiarise avec les maîtres
fia na França, depois se familiariza com du culturalisme américain. Exilé à New
os mestres do culturalismo america- York, il rencontre R.Jakobson et découvre le
no. Exilado em Nova Iorque, ele en- structuralisme en linguistique, qu’il sera
contra R. Jakobson e descobre o estru- l’un des premiers à transposer dans l’étude
turalismo na linguística, o qual ele será des systèmes de parenté et de mariage, puis
o primeiro a transportar para os estu- des mythologies indiennes d’Amérique. Le
dos dos sistemas de parentesco e de structuralisme de Lévi-Strauss est plutôt une
casamento, depois para as mitologias méthode qu’une philosophie, contrairement
da América. O estruturalismo de Lévi- au malentendu entretenu dans les milieux
Strauss é, sobretudo, um método do intellectuels de Paris, et son oeuvre débouche
que uma filosofia, contrariamente ao sur une esthétique et une éthique du respect
mal-entendido sustentado nos meios de la vie, tout en maintenant l’affirmation
intelectuais de Paris, e sua obra resul- du relativisme culturel. Les leçons de son
ta numa estética e numa ética do res- oeuvre gigantesque permettent enfin de
peito à vida, sempre mantendo a afir- relativiser les positions post-modernes.
mação do relativismo cultural. As li-
ções de sua obra gigantesca permitem, Mots-clés: Structuralisme. Lévi-Strauss.
finalmente, relativizar as posições pós- Éthique de l’anthropologie. Histoire de
modernas. l’anthropologie. Post-modernisme.

Palavras-chave: Estruturalismo. Lévi-


Strauss. Ética da antropologia. Histó-
ria da antropologia. Pós-modernismo.

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210
O século de Lévi-Strauss

A ntes de fazer os meus agradecimentos, eu gostaria de me des-


culpar, pois eu não falo bem o português ou, aliás, eu falo o
português falado e não o português escrito. Eu quero agradecer ao
Magnífico Reitor, à Sr.a Pró-Reitora, às Senhoras e aos Senhores
Professores presentes e, especialmente, ao Professor Márnio Teixeira
Pinto. Eu não mereço nem a metade dos elogios que ele me fez.
Eu chamei esta conferência de “O século de Lévi-Strauss”.2 Uma
pequena observação que eu quero fazer é a de que na França houve
um processo de celebração totalmente inédito para qualquer outro
intelectual, que eu saiba. Foi tanto que pode ser chamado de uma
“mumificação em vida” de Lévi-Strauss e de uma “museificação em
vida”. Quero explicar: existe na França uma consagrada coleção de
livros muito famosa chamada Bibliothèque de la Plêiade, especializada
em publicar clássicos da literatura francesa e mundial, de grandes
nomes (pensadores, poetas, escritores) da história; e em maio deste
ano foi lançado o volume Lévi-Strauss (ainda em vida), incluindo
sete livros, entre os 17 que ele escreveu. E digo “museificação em
vida” porque no novo museu de Arte Primitiva, que não se chama
Arte Primitiva, mas Arte das Civilizações, devido a controvérsias de
opinião sobre a nomeação desse museu, acabou que simplesmente
chamamos pelo nome do lugar onde o museu foi erguido: Musée du
Quai Branly. E assim ficou.
Nesse museu, existe uma sala de teatro que se chama Théâtre
Claude Lévi-Strauss e, no dia 28 da semana passada [28/11/2008],
vários intelectuais e artistas famosos passaram o dia inteiro no palco
lendo trechos das obras de Lévi-Strauss. Mas isso não foi o mais cu-
rioso. No final da tarde daquela sexta-feira, o próprio presidente

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Patrick Menget

Sarkozy foi à casa de Lévi-Strauss para prestar homenagem, tendo


sido a única pessoa que Lévi-Strauss, já um pouco cansado mas lúci-
do, aceitou receber. Mas também é um sinal de que, na situação
intelectual da França, Lévi-Strauss é o último grande intelectual. Não
sei se concordo com a ênfase da imprensa francesa, em que todos os
jornais e todos os semanários falam do “maior intelectual do sécu-
lo”. Isso para mim não quer dizer muita coisa, mas que seja o maior
antropólogo do século eu acredito e vou tentar mostrar para vocês.
É preciso insistir que a reputação que ele tem na França, e que
certamente tem no Brasil, não é tão universal quanto pode parecer.
No mundo anglo-saxão, especialmente americano, há hoje uma gran-
de indiferença em relação a Lévi-Strauss. Só um exemplo: no penúl-
timo domingo, dia 23 [/11/2008], na reunião anual da American
Anthropological Association (AAA), que contou com uns quinhen-
tos simpósios, houve um único simpósio, entre os quinhentos, que
tratava sobre mito, ritual e espírito (“Myth, Ritual and Mind”) con-
sagrado a Claude Lévi-Strauss. Esse simpósio foi colocado no último
dia, dos quatro dias da AAA. Eu estava no simpósio e tinha uma plateia
de 15 ou 16 pessoas, além dos expositores, que eram apenas seis.
Isso, eu acho, é um sinal importante. Com exceção de Marshall
Sahlins, um dos maiores antropólogos americanos, e Terence Turner,
além de um punhado de brasilianistas que trabalham especificamente
com Brasil indígena, realmente não há maior interesse no pensa-
mento de Lévi-Strauss nos Estados Unidos ou há muito pouco inte-
resse sobre o pensamento dele. A maioria dos simpósios era sobre
globalização, estudos culturais, temas feministas. Por exemplo, ha-
via um simpósio intitulado “Excitação e gozo”.
Eu quero citar uma fala de Lévi-Strauss em seu aniversário de
noventa anos, festejado por colegas no Laboratoire d’Anthropologie
Sociale, fundado por ele. Um jornalista que estava lá tentou lembrar
as palavras precisas dele para publicar, pois Lévi-Strauss não tinha
escrito nada, mas falou alguns minutos, sem notas e sem prepara-
ção. O tema foi a imagem de um holograma quebrado. Nas suas
próprias palavras, tais como lembra o jornalista, ele diz:

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212
O século de Lévi-Strauss

nesta idade avançada que eu não pensei atingir e que


constitui uma das mais curiosas surpresas de minha vida,
me sinto como um holograma quebrado. Este não possui
mais sua unidade inteira, porém, como qualquer holograma,
cada parte restante, conserva uma imagem e representação
completa do todo. Assim, existe hoje para mim um ego
real, que é apenas a metade, ou um quarto de homem, e um
ego virtual, que ainda conserva viva a idéia do todo [...].
Minha vida hoje acontece neste diálogo muito estranho
(LE MONDE, 1999).

Essa evocação comovente do próprio envelhecimento, como


diálogo entre uma virtualidade integral do ego e sua fraqueza cres-
cente, remete, em termos estruturais, ao roteiro de clivagem no in-
divíduo. Eu acho que depois disso não houve nenhuma modificação
radical: ainda pensa nesses termos.
Agora eu vou expor três pontos principais. O primeiro diz res-
peito às etapas de uma carreira singular; o segundo refere-se à ques-
tão da estética sobre a ética; e o terceiro tratará do estruturalismo
como teoria e não como filosofia, tentando esclarecer uns mal-en-
tendidos a respeito da “filosofia estruturalista”. Depois, tentarei con-
cluir com algumas lições que eu penso serem relevantes para todos.
A formação de Lévi-Strauss é totalmente clássica: filosofia, di-
reito. Ele fez um “passeio” pelos cursos mais conhecidos da École
Normale Supérieure e preparou o concurso de professor de filosofia,
juntamente com famosos alunos dessa escola, como Jean-Paul Sartre
e Simone de Beauvoir, que, como vocês sabem, fez a primeira rese-
nha de As estruturas elementares do parentesco.3 Uma coisa interessante,
que é pouco conhecida, é que o pai dele era um pintor retratista, mas
vendia poucos retratos, e, várias vezes, eles faziam pequenos apare-
lhos para sobreviver. A família toda trabalhava junta e fez vários apa-
relhos, resultado de bricolagem. Era para vender para turistas, fazia
montagens de miniaturas de casas. Isso deixou rastros profundos na
vida de Lévi-Strauss, ele sempre gostou da bricolagem. Na sala dele
no Collège de France, havia uma maquete das transformações míticas,
do terceiro volume das Mitológicas, porque ele construiu um mode-
lo para explicar para si mesmo as transformações.

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Patrick Menget

O interesse pela etnologia, ao contrário do que foi escrito várias


vezes, não veio do seu contato com Marcel Mauss, nem sei se ele
conheceu Marcel Mauss, pois não foi aluno dele. Veio, sim, da leitu-
ra do Robert Lowie, particularmente do livro Primitive Society, tradu-
zido para o francês em 1935 sob o titulo Traité de Sociologie Primitive,
tendo sido praticamente um dos poucos livros que introduziram Lévi-
Strauss na antropologia, até ele ser chamado, no fim de 1934, para a
famosa missão francesa em São Paulo, logo após a criação da Univer-
sidade de São Paulo (USP).
No Brasil, onde Lévi-Strauss passou de 1935 até 1938, esse pe-
ríodo foi como a época do “tudo era possível” ou o que se chamou de
“a grandeza dos começos”, como ele mesmo declarou em entrevista
para Manuela Carneiro da Cunha, em 1985, quando voltou breve-
mente ao Brasil na comitiva do presidente François Mitterrand. Ele
estava revivendo o entusiasmo dos primeiros descobridores, e, mes-
mo que fosse uma ilusão, a ilusão é necessária para a vida, dizia ele.
Lévi-Strauss se imaginava como se fosse André Thevet4 ou como se
fosse um Jean de Léry,5 como um dos primeiros escritores que fize-
ram crônicas dos primeiros tempos do Brasil colonial.
Eu vou ler uma citação de Fernanda Peixoto (1998), que escre-
veu um artigo sobre a permanência de Lévi-Strauss no Brasil no qual diz:
A partir dessa experiência, torna-se um americanista:
inicia-se na prática etnográfica, expõe o material coletado
em museus e galerias franceses, publica seus primeiros
textos na área, integra a relação dos americanistas da Société,
enfim, retorna à França reconhecido no meio etnológico
como um profissional do ramo.

Esse reconhecimento profissional não se refere a um teórico,


mas sim a um profissional do ramo, no tempo em que a profissão de
antropólogo quase não existia na França, em que havia um filósofo,
Lévi-Bruhl, e outro, Marcel Mauss, que nunca fizeram trabalho de
campo. E havia também Paul Rivet, médico da Marinha. Era o últi-
mo antropólogo físico, linguista e também etnógrafo na América do
Sul, principalmente da Colômbia. Eles foram os principais “cabeças”
do novo Instituto de Etnologia de Paris, fundado em 1925.

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O século de Lévi-Strauss

Depois, com a Segunda Guerra Mundial – e esses episódios são


bem conhecidos – Lévi-Strauss foi um pouco inconsciente do fato
de que ele, como judeu, não podia mais ensinar no Liceu. E se apre-
sentou ao reitor em Montpellier para pedir um novo posto de pro-
fessor de filosofia. Essa possibilidade não existia mais. Então, ele re-
fugiou-se na casa de campo dos pais, uma casinha lá nas Cévennes,
nas montanhas perto de Montpellier. Ele foi escolhido por uma fun-
dação americana que retirava da Europa os intelectuais ameaçados
pelo nazismo. Chegou em 1941, em Nova Iorque, junto com outros
exilados. No navio fez amizade com André Breton e, depois, fre-
quentou o grupo dos surrealistas que estavam em Nova Iorque, o
que foi decisivo para ele. Graças a André Breton conheceu a arte da
Costa Noroeste, acompanhando-o nos antiquários da 5a e da 3ª Ave-
nidas. Breton o ajudou a comprar máscaras de transformações, que
custaram entre cinco e dez dólares. Essas máscaras, hoje, no seu
valor comercial, valem entre cinquenta e cem mil dólares. Ele ficou
absolutamente fascinado, como já era fascinado pelas damas Kadiwéu,
pela qualidade e pela beleza das máscaras. Lévi-Strauss começou uma
coleção que vendeu somente nos anos cinquenta, quando casou
novamente. Essa coleção está hoje reconstituída inteiramente no
Musée du Quai Branly, tendo sido exposta semana passada.
A segunda grande descoberta de Lévi-Strauss, em 1942, em Nova
Iorque, foi Roman Jakobson, um dos linguistas mais conhecidos do
século XX e que o introduziu à linguística estrutural. O mesmo
Jakobson tinha inventado, junto com Nikolay Trubetzkoy, o conceito
de fonema. Segundo o próprio Lévi-Strauss, foi uma iluminação, ou
melhor, foi uma confirmação de uma intuição que ele já tinha tido
em relação à estrutura da sociedade Bororo e também em relação à
leitura de um tratado muito curioso de Granet, um sinólogo francês
que escreveu nos anos 1930 um livro sobre as categorias do casa-
mento chinês. Enfim, eu insisto neste último ponto, o do encontro
mais simbólico para Lévi-Strauss, que foi quando Franz Boas, que
tinha uns oitenta e poucos anos na época e era professor honorário
da Columbia University, resolveu fazer um jantar solene para festejar
os jovens etnólogos exilados, Claude Lévi-Strauss e Paul Rivet, este

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Patrick Menget

antropólogo francês que também era médico. Nesse jantar, em


Columbia, estava Lévi-Strauss do lado esquerdo de Franz Boas e do
lado direito de Paul Rivet. Quando Franz Boas se levantou para fazer
o brinde de boas-vindas, foi fulminado por um ataque do coração.
Então, de certa maneira, o último suspiro de Franz Boas passou para
Lévi-Strauss. Quem constatou a morte de Boas foi Paul Rivet. Agora
imaginem: numa resenha recente, cito de memória, Lévi-Strauss
escreveu que o maior antropólogo do século foi Franz Boas, opinião
com a qual concordo plenamente. O último suspiro de Boas, sua
alma, passou para Lévi-Strauss.
Essa Escola Americana foi decisiva na formação antropológica
dele, e uma das coisas que eu tento mostrar é que realmente ele é
muito mais um culturalista americano do que qualquer outra coisa e
que, por exemplo, o encontro dele com os alunos da Escola de Franz
Boas, tais como Margaret Mead, Alfred Kroeber, Ruth Benedict, foi
uma influência decisiva sobre o modo de seu pensamento geral, se-
não do estruturalismo. Quanto ao estruturalismo, foi mais influen-
ciado pela linguística de Jakobson e de Saussure. Agora, a outra des-
coberta que Lévi-Strauss fez em Nova Iorque foi o acervo fantástico
da Biblioteca Municipal de Nova Iorque (New York City Municipal
Library), na qual ele passou 18 meses trabalhando praticamente to-
dos os dias. Foi lá que elaborou seu livro magistral, As estruturas ele-
mentares do parentesco, publicado em 1949. Esse livro teve um destino
mais fecundo no Brasil do que na França ou nos Estados Unidos.
Não existem discípulos de Lévi-Strauss na França, acho que a
teoria do casamento como troca, generalizada ou restrita, é uma te-
oria que foi desviada por Françoise Héritier, porque a teoria do casa-
mento como troca é o fundamento do casamento como exogamia e
ela mesma funda a proibição do incesto. A questão da proibição do
incesto foi retomada por Françoise Héritier, que sucedeu Lévi-Strauss
numa cátedra do Collège de France, com uma teoria da acumulação
de identidade. Eu não quero desqualificar a teoria do incesto de
Françoise Héritier, mas é uma volta atrás em termos de
substancialização e de substantivismo. Eu acho que as variações de
um antropólogo como Eduardo Viveiros de Castro, que propôs um

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216
O século de Lévi-Strauss

novo tipo de casamento (dentro da troca restrita) que chama de


multibilateral, no qual não vou entrar em detalhes porque é um pouco
técnico, são um desenvolvimento mais interessante da teoria do pa-
rentesco de Lévi-Strauss do que da teoria da proibição do incesto,
adiantada por Françoise Héritier.
Voltando ao assunto desta palestra, a carreira de Lévi-Strauss, a
partir do reconhecimento de As estruturas elementares do parentesco, foi
um pouco demorada, acho que antes vou passar rapidamente pelos
Tristes Trópicos.6 De certa maneira, esse livro foi escrito num período
de desânimo de Lévi-Strauss, escrito muito rapidamente, porque ele
não tinha conseguido um emprego na França na medida do talento
e do reconhecimento que teve intelectualmente com as As estruturas
elementares do parentesco. Em outras palavras, ele escreveu Tristes Trópi-
cos para tentar outra carreira que não fosse acadêmica, pensando
que sua publicação iria lhe dar uma abertura como grand reporter in-
ternacional. A Unesco financiou a viagem dele à Índia e ao Paquistão,
ele escreveu observações e comentários sobre o Islã que hoje seriam
considerados politicamente incorretos. Ali ele faz uma comparação
dos alunos de uma madrasa (abrigando hoje os taliban) com os solda-
dos de um quartel prussiano.
O imenso sucesso do livro foi uma grande surpresa para Lévi-
Strauss, porque ele escreveu isso para se livrar de algumas frustra-
ções e foi o melhor livro de viagem filosófica publicado na França
desde Victor Segalen,7 no início do século, que analisa o exotismo.
Felizmente, após duas tentativas sem sucesso, ele entrou no Collège
de France, sendo reconhecido academicamente em 1959. A maior
homenagem que ele prestou, no fim da aula inaugural, no Collège
de France foi aos índios Nambiquara. Agora, para acabar, rapida-
mente, de falar sobre o fim da carreira dele, a última etapa: seus
estudos sobre a mitologia, a quantidade de material que utilizou so-
bre os índios da América do Sul, indo do mito Bororo até os mitos da
Costa Noroeste canadense (e americana), os mitos dos índios norte-
americanos das planícies e os mitos norte-americanos de pratica-
mente toda a parte norte do continente, foram um trabalho formi-
dável que levou praticamente uns dez anos da vida dele, uma vida de

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Patrick Menget

trabalho cotidiano, sem domingos. Para lembrar os mitos, para analisá-


los, eu vou simplesmente lembrar que é importante o que vai se se-
guir, que não é simplesmente fazendo segmentação linguística dos
mitos: é fazendo uma leitura dos mitos segundo todos os códigos da
etnografia. Quer dizer, não que ele apenas tenha analisado quinhen-
tos, seiscentos e poucos mitos, mas que ele analisou toda a socieda-
de, conduzindo esses mitos conforme a totalidade da etnografia dis-
ponível sobre cada uma dessas mitologias. É realmente um trabalho
formidável, como foi o trabalho de As estruturas elementares do parentesco.
Como vocês sabem, havia em As estruturas elementares do parentes-
co um propósito, digamos, durkheimiano. O propósito era mostrar,
dentro das formas regulamentadas de casamentos, que havia duas
formas principais, uma chamada troca restrita e outra troca genera-
lizada. O propósito era mostrar as formas de solidariedade social.
Numa entrevista inédita de Lévi-Strauss que eu fiz junto com
um filósofo já falecido, nos anos 1970, perguntei se ainda tinha esse
mesmo propósito durkheimiano e ele respondeu:
não, foi um erro meu, estava enganado, equivocado. Eu penso que
essas estruturas do parentesco são mais uma cosa mentale, como
dizem os italianos, que uma coisa funcional, ou funcional-estrutural,
uma forma de solidariedade social como Durkheim via as estruturas
sociais.

