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DIREITO E DEMOCRACIA

Revista de Ciências Jurídicas – ULBRA


Vol. 4 - Número 2 - 2º semestre de 2003
ISSN 1518-1685

COMUNIDADE EVANGÉLICA LUTERANA “SÃO PAULO” EDITORA DA ULBRA


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Capelão Geral O conteúdo e estilo lingüístico são de responsabilidade ex-


Gerhard Grasel clusiva dos autores. Direitos autorais reservados.
Citação parcial permitida, com referência à fonte.
Ouvidor Geral
Eurilda Dias Roman

DIREITO E DEMOCRACIA
Revista de Ciências Jurídicas – ULBRA

Editor
Plauto Faraco de Azevedo
Editor Associado
César Augusto Baldi

Conselho Editorial
Airton Sott (ULBRA)
Aldacy Rachid Coutinho (UFPR)
Altayr Venzon (ULBRA)
Etienne Picard (Université de Paris I/França)
Gerson Luiz Carlos Branco (ULBRA)
Ielbo Marcus Lôbo de Souza (ULBRA)
Jacinto Nelson de Miranda Coutinho (UFPR)
Joaquín Herrera Flores (Universidad Pablo Olavide/Espanha)
José Maria Rosa Tescheiner (PUC/RS) U58u Revista Direito e democracia / Universidade Luterana do
Luís Afonso Heck (ULBRA) Brasil – Ciências Jurídicas. – Canoas: Ed. ULBRA, 2000.
Luís Luisi (ULBRA e UNICRUZ) Semestral
Luiz Carlos Lopes Moreira (ULBRA)
1. Direito-periódico. I. Universidade Luterana do Brasil
Vladimir Passos de Freitas (UFPR)
- Ciências Jurídicas.
CDU 34
CDD 340
Setor de Processamento Técnico da Biblioteca Martinho Lutero -
ULBRA/Canoas
Índice
253 Editorial

Artigos

255. Breves considerações sobre as limitações do direito do autor, de Gonzaga


Adolfo
287. Direitos humanos, interculturalidade e racionalidade da resistência, de
Joaquin Herrera Flores
305. A Europa como comerciante e advogado do mundo: o continente e os
processos globais, de Göran Therborn
327. O direito fundamental à moradia na Constituição: algumas anotações a
respeito de seu contexto, conteúdo e possível eficácia, de Ingo Wolfgang
Sarlet
385. O direito urbanístico sob a ótica do Estatuto da Cidade: democratizando o
espaço local, de Julio Cesar Mahfus e Viviana Cremonese
403. A criminalidade dos colarinhos, de Luiz Luisi
407. Observância e aplicação dos Tratados internacionais na Convenção de
Viena sobre o Direito dos Tratados de 1969, de Valerio de Oliveira
Mazzuoli
425. Do abuso do direito de demandar, de Rosanne Gay Cunha
437. Valores eticos en la actividad periodística, de Xabier Etxeberria

Documento Histórico

459. “Declaração dos Direitos da Mulher e da Cidadã”, de 1791.

465. Normas Editoriais

252 Direito e Democracia vol.4, n.2, 2003


Editorial

A Revista Direito e Democracia, chegando à sua 8ª edição (v. 4, n. 2),


permanece fiel a seus propósitos, na certeza de que a vivência democrática
exige a permanente redescoberta do sentido do direito, tendo por alvo a
dignidade humana, que não se realiza sem que se busque a justiça social. A
aspereza dos tempos não permite que se deserte desta missão. Ao contrário,
exige o concurso do direito, por meio do estudo crítico das instituições,
aferindo sua consonância com as necessidades humanas, buscando a efeti-
va realização dos direitos fundamentais.
Assim, o presente número da Revista começa pela colaboração de
Gonzaga Adolfo, que trata do direito do autor, em sua ampla gama de
projeções, enfatizando as limitações que a realidade lhe impôs. Segue-se
a colaboração de Joaquín Herrera Flores, relativa à interculturalidade
dos direitos humanos, analisando a sua interconexão com os problemas
políticos e econômicos.
Göran Therborn destaca o papel da Europa no mundo globalizado,
seja como comerciante seja como advogado do mundo, fazendo amplo
retrospecto histórico, em versão especialmente atualizada para a presente
publicação. O direito fundamental à moradia é oportunamente examina-
do por Ingo Wolfgang Sarlet, aferindo seu conteúdo e possível eficácia no
contexto político-jurídico brasileiro. Júlio César Mahfus e Viviana
Cremonese examinam o Estatuto da Cidade, ligado à democracia
participativa, tendo como fulcro as virtualidades legais da função social
da propriedade.
Luiz Luisi considera a Criminalidade dos Colarinhos, à luz da legisla-
ção brasileira, denotando suas características anti-sociais e enfocando a
delinqüência do “colarinho azul”. Valério de Oliveira Mazzuoli trata do
direito dos tratados, à luz da Convenção de Viena de 1969, examinando
a problemática atinente aos mecanismos de formação, entrada em vigor,
aplicação e divergências entre tratados internacionais sucessivos regu-
lando a mesma matéria. Rosane Gay Cunha analisa o direito de deman-
dar sob a ótica do abuso do direito, visando sua adequação aos princípios
da proporcionalidade e da razoabilidade. Finalmente, Xabier Etxeberria,

vol.4, n.2, 2003 Direito e Democracia 253


em conferência pela primeira vez publicada, aborda os valores éticos, vei-
culados pela mídia, magno problema de nosso tempo de transbordante
informação e correlata produção por um número cada vez menor e mais
concentrado de veículos.
O documento histórico deste número, datado de 1791, em plena
efervescência da Revolução Francesa, demonstra a relativa vetustez do
árduo caminho, que tem feito “a mulher e a cidadã”, em busca do reco-
nhecimento dos direitos que a história lhe tem sonegado.

Plauto Faraco de Azevedo


César Augusto Baldi

254 Direito e Democracia vol.4, n.2, 2003


Artigos

Breves considerações sobre


as limitações ao direito do autor

Brief notes on copyright limitations

GONZAGA ADOLFO
Advogado, mestre em Direito, professor de Direito na ULBRA Gravataí, na UNISINOS e no UNILASALLE,
membro da Comissão Especial de Propriedade Intelectual da OAB/RS; e do Instituto Interamericano de Direito do
Autor – IIDA, com sede em Buenos Aires, Argentina.

RESUMO
O autor faz um relato histórico das limitações ao Direito do Autor na legisla-
ção autoral brasileira, apresentando as principais possibilidades de utilização
de obras intelectuais sem necessidade de autorização do titular dos direitos
patrimoniais do autor.
Palavras chave: Direito autoral, Legislação, Hermenêutica.

ABSTRACT
The author makes a historical report on copyright limitations in Brazilian
copyright legislation, presenting the main possibilities of using intellectual
works with no need of authorization from the holder of the author’s patri-
monial rights.
Key words: Copyright, legislation, hermeneutics.

Direito
vol.4, e Democracia
n.2, 2003 Canoas
Direito e vol.4, n.2
Democracia 2º sem. 2003 p.255-286
255
INTRODUÇÃO
O Direito do Autor é uma das áreas mais belas do Direito, em especial
pela sua abrangência, atualidade, importância social, cultural e econômi-
ca. É tema cada vez mais discutido, em decorrência do fantástico progresso
das comunicações e seus meios, verificados na atualidade. Em decorrência
deste progresso tecnológico, o Direito do Autor também mostra novas ca-
racterísticas, ou, para ser exato, enfrenta nova realidade. Em sua prerroga-
tiva relativa ao direito de exploração ou divulgação da obra, denominada
na lei brasileira de Direito Patrimonial do Autor, o princípio básico é que
toda forma de utilização exige prévia e expressa autorização do titular.
Dentre os temas atuais relativos a esta área, um merece especial atenção:
as limitações ao Direito do Autor, ou seja, as possibilidades de utilização da
obra intelectual sem necessidade de prévia autorização do titular da obra
autoral. É o tema desta pesquisa. Nela, faz-se rápida explanação inicial sobre
a importância do Direito do Autor, depois uma análise do direito patrimonial
– seria mais adequada a expressão prerrogativas – para, finalmente, ingressar
no ponto principal, antes destacado, as limitações. Na verdade, trata-se de
resumo de um estudo mais amplo da legislação brasileira no que concerne à
matéria, com comentários próprios do autor da pesquisa e amparado em des-
tacados autoralistas, trazendo, antes da análise de cada limitação inserida na
lei autoral, um rápido escorço histórico de como o tema constou em cada
legislação autoral que existiu no Brasil, desde a primeira.
A metodologia utilizada foi a de pesquisa doutrinária e legal, esta na
legislação autoral brasileira (Lei n.º 9.610, de 19 de fevereiro de 1998),
como antes salientado, e aquela na pesquisa em obras e artigos de desta-
cáveis autoralistas, como Hammes, Ascensão, Lipszyc, Villalba e Manso,
entre tantos outros de idêntico destaque, apontados nas referências bibli-
ográficas ao final.

1 IMPORTÂNCIA E DIREITO PATRIMONIAL DO


AUTOR
O Direito do Autor assume importância significativa nos dias atuais,

1
ADOLFO, Luiz Gonzaga Silva. Algumas reflexões sobre a importância da propriedade intelectual no século
XX. Revista Estudos Jurídicos, São Leopoldo, n. 78, p. 113-125, jan./abr. 1997.

256 Direito e Democracia vol.4, n.2, 2003


que de resto já se mostrou claramente em todo século XX, por nós consi-
derado em outro trabalho como o “século da propriedade intelectual”1 .
Afinal, na livre expressão de pensamento ampara-se firmemente, como
um de seus maiores esteios, o Estado Democrático de Direito.
No campo do Direito do Autor, a abrangência de seu objeto é enorme,
da produção literária, de importância inquestionável ao mais incauto, às
artes em geral, tão necessárias para a humanidade: fotografia, escultura,
litografia, cartografia, músicas com ou sem letra, projetos de engenharia e
arquitetura são apenas alguns exemplos. Sobre o Direito do Autor, belíssi-
mo entendimento de D. Manoel Gonçalves Cerejeira, citado por Chaves2 :

Considero o direito de autor um dos direitos sagrados, se


posso exprimir-me assim. Cumpre zelá-lo e defendê-lo.
Nada mais belo que a criação intelectual. Se fosse possível,
devia ser pago em mirra, incenso ou ouro.

Villalba e Lipszyc3 amparam-se em Le Chapelier para enfatizar o que


assim se pretende:

Es célebre la frase “La más sagrada, la más personal de


todas las propiedades” com que Le Chapelier calificó al
derecho de autor en el informe al que siguió el decreto 13-
19 de enero de 1791 que consagró a favor de los autores el
derecho de representación pública sobre sus obras y que
fue reiterada por Lakanal en el informe que precedió al
decreto 19-24 de julio de 1793 que reconoció a los creadores
el derecho de reprodución de sus obras.

O Papa João Paulo II4 afirmou para mais de cinco mil fiéis que certas
manifestações sublimes da arte, como a literatura, a filosofia e a música,
refletem o espírito de Deus. Eis um trecho da manifestação do líder da
Igreja Católica feita na tradicional audiência geral na quarta-feira, dia
12 de agosto de 1998, no Vaticano:

2
CHAVES. Antonio. Direito de Autor; Princípios fundamentais. São Paulo: Forense, 1987, p. 4.
3
VILLALBA, Carlos Alberto; LIPSZYC, Delia. El Derecho de Autor en la Argentina. Buenos Aires; La Ley, 2001, p. 3.
4
PAPA exalta espírito de Deus. Zero Hora, 11 ago. 1998. Mundo, p. 44.

vol.4, n.2, 2003 Direito e Democracia 257


Quando repassamos certas páginas da literatura e da filo-
sofia, ou admiramos alguma obra-prima da arte, ou escu-
tamos peças de música que têm algo de sublime, esponta-
neamente reconhecemos nessas manifestações do gênio
humano um luminoso reflexo do espírito de Deus.

Os direitos patrimoniais, ao contrário dos direitos morais, e como o


próprio nome diz, referem-se à utilização da obra, que necessariamente
não precisa ser econômica. O princípio básico, enfatiza Hammes5 , parte
da idéia de propriedade e da utilização decorrente da vontade do criador.
Para ele, “a sua vontade determina o que acontece com a obra, quem e como
a utilizará”, pois “qualquer utilização depende de sua autorização”.
O artigo 28 do atual estatuto autoral brasileiro é claro: “Cabe ao autor
o direito de utilizar, fruir e dispor da obra literária, artística ou científica”. São
prerrogativas normais de propriedade, conhecidas no Direito das Coisas
desde os romanos como jus utendi, jus fruendi, jus abutendi ou jus disponen-
di e rei vindicatio. Vale dizer, em vernáculo pátrio, a faculdade de usar,
gozar, dispor, fruir e reivindicar o bem, a coisa, o patrimônio, do qual é
titular de domínio.
Importante, então, nesta linha de raciocínio, fazer rápida análise dos
direitos patrimoniais para, posteriormente, ingressar no próximo capítulo
nas limitações ao Direito do Autor, não sem antes fazer menção que o
artigo 29 da Lei n.º 9.610 regula algumas formas de utilização da obra que
exigem autorização prévia do titular, sendo meramente exemplificativa,
como se depreende facilmente da leitura de seu caput e de seu inciso X

2 LIMITAÇÕES AO DIREITO DO AUTOR

2.1 introdução e fundamentação das limitações


As limitações ao Direito do Autor, tema específico e principal desta
pesquisa, são as formas de utilização da obra autoral que não necessitam

5
HAMMES, Bruno Jorge. Op. cit. (2002), p. 81.

258 Direito e Democracia vol.4, n.2, 2003


de prévia autorização do autor ou do titular dos direitos patrimoniais de
autor, para ser mais exato. São, então, exceções aos princípios de direito
patrimonial do autor antes noticiados. Afinal, como conclui Hammes6 ,
“o caráter absoluto do direito de propriedade, em si mesmo, deve ser entendido
com restrições”. E acrescenta que “este é distinto da propriedade material e
nem se reduz pura e simplesmente a uma propriedade”.
Tem-se, desta forma, que o direito de propriedade sofre limitações das
mais diversas, como referido. O Direito do Autor, mesmo sendo proprie-
dade de natureza especial, não poderia ser exceção à regra, como bem
coloca Hammes no trecho anteriormente citado. Seriam decorrentes, na
acepção de Bittar7 , de um conflito existente entre o interesse público e o
interesse privado, que se configura mais latente do Direito de Autor, pois,

... em seu contexto, o choque é direto e originário, refletindo,


portanto, a luta eterna entre os interesses em questão, e que
se manifesta sob as formas de limitações e de exceções aos
direitos exclusivos assegurados aos autores, tanto nos países
desenvolvidos, como nos em desenvolvimento e, nestes, acom-
panhados de fórmulas redutivas do nível de proteção, con-
cebidas como mecanismos necessários para a sua integração
às grandes Convenções internacionais existentes.

Nesta linha, Hammes8 ampara-se em Melichar, argumentando que,


juntamente com a aceitação do Direito de Autor, há a interpretação de
que ele está sujeito a uma vinculação social. O titular deve tolerar deter-
minadas restrições aos seus direitos. Importante, ainda na visão de Ham-
mes, é que as restrições são exceções à regra geral, que garante uma
proteção mais ampla possível. Em conseqüência, devem ser interpretadas
estritamente.
A propósito, destaque-se que as limitações encontram previsão na pró-
pria Convenção de Berna9 , mormente em seu artigo 9, 2, com a seguinte
redação em língua portuguesa:

6
HAMMES, Bruno Jorge. Op. cit. (2002), p. 90.
7
BITTAR, Carlos Alberto. Contornos atuais do Direito do Autor. São Paulo: LTr, 1992, p. 116.
8
HAMMES, Bruno Jorge. Op. cit. (2002), p. 91.
9
CONVENÇÃO de Berna relativa à protecção das obras literárias e artísticas. Acto de Paris, texto oficial portugu-
ês. Genebra: Organização Mundial da Propriedade Intelectual, 1996, p. 13.

vol.4, n.2, 2003 Direito e Democracia 259


2) Fica reservada às legislações dos países da União a faculdade de
permitirem a reprodução das referidas obras, em certos casos
especiais, desde que tal reprodução não prejudique a explora-
ção normal da obra nem cause um prejuízo injustificado aos le-
gítimos interesses do autor.
Parilli10 distingue a interpretação restritiva que deve ser dada a estas
limitações:

Esto quiere decir que tales límites son los impuestos, no


solamente a las legislaciones nacionales, sino también al
intérprete de la ley, de modo que cualquier aplicación del
dispositivo que consagre una excepción, há de tomar en
cuenta dichos principios rectores.

Ainda no artigo 10 da Convenção de Berna, que regula a possibilida-


de de citação de obras tornadas acessíveis ao público, na medida justifi-
cada para o fim a atingir, inclusive em jornais e revistas, além da utiliza-
ção lícita de obras literárias e artísticas, a título de ilustração do ensino
por meio de publicações, emissões radiofônicas ou de gravações sonoras
ou visuais, desde que “conforme os bons costumes».
Na verdade, como bem defende Manso11 , haveria, nesta possibilidade
de uso sem ferir o interesse privado do titular, o confronto entre dois
interesses: de um lado o autor, que deve ser protegido porque criou a obra
com seu mérito, esforço e dedicação e, de outro, a sociedade, que lhe
forneceu a matéria-prima dessa obra e que é o seu receptáculo natural.
A seguir apresenta-se um rápido histórico das limitações nas leis auto-
rais brasileiras e analisam-se as principais delas na lei vigente.

10
PARILLI, Ricardo Antequera. Derecho de Autor. Caracas: Servicio Autónomo de la Propriedad Intelectual,
1998, t. I, p. 460.
11
MANSO, Eduardo Vieira. Direito Autoral; Exceções impostas aos direitos autorais (derrogações e limitações).
São Paulo: José Bushatsky, 1980, p. 90.

260 Direito e Democracia vol.4, n.2, 2003


2.2 Principais limitações ao Direito do autor na
Legislação Brasileira

2.2.1 Pequeno histórico das limitações ao Direito do Autor no


Direito pátrio

A legislação autoral pátria, bem observando os preceitos da Conven-


ção de Berna, prevê em um capítulo próprio as limitações ao Direito do
Autor. Na atual Lei Autoral brasileira (n.º 9.610), esta previsão se faz nos
seus artigos 46 a 48. De qualquer sorte, é bom destacar ainda que as
legislações anteriores já previram estas possibilidades.
A primeira Lei Autoral brasileira foi a de n.º 496, de 1º de agosto de
1898. Nela já constaram dispositivos que inseriram no ordenamento jurí-
dicos as limitações ao Direito do Autor. Constaram logo após os artigos 19
a 21, que definiram o crime de contrafação, regulando quais atos não se
constituíam em crime. A seguir, reproduz-se o texto do artigo 22º, manti-
da a grafia das palavras do texto original:
Art. 22º - Não se considera contrafação:
1 A reprodução de passagens ou pequenas partes de obras já
publicadas, nem a inserção, mesmo integral, de pequenos escri-
tos no corpo de uma obra maior, contanto que esta tenha cará-
ter científico ou que seja uma compilação de escritos de diver-
sos escritores, composta para uso da instrução pública. Em caso
algum a reprodução pode dar-se sem a citação da obra de onde
é extraída e do nome do autor;
2 a reprodução em diários e periódicos de noticias e artigos políti-
cos extraídos de outros diários e periódicos e a reprodução de
discursos pronunciados em reuniões públicas, qualquer que seja
a sua natureza. Na transcrição de artigos deve haver a menção
do jornal de onde são extraídos e o nome do autor. O autor,
porém, que dos artigos, qualquer que seja a natureza, quer dos
discursos, é o único que os pode imprimir em separado;
3 a reprodução de todos os atos oficiais da União, dos Estados ou
das municipalidades;

vol.4, n.2, 2003 Direito e Democracia 261


4 a reprodução, em livros e jornais, de passagens de uma obra
qualquer com um fim critico ou de polemica;
5 a reprodução no corpo de um escrito de obras de artes figurati-
vas, contanto que o escrito seja o principal e as figuras sirvam
simplesmente para a explicação do texto, sendo, porém, obriga-
tória a citação do nome do autor;
6 a reprodução de obras de arte que se encontram nas ruas e praças;
7 a reprodução de retratos ou bustos de encomenda particular,
quando ela é feita pelo proprietário dos objetos encomendados.
O Código Civil vigente até 10.01.2003 (Lei n.º 3.071, de 1º de janeiro
de 1916)12 , regulou as limitações ao Direito do Autor em seu artigo 666,
com a redação que abaixo se apresenta:
Art. 666. Não se considera ofensa aos direitos de autor:
I - A reprodução de passagens ou trechos de obras já
publicadas e a inserção, ainda integral, de pequenas
composições alheias no corpo de obra maior, contanto
que esta apresente carater científico, ou seja compila-
ção destinada a fim literário, didático, ou religioso, in-
dicando-se, porém a origem, de onde se tomarem os
excertos, bem como o nome dos autores.
II - A reprodução, em diários ou periódicos, de notícias e
artigos sem carater literário ou científico, publicados em
outros diários, ou periódicos, mencionando-se os nomes
dos autores e os dos periódicos, ou jornais, de onde fo-
rem transcritos.
III - A reprodução, em diários e periódicos, de discursos pro-
nunciados em reuniões publicas, de qualquer natureza.
IV - A reprodução de todos os atos publicos e documentos
oficiais da União, dos estados e dos Municípios.
V - a citação em livros, jornais ou revistas, de passagens de
qualquer obra com intuito de critica ou polêmica.

12
Revogado em seus artigos 649 a 673 pela Lei n.º 5.988, de 14 de dezembro de 1973. Estranhamente, a Lei n.º
9.610 os revogou mais uma vez.