É interessante porque quando ele passou para a análise dos mi-


tos, sem nunca largar a consideração do parentesco, ficou interessa-
do, mas não publicou mais nenhum livro sobre o assunto. Ele esco-
lheu os mitos porque as determinações sociais sobre a produção mítica
eram muito menores do que os regimes sobre a produção de esposas
ou de esposos. Por quê? Porque a biologia, a ecologia e a economia
pesam sobre a escolha de cônjuges, de maridos, de esposas. Enquan-
to a mitologia é, simplesmente, uma produção mais gratuita da mente
humana, no caso levistraussiano, é mais uma produção do pensa-
mento americano.
Assim eu poderia chegar mais perto do objetivo dele para deter-
minar as estruturas do pensamento americano, através de uma pro-
dução mais gratuita, digamos, a regulação do casamento. Cito mais

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O século de Lévi-Strauss

uma passagem de Fernanda Peixoto do artigo que está na revista


Mana: “Poderíamos dizer que a obra espiralar de Lévi-Strauss con-
tém um movimento permanente que se traduz na incorporação de
novos objetos e questões, e em um retorno sistemático a antigos
resultados, ao começo – os Bororo, os Nambikwara” (1998, p. 96).
O mito número um das Mitológicas é o mito Bororo, o do
desaninhador de pássaros.
Vou passar agora para a segunda parte da palestra: da estética à
ética e à moda. Já falei do fascínio que Lévi-Strauss sentiu, viu e
descreveu nos Tristes trópicos pelas damas Kadiwéu. Insisto na palavra
“damas”, pois, quando fiz esse filme8 com Jorge Bodanzky, passa-
mos nos lugares onde Lévi-Strauss tinha filmado com sua esposa; a
recepção que os Kadiwéu nos deram foi muito desigual, entre sujei-
tos comuns, descendentes de escravos e aristocratas, damas aristo-
cratas dos Kadiwéu. Eu quero simplesmente lembrar que nem todas
as sociedades indígenas no Brasil são igualitárias, existem socieda-
des indígenas aristocráticas no Brasil. Os Kadiwéu, talvez, sejam o
melhor exemplo de uma sociedade com aristocracia, com homens
livres e descendentes de escravos. Isso nunca impediu aquelas da-
mas de se unirem com descendentes de escravos, às vezes com es-
cravos que, antigamente, vinham de outros povos como os
Chamacoco, entre outros. Essas damas levavam essas magníficas pin-
turas faciais, pelas quais Lévi-Strauss ficou absolutamente fascina-
do. O encontro dele significou outro fascínio com a arte da Costa
Noroeste; e não há dúvida de que, depois de uma infância num atelier
de um pintor, seja o do próprio pai ou o dos tios dele, também pinto-
res, o gosto e o sentido estético de Lévi-Strauss tenham se acirrados
pela exposição das pinturas das damas Kadiwéu. Ele pediu a elas que
fizessem desenhos sobre o papel, pois elas conseguiam muito rapi-
damente, e a coleção de desenhos mais recentes, que está em São
Paulo, mostra a continuidade dessa arte. A coleção de desenhos
Kadiwéu que Lévi-Strauss tem é uma maravilha. Escreveu em Tristes
Trópicos sobre a representação entre os Kadiwéu, mas também escre-
veu vários artigos sobre antropologia da arte que retomam uma tra-
dição iniciada por Franz Boas em seu famoso livro Primitive Art, pu-
blicado em 1927.
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Patrick Menget

Agora, o que tudo isso tem a ver com ética? Se vocês lembram
bem, em Tristes Trópicos tem um parágrafo muito estranho em que
Lévi-Strauss define o que os americanos, os culturalistas america-
nos, chamavam de ethos cultural. Eu cito de memória, vocês podem
achar facilmente a citação: “cada povo tem seu estilo cultural parti-
cular”. Essa é uma parte da descrição dos Kadiwéu, nos Triste Trópi-
cos. Essa definição podia ser tomada de Ruth Benedict ou de qual-
quer antropólogo culturalista. Lévi-Strauss nunca desistiu da crítica
de arte. Em seu penúltimo livro, Regarder, écouter, lire (1993), ele fez
uma análise de uma pintura de Poussin,9 em que utiliza exatamente
o mesmo método para a arte da Costa Noroeste e da Nova Zelândia,
ou quando analisou os motivos dualistas Kadiwéu. Enfim, o “estilo
cultural” é uma marca culturalista permanente na obra de Lévi-
Strauss.
Em 1950, Lévi-Strauss trabalhou para a Unesco, em Paris, e
escreveu esse famoso texto chamado Raça e história. Não vou entrar
em análise desse ensaio, talvez, a obra mais citada dele, hoje um livro
de base no ensino secundário francês, quase uma leitura obrigató-
ria. Se vocês lembram bem, nesse livro há uma tentativa de explicar
o fato de que algumas culturas se expandiram, para assim dizer, e se
desenvolveram, enquanto outras ficaram, aparentemente, no mes-
mo nível tecnológico, econômico etc.
A explicação que Lévi-Strauss dá a esse fenômeno é o que cha-
ma de “coalisão”, dizendo que várias influências, várias culturas po-
dem se aliar, no sentido matemático de coalisão, e enriquecer, por
assim dizer, uma cultura até desenvolver uma civilização brilhante.
Essa ideia não vem de Lévi-Strauss, ela está num livro raríssimo e
muito esquecido de Alfred Kroeber, não republicado, que se acha
nas bibliotecas e chama-se Configurations of Culture Growth. O livro do
Kroeber é uma reflexão sobre o tema que é uma obsessão do pensa-
mento ocidental desde Gibbon e Montesquieu: a expansão e a deca-
dência das civilizações. Lévi-Strauss buscou refletir sobre a civiliza-
ção em termos antropológicos, em termos de mistura de culturas,
em termos de aquisição, de difusão, tentando formalizar períodos de
decadência e apogeu. Como pessoa, ele é um homem conservador e

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O século de Lévi-Strauss

gostou muito de ser eleito na Académie française, gostava de honra-


rias, mas é totalmente radical em relação ao relativismo cultural. No
filme À Propos de Tristes Tropiques, ele falou que se pode apreciar ou
não os valores de outra cultura, mas nada, nada mesmo, nos permite
julgar as outras culturas.
Vou contar uma anedota reveladora do sentimento que Lévi-
Strauss ainda tem com a sobrevivência dos ameríndios, os índios da
América do Sul. Eu era militante de uma associação, da qual sou
presidente hoje, chamada Survival International, e nós soubemos que
uma expedição motonáutica iria percorrer os rios fluviais da Guiana
Francesa, subindo um rio, descendendo outro e passando por várias
aldeias indígenas. Apesar de serem afetados pelo “raid”, os índios dali
não tinham nem sido avisados. Não tínhamos muitos meios de ação,
nossa associação era pequena. Eu liguei para Lévi-Strauss, pensei
que ele fosse recusar um pedido de intervenção: o senhor aceitaria fazer
uma visita, pedimos um encontro com o ministro dos Territórios de Ultramar.
Para minha surpresa, ele disse: “É claro que vou!”. Então, nós nos en-
contramos na sala do chefe de gabinete do ministro. Primeiro, o chefe
de gabinete ficou, assim, pasmado ao ver Lévi-Strauss visitá-lo. Lévi-
Strauss falou por cinco minutos com cortesia, extrema cortesia, fri-
eza e muita energia e disse: “Vocês vão tolerar esse circo, enquanto o Brasil
do outro lado do rio está protegendo, de maneira eficaz, os índios que são dos
mesmos povos, da mesma língua”. Acabou com eles.
Uma semana depois, o presidente Jacques Chirac, então pri-
meiro-ministro, visitou a Guiana e interditou o “raid”. Isso quer di-
zer que não há diferença, para Lévi-Strauss, entre a estética, o senti-
do estético dele e o sentido ético. Entre as últimas palavras das várias
entrevistas que fizemos, ele sempre volta à questão da filosofia. Lévi-
Strauss é um pouco como Karl Marx, no sentido anedótico. Marx
falou que, “Se marxista for isso, eu não sou marxista”. É um pouco a
posição de Lévi-Strauss em relação à filosofia estruturalista: “se estru-
turalista for isso, não sou estruturalista”. Ele tem uma filosofia que ele
mesmo chama de “rústica”; uma convicção que é a seguinte: ele
receia uma catástrofe demográfica; hoje existe acima de seis bilhões
de pessoas na Terra e, quando ele tinha 15 anos, havia apenas um

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221
Patrick Menget

bilhão e meio. Lévi-Strauss acreditava que isso é o pior perigo que


existe para a humanidade; já falava sobre isso nos Tristes Trópicos há
cinquenta anos: isso irá atrapalhar a vida de todo mundo e romper o
que poderia se chamar um “equilíbrio”. Ele não usa essa expressão,
mas disse repetidamente que poluir o ar, sujar as águas, destruir a
vida animal, acabará com a grande cadeia da vida, não da vida huma-
na, mas da vida inteira.
De certa maneira Lévi-Strauss poderia ser um “protoecologista”,
porque ele começou bem antes de o tema se tornar popular, apesar
do fato de que a participação dele em ações, digamos militantes, como
essa visita ao gabinete do ministro dos territórios de ultramar, foi
relativamente esparsa. Apesar de ser raro, ele foi constantemente
atento e ativo à sobrevivência das populações indígenas e, também,
isso talvez vocês aqui saibam, mas é sempre interessante citar, sem-
pre recebeu os emissários dos índios quando chegavam à Europa.
Recentemente, há uns três ou quatro anos, recebeu um grupo de
Bororo, entre os quais havia um antropólogo, melhor, um futuro
antropólogo, doutorando em antropologia, e dois seminaristas, que,
para agradar Lévi-Strauss, entoaram um canto tradicional dos Bororo.
Isso quer dizer que a ligação de Lévi-Strauss com esses povos, apesar
de ser discreta, foi constante. É a isso que eu chamo a ética de Lévi-
Strauss. Quando fiz o filme À propos de Tristes Tropiques e retornei de
campo, eu o entrevistei, mostrando-lhe nossas imagens dos Kadiwéu
e dos Bororo. Esse filme mescla as próprias imagens feitas por Lévi-
Strauss naquele momento e as nossas, mais atuais, e perguntei para
ele: “o que mais lhe emocionou nessas imagens?”. Pensou um pouco e
disse: “O espetáculo da natureza”, ao que respondi: “e a gente, professor?”.
E Lévi-Strauss retrucou:
Olha, eu tenho notícia regularmente dos índios, porque
todos os meus colegas me escreveram regularmente sobre
os Nambiquara, sobre os Bororo, sobre os Kadiwéu. Eu
nunca perdi o contato com esses povos. Agora, eu sei que
muitos deles estão numa situação péssima. Mas a natureza
da América, a natureza do Brasil parece que não mudou;
isso é o que eu mais gosto nas suas imagens.

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222
O século de Lévi-Strauss

Vou concluir essa parte dizendo que, para Lévi-Strauss, poderí-


amos utilizar a frase famosa de Wittgenstein dizendo que: “Esthetic
und ethik sind einz”. Em português: “A estética e a ética são uma
só”. E, realmente, a postura estética de Lévi-Strauss é uma postura
ética, ao mesmo tempo.
Para finalizar, a última parte da minha fala: o estruturalismo.
A quantidade de mal-entendidos que aconteceram na França
pode ser calculada em dezenas de quilos de livros. Não entendo bem
isso. Não é porque eu sou antropólogo, aliás, eu tenho uma forma-
ção também em filosofia, elementar, mas não entendo bem por que
se transformou num ambiente muito “parisiano”, com alguns ane-
xos em Nova Iorque, e transformou Lévi-Strauss, com uma alma de
cientista social, em um filósofo. Acho que foi uma grande bolha de
sabão e não merece muita reflexão. O melhor exemplo dessa bolha
de sabão que estourou, mas que era mesmo isso, foi depois de maio
de 1968, que, por sinal, Lévi-Strauss odeia: “Tem essa bagunça, não
gosto”, dizia. Um pouco conservador, talvez. Existe um jornal de es-
querda, deve ser o Libération, que colocou um título enorme: “O es-
truturalismo está morto!”. Mas é morto porque nunca foi uma filo-
sofia. Houve uma discussão no último capítulo de La Pensée Sauvage,
uma discussão com Sartre, recusando o ponto de vista, digamos, da
dialética do Sartre, isto é, o ponto de vista do sujeito, da fenomenologia
“sartriana”. Só o Sartre pode aceder ao movimento da história, mas
o movimento da história visto como especificidade ocidental. Houve
uma discussão cortês com a hermenêutica de Paul Ricoeur, na qual
Lévis-Strauss disse, simplesmente, que não tinha nada contra a
hermenêutica como interpretação. A história inteira da tradição ju-
daico-cristã é uma história de hermenêutica e nunca acaba, quer
dizer, comentário após comentário que, simplesmente, Lévi-Strauss
tinha um método mais simples e que não quis tocar nesse cumulati-
vo edifício das teologias ocidentais. O fato de que ele não quer tocar
não significa que ele tem outra filosofia ou que seja anticristão,
antirreligioso. Simplesmente, ele não tem sensibilidade para religião,
e foi ele quem falou isso. Falou da mesma maneira que Max Weber,
quando escreveu que não tinha sensibilidade para música. Lévi-Strauss

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223
Patrick Menget

tem pouca sensibilidade para religião, mas estudou brilhantemente


alguns rituais. A análise que ele fez dos ritos funerários Bororo é um
modelo de análise estrutural. Carregando o mariddo (nome técnico
da roda carregada, das duas rodas enormes) no pátio da aldeia, os
Bororo representam assim os vivos e os mortos; é uma festa funerá-
ria na qual a representação encena a luta dos vivos contra os mortos.
Eu vou evocar rapidamente o método estruturalista, pois isso
faz parte do bê-á-bá da antropologia, apesar das discussões com os
maiores filósofos desse tempo: Sartre, de um lado, Ricoeur, de ou-
tro. Não existe uma filosofia estruturalista, existem suposições, eu
tentei esboçar a posição ecológica. Existe o pessimismo bastante ra-
dical de Lévi-Strauss em relação ao futuro da humanidade, em rela-
ção à diminuição da diversidade cultural, mas isso não constitui uma
filosofia. Constituir o estruturalismo em filosofia é bem parisiense,
bem salão parisiense. O método é de fato muito mais um bricolage
intuitivo que um procedimento que pode ser regulado em ponto um,
ponto dois, ponto três, e aplicado a qualquer situação. Acho que é
por isso que Lévi-Strauss não tem realmente discípulos. Ele inspirou
muita gente, muito mais do que se ele tivesse tido discípulos, no
sentido técnico da palavra.
O inventário das unidades pertinentes ou relevantes, num con-
junto que seja ritual, mitológico, artístico, técnico ou econômico,
pode ser, evidentemente, interminável. Depende muito da intuição
do pesquisador. É verdade que o dualismo institucional não é outra
coisa senão o reflexo do dualismo mais fundamental, que para ele é
uma estrutura mental.
Vou ler uma citação sobre dualismo que está no grande final do
último volume das pequenas Mythologiques, chamado “A história de
Lince”. Houve um grande debate na antropologia do lado dos ingle-
ses, principalmente da parte de Maybury-Lewis, sobre a natureza
das organizações dualistas. O teor funcionalista dos ingleses nesse
tempo dos anos 1950 é, evidentemente, colocar as estruturas do
dualismo do lado das instituições, enquanto Lévi-Strauss respondeu
que essa visão do dualismo é uma visão parada, estática. No final de
“A história de Lince”, Lévi-Strauss diz: “Lá como alhures, o dualismo

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224
O século de Lévi-Strauss

se traduz por um jogo dinâmico entre reciprocidade e hierarquia”.10


Essa é uma nota adicional da nova edição desse livro.
É realmente um pensamento espiralar, como bem diz Fernanda
Peixoto, porque vocês lembram que essa noção do desequilíbrio di-
nâmico do dualismo já foi formulada no artigo de 1944, no American
Anthropologist, pouco citado, cujo título é “Reciprocity and Hierarchy”;
trata-se de uma resposta crítica ao artigo de um autor que escreveu,
em 1943, uma matéria sobre o Bororo na Revista do Arquivo Municipal
de São Paulo. Essa noção de desequilíbrio dinâmico é fundamental
porque rebate, contradiz, a crítica mais frequente, formulada na
América do Norte, de que o estruturalismo e as estruturas dualistas
em particular são uma coisa estática, anti-histórica, que não inclu-
em a diacronia. Acho isso, simplesmente, errado, porque a visão es-
trutural do dualismo como exemplo do método estrutural é uma visão
profundamente dinâmica, todo o movimento do mito de criação dos
Guarani, que Lévi-Strauss analisa novamente em A história de Lince, é
uma história do desequilíbrio que cria o movimento histórico. A his-
tória do mito de criação Guarani é uma história, é uma gênese.
Entre as pessoas que acreditavam mais veementemente nessa
noção, esse tipo de análise estrutural, existem vários antropólogos
brasileiros e/ou europeus, não vou citar todos, um deles recente-
mente foi Peter Gow, catedrático em Saint Andrews, que aplicou o
método estrutural que acredito ser a invenção mais importante que
Lévi-Strauss fez para a história dos Piro.11 Cada um pode também
fazer a bricolagem com sua intuição, tomando em conta os vários
níveis da realidade, quer dizer, simplesmente, fazendo uma etnografia
o mais detalhada que puder e utilizando todos os códigos que são
formalizados pela própria cultura estudada. Multiplicidade dos códi-
gos, multiplicidade dos níveis, hierarquização dos níveis.
Bom, é verdade que o conceito de “hierarquia” foi melhorado,
digamos, existe como potencial no artigo de 1944 e foi formalizado
por um dos melhores levistraussianos que havia na França, Louis
Dumont, especialista da Índia, mas que, de qualquer forma, sabe muito
do método estrutural de Lévi-Strauss. A teoria de Dumont é uma
aplicação da teoria, do método estrutural.

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225
Patrick Menget

Para concluir, vou tentar aproveitar esse percurso exemplar,


secular, de Lévi-Strauss. A primeira lição de cunho culturalista é a de
que a diversidade das culturas humanas é uma riqueza tão intelectu-
al como humana, e de que o pessimismo relativista de Lévi-Strauss
diante do fantástico crescimento demográfico global não impede que
continuemos esse inventário paciente da diversidade humana e, den-
tro deste último, o inventário de tudo que for pertinente ou relevan-
te, mesmo se isso significar matizar o pessimismo levistraussiano
diante da diminuição do número das culturas. Por exemplo, pode-
mos afirmar que as resistências ao movimento global de uniformiza-
ção criam, ou melhor, recriam diferenças culturais.
A segunda lição é mais voltada para o método estrutural. Eu
tento mostrar que o método estrutural não pode ser entendido de
maneira limitativa, como o pensamento binário ou como o binarismo
universal, mas, antes, com a consideração de todo dualismo como
estruturas mentais e, na realidade social, na realidade religiosa, na
realidade artística, como desequilíbrios dinâmicos. O tratamento, essa
é outra coisa interessante da oposição estrutural, da semelhança en-
tre dois objetos, quaisquer que sejam, como um caso particular, um
caso “minimizado” ou minimalista de diferença, reintroduz a indis-
pensável primazia da relação sobre os elementos. Claro que seme-
lhança não é diferença, que tende ao zero, tende apenas, mas não é
semelhança, não é identidade. Dizendo isso, estou fazendo uma crí-
tica à teoria do incesto de Françoise Héritier, por exemplo, ou ao que
ela toma por identidade, apenas a semelhança, ou a semelhança é o
caso “minimal” da diferença, dois jeitos de semelhança podem ser
analisados como opostos.
Em todos os nossos estudos, mas talvez principalmente na an-
tropologia, na linguística, na crítica literária, na teoria literária, o
método estrutural nos leva a um deslocamento de ponto de vista em
relação às perspectivas clássicas fundadas do ponto de vista do ator
ou do indivíduo em geral, e isso não é filosofia, é um princípio
metodológico, apenas. Enfim, se vocês me permitem uma reflexão
mais pessoal e um tanto polêmica, eu diria algumas palavras a res-
peito do pós-modernismo. Para a maioria dos nossos colegas norte-
americanos e para uma parte dos seguidores deles na Europa – no
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226
O século de Lévi-Strauss

Brasil não sei muito –, a etnografia tradicional, a análise estrutural e


os estudos de parentesco e mitologia cederam lugar ao estudo
“multissítio”, sítio no sentido de entrosamento entre as culturas e
sociedades hegemônicas ou dominantes e as outras culturas domi-
nadas ou subalternas.
Essa perspectiva também deve ser reflexiva e mesmo
autorreflexiva, quer dizer, os próprios dominados devem se apropri-
ar dos hábitos, se apropriar dos elementos teóricos dos dominantes,
a meu ver, dois limites evidentes. Essa perspectiva supõe que estudos
tradicionais, a antropologia desde o século XIX, bem como a antro-
pologia moderna, inventada entre 1850 e 1870, tendo Tylor como
pai da antropologia – Tylor e Boas –, estão condenados, por princí-
pio, porque têm origem na cultura “colonialista” ou imperialista oci-
dental, racista.
Os primeiros estudiosos, como Tylor, Boas, poderíamos citar
outros, mas esses são suficientes, apesar do ambiente evolucionista
dominante no começo desse tempo, acabaram por ser a própria ne-
gação dessa tese. O primeiro teórico alemão chamado Theodor Waitz,
que inspirou muito Tylor, mostrou que a questão essencial era a pos-
sibilidade de uma antropologia social comparativa, porque o postu-
lado da escravidão, a base da escravidão seria abolida, aniquilada,
caso houvesse uma comparabilidade entre todas as culturas. Quer
dizer, o postulado de início da antropologia faz-se por conta de Tylor,
era antiescravista.
Enfim, o segundo argumento contra essa doutrina global é o
seguinte: os estudos etnográficos dos antropólogos do século XIX e
do começo do século XX são reutilizados pela antropologia nativa.
Por exemplo, um caso que acho significativo. Visitei a cidade de Prince
Rupert no Canadá (Colúmbia Britânica), onde tem um campus para
os índios da Costa Noroeste, quis encontrar alguns desses intelectu-
ais indígenas e fui muito mal recebido:
— “Você é antropólogo?” perguntou um índio.
— “Sou”, respondi.
— “Não existem Tlingit, Tsimshian ou Haida, esses nomes são
uma invenção da antropologia colonialista”, disse-me ele.

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227
Patrick Menget

Falou-me o nome do povo e eu conheci. Bom, conheço


mal, mas muito mal mesmo e depois falei a ele:
— “Não vim aqui pra fazer estudo antropológico, vim para fazer
uma visita, só como um turista”.
— “Mas você é antropólogo, o que faz?” perguntou.
— “Tentei estudar os índios do Brasil”, respondi.
— “Ah! Tentou estudar os índios do Brasil”... E de repente falou:
“Você já viu um xamã?”.
— “Claro que vi um xamã no Alto Xingu, um deles foi meu
instrutor de xamanismo”, respondi.
Foi quando ele olhou para mim e falou:
— “Eu te convido pra almoçar, eu pago o almoço”.
— “Mas por que você paga o almoço?”, indaguei e ao que ele
respondeu:
— “Porque eu gostaria de saber como é o xamanismo, porque os
missionários tiraram os xamãs da gente quase um século atrás e eu
gostaria de saber como funciona o xamanismo”, respondeu.
Assim se criou uma grande amizade entre nós, porque eu
pude contar a ele como funciona a pajelança no Alto Xingu.

Segundo limite do pós-modernismo. A maioria dos estudos está


marcada, para não dizer estigmatizada, pelo fato de se iniciar sempre
de cima para baixo, do determinante para o determinado, descendo
a escala do poder. Esse preconceito inconsciente caracteriza e infor-
ma uma antropologia política extremamente simples, uma antropo-
logia política que nenhum militante adotaria, como se o discurso,
senão a retórica dos líderes étnicos e etnicistas, fosse uma simples
inversão dos discursos dos dominantes e, infelizmente, às vezes o é.
Em outras palavras, discorrer sobre a etnicidade com os líderes
de um grupo jamais substituirá o estudo paciente, tenaz e meticulo-
so do conjunto de relações entre esses líderes que emitem os discur-
sos sobre o grupo e aquilo que eles efetivamente pretendem repre-
sentar. São as relações entre essas duas categorias – líderes e povo –
que são o jeito mais interessante de estudo na antropologia, e não a
replicação mecânica dos discursos etnicistas.
Enfim, para poder fazer um estudo completo, às vezes indis-
pensável, não basta sair do polo dominante, mas é necessário olhar,

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O século de Lévi-Strauss

em todos os níveis, por todos os códigos e analisar as relações com-


plexas que ligam, em uma longa cadeia, os referidos polos, o de cima
e de baixo. Mais uma vez a etnografia detalhada é uma exigência,
um pré-requisito imprescindível da antropologia. Essa seria mais uma
lição de Lévi-Strauss.