262 Direito e Democracia vol.4, n.2, 2003


VI - A cópia, feita à mão, de uma obra qualquer, contanto
que se não destine à venda.
VII - A reprodução, no corpo de um escrito, de obras de
artes figurativas, contanto que o escrito seja o principal,
e as figuras sirvam somente para explicar o texto, não se
podendo, porém, deixar de indicar os nomes do autores,
ou as fontes utilizadas.
VIII - A utilização de um trabalho de arte figurativa, para se
obter obra nova.
IX - A reprodução de obra de arte existente nas ruas e praças.
X - A reprodução de retratos ou bustos de encomenda parti-
cular, quando feita pelo proprietário dos objetos enco-
mendados. A pessoa representada e seus sucessores ime-
diatos podem opor-se a reprodução ou publica exposição
do retrato ou busto.
A Lei n.º 5.988, de 14 de dezembro de 1973, que regulou entre nós a
matéria daquela data até 20 de junho de 1998, também tinha um capítu-
lo próprio, o de n.º IV, para regular as limitações que aqui são discutidas.
A seguir, reproduzem-se as previsões legais nesse sentido daquele diplo-
ma legislativo:
Art. 49. Não constitui ofensa aos direitos do autor:
I - A reprodução:
a) de trechos de obras já publicadas, ou ainda que integral, de
pequenas composições alheias no contexto de obra maior, desde
que esta apresente caráter científico, didático ou religioso, e
haja a indicação da origem e do nome do autor;
b) na imprensa diária ou periódica, de notícia ou de artigo infor-
mativo, sem caráter literário, publicados em diários ou periódi-
cos, com a menção do nome do autor, se assinados, e da publica-
ção de onde foram transcritos;
c) em diários ou periódicos, de recursos pronunciados em reuniões
públicas de qualquer natureza;
d) no corpo de um escrito, de obras de arte, que sirvam, como

vol.4, n.2, 2003 Direito e Democracia 263


acessório, para explicar o texto, mencionados o nome do autor e
a fonte de que provieram;
e) de obras de arte existentes em logradouros públicos;
f) de retratos, ou de outra forma de representação da efígie, feitos
sob encomenda, quando realizada pelo proprietário do objeto
encomendado, não havendo a oposição da pessoa neles repre-
sentada ou de seus herdeiros.
II - A reprodução, em um só exemplar, de qualquer obra,
contando que não se destine à utilização com intuito de
lucro;

III - A citação, em livros, jornais ou revistas, de passagens de


qualquer obra, para fins de estudo, crítica ou polêmica;
IV - O apanhado de lições em estabelecimentos de ensino
por aqueles a quem elas se dirigem, vedada, porém, sua
publicação, integral ou parcial, sem autorização expres-
sa de quem as ministrou;
V - A execução de fonogramas e transmissões de rádio ou
televisão em estabelecimentos comerciais, para demons-
tração à clientela;
VI - A representação teatral e a execução musical, quando
realizadas no recesso familiar ou para fins exclusivamen-
te didáticos, nos locais de ensino, não havendo, em qual-
quer caso, intuito de lucro;
VII - A utilização de obras intelectuais quando indispensá-
veis à prova judiciária ou administrativa.
Art. 50. São livres as paráfrases e paródias que não forem verdadei-
ras reproduções da obra originária, nem lhe implicarem descré-
dito.
Art. 51. É lícita a reprodução de fotografia em obras científicas ou
didáticas, com a indicação do nome do autor, e mediante o pa-
gamento a este de retribuição equitativa, a ser fixada pelo Con-
selho Nacional de Direito Autoral.

264 Direito e Democracia vol.4, n.2, 2003


2.2.2 As limitações na atual Lei Autoral brasileira

2.2.2.a Notícia e artigo informativo em diários e periódicos

O primeiro dispositivo concernente às limitações da Lei Autoral vi-


gente regula as possibilidades de reprodução de obra que não são ilícitas.
O caput do artigo 46 é claro ao prescrever que “não constitui ofensa aos
direitos autorais”, para logo no inciso I mencionar a expressão “a reprodu-
ção”. Seguindo-se, tem-se a alínea “a”, com a seguinte redação:
a) na imprensa diária ou periódica, de notícia ou de artigo informa-
tivo, publicado em diários ou periódicos, com a menção do nome
do autor, se assinados, e da publicação de onde foram transcritos.
Este dispositivo tem nítido caráter de fim público, pois a liberdade de
informação é um dos esteios do Estado Democrático de Direito. O Brasil
a tem no inciso LIX do artigo 5º da Carta Política de 198813 . Muito lógica
e justa a limitação, então, pois nitidamente se valora o direito geral à
informação em prejuízo do direito do autor de notícias e artigos informa-
tivos de diários e periódicos, com a menção do veículo em que foram
publicados e do autor, se assinados.
Aprofunde-se, nesta linha, novamente amparado em Hammes14 , que
fatos noticiados não são privilégio de ninguém, e que notícias publicadas
não são obras, inexistindo motivo para postulação de Direito de Autor
sobre elas. O contrário não ocorre com artigos informativos, que são obras
e não há dúvida de que têm tutela autoral.
Neste particular, possível amparar-se também em Manso15 , mesmo que

13
É bem verdade que há, especialmente por parte de destacados atores da grande mídia, uma interpretação
exageradamente ampla da liberdade de informação e de imprensa, ao ponto de muitos literalmente a
considerarem acima do Direito e da Constituição, confundindo crítica e informação com ataques sem
qualquer cuidado à honra e imagem de cidadãos e de autoridades. Neste sentido, ADOLFO, Gonzaga.
Globalização, mídia e opinião pública. Globalização e Estado Contemporâneo. São Paulo: Memória Jurídica,
2001, p. 85-88, e STRECK, Lenio Luiz; MORAIS, José Luis Bolzan de. A opinião pública. Ciência Política e
Teoria Geral do Estado. Porto Alegre: Livraria do Advogado, 2000, p. 169-174. A própria idéia de “opinião
pública” é deturpada, pois não raro ela é, na verdade, a opinião daquele que faz a crítica, pois o único critério
razoavelmente plausível de reconhecê-la seriam os pleitos eleitorais, ainda assim se houvesse uma democracia
substancial e não democracia formal, como hoje. Mas isso aqui é apenas referencial e um rápido comentário,
não sendo, evidentemente, tema da pesquisa, devendo ser ampliado em outro momento.
14
HAMMES, Bruno Jorge. Op. cit. (2002), p. 97.
15
MANSO, Eduardo Vieira. Op. cit. (1980), p. 284.

vol.4, n.2, 2003 Direito e Democracia 265


este comente o dispositivo da Lei Autoral anterior, mas plenamente apli-
cável aqui:

Na verdade, a notícia não gera direitos autorais, eis que


nem mesmo a forma em que ela fica registrada pode ser
considerada obra intelectual, no exato sentido do direito au-
toral, como já se viu antes: não existe nela uma idéia confor-
mada à pessoalidade de um autor, preponderando o conteú-
do de fatos. Não há, assim, um autor de uma notícia, qua-
lidade que não se poderia atribuir nem mesmo àqueles que
lhe tivessem dado causa, como protagonistas do episódio.

Conclui, afirmando que teria sido mais correto inserir as notícias no


elenco de obras às quais não se aplicam as disposições da lei especial,
como se fez com relação aos textos de tratados, convenções e leis.

2.2.2.b Discursos pronunciados em reuniões públicas

A segunda alínea do inciso I do artigo 46 da Lei n.º 9.610, exclui da


necessidade de prévia autorização do autor a publicação, “b) em diários
ou periódicos, de discursos pronunciados em reuniões públicas de qualquer
natureza;”.
Também é uma limitação muito lógica, que caminha no mesmo rumo
daquela da alínea “a”, antes analisada. Há um claro interesse público
no conhecimento de manifestações orais feitas em reuniões públicas a
justificar esta limitação. O importante, no correto modo de ver de Ham-
mes 16 , é o caráter informativo. O mesmo não se pode afirmar relativa-
mente a coletâneas de discursos públicos ou aqueles pronunciados em
debates judiciais.

2.2.2.c Reprodução de representação de imagem por quem


os encomendou ou seus sucessores

Prosseguindo, a próxima alínea do inciso I do artigo 46 da Lei Autoral

16
HAMMES, Bruno Jorge. Op. cit. (2002), p. 97.

266 Direito e Democracia vol.4, n.2, 2003


brasileira apresenta a disposição a seguir transcrita, como não incidindo
em ofensa aos direitos patrimoniais do autor a reprodução:
c) de retratos, ou de outra forma de representação da imagem,
feitos sob encomenda, quando realizada pelo proprietário do
objeto encomendado, não havendo a oposição da pessoa neles
representada ou de seus herdeiros;
Este preceito tem sentido à medida que a pessoa que encomenda a
representação de sua imagem paga o serviço do autor (direito patrimoni-
al), geralmente fotógrafo. Logo, não teria lógica se não pudesse reprodu-
zir estas formas. É prática comum e freqüente de demonstração de afeto o
oferecimento de fotos entre amigos e familiares, mormente entre estes.
São os conhecidos retratos de família. Nesta racionalidade, correta a li-
mitação imposta aos autores dos retratos ou fotografia de família. Ca-
bral17 , no entanto, alerta que “na Lei 9.610 não existe a figura da obra sob
encomenda”. Assim, para ele, esse item trata de um assunto inexistente no
texto legal.
Ressalve-se, novamente ancorado na exata hermenêutica de Ham-
mes18 , que há que se distinguir entre o direito do autor da fotografia ou
de qualquer outra forma de retrato de família com o direito à imagem,
constitucionalmente assegurado (inciso X do artigo 5º da Constituição
Federal), que com aquele não se confunde, não sendo problema de Di-
reito do Autor, “mas de direito de propriedade em sentido amplo”.

2.2.2.d Reprodução de obras literárias em sistema destinado


a deficientes visuais

O quarto e último dispositivo do primeiro inciso do artigo 46 da Lei


Autoral brasileira é uma inovação, que não havia nas legislações autorais
anteriores, como se verifica no histórico anteriormente elaborado. Esta é
a redação dele:
d) de obras literárias, artísticas ou científicas, para uso exclusivo
de deficientes visuais, sempre que a reprodução, sem fins co-

17
CABRAL, Plínio. A nova Lei de Direito Autoral. 2.ed. Porto Alegre: Sagra Luzatto, 1999, p. 122.
18
HAMMES, Bruno Jorge. Ob. cit. (2002), p. 100.

vol.4, n.2, 2003 Direito e Democracia 267


merciais, seja feita mediante o sistema Braille ou outro procedi-
mento em qualquer suporte para esses destinatários;
Mais uma vez, é limitação de cristalina finalidade social, possibili-
tando reprodução de obras literárias no denominado sistema Braille ou
outro procedimento especificamente voltado à leitura por deficientes
visuais, desde que esta utilização não tenha um fim comercial. Como
inovação da lei que vige há pouco mais de quatro anos, deve ser sauda-
da, como faz Cabral 19 em curto parágrafo. Deve-se ter cautela com a
possibilidade de exploração anunciada sem fins lucrativos em prejuízo
do autor, se assim agirem camuflada ou disfarçadamente os utilizadores.
Vale dizer, a análise específica e clara da ocorrência ou não de lucro
deve ocorrer no caso concreto, mormente pelo autor ou titular dos di-
reitos patrimoniais.

2.2.2.e Reprodução de pequenos trechos para uso particular

O inciso II do artigo 46 da Lei Autoral faculta que o interessado faça


cópias de pequenos trechos de obras, desde que feitas pelo próprio e sem
objetivo de lucro. A redação, que foi umas das principais modificações da
vigente lei quando cotejada com a anterior, é a seguinte:
II - a reprodução, em um só exemplar de pequenos trechos,
para uso privado do copista, desde que feita por este,
sem intuito de lucro;
Ocorreu aqui uma inovação salutar na forma como a matéria está
regulada entre nós, pois a Lei n.º 5.988 possibilitava a reprodução de um
só exemplar, desde que não se destinasse à utilização objetivando lucro,
como se viu no inciso II do seu artigo 49, antes descrito. Houve, neste
particular, na Lei de 1973, um retrocesso com relação ao que previa o
Código Civil de 1916, no inciso VI do artigo 666, também reproduzido no
item 3.2.1, supra, pois este possibilitava uma cópia feita à mão de uma
obra qualquer, desde que não se direcionasse à venda.
A nova forma decorre do fantástico e até então inimaginável desen-
volvimento de novas formas de reprodução, especialmente das máquinas

19
CABRAL, Plínio. Op. cit., p. 122.

268 Direito e Democracia vol.4, n.2, 2003


reprográficas dos mais variados tipos. Neste dispositivo, na posição preci-
sa de Hammes 20 , está um dos grandes desafios do Direito Autoral. Ele
destaca que, com o tempo, ocorreu um desvio de finalidade da limitação:

O art. 49, II da Lei n. 5.988/73 falava de reprodução, em


um só exemplar, de qualquer obra, contanto que não se
destine à utilização com intuito de lucro. Quando essa exce-
ção foi permitida, entendia-se que o autor não sofreria qual-
quer prejuízo com o fato de alguém, interessado, por ex., em
uma música, fosse à biblioteca e copiasse a partitura. Aos
poucos, o modo de copiar foi se ampliando sem que com
isso se temesse prejuízo para o autor. Assim se tolerava tam-
bém que um pequeno conjunto musical fizesse meia dúzia de
cópias para o seu conjunto, valendo-se dos primitivos siste-
mas de copiar (gelatinas, mimeógrafo, ...). O aparecimento
de meios mais modernos de reprodução mudou fundamen-
talmente a questão. Já não se pode dizer que os autores não
sofrem prejuízos com a cópia particular feita por gravador
de som e de imagem, acessíveis a qualquer pessoa de classe
não muito pobre (Convenção de Berna, art. 9,2).

Ou seja, na boa intenção de possibilitar estes usos de um exemplar para


uso privado, e sem prever – e nem poderia – o nível de desenvolvimento
técnico que viria, a Lei de 1973 criou um dos maiores problemas nos quais
estava inserido o Direito do Autor. Criou-se uma interpretação extensiva
demais, redundando em números inconcebíveis, como noticia Cabral21 :

A interpretação, sem dúvida distorcida, desse artigo, deu como


resultado uma vasta indústria marginal de reproduções de li-
vros. Segundo pesquisas confiáveis, estima-se que, anualmen-
te, são tiradas 20 bilhões de cópias ilegais no Brasil.

O problema afeta a indústria editorial e o direito do autor.


Em 1994 a Câmara Brasileira do Livro estimou os prejuí-
zos provocados pela reprodução ilegal de livros em 200
bilhões de dólares.

20
HAMMES, Bruno Jorge. Op. cit. (2002), p. 110-111.
21
CABRAL, Plínio. Op. cit., p. 122-123.

vol.4, n.2, 2003 Direito e Democracia 269


Continua, citando afirmativa que fazia Chaves22 , já em seus últimos
meses de vida, em 1997:

Mas é chegado o momento de submeter a uma revisão, ou


melhor, eliminar completamente essa absurda idéia do in-
tuito de lucro, que jamais foi considerada na regulamenta-
ção de qualquer outra atividade humana a não ser a do
autor. [Tese apresentada à Primeira Conferência de Direi-
to Autoral, São Paulo, 8 jun. 1997].

Na verdade, tornou-se mesmo sem sentido o dispositivo da legislação


autoral que vigorou até 20 de junho de 1998. Observe-se que um interes-
sado que procura reprografia para fazer a fotocópia de um livro poderia
até não ter intuito de lucro, mas não há dúvida de que o proprietário da
empresa tem lucro, e fabuloso. Em última análise, tem objetivo de lucro
sim, mesmo quem faz cópia – integral, de obra disponível no mercado –
de criação alheia. No mínimo um “lucro às avessas’, se assim se pode
dizer, pois deixou de pagar pela obra seu valor legítimo no mercado, ou
seja, teve ganho econômico23 .
Correta, assim, mais uma vez, a perspectiva de Manso24 , quando ana-
lisou a matéria ainda sob a égide da Lei de 1973:
Assim, enquanto o interessado na obtenção da cópia visa unicamente
a utilizar a obra para fins meramente intelectuais, fazendo estrito uso
privado da própria obram segundo a natureza desta, aquela pessoa (no
geral uma pessoa jurídica) que possui a máquina copiadora estará tirando
um proveito econômico da mesma obra mediante um preço que cobra
pela cópia que fornece. Há, pois, em cena, dois interesses que se satisfa-
zem com diferentes formas de usar a obra: um, tira-lhe o proveito natural,
que é a sua utilização intelectual (para a qual se vale da cópia); outro,
um proveito anormal, quando não devidamente autorizado para tal.
Nesse modo de apreciar o tema, é alerta feito por Hammes25 que a

22
Idem.
23
Nesta linha, destaque-se que uma das tantas definições de lucro fornecidas por Houaiss é “qualquer vantagem
ou benefício que se pode tirar de alguma coisa”. HOUAISS, Antonio et al. Dicionário Houaiss da Língua
Portuguesa. Rio de Janeiro: Objetiva, 2001, p. 1.788.
24
MANSO, Eduardo Vieira. Op. cit., p. 304.
25
HAMMES, Bruno Jorge. Op. cit. (2002), p. 112.

270 Direito e Democracia vol.4, n.2, 2003


utilização de cópias para uso particular sem qualquer forma de controle
extrapola as limitações permitidas pela Convenção de Berna:
O grande problema dessa cópia é que os meios de reprodução são hoje
acessíveis a todos e deixam de ser a prática inofensiva de outros tempos.
O que se multiplica hoje, a título de uso particular, está prejudicando
gravemente os autores, os editores, os produtores de fonogramas, razão
pela qual já não se conformam com art. 9,2 da Convenção de Berna.
Tem razão. Não se conformava já na Lei n.º 5.988, e continua não se
adequando na Lei que aqui é analisada, pois, infelizmente, a utilização
indiscriminada de obras alheias, mormente de obras literárias através de
fotocópias, contraditoriamente em vultos fantásticos nos estabelecimen-
tos de ensino, onde deveria se instigar a observância do direito alheio e
da lei, é realidade social e econômica que tem se sobreposto ao jurídico.
Costume, dito de outra forma.
Mas, como se salientava antes e se fez até aqui, neste rápido escorço
histórico, a lei que atualmente prescreve a matéria autoral entre nós se
mostrou um aperfeiçoamento ao restringir a possibilidade de uso privado
a pequenos trechos. A questão hermenêutica relevante que daí surgiu
foi a definição do que seriam os “pequenos trechos”, ou seja, quantificá-
los, através de critérios objetivos.
Logo surgiram sociedades, no campo das obras literárias, que são as prin-
cipais atingidas pelo dispositivo, para tentar frear a utilização sem controle
algum e exercer seus direitos autorais e editoriais. Foi fundada a Associação
Brasileira de Direitos Reprográficos – ABDR26 , que, legalmente constituída,
com estatutos e fins próprios, passou a firmar convênios com estabelecimen-
tos de ensino e empresas de reprografia, permitindo reprodução de até dez
por cento (10%) de obras publicadas por suas editoras filiadas. Interpretou,
desta forma, a ABDR que pequenos trechos poderiam ser conceptíveis até
este patamar, desde que a empresa recolhesse um percentual sobre o montan-
te cobrado pelas cópias no final do respectivo mês nesta rubrica.
Como oponente, foi criada por outro grupo de editoras a Associação
Brasileira de Direitos Editoriais e Autorais – ABPDEA27 , que não autori-

26
Site acessível em www.abdr.com.br.
27
Site acessível em www.abpdea.com.br.

vol.4, n.2, 2003 Direito e Democracia 271


za fotocópia de nenhum trecho de obras daquelas editoras que a geraram,
salvo se estritamente vinculadas ao uso e extração privados referidos no
inciso aqui detalhado. Ou seja, a ABPDEA não autoriza que terceiros –
diga-se reprografias – reproduzam as obras literárias. Baseia-se, entre outros
argumentos, naqueles que antes aqui foram expostos, especialmente na
interpretação restritiva dos direitos autorais, princípio que rege a maté-
ria. Para ser fiel à realidade, diga-se que tudo caminha para a cobrança
de remuneração pela cópia privada, o que expõe com a competência co-
nhecida Lipszyc28 , aqui meramente referencial, pois não é o tema central
destas linhas, embora certamente será enfocado em posterior momento.
Parece que ambas as posições, da ABDR e da ABPDEA, têm sentido
lógico. Nada impede que o titular do Direito de Autor e dos direitos
editoriais autorize cópia de determinado percentual (10%, no caso) de
suas obras, mediante o recolhimento de retribuição. Em sentido contrá-
rio, se assim não entender, pode negar, diante do artigo 4º da Lei Autoral,
em caso de interpretação de que as empresas reprográficas têm atividade
comercial, altamente lucrativa, e, portanto, não estaria inserida como
cópia para uso particular as reproduções feitas. A remuneração pela cópia
privada, porém, que hoje é feita contratualmente, nos casos autorizados
pela ABDR poderia ser legal, na opinião de muitos.
Para arrematar esta concisa análise, alerte-se, novamente com socor-
ro de Hammes29 e Manso30 , que a disponibilização comercial de cópias de
obras com intuito de lucro é “pirataria”, e como tal deve ser reprimido e
tratado. Mas o tema pirataria será enfocado em posterior trabalho31 , não
sendo objeto destas linhas.

2.2.2.f Citação de trechos de obras para estudo, crítica ou


polêmica

A sexta limitação a ser analisada está inserida no inciso III do artigo


46 de nossa Lei Autoral. Seu texto é o seguinte:

28
LIPSZYC, Delia. Derecho de Autor y derechos conexos. Buenos Aires: UNESCO/CERLALC /ZAVALIA, 2001,
p. 241-244.
29
HAMMES, Bruno Jorge. Op. cit. (2002), p. 116.
30
MANSO, Eduardo Vieira. Op. cit., p. 304.
31
São fantásticos e lamentáveis, igualmente, os números sobre a pirataria de obras musicais e programas de
computador, e ainda a pirataria de marcas, com comercialização de produtos com estes sinais falsificados.

272 Direito e Democracia vol.4, n.2, 2003


III - a citação em livros, jornais, revistas ou qualquer outro
meio de comunicação, de passagens de qualquer obra,
para fins de estudo, crítica ou polêmica, na medida
justificada para o fim a atingir, indicando-se o nome do
autor e a origem da obra.
Quem faz estudo, crítica ou polêmica, evidentemente deve se utilizar
de trechos de obras alheias para assim proceder. Não teria sentido algum
a impossibilidade de uso destes trechos para a efetivação daqueles intui-
tos. Observe-se que o dispositivo permite a citação em livros, jornais,
revistas ou qualquer outro meio de comunicação de passagens de obras,
desde que na medida justificada para o fim a atingir, e que o utilizador
indique o nome do autor e a obra de onde foram extraídas. Infelizmente,
este dispositivo não é observado como deveria, sendo muito ampliado,
mormente no mundo escolar e acadêmico (fins de estudo), mais por des-
conhecimento de normas técnicas que por má-fé ou dolo. Não são pou-
cos os trabalhos escolares ou acadêmicos em que os alunos copiam textos
literários na íntegra, muitas vezes até sem fazer menção do autor e da
obra da qual extraíram aqueles entendimentos. Isso não é trabalho cien-
tífico, e tal agir não está amparado na limitação ora em comento. Trata-
se de plágio, evidentemente, além de ofender direito moral do autor quan-
do não indica autor e fonte.
Crê-se que os professores e instituições de ensino nos mais variados
níveis – começando pelo Ensino Fundamental, é claro – deveriam traba-
lhar com mais acuidade temas relativos à elaboração de trabalhos de pes-
quisa, as normas técnicas impostas pela ABNT e também pela legislação
autoral, neste particular, mas, antes de tudo, pela ética, por que não?
Valoriza-se muito a extensão e pouco o conteúdo. Não raro, ao propor um
trabalho de pesquisa, o docente ouve a pergunta: qual extensão ou quan-
tas páginas?
Não resta dúvida de que a utilização possibilitada deve ser discreta e
na medida absolutamente necessária ao fim a atingir, como prescreve o
inciso III do artigo 46 32 . A denominada “medida justificada para o fim a
atingir”, entretanto, reclama melhor definição. Ascensão33 aprofunda com
a propriedade de sempre:

32
Para Ascensão, “o que interessa é o condicionamento geral do art. 10º/1 da Convenção de Berna: ‘serem conformes aos
bons costumes e na medida justificada ao fim a atingir’”. (Op. cit., p. 217).
33
Idem, p. 217-218.

vol.4, n.2, 2003 Direito e Democracia 273


Pode abranger tudo o necessário, porque a citação é um elemento
imprescindível do diálogo intelectual que não pode ser coarctado pelas
leis. Até à revisão de Estocolmo, a Convenção de Berna permitia apenas
as ‘citações curtas...’ Hoje o adjetivo foi suprimido, e com inteira razão. O
fim que se prossegue pode exigir uma citação longa, e nesse caso nada a
deve impedir. Uma polêmica pode exigir longas citações do texto do ad-
versário.
O mesmo com relação à crítica ou polêmica. Um crítico de obras de
qualquer tipo pode e deve utilizar pequenos trechos de obras para criticá-
las, mas sempre com a cautela antes sugerida para a utilização em estu-
dos. É muito comum a utilização destes. As revistas semanais de notícias,
apenas para exemplificar, geralmente trazem trechos de obras literárias,
nas seções em que fazem análise delas. O mesmo com relação à crítica
cinematográfica em televisão, apenas para exemplificar, já que o inciso
amplia a utilização para qualquer outro meio de comunicação.
A parte final, entretanto, merece relevo. Ao utilizar os trechos para os
fins permitidos, deve obrigatoriamente o utilizador mencionar a origem
dele e o nome do autor. Se assim não agir, estará infringindo direito moral
do autor, sobretudo aquele do inciso II do artigo 24 da Lei n.º 9.610. No
mesmo rumo, não pode fazer qualquer modificação no trecho citado pois,
se assim agisse, infringiria agora os incisos IV e V do mesmo artigo, mor-
mente o primeiro.

2.2.2.g Utilização do apanhado de lições pelos alunos a


quem se destinam

De duvidosa técnica de redação, o inciso IV do artigo 46, que neste


instante se critica. Observe-se que, ao contrário dos demais antes verifi-
cados (todas as alíneas do inciso I, e os incisos II e III), aqui não há
verbo, de modo que ficou mal redigido o inciso, como se vê na seqüência:
IV - o apanhado de lições em estabelecimentos de ensino
por aqueles a quem elas se dirigem, vedada sua publica-
ção, integral ou parcial, sem autorização prévia e expressa
de quem as ministrou;
Ora, o caput exprime que “não constitui ofensa aos direitos autorais”, e
este inciso – como os demais – deve, na melhor técnica de redação legis-

274 Direito e Democracia vol.4, n.2, 2003


lativa, a ele ficar vinculado. Então melhor seria utilizar no início a ex-
pressão “a utilização” de apanhado de lições nos estabelecimentos de
ensino. Na verdade, não só o apanhado pode ser feito, mas sim sua utili-
zação para os fins de estudo daqueles a quem se dirigem. No caso, “apa-
nhar” tem a conotação de juntar, recolher. Nesta linha de mira, o que o
dispositivo permite é que os alunos de estabelecimentos de ensino utili-
zem as lições transmitidas por seus professores, sem necessidade de per-
missão destes e sem ofender a direito patrimonial do autor. Outra não
poderia ser a interpretação. Então, aqui se trata de lições em sua conota-
ção ampla, vale dizer aulas ditadas, esquematizadas, no quadro, em flip-
chart, transparências em retroprojetor, Power Point ou qualquer outro su-
porte, como polígrafos e planos de aula34 .
Saliente-se, mais uma vez com arrimo no magistério de Hammes35 ,
que o verdadeiro sentido deste inciso está em sua segunda parte, ao regu-
lar que o professor tem direito autoral sobre suas aulas. Logo, somente os
alunos daquele respectiva turma poderão utilizar o apanhado das lições
ministradas naquele ambiente, não podendo ser feita sua publicação to-
tal ou parcial sem autorização expressa de quem as ministrou, ou, em
outras palavras, vedada sua comercialização sem prévio consentimento
do titular.
A gravação de aulas, a nosso ver, extrapolaria esta previsão, que deve
ser interpretada – como todas as demais – restritivamente, norma, aliás,
da própria Lei Autoral, inserida em seus artigos 4º e 49, VI. Destarte,
somente podem ser gravadas as aulas com prévia e expressa autorização
do docente. Fazê-la sem autorização significa lamentável ultraje aos mais
elementares preceitos éticos, e utilizá-las em ilegalidade36 . Deve ser pre-
servado o espaço próprio da sala de aula.

34
O professor é pago pela instituição para lecionar. A forma como fará está ligada à sua liberdade e autonomia
acadêmica. É linha mestra da educação nacional hoje a valorização desta, como consta na Lei de Diretrizes
da Educação. A utilização pelos alunos, então, não pode ter custos adicionais que não aqueles de sua
matrícula ou mensalidades. A retribuição do professor pela elaboração de polígrafos e compêndios é
matéria afeita ao Direito do Trabalho. A atual Convenção Coletiva firmada entre o Sindicato de Estabe-
lecimentos de Ensino e o Sindicato de Professores de Estabelecimentos privados de ensino no Estado do
Rio Grande do Sul prevê pagamento de certo valor pelos polígrafos elaborados para as respectivas aulas, ou
do tempo (horas) que o professor dedicou à elaboração deles.
35
HAMMES, Bruno Jorge. Op. cit. (2002), p. 101.
36
Também os meios de comunicação têm utilizado este expediente fartamente, na atualidade, principalmente
os programas do chamado jornalismo investigatório. O Poder Judiciário, felizmente, não tem dado guarida
a este tipo de prova, em especial das gravações telefônicas sem autorização legal.

vol.4, n.2, 2003 Direito e Democracia 275


2.2.2.h A utilização de obras para demonstração à clientela

A oitava limitação que merece atenção, nestas rápidas linhas, é aque-


la formalizada legislativamente no inciso V do artigo 46 da Lei Autoral
vigente, assim sistematizado:
V - a utilização de obras literárias, artísticas ou científicas,
fonogramas e transmissão de rádio e televisão em esta-
belecimentos comerciais, exclusivamente para demons-
tração à clientela, desde que esses estabelecimentos
comercializem os suportes ou equipamentos que permi-
tam a sua utilização;
De início, diga-se que se alargou o regulado em nosso ordenamento
legal até a vigência da atual Lei que prescreve a matéria. No inciso V do
artigo 49 da Lei n.º 5.988, a limitação era restrita à execução de fonogra-
mas e transmissões de rádio ou televisão, em estabelecimentos comerci-
ais, para demonstração à clientela. A novidade do inciso ora examinado
está na possibilidade também de utilização sem ferir os direitos autorais
de obra literária, para a exibição a quem pretende adquirir referidas obras.
E, ainda na ressalva, inexistente no anterior ordenamento, de que os
estabelecimentos comercializem os suportes ou equipamentos que permi-
tam sua utilização.
Mais uma vez, a técnica de redação não foi a mais exata. É manifesto
que esta parte final – relativa aos suportes e equipamentos – se relaciona
especificamente com a possibilidade de exibição à clientela de fonogra-
mas (obras musicais), equipamentos de rádio e televisão. Não se vislum-
bra, num primeiro plano, quais suportes ou equipamentos possam permitir
utilização de obra literária, onde, salvo melhor visão, a própria obra é o
suporte. No entanto, novamente com socorro do que corretamente prega
a respeito, Hammes37 , não se pode admitir a ampliação desta utilização
para fins de demonstração à clientela, de modo a possibilitar demasiada
interpretação e utilização, como nas calçadas dos pontos de venda e nas
vitrines, o que é comum, registre-se.

37
HAMMES, Bruno Jorge. Op. cit. (2002), p. 101.

276 Direito e Democracia vol.4, n.2, 2003


2.2.2.i Representação teatral e execução musical no recesso
familiar e em estabelecimentos de ensino

O próximo dispositivo em análise é o do inciso VI do artigo 46 da Lei


Autoral de nosso país. A previsão é a seguinte:
VI - a representação teatral e a execução musical, quando
realizadas no recesso familiar ou, para fins exclusivamente
didáticos, nos estabelecimentos de ensino, não havendo
em qualquer caso intuito de lucro;
O dispositivo faculta a representação teatral e a execução musical no
recesso familiar ou em estabelecimentos de ensino, desde que sem finali-
dade de lucro. Trata-se de duas possibilidades distintas, como se vê.
Quanto à primeira, é necessário definir o recesso familiar, o que faz Ham-
mes38 com precisão:
O recesso familiar não se restringe necessariamente às pessoas da fa-
mília, mas é o ambiente que reúne pessoas cujo relacionamento é de
caráter familiar. Não é preciso, segundo a doutrina alemã, que as pessoas
reunidas tenham todas entre si tal relacionamento.
De muito bom senso a previsão. As pessoas podem perfeitamente utilizar
obras, para representação teatral e em seu convívio familiar, sem infração
ao direito do criador da obra, e do intérprete (direito conexo), no caso das
obras musicais. A questão hermenêutica fundamental é definir a extensão
do recesso familiar, como antes referiu Hammes, no trecho citado.
Acredita-se que esta interpretação também deve se dar de forma res-
tritiva, para que se evitem os abusos e excessos. Como acentua Ham-
mes 39 , o Escritório Central de Arrecadação e Distribuição de Direitos
Autorais – ECAD, instituído pelo artigo 99 da Lei n.º 9.610 40 , com missão
de arrecadar e distribuir direitos autorais sobre obras musicais e líteromu-
sicais, entende que esta limitação não se aplica em festas de casamento,
vale dizer que festa de casamento não estaria dentro do contexto de re-
cesso familiar. Pensa-se necessário evitar radicalismos. Positivamente fa-
lando, não há dúvida de que pode o ambiente de uma festa de casamento

38
HAMMES, Bruno Jorge. Op. cit. (2002), p. 102.
39
Idem, nota de rodapé n. 3.
40
Na verdade mantido, pois a Lei n.º 5.988, de 14 de dezembro de 1973, o instituiu em seu artigo 115.

vol.4, n.2, 2003 Direito e Democracia 277


não ser “recesso familiar” no significado que lhe dão os doutrinadores
autoralistas. Crê-se, entretanto, que deve ser feita uma análise do caso
concreto, como sempre é de se esperar em qualquer interpretação jurídi-
ca. Há festas e festas de casamento. Uma coisa é uma festa de casamento
em uma pequena associação de moradores de arrabalde, com cinqüenta
convidados, possivelmente todos com forte vinculação, seja de parentes-
co ou de amizade, com os nubentes ou com os pais dos noivos. Outra,
diferente, é uma festa para mil convidados, no melhor clube da cidade,
com a banda mais famosa do momento e bufett finíssimo. O importante, é
claro, é a extensão do número de convidados, de sorte a se concluir que
não há ali “recesso familiar”. De qualquer modo, gize-se mais uma vez
que esta interpretação é essencialmente dogmático-positiva.
A segunda possibilidade de utilização é das mesmas obras em estabe-
lecimentos de ensino, sem escopo de lucro, para fins exclusivamente di-
dáticos. Muito lógica a restrição ao direito do autor ou titular do direito
do autor ou direitos conexos. A finalidade eminentemente escolar, de
ensino, assim possibilita. Pondere-se, no entanto, que se vincula a objeti-
vos eminentemente de instrução de alunos. Novamente o ECAD suscita
polêmica no Brasil em meados de cada ano, quando pululam em todo o
país as chamadas festas juninas, mesmo que muitas, em última interpre-
tação, sejam julinas. O órgão arrecadador decidiu cobrar pela utilização
das obras musicais em estabelecimentos de ensino. Ora, em um primeiro
plano parece que festividades deste porte não se enquadram, efetiva-
mente, como atividades de fim didático. Novamente, todavia, deve ser
levado em conta o caso concreto, na verificação da extensão da utiliza-
ção, ou seja, da festa. O bom senso também é fonte histórica de Direito, e
geralmente não falha.

2.2.2.l Utilização de obras para prova judicial ou


administrativa

A décima limitação do Direito do Autor ora em apreciação possibilita


a utilização da obra autoral como prova em processos judiciais ou admi-
nistrativos. Neste diapasão, é transparente a redação do inciso VII do
artigo 46 da Lei sob exame:
VII - a utilização de obras literárias, artísticas ou científicas
para produzir prova judiciária ou administrativa;

278 Direito e Democracia vol.4, n.2, 2003


Não poderia ser outra a previsão a respeito. Prevalece princípio de
ordem pública, ou seja, a instrução de processo judicial ou administrati-
vo, em detrimento do direito do autor da obra. Imagine-se a proibição de
utilização em processo-crime de uma carta do acusado onde ameaçava
assassinar a vítima, apenas para exemplificar, sem prévia autorização da-
quele. Evidentemente, não a daria.
Manso41 chega a vinculá-lo ao princípio constitucional da ampla de-
fesa, destacando que a utilização da obra em prova deste tipo não tem
como fim precípuo um ganho econômico, ainda que a lide tenha como
objeto central de discussão um ganho material. Para ele, com razão,
A administração da Justiça é um dever inadiável do Estado, que, dada
sua relevância social, não poderia ser obstruída com a sonegação de pro-
vas para apenas resguardar-se o interesse pessoal do titular do direito
autoral.

2.2.2.m Reprodução de fotografia em obra científica ou


didática
O mais extenso dispositivo das limitações, na verdade o último inciso
do artigo 46, possibilita a utilização de pequenos trechos de obras autorais
de qualquer natureza, ou de obra integral, se de arte plástica, em casos
específicos, como se vê abaixo:
VIII - a reprodução, em quaisquer obras, de pequenos tre-
chos de obras preexistentes, de qualquer natureza, ou
de obra integral, quando de artes plásticas, sempre que
a reprodução em si não seja o objetivo principal da obra
nova e que não prejudique a exploração normal da obra
reproduzida nem cause um prejuízo injustificado aos le-
gítimos interesses dos autores.
Possibilita este inciso que sejam reproduzidos pequenos trechos de obras
de qualquer espécie, ou de obra integral, se de artes plásticas, quando a
reprodução em si não seja o principal objetivo da obra nova e, ainda,
desde que não prejudique a exploração normal da obra reproduzida nem
cause prejuízo injustificado aos legítimos interesses do autor. Embora ex-

41
MANSO, Eduardo Vieira. Op. cit., p. 326.

vol.4, n.2, 2003 Direito e Democracia 279


tenso na redação, na verdade, trata-se de reprodução meramente ilustra-
tiva em outra obra original. Imagine-se um autor que escreve livro sobre
a história da literatura brasileira, e em determinado capítulo analisa esta
ou aquela escola literária. Pode reproduzir pequeno trecho de livro de
certo autor vinculado àquela escola literária específica, nas condições
aqui previstas. Ou, em outro exemplo, um autor que publica obra sobre
artes plásticas, pode licitamente reproduzir na íntegra – possivelmente
por fotografia – obra de arte de Vasco Prado, por exemplo, com o único e
exclusivo intuito de ilustrar suas afirmativas42 .

2.2.2.n. Paráfrases e paródias


Após análise do longo artigo 46 e seus incisos, é o momento do artigo
47 da Lei Autoral, cuja redação, sempre para fins de melhor compreen-
são, se transcreve: “São livres as paráfrases e paródias que não forem verda-
deiras reproduções da obra originária nem lhe implicarem descrédito”.
O artigo é de clareza singular, ao prever que são livres as paráfrases e
paródias. Entrementes, previne-se a segunda parte do dispositivo, que
limita estas possibilidades a utilizações que não sejam verdadeiras repro-
duções da obra originária, e que não lhe impliquem descrédito. Inicial-
mente, convém destacar as expressões “paráfrase” e “paródia”, em seus
significados lexicográficos, na mais completa obra brasileira do gênero,
na atualidade:
Paráfrase. S.f. (1720 cf. RB) 1 LIT interpretação ou tradução em
que o autor procura seguir mais o sentido do texto que a sua
letra; metáfrase. 2 LIT interpretação, explicação ou nova apre-
sentação de um texto (entrecho, obra etc.) que visa torná-lo mais
inteligível ou que sugere novo enfoque para seu sentido 2.1 pej.
Trabalho desse gênero cujo texto, prolixo e supérfluo, só faz diluir
o conteúdo do texto sobre que versa. 3 PED USO de paráfrase
(acp. 1), no sentido de um texto ou no ensino de composição
literária. 4 LIT versão versejada de um original em prosa, sem

42
CABRAL, Plínio. Op. cit., p. 127. O autor concorda com este raciocínio, chegando a dizer que “seria de todo
injusto - além de tecnicamente impraticável - proibir a reprodução de um quadro de autor contemporâneo numa obra
que, por exemplo, estude esse período das artes plásticas brasileiras”.

280 Direito e Democracia vol.4, n.2, 2003


preocupação de perfeita equivalência 5 LIT versão, ger. Em ver-
so, de passagem da Bíblia, cujo tema o autor desenvolve. 6 p. ext.
pej. Narração ou discurso prolixo, verboso, supérfluo. 7 p. ext.
infrm. Interpretação ou comentário desfavorável, maldoso. 8 LING
maneira diferente de dizer algo que foi dito; frase sinônima de
outra. 9 MÚS técnica de contraponto dos séculos XV e XVI, em
que uma voz (ou mais) fazia citações de uma melodia e cantochão.
10 MÚS transformação de uma melodia a partir de um tema (p.
ex., litúrgico)<p.pra órgão de Bach>. 11 MÚS fantasia de com-
plexidade virtuosística para o executante composta sobre melo-
dia ou obra preexistente <as p. de Liszt sobre óperas italianas>.
ETIM lat. Paraphrasis,is’interpretação ou tradução livre quanto à
forma>gr. Paráphrasis,eõs ‘íd.’, f.hist. 1720 parafrase, 1720 parafrasi,
1720 parâphrasi, 1899 paráfrase43 .
...
Paródia s.f. (1833 cf. AGC) obra literária, teatral, musical etc. que
imita outra obra, ou os procedimentos de uma corrente artísti-
ca, escola etc. com objetivo jocoso ou satírico; arremedo ETIM
gr. Paroidía, as’imitações bufa de um trecho poético, paródia’,
do gr. pará ‘ao lado de’+’ode’pelo lat. parodia,ae‘id’. PAR paro-
dia (fl. parodiar); paródias (pl.)/parodias(fl. Parodiar)44 .
Hammes45 destaca a limitação como natural decorrência de quem se
expõe, através da criação intelectual. Sendo ônus desta condição de au-
tor, o autoralista gaúcho é enfático ao afirmar que “se o autor não quer ser
criticado, assiste-lhe o direito de manter a obra inédita”. Entretanto, cite-se
Pimenta46 , que entende restritivamente a possibilidade paródia. Para ele,

A paródia, em princípio, se baseia na adaptação, e não na


forma, constituindo em obra derivada. Assim não é
admissível a paródia de obra literária, porque esta seria
completa imitação. O que poderia ocorrer com a obra

43
HOUAISS, Antonio et al. Op. cit., p. 2.127.
44
Idem, p. 2.137.
45
HAMMES, Bruno Jorge. Op. cit. (2002), p. 103.
46
PIMENTA, Eduardo S. Código de Direitos Autorais e Acordos Internacionais. São Paulo: Lejus. 1998, p. 172.

vol.4, n.2, 2003 Direito e Democracia 281


literária seria a crítica à obra ou sobre o autor. A paródia
caracteriza pelo efeito humorístico; portanto, esta não se
confunde com a obra originária.