Notas
1 Professor emérito da École Pratique de Hautes Étude, de Paris.
2 Conferência proferida em 4 de dezembro de 2008, por ocasião do seminário come-
morativo ao centenário de Claude Lévi-Strauss, realizado pelo Programa de Pós-
Graduação em Antropologia Social da Universidade Federal de Santa Catarina, em
Florianópolis.
3 As estruturas elementares do parentesco constitui a maior parte da thèse d’État de Claude
Lévi-Strauss, tendo sido publicada pela primeira vez em 1949 pela editora PUF, de
Paris.
4 Ver Singularidades da França Antártica, publicada em 1978 pela Itatiaia/Edusp, de
Belo Horizonte/São Paulo.
5 Ver Viagem à Terra do Brasil, publicada em 1980 pela Itatiaia/Edusp, de Belo Horizon-
te/São Paulo.
6 Publicada em 1955 pela editora Plon, de Paris.
7 Victor Segalen é o autor do famoso Lês immémoriaux, editora Plon, Paris, 1956.
8 Referência ao documentário À Propos de Tristes Tropiques, realizado em 1990 por Jorge
Bodanzky, Patrick Menget e Jean-Pierre Beaurenaut, exibido no seminário de co-
memoração ao centenário de Claude Lévi-Strauss, realizado pelo Programa de Pós-
Graduação em Antropologia Social da Universidade Federal de Santa Catarina, em
Florianópolis.
9 Pintor francês do século XVII, representante do classicismo.
10 Histoire de Lynx, publicada em 1991 pela Plon, de Paris (em português a mesma obra
saiu pela Companhia das Letras, em 1993).
11 Of Mixed Blood: Kinship and History in Peruvian Amazonia, publicada em 1991 por
Clarendon Press, de Oxford.

Referências
BOAS, Franz. Primitive Art. New York: Capitol, 1951.
GOW, Peter. Of mixed blood: Kinship and History in Peruvian Amazonia.
Oxford: Clarendon Press, 1991.
KROEBER, Alfred. Configurations of Culture Growth. Berkeley: University of
California Press, 1944.
LE MONDE. Paris, 29 de janeiro de 1999.
LÉRY, Jean de. Viagem à Terra do Brasil. São Paulo: Itatiaia, 1980.

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Patrick Menget

LÉVI-STRAUSS, Claude. Les structures élémentaires de la parenté. Paris: PUF,


1949.
______. Race et histoire. Paris: Unesco, 1952.
______. Tristes tropiques. Paris: Plon, 1955.
______. La pensée sauvage. Paris: Plon, 1962.
______. Histoire de Lynx. Paris: Pocket, 1991.
______. Regarder, écouter lire. Paris: Plon, 1993.
LOWIE, Robert. Primitive Society. New York: Boni and Liveright, 1920.
PEIXOTO, Fernanda. Lévi-Strauss no Brasil: a formação do etnólogo. Mana,
Rio de Janeiro, v. 4, n. 1, 1998.
SEGALEN, Victor. Lês immémoriaux. Paris: Plon, 1982.
THÉVET, André. Singularidades da França Antártica. São Paulo: Ed. USP, 1978.

Recebido em: 31/10/2011


Aceite em: 20/11/2011

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Alguns aspectos simbólicos acerca do gato

Alguns aspectos simbólicos acerca


do gato

Andréa Osório
Universidade Federal Fluminense
E-mail: andrea_osorio1@yahoo.com.br

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Andréa Osório

Resumo Abstract

Baseado nas concepções de Edmundo Based on the ideas of Edmund Leach


Leach (1983) sobre o status ambíguo (1983) on the ambiguous status of certain
de certas categorias de animais, este categories of animals, this paper adds
ensaio soma dados historiográficos e historiographical data and anthropological
análises antropológicas para apontar analysis to point out some symbolic aspects
alguns aspectos simbólicos relaciona- of the domestic cats. Animal used in rituals
dos aos gatos domésticos. Animal uti- associated with the supernatural, the cat
lizado em rituais, associado ao sobre- seems particularly ambiguous. The paper
natural, o gato parece particularmen- aims to show such ambiguities and to
te ambíguo. Procura-se apontar onde contribute in some degree to the debates
residem tais ambiguidades e contribuir, about human–animal relations.
em algum grau, para os debates acer-
ca das relações humano–animal. Keywords: Cat. Symbolism. Human–animal
Relations.
Palavras-chave: Gato. Simbolismo. Re-
lação humano–animal.

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232
Alguns aspectos simbólicos acerca do gato

Introdução

O presente ensaio pretende-se uma reflexão sobre alguns aspec-


tos simbólicos relacionados ao gato na literatura antropológi-
ca e em algumas obras historiográficas. Como argumento geral, apon-
ta-se como o gato é um animal ambíguo e rico simbolicamente. Pou-
cas obras antropológicas dedicam-se a falar mais do que uma ou
duas linhas sobre gatos. Nenhuma literatura brasileira foi encontra-
da especificamente sobre eles, mas uma menção especial e necessá-
ria é a de DaMatta e Soárez (1999), cuja obra acerca do jogo do bicho
no Brasil elabora uma análise sobre o simbolismo que envolve al-
guns animais do jogo. Exceção geral também é o ensaio
historiográfico de Darnton (1986).
O objetivo é compreender alguns aspectos simbólicos relacio-
nados a esse animal. Para tanto, a análise está fortemente ancorada
na discussão clássica de Leach (1983) acerca da posição estrutural
de certos animais ante o ser humano. Como a maioria da bibliografia
levantada acerca do gato, conquanto escassa, está ancorada nesse
paradigma, soará ao leitor que há uma espécie de consenso. Contu-
do, deve-se apontar tal como uma abordagem coesa em termos de
paradigma. Nesse sentido, o ensaio ora proposto tem mais a qualida-
de de um “estado da arte” sobre o simbolismo do gato na literatura
existente.
O paradigma estruturalista de Leach (1983) está em oposição
ao funcionalista. O funcionalismo, como aponta Sperber (1975),
manteve como preocupação principal a utilidade de certos animais,
o que foi jocosamente apontado por Lévi-Strauss como o “bom para

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233
Andréa Osório

comer”, ao passo que a abordagem lévi-straussiana primou pela ideia


de que os animais são “bons para pensar”. Para Sperber, essa dimen-
são influenciou os trabalhos tanto de Douglas (1976) quanto de Leach.
Nesse sentido, é a esse “bom para pensar” que o presente ensaio se
destina, embora uma parte reduzida da bibliografia consultada apre-
sente explanações do tipo funcionalista.
A reflexão está estruturada a partir dos eixos apontados por
Leach (1983), que incluem: a comestibilidade como algo que permi-
te pensar sobre os animais e sua carga simbólica, como também fez
Sahlins (1979); as categorias animais como insulto (ou elogio) e as
corruptelas verbais associadas a categorias animais; e a noção de que
certas categorias animais ocupam posições ambíguas.
Os dados historiográficos são somados, neste trabalho, às análi-
ses antropológicas como exemplos de interpretações de uma reali-
dade passada que pode ou não se manter viva nas concepções atuais.
Em alguns momentos, somam-se dados empíricos levantados por
pesquisadores da área de veterinária e educação ambiental. Tais da-
dos não apontam, contudo, que as percepções, crenças e representa-
ções acerca do gato têm fundamento no que Douglas (1976) cha-
mou de materialismo médico, mas indícios que julguei relevantes para
apontar como concepções e ideias àquilo que se apresenta, no senso
comum, como fato material.

A abordagem leachiana

Leach (1983) empreende uma tarefa de fôlego ao estruturar


séries de correspondência entre comestibilidade animal e relações de
parentesco/afinidade e tem sido obra de referência frequentemente
encontrada em estudos acerca do simbolismo animal. Portanto, e
antes de tudo, faz-se necessária uma pequena introdução às consi-
derações do autor. Segundo Leach, a linguagem obscena faz uso ex-
tenso de categorias animais, porém nem todo animal se presta ao
insulto. Não é o animal em si ou sua essência que definem seu uso
como insulto, mas esse uso indica que o nome do animal possui
algum poder e, portanto, a categoria animal é tabu e sagrada. Para
uma melhor compreensão do status de sagrado, Leach indica que

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volume 12 - número 2

234
Alguns aspectos simbólicos acerca do gato

alguns animais são foco de rituais, enquanto outros não, e que as


categorias de comestibilidade do animal também são relevantes nes-
se sentido.
Empreendendo uma tipologia do grau de sacralidade/tabu e
comestibilidade do animal, o autor aponta para três possibilidades:
comestíveis e consumidos normalmente; comestíveis e consumidos
em situações especiais (conscientemente tabu); ou comestíveis, po-
rém não reconhecidos como comida (inconscientemente tabu). Está
claro que, para o autor, a comestibilidade em questão é material (ve-
nenoso/não venenoso), mas o reconhecimento como comida está
no plano simbólico. O exemplo dado por ele é a proibição do consu-
mo de carne suína na religião judaica: o porco é comestível, mas não
é comida para os judeus. Também recaem nessa divisão, como apon-
ta, os animais que, sendo tão próximos ao homem que se tornam do
mesmo tipo, não podem ser ingeridos sob o perigo do canibalismo,
como seria o caso do cachorro.
Da série de comestibilidade Leach (1983) depreende uma asso-
ciação entre incesto/canibalismo e sexo/alimentação. Decorrem daí
as seguintes séries: a) eu, irmã, primo(a), vizinho(a), estranho(a);
b) eu, casa, fazenda, campo, longínquo (remoto); e c) eu, animal de
estimação (pet), gado (animais de criação), caça, animais selvagens.
As três séries devem ser lidas também na vertical: por exemplo, a
relação com as pessoas de dentro da casa e com quem não posso me
casar (irmã) fornece o padrão de relação que mantenho com meus
animais de estimação. O objetivo central do exercício é depreender
uma regra que diz que o tabu se aplica a categorias anômalas, quan-
do em relação a categorias bem delimitadas, numa conclusão similar
à de Douglas (1976) e a de Hubert e Mauss (2001, p. 143) sobre “o
caráter ambíguo das coisas sagradas”. Em outra série, Leach indica
que homem (animais domesticados)/não homem (animais selvagens)
e, na interseção desses dois conjuntos, ou seja, em posição anômala,
estão animais de estimação (caça).
A relevância de se indicar o argumento leachiano é compreen-
der a posição anômala que os animais de estimação ocupam na soci-
edade ocidental contemporânea. Entre tais animais, o gato parece
ocupar uma posição especialmente anômala, o que pode ser sugeri-
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235
Andréa Osório

do a partir das ambíguas restrições ao consumo de sua carne no


Brasil (churrasco de gato), aos seus poderes sobrenaturais (sete vidas,
gatos pretos que trazem má sorte), à sua ocupação preferencial de
territórios liminares (muros, telhados, dentro e fora das casas) e à
sua condição de não totalmente domesticado, posto que ele caça (ra-
tos) e não obedece a ordens como cães e cavalos, por exemplo. Esses
pontos serão abordados ao longo deste ensaio.

Magia e sacrifício ritual

Uma obra que é exceção à parca análise sobre gatos é O grande


massacre de gatos e outros episódios da história cultural francesa (Darnton,
1986). Remetendo-se ao debate douglasiano sobre a ingesta do por-
co (Douglas, 1976) e às categorias animais conforme debatidas por
Leach (1983), Darnton (1986) sugere que a posição ambígua dá a
alguns animais (como o gato) um poder associado ao tabu e, portan-
to, um valor ritual. Segundo Darnton, gatos eram um tema recor-
rente de rituais e de simbolismo popular na França. A tortura e a
morte ritual de gatos faziam parte de passeatas burlescas (charivaris)
e da Terça-Feira Gorda do Carnaval tanto quanto das festas juninas e
do Corpus Christi, mas também em certos episódios fora da França,
como na Alemanha e na Inglaterra. A caça aos gatos nessas situa-
ções festivas, diz o autor, assemelhava-se a uma caça às bruxas, in-
cluindo a queima ritual em fogueira.
A tortura de animais, especialmente os gatos, era um
divertimento popular em toda a Europa, no início dos
Tempos Modernos. [...] Os franceses, no início dos Tempos
Modernos, provavelmente usaram mais os gatos, em nível
simbólico, do que qualquer outro animal, e usavam-no de
maneiras diferentes (Darnton, 1986, p. 121-125).

Segundo Cohen (1994), na Idade Média animais vivos faziam


parte de procissões públicas. Em Ypres, havia uma ‘festa dos gatos’
na segunda quarta-feira da Quaresma. Originalmente, diz a autora,
consistia em procissão seguida pelo lançamento de gatos do alto de
uma torre. Uma cerimônia que queimava gatos, afirma ainda, era
celebrada em Paris, todos os anos, na véspera do Dia de São João

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volume 12 - número 2

236
Alguns aspectos simbólicos acerca do gato

como parte das tradicionais fogueiras do ciclo junino. Uma pira era
erguida e dúzias de gatos em sacos eram suspensos sobre ela. Cohen
se pergunta se os maus-tratos aos gatos eram mero sadismo e apon-
ta que tais maus-tratos eram públicos, ritualísticos e que os animais,
especialmente os domésticos, serviam como um reflexo da comuni-
dade humana e seu bode expiatório. O massacre de gatos, ao coinci-
dir com rituais de limpeza, tornava o gato um animal sacrificial.
Hyams (1972) afirma que nenhum outro animal teria sofrido
tanto quanto o gato doméstico na Europa Medieval. Na Europa Cen-
tral, na Alemanha e em Flandres, diz o autor, durante a Quaresma
era costume matar, queimar ou enterrar vivos tantos gatos quanto
fosse possível. Durante a Páscoa, no Vosges e na Alsácia em geral os
gatos eram regularmente queimados vivos. Nas montanhas de
Ardennes, eles eram jogados vivos em fogueiras ou assados vivos
presos em postes. A razão seria sua identificação com Satã. Segundo
o autor, tais práticas seriam ritos mágicos cuja intenção era espantar
o diabo.
Nos séculos XVI e XVII, ainda segundo Hyams (1972), em toda
a Europa e na América (presumivelmente nos Estados Unidos), co-
locavam-se gatos vivos, mortos ou mumificados nas paredes ou
sob o piso das casas, às vezes junto a um rato. O autor então se per-
gunta por que um animal útil, já que caça ratos, seria considerado
medonho. A resposta que fornece, além de suas ligações com o dia-
bólico, seria seu status de animal novo e recém-chegado na Europa, o
que teria lhe valido uma reputação ambígua. Para sustentar tal argu-
mento, Hyams demonstra que nem sempre o gato foi um animal
doméstico comum no continente, mas que sua introdução ali teria
se dado após uma praga de ratos oriunda de levas migratórias
germânicas. Além disso, certas características atribuídas ao gato como
hábitos noturnos, sua associação com a lua e seus “olhos enigmáti-
cos” teriam contribuído, além de sua “autossuficiência”.
Esses aspectos claramente ritualísticos do gato apontam para
sua sacralidade e são corroborados por um ritual descrito por Hyams
(1972) no qual, em vez de ser destruído, o gato era adorado. Segun-
do o autor, no festival do Corpus Christi de Aix en Provence, o gato

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Andréa Osório

macho mais bonito da região era embrulhado em tecido como uma


criança e exibido publicamente, quando os habitantes locais se ajoe-
lhavam e erguiam flores e incenso, “e, em resumo, o gato nesta oca-
sião era tratado como o deus do dia” (p. 45, tradução minha).
Para Darnton (1986), as razões simbólicas do uso ritual do gato
residiriam numa correlação entre os gatos e a feitiçaria. Toda uma
série de formas de torturar gatos consistia, na verdade, em livrar-se
da feitiçaria ou das feiticeiras. Dado esse poder, os gatos também
impediam tarefas cotidianas de transcorrerem bem, como o cresci-
mento do pão ou a pescaria, ou serviam para impedir eventos nefas-
tos, como o crescimento das urtigas. Seu uso ritual e mágico para
atividades consideradas moralmente boas ou ruins indica a
ambiguidade do animal. Simbolicamente, era a sua correlação com o
sobrenatural que o tornava propício a práticas mágicas.
Para Mauss (2003), entre as diferenças encontradas entre ma-
gia e religião, uma delas refere-se, exatamente, ao sacrifício, que está
associado à religião, ao passo que o malefício é associado à magia.
Nesse sentido, os ritos acima elencados são ritos religiosos em que se
sacrificam gatos, que, não obstante, são também usados nos ritos
mágicos. O sacrifício, segundo Hubert e Mauss (2001), pode tomar
diversas formas. São sacrificados tanto animais quanto alimentos de
origem vegetal e deuses, estes na forma de humanos, de animais ou
de vegetais. Nos casos elencados acima de sacrifícios de gatos, como
o ritual é descrito superficialmente, não é possível uma análise mais
aprofundada, a não ser a indicação de que se trata de uma espécie de
bode expiatório ou, no ritual descrito por Hyams (1972), um substi-
tuto do deus.
Segundo Mauss (2003, p. 72), a relação entre magia e animais é
bastante comum:
a antiga strix, é uma feiticeira e uma ave. Depara-se com a
feiticeira fora de casa sob a forma de gato preto, de loba, de
lebre, com o feiticeiro sob a forma de bode etc. quando o
feiticeiro ou a feiticeira deslocam-se para causar dano, eles
o fazem sob sua forma animal, e é nesse estado que se
pretende surpreendê-los. [...] As feiticeiras européias, em
suas metamorfoses, não assumem indiferentemente todas

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238
Alguns aspectos simbólicos acerca do gato

as formas animais. Elas se transformam regularmente, uma


em jumento, outra em rã, outra ainda em gato etc.

O gato preto também é relacionado, no Brasil, à prática de


magia e diz-se que traz má sorte. No entanto, nossas crenças mági-
cas não pretendem que bruxas e feiticeiros transformem-se em ani-
mais. É interessante contrastar os animais elencados na citação aci-
ma com as séries elaboradas por Leach (1983): se a lebre, a rã e o
gato são facilmente classificáveis como ambíguos, a loba, o jumento
e o bode não o são. Além disso, é o gato preto que é relacionado,
especialmente, mas não somente, à magia e ao diabo (Hyams, 1972).
Hubert e Mauss (2001) indicam como o preto esteve relacionado a
divindades ctônicas e relatam sacrifícios de vacas negras e cavalos
negros para fazer chover, ou rituais que envolvem galos negros para
afastar a má sorte. Embora não se possa depreender daí uma lei geral
sobre o uso das cores em rituais ligados a cosmologias distintas, é
interessante marcar que as cores apresentam um simbolismo.
Nos casos apontados pelo autor, e dentro de sua teoria geral da
magia, “o poder mágico se deve, nesses diversos casos, à sua famili-
aridade com animais” (Mauss, 2003, p. 73), isto é, uma aliança entre
o mágico e o animal. Embora frequentemente se trate de um animal
em especial, Mauss indica que, “com muito raras exceções, não é
com um animal em particular, mas com uma espécie animal inteira
que o mágico tem relações. Desse modo, já, estas se assemelham às
relações totêmicas” (p. 73), quando o animal é tomado como totem
individual e não se pode mais consumir sua carne. Mauss aponta, ain-
da, que “o mágico é definido por suas relações com os animais, assim
também ele é definido por suas relações com os espíritos” (p. 76).
Espíritos e animais se confundem, ao que parece, na medida
em que se trata de animais mágicos, individualmente dotados de
poderes espirituais específicos (ou mana), e não de categorias ani-
mais, conforme indica a abordagem leachiana. A análise maussiana,
embora certamente uma inspiração para o arcabouço estruturalista
que viria depois, não chega às mesmas conclusões. Já que se está
privilegiando a abordagem estruturalista de Leach (1983) no pre-
sente ensaio, acredito que a ressalva seja necessária. Observe-se que

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Andréa Osório

Mauss (2003) não cria categorias anômalas para tais animais nem
tenta explicar por que esses e não outros. Limita-se, nesse ponto, a
uma coleta de dados históricos, religiosos e folclóricos que lhe per-
mita construir uma lei geral na qual os animais aparecem como ins-
trumentos ou metamorfoses dos mágicos para, ao fim, recair no co-
nhecido problema do totemismo.
Embora Mauss (2003) indique como a magia opera a partir de
inversões dos ritos religiosos, a própria metamorfose do mágico em
animal não é apontada claramente por ele como uma dessas inver-
sões que, para ser considerada como tal, necessita estar ancorada
numa separação entre homem/animal e natureza/cultura. Mauss tam-
bém aponta como os mágicos são pessoas especiais, extraordinárias,
mesmo quando uma população inteira é considerada assim, como,
por exemplo, os judeus diante do catolicismo medieval e os estran-
geiros em geral. Não decorre dessa conclusão, tampouco, uma per-
gunta sobre o status especial dos animais vinculados à magia, o quão
extraordinários eles seriam, conclusão que só é trazida à tona a par-
tir das análises estruturalistas.

Animais de estimação

Antes de serem animais de estimação, como apontam Hyams


(1972) e Thomas (1988), os gatos foram classificados como de natu-
reza vil. Não obstante, nos navios eram considerados parte da tripu-
lação, junto com os cães.
Na Idade Média, eles eram criados em casa, para combater
ratos e camundongos. É bem ocasional que apareçam como
companheiros e objetos de afeição [...]. Muitos chefes de
família eximiam-se deliberadamente de alimentá-los, de
modo a garantir que tivessem um incentivo para caçar. [...]
No entanto, ao começar o período Stuart [século XVII] já
eram numerosos os amigos dos gatos (Thomas, 1988, p. 131).