Na verdade, as paráfrases e paródias são obras derivadas, contanto


que não sejam verdadeiras imitações e não impliquem em descrédito da
obra originária, como prevê a lei.

2.2.2.o Reprodução de obras de arte situadas


permanentemente em logradouros públicos
O último dispositivo legal relativo às limitações aqui analisadas é o
artigo 48, verbis: “As obras situadas permanentemente em logradouros públi-
cos podem ser representadas livremente, por meio de pinturas, desenhos, fo-
tografias e procedimentos audiovisuais”.
Trata-se de limitação plausível, por estarem ditas obras em logradou-
ros públicos47 . Diga-se, por necessário, que esta possibilidade tem formas
e tipos de utilização limitados em lei a pinturas, desenhos, fotografias e
procedimentos audiovisuais, como se vê na análise do artigo supra repro-
duzido.
Hammes48 elogia a atual previsão legal, pois a redação da lei anterior,
reproduzida no item 3.2.1, dizia que “é livre a reprodução de obras existen-
tes em logradouros públicos”.

CONSIDERAÇÕES FINAIS
O tema primacial desta pesquisa foi a possibilidade de utilização das
obras autorais sem necessidade de prévia e expressa autorização do titu-
lar da obra. São as limitações ao Direito do Autor. Chegando ao fim do
desiderato proposto – que será ampliado significativamente em capítulo

47
Neste sentido, convém consultar a classificação dos bens públicos, nos artigos 65 e 66 do Código Civil de 1916
e artigos 96 a 98 do Código Civil de 2002.
48
HAMMES, Bruno Jorge. Op. cit. (2002), p. 99, item 203.

282 Direito e Democracia vol.4, n.2, 2003


de futura tese de doutoramento – convém fechar com algumas conclu-
sões sobre o tema.
Sendo o Direito do Autor direito de propriedade, toda forma de utili-
zação da obra exige prévia autorização do criador, ou do titular dos direi-
tos sobre a obra. Prévia e expressa, convindo sublinhar o artigo 29 da Lei
n.º 9.610. Em última e correta análise, que se fez em rápidas pinceladas
nas linhas que aqui se encerram.
As limitações ao Direito do Autor são, então, as formas legalmente
previstas, onde não há necessidade desta prévia e expressa autorização.
Afirmando de outro jeito, são as possibilidades de uso onde o utilizador
da obra não infringe o Direito do Autor. Direito patrimonial do autor,
também é conveniente mais uma vez ser enfático.
Partem de uma interpretação que regula todo tipo de propriedade,
desde as “comuns” até as de caráter especial, como o Direito Autoral.
Desde o instituto da função social da propriedade até a desapropriação e
requisição, como manifestado na parte introdutória do ponto nevrálgico
deste trabalho. Ou seja, a propriedade não é absoluta, especialmente em
sua interpretação moderna. Na verdade, nunca foi, pois sempre enfren-
tou determinadas limitações. Por razões óbvias, hodiernamente deve-se
aprofundar esta interpretação. A propriedade artística, literária e cientí-
fica também. Daí o ordenamento jurídico impor que o autor tolere deter-
minadas utilizações de suas obras.
A Convenção de Berna bem tratou do assunto em seus artigos 9 e 10,
como salientado, remetendo às legislações nacionais as formas específicas
de regulação delas. O que fez o Brasil, desde a primeira Lei Autoral, a de
n.º 496, de 1º de agosto de 1898, como aqui se viu.
Averiguou-se, igualmente, que a vigente Lei trouxe alguns progressos
em relação à matéria, quando se defronta com as que a antecederam,
inclusive com a última, a Lei n.º 5.988, tendo na possibilidade de cópia
para uso particular, antes possível até um exemplar da obra e agora limita-
da a pequenos trechos, a mais saudável inovação.
Ocorrem abusos, alguns até certo ponto próximos do crime ou propri-
amente ações criminosas – a pirataria de obras, como se analisou mera-
mente como notícia, pois não é objeto deste – em decorrência da inter-
pretação indubitavelmente muito extensa e liberal que se dá ao disposto
em lei, sempre feita por interessados em explorar obras alheias sem nada,

vol.4, n.2, 2003 Direito e Democracia 283


pouco ou menos pagar, ou seus prepostos e asseclas, diga-se de passagem.
Quem tem o mínimo de conhecimento na matéria, jamais fará interpreta-
ções tão demasiadamente alargadas como algumas vezes se vê.
Esta interpretação mais dilatada não pode prevalecer também por
motivos positivados no ordenamento legal das limitações de que se ocu-
pa. Começando pela Convenção de Berna, que é clara ao referir, no item
2 de seu artigo 9, que aqui deve ser enaltecido, que ditas reproduções/
limitações não podem prejudicar a exploração normal da obra e nem cau-
sar prejuízo injustificado aos legítimos interesses do autor. Sem falar na
interpretação restritiva dos direitos autorais, verdadeiro princípio norte-
ador da matéria, que qualquer principiante no estudo dela conhece.
Com presteza, então, devem ser interpretadas restritivamente, sendo refu-
táveis as propostas de alargamento que algumas vezes se verificam. Ainda, são
numerus clausus, não existindo limitações à margem daquelas que a legisla-
ção prevê.
Os abusos, mormente aqueles que giram em torno da pirataria, que
não se confunde com qualquer das limitações, como antes se concluiu,
devem ser admoestados pelos princípios e regulações legais próprios.
Infelizmente, muitos se interessam pela matéria somente a partir de
visão econômica. É utopia que antes seja por convicção pessoal, ética,
intelectual, filosófica ou política. Mas vive-se uma época de extremo prag-
matismo e interpretação essencialmente econômica do mundo, como cer-
tamente nunca se viu.
Ao menos assim seja. Para o bem dos autores, através da proteção de
suas obras. E da humanidade (coletividade), que cresce com as manifes-
tações intelectuais, sendo uma das tantas formas de se chegar mais perto
de Deus.

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286 Direito e Democracia vol.4, n.2, 2003


Direitos humanos, interculturalidade
e racionalidade da resistência*

Human rights, interculturality


and resistance rationality

JOAQUÍN HERRERA FLORES


Director del Doctorado “Derechos Humanos y Desarrollo”, Universidad Pablo de Olavide, UPO, Sevilla-Espanha.

RESUMO
O autor discute a teoria dos direitos humanos, a partir de um contexto
intercultural, defendendo um universalismo de mesclas como uma nova
racionalidade de resistência .
Palavras-chave: Direitos humanos, multiculturalismo, interculturalidade,
Universalismo.

ABSTRACT
By considering an intercultural context, the author discusses the human rights
theory, defending a mixture universalism as a new resistance rationality.
Key words: Human rights, multiculturalism, interculturality, universalism.

* Tradução por Carol Proner, professora de direitos humanos da Faculdades do Brasil.

Direito e Democracia Canoas vol.4, n.2 2º sem. 2003 p.287-304


vol.4, n.2, 2003 Direito e Democracia 287
INTRODUÇÃO
Falar de direitos humanos no mundo contemporâneo supõe enfrentar-
se a desafios completamente diferentes dos que enfrentaram os redatores
da Declaração Universal de 1948. Em décadas posteriores à “nossa” De-
claração, os economistas e políticos keynesianos reformulavam os âmbitos
produtivos e geoestratégicos nas bases de uma “geopolítica de acumula-
ção capitalista baseada na inclusão”, política que assentou as bases do
chamado Estado de Bem Estar (pactos entre capital e trabalho com o
Estado servindo de garantidor e árbitro da distribuição da riqueza). Des-
de princípios dos setenta até os dias de hoje grande parte desse edifício
desmoronou em razão da extensão global de uma “geopolítica de acumu-
lação capitalista baseada na exclusão” e que recebe o nome de neolibera-
lismo - desregulamentação dos mercados, dos fluxos financeiros e da or-
ganização do trabalho, com a conseguinte erosão das funções do Estado).
Se na fase de inclusão, os direitos significavam barreiras contra os “desas-
tres” – efeitos não intencionais da ação intencional – que produzia o
mercado, na fase de exclusão é o mercado quem dita as normas permitin-
do, principalmente às grandes corporações transnacionais, superar as “ex-
ternalidades” e os obstáculos que os direitos e instituições democráticas
opõem ao desenvolvimento global e total do mercado capitalista.
Vivemos, pois, na época da exclusão generalizada. Um mundo no qual
4/5 dos habitantes sobrevivem no umbral da miséria; no qual, segundo o
informe do Banco Mundial de 1998, a pobreza aumenta em 400 milhões de
pessoas por ano, significando que, atualmente, 30% da população mundial
vive (sobrevive) com menos de um dólar por dia – afetando de modo espe-
cial às mulheres – e 20 % da população mais pobre recebe menos de 2% da
riqueza ao passo que os 20% mais ricos reservam 80% da riqueza mundial.
Um mundo no qual, em razão dos planos de (des)ajuste estrutural, impõe-
se o desaparecimento das mínimas garantias sociais: mais de 1 milhão de
trabalhadoras e trabalhadores morrem por acidente de trabalho, 840 mi-
lhões de pessoas passam fome, 1 bilhão de seres humanos não tem acesso a
água potável e a mesma quantidade são analfabetos (PNUD, 1996). Um
mundo no qual as mortes por fome e doenças evitáveis chegam por ano a
cifras iguais às mortes das Torres Gêmeas multiplicadas por 6000 ... Resta
evidente que não importam as pessoas, mas unicamente a rentabilidade.
Estas são as cifras do “fim da história”, do final da bipolarização e do
triunfo do pensamento e do poder únicos. Cifras que demonstram o desa-

288 Direito e Democracia vol.4, n.2, 2003


parecimento de milhares de pessoas, condenadas à pobreza mais laceran-
te e que contemplam, assombrados e indignadas, a ostentação dos países
enriquecidos a suas custas. Cifras, pois, que estão na base do que se tem
chamado de “surgimento dos tribalismos e dos localismos”: em definitivo,
dos fundamentalismos. O “Norte” recebe com surpresa e indignação as
demonstrações de raiva e cólera do “Sul”, encerrado na desesperança.
Como responder? Pois fechando as fronteiras, construindo fortalezas jurí-
dicas e policiais que impeçam a “invasão” dos desesperados e famintos ...
diferentes. O debate político e teórico sobre o multiculturalismo, que
ocorre nos países enriquecidos pela ordem global, ao contrário de estarem
concentrados nas cifras da miséria e nos efeitos produzidos pela “globali-
zação” das lutas de classe, dedicam-se a bradar contra os perigos cultu-
rais que supõem os diferentes, principalmente aqueles que se vêem obri-
gados a emigrar para melhorar, na medida do possível, suas precárias con-
dições de vida. Já não há luta de classes. Conforme afirma Huntington,
há somente “choque de civilizações”. As “profecias” desse autor são reco-
nhecidas e amplificadas pela trama mediática comprometida com a ma-
nutenção do status quo genocida e aparentemente imutável.
Há 110 anos o poeta de “nossa América” José Martí dizia na primeira
Conferência Monetária Internacional Americana: “Quem diz união eco-
nômica diz união política. O povo que compra manda, o povo que vende
serve; é preciso equilibrar o comércio para assegurar a liberdade”. Quem
pode negar que essas palavras, ditadas com o objetivo de cortar o passo aos
aterradores abraços do “Big Brother”, possam aplicar-se à situação atual
pela qual transcorre a ancestral problemática das migrações e a milenar
realidade da convivência e/ou confrontação entre diferentes formas de
explicar, interpretar e intervir no mundo. O país que recepciona manda, o
imigrante, diferente/desigual serve: estamos ante a lei de oferta e demanda
aplicada, neste caso, à tragédia pessoal de milhões de pessoas que fogem do
empobrecimento de seus países em razão da rapina indiscriminada do capi-
talismo globalizado. Vejamos os enfoques dominantes nesta matéria: em
primeiro lugar, a insistência por parte das autoridades da União Européia
de fazer frente à “guerra de imigração ilegal”, adotando medidas puramen-
te policiais tendentes à construção de uma Europa fortaleza que ambicio-
na, novamente, proteger seu bem estar às custas de suas antigas colônias;
em segundo lugar, veja-se a generalização de clichês e estereótipos vertidos
sobre os imigrantes, ideológica e interessantemente conhecidos como “ile-
gais”, ou frases como: “eles vem retirar nossos postos de trabalho e depois
não querem trabalhar, e sim protestar”; em terceiro lugar vejamos a falta de

vol.4, n.2, 2003 Direito e Democracia 289


visão “global” do fenômeno migratório – e da realidade de multiplicidade
de formas de vida – ao reduzi-lo a temas como os de identidades culturais
– redução que retira a dimensão política – ou de “cupos” (número de imi-
grantes por ano que podem se regularizar e viver nos países de recepção),
que faz com que vejamos a imigração como um problema de simples neces-
sidade de mão-de-obra em épocas determinadas e não como um fenômeno
causado pelas injustiças da globalização neoliberal selvagem que vem apro-
fundando o abismo entre os países ricos e os países pobres. Estes enfoques
são as notas que definem a tendência das atuais políticas européias ante a
realidade da imigração; notas que seguem o papel pautado de imposição de
uma ordem global cuja premissa ideológica explícita é a exclusão e o aban-
dono de quatro quintos da população mundial.
Muitos dos que perdemos algum familiar em seu particular périplo bus-
cando emprego nos Estados de Bem Estar do continente europeu, sabemos
da tragédia pessoal que supõe o abandono do país de origem para buscar
saídas econômicas para a pobreza. E também conhecemos todas as seqüelas
da aculturação e de submissão a condições laborais e de vida indignas que
o próprio imigrante se auto-impõe para não chocar com o “cidadão” do país
acolhedor. A imigração é um problema de claras conotações culturais, mas,
sobretudo, de desequilíbrio na distribuição de riqueza. Se uma só empresa
transnacional é possuidora de um produto interior bruto superior a todas as
áreas de países subsaharianos; se os povos do Sul sofrem bloqueio em seu
desenvolvimento por conta da existência de uma dívida injusta cujo paga-
mento está “assegurado” pelas instituições globais e multilaterais estranhas
ao mínimo controle democrático; e se sobre os países empobrecidos pela
rapina das grandes corporações sobrevoam com maior intensidade os ver-
dadeiros problemas meio-ambientais, populacionais e de saúde, está claro
que as migrações e as diferenças culturais têm muito mais a ver com a
desigualdade social e com os desequilíbrios econômicos entre países do que
com as questões bizantinas a respeito do reconhecimento dos outros: os
países que compram mandam, dizia Martí.
Se queremos refletir desde esse reconhecimento das especificidades
dos outros, devemos partir da convicção expressada nos parágrafos ante-
riores: os problemas culturais estão estritamente interconectados com os
problemas políticos e econômicos. A cultura não é uma entidade alheia
ou separada das estratégias de ação social; ao contrário, é uma resposta,
uma reação à forma como se constituem e se desenvolvem as relações
sociais, econômicas e políticas em um tempo e um espaço determinados.
Por essa razão, as visões tradicionais do multiculturalismo não acrescen-

290 Direito e Democracia vol.4, n.2, 2003


tam muito aos problemas concretos aos quais nos enfrentamos hoje em dia
– veja-se o caso da imigração e suas conseqüências sociais e culturais. Por
um lado, temos as propostas multiculturalistas de tendência conservadora
– propiciar políticas de ação afirmativa ou discriminação positiva que apro-
ximem o máximo possível os diferentes (e não os desiguais, ainda quando
na maioria dos casos uma classe leva a outra) ao padrão ouro do que se
considera normal. De diferentes modos, uma impõe-se à outra e ambas as
posições compartilham um ponto de vista universalista abstrato que, como
tal, não pode ser questionado, apesar das enormes falhas e das conseqüên-
cias desastrosas que estão provocando para a maioria da humanidade. Da
mesma forma, as posições multiculturalistas holistas ou, para dizer de outro
modo, nativistas ou localistas, tampouco acrescentam a nosso debate, dado
o radicalismo na esfera das raízes identitárias ou dos parâmetros religiosos
totalizados. Estas posições também terminam defendendo, como veremos
mais adiante, algum tipo de universalismo abstrato: se na “idéia” o que
prima é a identidade – o que nos separa – mas na prática o que impera é o
contrato mútuo e a necessidade de convivência, o que podem aportar estas
posições na hora de abordar a realidade plural na qual vivemos ? Não difi-
cultaria ainda mais a exigência cultural do diálogo e a prática social inter-
cultural? Para refletir sobre esses problemas, a partir de uma teoria compro-
metida com os direitos humanos, devemos fazer uma série de precisões.

TRÊS VISÕES A RESPEITO DOS DIREITOS


HUMANOS
A polêmica sobre os direitos humanos no mundo contemporâneo
centra-se atualmente em duas visões, duas racionalidades e duas prá-
ticas. Em primeiro lugar, uma visão abstrata, vazia de conteúdo, refe-
renciada nas circunstâncias reais das pessoas e centrada em torno da
concepção ocidental de direito e do valor da identidade. E, em se-
gundo lugar, uma visão localista na qual predomina o “próprio”, o nosso
com respeito aos dos outros e centrada em torno da idéia particular de
cultura e de valor da diferença. Cada uma dessas visões dos direitos
propõe um determinado tipo de racionalidade e uma visão de como
colocá-los em prática.

Visão abstrata ———— Racionalidade Jurídico/Formal ————— Práticas universalistas


Visão localista ——— Racionalidade Material/Cultural ————— Práticas particularistas

vol.4, n.2, 2003 Direito e Democracia 291


As duas visões contém razões de peso para serem defendidas. O
direito, visto desde sua aparente neutralidade, pretende garantir a
“todos”, e não a uns frente a outros, um marco de convivência co-
mum. A cultura, vista desde seu aparente encerramento local, pre-
tende garantir a sobrevivência de símbolos, de uma forma de conheci-
mento e de valoração que oriente a ação do grupo para fins preferidos
por seus membros. O problema surge quando cada uma destas visões
passa a ser defendida apenas por seu lado e tende a considerar inferior
as demais, desdenhando outras propostas. O direito por sobre o cultu-
ral e vice-versa. A identidade como algo prévio à diferença ou vice-
versa. Nem o direito, garantia de identidade comum, é neutral; nem a
cultura, garantia da diferença, é algo fechado. Torna-se relevante
construir uma cultura dos direitos que recorra em seu seio à universali-
dade das garantias e o respeito pelo diferente. Mas isso supõe uma
outra visão que assuma a complexidade do tema que abordamos. Esta
visão complexa dos direitos humanos é a que queremos desenvolver
nestas páginas. Seu esquema respeita a seguinte estrutura:

Visão Complexa ——————Racionalidade de resistência ———— Prática intercultural

Com esta visão, queremos superar a polêmica entre o pretenso univer-


salismo dos direitos e a aparente particularidade das culturas. Ambas as
afirmações são produto de visões reducionistas da realidade. Ambas aca-
bam por ontologizar e dogmatizar seus pontos de vista ao não relacionar
suas propostas com os contextos reais. Vejamos um pouco mais detida-
mente as diferenças entre essas três visões dos direitos.
As visões abstrata e localista dos direitos humanos supõem sempre si-
tuar-se em um centro a partir de onde se passa a interpretar todo o restan-
te. Nesse sentido, passa a ser a mesma coisa analisar uma forma de vida
concreta ou uma ideologia jurídica e social. Ambas funcionam como um
padrão de medidas e de exclusão. Dessas visões, deriva um mundo desin-
tegrado. Toda centralização implica automatização. Sempre haverá algo
que não esteja submetido à lei da gravidade dominante e que deve ficar
marginalizada da análise e da prática. É sutil recordar aqui aquela ima-
gem com a qual Robert Nozick justificava metodologicamente seu Estado
mínimo: fazer uma foto da realidade elegendo o plano que queremos res-
saltar e, no estudo, recortar por todos os lados até chegar à imagem que
nos convém. E, pois, o excluído vai ser regido e determinado pelo centro
que impusemos ao conhecimento e à ação.