Serpell e Paul (1994) indicam que gatos e alguns pássaros eram


os únicos animais permitidos em conventos franciscanos, pois eram
vistos como úteis na manutenção da limpeza, numa explicação cla-
ramente funcionalista. Segundo Thomas (1988), no reinado de Carlos

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Alguns aspectos simbólicos acerca do gato

II (1660-1685), a maioria das famílias londrinas possuía pelo menos


um gato. Não obstante, foi nesse período que procissões antipapistas
queimavam gatos vivos. Só no século XVIII o gato consolidou sua
posição de animal de estimação: “é provável que o gato tenha adqui-
rido popularidade à medida que se elevavam os padrões de asseio
doméstico”, afirma Thomas (1988, p. 133) ao estilo funcionalista.
Segundo esse autor, um vendedor de comida de gato de meados do
século XIX chegou a afirmar que havia um gato para cada dez pesso-
as em Londres e que seu contingente era o dobro do canino. Indica,
também, que a primeira exposição de gatos na Inglaterra deu-se em
1871. Antes dos gatos, a Europa teria usado o furão como caçadores
de ratos (Hyams, 1972). Domesticado no Egito no segundo milênio
a.C., o gato doméstico seria o cruzamento de espécies selvagens do-
mesticadas ou não, introduzidas a partir de levas migratórias
germânicas.
A presença habitual de animais de estimação nos lares ingleses,
segundo Thomas (1988), consolidou-se entre os séculos XVI e XVII.
Contudo, Ritvo (1987) afirma que a popularidade desses seria uma
característica do século XIX. Antes disso, aqueles que demonstra-
vam afeto por seus animais de estimação eram vistos de forma nega-
tiva. Uma das características do animal de estimação, para a autora,
era sua função como objeto de afeto, ao contrário de animais que
deveriam trabalhar, como cães pastores, animais de tração, entre
outros. Essa separação entre animais que trabalham e os que não
trabalham é uma representação da relação entre as classes (elite e
trabalhadores). Nesse sentido, Ritvo indica que animais de estima-
ção eram vistos como um privilégio de classes abastadas, incluindo-
se a classe média. Nas classes trabalhadoras, a existência de animais
de estimação era má vista, reforçando noções de sujeira e insalubri-
dade relacionadas a essas classes.
A autora sugere, ainda, que a relação com o animal de estima-
ção, sobretudo na invenção e na criação de raças de cães para con-
cursos, era, no século XIX, uma relação de controle sobre a nature-
za. Assim, para controlar a natureza (ter um animal de estimação),
aparentemente um homem deveria antes dominar outros homens

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Andréa Osório

(pertencer à elite). Pesa, ainda, nesse novo tipo de relação com os


animais a emergência da ciência como uma forma de explicação e
domínio da natureza pelo homem. A análise de Ritvo (1987)
equaciona, portanto, um viés de classe com uma nova configuração
social na qual a relação natureza e cultura é distinta: de ameaça à
sobrevivência humana, diz ela, a natureza passa a objeto de especu-
lação e dominação através do conhecimento científico. É nessa nova
relação com a natureza que a sociedade inglesa passa, segundo a
autora, a adotar de forma positiva animais de estimação.
Serpell (1987), por outro lado, afirma que a associação entre
animais de estimação e elite é ilusória. Segundo o autor, há farta
indicação de que a realeza britânica fosse entusiasta dos animais de
companhia, mas sua existência entre as classes populares não deve
ser ignorada. O argumento de Serpell aponta para um discurso no
qual a elite é acusada de preferir animais de estimação a seres huma-
nos das classes trabalhadoras, criando assim uma associação entre
tais animais e uma vida de ostentação desnecessária e imoral. De
certa maneira, o próprio animal de estimação animalizava a elite,
apresentada como uma classe desumana. Todavia, as classes popula-
res europeias mantinham animais de estimação cuja existência, du-
rante o período inquisitorial, podia ser interpretada como prática de
bruxaria, baseada na noção mágica de familiar, que se refere, como
afirma Mauss (2003, p. 72-73), a “um auxiliar familiar do qual a
feiticeira permanece distinta. Assim é o gato Rutterkin das feiticeiras
Margaret e Fillipa Flower, que foram queimadas em Lincoln, no dia
11 de março de 1619”. Não sabemos o que houve com o gato.
Enquanto Ritvo (1987) analisa um discurso sobre os pobres e
os animais de estimação no século XIX, Serpell (1987) aponta para
um discurso sobre ricos e animais de estimação na Grécia Clássica,
no Império Romano e na Europa Medieval, entre outros. O conteú-
do parece ser o mesmo: a presença do animal de estimação animaliza
seu proprietário, tornando-se uma metáfora dele. Essa antipatia pela
sua presença nos lares europeus, segundo Serpell, não seria oriunda
de considerações econômicas pela vida dos pobres ou dos ricos, mas
de preocupações de cunho moral. É curioso comparar esses discur-
sos com as análises mais atuais (Kulick, 2009, por exemplo) nas quais
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242
Alguns aspectos simbólicos acerca do gato

a presença de animais de estimação nos lares urbanos ocidentais


humaniza tais animais. São, certamente, representações diferentes,
historicamente constituídas, em jogo e que, seguindo a sugestão de
Ritvo, parecem estar de alguma forma associadas ao tipo de relação
entre o homem e a natureza que a ciência moderna produziu. O
antigo temor da natureza nos tornava potencialmente animais, em
perigo de desumanização quando em contato com animais de esti-
mação. O atual paradigma de controle da natureza nos permite con-
trolar tais animais a ponto de vê-los como humanizados. Se os pró-
prios animais não mudam, certamente a sociedade e as ideias dos
homens é que terão mudado.
Para Thomas (1988), três traços distinguiam o animal de esti-
mação dos outros animais. Em primeiro lugar, ele tinha permissão
de entrar na casa; em segundo, possuía um nome; e, em terceiro,
não era comida. No caso dos animais de estimação, quanto mais mi-
mados, maior a possibilidade de um nome humano. Essa foi uma
tendência acentuada no século XVIII, indicando o vínculo mais es-
treito entre o animal e seu dono. “Por volta de 1700”, diz o autor,
“com freqüência os mascotes eram melhor alimentados que os em-
pregados” (p. 141), tendência que dá origem ao episódio que Darnton
(1986) analisa como ‘o grande massacre de gatos’, quando alguns
tipógrafos franceses matam uma grande quantidade desses animais
em função do que avaliam como maus-tratos, sobretudo aos apren-
dizes, vindos da parte dos patrões, que tratavam e alimentavam me-
lhor seus gatos do que seus empregados. Como forma de rebelião, os
tipógrafos matam uma série de gatos, começando pela gata preferida
da esposa do patrão, em um teatro que era, ao mesmo tempo, drama e
ritual no qual julgavam e condenavam os gatos no lugar dos patrões.
Para Leach (1983), os animais de estimação são uma categoria
ambígua na interseção entre o humano e o animal. Na verdade, seri-
am ambos ao mesmo tempo. A regra que restringe o consumo de
sua carne, ou, dito de outra forma, a regra que permite tomar como
animal de estimação aquele que não será comido (espécie, sobretu-
do, mas também indivíduo), é decorrente, segundo o autor, de uma
sobreposição estrutural entre o animal de estimação e a relação de
parentesco mais próxima – a de irmão/ã – guardada pelo tabu do
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Andréa Osório

incesto. Assim, pela analogia entre sexo e comida, o autor afirma


que o animal de estimação é parte da família e, portanto, não pode
ser comido.
Segundo Ritvo (1994), no estabelecimento da taxonomia cien-
tífica, muitos elementos da cultura popular foram levados em consi-
deração e posteriormente abandonados aos poucos. O gato era con-
siderado simultaneamente doméstico e selvagem, isto é, apenas par-
cialmente doméstico. Tomando-se o modelo de Leach (1983), os
animais em posição ambígua, como é o caso do gato, seriam caracte-
risticamente animais tabu, isto é, sagrados e sobrenaturais. A ligação
do gato com a feitiçaria, conforme apontado por Darnton (1986),
assinala essa característica. Tais animais são aqueles preferidos para
situações rituais e isso, em parte, explica por que aparecem como
animais sacrificiais em ritos europeus, conforme mostrado acima.
Para Leach, o tabu envolve, ainda, as questões alimentares. Assim, o
animal de estimação, tomado como uma extensão da humanidade, não
pode ser consumido, na medida em que isso seria canibalismo. Esse é
claramente o caso do cão no mundo Ocidental. Seria o caso do gato?

Comestibilidade

Pode-se discutir se gatos são comestíveis ou não no Brasil. Há


uma jocosidade recorrente sobre o churrasquinho de gato, ou filé miau,
que se refere à obscura procedência da carne servida em espeto e
churrasqueada na rua por vendedores ambulantes. Outra relação
jocosa diz que gatos viram tamborim, instrumento de percussão lar-
gamente utilizado nas baterias de escolas de samba que produziria
melhor som quando fabricado com couro de gato. Há, ainda, a ex-
pressão “comprou gato por lebre”, que se refere à comestibilidade da
segunda e não do primeiro.
Gatos não são comida e, portanto, seguindo o modelo leachiano,
seriam inconscientemente tabu. Contudo, os animais que são cons-
cientemente tabu, como é o caso do porco, podem ser comidos em
situações rituais específicas. As refeições que marcam algumas fes-
tas religiosas brasileiras (Natal, Ano Novo, ciclo junino, Semana Santa)
substituem o consumo de carne de boi pela de outros animais, o que

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Alguns aspectos simbólicos acerca do gato

demonstra seu caráter ordinário. O churrasco, contudo, como even-


to festivo que congrega amigos e parentes, é marcado pelo consumo
dessa carne em quantidades que ordinariamente não são consumidas,
dando o tom ritual da festa. Como a carne de gato só é possivelmente
consumida churrasqueada, através de um engano da parte do con-
sumidor que “compra gato por lebre”, isto é, gato por gado, deve-
mos nos perguntar o quanto esse consumo é um tabu consciente e o
quanto ele é inconsciente. O risco do consumo de carne de gato é
eminente para quem come o churrasco de rua (gato), sem se discu-
tir aqui o quanto o risco é real e o quanto é imaginário. Contudo, a
jocosidade é uma espécie de alerta: tal carne não pode ser consumida
conscientemente. Para evitar o risco, deve-se evitar o consumo da
carne vendida pelos ambulantes de rua. Assim, pode-se concluir que
se trata de um tabu inconsciente. Não há venda de carne de gato nos
mercados ordinários, portanto ela não é comida, mas algumas pes-
soas não se importam se a carne dos ambulantes é bovina ou felina
(real ou imaginariamente). É nessas situações que sugiro que a car-
ne felina seja vista como caça dentro do modelo leachiano. A caça é,
nesse modelo, tão ambígua quanto o animal de estimação.
Há indícios que apontam para outras ambiguidades do gato.
Além dos aspectos sobrenaturais e de consumo, diz-se comumente
que ele é um animal que caça (ratos), característica dos animais sel-
vagens. Não obstante, é também um animal de estimação e, portan-
to, humanizado. Seu status é ambíguo. Decorre dessa ambiguidade
que se brinque com a possibilidade de ingesta da carne de gato, brin-
cadeira que não é feita com relação ao cachorro, o que indica que
um seria mais sagrado do que o outro. Leach (1983) sugere que não
se separem, simplesmente, os animais em sagrados e profanos, mas
que se observe que alguns são mais sagrados do que outros.
Seguindo a proposta leachiana, o gato estaria na interseção en-
tre duas posições em três séries: ele seria ao mesmo tempo irmã-
casa-animal de estimação e vizinho-campo-caça. Em oposição ao cão
(irmã), ele seria vizinho, portanto possivelmente consumível. A caça
é, segundo o autor, por definição, uma posição ambígua. O ditado
que diz “levar gato por lebre” coloca os felinos na posição de substi-
tutos de um característico animal de caça, a lebre. O coelho, aparen-
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Andréa Osório

tado da lebre, é ainda mais ambíguo, porque pode ser caça, praga,
animal criado em fazenda e animal de estimação ao mesmo tempo.
Os animais de caça são comestíveis, como alguns animais criados em
fazenda; as pragas e os animais de estimação não o são. Encerrando
as séries em três grandes grupos, o autor indica que animais de esti-
mação e animais de caça formam um conjunto que está na interse-
ção entre humanos/animais domésticos (a), de um lado, e animais/
bichos selvagens (b), de outro, cada polo formando um oposto: (a)
humano/(b) animal e (a) doméstico/(b) selvagem. O animal de esti-
mação se encontra na interseção entre humano/animal; e a caça, na
interseção entre doméstico/selvagem.

O felino feminino

Uma das facetas simbólicas dos animais é sua associação com


masculinidades e feminilidades. Como afirma Motta (2008, p. 201),
“se tudo, na prática simbólica, pode ser classificado como masculino
ou feminino, também as representações sobre animais veiculam re-
presentações de gênero”. O exemplo mais famoso na antropologia
contemporânea é, certamente, o galo balinês. Geertz (1989, p. 283-
284) percebe simbolismos de gênero quando analisa a briga de galos
em Bali:
Bateson e Mead sugeriram até [...] que os galos eram vistos
como pênis separados, autofuncionáveis, órgãos genitais
ambulantes, com vida própria. [...] O fato de que eles são
símbolos masculinos par excellence é tão indubitável e tão
evidente para os balineses como o fato de que a água desce
pela montanha.

A partir de Geertz (1989), Motta (2008, p. 212) foi capaz de


perceber processo similar em competições de pássaros canoros em
Florianópolis:
A identidade entre homem e curió é inequívoca. O curió,
especialmente o ‘curió-valente’, preparado para torneios
de fibra, incorpora atributos de masculinidade
extremamente valorizados nesse contexto: valentia, fibra,
poder e capacidade de enfrentamento e intimidação.

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Alguns aspectos simbólicos acerca do gato

Diversos autores (DaMatta e Soárez, 1999; Darnton, 1986; Leach,


1983) associam o gato a questões de gênero. Leach (1983) aponta
que na Inglaterra cão e gato são, respectivamente, masculino e femi-
nino. O uso comum no inglês, como no português, é de indicação de
gênero masculino para o cão (fem. cadela). No português, gato é
masculino, mas no inglês ele seria feminino, apresentando-se um
termo particular (tom cat) para o gato macho. E, da mesma forma
que em português, cão e gato trazem, quando juntos, a ideia de uma
briga que, na língua inglesa, estaria restrita a maridos e mulheres.
Leach também aponta que gato é um insulto, ao passo que no Brasil
trata-se de elogio. O insulto, em língua inglesa, estaria vinculado,
ainda, ao pelo pubiano feminino, remetendo ao contexto sexual do
gato, como Darnton (1986) também aponta.
Assim como a esfera de atuação feminina é a esfera doméstica,
o gato também era considerado, segundo Darnton (1986), um ani-
mal da casa e relacionado ao dono dessa. Por extensão de sua relação
com duas características tão marcantemente femininas como a feiti-
çaria e o ambiente doméstico, o gato, indica o autor, também era
associado ao sexo. Na gíria francesa, o órgão sexual feminino era
denominado com palavras que significam “gato/a”. Mulheres e ga-
tos eram identificados em provérbios populares. “Em toda parte os
gatos sugeriam fertilidade e sexualidade feminina” (Darnton, 1986,
p. 127). No episódio do ‘grande massacre de gatos’, a relação entre
gato e feminilidade emerge quando Darnton aponta que a gata pre-
ferida da esposa do patrão foi a primeira a ser morta, sinalizando
metaforicamente a dominação sexual da esposa por parte dos tipó-
grafos rebelados.
Enquanto em Bali os galos são pênis metafóricos (Geertz, 1989),
no Brasil os pênis são pintos ou perus, nunca curiós. Na França
(Darnton, 1986) e na Inglaterra (Leach, 1983) as vaginas são gatas,
ao passo que no Brasil as gatas são mulheres (DaMatta e Soárez,
1999). O gato, em língua francesa e inglesa, nomeia a própria genitália
feminina, o que não acontece no Brasil. Ao que parece, como aponta
Leach (1983), não é qualquer animal que se presta, como categoria,
a relações metafóricas e/ou metonímicas. O gato está simbolicamen-

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te associado ao feminino, embora não seja o único animal nessa po-


sição. Conforme DaMatta e Soárez (1999), cobras, vacas, borboletas
e cabritas, animais do jogo do bicho, são metáforas de condutas
morais femininas no Brasil: a cobra e a cabrita sinalizam sexualida-
de, ao passo que a vaca representa a maternidade e a borboleta é uma
moça matrimoniável.
No fundo, o povo vê a borboleta como [mulher]
‘matrimoniável’ em oposição à cabra, que é uma presa
legítima. As primeiras seriam moças de família (e da casa);
as segundas, moças da rua. [...] A vaca, já vimos, é o bicho
símbolo da maternidade e do leite. É esposa, sogra e mãe. Já
a cobra é a mulher da rua experiente e sagaz (p. 150).

Classificando os animais do jogo do bicho em termos de gêne-


ro, os autores chegam aos seguintes conjuntos: a) masculino: águia,
touro, leão, elefante, galo e peru (estes últimos metafóricos da
genitália masculina); b) feminino, subdividido em b.1) casa (borbo-
leta e vaca) e b.2) rua (cabra, gato e cobra); e c) “coluna do meio” de
“bichos liminares”, como chamam os autores a zona de interseção
na qual não se pode definir estritamente nem masculino nem femi-
nino, ou seja, os animais que representam uma espécie de gênero
ambíguo, ligado à homossexualidade vista como um masculino
afeminado ou a uma masculinidade não hegemônica: veado, pavão,
avestruz, cabra e, novamente, gato. É interessante observar que não
há ambiguidade feminina, apenas masculina.
Não obstante se tratar, a meu ver, de uma classificação que con-
funde gênero e sexualidade, os autores apresentam-na apenas em
termos de “projeções sexuais”, “potencialidades sexuais” e “conotação
sexual”. O gato aparece, inexplicavelmente, tanto no conjunto b.2,
que se refere ao feminino “da rua”, quanto no conjunto c, que se
refere a uma pretensa zona de interseção entre masculino e femini-
no. Digo inexplicavelmente porque os autores, de fato, não o expli-
cam. O veado é, segundo eles, o animal que, “no Brasil, designa o
homossexual passivo masculino” (DaMatta e Soárez, 1999, p. 151).
O pavão, referido como vaidoso, apresentaria uma característica fe-
minina. A cabra é um homem subordinado, “um capanga”, tanto
quanto “uma moça livre”. O avestruz “é às vezes chamado de ‘bi-
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volume 12 - número 2

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Alguns aspectos simbólicos acerca do gato

cha’, fato que talvez se explique por se tratar de um bicho passivo no


embate, que, como o veado, corre velozmente, não podendo ser al-
cançado” (DaMatta e Soárez, 1999, p. 151). Não se explica a alocação
do gato na “coluna do meio”, a não ser através dos adjetivos “dissi-
mulado, sinuoso; lânguido”, de onde se conclui que sejam, confor-
me os exemplos acima, considerados como características femini-
nas, corroborando a noção de que seria um animal relacionado ao
feminino.

Bichanos, gatas e gatunos

Segundo DaMatta e Soárez (1999), na sociedade brasileira ‘ani-


mal’ e ‘bicho’ são categorias distintas: a primeira é englobada pela
segunda, que inclui, além dos animais, pessoas e seres sobrenatu-
rais. Mauss (2003, p. 74) afirma que os espíritos que auxiliam o
mágico “têm geralmente formas animais, reais ou fantásticas”. Como
categoria classificatória, ‘bicho’ seria usada para coisas ambíguas,
exóticas ou indefinidas, dizem os autores. Acredito que ‘bichano’,
palavra que também define o gato, parece apontar para essa
ambiguidade do animal definido, que, além de tudo, é sobrenatural,
“tem sete vidas”, dá má sorte e é animal sacrificial.
Em uma série de associações entre bichos e situações das quais
se pode depreender um palpite para “jogar no bicho”, DaMatta e
Soárez (1999) recolhem as seguintes associações acerca do gato: é
animal que pega ratos, associado a ladrões e à traição. Segundo os
autores,
O gato, como um tigre em pequena escala, também ‘só pega
rato à traição’ e, mesmo doméstico, é um animal que fica ao
lado ‘do fogão’ (onde dorme), preferindo os espaços
marginais e ambíguos da casa, como a cozinha (zona na
qual os alimentos se transformam em comida), a varanda, os
umbrais de portas e janelas e, naturalmente, os telhados
(todos situados entre a dimensão interna e externa da
moradia). Ademais, quando o gato está na rua, ele vaga com
outros gatos, formando bandos que, perambulando pela
noite, são uma metáfora perfeita para os bandos de marginais
que infestam a rua nas grandes cidades brasileiras (p. 135).

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Andréa Osório

É interessante observar toda uma gama de associações que mar-


cam o gato como animal ambíguo, portanto de pouca confiança. Se
‘bichano’ marca o gato como ‘bicho’, que pode ser sobrenatural, ‘ga-
tuno’ marca o ladrão como gato e o gato como ladrão, posto que
ambos trafegam pelos mesmos espaços físicos, já tornados espaços
sociais (Bourdieu, 1999). Dentro de casa, esse gato imaginado prefe-
re o ambiente feminino e subalterno da cozinha, tão ambígua quan-
to as próprias mulheres sob a ótica da dominação masculina
(Bourdieu, 2003). Mas, ao contrário dessas, trafega livremente en-
tre a casa e a rua, nunca apenas em uma. Na rua e nas interseções
entre essa e a casa (muros, telhados, umbrais), o gato se assemelha a
uma figura caracteristicamente masculina: o ladrão. Além de tudo,
gatos gostam de leite, alimento considerado por DaMatta e Soárez
(1999) como feminino.
Em oposição ao gato está o cachorro. Segundo esses autores, se
o gato está para o tigre numa série de oposição doméstico/selvagem,
o cão está para o leão, um animal nobre. Assim, rei da selva: ‘rei do
lar’. “O cachorro está para a parte interna (sagrada, ‘humana’, ínti-
ma, frágil, secreta e feminina) da casa como o gato está para suas
partes externas, que são públicas, visíveis e masculinas” (DaMatta e
Soárez, 1999, p. 135-136). Isso, contudo, não faz do cão animal fe-
minino. Segundo os autores, o latido é masculino, ao passo que o
miado é feminino. No caso do gato, afirmam, a relação com o uni-
verso feminino é tanto metafórica quanto metonímica, na medida
em que as mulheres podem ser gatas.
Em um esforço classificatório, DaMatta e Soárez (1999) cons-
troem várias séries de oposição para os animais que constituem o
jogo do bicho. Como meu interesse é uma análise simbólica do gato,
este material provou-se bastante rico em termos dos esquemas
classificatórios operantes na sociedade brasileira. Ao usar as análises
dos autores acerca do jogo, não opero, necessariamente, uma gene-
ralização das associações para toda a sociedade brasileira, mas uma
apropriação de tais ideias como parte do simbolismo envolvendo o
gato no Brasil.