292 Direito e Democracia vol.4, n.2, 2003


Por esta razão, a visão complexa dos direitos aposta por situar-nos na
periferia. Centro somente há um. O que não coincida com ele é abandona-
do à marginalidade. Periferias, no entanto, existem muitas. Na realidade
tudo é periferia, se aceitamos que não há nada puro e que tudo está relaci-
onado.1 Uma visão a partir da periferia dos fenômenos nos indica que de-
vemos abandonar a percepção de “estar no entorno”, como se fossemos algo
afastado ao que nos rodeia e que deve ser dominado ou reduzido ao centro
que inventamos. Não estamos no entorno. “Somos o entorno”. Não pode-
mos nos descrever a nós mesmos sem descrever e entender o que é e o que
faz o entorno do qual formamos parte. No entanto, nos educaram para nos
entendermos e “vivermos” como se fossemos entes isolados de consciência
e de ação, postos em um mundo que não é o nosso, que nos é estranho, que
é diferente ao que somos e fazemos e, por essa razão, podemos dominar e
explorar. Ver o mundo a partir de um pretenso centro supõe entender a
realidade material como algo inerte, passivo, algo a que se necessita dar
forma a partir de uma inteligência alheia a ela. Ver o mundo a partir da
periferia implica entendermo-nos como conjuntos de relações que nos atam,
tanto interna como externamente, a tudo e a todos os demais. A solidão do
centro supõe a dominação e a violência. A pluralidade das periferias supõe
o diálogo, a convivência. Seria o mesmo que comparar a visão panorâmica
e fronteiriça de La mirada de Ulises de Theo Angelopoulus, como o simplis-
mo violento e hierarquizador de Rambo.
Em segundo lugar, as visões abstrata e localista enfrentam-se a um
problema comum: o do contexto. Para aquela, há uma falta absoluta de
contexto, vez que se desenvolve no vazio de um existencialismo perigoso
por não se considerar como tal, mas fala de fatos e dados “da” realidade.
Para a outra, há um excesso de contexto que, ao final, se esfumaça no
vazio, provocando a exclusão de outras perspectivas: outro existencialis-
mo que somente aceita o que inclui, o que incorpora e o que valora,
excluindo e desdenhando o que não coincide com ele. Dialética abstra-

1
Citemos o exemplo das manifestações expressadas por uma jovem chicana proposta por Renato Rosaldo no seu texto
Cultura y Verdad: “Concerta-se uma pessoa desenvolvendo uma tolerância frente às contradições, uma tolerân-
cia frente às ambigüidades. Aprende a ser índica na cultura mexicana, a ser mexicana de um ponto de vista
anglo-saxão. Aprende a fazer jogos malabares com as culturas. Possui uma personalidade plural, funciona de
modo plural – nada é desejado, nem o bom, nem o mal, nem o horrível, nada é rejeitado, nada abandonado. Não
somente vive com as contradições, transforma a ambivalência em algo diferente” (cit. en Feyerabend, P.,
“Contra la inefabilidad cultural, el objetivismo ,el relativismo y otras quimeras” Archipiélago. Cuadernos de crítica
de la cultura, 20, 1995). Este texto nos demonstra que hoje em dia os pretensos núcleos centrais das culturas nos
ensinam muito pouco a respeito das mesmas; são problemas de limites, de periferias que se tocam uma com
outras, as que nos ensinam muito mais acerca do que somos e de onde estamos situados.

vol.4, n.2, 2003 Direito e Democracia 293


to/local que tão magnificamente se expressa nos personagens sombrios e
atormentados das novelas de Joseph Conrad.
Em sentido contrário, para a visão complexa, o contexto não é um
problema. É precisamente seu conteúdo: a incorporação dos diferentes
contextos físicos e simbólicos na experiência do mundo. Quanto não
aprenderíamos sobre direitos humanos escutando as histórias e narrações
a respeito do espaço que habitamos expressadas por vozes precedentes de
diferentes contextos culturais! Da visão fechada de Conrad, chegaríamos
à participação “carnavalesca” e “rabailesiana” da realidade proposta pelo
grande Mihail Bajtin.
Por último, as visões abstratas e localistas do mundo e dos direitos nos
conduzem à aceitação cega de discursos especializados. Provenha de uma
philosophe ou de um chamán, o conhecimento estará relegado a uma casta
que sabe que o universal é que estabelece os limites do particular.
A visão complexa, em sentido oposto, assume a realidade e a presença
de múltiplas vozes, todas como o mesmo direito a expressar-se, a denunci-
ar, a exigir e a lutar. Seria como passar de uma concepção representativa
do mundo a uma concepção democrática que prima pela participação e
pelas decisões coletivas.
Neste sentido, que tipo de racionalidade e de práticas sociais surgem
de cada uma destas visões sobre direitos?
Afirma o mestre George Steiner que “os que submergem a grandes
profundidades contam que, chegando a certo ponto o cérebro humano se
vê possuído por uma ilusão de que é novamente possível a respiração
natural. Quando isso ocorre, o mergulhador retira a escafandro e se afo-
ga. Torna-se bêbado com uma narcose fatal chamado de vertige des gran-
des profondeurs ... Daí os intentos sistemáticos e legislativos para (chegar
a) uma finalidade acordada”. O texto, retirado do enigmático livro Pre-
sencias reales, demonstra o horror que produz a multidimensionalidade do
real e as infinitas possibilidades de interpretação que existem. Tanto as
visões abstratas como as localistas abominam o contínuo fluxo de inter-
pretações e re-interpretações. Cada uma por seu lado procuram colocar
um ponto final hermenêutico que determine a racionalidade em suas aná-
lises e propostas.
Por um lado, a visão abstrata sistematiza seu “ponto final” sobre as premis-
sas de uma racionalidade formal. Ocupar-se unicamente da coerência inter-

294 Direito e Democracia vol.4, n.2, 2003


na das regras e sua aplicação geral a diferentes e plurais contextos resulta ser
uma armadilha conceptual e ideológica para não nos afundarmos, para não
sentirmos a vertigem da pluralidade e a incerteza da realidade e, desta for-
ma, ser um álibi bem estruturado para as pretensões universalistas. Em última
instância, o formalismo é um tipo básico de determinismo. Dado que a “estru-
tura” de nossa linguagem e, supostamente, de nosso pensamento está subme-
tida a regras, deduz-se que a realidade está “estruturada” do mesmo modo.
Se a realidade resiste à forma, pior para a realidade. Como conseqüência da
concepção isolada do eu com respeito ao mundo e do próprio corpo, o forma-
lismo reduz a ação cultural à intervenção sobre palavras e símbolos, nunca
sobre a realidade material ou corporal. O mundo e o corpo são vistos sempre
como algo separado, alheio ou, quando menos, problemático. Palavras sobre
palavras. Transformação de palavras, de símbolos. Nunca incidindo sobre o
transfundo real do qual formamos parte essencial. A partir dessa visão abstra-
ta e essa racionalidade formal, o único que parece significativo é o que pode
ser “anotado” simbólica ou numericamente. Não se trata do problema que
produz tratar de fatos sociais como coisas, e sim como fazer para que os fatos
sociais cheguem a ser coisas. O formalismo supõe um endurecimento da rea-
lidade capaz de permitir quantificar e “representar” em um “molde prefixa-
do” a riqueza e a mobilidade social. Há somente um passo desde a consciên-
cia da complexidade à “statistical objetification”. Tudo isso significa que,
embora a realidade seja muito mais ampla que a lógica ou a estatística, estas
deveriam servir àquela e não ao contrário.2
Ao reduzir a racionalidade à coerência interna de regras e princípios,
a visão abstrata dos direitos esquecerá algo muito importante para o en-
tendimento da sociedade e dos direitos: as regras e princípios reconheci-
dos juridicamente estarão submetidos às exigências de coerência e de
falta de lacunas internas. Mas, por sua vez, esta racionalização do real em

2
O exemplo do que vimos criticando encontra-se na monografía de Salais, Baverez y Reynaud, La invención del
paro en Francia. Historia y transformaciones desde 1890 hasta 1980, publicado pelo Ministerio de Trabajo,
Madrid, 1990. O “ endurecimento” da realidade que supõe o formalismo e a quantificação não são casuais
e nem estão separados dos interesses de poder: ver Serverin, E., De la jurisprudence en droit privé: théorie d’une
practique, Presses Universitaires de Lyon, Lyon, 1985, no qual se analisa o trábalo de taxonomia e de
classificação abstrata da realidade por parte do poder judicial; e, também, Daston L., “The domestication
of risk: mathematical probability and insurance, 1650-1830” en Krueger, L., (edit.), The Probabilistic
Revolution: Volumen I, Ideas in History, MIT Press, Cambridge MA, em relação à funcionalidade das
análises estatística com o surgimento e a consolidação das empresas de seguros de vida. Cfr., o interessante
ensaio de Alain Desrosières “How to Make Things Which Hold Together: Social Science, Statistics and
the State”, en Wagner, Wittrock y Whitley (edit.), Discourses on Society. The Shaping of the Social Science
Disciplines, Sociology of the Sciences Yearbook, vol. XV, Kluwer, Dordrecht, 1990, pp. 195-218 (existe trad. cast.
en Archipiélago. Cuadernos de crítica de la cultura, 20, 1995, pp.19-31)

vol.4, n.2, 2003 Direito e Democracia 295


termos jurídicos não terá em consideração a “irracionalidade das premis-
sas” sobre as que se sustentam e as quais pretende conformar desde sua
lógica e sua coerência. Este é o limite de todo “garantismo jurídico”, de
toda invocação formal ou neutral do Estado de direito, de toda política
representativa. Se a realidade se rege pelo mercado e neste não existe
mais racionalidade que a mão invisível, essa racionalidade irracional não
poderá ser regida pela racionalidade racional do direito, a menos que
esse cumpra a missão de “garantir”, não as liberdades e direitos dos cida-
dãos, mas as liberdades e direitos necessários para o mercado, a livre
concorrência e a maximização dos benefícios; ou seja, todos aqueles “a
priori” do liberalismo econômico e político. Estamos, pois, ante uma raci-
onalidade que universaliza um particularismo: o do modo de produção e
de relações sociais capitalista como se fosse o único modo de relação
humana. A racionalidade formal culmina em um tipo de prática universa-
lista que poderíamos qualificar de universalismo de partida, a priori, um pré-
juízo ao qual deve adaptar-se toda a realidade. Todos temos direito pelo
fato de havermos nascido. Mas com que direitos se nasce; qual é sua
hierarquia interna e quais são as condições sociais de sua aplicação e
interpretação constituem-se em matérias que não correspondem à visão
abstrata ou, o que significa o mesmo, descontextualizada dos direitos. Ao
sair do contexto o formalismo necessita criar uma nova realidade cujos
componentes deixam de ser meras abstrações lingüísticas para converte-
rem-se em coisas. Além disso, convertem-se em coisas equivalentes que
se sustentam entre si: p.e. suposto de fato e conseqüência jurídica. A
questão não reside em se perguntar se estes elementos são ou não equi-
valentes e se sustentam ou não entre si (isso significaria cair na armadi-
lha do formalismo), mas em perguntar quem decide tratar a esses ele-
mentos como equivalentes e com quê finalidades aparecem como objetos
que se sustentam entre si sem referência a seus contextos sociais, econô-
micos, políticos ou culturais?
Esta visão abstrata induz a reduzir os direitos a seus componentes jurí-
dicos como base de seu universalismo a priori. A prática social por direi-
tos deverá, pois, reduzir-se à luta jurídica. Por muito importante que seja
esta luta, dada a função de garantia que o direito pode e deve cumprir,
reduzir a prática dos mesmos a árbitros da norma nos levaria a aceitar
como princípio essa contradição básica de todo formalismo: racionalida-
de interna e irracionalidade das premissas. O que ocorre com os que se
negam a aceitar essas premissas irracionais, essa lógica do mercado que
torna homogêneo tudo o que por ela passa? O mercado necessita de uma

296 Direito e Democracia vol.4, n.2, 2003


ordem jurídica formalizada que garanta o bom funcionamento dos direi-
tos de propriedade. Essa ordem jurídica, com todo seu fundamento ético
e político, é o que se universaliza a priori, deslocando da análise questões
tais como o poder, a diversidade ou as desigualdades. É o que constitui o
racional e o razoável. Nele coincidem o real e o racional. Síntese final.
Unidade de opostos. O universal.
Constitui uma saída a esse universalismo abstrato reivindicar o local,
o particular ? Em princípio é preciso dizer que, em conseqüência desse
imperialismo do universal a priori, têm surgido vozes que exigem uma
volta ao local como reação compreensível frente aos desmandos e abusos
de tal colonialismo conceitual. Entretanto, o localismo também se afoga
frente à pluralidade de interpretações e, a seu modo, também constrói
outro universalismo, um universalismo de retas paralelas que somente se
encontrarão no infinito do magma das diferenças culturais. O “localis-
mo” sistematiza seu próprio “ponto final” sob as premissas de uma raciona-
lidade material que se resiste ao universalismo colonialista a partir dos
pressupostos do “próprio”. Fecha-se sobre si mesmo. Resistindo-se a uma
tendência universalista a priori de depreciar as “distinções” culturais com
o objetivo de impor uma só forma de ver o mundo, o localismo reforça a
categoria de distinção, de diferença radical, com o que, em última ins-
tância, acaba defendendo o mesmo que a visão abstrata do mundo: a
separação entre nós e eles, o desapreço pelo outro, a ignorância com res-
peito a que o único que nos faz idênticos é a relação com os outros; a
contaminação de alteridade. Daquele universalismo de ponto de chega-
da, chegamos ao universalismo de retas paralelas, de átomos que somente
se encontram quando chocam entre si. É uma reação natural enfrentar-
se à eliminação das diferenças que provoca o universalismo abstrato. Mas
contrapor a este a existência de essências diferenciais que podem rastre-
ar-se unicamente por uma arqueologia histórica provoca novas distorções
ao dedicar-se, no melhor e mais pacífico dos casos, a supor, sem inter-
relacionar, formas culturais diferentes. Estamos ante uma postura “nati-
vista”. Ante, por exemplo, os essencialismos da “negritude”, do “latino-
americano”, do “feminino”, do “ocidental” ... como formas de absolutizar
identidades. Adorar essas identidades essenciais faz-se tão perverso como
abominá-las. É deixar a história da humanidade ao arbítrio de essenciali-
dades estranhas à experiência e que podem conduzir ao enfrentamento
dos seres humanos entre si. Esta racionalidade “nativista” conduz a uma
prática comumente denominada de multicultural dos direitos como con-
clusão necessária de seu universalismo de retas paralelas. O termo “mul-

vol.4, n.2, 2003 Direito e Democracia 297


ticultural” ou não diz nada, dada a inexistência de culturas separadas, ou
conduz à suposição, no estilo de um museu, das diferentes culturas e
formas de entender os direitos. O multiculturalismo respeita as diferen-
ças, absolutizando as identidades e esfacelando as relações hierárquicas
– dominados/dominantes – que ocorrem entre as mesmas. Tal e como
qual tem defendido em múltiplas ocasiões Peter McLaren3 , a visão abs-
trata, no que concerne à polêmica sobre as diferenças culturais, nos con-
duz a um multiculturalismo conservador: existem muitas culturas, mas
somente uma pode considerar-se o padrão ouro do universal. Por sua par-
te, a visão localista nos conduzirá a um multiculturalismo liberal de ten-
dência progressista: todas as culturas são iguais, não há mais que estabe-
lecer um sistema de quotas ou de “afirmative action” para que as “inferi-
ores” ou “patológicas” possam aproximar-se à hegemonia, mas, ao estilo
do politicamente correto, respeitando sempre a hierarquia dominante.
Outorgar voz e presença em razão das diferentes posições sociais é uma
forma de ocultar a “diferença”, em muitas ocasiões não é mais que uma
conseqüência das desigualdades que ocorrem no início ou bem no desen-
volvimento do processo de relações sociais.
Há que dar um passo a mais. Como defendeu Lukács, os efeitos mais
importantes da implantação do capitalismo em nível conceitual são os da
fragmentação e da coisificação do que entendemos separada e isolada-
mente do contexto. Estamos ante a forma mais sutil de hegemonia. A
mesma posição pós-moderna, com sua insistência na falta de discursos
globalizadores, não é mais que outra forma, quiçá indireta ou inconscien-
te, de aceitar essa fragmentação e essa coisificação das relações sociais.
Por isso, nossa visão complexa dos direitos aposta por uma racionalida-
de de resistência. Uma racionalidade que não nega que é possível chegar a
uma síntese universal das diferentes opções relativas aos direitos. E tam-
pouco descarta a virtualidade das lutas pelo reconhecimento das diferen-
ças étnicas ou de gênero. O que negamos é considerar o universal como
um ponto de partida ou um campo de desencontros. Ao universal há que
se chegar – universalismo de chegada ou de confluência – depois (não antes)
de um processo conflitivo, discursivo de diálogo ou de confrontação no
qual cheguem a romper-se os prejuízos e as linhas paralelas. Falamos do

3
Cfr. Dentre outros muitos textos, o autor norte-americano discípulo de Paulo Freire, McLaren, P., Pedagogía
crítica y cultura depredadora. Políticas de oposición en la era postmoderna, Paidós, Barcelona, 1997. Ver também,
Douglas Kellner, Media Culture: cultural studies, identity and politics between the modern and the postmodern,
Routledge, 1995, esp. cap. 3.

298 Direito e Democracia vol.4, n.2, 2003


entrecruzamento e não de uma mera superposição, de propostas. O uni-
versalismo abstrato mantém uma concepção unívoca da história que se
apresenta como o padrão ouro do ético e do político. A luta pelo local nos
adverte que esse final da História nos conduz ao renascimento das histó-
rias. Mas não basta rejeitar o universalismo; é preciso denunciar também
que quando o local se universaliza, o particular se inverte e se converte
em outra ideologia do universal. Ao converter em universal e necessário
o que não é mais que um produto da contingência e da interação cultu-
ral, o resultado é a verdade absoluta. O universal e o particular estão
sempre em tensão. Esta tensão assegura a continuidade tanto do particu-
lar como do universal, evitando tanto o particularismo como o universa-
lismo. Dizer que o universal não possui conteúdos prévios não significa
que seja um conjunto vazio onde todo o particular se mescla sem razão.
Trata-se, em outros termos, de um universalismo que não se interpõe, de
um ou outro modo, à existência e à convivência, mas que se descobre no
transcorrer da convivência interpessoal e intercultural. Se a universalida-
de não se impõe, a diferença não se inibe; sai à luz. Nos encontramos ao
outro e aos outros com suas pretensões de reconhecimento e respeito. E
nesse processo – denominado por alguns como “multiculturalismo crítico
ou de resistência” –, ao mesmo tempo em que vamos rejeitando os essen-
cialismos universalistas e particularistas, vamos dando forma ao único
essencialismo válido para uma visão complexa do real: o de criar condi-
ções para o desenvolvimento das potencialidades humanas, o de um po-
der constituinte difuso que faça a contraposição, não de imposições ou
exclusões, mas de generalidades compartidas às que chegamos (de chega-
da), e não a partir das quais partimos (de saída).
Não vale acusar, por exemplo, aos países não ocidentais de boicotar as
Conferências internacionais de direitos humanos em fins do século XX
porque estariam apelando para suas culturas, vez que no processo de to-
das essas reuniões exige-se, por parte do Ocidente, a inclusão de cláusu-
las de respeito ao livre comércio e de regras de instituições internacionais
de comércio que são impostas a todo mundo empobrecido como se fossem
dogmas fechados e situados fora do debate. Como tampouco é válido par-
tir da rejeição a todas as idéias ocidentais sobre direitos humanos como se
fossem todas elas produtos do colonialismo e do imperialismo. Negar “ab-
solutamente” a visão ocidental dos direitos humanos acaba gerando, por
parte das culturas e dos países que consideram a sua cultura ocidental a
única que postula e defende direitos humanos, a afirmação do padrão
ouro a partir do qual se identifica a luta pela dignidade humana. Esta

vol.4, n.2, 2003 Direito e Democracia 299


pretensão ao essencialismo ético provoca o auto-desapreço, herdeiro de
uma longa tradição não-ocidental de luta pelos direitos humanos. Tanto
uma quanto a outra posição partem de universalizações e de exclusões;
não partem de processos que nos permitiriam chegar ao conjunto de ge-
neralidades que todos poderíamos compartilhar.4
Nossa racionalidade de resistência conduz, pois, a um universalismo de
contrastes, de entrecruzamento, de mesclas.5 Um universalismo impuro que propõe
a inter-relação e não a superposição. Um universalismo que não aceita a
visão microscópica que parte de nós mesmos no universalismo de partida ou
de retas paralelas. Trata-se de um universalismo que nos sirva de impulso
para abandonar todo tipo de visão fechada, seja cultural ou epistêmica, a
favor de energias nômades, migratórias, móveis, que permitam deslocarmo-
nos pelos diferentes pontos de vista sem a pretensão de negar-lhes, nem de
negar-nos, a possibilidade de luta pela dignidade humana.
A última esperança para o pensamento – nos lembrava Adorno e seu
Mínima Moralia – é o olhar que se desvia do caminho trilhado, o ódio e a
brutalidade, a busca de conceitos novos ainda não acoplados ao esquema
geral. Necessitamos de uma racionalidade sem lar, descentrada e exilada
do convencional e dominante. O problema não radica na preocupação
pela forma, mas no formalismo. O problema não reside na luta pela iden-
tidade, mas no essencialismo do étnico ou da diferença. Ambas tendên-
cias outorgam estabilidade ontológica e fixa a algo que não é mais que
uma, “outra”, construção humana.
Por isso propomos um tipo de prática, nem universalista e nem multi-
cultural, mas intercultural. Toda prática cultural é, em primeiro lugar, um
sistema de superposições entrelaçadas, não meramente superpostas. Este
entrecruzamento nos conduz a uma prática dos direitos inserindo-os em

4
A forma de salientar desses atoleiros é “buscar rasgos que conecten el ‘interior’ de un lenguaje o una teoría
o una cultura con su ‘exterior’, y de este modo reducir la ceguera inducida conceptualmente a las causas
reales de la incomprensión, que son la inercia, el dogmatismo, la distracción y la estupidez, habituales,
normales, corrientes y molientes. No se niegan las diferencias entre lenguajes, formas de arte, costumbres.
Pero (habría que atribuirlas) a accidentes de ubicación y/o historia, no a esencias culturales claras,
inequívocas e inmóviles: potencialmente cada cultura es todas las culturas” Feyerabend, P., op. cit, p. 50. Ao
texto de Feyerabend somente falta fazer uma referencia aos interesses econômicos e de poder como causa
dos pretensos “encerramentos culturais” para nos servirmos por completo de sua análise.
5
Nossa proposta é coincidente com a de uma universalidade analógica, histórica e situada, proposta por J.C.
Scannone em seu texto Nuevo punto de partida en la filosofía latinoamericana, Guadalupe, Buenos Aires, 1990.
No mesmo sentido, consulte-se Milton Santos, Técnica, Espaço, Tempo. Globalização e meio técnico-científico
informacional, Editora Hucitec, Sao Paulo, 1996, esp. cap. V, pp. 163-188.

300 Direito e Democracia vol.4, n.2, 2003


seus contextos, vinculando-os aos espaços e às possibilidades de luta pela
hegemonia e em estrita conexão com outras formas culturais, de vida, de
ação, etc. Em segundo lugar, nos induz a uma prática social nômade que
não busque “pontos finais” ao acúmulo extenso e plural de interpretações
e narrações e que nos discipline na atitude de mobilidade intelectual
absolutamente necessária em uma época de institucionalização, regimen-
tação e cooptação globais. E, por último, caminharíamos para uma prática
social híbrida. Nada é hoje “puramente” uma só coisa. Como afirma Edward
W. Said, necessitamos de uma prática híbrida e anti-sistêmica que possa
construir “descontinuidades renovadas e quase lúdicas, carregadas de impure-
zas intelectuais e seculares: gêneros mesclados, combinações inesperadas de
tradição e novidade, experiências políticas baseadas em comunidades de esfor-
ços e interpretações (no sentido mais amplo da palavra), e não em classes e
corporações de poder, posse e apropriação”6 Uma prática, pois, criadora e
re-criadora de mundos, que esteja atenta às conexões entre as coisas e as
formas de vida e que não nos prive de “outros ecos que habitem o jardim”.

CONSIDERAÇÕES FINAIS: PARA UMA


RACIONALIDADE DE RESISTÊNCIA
Frente a tudo isso, a reflexão sobre a interculturalidade nos conduz a uma
resistência ativa contra os roteiros que está tomando este tema nos debates
contemporâneos. Como exemplo, apliquemos a metodologia exposta ao caso
das migrações, uma vez que este é um tema no qual se evidenciam as conse-
qüências dos discursos multiculturalistas conservadores ou liberais.
Devemos resistir, em primeiro lugar, ao discurso que reduz o tema mi-
gratório à luta contra os tráficos ilegais, dado que a postura dos governos
na hora de “fornecer papéis” não está de acordo com as necessidades de
mão-de-obra necessária (ao menos que o que se pretenda seja manter
“sob controle” aos que não possuem outro remédio além de ter que acei-
tar condições escravizadoras de trabalho e que, por sua vez alimenta e
potencializa as redes de tráfico ilegal de pessoas).

6
Said, E. W., Cultura e imperialismo, Anagrama, Barcelona, 1996, p. 514. Ver, da mesma forma, Boaventura de
Sousa Santos, A crítica da razão indolente. Contra o desperdício da experiência, Cortez Editora, São Paulo, 2000.
E José Manuel Oliveira Mendes, “O desafio das identidades” en Boaventura de Sousa Santos (org.), A
Globalização e as Ciências Sociais, Cortez Editora, São Paulo, 2002, pp. 503-540.

vol.4, n.2, 2003 Direito e Democracia 301


Em segundo lugar, devemos resistir a considerar a problemática que de-
monstram as migrações como um problema policial e de controle de frontei-
ras. Assistimos a uma generalização de uma nova ordem global substancial-
mente diferente da ordem internacional de décadas passadas. Cada vez
nos regemos menos por tratados e convenções internacionais e mais pelas
mãos “bastante invisíveis” dos mercados, transnacionalmente inter-relaci-
onados, e que servem, em última instância, para assegurar a eficiência do
sistema frente aos desequilíbrios econômicos, sociais e culturais que, inten-
cionalmente ou não, geram. Como vem afirmando a teoria social contem-
porânea - se queremos abordar com “realismo” os fluxos migratórios e, com
eles, os temas suscitados pelo contato entre culturas – devemos encarar o
fenômeno a partir de três reconhecimentos: 1) O mundo mostra-se carac-
terizado por desequilíbrios profundos, como pode ser visto no tema das li-
berdades civis e também nos direitos sociais, econômicos e culturais; 2) As
fronteiras, sobretudo as fronteiras-fortalezas, são mecanismos essenciais para
manter as desigualdades entre nações e; 3) O controle das fronteiras repre-
senta a linha crítica de divisão entre o mundo desenvolvido, “o centro” e as
periferias econômicas crescentemente subordinadas.
E, em último lugar, devemos resistir a entender a “realidade” da imigra-
ção e da multiculturalidade como a principal geradora de problemas sociais
da época em que vivemos. Torna-se muito fácil, sobretudo após 11 de Se-
tembro, justificar a superioridade do valor da segurança sobre o restante
dos valores que inspiram os direitos humanos. E, mais fácil ainda, atribuir
ao imigrante ou ao diferente a responsabilidade, transformando-o em um
“bode expiatório” no qual situamos nossas frustrações e nossa incapacidade
política para resolver os problemas da delinqüência organizada, assim como
os problemas derivados dos débeis sistemas de pensão (previdência) que
nos asseguram um futuro incerto e problemático. O populismo de extrema
direita se nutre dessas incapacidades do Estado de Direito. Contra essa
tendência, devemos reconhecer, primeiro, o papel benéfico que em todas as
épocas históricas supuseram as migrações, as mesclas, as mestiçagens. E,
segundo, fazer chegar à opinião publica as vantagens laborais, fiscais e cul-
turais que a imigração é capaz de produzir.7

7
Por essas razões, deve-se ler com cautela as Diez tesis sobre la inmigración propostas por Agnes Heller. Segundo
a professora da New School for Social Research, há que se estabelecer “semáforos” de comportamento para
evitar o choque entre partes distintas; estes semáforos estariam baseados em um princípio geral: “a
emigração é um direito humano, enquanto que a imigração não o é”. Em outras palavras, se alguém quer
“sair” não se deve opor nenhum problema já que possui o “direito”; mas se quer “entrar”, já não se trata de
direitos, mas de privilégios, os quais devem estar regulados pelos de dentro. O cuidado da leitura, e não
a rejeição imediata do que propõe Heller, reside na convicção da necessidade de ações que prevejam

302 Direito e Democracia vol.4, n.2, 2003


Como nos dizia Martí, a economia deve ser controlada pela política.
Mas não por qualquer política, e sim por uma política comprometida não
somente com a livre circulação dos capitais, mas também com a livre
circulação das pessoas; uma política afastada de qualquer violação dos
direitos recorridos nos textos de direitos humanos; uma política, enfim,
que nos aporte mecanismos para podermos resistir, imigrantes e residen-
tes, a uma ordem global injusta e desigual.8 Os direitos humanos no mun-
do contemporâneo necessitam desta visão complexa, desta racionalidade
de resistência e destas práticas interculturais, nômades e híbridas para
superar os resultados universalistas e particularistas que impedem uma
análise comprometida dos direitos já há muito tempo. Os direitos huma-
nos não são unicamente declarações textuais. Tampouco são produtos
unívocos de uma cultura determinada. Os direitos humanos são os meios
discursivos, expressivos e normativos que pugnam por reinserir os seres
humanos no circuito de reprodução e manutenção da vida, permitindo-
nos abrir espaços de luta e de reivindicação. São processos dinâmicos que

possíveis conflitos interculturais e interclassistas. Mas a questão não reside em levantar obstáculos ou semáfo-
ros, mas em construir espaços de mediação no qual possamos transitar estabelecendo novas relações
sociais, econômicas e culturais. Que tipo de relações são estabelecidas quando todos estamos detidos ante
o semáforo Não estaríamos voltando a justificar o atomismo social que apenas confia em normas heterônomas
que aparentam impor-se a todos de modo igual ? Não constituem, os controles aduaneiros e fronteiriços,
um semáforo unicamente para uns e não para outros ? Daí surge o princípio geral proposto por Heller: a
emigração é um direito e a imigração não. Não estamos ante as duas caras de um mesmo fenômeno? Caso
queira, vá, ninguém te impedirá já que possui um direito “ individual”. Mas se quiser entrar, peça-me
permissão e eu decidirei se te autorizo entrar , já que o direito de veto é meu direito “individual” e sua
pretensão não é mais que um privilégio “coletivo” que pode chocar com meus interesses “individuais”.
Puderam os indígenas norte-americanos, africanos, andinos ... controlar os “privilégios” dos colonizadores
que se estabeleceram em suas terras ? Podem os camponeses controlar os “privilégios” das grandes empresas
transnacionais empenhadas em apoderar-se, sem precisar parar em semáforos de nenhum tipo, de todos
seus conhecimentos ancestrais e propô-los em seu próprio benefício? Precisam os capitais financeiros parar
em algum semáforo? Não estão sempre no vermelho os semáforos que impedem a mobilidade de milhões de
pessoas em busca de saídas à pobreza? Emigrar é imigrar. Ambos são direitos humanos na medida que ambos
supõem a construção de relações de reconhecimento, de empoderamento e de mediação política. Ao invés
de colocar semáforos, lutemos para construir situações de justiça, de solidariedade, de desenvolvimento,
de empoderamento. Quando as relações sociais deixem de ser imposição de hegemonias unilaterais e
partam para uma situação de equilíbrio e de igualdade, ali começará a assentar-se as bases que evitarão os
choques entre as partes. A prática intercultural define-se menos por impor barreiras e mais por construir
espaços públicos de mediação, intercâmbio e mestiçagem. Ver Sami Naïr, Las heridas abiertas. Las dos orillas
del Mediterráneo. ¿Un destino conflictivo?, Santillana, (Punto de Lectura) Madrid, 2002, Prólogo a cargo de
Joaquín Estefanía, pp. 9 y ss.
8
Neste sentido, veja-se os trabalhos de Samir Amin, “Las condiciones globales para un desarrollo sostenible”,
Jorge Alonso, “La Democracia, base de la lucha contra la pobreza”, Wim Dierckxsens, “Hacia una
alternativa sobre la ciudadanía” y Vandana Shiva, “El movimiento Democracia Viva. Alternativas a la
bancarrota de la globalización”, publicados recentemente em español em Alternativas Sur, nº 1, Vol. 1 (2002)
dedicado ao tema A la búsqueda de alternativas. ¿Otro mundo es posible?

vol.4, n.2, 2003 Direito e Democracia 303


permitem a abertura e a conseguinte consolidação e garantia de espaços
de luta pela particular manifestação da dignidade humana. 9 O único
universalismo válido consiste, pois, no respeito e na criação de condições
sociais, econômicas e culturais que permitam e potenciem a luta pela dig-
nidade: em outras palavras, consiste na generalização do valor da liberda-
de, entendida esta como a “propriedade” dos que nunca “existiram” na
construção das hegemonias. Desde essa caracterização, é necessário aban-
donar toda a abstração – seja essa universalista ou localista – e assumir o
dever que nos impõe o valor da liberdade: a construção de uma ordem
social justa (artigo 28 da Declaração de 1948) que permita e garanta a
todas e a todos lutar por suas reivindicações. As violações ocorrem tanto no
caso das mulheres condenadas a viver enclausuradas e apartadas dos pro-
cessos sociais cotidianos, como no caso dos seres humanos condenados pe-
las políticas colonialistas de destruição de seus países de origem a buscar
trabalho em um entorno hostil de um Ocidente-fortaleza. Reivindicar a
interculturalidade não se limita, por outro lado, ao necessário reconheci-
mento do outro. É preciso também transferir poder ( “empoderar”) aos ex-
cluídos dos processos de construção de hegemonia. E assim trabalhar para a
criação de mediações políticas, institucionais e jurídicas que garantam dito
reconhecimento e dita transferência de poder.
Não somos nada sem direitos. Os direitos não são nada sem nós. Nesse
caminho não fizemos mais que começar.

9
Joaquín Herrera Flores, “Hacia una visión compleja de los derechos humanos”; David Sánchez Rubio,
“Universalismo de confluencia, derechos humanos y proceso de inversión”; Franz Hinkelammert, “El
proceso de globalización y los derechos humanos: la vuelta del sujeto”, os três trabalhos publicados em
Joaquín Herrera Flores (ed.), El Vuelo de Anteo. Derechos Humanos y crítica de la razón liberal, Desclée de
Brouwer, Bilbao, 2001, pp. 19-78, 215-244, y 117-128 respectivamente. Franz Hinkelammert, “La negativa
a los valores de la emancipación humana y la recuperación del bien común” , Pasos, 90, 2000. Raúl Fornet
Betancourt, La transformación intercultural de la filosofía, Desclée, Bilbao, 2000. Juan Antonio Senent de
Frutos, Ellacuría y los derechos humanos Desclée, Bilbao, 1998, esp. cap. 2, y “Los derechos humanos y la
tensión entre universalidad y multiculturalismo”, Actas del Congreso Internacional en el ciencuentenario de la
Declaración Universal de los derechos humanos, Asociación Pro Derechos Humanos, Granada, 1999. Helio
Gallardo, Política y transformación social. Discusión sobre derechos humanos, Tierra Nueva, Quito, 2000.
Xabier Etxeberría, Imaginario y derechos humanos desde Paul Ricoeur, Desclée de Brouwer, Bilbao, 1995.
Alejandro M. Medici, “El campo de los movimientos críticos de la globalización y las alternativas frente al
neoliberalismo”, en Crítica Jurídica. Revista Latinoamericana de Política, Filosofía y Derecho, 20, 2002. Norman
José Solórzano Alfaro, “Los marcos categoriales del pensamiento jurídico moderno: avances para la discusión
sobre la inversión de los derechos humanos” en Crítica Jurídica. Revista Latinoamericana de Política, Filosofía y
Derecho, 18, 2001, pp. 283-316. Asier Martínez de Bringas, Globalización y derechos humanos, Cuadernos
Deusto de Derechos Humanos, 15, Universidad de Deusto, Bilbao, 2001. Luis de Sebastián, “Globalización,
exclusión y pobreza” en Revista Anthropos. Huellas del conocimiento“, 194, 2002, número dedicado a “La
pobreza. Hacia una nueva visión desde la experiencia histórica y personal”, pp. 55-64. María José Fariñas,
“Globalización, ciudadanía y derechos humanos” en Cuadernos Bartolomé de las Casas, 16, 2000.

304 Direito e Democracia vol.4, n.2, 2003


A Europa como comerciante
e advogado do mundo: o continente
e os processos globais

Europe as World’s Trader and


Attorney: the Continent and the
Global Processes

GÖRAN THERBORN
Swedish Collegium for Advanced Study in the Social Sciences, Uppsala -
Goran.Therborn@scasss.uu.se

RESUMO
A posição da Europa é analisada especificando-se a globalização em cinco
processos globais, nos quais o continente aparece como o centro dos fluxos de
comércio e capital, como a região dos mais profundos entrelaçamentos
transnacionais e como uma área de normatividade transnacional. Destacam-
se os antecedentes históricos e a inter-relação entre comércio internacional e
direito que transpõe as comunidades políticas na Europa, tanto na teoria social
moderna quanto na construção de instituições após a Segunda Guerra Mundi-
al, bem como a difusão do direito europeu para outros continentes.
Os conceitos de posição, papel e identidade devem ser distinguidos. As posi-
ções histórica e atual da Europa no mundo pouco se expressam nos papéis que
os líderes de hoje desejam cumprir nas formulações contemporâneas do

Originalmente publicada em “European Journal of Social Theory”, volume 5, issue 4, november 2002, p. 403-418,
a presente versão foi atualizada, pelo autor, especialmente para esta publicação, cortesia que agradecemos.
Tradução de Roberto Cataldo Costa.

Direito
vol.4, e Democracia
n.2, 2003 Canoas
Direito e vol.4, n.2
Democracia 2º sem. 2003 p.305-326
305
patrimônio e da identidade do continente. Isso acontece, em parte, em função
de um erro nostálgico de avaliação por parte de ex-políticos pertencentes às
altas esferas do poder, mas em muito devido à posição delimitada do direito e
do comércio europeus convencionais, e da transformação – real, mas não
teorizada – das tradições comerciais em comércio socialmente enraizado, e da
tradição jurídica em normatividade democrática internacional. Por fim, argu-
menta-se que essas práticas européias de comércio e direito correspondem, na
verdade, a múltiplas visões críticas sobre comércio e governança globais.
Palavras-chave: Globalização, integração européia, comércio, direito interna-
cional, direito europeu, espacialidade, papel, identidade.

ABSTRACT
Europe´s position in the world is analyzed in relation to a specification of global-
ization into five global processes, whereby Europe stands out as the central node
of global flows of trade and capital and as the region of uniquely high trans-
national entanglements, as an area of trans-national normativity. The historical
background and inter-relation of foreign trade and trans-polity law within Eu-
rope, both in early modern social theory and in post-World War II institution-
building, is highlighted, as well as the spread of European law onto other conti-
nents. The concepts of position, role, and identity had better be distinguished.
This historical and current position of Europe in the world is little expressed in the
roles which contemporary European leaders want to play and in contemporary
formulations of European heritage and identity. This is due partly to a nostalgic
misjudgment by ex-great power politicians, but largely because of the delimited
position of conventional trade and law in Europe, and of the actual but untheorized
transformation of trading traditions into socially embedded trade and of the legal
tradition into democratic inter-national normativity. It is finally argued that these
European practices of trade and law in fact correspond to many current critical
views on global trade and global governance.
Key words: Globalization, European integration, trade, international law, Eu-
ropean law, spatiality, role, identity.

INTRODUÇÃO
Grande parte, se não o conjunto, das contribuições positivas da Europa à
história mundial moderna pode ser resumida em comércio e direito interna-
cionais. É certo que assim deixaríamos de fora os avanços científicos, o ilumi-

306 Direito e Democracia vol.4, n.2, 2003


nismo e as revoluções populares, mas desde a idade das trevas européia da
década de 1930, as fronteiras da ciência deslocaram-se para o oeste, a revo-
lução popular saiu da agenda mundial nos anos 90, pelo menos por enquanto,
e o iluminismo já é meio antigo, como parte que era do Antigo Regime.
A partir de uma perspectiva mundial, “Europa” tem significado, na
maior parte do tempo, a Europa Ocidental, tendo sido esses europeus
ocidentais que entraram em contato com árabes, africanos, americanos,
asiáticos do sul e do sudeste, japoneses, australianos e habitantes das
ilhas do Pacífico. Os chineses, e mais tarde os otomanos, os persas e os
afegãos, também tiveram que lidar com os russos, mas principalmente nos
parâmetros da política de potências, desenvolvida entre estados. E o fa-
moso tratado sino-russo de Nerchinsk/Nipchu, de 1689, que estabeleceu
as fronteiras entre os dois países, foi negociado em latim, com intérpretes
jesuítas portugueses (Spence, l990:65-6). No início do século XX, as
terras polonesas produziram os mais argutos observadores da cultura oci-
dental, Bronislaw Malinowski e Joseph Conrad. Durante um tempo, na
segunda metade da Guerra Fria, a União Soviética proporcionou um
modelo mundial de desenvolvimento, especialmente na África. Mas,
enfim, o imperialismo russo, o modelo soviético e os escritos poloneses
passaram a ser episódios da história mundial e, hoje em dia, o principal
projeto da Europa Oriental é ser absorvida pela Ocidental.
Dessa forma, embora fazendo o devido reconhecimento a Norman
Davies (1996), que nos apresentou 1365 páginas de argumentos contrári-
os a uma história européia ocidental da Europa, uma perspectiva global
talvez nos autorize um foco nessa parte do continente, o qual, bem ou
mal, tem sido o mais influente, tanto hoje quanto em termos históricos.
Em outras circunstâncias, há boas razões para não ficarmos à luz do sol
e nos dedicarmos aos lados obscuros da Europa. Entretanto, feitas essas
advertências, quero me concentrar aqui em dois fatores que definem em
grande parte o que está acontecendo no continente e fornecem as bases
de sua posição no mundo, ou seja, comércio e direito.

PARA ALÉM DA ESPACIALIDADE:


“DESEMBRULHANDO” A GLOBALIZAÇÃO
No pensamento e no discurso sociais, os anos 90 foram o momento do
espaço, da espacialidade. “Globalização” foi a palavra de efeito no mun-

vol.4, n.2, 2003 Direito e Democracia 307


do todo, e a Europa foi lançada ao mar com programas baseados no espa-
ço, o “Mercado Único”, a “Unificação” alemã, a ampliação da União
Européia para o leste e, de Paris a Bruxelas, espalharam-se idéias sobre
“espaces européens”, uma “área econômica” européia e, nos anos 2000,
uma “área de pesquisa”.
Façamos uma breve reflexão sobre as implicações de uma espacializa-
ção do pensamento social. Acima de tudo, um foco exclusivo ou predo-
minante no espaço social significa que os atores e sua condição social
não-espacial sejam tomados como dados. No modo espacial, as caracte-
rísticas dos atores, sua desigualdade e, possivelmente, conflitos de inte-
resse, são nivelados ou encobertos, e a qualidade das condições/relações
sociais e sua transformação são desconsideradas. O jogo e suas regras são
dados, a única questão é a extensão do campo e o número de jogadores.
De qualquer forma, a noção de “globalização”, que têm tanto uma cono-
tação de amplitude, a partir do local e do nacional, quanto de finitude,
de limitação planetária, é um grande pacote, que estaria melhor desfeito
e especificado em um conjunto de processos globais.