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Alguns aspectos simbólicos acerca do gato

Segundo os autores, cães e gatos são animais ativos, pois são


caçadores, embora caçadores domésticos. O cão é apontado como
um intermediário entre as classes superiores e as inferiores, posto
que cumpre ordens e protege o “patrão”. O cão trabalha, o gato rou-
ba (como diz o senso comum: “um olho no gato e o outro no pei-
xe”). A relação canina com o humano, portanto, seria de solidarie-
dade, ao passo que a relação felina seria de traição, na medida em
que o senso comum brasileiro aponta que o gato não gosta das pes-
soas, mas da casa onde vive. Pode-se sugerir que seria visto como
um animal mais territorial do que afetivo. Em outra série comparati-
va, os autores indicam que, em termos de potencialidades sexuais, o
gato estaria associado a um feminino da rua, libertino, o que corro-
bora a ideia de que não é metáfora de afeto.
Para DaMatta e Soárez (1999), cães de raça, gatos, cavalos e
vacas de leite são sinais de superioridade social. Em oposição ao cão
de raça estaria o vira-lata, ao cavalo estaria o burro e à vaca estaria a
cabra, cada qual relacionado a um estrato social diferente. Não há
oposição ao gato, mas é interessante perceber como Darnton (1986)
analisa ‘o grande massacre de gatos’ a partir de uma ótica da revolta
de classe na qual os gatos estavam associados aos patrões burgueses,
mais bem tratados do que os aprendizes.
Essa lógica de associações por estratificação social não é con-
templada na análise de Leach (1983), especialmente voltada à com-
preensão de aspectos simbólicos relacionados ao ritual e à sacralidade.
Há que se questionar, portanto, se as abordagens são complementa-
res ou antitéticas. Nesse sentido, creio que o simbolismo envolvendo
o gato está muito mais fortemente ancorado em aspectos rituais,
dadas suas associações com o sobrenatural, do que em uma
estratificação social. No Brasil contemporâneo, parece-me que o gato
não é tão associado às elites quanto o cachorro, especialmente os de
pedigree, embora este não seja totalmente associado àquelas. Afinal, a
“vida de cão” não é, na expressão popular, uma vida confortável ou
luxuosa.
Em termos de sacralidade, cães e gatos seriam animais ambí-
guos, pois cão é sinônimo de capeta, ao passo que os autores associ-

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Andréa Osório

am o gato, inexplicavelmente, aos anjos. Nesse caso, creio que a aná-


lise foi infeliz. A abordagem de Leach (1983) apontaria que cães e
gatos são animais sagrados e que as operações de inversão marcam
essa sacralidade: se o cão é o melhor amigo do homem, no Brasil é
insulto usado para um homem canalha; se o gato é traidor e ladrão,
é elogio à pessoa bonita. Contudo, o cão seria mais sagrado do que o
gato, posto que a interdição do consumo da carne daquele é maior
do que a deste.
Não obstante, Ritvo (1987) afirma que no século XVIII inglês as
características morais atribuídas ao cão eram outras. Em vez de leal-
dade e afeto, pinturas e gravuras satíricas sugeririam que o cão re-
presentava bestialidade, vulgaridade e subversão. A lealdade ao mes-
tre humano não era questionada, mas alguns apontavam o cão como
malcomportado com a própria espécie, egoísta, cruel e injusto. Se
fosse possível uma generalização do contexto oitocentista inglês ao
contemporâneo brasileiro, ter-se-ia que se pensar em um processo
de continuidade entre o cão-capeta e o cão como animal egoísta,
cruel e injusto, em vez de um processo de inversão, como foi indica-
do acima. O mesmo deveria valer para o cão como categoria de in-
sulto no Brasil. É interessante, ainda, salientar que Leach (1983)
indica cão (dog) como uma inversão de deus (god).

Um animal limpo e independente?

Em seu clássico Pureza e perigo, Mary Douglas (1976) indica que


a noção de poluição não é física, mas simbólica. Chamando de mate-
rialismo médico o debate que indicava a carne suína como imprópria
para consumo devido às suas qualidades físicas nocivas e indicando
o porco como animal sujo, a autora aponta como as noções de lim-
peza e sujeira, pureza e poluição são categorias simbolicamente
construídas que não demandam uma realidade física.
O gato no Brasil é percebido pelo senso comum como um ani-
mal “limpo” (Oliveira, 2006), mas o que isso significa? A noção de
limpeza do gato é sustentada por dois argumentos gerais do senso
comum brasileiro: em primeiro lugar, ele “toma banho” quando
mantém o hábito natural da espécie de lamber todo o corpo sistema-

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252
Alguns aspectos simbólicos acerca do gato

ticamente; em segundo lugar, o gato enterra seus excrementos. O


“banho” do gato, associado à ideia de que gatos não gostam de água,
leva, na prática, a que esses animais de estimação não sejam banha-
dos com água e sabão por seus donos, ou seja, em geral, menos ba-
nhados do que os cães de estimação. Oliveira (2006), em pesquisa de
campo realizada em pet shops, indica que o público preferencial do
serviço de “banho e tosa” é o cachorro e que há poucos gatos. Se-
gundo ela,
Os principais clientes do ‘banho e tosa’ são os proprietários
de cães, seja pelo fato de existirem mais cães do que gatos
classificados como animais de estimação nos grandes
centros urbanos do país, seja devido à crença de que ‘gatos
não gostam de tomar banho’ ou que ‘se limpam com as
próprias lambidas’. [...] Os gatos, como já foi dito, são raros.
Porém, os poucos que tomam banho nas Pet Shops
geralmente dão mais trabalho para os tosadores e banhistas
pois, como não estão habituados com o banho, costumam
se comportar de forma agressiva e arredia, o que pode ser
comprovado ao analisar-se a tabela de preços de um banho
e tosa. [...] Os gatos encontram-se numa categoria
diferenciada e, apesar de serem animais de porte pequeno,
geralmente os preços referentes ao banho e tosa são
compatíveis com os dos cães de grande porte (p. 57-59).

Em outras palavras, a autora indica que não é costume ba-


nhar os gatos em pet shops, e, já que é costume banhar os cães, pode-
se concluir daí que os gatos tampouco são banhados nas casas onde
vivem. Eles não seriam banhados porque não há necessidade e, por
uma falta de adestramento do animal, quando banhados, resistem.
Essa resistência faz com que o preço do banho em gatos seja propor-
cionalmente maior do que em cachorros. Em termos econômicos,
haveria que se perguntar se o preço não se torna uma falta de estí-
mulo ao proprietário.
Se um animal jamais ou raramente é banhado na forma huma-
na, ou seja, com água e sabão, ele pode ser considerado limpo? Como
não se trata de materialidade, a questão não é, certamente, a limpeza
física, mas a interpretação do hábito natural da espécie como um
correlativo de um hábito humano (embora não somente humano):

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tomar banho. Assim, enquanto os cães têm que ser banhados por
humanos, os gatos banham-se a si mesmos, o que é um primeiro
indicativo da noção de que são independentes.
Quanto aos excrementos, os donos de cães devem recolhê-los
das ruas e calçadas quando levam seus cães “para passear”, uma
metáfora comumente usada no lugar de “excretar”. Os gatos, por
outro lado, enterram seus excrementos. Quando o animal não tem
acesso a terra, há um substituto industrializado, até onde pude veri-
ficar amplamente disponível nos pet shops e supermercados, chama-
do “areia sanitária”. A substância granulada é disponibilizada em uma
caixa para o animal, que, novamente por hábito inato, a utiliza para
depositar seus excrementos. A areia sanitária absorve a urina e o
gato cobre, sozinho, a urina e as fezes com a areia. Esses hábitos são,
eu sugeriria, interpretados como indicativos da limpeza do gato e de
sua independência. Além disso, na qualidade de caçador de ratos,
conforme já indicado nesta obra, o gato se torna simbolicamente um
purificador do ambiente, afastando um vetor de doenças. Afinal, um
animal que toma banho, produz uma espécie de fossa e afasta ratos
só poderia ser considerado limpo.
Outro aspecto que pode ser analisado acerca das representa-
ções contemporâneas sobre o gato no país é a ideia de que ele é um
ser independente. Como afirmam Saito et al. (2002, p. 125),
ao mesmo tempo, por suas características que foram
relacionadas com azar e doenças, muitas pessoas os vêem
como uma espécie de ameaça; outros, devido à
independência do gato que está entre o limiar de animal
selvagem e doméstico, o vêem como uma espécie arrogante
e prepotente.

A passagem acima indica representações acerca do gato na


sociedade brasileira. Como desenvolvido ao longo deste ensaio, o gato
aparece mais uma vez como ser liminar (Turner, 1974), anômalo ou
ambíguo (Leach, 1983), na medida em que não pertence nem à esfe-
ra selvagem nem à doméstica, apresenta poderes mágicos (azar) e
pode provocar doenças. Se Thomas (1988) afirma que o gato é intro-
duzido nas residências inglesas como uma espécie de agente sanitá-

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254
Alguns aspectos simbólicos acerca do gato

rio que combate ratos, portanto doenças, hoje parece que essa fun-
ção perdeu vigor e o cientificismo vigente tem condenado os felinos
como vetores de doenças, um papel coerentemente relacionado por
Saito et al. (2002) na passagem acima à má sorte. Além de vetor de
raiva (Genaro, 2010) e toxoplasmose (Saito et al., 2002), o gato seria
causador de asma e alergias (Hyams, 1972).
A afirmação de independência dos gatos, como é frequente no
senso comum, é sustentada por argumentos distintos, factuais ou
imaginários: caça e se alimenta sozinho (selvagem), se limpa sozi-
nho, sai da residência e retorna sozinho, permanece sozinho dentro
da residência (doméstico). Todas as ações elencadas indicam, propo-
sitalmente, que o gato não depende de humanos para sobreviver,
não obstante, a medicina veterinária aponta como esse grau de
(in)dependência é relativo, posto que é determinado pelo tipo de re-
lação que o animal mantém com os humanos. Conforme Genaro
(2010, p. 187-188),
O grau de dependência (dos humanos) que o gato apresenta
pode variar amplamente e, nesse aspecto, observa-se
importante detalhe a ser considerado, que são as populações
ferais, muito comuns entre gatos. Um gato feral pode ser
definido de várias maneiras, mas fundamentalmente essa
condição de ser feral, ou não, dependerá de sua relação com
a população humana. Sua dependência, especialmente para
alimento e abrigo, pode ser graduada, concebendo-se a
partir de grande dependência (como, por exemplo, um gato
mantido num apartamento, que dependerá de seu
proprietário para toda e qualquer necessidade) até um gato
que nasceu e se reproduz livremente numa ilha ou floresta,
totalmente afastado do contato humano (exemplificado o
animal feral típico, stricto sensu), e dentre esses dois extremos
há ampla gama de gradações.

Não se está, portanto, no plano da factualidade quando se


afirma a independência dos gatos, mas no plano das representações.
Eu gostaria de sugerir que a ideia de que o gato é um animal inde-
pendente – forjada a partir da interpretação de alguns de seus mo-
dos, mas, sobretudo, na forma como os humanos se relacionam com
eles e na comparação com outros animais, especialmente o cão –

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255
Andréa Osório

contribui para o abandono de gatos nas ruas, que formam colônias


urbanas tão comuns e invisíveis aos transeuntes que parecem ser
“um elemento ‘natural’ das ruas”, como afirma Genaro (2010, p.
188).
A questão da (in)dependência do gato é interessante na medida
em que ela toca no tipo de relação entre natureza e cultura que uma
sociedade imagina manter. Como aponta Ritvo (1987), a emergência
da ciência parece criar um paradigma de dominação da natureza.
Nesse sentido, a popularização dos animais de estimação é
equacionada pela autora com uma nova organização social. A domi-
nação da natureza é expressa de diversas formas e a criação de novas
raças de cães, expostas e premiadas em concursos criados exclusiva-
mente para essa finalidade, é um exemplo disso. Outra forma de do-
minação da natureza é criar um animal totalmente dependente de
humanos, como é o caso dos animais de estimação que vivem em
casas e apartamentos, dependentes de seus donos para ter acesso à
alimentação, à rua, à água, entre outros.
Gostaria de sugerir, portanto, que ver o gato como dependente
é colocar-se no paradigma cientificista de supremacia humana sobre
a natureza, mas também é vê-lo como um animal de estimação nas
séries analíticas descritas por Leach (1983), conforme elencadas an-
teriormente, em que o animal está mais próximo do humano. Ao
contrário, ver o gato como independente é colocá-lo mais próximo
do selvagem. Quando se diz que o gato não tem afeto pelo dono, mas
pela casa, é também um aspecto selvagem do gato que é enfocado,
salientando-se uma percepção de que ele não depende de humanos.
A relação entre gato e traição, conforme apontada por DaMatta e
Soárez (1999), parece corroborar essa independência que é, no mais,
uma incapacidade de controlar o animal. É necessário, entretanto,
se perguntar por que a pretensa independência do gato é
correlacionada por algumas pessoas, conforme citação anterior de
Saito et al. (2002), com arrogância e prepotência: possivelmente,
porque demonstra a incapacidade de controle total da natureza pelo
homem.

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256
Alguns aspectos simbólicos acerca do gato

Considerações finais

No presente ensaio tentou-se efetuar uma espécie de síntese


dos aspectos simbólicos relacionados ao gato encontrados na parca
literatura historiográfica e antropológica que menciona especifica-
mente esse animal. Amparado em tal material, o trabalho buscou
apresentar análises nas quais o gato figura como animal ambíguo,
portanto anômalo. Essa ambiguidade, lida à luz da teoria leachiana,
permite explicar por que o animal foi associado a práticas mágicas e
transformado em animal sacrificial em ritos europeus. Em ambos os
casos, a teoria leachiana permite perceber nos animais tabu e nos
animais de estimação uma condição anômala e ambígua.
Outro aspecto apontado neste trabalho foi a correlação entre o
gato e o feminino. Tanto na França (Darnton, 1986) quanto na In-
glaterra (Leach, 1983), o gato é associado ao feminino e à sexualida-
de. No Brasil, a associação não é direta, mas DaMatta e Soárez (1999)
apontam alguns aspectos do gato que podem ser relacionados ao
feminino. Animal diabólico relacionado a feiticeiras e à lua, especial-
mente quando preto como a terra, o gato aparece constantemente
cercado de símbolos femininos.
No Brasil, DaMatta e Soárez (1999) indicam como nossa socie-
dade faz uma leitura do gato como animal de espaços liminares (Turner,
1974). Busquei, na medida do possível, apresentar outras represen-
tações contemporâneas relacionadas ao gato na sociedade brasileira:
um animal que é visto como limpo e independente. Essas qualidades
atribuídas aos gatos fazem parte do imaginário nacional sobre eles e
corroboram as análises simbólicas sustentadas por Leach (1983) e
Douglas (1976). Ora puro, ora impuro; ora doméstico, ora selvagem;
ora dependente, ora independente; ora mágico, ora bode expiatório;
o gato parece guardar uma posição anômala para além de ser atual-
mente, sobretudo, um animal de estimação.
Ainda assim, o caminho percorrido até este posto não o exclui,
atualmente, dos maus-tratos que pareciam tão característicos do
universo medieval, sob uma ótica dos direitos dos animais. Se não se
queimam mais gatos em procissões religiosas, ainda se os matam em
colônias de animais abandonados nas grandes cidades (Saito et al.,

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257
Andréa Osório

2002). Esse não foi considerado um aspecto ritual da morte de gatos


no presente trabalho, mas acredito que mereça considerações futuras.

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Recebido em: 18/09/2011


Aceite em: 29/10/2011
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259
RESENHAS
Resenhas

ILHA
volume 12 - número 2

262
Resenhas

VIVEIROS DE CASTRO, Eduardo. Métaphysiques cannibales: lignes


d’anthropologie post-structurale. Tradução de Oiara Bonilla. Paris:
Presses Universitaire de France, 2009. p. 203.

Rafael Rocha Pansica


Universidade Federal de Santa Catarina
E-mail: rpansica@hotmail.com

M étaphysiques cannibales: lignes d’anthropologie post-structurale é o


livro mais recente do antropólogo Eduardo Viveiros de Cas-
tro, publicado pela Presses Universitaire de France em 2009, com
tradução para o francês de Oiara Bonilla. A proposta central do livro,
sugerida já no título, consiste em repensar o empreendimento an-
tropológico a partir das etnoantropologias praticadas pelos povos
ameríndios ou, dito de outro modo, a partir das filosofias da relação
implicadas em suas metafísicas canibais. Para o autor, as teorias an-
tropológicas devem se constituir como versões das teorias nativas.
O que está sendo proposto aqui é o estabelecimento de certa
relação de continuidade entre os discursos do nativo e do antropólo-
go.1 Mas que relação é essa? A proposta de Viveiros de Castro se
fundamenta sobre o pressuposto de que os termos desse encontro
intersubjetivo estão implicados na relação que estabelecem: implica-
ção assimétrica, visto que os termos são diferentes e irredutíveis en-
tre si. O ponto é que essa implicação significa uma desterritorialização
gradual de cada um dos termos envolvidos e, consequentemente, a
transformação deles: longe de uma identificação mútua (pois os ter-
mos são irredutíveis), a transformação dos termos se dá como um
processo de autodiferenciação. É por isso que, para o autor, o objeti-
vo do antropólogo não deveria ser o de se tornar um nativo, mas o de
diferenciar seu próprio pensamento, multiplicando-o das questões

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263
Resenhas

postas pelas filosofias e pelas metafísicas nativas. Entrevê-se, aqui,


como um dos corolários dessa proposta leva adiante o imperativo
político-metodológico do reconhecimento do nativo como um su-
jeito: aqui se trata, mais ainda, de reconhecer os nativos como criado-
res, uma espécie bem-vinda de teóricos ou filósofos a levantar ques-
tões que interessam ao antropólogo. Cabe observar, no entanto, que
as questões nativas se mostram muitas vezes completamente dife-
rentes das que o antropólogo formula: as coisas se passam desse modo
porque o campo de ação e relação do antropólogo não se manifesta
como um uni-verso: ao contrário, o ponto de vista do antropólogo se
constitui no espaço de implicação das diferentes ontologias e rela-
ção; no espaço da “síntese disjuntiva” (sensu Deleuze) dos discursos
do antropólogo e do nativo.
Dados os pressupostos, resta pensar a prática antropológica.
Como na relação com outrem o antropólogo deve multiplicar seu
próprio pensamento e estabelecer uma autodiferenciação conceitual?
Como propor uma teoria que seja uma versão das teorias do povo
com quem convive? Viveiros de Castro propõe a autodiferenciação
como uma relação de sentido fundamentada nas equivocações do en-
contro intersubjetivo. Por equivocação o autor se refere, aqui, a um
acordo conceitual aparente estabelecido nas relações de sentido en-
tre os discursos do antropólogo e do nativo – acordo aparente, por-
que oculta um mal-entendido mais fundamental (claro está que nem
todo acordo conceitual entre os discursos é aparente, mas muitos
são...). Dito isso, trata-se de saber perceber as diferenças operantes
em um acordo conceitual que imaginávamos ter estabelecido com o
discurso de outrem: tarefa que nos leva a restabelecer, em novos
termos, a relação de sentido com o discurso do nativo, reformulando
nossas questões. Trata-se, portanto, de um passo adiante na pesqui-
sa, o que equivale a afirmar que as equivocações não se constituem
como obstáculos. Ao contrário, é preciso saber estabelecê-las para
então seguir investigando a partir delas. Mas como estabelecê-las?
Aplicando nossos conceitos na economia teórica nativa, observando
seu comportamento para anotar seus pontos cegos e destacar aquilo
que eles não puderam entender apropriadamente. Eis a habilidade

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Resenhas

do antropólogo: saber perceber a alteridade referencial naqueles acor-


dos conceituais aparentes, estabelecidos na relação entre os discur-
sos. Assim, por exemplo, ao pesquisar e descrever o perspectivismo
ameríndio como um regime ontológico interperspectivo dado nas
relações sociais entre as diferentes espécies (os homens, os porcos,
as onças...), Viveiros de Castro percebeu que o conceito nativo de
ponto de vista não era o mesmo conceito de ponto de vista que com-
punha seu instrumental analítico: a homonímia dos conceitos não
garantiu a eficácia analítica de seu aparato conceitual, de modo que
foi preciso, para o autor, modificá-lo a partir da teoria implicada nas
concepções nativas sobre o que é um sujeito, um ponto de vista,
uma apreensão etc. Em suma: esse processo de investigação se dá,
justamente, como um processo de autodiferenciação conceitual ou
de multiplicação do pensamento do antropólogo.
Nesse ponto do argumento é possível retomar a proposta anun-
ciada nas primeiras linhas desta resenha. Esse fazer antropológico
proposto por Viveiros de Castro tem, como inspiração direta, a filo-
sofia da relação implicada nas metafísicas canibais ameríndias. Se-
não, vejamos. A sugestão do exercício antropológico como sendo o
da multiplicação do pensamento do antropólogo, a partir do estabe-
lecimento de uma experiência conceitual com o pensamento nativo,
remete, imediatamente, ao trabalho do autor sobre a dinâmica
relacional que descreve o canto cerimonial do moropïn’ã araweté, que
entoa suas canções a partir do ponto de vista do inimigo (Viveiros de
Castro, 2002): a imanência do outro é, de modo geral, o objetivo
envolvido no canibalismo tupi, tomado, pelo autor, como modo de
subjetivação. Da mesma maneira, a proposta da equivocação como
um método de tradução antropológico me parece, de modo geral,
inspirado no xamanismo amazônico e, em particular, na assimetria
de perceptos que descrevem os encontros intersubjetivos do
perspectivismo ameríndio. Enfim, a teoria proposta neste livro se
constitui como uma versão das teorias ameríndias, de modo que o
autor não está apenas a propor outro fazer antropológico (ou, me-
lhor dizendo, um “fazer antropológico outro”), ele também o
exemplifica e o pratica neste livro.