Os cinco processos globais


Este conjunto consiste em cinco principais tipos de processos. Um
deles é um processo cultural, com um referente mental, pertencente ao
domínio da consciência social e que pode ser subdividido em uma consci-
ência global da variabilidade e interconexão mundiais, e uma consciên-
cia planetária da finitude e da vulnerabilidade humanas e ecológicas.
Socialmente, é um processo discursivo. Outro é histórico, expressando a
dependência dos rumos das economias, comunidades políticas e culturas
contemporâneas. Existe uma forte correlação entre as distribuições mun-
diais da renda nacional em 1820 e em 1910. Por exemplo, entre os dez
principais países e regiões, existe uma correlação Pearson de 0,85 (calcu-
lada a partir de Maddison, 1995: tabela 1-3, e Banco Mundial, 2000:
tabela 1). Em terceiro lugar estão os fluxos globais, talvez os mais visíveis
e dramáticos entre os processos globais. Ou seja, os fluxos de comércio –
de bens e serviços – de capital, de pessoas e de informações no sentido
mais amplo, isto é, valores, conhecimento científico, música, etc.
Em quarto, estão os entrelaçamentos dos estados soberanos nas redes
transnacionais de políticas e geração de normas. Por meio dessa interliga-

308 Direito e Democracia vol.4, n.2, 2003


ção do nacional e do transnacional, este afeta aquele na definição de
agendas, na prescrição e na revisão de políticas, e no modelamento de
instituições.
A proliferação de estados independentes no período posterior à Se-
gunda Guerra Mundial foi acompanhada dessas imbricações da organiza-
ção e das políticas de estado com as instituições internacionais.
À parte o tradicional clientelismo entre estados, que não desapare-
ceu, esses entrelaçamentos são de três tipos principais. Os verdadeira-
mente globais são aqueles que se dão no âmbito dos mecanismos das Na-
ções Unidas, com suas agências setoriais, conferências de definição de
agenda e convenções, e das várias tentativas de estabelecer uma ordem
legal global sobre o ambiente planetário, sobre armamentos de elevada
capacidade de destruição, sobre condutas de guerra e crimes de guerra, e
sobre o comércio mundial. As organizações econômicas interestatais, vol-
tadas ao auxílio e ao crédito condicionais – o FMI e o Banco Mundial –
são praticamente globais, afetando principalmente os países pobres e/ou
endividados. O funcionamento dessas duas instituições com relação a
suas dependências tem muitas semelhanças com a operação imperial e
colonial de estados individuais, ou pequenos grupos deles, um século atrás.
Em terceiro lugar, existem as ordens regionais e os entrelaçamentos
transnacionais.
Por fim, os processos globais incluem a ação de âmbito mundial, o que,
por sua vez, pode-se dividir em concertação global – os raros momentos
em que existem Nações Unidas reais – e alcance global, isto é, outrora o
orgulho da Marinha Real Britânica, posteriormente o objetivo da parida-
de soviética na Guerra Fria, e atualmente, para a inveja de alguns políti-
cos da Europa Ocidental, o monopólio dos mísseis e bombas por parte dos
Estados Unidos.

O lugar da Europa nos processos globais


Onde se encontra a Europa nesses processos globais? Para começar,
não há muito dela na ação ou na consciência globais, enquanto suas
pegadas na história do mundo ainda são bastante visíveis, particularmen-
te fora do continente.
Os termos atuais da ação global foram captados com muita perspicácia

vol.4, n.2, 2003 Direito e Democracia 309


em uma charge de janeiro de 2002, publicada no jornal conservador ale-
mão Die Welt, que apresentava um enorme soldado americano em frente
a um alvo chamado “Saddam”. O soldado olhava para baixo, com um
certo desdém, a um punhado de políticos nanicos europeus e lhes dizia:
“sugiro a divisão de trabalho de sempre, ou seja, eu atiro e vocês aplau-
dem quando eu acertar”.
A partir da evidência subjetiva da experiência pessoal, particularmente
na Ásia e nas Américas, mas também na África, parece-me que a “Euro-
pa” não ocupa um lugar importante na consciência global, ou na consci-
ência do mundo. O Ocidente e o resto2 , ou o Norte e o Sul, aparecem
com muito mais destaque. Por outro lado, as preocupações humanitárias
e ambientais indicam uma consciência planetária relativamente elevada
entre os europeus.
A história global, basicamente na forma de herança colonial, garante
à Europa uma influência importante no mundo contemporâneo. O que é
mais impressionante, um passado colonial ainda determina a língua de
estados e elites, e os próprios nomes de muitos desses estados indicam sua
história. Os sistemas legais, as preferências esportivas, as rotas de comér-
cio e migração ainda percorrem trilhas profundas, de origem colonial. A
supremacia de tempos atrás deixou menos traços na Europa contemporâ-
nea, embora a direção do auxílio, das preocupações e da intimidação
moral, bem como as fontes de imigração de outros continentes, ainda
sigam em muito antigas linhas de comando coloniais.
Se, por um lado, as marcas da história global não abandonam a face do
continente, é em alguns dos fluxos globais, particularmente de comércio
e capital, e em entrelaçamentos normativos transnacionais, que encon-
tramos a Europa se destacando no mundo de hoje.
Tendo sido uma região de emigração por quatro séculos e meio, o
continente se tornou uma destinação de maior imigração no início da
década de 60. Atualmente, a proporção de pessoas de origem estrangeira
nascidas na Suécia, uma das fontes mais vigorosas de emigração do sécu-
lo XIX, é mais ou menos a mesma dos Estados Unidos.
Mas o principal fluxo de migrantes do mundo de hoje não se destina à

2
Em inglês, “the West and the rest”, do sonoro conceito de Huntington, em “The Clash of Civilizations”, Foreign
Affairs, Summer 1993, p.39. (Nota do tradutor)

310 Direito e Democracia vol.4, n.2, 2003


Europa. Assim como cem anos atrás, a principal destinação é os Estados
Unidos, embora atualmente eles venham do sul e do Pacífico Ocidental,
ao invés do Atlântico Oriental.
É muito difícil se obter um montante comparativo de fluxos de infor-
mação mas, claramente, os fluxos mais importantes de conhecimento ci-
entífico e de entretenimento acontecem dos Estados Unidos para o resto
do mundo, embora o recrutamento de estudantes estrangeiros e as ven-
das de música, por exemplo, demonstrem uma centralidade secundária
continuada da Europa Ocidental. No cenário das preferências e da cano-
nicidade literárias, Londres e Paris, e Estocolmo, respectivamente, po-
dem até mesmo ser tomadas como os principais centros do mundo (cf.
Casanova, 1999).

O CENTRO DOS FLUXOS DE COMÉRCIO


E CAPITAL
Entretanto, é nos fluxos internacionais de comércio e capital, sobretu-
do, que a Europa ocidental permanece sendo o centro do mundo, ainda
que um pouco menos do que no final da Belle Epoque. Em 1913, um terço
do comércio mundial era intra-europeu, e os negócios entre o continente
e o resto do mundo perfaziam metade de todo o volume internacional. O
intercâmbio entre regiões não-européias chegava a apenas um sétimo de
todo o comércio mundial (Zacchia 1976: tabela 1).
No ano de 2000, mais de um quarto de todo o comércio internacional
no mundo, ou seja, 27%, aconteceu na Europa Ocidental, quase um ter-
ço (29%) dentro da Europa, e 40% das exportações mundiais tiveram
origem nos países da Europa Ocidental. As exportações dos Estados Uni-
dos, incluindo os serviços comerciais, chegam a 14% do total mundial, e
as japonesas, a 7% (OMC 2001: tabelas III.1, III.3 e III.5). O comércio no
interior da União Européia equivale ao dobro do ocorrido no interior do
NAFTA (OMC 2001: tabela I.9).
Os fluxos de capital em torno de 1900 aconteciam principalmente a
partir da Europa, sobretudo da Inglaterra, para as colônias européias dos
novos mundos. A Grã-Bretanha detinha algo como 40% de todo o inves-
timento estrangeiro de longo prazo em 1913-14, e dois terços dos investi-
mentos britânicos no exterior em 1907-13 foram para os novos mundos

vol.4, n.2, 2003 Direito e Democracia 311


(Zacchia 1976:573: O’Rourke e Williamson, 1999:211), enquanto os dois
maiores investidores estrangeiros seguintes, a França e Alemanha, que,
juntas eram menores do que a Inglaterra, direcionavam seu capital prin-
cipalmente às periferias da Europa (Williamson e O’Rourke, 1999:229).
Em 1914, cerca de metade dos investimentos estrangeiros no mundo esta-
va localizada nos novos mundos, e o restante quase que igualmente divi-
dido entre a Europa (com uma fatia um pouco maior) e a África e a Ásia
(Woodruff, 1973: 710-1).
Em 2000, a Europa Ocidental ainda possui mais da metade do estoque
mundial de investimentos estrangeiros diretos (57%), enquanto os Esta-
dos Unidos detêm um quinto e os investidores japoneses mal chegam a
5% (mais especificamente, 4,7%). Essa região da Europa também era o
maior receptor de investimentos estrangeiros, com quase 40% do estoque
mundial em 2000, ao passo que os Estados Unidos recebiam 20% e o Ja-
pão, menos de 1%. Em termos de fluxo, os países da Europa Ocidental
enviaram mais de dois terços (cerca de 71%) do investimento estrangeiro
direto global em 2000, e receberam a metade desse montante (UNC-
TAD, 2001: Tabelas anexas B4, B3, B2 e B1, respectivamente). As em-
presas dos Estados Unidos foram responsáveis por apenas um oitavo do
fluxo de investimento estrangeiro direto em outros países.
Em suma, embora tenha deixado de ser a parte mais rica da terra e o
principal modelo econômico do mundo, a Europa Ocidental ainda é o
centro dos fluxos globais de comércio e capitais. Enquanto os Estados
Unidos se tornaram o maior produtor e o maior proprietário da riqueza
global, a Europa ainda é a principal força motora dos fluxos econômicos.
Em termos gerais, e contrariamente ao que pode ser sugerido pela
palavra “globalização”, no último terço do século XX houve uma tendên-
cia de maior regionalização do comércio, não profunda, mas, ainda assim,
significativa.
A Europa tem estado na dianteira desse processo, mas ele não é, de
forma alguma, uma realização única, e a integração formal e institucional
do continente cumpriu um papel, na melhor das hipóteses, secundário ou
terciário neste aspecto.
Na Europa Ocidental (incluindo-se os países não-membros da União
Européia), o comércio intra-regional (de mercadorias) equivalia a 64%
de todas as exportações em 1963 e a 68% em 2000. A fatia das importa-

312 Direito e Democracia vol.4, n.2, 2003


ções intra-regionais cresceu de 56% para 65% (OMC, 2001: tabela II.4),
enquanto, na América do Norte, as exportações no interior do NAFTA
permaneceram em seu nível anterior. A diferença se deve a um cresci-
mento das importações da Ásia e ao superávit de importações dos Estados
Unidos (OMC, 2001: tabela II.3). O comércio japonês no mesmo período
se tornou mais voltado à Ásia (OMC:2001, Tabela II.5).
Entre os atuais quinze países que são membros da União Européia, a
regionalização do comércio aconteceu principalmente na década de 60,
com a generalização da prosperidade do continente, estimulada pelo
Mercado Comum de seis países que teve início em 1958, quando o comér-
cio intra-europeu representava cerca de um quarto de seu comércio ex-
terior. A atividade no interior do bloco atingiu seu pico, até agora, no
início dos anos 90, em torno da abertura do Mercado Único em 1992,
diminuindo levemente na segunda metade da década (OECD, 2000: Ta-
bela anexa 64; OMC 2000: Tabela II.4).
Mesmo globalizadas, algumas partes do mundo estão muito mais próxi-
mas entre si do que outras. No caso dos fluxos comerciais, essa tendência
à dependência da distância espacial vem se fortalecido recentemente, ao
invés de esmorecer.

GOVERNANÇA GLOBAL E O MUNDO DO DIREITO


A governança global certamente opera sem governos, por meio de re-
lações de poder e força, mas também através de normas, padrões e insti-
tuições, acomodando estados-nação em redes transnacionais de atores,
instituições e normas.
No lado direito, de caráter global, dos entrelaçamentos transnacio-
nais, os países europeus cumprem um papel modesto. Pagando suas obri-
gações ao FMI e ao Banco Mundial, e aderindo ao chamado Consenso de
Washington, que tem no Tesouro Americano, na prática, seu elemento
mais forte, enquanto atribui ao Banco Mundial alguns aspectos humani-
tários e de auxílio ambiental.
É no quadro normativo das Nações Unidas, e também na OMC, que a
Europa está cumprindo um papel fundamental no entrelaçamento global
dos estados, na dianteira da Convenção da ONU sobre Direitos Huma-

vol.4, n.2, 2003 Direito e Democracia 313


nos, do Protocolo de Kyoto sobre a redução da poluição e do Tribunal
Penal Internacional, enquanto os Estados Unidos são o principal elemen-
to contrário. A Convenção das Nações Unidas sobre os Direitos da Crian-
ça, por exemplo, foi ratificada por todos os países do mundo (apesar de
terem sido acrescentadas algumas “cláusulas de escape”) com exceção
dos Estados Unidos e do Afeganistão. Tal convenção, uma das tentativas
mais bem-sucedidas de normatividade global, em função da atividade do
comitê de monitoramento de sua implementação foi, a propósito, um raro
exemplo de cooperação entre as regiões ocidental e oriental da Europa
nos tempos da Guerra Fria. A idéia de uma convenção sobre os direitos
das crianças foi lançada pela Polônia no final da década de 70, e avançou
em um curso preparatório de dez anos, devido ao forte apoio da Europa
Ocidental (veja mais em Detrick, 1992).
Pode-se dizer que a Declaração dos Direitos Humanos da ONU, de
1948, é o padrão normativo mais amplamente invocado no mundo con-
temporâneo. Embora seja uma declaração sem força de lei, ela tem sido
uma fonte recorrente de inspiração para advogados, bem como cidadãos
de todo o mundo. Sua preparação foi um processo impressionante e ver-
dadeiramente global, que aconteceu apesar da Guerra Fria incipiente, e
se manteve durante a deflagração da primeira guerra na Palestina. Sua
linguagem jurídica, contudo, é derivada do jurista francês René Cassin,
e sua concepção de direitos, mais da perspectiva “dignitária” européia (e
latino-americana) do que do individualismo anglo-americano, e seus ar-
tigos longos sobre direitos sociais e econômicos, das lutas do movimento
trabalhista europeu (veja mais em Glendon, 2001).
A Europa se tornou o advogado do mundo no século XIX. Os estados
latino-americanos recém-independentizados adotaram códigos legais na-
poleônicos, que ainda exercem sua influência sobre o hemisfério, especi-
almente no direito de família. A expansão imperialista trouxe a extrater-
ritorialidade européia às comunidades políticas pré-modernas ameaçadas
e intimidadas da África, do Império Otomano ao Japão. Em 1865, os
ingleses estabeleceram em Xangai “a Suprema Corte de Sua Majestade
Britânica para a China e o Japão”.
As conquistas coloniais introduziram o direito Europeu na África e na
Ásia, e criaram um novo sistema legal dual com o direito consuetudinário
local, dualidade esta que persiste até os dias de hoje nas questões de
família. O Japão do período Meiji importou um sistema jurídico da Euro-
pa, da França e, sobretudo, da Alemanha, uma transformação jurídica

314 Direito e Democracia vol.4, n.2, 2003


que inspirava, na época, as tentativas chinesas de reforma do direito. A
Turquia pós-otomana adotou posteriormente um derivado do código suí-
ço. O Instituto de Direito Internacional, com sede em Paris, concedeu
de forma benevolente a igualdade teórica de todas as nações, cristãs ou
não, proclamando dessa forma um princípio de universalidade do direito
internacional (veja mais, por exemplo, em Mommsen e De Moor, 1992).
Dessas formas variadas, o direito europeu se espalhou pelo mundo, che-
gando ao que Kipling, em seu famoso, e de certa forma elegíaco, poema,
Recessional, com a arrogância imperialista típica da época, chamou de “as
raças inferiores, que não têm lei” (Untermeyer, s.d.: 510).
O enfraquecimento do poder da Europa diminuiu a importância glo-
bal atual do direito e da regulamentação oriundos do continente. A
dinâmica do capitalismo norte-americano, junto com sua educação de
orientação empresarial, também fez com que o direito empresarial inter-
nacional gravitasse informalmente para as concepções norte-americanas.
Uma área crucial de controvérsia será a Organização Mundial do Comér-
cio, onde, pode-se dizer (cf. Cass, 2001), tem lugar uma espécie de “cons-
titucionalização” do comércio internacional no Órgão de Apelação da
instituição. Nesse domínio, a União Européia tende a defender seus di-
reitos mesmo contra os Estados Unidos, e há muito em jogo do ponto de
vista econômico em uma ordem mundial do comércio, para que este país
renuncie, ainda que levemente, a exercer uma jurisdição global. Sendo
assim, o fato de a OMC não ter aceitado a nova proteção norte-america-
na ao aço é significativo. Por outro lado, na reunião de Cancun, em 2003,
o Brasil e o então chamado G-21 escancararam uma nova divisão na or-
ganização, dessa vez relacionada ao protecionismo na área da agricultu-
ra, questão em que os Estados Unidos e a União Européia assumiram
posicionamento protecionista semelhante.
No mundo de nossos dias, entretanto, a transnacionalidade do direi-
to europeu se manifesta principalmente em termos regionais, na forma de
um entrelaçamento real, e como fonte global de inspiração para outros
acertos regionais e mundiais, misturando questões e regras nacionais e
transnacionais. A Europa é a área de alta densidade no mundo em ter-
mos de entrelaçamentos transnacionais, e a estrela-guia do entrelaça-
mento global. Com vistas a captar esta posição, deve-se prestar um pou-
co mais de atenção à interação do direito e do comércio na formação do
continente.

vol.4, n.2, 2003 Direito e Democracia 315


A ÁREA NORMATIVA E O MERCADO COMUM
O Conselho da Europa adotou, em 1950, a primeira convenção inter-
nacional com força de lei sobre direitos humanos, aplicada por uma Co-
missão, um Comitê de Ministros com um sistema de votação majoritário e
um Tribunal. A preocupação se concentrava apenas nos direitos e foi
preciso mais de uma década para que sua supranacionalidade fosse reco-
nhecida integralmente por todos os estados-membros, mas isso acabou
acontecendo. Em 1961, adotou-se uma Carta Social Européia ampla, ela-
borada na forma de obrigações aceitas pelos estados-membros, com um
sistema supranacional de acompanhamento e queixas, tendo como ins-
tância máxima as recomendações do Comitê Ministerial com uma maio-
ria de dois terços (Steiner e Alston, 1996: cap. 10.B; Bundeszentrale,
1999: 382ss).
A Europa Ocidental do pós-guerra era, portanto, uma área normativa
antes de se tornar um Mercado Comum, objetivo do tratado de Roma de
1957, e um Mercado Único, uma realização de 1992. Vale a pena observar
que entre os vários projetos de integração do continente posteriores à
Segunda Guerra Mundial, o de caráter comercial foi o mais bem-sucedi-
do e de maior alcance.
Na arena mundial, também é sobretudo nos contextos comerciais que
a União Européia realmente opera como um corpo único, por exemplo, na
OMC, mas também é importante salientar que a regulamentação jurídi-
ca e legal cumpriu um papel fundamental nessa unificação econômica.
O judiciário europeu – a Corte Européia de Justiça apoiada pelos ju-
diciários nacionais dos estados-membros da Comunidade Econômica Eu-
ropéia e da União Européia – constituiu uma importante força supranaci-
onal na construção de uma nova Europa. A partir de algumas decisões
iniciais fundamentais – Van Gend en Loos (l963), Costa v. ENEL (l964),
Internationale Handelsgesellschft (l970) – o Tribunal estabeleceu os princí-
pios do efeito direto do Direito Comunitário, e de sua supremacia sobre o
direito nacional, incluindo, dentro de sua área de jurisdição, sobre os
direitos constitucionais nacionais. No último caso mencionado, o tribu-
nal declarou que “a validade de uma medida da Comunidade ... Não
pode ser afetada por alegações de que é contrária a ... Direitos funda-
mentais formulados pela constituição do estado em questão ...” (Wou-
ters, 2000: 46-7; cf. Bengoetsea et al., 2001).

316 Direito e Democracia vol.4, n.2, 2003


Em declarações mais pessoais, importantes juízes europeus considera-
ram essas decisões judiciais como “tirar o direito da Comunidade das
mãos dos políticos e dos burocratas, e dá-lo ao povo” (de acordo com
Federico Mancini, citado aqui a partir de Schepel e Blankenburg, 2001:11).
Ademais, em seguida desenvolveu-se a prática de que os tribunais naci-
onais consultassem a Corte Européia sobre como se deveriam interpretar
o Tratado fundador e a legislação européia subseqüente.
A Corte Européia estabeleceu seus poderes gradual e cautelosamente
(Schepel e Blankenburg, 2001), e com firmeza, eficácia e legitimidade
transnacionais impressionantes. Esta última foi recentemente questiona-
da em parte, em alguns casos, é verdade, mas em um mundo formado por
estados, o entrelaçamento regional de direito e jurisdição europeus e
nacionais, e a possibilidade de que indivíduos e organizações levem os
governos de seus estados a um tribunal internacional em uma ampla gama
de casos civis representam uma transformação histórica na soberania na-
cional, que não se encontra em qualquer outra parte do mundo, embora
inspire tentativas mais vagas de integração regional em todos os outros
continentes.