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Resenhas

Mas há uma segunda tese no Métaphysiques cannibales, a de reco-


nhecer que essa nova proposta não é exatamente inédita. Para Vivei-
ros de Castro, ela se constitui também como o desenvolvimento de
certos pontos da obra de Lévi-Strauss, autor que certa vez descreveu
a antropologia como “a ciência social do observado”: uma ciência
que adota o ponto de vista do “sistema de referência fundado na
experiência etnográfica” (Lévi-Strauss, 1967, p. 404). É nesse senti-
do que Viveiros de Castro qualifica sua proposta – e a de outros an-
tropólogos como Roy Wagner, Bruno Latour e Marilyn Strathern –
como uma proposta pós-estruturalista, procurando constituí-la como
desenvolvimento ou problematização positiva de certos insights lévi-
straussianos: em especial aqueles trabalhados nas Mitológicas (a
tetralogia, propriamente, e os três livros que a acompanham: A via
das máscaras, A oleira ciumenta e História de Lince), como, por exemplo,
o da dinâmica transformacional de um “dualismo em perpétuo
desequilíbrio”. Por fim, o pós-estruturalismo da proposta do
Métaphysiques cannibales se constitui também em rizoma com a obra
de G. Deleuze e F. Guattari, autores que, segundo Viveiros de Castro,
souberam extrair do estruturalismo as intuições mais originais so-
bre a filosofia da relação e da diferença implicada nesse movimento,
para então seguir por outros caminhos. A leitura do trabalho deleuze-
guattariano como pós-estruturalista constitui-se como tese que o
autor vem defendendo com o filósofo Patrice Maniglier: essa tese se
sustenta, entre outros pontos, na observação de que a linguagem
analítica deleuze-guattariana também passa pelo vocabulário biná-
rio do estruturalismo, embora seja desenvolvido aqui em aliança com
o que está envolvido nos processos semióticos da metonímia, da
indicialidade e da literalidade (recusando, assim, a metáfora, tão es-
truturalista). De todo modo, a obra de Deleuze e Guattari é inspira-
ção direta do Métaphysiques cannibales: em primeiro lugar, ao propor
repensar a antropologia, parece-me que o empreendimento deste
livro remete àquele realizado em O que é filosofia? (Deleuze e Guattari,
1991), mas, mais importante, as linhas para uma antropologia pós-
estrutural ou antinarcísica se tecem através do uso de conceitos

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deleuze-guattarianos como multiplicidade, devir, síntese disjuntiva,


desterritorialização, implicação etc.
É por isso tudo que comemoramos a chegada de Métaphysiques
cannibales e de sua antropologia política que nos parece, verdadeira-
mente, um instrumento insurreicionário, ao propor dispor os dis-
cursos nativos em posição de transformar os discursos antropológi-
cos e, assim, o que é mais importante, ajudar no processo de autode-
terminação conceitual (ou seja, ontológica) dos povos do planeta.

Nota

1
Uma relação de continuidade e de equivalência epistemológica, pois se trata da
interação entre dois discursos, duas teorias.

Referências
DELEUZE, Gilles; GUATTARI, Félix. O que é filosofia? Tradução de Bento Prado
Jr. e Alberto A. Muñoz. São Paulo: Ed. 34, 1991.
LÉVI-STRAUSS, Claude. Lugar da antropologia nas ciências sociais e os
problemas colocados por seu ensino. In: ______. Antropologia estrutural. Rio de
Janeiro: Tempo Brasileiro, 1967. p. 385-424.
VIVEIROS DE CASTRO, Eduardo. A imanência do inimigo. In: ______. A
inconstância da alma selvagem – e outros ensaios de antropologia. São Paulo: Cosac &
Naify, 2002. p. 265-294.
______. Perspectival Anthropology and the Method of the Controled
Equivocation. Tipití, UK, v. 2, n. 1, p. 3-12, 2004.

Recebido em: 04/06/2011


Aceite em: 25/10/2011

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ROCHIETTI, Ana María; TAMAGNINI, Marcela (Comps.).


Arqueología de la frontera: estudios sobre los campos del sur
cordobés. Rio Cuarto: Editorial de la Universidad Nacional de Río
Cuarto, 2007. 316 p. Con fotografías, mapas y croquis.

Horacio Miguel Hernán Zapata


Universidad Nacional de Rosario, Argentina
E-mail: horazapatajotinsky@hotmail.com

U na de las preocupaciones centrales de las diversas


investigaciones que se dieron con la renovación historiográfica
argentina a partir de la década de 1980 fue la necesidad de analizar la
construcción social, política y territorial del espacio que se definió
como “nacional” a lo largo del siglo XIX y principios del XX. Hoy
sabemos que dicho espacio no sólo incluía a varias regiones
atravesadas por múltiples conexiones a partir de sus circuitos de
intercambio y sistemas productivos. También es posible aseverar que
se trataba de un espacio que supuso el desarrollo de intensos conflictos
por la ocupación y control de áreas estratégicas por parte de múltiples
agentes de la realidad social y política del momento. En el cuadro de
las líneas de investigación que permitieron avanzar en el sentido
reseñado, se encuentran los denominados “estudios de frontera”.
Una muy rápida revisión de los estudios de fronteras en el campo de
las ciencias sociales nos posibilitaría observar que los avances han
sido considerables tanto en lo que hace al aspecto metodológico como
al temático.
El principal aporte ha sido, sin lugar a dudas, la reformulación
del concepto de frontera como una línea que separaba dos mundos
en conflicto, proveniente de un enfoque político-histórico y militar
por mucho tiempo dominante en las posiciones nacionalistas. Tal

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Resenhas

enfoque fue reemplazado por otra perspectiva más amplia y flexible


que, conjugando los planteos de la historia, la antropología, la
sociología y de diferentes ramas de la geografía, interpreta a la frontera
como un área donde se producen fenómenos múltiples y dinámicos
de interrelaciones entre sociedades distintas, pero siempre en contacto
– cualquiera sea la modalidad de vinculación existente (intercambios
pacíficos, relaciones desiguales y/o conflictos) – y en el marco de
contextos históricos y culturales específicos diseñados por la
capacidad de agencia y control que se ejerce en los márgenes
territoriales. En efecto, se comenzó a matizar el énfasis puesto hasta
el momento en la conflictividad interétnica y a mostrar la existencia
de períodos de relativa tranquilidad que permitieron la vinculación
entre sociedades indígenas e hispanocriollas a través del
establecimiento de redes comerciales, reducciones y prácticas
evangelizadoras de las distintas órdenes, acuerdos diplomáticos
interétnicos y tratados de paz etc.
Precisamente, los artículos reunidos en la compilación
Arqueología de la frontera: estudios sobre los campos del sur cordobés dan
cuenta de esas innumerables situaciones, actores y prácticas que
moldearon aquel mundo fronterizo que escapaba a los férreos
parámetros delimitados por las agencias del Estado Nacional.
Deconstruir tales límites arbitrarios y, mediante ello, mostrar el
tránsito cotidiano de personas y elementos culturales de un lado a
otro de la hipotética línea de separación es una de las claves que
transita las páginas de la obra. Además, cabe destacar que los artícu-
los que integran la compilación –algunos de ellos dados a conocer
previamente a través de versiones preliminares en encuentros cien-
tíficos y publicaciones especializadas – son el producto de un trabajo
común que desarrollan profesionales docentes e investigadores
nucleados en el Laboratorio de Arqueología y Etnohistoria de la
Universidad Nacional de Río Cuarto. En este sentido, la recuperación
de aquello producido en la continuidad de proyectos personales y
colectivos de investigación, en los debates sostenidos con otros cole-
gas en seminarios, congresos y jornadas y en las aulas con los

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Resenhas

estudiantes, es otra de las claves que permiten entender su


transformación en los seis capítulos de este libro.
En el primer capítulo, Marcela Tamagnini presenta un minuci-
oso estudio donde examina las características del conflicto interétnico
que se desarrolló en la década de 1860 en la frontera sur de Córdoba.
De acuerdo con la autora, dicho conflicto estuvo permeado tanto
por las acciones desplegadas para concretar la unificación del Estado
argentino como por las resistencias que este proyecto generó, en
especial aquellas protagonizadas por las montoneras provinciales li-
deradas por el Chacho Peñaloza en 1862 y 1863 y por Felipe Varela
en 1867. Estos levantamientos trastocaron el complejo panorama
político y social regional, sumando un componente más al largo
conflicto interétnico que se expresó – conforme las coyunturas lo
posibilitaban – a través de la acción combinada de las montoneras
provinciales con las invasiones indígenas ranqueles que convulsionaron
el espacio fronterizo del sur cordobés a partir de 1861. Deteniéndose
en este tema poco explorado por la historiografía argentina,
Tamagnini observa que el tránsito de exiliados políticos, prófugos de
la ley y desertores de las milicias entre la frontera y las tolderías, el
intercambio de información, los estallidos simultáneos de ambas
fuerzas e incluso la incorporación de indígenas en las montoneras
son algunos de los datos que nos permiten ratificar – como lo han
hecho otros estudios – el complejo haz de relaciones que vinculaba
al mundo indígena con la sociedad hispanocriolla y viceversa a tra-
vés de la fluctuante línea que marcaba, de manera no muy precisa,
los espacios formales que cada uno de ellos controlaba. En tanto que
la autora no dicotomiza entre montoneras federales y malones indí-
genas, sino que las une y suma conceptualmente para brindarnos
una imagen histórica más heterogénea y compleja, pone de manifiesto
las diversas dinámicas que resultaron de un mismo fenómeno histó-
rico: las oposiciones al orden mitrista.
Ernesto Olmedo se ocupa de la frontera militar en el segundo
capítulo. La estructura defensiva, que comprendía diferentes tipos
de asentamiento como fuertes, fortines, postas y campamentos, estaba
basada en dos principios básicos: uno estático, que conducía a

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Resenhas

establecer una línea de fortificación, imaginaria y endeble, que


procuraba demarcar las tierras apropiadas, las incipientes estancias
y/o campos de rodeo de ganado y los caminos; el otro temporal, puesto
que la primera de estas líneas, denominada “del río Cuarto”,
permaneció por más de ochenta años asentada sobre dicho accidente
natural. El autor efectúa un repaso histórico sobre la lenta
constitución de esa línea militar y sus diferentes movimientos –
primero la del río Cuarto (1784), luego la del Quinto (1869), la
“retaguardia entre ambas” (1871) y la correspondiente al Proyecto
del Ministro Alsina (1876) –, describiendo tanto las características
como las funciones de los diferentes asentamientos militares, para
finalmente asentar que la táctica en la cual se asentaron los dos
principios mencionados fue la permanente movilización de la tropa.
En función de esta premisa, Olmedo considera las distintas fuerzas
militares involucradas en la frontera – ejército y milicias – los meca-
nismos de reclutamiento y las políticas proyectadas por las autorida-
des nacionales y locales, tanto voluntarias como compulsivas, para
remediar la constante falta de fuerzas militares. De esta manera, el
fuerte aparece como un locus en el que se sobrellevaban los intentos
del Estado Central de subordinar a la población rural, imponiéndole
un orden político y social bajo la forma de un servicio militar
obligatorio en las milicias o mediante la persecución y reclutamiento
de vagos, malentretenidos y ladrones sancionados por los
“reglamentos de campaña” incitados por los grupos propietarios de
la región. Pero también se asoma el retrato del fuerte como una are-
na desde donde fue viable para las poblaciones de la frontera formu-
lar operaciones de resistencia frente al ordenamiento social y
económico que el Estado en formación pretendía imponer. Algunos
de esos focos se manifestaron solamente de manera subrepticia, como
la apelación al recurso de la deserción individual o colectiva, mientras
que otras estrategias adquirieron más notoriedad, desenlazándose
en último caso en historias de abiertas sublevaciones y/o
levantamientos armados.
Con el tercer capítulo, Graciana Pérez Zavala contribuye con
una investigación cuyo objetivo principal es explicar las razones por

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Resenhas

las cuales el Gobierno Nacional logró conducir los movimientos de


los ranqueles en la década de 1870. La historiadora plantea que en
este período la administración central arrinconó territorial y
políticamente a los indígenas mediante una política que conllevó,
simultáneamente, la puesta en práctica de ofensivas bélicas, proyectos
colonizadores y pactos diplomáticos. En efecto, los avances paulati-
nos de la línea militar hacia el sur, las “corridas” y campañas puniti-
vas sobre los toldos principales o más cercanos a la frontera, la
concreción de tratados de paz con determinadas parcialidades indí-
genas y la instalación de reducciones de ranqueles en los fuertes del
río Quinto fueron algunas de las estrategias que posibilitaron, por
un lado, asegurar el repliegue de los indígenas y la neutralización de
sus malones sobre la frontera en el corte plazo; y, por el otro, concretar
materialmente el plan de avance territorial en el largo plazo. No
obstante, la mirada vertida por la autora no registra un camino
interpretativo lineal, en términos de acciones y reacciones, o causas
y consecuencias inmediatas. Muy por el contrario, devela con astucia
e inteligencia la complicada trama de las relaciones intraétnicas e
interétnicas que tiñen los vínculos, alianzas y enfrentamientos así
como los factores que incidieron en sus trayectorias. De este modo
Pérez Zavala reconstruye el camino que va desde el acercamiento
entre el gobierno de la Confederación y los grupos ranqueles hacia la
década de 1850, momento en el cual los indígenas explotaron al
máximo su capacidad de negociación en un escenario salpicado por
las disputas, tensiones y desconfianzas entre el Estado de Buenos
Aires y la Confederación, pasando por la coyuntura histórica abierta
por la batalla de Pavón y el correspondiente recambio en la correlación
de fuerzas a nivel nacional. Es por entonces cuando emerge esa suerte
de alianza entre los ranqueles y las montoneras provinciales en
oposición al gobierno de Mitre analizado previamente por Tamagnini,
para finalizar en el quiebre del equilibrio de poder entre los ranqueles
y el Gobierno Central en el ocaso de la década de 1860, cuando ya la
dirigencia argentina ha resuelto gran parte de sus frentes de conflicto
y ha podido avanzar territorialmente sobre la frontera sur. En ese
marco, el Estado Central impone a las tribus condiciones de paz

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Resenhas

unilaterales, recortando sus márgenes de negociación política y


obligando a realizar reacomodamientos en el interior del campo in-
dígena, alterando de esa forma el tablero de las alianzas grupales y
étnicas, modificaciones que terminan definiendo el consecuente
arrinconamiento político.
Finalmente, a partir de una investigación sustentada en la
arqueología del Fuerte de las Achiras – fundado en 1832 y recons-
truido tres veces a lo largo de 34 años hasta su desactivación en 1869
– y la Posta militar de Chaján – que data del año 1871 –, Flavio Ribero
y Ana María Rochietti procuran demostrar, tanto en los capítulos
cuatro y cinco como en el epílogo del libro, que los vestigios materiales
de ese mundo hacen posible, en primer lugar, la construcción de
una Arqueología de la Frontera de carácter social y de una
Antropología del Desierto; y, en segundo lugar, su descubrimiento
relativamente tardío viene a completar la interpretación que sucesivas
generaciones de historiadores han esbozado desde el momento mismo
en que una y otro, la frontera y el desierto, en tanto constructos
sociales e intelectuales de una etapa, dejaron de existir. Respecto del
primer aspecto, Rochietti remarca que los abordajes arqueológicos
tradicionales privilegiaron el estudio de pasados más remotos, rele-
gando así a la arqueología de la frontera a un espacio marginal en la
agenda investigativa, situación que se fue modificando en los últi-
mos años a partir de los avances empíricos y conceptuales antropo-
lógicos e históricos sobre la temática. La autora pasa revista a las
primeras pesquisas que se dieron en el sentido reseñado, dando cuenta
de la heterogeneidad de los problemas, enfoques y metodologías, un
ejercicio en el que además puede leerse su propio posicionamiento
conceptual y epistemológico en el marco de la discusión general so-
bre la especificidad y características de la Arqueología Histórica. En
lo subsiguiente, Rochietti concentra su estudio en la arqueología del
fuerte de Achiras y del fortín de Chaján, aportando para estos dos
sitios una pormenorizada descripción y contextualización a partir de
los registros materiales que se conjugan con la permanente consulta
de fuentes documentales. A su turno, Ribero indaga las razones que
llevaron a avanzar a los pobladores rurales más allá de los límites

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demarcados por la línea de la frontera del río Cuarto desde la época


colonial, cuando Chaján aparece mencionado tempranamente como
un paraje que más tarde se constituiría en una Estancia, luego en un
vecindario y finalmente en una Posta Militar. En cada momento, el
autor reconstruye las particularidades del poblamiento y la decisiva
influencia que tuvieron sobre ese paraje tanto las oscilaciones de la
conflictividad interétnica como las modalidades de la explotación rural
y las disputas jurisdiccionales entre las provincias de San Luis y Cór-
doba por tal espacio.
En un plano de reflexión más general, nuestro breve racconto de
lo que el futuro lector podrá encontrar en las páginas de Arqueología
de la frontera debe considerarse, huelga decirlo, como una síntesis de
los capítulos que no le hace justicia al contenido de un libro rico en
datos pero por sobre todo en análisis e interpretación. Es así que, en
vistas de la escasez de trabajos previos sobre el tema y la región, la
obra se presenta como un verdadero libro de cabecera, ya que a la
incursión conjunta que hacen historiadores y arqueólogos se agrega
la elección más que oportuna de abordar, en ciertos casos, agentes y
problemáticas casi ignoradas por la historiografía cordobesa, dejando
intencionalmente a un lado otras más trabajadas por el campo
académico regional. Tenemos aquí, pues, un análisis minucioso y
concreto de esos fenómenos tan fatigados por la literatura antropo-
lógica (las relaciones interétnicas) como por la historia nacional (los
procesos de construcción estatal y sus resistencias), acompañado por
excelentes mapas, croquis e imágenes que no sólo ayudan al lector a
ubicarse constantemente, sino que lo distienden e incluso alivian la
minuciosa estrategia interpretativa, de gran sensibilidad conceptual
y descriptiva, puesta en juego en cada capítulo. Pero también conta-
mos con un excelente material que ofrece una visión sugestiva y
crítica acerca de la labor que compete a las ciencias sociales hoy que
– a juzgar por los tiempos que corren – mucho tienen para decir y
hacer todavía en lo que respecta a los distintos contextos y situaciones
de frontera, donde subyace una cultura distinta a la que impera al
interior de cada uno de los países. Una cultura resultado de la
hibridación de costumbres, tradiciones, creencias y valores que, en

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Resenhas

su mismo tejido, genera desigualdades y rechazos, tanto entre los de


adentro como los de afuera. Por todo lo antedicho, es de esperar que
su aparición sirva de disparador para nuevos estudios afines a la
arqueología histórica que continúen o complementen al que hoy
pone a disposición de la comunidad científica y del público en gene-
ral este equipo interdisciplinario de la Universidad Nacional de Río
Cuarto.

Recebido em: 15/09/2011


Aceite em: 31/10/2011

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Resenhas

FLEISCHER, Soraya; SCHUCH, Patrice (Orgs.). Ética e


regulamentação na pesquisa antropológica. Brasília: Letras Livres/Ed.
Universidade de Brasília, 2010. 248 p.

Rui Massato Harayama


Universidade Federal de Minas Gerais
E-mail: rui.harayama@gmail.com

A publicação desta coletânea em meados de 2010 poderia passar


despercebida entre outras tantas que foram publicadas no mes-
mo período, atestando o vigor da área de antropologia assim como a
multiplicação das especializações da disciplina em linhas de pesquisa
e de suas respectivas publicações. Entretanto, a coletânea Ética e re-
gulamentação na pesquisa antropológica trata de um tema de interesse
de todos os antropólogos brasileiros e reatualiza o debate sobre a
ética em pesquisa antropológica, cuja última aparição em forma de
coletânea se deu em 2004, com a publicação de Antropologia e ética: o
debate atual no Brasil. Com isso, não estamos insinuando que o debate
sobre ética em antropologia esteja limitado a essas duas obras, a exis-
tência da Comissão de Ética dentro da Associação Brasileira de An-
tropologia é um referencial que pode ser lembrado para atestar que
o tema sempre esteve presente no debate brasileiro. Entretanto, uma
particularidade presente na obra de 2004 se acentua nesta recente
coletânea: a presença de normatizações da investigação antropológi-
ca através dos Comitês de Ética em Pesquisa (CEPs). Se em 2004 esse
tema aparecia como uma questão específica da antropologia realiza-
da em interface com a medicina institucionaliza, o quadro em 2010
é diferente e o Sistema Brasileiro de Regulação de Pesquisas envol-
vendo Seres Humanos (Sistema CEP-Conep) começa a estender sua
ação para qualquer forma de pesquisa institucionalizada. Esse novo

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Resenhas

quadro contextual é o ponto central do apanhado desta coletânea,


tanto positivo quanto negativo. E nos interessa observar o rendi-
mento dessa especificidade para o debate antropológico brasileiro
sobre a ética em pesquisa.
A obra é apresentada de forma a espelhar o seminário ocorrido
em novembro de 2009 na Universidade de Brasília. Dessa forma, a
sua distribuição em três partes, cada qual seguida por comentários
que ressaltam pontos do conteúdo de cada apresentação, tenta con-
centrar questões com o intuito de pautar o diálogo com as regulações
vigentes no Brasil, um movimento definido pelas organizadoras do livro
como sendo um sinal verde para o diálogo com as arenas oficiais de
regulação da pesquisa com as quais antropólogos lidam diretamente.
Não parece necessário escrever um comentário sobre cada ca-
pítulo, uma vez que a abertura realizada pelas organizadoras conse-
gue sumarizar as questões centrais da obra, que se encontra dispo-
nível no endereço eletrônico <http://www.anis.org.br/
arquivos_etica_antropologica.pdf>.
Entretanto, em grande parte das reflexões, a ética em pesquisa
em antropologia é desenvolvida e pensada tendo como modelo ne-
gativo o Sistema CEP-Conep, com suas regulamentações,
normatizações e procedimentos padrões. Na economia dos argumen-
tos dos antropólogos encontrados nesta obra, é contra o Sistema CEP-
Conep que se desenvolve a especificidade do trabalho antropológico.
Luís Roberto Cardoso de Oliveira, cujo artigo abre a coletânea, reite-
ra o argumento já desenvolvido em obra anterior sobre o tema de
que antropólogos realizam pesquisa com seres humanos e não em
seres humanos (p. 30). Esse é um artifício poderoso utilizado para
desenvolver uma série de pares opositores entre a pesquisa na antro-
pologia e nas ciências biomédicas. Dessa forma, a pesquisa com seres
humanos partiria do pressuposto de uma interlocução e do compro-
misso com o grupo pesquisado, que vai além da pesquisa de campo
(p. 30), em contraste com os pressupostos das pesquisas biomédicas,
que partiriam de um pressuposto de intervenção e cujos compro-
missos estariam limitados ao momento da pesquisa.

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Resenhas

É seguindo esse tipo de argumento que Fernanda Vieira apre-


senta suas desventuras ao lidar com o CEP de um hospital público
que impossibilitou a realização de sua pesquisa dentro da instituição
hospitalar. O texto é valioso por apresentar um elemento raramente
tornado público: a transcrição da árida comunicação entre secreta-
ria executiva de um CEP e a pesquisadora, que questionava a compe-
tência científica do comitê para julgar a qualidade metodológica e
teórica da sua pesquisa antropológica. A reflexão final da autora apon-
ta para um argumento que se repete em outras literaturas críticas
sobre o sistema: o modelo brasileiro é burocrático e o seu desempe-
nho é inferior a outros encontrados no mundo, no caso de Vieira, o
modelo estadunidense. É nessa mesma esteira de críticas ao modelo
de regulação da pesquisa que Luciane Ouriques Ferreira expõe a pro-
blemática do uso do Termo de Consentimento Livre e Esclarecido na
pesquisa em ciências humanas e Raquel Lima tece reflexões sobre as
relações de poder entre pesquisador e CEP replicadas na relação de
poder das ciências biomédicas sobre as ciências humanas.
A questão da assimetria das ciências humanas em relação às
biomédicas é recorrente quando se discorre sobre a regulação da
ética em pesquisa, seja no Brasil, seja alhures. Esse parece um con-
senso para diferentes autores que caracterizam esse movimento como
a instauração de um paradigma biomédico da ética em pesquisa por
meio de documentos reguladores e modelos de controle e avaliação.
O histórico da ética em pesquisa apresentado por Débora Diniz é
essencial para compreender o cerne da questão e das complicações
encontradas ao transportar essa problemática ao campo das ciências
humanas: os diferentes entendimentos sobre o que seja e para que
serve a pesquisa científica. Diniz apresenta a experiência de coorde-
nação do Comitê de Ética em Pesquisa do Instituto de Ciências Hu-
manas da Universidade de Brasília CEP-IH/UnB, o primeiro exclusi-
vo para as pesquisas em ciências humanas e creditado junto ao Conep
(Conselho Nacional de Ética em Pesquisa). Em sua breve exposição,
a autora apresenta um indicativo do que pode ser considerado um
termo mediador com o Sistema CEP-Conep: a caracterização das pes-
quisas em ciências humanas como portadoras de um risco mínimo.

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278
Resenhas

Ou seja, para implantar um modelo de revisão da ética em pesquisa


em ciências humanas que conseguisse dialogar criticamente com o
modelo brasileiro instituído é preciso manter a gramática do risco
presente, ainda que em um patamar mínimo. É advogando essa
especificidade que se torna possível questionar procedimentos con-
siderados fundamentais a um projeto de pesquisa enviado a um CEP,
mas que contrariam os pressupostos metodológicos de uma pesqui-
sa em ciências humanas, como o roteiro de perguntas estruturado e
o Termo de Consentimento Livre e Esclarecido.
Esse parece um ponto fundamental da caracterização da pes-
quisa dentro do Sistema CEP-Conep e que é ressaltado por Dirce
Guilhem e Maria Rita Carvalho Garbi Novaes. As duas pesquisadoras
que possuem graduação na área da saúde e pós-doutorado em Bioética
partem de um ponto de vista diferente dos outros autores da coletâ-
nea e apontam para as semelhanças entre pesquisas biomédicas e
sociais, sendo uma delas a variável riscos-benefícios. Ou seja, para
além das especificidades do campo humanístico ou biomédico, para
as autoras o risco é característico da pesquisa científica e não exclusi-
vo da investigação associada a uma área específica do conhecimento.
Em sua grande maioria, os artigos presentes nesta coletânea se
preocupam em delinear fronteiras e associações do que seja a parti-
cularidade de cada área, demarcação a partir da qual se torna possí-
vel a diferenciação de uma ética da antropologia de uma da
biomedicina.
Entretanto, Cláudia Fonseca e Dora Porto parecem observar nas
novas regulamentações da pesquisa no Brasil um momento reflexi-
vo sobre a relação dos pesquisadores com as populações pesquisadas
e indicam caminhos que explicam por que antropólogos deveriam se
interessar pela regulação da pesquisa científica.
Cláudia Fonseca tece sua reflexão a partir da contenda, em 2008,
envolvendo, de um lado, neurocientistas interessados em mapear a
‘mente criminosa’ de menores infratores e, de outro, diversos seto-
res da sociedade, incluindo cientistas sociais que acusavam as pre-
missas eugenistas de tal pesquisa. Essa discussão coloca no centro
do debate uma pergunta que parece percorrer o livro todo: quem

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volume 12 - número 2

279
Resenhas

deve decidir o que é um bom fazer científico? No calor da contenda,


o argumento utilizado pelos cientistas interessados em mapear a
mente homicida era sumário: as críticas à pesquisa vinham de pesso-
as que desconheciam os avanços da ciência, leigos alheios às inova-
ções da área que não deveriam opinar sobre o livre fazer científico.
Para Fonseca, citando os estudos sociais da ciência, há uma grande
quantidade de pesquisas que demonstram a imbricação entre técni-
ca, política e ética, e, dessa forma, seria necessário investir em
tecnologias do diálogo em vez de demarcar fronteiras científicas nas
questões referentes à regulação da pesquisa (p. 61). Em outros ter-
mos, a inexistência de um livre fazer científico dissociado da política
torna a arena de decisão sobre a pesquisa científica um interesse não
somente de cientistas biomédicos ou humanos, mas da sociedade,
seja de especialistas, seja de leigos.
Essa visão compartilha diversos elementos com a reflexão apre-
sentada por Dora Porto, que relata sua experiência de antropóloga
na área da saúde e suas desventuras em submeter seus projetos ao
CEP local. Entretanto, em vez de concluir sua reflexão demarcando
diferenças entre o modelo antropológico da pesquisa e o modelo do
Sistema CEP-Conep, Porto, assim como Fonseca, aponta para a ne-
cessidade de uma ampliação da inserção do antropólogo nessas are-
nas de decisão e deliberação sobre a ética científica. O interesse da
autora é criar um quadro de atenção à atuação dos pesquisadores
das ciências humanas na atual economia do conhecimento em que
grandes financiadores buscam conhecimento mercantilizável a todo
custo, sobretudo a indústria farmacêutica e os processos contempo-
râneos de medicalização da sociedade.
Porto aponta para a necessidade de que antropólogos entrem efe-
tivamente nos debates e nas questões suscitadas pelo Sistema CEP-
Conep para aperfeiçoá-lo e, assim como Fonseca, questiona até que
medida a distinção advogada por Cardoso e diversos antropólogos da
diferença entre uma pesquisa em e pesquisas com seres humanos seria
produtiva para refletir sobre o atual cenário da ética em pesquisa (p. 121).
Como exposto acima, nos textos apresentados, a questão da éti-
ca em pesquisa antropológica surge, então, como uma resposta à

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280
Resenhas

consolidação do Sistema CEP-Conep. Em sua grande maioria, os ar-


tigos parecem dialogar sobre a regulamentação da pesquisa quando
essa se apresenta na interface da atividade acadêmica e na área da
saúde. Destoando de todos os outros artigos, a reflexão apresentada
pelo grupo de antropólogos inseridos no Ministério Público Federal
parece colocar em perspectiva outras questões éticas referentes à ati-
vidade antropológica. O mote da discussão apresentada por Amorim,
Alves e Schettino é a ausência da reflexão sobre as reais implicações
do exercício da etnografia em contraste à exaltação da prática no
plano do discurso da disciplina (p. 197). Os autores chamam a aten-
ção para a consolidação da atuação de antropólogos na produção de
laudos etnográficos periciais sem uma reflexão mais profunda sobre
as implicações éticas e metodológicas de tal atividade, o que tem resul-
tado na desqualificação do papel do antropólogo como um interlocutor
efetivo com a arena jurídica: na caracterização do antropólogo como
“aquele tipo que escreve, escreve e não diz nada” (p. 207).
A exposição desses autores a partir da visão de antropólogos
trabalhando no Ministério Público relembra outra faceta das impli-
cações ‘éticas’ contemporâneas e uma especificidade no modo como
essa especificidade se apresenta na reflexão acadêmica brasileira. Em
nosso contexto nacional, parece latente uma separação entre ques-
tões éticas de âmbito acadêmico – pensadas como arenas externas de
regulação – e questões éticas de âmbito profissional – pensadas como
atividades de antropólogos fora da academia, questões imbricadas
mas raramente postas em perspectiva na mesma reflexão.
Laudos periciais, sistemas de avaliação da pós-graduação, pro-
cedimentos burocráticos requeridos por diferentes órgãos governa-
mentais e Comitês de Ética em Pesquisa, talvez seja necessário apro-
ximar reflexões entre esses diferentes campos nos quais a prática
antropológica, seja ela descrita em termos de ética ou não, se depara
com modelos externos de regulação. E talvez assim conseguíssemos
tornar diferentes formas de regulamentações da prática antropoló-
gica em reais interlocutores de nossas pesquisas, como se propõem
as autoras (p. 16).

Recebido em: 28/09/2011


Aceite em: 31/10/2011
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Resenhas

COMAROFF, John L.; COMAROFF, Jean. Etnicidad S.A. Buenos


Aires/Madrid: Katz Editores, 2011. 251 p.

Oscar Calavia
Universidade Federal de Santa Catarina
E-mail: occs@uol.com.br

L á no início dos anos 1980, nas bancas de jornal e nas telas de


tevê brasileiras exibiam-se, ainda com certa inocência, as figu-
ras nuas dos índios do Xingu, emblema do Brasil nativo e exótico.
Não muito depois, com o deslanchar do movimento indígena e o
ingresso dos índios na política nacional, popularizou-se outra série
de imagens dos mesmos índios pintados e adornados com cocares,
mas com câmeras de vídeo no ombro, ou escrevendo num laptop, ou
com enfeites que reproduziam, em estilo étnico, as formas e as cores
da bandeira nacional ou de algum time de futebol. Já neste século
nos habituamos a uma sorte de exotismo de terceira geração: índios,
com cocares ou sem eles, oferecendo ao mundo a sua cultura em
forma de rituais encenados para turistas, cursos de espiritualidade
indígena ou seminários de pesquisa psiconeurológica baseados no
uso de suas poções enteogênicas. O fato não passou despercebido
aos antropólogos, que o comentaram abundantemente, em geral elo-
giando a estratégia dos nativos. E com ele tem se acirrado também a
procura de fórmulas jurídicas para estabelecer e defender o
patrimônio intelectual indígena.
Muito longe do Brasil, John e Jean Comaroff publicam Ethnicity
Inc., que agora aparece traduzido para o espanhol. Um estudo base-
1

ado principalmente em dados sul-africanos – embora lhes sirva como


contraste um extenso capítulo sobre os índios da América do Norte
– que nas suas preliminares e conclusões sugere que o fenômeno de

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282
Resenhas

que tratam tem um alcance universal, não menos nas metrópoles


ocidentais que nas suas antigas colônias.
Para enunciar esse fenômeno – numa paráfrase livre do que
dizem os autores –, poder-se-ia dizer que, se durante muito tempo o
Estado-nação serviu como uma espécie de modelo oculto de todas as
agrupações humanas (as tribos, os partidos políticos, os clubes de
futebol), o tempo é chegado em que esse papel tem sido transferido
à corporação empresarial. Onde antes proliferavam as bandeiras,
agora surgem as logomarcas. A empresa capitalista, com seus modos
de organização, sua retórica e sua ideologia, tem se tornado aos pou-
cos o padrão que deve seguir todo coletivo humano que aspire estar
na história, desde as nações e as regiões até as religiões, passando
obviamente pelas universidades.
As etnias, no caso que nos ocupa, viram proprietárias
corporativas de um território e uma cultura, e seus dirigentes – reis
tradicionais, caciques ou conselhos de anciões – integram conselhos
de administração, que tiram o melhor proveito possível de um capi-
tal material ou simbólico e se encarregam também de distribuir os
benefícios entre os acionistas, isto é, em princípio, entre os mem-
bros reconhecidos dessa etnia.
Os Comaroff identificam seis dimensões nesse campo. A pri-
meira tem a ver com a pertença: os processos de transformação da
etnia em entidade jurídica veem-se acompanhados de uma ênfase
crescente na biologia, mais do que nas tramas sociais, na hora de
definir a inclusão ou a exclusão de um indivíduo. A segunda, com a
etnogênese: é a empresa a que define e consolida a etnia, e não o
contrário. A terceira, com o capital: o processo é frequentemente
desencadeado por um investimento de risco que vem do exterior. A
quarta, com a cultura: cultura como diferença ou senha de identida-
de, não necessariamente como veículo interno. A quinta, com a as-
piração soberana, em difícil disputa contra o Estado. A sexta, com a
territorialidade: a reivindicação de um território costuma estar na
origem da etnia–corporação e lhe serve de quadro. Uma sétima di-
mensão, segundo eles, descobre-se nos casos em que o processo não
tem seu início na criação de uma pessoa jurídica e no investimento

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283
Resenhas

vindo de fora – como quando a empresa étnica administra cassinos


ou minérios situados no seu território –, mas na transformação em
mercadoria de algum saber tradicional (cultígeno, remédio, arte...).
Essa sétima dimensão atravessa perpendicularmente as outras e for-
nece um ponto de partida diferente ao processo.
Ou seja, o núcleo central do argumento dos Comaroff consiste
em que a constituição da etnia como pessoa jurídica e a transforma-
ção da cultura em mercadoria, embora fenômenos independentes,
atraem-se e complementam-se. A Etnia S.A. pode começar por qual-
quer um desses extremos.
Esse perfil da etnicidade corporativa aplicar-se-ia desigualmen-
te a outras regiões – como as Américas Central e Meridional –, onde,
por motivos muito diversos, ela dá ainda seus primeiros passos ou
disputa o terreno com outro tipo de projetos étnicos. Mas as dimen-
sões citadas não estão totalmente ausentes em nenhum canto do
multiculturalismo e a comparação com o panorama traçado pelos
Comaroff será muito valiosa para melhor entender sua evolução. Se
invoquei no início o caso do Brasil – um dos principais laboratórios
atuais da etnicidade – é porque, totalmente ausente no livro dos
Comaroff e muito longe do universo que eles descrevem, poderia
servir como prova dos nove desse núcleo central do seu argumento.
As etnias brasileiras (principalmente as etnias indígenas) ingressam
no universo da Etnicidade S.A. pela sua sétima dimensão: estão em
vias de objetivar sua cultura e aproveitar seu potencial de mercado-
ria. Mas suas relações com o Estado são mais matizadas: envolvem
reivindicação e conflito, mas também uma maior dependência, que
exclui ou limita muito qualquer tentação de soberania – de fato os
projetos étnicos estão incluídos num projeto de identidade nacional
multicultural desse mesmo Estado. É também o Estado o principal
investidor, junto com um bom número de ONGs, num terreno no
qual ainda não entrou abertamente o capital privado. As fronteiras
étnicas eram no Brasil talvez ainda mais fluidas e indeterminadas
que nos casos africanos, e o processo de etnificação inclui alguma
vontade de enrijecê-las; mas o próprio movimento indígena tem mi-
litado contra critérios biológicos de pertença que agora lhe custari-

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Resenhas

am muito assumir. A ênfase na cultura como diferença (às vezes


quase limitada a um conjunto de diacríticos) jogou um papel notável
na etnogênese, mas o jogou dentro de um paradigma anterior em
que se pensava em povos ou nações, sem esperar as iniciativas da
corporação. O território, enfim, é uma reivindicação que serve de
ponto de partida ao projeto, mas que lhe serve mais como meta que
como quadro num país onde, desde há duzentos anos, a sociedade
nacional pressiona sobre as fronteiras étnicas com a escusa ainda
não caducada de que há terra demais para pouco índio.
Todas essas divergências, em conjunto, apontariam processos
étnicos diferentes ou seriam apenas rodeios que a Etnicidade S.A.
tomaria antes de se realizar? Aquele sistema mundial que tropeçava
no obstáculo da diferença estaria voltando à carga com maior suces-
so ao contar com a diferença étnica como sujeito do projeto e não
mais como objeção? A Etnicidade S.A. conseguiria se constituir por
inteiro e igualmente a partir da corporativização da etnia e da
objetificação da cultura? Suspeito que essas perguntas apontam para
debates futuros.
Há um modo de se aproximar de todo esse complexo que talvez
seja endêmico entre os antropólogos e que pode ser tachado de nos-
tálgico. Nostálgico das essências ou se não das essências, ao menos
de um passado em que as etnias eram conceitos acadêmicos que ten-
tavam delimitar uma realidade mais plástica, e não objetos registrados
em cartório; em que a cultura estava sujeita a mutações, mas não a
copyrights, e servia para propósitos internos muito mais que a uma
negociação externa. Etnias e culturas autônomas, autárquicas e tal-
vez autênticas. É provável que os Comaroff, no seu íntimo, sofram
dessa nostalgia: caso contrário talvez não teriam definido esse tema,
nem o teriam rotulado de um modo que soa irônico. Eles admitem
que a corporativização das etnias traga benefícios aos seus mem-
bros, mas objetando que essa é uma contingência histórica: poderi-
am, sim, se beneficiar dela como oportunidade ou na falta de outros
recursos – o que não equivale considerar a Etnicidade S.A. como um
projeto autóctone. Não deixam de lembrar que deveremos ficar aten-
tos ao tipo de desigualdades que essa nova configuração produz e

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285
Resenhas

que ainda estão por dar seus frutos. E sejam quais forem os lucros
auferidos pelos nativos, continuam estando muito longe dos que
obtém o capital especulativo que frequenta esse universo.
Mas se os Comaroff são nostálgicos, dissimulam bem. Até reco-
nhecem, e sem mostrar pesar, que um filho deles, engenheiro, está
implicado no planejamento de uma dessas empresas étnicas na Áfri-
ca do Sul. Não aludem a essas novidades – que às vezes já têm seus
decênios de existência – com o desprezo que os cientistas sociais cos-
tumam usar quando querem dar lições à realidade que descrevem.
Seu percurso pelo mundo da patrimonialização da cultura e das
corporações autóctones identifica estratégias válidas – e às vezes úni-
cas – de sobrevivência, mas também mostra que nem tudo se reduz a
expedientes utilitários. Os bosquímanos San, por exemplo, não só se
fantasiam de bosquímanos para atuar perante turistas estrangeiros e
ganhar assim uns dólares, eles obtêm, também, um legítimo orgulho
deixando de ser por umas horas moradores míseros de favelas para se
tornarem de novo – autenticados pelo olhar do turista – expoentes ou
pelo menos herdeiros de um modo de vida original. Os rituais da mo-
narquia Bafokeng, potência mineradora do platino sul-africano, lu-
tam por enriquecer com elementos tradicionais uma cenografia intei-
ramente alheia à tradição; nem mais nem menos o que fizeram sem-
pre outras monarquias mais setentrionais. E nada impede que, por
exemplo, a arte destinada a um público novo atinja um novo tipo de
autenticidade, uma qualidade, uma diversidade e uma tensão criativa
superiores talvez às que teve a arte autêntica de outros tempos. Não foi
muito diferente disso o que aconteceu quando os artistas europeus,
que viviam até então a serviço de Deus e da aristocracia, começaram a
produzir para o mercado – embora fosse, naquele tempo, um merca-
do mais próximo. Bem-vinda a novidade: como já sugeriu uma vez
Marshall Sahlins, não é justo que, quando os europeus inventam uma
tradição se fantasiando de ancestrais muito distantes (gregos e roma-
nos), o resultado seja chamado de Renascimento e, quando africanos
ou índios fazem o mesmo, lamentemos a inautenticidade. Portanto,
que sejam bem-vindas as novidades.
Mas outra coisa é que comunguemos entusiasticamente com o
Renascimento, com seus déspotas e com a habilidade com que atri-
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Resenhas

buiu todas as suas mazelas às épocas obscuras que tinha superado


(até agora continuamos acreditando que a caça às bruxas, que de
fato grassou na época de Leonardo, Descartes e Galileu, seja coisa da
Idade Média). O livro dos Comaroff, a meu juízo, tem a virtude de
organizar num quadro coerente e sistemático uma série de tendên-
cias que já conhecemos bem: a universalização e a solidificação dos
direitos intelectuais, o enrijecimento das identidades, a
patrimonialização da cultura, a judicialização que substitui a violên-
cia e a política... Em conjunto, todos esses fatores, como já antes se
esboçou, apontam para a corporação como um tipo ideal das
agrupações humanas. Não há que se recorrer à mão oculta do mer-
cado nem ao espírito dos tempos para explicar como essa visão de
mundo permeou tudo: ela tem seus missionários, mais abundantes
dos que nunca foram os da Igreja ou os do Estado. Quiçá haja entre
eles muitos antropólogos.
Muito e ruim se falou já dessa nostalgia antropológica que pre-
tendia manter os outros – e só os outros – na felicidade pré-capitalista.
Mas se esqueceu de dizer que há muito que essa nostalgia tem se
tornado minoritária: são já legião os antropólogos que, muito pelo
contrário, saúdam a debandada das essências e se implicam em em-
presas muito parecidas com as que os Comaroff descrevem. E desse
etnoprogressismo ainda se falou muito pouco. É difícil saber se de-
seja expandir pelo mundo um modelo que ele tem em alta estima, ou
se, tornando do avesso a velha assimetria, entende que aquilo mes-
mo que o indigna em casa pode ser para os outros o caminho da
libertação. Em qualquer caso, e tal como narram os Comaroff, desta
vez o que está a acontecer não é uma manobra oculta em colônias
longínquas. A corporativização acontece por toda parte, de modo
que quem não goste dela poderá a ela se opor bem no mesmo lugar
onde mora.

Nota
1 A edição espanhola é a tradução de Ethnicity Inc., Chicago, University of Chicago
Press, 2009.

Recebido em: 02/11/2011


Aceite em: 05/11/2011
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DESCOLA, Philippe (Org.). La fabrique des images: visions du monde


et formes de la représentation. Paris: Musée du Quai Branly/
SOMOGY-Éditions D’Art, 2010. 224 p.

Jeremy Deturche
Universidade Federal de Santa Catarina
E-mail: jeremy.deturche@gmail.com

E ste livro é à primeira vista um objeto particular, meio híbrido,


cujo entendimento como “livro antropológico” não é óbvio. Ofi-
cialmente, trata-se de um catálogo da exposição epônima do Museu
do Quai Branly, de Paris (conforme o próprio site do Museu1), onde o
organizador dessa coletânea foi também o curador. A exposição acon-
teceu de 16 de fevereiro de 2010 a 17 de julho de 2011. Portanto,
segundo as próprias palavras do curador e organizador, uma exposi-
ção “n’étant pas um traité savant” (p. 18). É a partir dos objetos
escolhidos e das suas apresentações e justaposição que as reflexões
antropológicas, às quais suas análises levaram, estão apresentadas. O
resultado é um livro que por certos aspectos poderia ser chamado de
“arte”, como confirmado pelo nome da editora ligada ao Museu,
“SOMOGY-Éditions D’Art”. O papel liso e a excelente qualidade das
ilustrações de 127 peças que faziam parte da exposição – num total
de mais de 150 – contribuem para essa impressão.
O catálogo, bem como a exposição, tem um propósito muito
além da simples mostra exemplar da diversidade das imagens e figu-
rações que a antropologia e os colecionadores teriam acumulado nas
suas buscas pelo exotismo. Havia na exposição e há no catálogo a
síntese e a demonstração de uma reflexão antropológica levada pelo
próprio Descola – apresentada pelo diretor do Museu como refletin-
do “son oeuvre, qui repose sur la fréquentation conjointe de

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Resenhas

l’etnhologie, de la philosophie et de l’histoire de l’art” (p. 7). Sem


elaborar o que constitui a “obra” de Descola, a organização do catá-
logo – que, segundo o site do Museu, segue a mesma organização
que a exposição – leva a crer que ela está baseada nos trabalhos atu-
ais do autor sobre a problemática das representações. Essa proble-
mática se encontra resumida na introdução escrita pelo próprio Des-
cola – “Manière de voir, manière de figurer” – e é uma continuação
de suas reflexões sobre a problemática do par dicotômico natureza–
cultura.
Além das divisões classificatórias entre as diversas produções
figurativas dos mais variados tipos, comuns entre nossos museus
(belas-artes, etnológico, de arte dessa ou daquela região do mun-
do...), dentro do “tohu-bohu de formes, de supports e d’objets
representés” (p. 12), existiriam alguns “schème” figurativos comuns?
Tal é a pergunta que Descola e os membros dessa coletânea tentam
responder. De fato essa reflexão se situa numa intersecção. De um
lado, está o recente revival dos estudos antropológicos sobre os obje-
tos e a arte, notadamente após o livro seminal de A. Gell, Art and
Agency: An Anthropological Theory, que levou antropólogos a repensa-
rem as “categorias” de objeto e arte e suas qualidades agentivas. O
termo “figurações” é pensado por Descola em relação aos trabalhos
de Gell, entre outros.2 Do outro lado, estão os trabalhos realizados
por Descola sobre o que ele nomeou “modos de identificação”,
“ontologias” ou “sistemas de qualidades” (p. 12-17).3 A ideia central
do livro é a de que as representações, as figurações, são de fato de-
pendentes do que se percebe ou se imagina e que essas, por sua vez,
se encontram dependentes:
[de] ce que l’on appris à discerner dans le flux des
impressions sensibles et à reconnaître dans l’imaginaire.
Or, ce formatage du discernement dépend des qualités que
nous avons l’habitude de prêter ou dénier aux choses qui
nous environnent ou celles que nous figurons dans notre
for interieur (p. 12).

Ou seja, as modalidades de figuração seriam em parte depen-


dentes das ontologias nas quais os autores estariam vivendo. Para

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Descola, as ontologias não se encontram em número infinito, mas


seriam provavelmente limitadas a quatro, organizadas pelas conti-
nuidades e pelas descontinuidades entre seres humanos e outros
“existentes” – existants – em dois planos distintos, o da “fisicalidade”
(physicalité) e o da “interioridade” (Descola, 2005).
Essas quatro ontologias seriam o animismo, que postula uma
continuidade das interioridades e uma descontinuidade das
fisicalidades; o naturalismo, tipo inverso do animismo; o totemismo,
que estipula a ausência de descontinuidade tanto no plano “moral”
(interioridade) quanto no físico, dentro de uma classe de existentes
(as classes totêmicas); e o analogismo, que postula uma
descontinuidade entre os existentes nos dois planos.4 Essas ontologias
não devem ser entendidas, como adverte Descola, como totalidades
e, se é possível encontrar ontologias extremamente dominantes em
determinadas regiões do mundo, como o animismo entre os Inuit, o
totemismo na Austrália aborígene e o naturalismo entre os “moder-
nos”, são geralmente orientações.
Essa coletânea, bem como a exposição, tem então como objeti-
vo mostrar as características que ligam essas ontologias a determi-
nados tipos de representação, ou melhor, mostrar como essas
ontologias produzem, “fabricam”, determinados tipos de figurações,
o que implica colocar em evidência o tipo de intencionalidade “dele-
gada” a essas imagens. Convém, todavia, notar que, se as ontologias
são apresentadas como orientações, nem todas as imagens ou figu-
rações estariam orientadas e determinadas pelas ontologias nas quais
elas originar-se-iam. Assim, dois exemplos são dados e algumas “ima-
gens icônicas” não teriam uma “dimension ontologique”: a pictografia
e a heráldica. Não está absolutamente claro como poderia se articu-
lar esse tipo de imagem com as outras, que têm qualidades ontológicas,
pois elas estariam apresentadas como efeitos de uma função expres-
siva “comum”, “se não universal”. Deve-se entendê-las como além
das ontologias e das figurações que as expressam?
Esse propósito de exemplificar e de demostrar como se amar-
ram diversas figurações e as quatro ontologias serve de fio condutor
e organizador do livro, que se encontra dividido em quatro partes,

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290
Resenhas

correspondendo às quatro ontologias. A primeira, “Un monde


animée”, corresponde ao animismo. Seguindo um padrão que vai se
repetir para as três outras partes, o primeiro texto dessa seção é tam-
bém de autoria de Descola e se apresenta como mais amplo, tentan-
do evidenciar a diversidade das representações que são ligadas a uma
ontologia, diversidade que pode ter um padrão geográfico ou
corresponder a uma diversidade de objetos e de destinos diferentes.
Algumas dessas diversas representações são então exemplificadas,
discutidas e especificadas mais detalhadamente nos artigos seguin-
tes a esse texto de certa maneira introdutório. Assim, no caso do
animismo há três outros artigos, “Voire comme un Autre: figuration
amazoniennes de l’âme et des corps”, de Anne-Christinne Taylor,
“Miniature et variations d’échelle chez les Inuit”, de Frédéric
Laugrand, e “Corps e âmes d’animaux em Sibérie: de l’Amour
animique à l’Altaï analogique”, de Charles Stépanoff. O texto de Taylor
é voltado para a vertente amazônica do animismo e suas figurações
específicas centradas na problemática do corpo – e nas apropriações
de qualidades alheias pelos ornamentos e pelas pinturas corporais,
entre outros –, que, como sabemos, desde um artigo seminal (Seeger,
Da Matta e Viveiros de Castro, 1979) se encontra no centro das
cosmologias ameríndias dessa região. O artigo de Laugrand focaliza-
se principalmente nas miniaturas Inuit, como figuração das almas-
tarniq e sede de poderes transformacionais e de substituição que lhes
conferem a possibilidade de ações mediadoras – a miniaturização
como figuração anímica. Não se trata, todavia, de considerá-las como
objetos mágicos, elas são, antes de tudo, relações, representação como
relação. O terceiro texto, de Stépanoff, trata de uma terceira área
geográfica, o extremo noroeste da Ásia e as extensões da Sibéria,
onde várias populações se encontram em contato e onde o animismo
não é a única ontologia presente. Isso permite comparar e observar
como em uma mesma área geográfica e contextos ontológicos dife-
rentes outras ontologias são presentes e se expressam através de di-
versas imagens.
Esse esquema se repete então para as três outras ontologias. A
segunda ilustrada é o naturalismo, “Un monde objectif”, cuja apre-

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sentação de Descola está seguida de dois textos sobre modalidade


particular, inclusive com uma dimensão temporal da figuração na-
turalista. De fato aparece aqui o problema do surgimento e da for-
mação dessa ontologia. O naturalismo que se encontra simbolizado
pela separação intransigente entre natureza e cultura se fixa no sé-
culo XVIII. Mas o livro sugere que uma transformação naturalista
progressiva está perceptível na evolução das representações e figura-
ções desde o século XV, em que a objetividade (na representação da
singularidade individual e das interioridades), a busca pelo realismo
e a imitação (que mostram através da natureza as continuidades da
fisicalidade), características da figuração naturalista, já estavam apa-
recendo. O dois textos complementares dessa parte, o de Michael
Taylor, “La peinture et le savant: la fabrique des images au siècle d’or
de la peinture hollandaise”, e um artigo sobre a fotografia entendida
como objetiva de Monique Sicard, “La ‘photo-graphie’, entre nature
et artefact”, buscam exemplificar essas características em momen-
tos históricos e suporte técnicos diferentes.
A terceira parte, “Un monde subdivisé”, tenta definir e
exemplificar as figurações oriundas da ontologia totêmica. De fato
essa ontologia corresponde ao mundo aborígene australiano e re-
presentar, figurar, o totemismo é figurar e representar as continui-
dades nos dois planos da fisicalidade e das interioridades entre indi-
víduos de uma mesma classe totêmica. Três maneiras diversas, mas
ligadas entre si por transformação, são dadas como maneiras de fi-
gurar essas continuidades. A primeira, da qual se originam as duas
outras, consiste em representar uma combinação dos seres
prototípicos (híbridos – os “seres dos sonhos”) na origem das classes
totêmicas, no momento de uma ação instituidora; o lugar da ação é
ao mesmo tempo o produto dessa ação e os emblemas que caracteri-
zam e são associados à classe totêmica. A partir desse tipo de figura-
ção, é possível de certa maneira tirar a representação da ação e uni-
camente representar os seres originais, ou ao contrário, representar
unicamente o resultado da ação. Os dois artigos complementares, de
Françoise Dussart, “De la terre à la toile: peinture acrylique de
l’Australie centrals”, e de Jessica de Largy Healy, “L’art de la

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connexion: tradition figuratives et perception des images em terre


d’Arnhem australienne”, vão não somente exemplificar essas possi-
bilidades figurativas, mas também possibilitar a reflexão sobre as di-
versas técnicas empregadas e as evoluções materiais e estilísticas den-
tro desse modo totêmico de figuração.
Enfim, a última parte, “Un monde enchevêtré”, detém-se sobre
a figuração analógica, caraterizada principalmente pela profusão de
seres híbridos, de quimeras e de outros seres compósitos, mas tam-
bém de representações de redes e todas as possibilidades de corres-
pondências entre entidades, como englobamento ou replicação. O
objetivo é figurar uma trama que permita inserir cada um dos exis-
tentes, que são tantas singularidades, criando uma organização ou
uma forma que aloca cada um, por diversos jogos de conexões, no
seu devido lugar. O três artigos dessa parte, o de Dimitri Karadimas,
“Animaux imaginaires et êtres composite”, o de Allen F. Roberts e
Mary Nooter Roberts, “La répétition pour ele-même: les arts itératif
au Sénégal”, e o de Johannes Neurath, “Simultanéité de visions: le
nierika dans les rituels et l’art des Huichols”, são, novamente, três
momentos de especificação: o primeiro focado sobre um tipo de re-
presentação específico, os seres compostos, enquanto os dois outros
são mais geograficamente localizados.
Todos esses textos estão ilustrados a partir dos objetos e das
imagens que foram apresentados na exposição, mas sem que isso se
transforme numa análise específica de cada um deles, o que torna a
leitura extremamente agradável. Concluindo, o objetivo é demons-
trar as ligações entre determinada maneira de ver o mundo e uma
maneira de figurar que na verdade se apresenta neste livro como
uma maneira de expor as relações entre humanos e não humanos
que estão pensadas pelas ontologias. Contudo, não é sempre claro se
essa relação se deve à formatação promovida pelas ontologias, por
orientar as figurações, ou se realmente não seria uma definição de/
por uma categoria de imagens que representam as relações postula-
das pelos modos de identificações. Como de fato as imagens que não
têm a dimensão ontológica se relacionam com os modos de identifi-
cação. Obviamente as reflexões que perpassam essa demonstração

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Resenhas

visam promover uma nova dimensão de reflexão sobre os objetos do


mundo que tenta evitar classificar ou “tipologizar” tais objetos de
maneira essencialista e em função de critérios cujo valor é proble-
mático, como a estética ou a origem geográfica. Mas para isso se faz
presente uma bipartição entre as imagens, entre aquelas que têm
uma dimensão ontológica e as outras.
Este livro constitui também uma reflexão interessante sobre as
práticas de exposição, no sentido de que essa maneira de pensar as
figurações implica repensar as práticas expositivas e museológicas.
Se uma exposição não é um “traité savant”, ela não pode também ser
uma amostragem. Repensar os objetos implica repensar o destino
deles, principalmente nos museus; e, nesse sentido, além do projeto
teórico-antropológico, o catálogo (e possivelmente a exposição) con-
segue mostrar como fugir de categorias essencialistas, notadamente
por transparecer em todos os artigos que o que faz a agência dos
objetos, as suas qualidades figurativas nas diversas ontologias, não
se encontra na “essência” deles, mas justamente nas suas agências,
nas suas relações e usos.

Notas
1 Por razões de ordem espacial, não me foi possível visitar a exposição no momento
de sua apresentação no museu, porém está ainda disponível no site do Museu o
descritivo de sua organização e principal propósito: <http://www.quaibranly.fr/fr/
programmation/expositions/expositions-passees/la-fabrique-des-images.html>.
2 A figuração é de fato a “operation universelle au moyen de laquelle des objets
matériels sont transformés en agents de la vie sociale par-ce qu’on leur donne la
fonction d’évoquer avec plus ou moins de ressemblance un prototype réel ou
imaginaire […]” (p. 17).
3 Ver também Descola (2005).
4 A construção dessa teoria se encontra detalhada em Descola (2005) e resumida na
introdução do livro. Trata-se aqui unicamente de, esquematicamente, caracterizar
essas ontologias para entender como se organiza o livro e qual o seu propósito.

Referências
DESCOLA, Philippe. Par-delà Nature et Culture. Paris: Edition Gallimard, 2005.
GELL, Alfred. Art and Agency: An Anthropological Theory. Oxford: Oxford
University Press, 1998.

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Resenhas

MUSÉE DU QUAI BRANLY. Disponível em: <http://www.quaibranly.fr/fr/


programmation/expositions/expositions-passees/la-fabrique-des-
images.html>. Acesso em: 18 nov. 2011.
SEEGER, Anthony; DA MATTA, Roberto; VIVEIROS DE CASTRO, Eduardo. A
construção da pessoa nas sociedades indígenas brasileiras. Boletim do Museu
Nacional, Rio de Janeiro, n. 32, p. 2-19, 1979.

Recebido em: 31/10/2011


Aceite em: 08/11/2011

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Teses defendidas no PPGAS/UFSC em 2010

Isabel Santana de Rose, 07/06/2010, “Tata Ndereko – Fogo Sagrado:


encontros entre os Guarani, a ayahuasca e o Caminho Vermelho”

Sandra Rubia Silva, 13/04/2010, “Estar no Tempo, Estar no mundo:


a vida social dos telefones celulares em um grupo popular”

Matias Godio, 05/03/2010, “‘Somos hombres de platea’: A sociedade


dos dirigentes e as formas experimentais do poder e da política no
futebol profissional em Argentina”.

Juliana Cavilha Losso, 04/03/2010, “Dos desregramentos da carne:


um estudo antropológico sobre os itinerários urbanos,
territorialidades, saberes e fazeres de profissionais do sexo em
Florianópolis”

Luciane Ouriques Ferreira, 25/02/2010, “Entre discursos oficiais e


vozes indígenas sobre gestação e parto no Alto Juruá: a emergência
da medicina tradicional indígena no campo das Políticas Públicas”

Ari José Sartori, 19/02/2010, “A ‘experiência’ como mediadora no


ensino da Antropologia para quem não vai ser antropólogo”

Dissertações defendidas no PPGAS/UFSC em 2010

Jimena Maria Massa, 17/12/2010, “Saiu no jornal: a construção da


violência de gênero no discurso midiático sobre ‘o estuprador serial’
de Córdoba (Argentina)”

Larissa Migliavacca Pacheco, 29/11/2010, “Entre ‘nativos’ e ‘de fora’:


estudo etnográfico sobre nuanças identitárias no Centro Histórico
de cidade litorânea no Sul do Brasil, Garopaba/SC”

Ari Ghiggi Júnior, 04/10/2010, “Estudo etnográfico sobre alcoolização


entre os índios Kaingang da Terra Indígena Xapecó: das dimensões
construtivas à perturbação”

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volume 11 - números 1 e 2

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Tatiana Dassi, 10/09/2010, “‘É, vida Loka irmão’: moralidades entre
jovens cumprindo medidas socieducativas”

Anelise Fróes da Silva, 27/08/2010, “Mulheres em movimento(s):


estudo etnográfico dobre a inserção de feministas e lésbicas em mo-
vimentos sociais institucionalizados e autônomos na cidade de Porto
Alegre-RS”

Nora Epifania Murillo Estrada, 25/08/2010, “Nós continuamos lu-


tando aqui: identidades coletivas e estratégias de luta pelo reconhe-
cimento da comunidade indígena Maia Achí, vitimas sobreviventes
dos massacres de Rio Negro Rabinal (Guatemala)”

Diego Faust Ramos, 19/05/2010, “O Tempo Kamayurá”

Maíra Marchi Gomes, 13/03/2010, “O lado negro do preto: o fardo


da farda: narrativas de integrantes do BOPE-SC sobre mandato poli-
cial de grupos especiais de Polícia”

Sandra Carolina Portela, 26/02/2010, “Diabetes e hipertensão arteri-


al entre os indígenas Kaingang da aldeia sede, TIX: práticas de auto-
atenção num contexto de intermedicalidade”

Dina Susana Mazariegos García, 23/02/2010, “Trajetória e resistên-


cia: uma análise antropológica das emergentes práticas discursivas
das mulheres intelectuais Maias na Guatemala nas duas últimas dé-
cadas (1988-2008)”

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volume 10 - número 2

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ILHA – Revista de Antropologia aceita artigos, ensaios, resenhas e entrevistas
originais que estejam de acordo com sua linha editorial. Os artigos são subme-
tidos à avaliação de pareceristas ad hoc. Os autores receberão dois exemplares do
número da revista na qual seus trabalhos forem publicados.
A submissão dos trabalhos será feita on line, diretamente no site da revista
(www.periodicos.ufsc.br/ilha).

Serão aceitos trabalhos para as seguintes seções:


Artigos ou ensaios (incluindo os artigos para dossiês e seções temáticas):
(aproximadamente 10 mil palavras, incluindo notas e referências). Eles deverão
ser acompanhados de resumo (em português e em inglês, entre 100 e 150 pala-
vras), palavras-chave (em português e em inglês, de três a quatro) e título (em
português e em inglês.
Debates: artigos com especial interesse teórico-metodológico, acompa-
nhados de comentários críticos assinados por outros autores (aproximadamen-
te 10 mil palavras, incluindo notas e referências). Eles deverão ser acompanha-
dos de resumo (em português e em inglês, entre 100 e 150 palavras), palavras-
chave (em português e em inglês, de três a quatro) e título (em português e em
inglês.
Entrevistas: (até oito mil palavras), acompanhados de introdução situ-
ando a obra e o autor entrevistado), resumo (em português e em inglês, entre
100 e 150 palavras), palavras-chave (em português e em inglês, de três a quatro)
e título (em português e em inglês).
Ensaio bibliográfico: resenha crítica e interpretativa de vários livros
que abordem a mesma temática (até oito mil palavras, incluindo as referências
bibliográficas e notas), título, palavras-chave e resumo em português e inglês.
Resenhas biblio/disco/cine/videográficas: pequenas resenhas de li-
vros, discos, filmes ou vídeos recentes (até dois anos, até 2.500 palavras, inclu-
indo as referências bibliográficas e notas);
Notas de pesquisa: relato de resultados preliminares ou parciais de
pes-quisa (até 3.500 palavras, incluindo as referências bibliográficas e notas);
Cartas: manifestações sobre textos publicados em números anteriores (o
editor se reserva o direito de publicar apenas trechos).

ILHA
volume 11 - números 1 e 2

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Normas de apresentação e redação:
As normas de redação e citação bibliográfica seguem o padrão da ABNT,
com pequenas adaptações (quando for o caso, está sinalizado abaixo). Outras
situações não previstas abaixo seguirão o padrão da ABNT.

1. As notas devem ser numeradas em algarismos arábicos e constar no


final do texto.
2. Referências a autores deverão ser incluídas no texto e não em nota de
rodapé. Ex. (Castells, 1999) ou (Castells, 1999, p. 12). (O uso do nome do autor em
minúsculas é uma adaptação das normas da ABNT)
3. As referências bibliográficas são incluídas no final do texto, seguindo
o seguinte formato:
a) Livros ou coletâneas: MENEZES BASTOS, Rafael J. de. A musicológica
kamaiurá. Florianópolis: Ed. UFSC, 1993. Ou: LANGDON, Esther-Jean
(Org.). Xamanismo no Brasil: novas perspectivas. Florianópolis: Ed. UFSC,
1996.
b) Capítulos de livros: SANTOS, Silvio Coelho dos. A Antropologia em
Santa Catarina. In: SANTOS, Silvio Coelho dos (Org.). Memórias da
Antropologia no sul do Brasil. Florianópolis: Ed. UFSC/ABA, 2006. p. 17-
77.
c) Artigos em periódico: SÁEZ, Oscar Calávia. Nawa, Inawa. Ilha- Revista
de Antropologia, Florianópolis: UFSC, v.4, n.1, p. 17-33, 2002.
d) Teses e monografias acadêmicas: GROISMAN, Alberto. 1991. Eu Venho
da Floresta: Ecletismo e Práxis Xamânica Daimista no Céu do Mapiá.
Dissertação (Mestrado em Antropologia Social) – Universidade Fede-
ral de Santa Catarina, Florianópolis, 1991.
e) Artigos e trabalhos da internet: LEITE, Ilka Boaventura. As classificações
étnicas e as terras de negros no sul do Brasil, s/d. Disponível em: <http://
www.nuer.ufsc.br/artigos/classificacoes.html>. Acesso em: 03 nov.
2008.
f) Tabelas e imagens: serão aceitas no máximo de cinco por artigo.
As tabelas devem vir no mesmo programa do texto e as imagens em
formato jpeg ou tiff, resolução de 300 dpi.
g) Todas as referências devem conter o prenome do/a autor/a.

ILHA
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Copyright: A Ilha- Revista de Antropologia tem o copyright dos trabalhos
publicados em suas páginas, sendo que qualquer reprodução em outros veícu-
los, desde que autorizados pelos/as autores/as, deverá dar os créditos correspon-
dentes à Ilha.

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