TRADIÇÃO NA MODERNIDADE: HUGO GROTIUS


O comércio e o direito, juntamente com a religião cristã, têm sido
traços característicos da Europa por muito tempo. O Mediterrâneo, es-
tendendo-se até o Mar Negro, foi durante um milênio o centro de impor-
tantes cidades-estado, de Atenas a Veneza e Gênova, para as quais navi-
gare necesse erat, bem como do mais poderoso império do continente. Os
rios navegáveis, sobretudo o Reno, também fizeram com que o comércio
prosperasse. Esse comércio e a religião salvacionista empurraram a Euro-
pa para os oceanos, quando as rotas comerciais tradicionais do Oriente
foram interrompidas com a ascensão da Casa do Islã.
O direito não era, obviamente, exclusividade da Europa, tampouco o
comércio, mas sua riqueza e complexidade o eram. Um corpus específico
do direito romano foi uma herança cultural central, diferenciada e elabo-
rada na forma do Direito Canônico da Igreja e no direito secular (cf. Ber-
man, 1983). A partir deste comércio transpolítico de longa distância e da
fragmentação do poder e do direito seculares, desenvolveu-se na Europa

vol.4, n.2, 2003 Direito e Democracia 317


medieval uma normatividade transpolítica específica, uma lex mercatoria
entre comerciantes, e uma normatividade entre príncipes cristãos.
A expressão política mais eloqüente dessa complexidade legal foi o
“Sacro Império Romano Germânico”, que sobreviveu à Paz de Westfália,
e que geralmente se supõe ter gerado um sistema de estados soberanos.
Na verdade, a União Européia de hoje tem muito da complexidade do
antigo Império, uma certa idéia de unidade, a qual é distribuída entre
uma série de instituições e atores, um conjunto real de estados-membros
de caráter soberano, e que se mantém unida por uma liderança simbólica
– antes um imperador, agora a Comissão – e por um judiciário supra-
estatal – o Reichskammergericht (o Tribunal Cameral) e o Reichshofrat (o
Conselho Áulico), enquanto carece de uma administração adequada e
dispõe de meios militares apenas limitados ou condicionais (Gagliardo,
1980: Parte I; Duchard 1990).
Na modernidade européia, o comércio e o direito foram associados pelo
advogado, político, diplomata e intelectual erudito holandês do século XVII
Hugo Grotius, tanto em sua pessoa quanto em sua obra. Na história do
direito, talvez ele seja conhecido principalmente como o fundador do direito
internacional, mas foi também um grande teórico do direito natural. Em
uma perspectiva global atual, Grotius tem importância particular como teóri-
co social que parte de um mundo de povos, e não de indivíduos, seja no
âmbito ou no limite de uma sociedade nos moldes de um estado. Essa teoria
interestatal da sociedade e da política constituiu um pano de fundo para a
teoria política de Hobbes (cf. Haakonsen, 1996: 1.3-1.4; Tuck, 1999: ap. 3).
Suas principais obras jurídicas tratavam da “liberdade dos mares” (Mare
Liberum, Grotius, 1609/1839/1983) e dos Direitos da Guerra e da Paz (De
iure belli ac pacis, 1625/1925), tópicos de grande importância em uma era de
rivalidade colonialista e guerras incessantes. O primeiro dos tratados cita-
dos havia sido encomendado pela Companhia Holandesa das Índias Orien-
tais, como defesa legal de seu questionamento à exigência portuguesa de
monopólio do comércio com os molucanos. Como advogado de seu cliente,
Grotius viria a apresentar argumentos eloqüentes também para as restri-
ções sobre o livre acesso ao mar, da mesma forma que a Comunidade Eco-
nômica Européia teve que fazer com suas negociações sobre a pesca com a
Inglaterra, a Dinamarca e a Noruega (Ehlermann, 1985).
Grotius apresentou uma antiga idéia européia de humanidade como
uma comunidade na forma de uma divisão política e nacional, culminando

318 Direito e Democracia vol.4, n.2, 2003


em seu contemporâneo um pouco mais velho, o jurista jesuíta espanhol
Francisco Suárez, que disse que “a humanidade, embora dividida em vários
estados e nações, constitui uma unidade política e moral ligada pela cari-
dade e pela compaixão” (citado a partir de Pinto, 1985:48) – em uma base
mais realista e mais seca. A humanidade tem um impulso social básico, um
appetitus societatis, nas palavras de Grotius, a partir do qual se concluem,
por meio do “ditado da reta razão”, certas regras minimalistas da coexistên-
cia social. Seguindo-se a este direito natural, segundo Grotius, também se
desenvolve um “direito dos povos” (ius gentium), a partir da interdependên-
cia de todos os estados, até mesmo dos mais poderosos, e com base no con-
sentimento tácito e explícito (Grotius, 1625/1925/1985: 233ss).
O outro aspecto importante sobre Grotius neste contexto é seu movi-
mento de ida e volta nas as relações entre estados e entre indivíduos ou,
como diríamos hoje em dia, de forma anacrônica, ONGs. Tal capacidade
teve origem na íntima relação de empresas privadas e da política pública na
República das Províncias Unidas, onde ele começou como advogado da
Companhia das Índias Orientais e foi designado para o equivalente mais
próximo de um cargo de premiê, do qual acabou sendo derrubado em
1618. Em nenhum lugar isso se expressa melhor do que em sua obra Os
Direitos de Guerra e Paz (De iure belli ac pacis), na qual uma guerra justa,
para proteger os próprios direitos que tenham sido violados, pode ser uma
bellum privatum, uma guerra privada, bem como pública, do estado.
Essa normatividade trans-comunidades políticas se destaca por servir
como ponto de partida para a teorização moderna sobre indivíduos e di-
reitos individuais em uma sociedade construída como estado. No princí-
pio, havia estados (ou príncipes), as relações entre eles e as normas que
as deveriam governar; a seguir, vieram os indivíduos e o contrato social.
O universalismo moral dos philosophes do iluminismo incluía também uma
consciência das divisões políticas da sociedade refinada.
A longa experiência histórica de ser parte de um sistema interestatal,
bem como de uma área normativa, predispõe a Europa contemporânea a
uma normatividade transnacional, ao invés de uma dualidade entre uni-
versalismo moral e unilateralismo político, típica dos Estados Unidos.
No entanto, se eu estiver mais ou menos correto até aqui, por que se
ouviu e se leu tão pouco anteriormente, no discurso público contemporâ-
neo, sobre a Europa de comerciantes e advogados? Façamos primeira-
mente uma pequena excursão teórica.

vol.4, n.2, 2003 Direito e Democracia 319


POSIÇÃO, PAPEL E IDENTIDADE
Tratamos acima basicamente da posição da Europa no mundo. Ou seja,
de algum objetivo, não necessariamente internacional ou mesmo inte-
gralmente notado, resultante de recursos e ações. A “posição” nesse sen-
tido, pode ser distinguida de dois conceitos relacionados, os de “papel” e
“identidade”.
O “papel” costuma ser tomado na sociologia como um comportamento
normativamente esperado, como ação segundo o roteiro. Em termos ge-
rais, o conceito tem servido bem às ciências sociais. Contudo, existe tam-
bém uma concepção mais subjetiva de papel, enfatizando a aspiração e o
desempenho, em lugar das normas. Um papel, assim, pode ser visto como
a função social que se quer desempenhar. É esta definição que me parece
mais frutífera para lidarmos com os atores supostamente soberanos, como
os estados.
A identidade, em terceiro lugar, é a concepção acerca de si, de quem
e o que se é, o self que tem uma posição, seja boa ou má, justa ou injusta,
e o qual quer cumprir um determinado papel no mundo.
As posições de comerciante e advogado não parecem ter um lugar
muito destacado nos papéis pelos quais os líderes europeus lutam no pal-
co mundial, particularmente não a posição definida de centro comercial.
Tampouco encontramos muito de comércio e direito em formulações de
identidade européia, que têm tendido a se concentrar no legado cultu-
ral, na etnicidade (no caso do europeísmo nazista) e no sistema de estado
pluralista (cf. Delanty, 1995; Pocock, 1997). Na Declaração de Laeken,
de dezembro de 2001, sobre o futuro da União Européia, a Europa foi
definida de forma característica como “o continente dos valores huma-
nos” (EU, 2001: 20), uma fórmula que consegue ser simultaneamente
autocongratuladora e vaga.
As ex-Grandes Potências da Europa aspiram a um papel para o conti-
nente, de comunidade política com porte de grande potência, capaz de
intervenções militares e diplomacia da força, e vislumbram a questão da
identidade européia a partir dessa perspectiva. Nessa visão, a identidade
do continente deve ser definida pelo jogo de poder global. Na linguagem
do Tratado da União Européia de 1992, os estados-membros estão “resol-
vidos a executar uma política externa e de segurança que inclua a defini-

320 Direito e Democracia vol.4, n.2, 2003


ção, a prazo, de uma política de defesa comum... fortalecendo assim a
identidade européia” (Conselho das Comunidades Européias, 1992:4).

O ENRAIZAMENTO SOCIAL DO COMÉRCIO


E A TRANSNACIONALIDADE DEMOCRÁTICA
DO DIREITO
Entretanto, existe também um conjunto de razões mais complexo do
que o caráter da atual classe política, para a postura contemporânea da
Europa sobre comércio e direito. A Europa de hoje em dia não é uma
repetição de suas tradições; o comércio e o direito no continente foram
ambos transformados.
A posição singular que o comércio e o direito ocupam na Europa
Ocidental dos dias atuais, tomada do ponto de vista global, não significa
que a sociedade européia seja composta de vendedores e advogados, em
nenhum grau particularmente elevado.
As características específicas do comércio europeu são seu caráter
internacional – a elevada proporção do que tradicionalmente se chamou
de comércio exterior – e seu enraizamento social. O iluminismo escocês,
Adam Smith, John Millar e outros, consideravam a sociedade pós-agrária
que então surgia como uma “sociedade comercial”. Na verdade, a Euro-
pa pós-agrária se tornou uma sociedade industrial, e a única na história
do mundo, no sentido de uma predominância industrial no emprego não-
agrícola, algo que jamais aconteceu nos Estados Unidos ou no Japão, e
que não irá acontecer no Brasil, na China ou na Índia de amanhã.
A sociedade industrial européia foi, por diversas razões, singularmente
consciente e organizada em termos de classes (veja mais em Therborn, 1995).
Em meio a uma agitação de lutas de classe, isso resultou em uma com-
binação sócio-econômica que surpreenderia a teoria econômica conven-
cional, o exportador bem-sucedido com direitos sociais generosos. Os
gastos sociais públicos são muito mais altos na União Européia do que nos
Estados Unidos ou no Japão – respectivamente 28, 16 e 14% do PIB no
final da década de 90 (Eurostat, 2001: 111; OMT, 2000: Tabela 14). Entre
os países da OECD, a Organização para a Cooperação Econômica e De-

vol.4, n.2, 2003 Direito e Democracia 321


senvolvimento, existe uma correlação positiva importante entre a depen-
dência de exportações do mercado mundial, por um lado, e os gastos
sociais, por outro, que no início dos anos 90 tinha um coeficiente de 0,34
(Therborn, 1999:249).
Por toda a Comunidade Econômica Européia/Comunidade Européia/
União Européia, o enraizamento do Mercado Comum e, em termos mais
gerais, do livre comércio, está corporificado sobretudo na política agríco-
la. Cerca de metade do orçamento da integração do continente é dedi-
cado à preservação do modo de vida de seus agricultores.
Em síntese, o papel social e, provavelmente, a identidade do europeu,
são os de cidadão do estado de bem-estar social, e não de vendedor.
Os tribunais nunca tiveram, nas comunidades políticas européias mo-
dernas, uma importância comparável à que tiveram, e ainda têm, nos
Estados Unidos. O Rechtstaat, um estado de direito, parte importante da
concepção européia de estado moderno, desenvolveu-se na Europa pré-
democrática, o estado de luta popular centrada na democracia, e não no
direito, no voto e na responsabilidade executiva diante do parlamento.
Apenas na República Federal da Alemanha do pós-guerra, um tribunal, o
Tribunal Constitucional, adquiriu um destaque político, com inspiração
original dos Estados Unidos.
O lugar do direito na Europa não é sintetizado pelo papel do advogado
ou do juiz. Ao invés disso, é o direito como parte de uma normatividade
democrática e transnacional. “Democrática”, portanto, em um sentido
popular e republicano, com conotações de vontade e necessidades popu-
lares, mais do que liberdades e litígio individuais. Uma concepção deri-
vada das lutas de princípios, na Europa, pela democracia e contra ela
(Therborn, 1992). A normatividade transnacional – ou, de forma menos
anacrônica, as trans-comunidades políticas – é uma antiga tradição do
continente, a partir da qual refletiu Hugo Grotius. A Idade Média com-
binou um conjunto de comunidades políticas fragmentado, mas interliga-
do de forma complexa, com um padrão normativo comum, a religião cris-
tã, o direito romano e o direito canônico, o qual foi posto de lado nas
guerras contra e a favor da Revolução Francesa, e nas Guerras Mundiais,
para ressurgir de forma mais clara.

322 Direito e Democracia vol.4, n.2, 2003


A RELEVÂNCIA E AS LIMITAÇÕES DA EUROPA
A despeito de sua origem antiga e especial, as tradições européias
modificadas de comércio socialmente enraizado e normatividade demo-
crática transnacional respondem, sim, pode-se dizer, às necessidades e
demandas gerais do mundo atual. A abertura às inovações tecnológicas e
aos desafios de produtividade, enquanto se preservam contextos socio-
culturais e ambientais únicos e, além disso, normas mundiais dos direitos
humanos, respeitando diferentes manifestações populares, constituiria
importante contribuição para uma sociedade global decente.
Os políticos das outrora grandes potências da Europa não têm a mes-
ma opinião. Em Paris e Londres, e igualmente em Berlim e Roma, eles
ainda optam pelos “heróis” em detrimento dos “comerciantes”, como dis-
se em 1915 o grande historiador econômico nacionalista alemão Werner
Sombart (Sombart, 1915). Na recente abertura da Convenção sobre o
Futuro da Europa, o ex-presidente francês Giscard d’Estaing expressou
educadamente as aspirações dos líderes dos antigos grandes estados: “se
tivermos sucesso, (...) o papel da Europa será transformado (...) ela será
respeitada e ouvida, não apenas como a potência econômica que já é,
mas como força política que irá falar de igual para igual com a maior
potência em nosso planeta (...) (Financial Times, 3.1.02, p.2).
Um observador externo acrescentaria três coisas a tal elaboração, por
si só bastante legítima. Primeiramente, ela é parte de uma esquizofrenia
debilitante dos políticos europeus, a um tempo visivelmente ressentidos
com sua subordinação aos americanos e de um servilismo sicofanta. “Os
americanos estão absolutamente certos...”, Tony Blair jamais se cansa de
repetir, enquanto Gerhard Schröeder descobriu, em sua campanha elei-
toral, que a opinião pública alemã tem se tornado sensível a um certo
afrouxamento condicional da “solidariedade incondicional” anterior para
com os Estados Unidos. Em segundo lugar, o anseio dos políticos euro-
peus de jogar de igual para igual com o Pentágono é ingênuo, pois este
absorve mais de um terço de todos os gastos militares do mundo, e o
recente aumento no orçamento de gastos militares dos Estados Unidos
representa mais do que o dobro do total militar da Alemanha (Kennedy,
2002: 146; Sommer, 2002: 4). Em terceiro, ao ignorar sua própria posição
real e assumir uma identidade deslocada ou anacrônica, os europeus fra-
cassam em seu papel global mais importante. Para os políticos ingleses,
franceses e alemães, em particular, é compreensivelmente difícil aceitar

vol.4, n.2, 2003 Direito e Democracia 323


um papel para a Europa como sendo a Escandinávia do mundo, isto é, um
lugar decente com uma ampla gama de aspirações institucionais e em
termos de políticas, mas sem aspirações de poder, e sem poder. Entretan-
to, ao se identificar com os Estados Unidos e com a política mundial como
sendo uma política das grandes potências, os europeus não conseguem
observar e apreciar a posição real da Europa do mundo, e adotar um papel
sociopolítico adequado a defender as contribuições positivas específicas
do continente a ele.
Existe uma base, argumenta-se neste artigo, na centralidade da Eu-
ropa nos fluxos econômicos globais e em sua longa e revigorada experiên-
cia de normatividade transnacional, para um papel europeu de “potência
que busca estabelecer a globalização dentro de um quadro moral”, nas
palavras da declaração de Laeken. Até que ponto essa base, que é eco-
nômica, normativa e institucional, em lugar de política e militar, será
realmente utilizada, é uma questão aberta.

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326 Direito e Democracia vol.4, n.2, 2003


O Direito Fundamental à Moradia na
Constituição: Algumas Anotações a
Respeito de seu Contexto, Conteúdo e
Possível Eficácia

The fundamental right to dwelling in


Brazilian Constitution: some notes
about its context, content and
possible efficacy

INGO WOLFGANG SARLET


* Doutor em Direito pela Universidade de Munique (Ludwig-Maximilians-Universität), Alemanha.
Professor Adjunto de Direito Constitucional na Faculdade de Direito e no Programa de Pós-Graduação em Direito
(Mestrado e Doutorado) da PUC/RS, onde também integra a Comissão Coordenadora. Juiz de Direito no RS e
professor de Direito Constitucional da Escola Superior da Magistratura (AJURIS). Pesquisador (bolsista) do
Instituto Max-Planck de Direito Social Internacional e Estrangeiro em Munique.

RESUMO
O autor analisa a inserção no âmbito dos direitos fundamentais do direito à
moradia, tecendo considerações sobre seu conteúdo e eficácia.
Palavras-chave: Direito à moradia, Direitos Fundamentais, eficácia dos direi-
tos fundamentais, conteúdo essencial dos direitos fundamentais.

O presente trabalho foi originalmente publicado na coletânea Arquivos de Direitos Humanos, vol. IV, pela
Editora Renovar, Rio de Janeiro, 2002, obra coordenada pelos Professores Ricardo Lobo Torres e Celso
Albuquerque Mello.

Direito
vol.4, e Democracia
n.2, 2003 Canoas
Direito e vol.4, n.2
Democracia 2º sem. 2003 p.327-383
327
ABSTRACT
The author analyses the dwelling right insertion into the scope of fundamental
rights, commenting on its content and efficacy.
Key words: Dwelling right, fundamental rights, fundamental right efficacy, es-
sential content of fundamental rights.

NOTAS INTRODUTÓRIAS
Com a recente inclusão do direito à moradia no rol dos direitos funda-
mentais sociais expressamente enunciados no artigo 6º da Constituição
Federal de 1988, e não obstante a constatação de que a nossa ordem jurídi-
ca, em certa medida, já reconhecia e protegia a moradia mesmo no plano
constitucional (aspecto que será objeto de oportuno exame), não há como
negar que a questão da moradia, agora inequivocamente (pelo menos, no
nosso entender) guindada à condição de direito fundamental, assume –
pela ótica da ordem jurídica - feições novas, reclamando, talvez mais do
que nunca, especial atenção por parte dos que se ocupam do tema, seja
pela razão apontada, seja, entre outros motivos, pelo incremento galopante
da exclusão social no nosso país e pelo conseqüente agravamento do anti-
go, mas lamentavelmente cada vez mais atual problema do acesso a uma
moradia digna para largas parcelas da nossa população.
A partir do exposto e passando desde logo a anunciar os objetivos espe-
cíficos deste trabalho, buscaremos, num primeiro momento, traçar um bre-
ve perfil do direito à moradia a partir da sua condição de direito fundamen-
tal expressamente consagrado na nossa ordem jurídico-constitucional, si-
tuando o direito à moradia no contexto da teoria geral dos direitos funda-
mentais. A seguir, após tecermos algumas considerações a respeito do que
se poderia designar de crise do Estado democrático de Direito e dos direi-
tos fundamentais, passaremos a nos ocupar com a evolução, fundamenta-
ção e objeto do direito à moradia. No último segmento, à luz das premissas
e pressupostos teoréticos lançados, empreenderemos a tentativa de identi-
ficar e analisar, à luz de alguns exemplos, pelo menos parte das possíveis
aplicações concretas do direito à moradia, na condição de direito funda-
mental da pessoa humana, pela ótica de sua eficácia e efetividade. Por
derradeiro, convém consignar que renunciamos, desde logo, a qualquer
pretensão de completude, já em face da miríade de aspectos e questiona-

328 Direito e Democracia vol.4, n.2, 2003


mentos que o tema suscita, mas também pelos limites impostos pelas dimen-
sões deste texto. Assim, enfatizamos apenas o nosso propósito de contribuir,
de alguma forma, para a discussão não apenas do conteúdo, significado e
eficácia, do direito fundamental à moradia, mas, acima de tudo, das alter-
nativas que a ordem jurídica oferece para a superação dos graves e angus-
tiantes problemas que a realidade nos impõe.

DIREITOS FUNDAMENTAIS: ALGUMAS


PREMISSAS DE CUNHO TERMINOLÓGICO E
CONCEITUAL
Para efeito deste ensaio e cientes de que não se deve hipostasiar a
relevância do problema, partiremos aqui da constatação de que é possível
traçar uma distinção entre direitos humanos e fundamentais, que, para
além da dimensão meramente semântica, tenha condições de alcançar
alguma relevância de ordem prática.
A propósito, convém registrar, desde logo, que o próprio Constituinte de
1988 consagrou expressamente esta distinção terminológica, o que já bas-
taria para que se a devesse levar a sério.1 Tal distinção – em que pese
outros possíveis fundamentos – já encontra sua razão de ser na existência
de diversos planos ou esferas de positivação, notadamente na constatação
– chancelada por expressiva doutrina – de que o termo “direitos funda-
mentais’ aplica-se para aqueles direitos da pessoa reconhecidos e positiva-
dos na esfera do direito constitucional de determinado Estado,2 ao passo
que a expressão “direitos humanos guarda relação com os documentos de
direito internacional, por referir-se àquelas posições jurídicas que se atri-
buem ao ser humano como tal (hoje já reconhecendo-se a pessoa como
sujeito de direito internacional), independentemente de sua vinculação
com determinada ordem constitucional, e que, portanto, aspiram à valida-
de universal, revelando um inequívoco caráter supranacional.3

1
Basta referir, neste contexto, o art. 4º, inciso II, dispondo sobre o princípio da “prevalência dos direitos
humanos” no âmbito das relações entre o Brasil e os demais Estados, assim como o Título II da nossa
Constituição, portando a epígrafe “Dos Direitos e Garantias Fundamentais”.
2
Assim, por exemplo, CANOTILHO, José Joaquim Gomes. Direito Constitucional e Teoria da Constituição. 3ª ed.
Coimbra: Almedina, 1999, p. 369.
3
Neste sentido, por todos, MIRANDA, Jorge. Manual de Direito Constitucional. 2ª ed. Coimbra: Coimbra Ed.,
1992, v. 4, p. 51-52.

vol.4, n.2, 2003 Direito e Democracia 329


O que importa, ao fim e ao cabo - e abstraindo da correção do critério
distintivo mencionado - é a constatação de que a opção pela terminolo-
gia direitos fundamentais visa, acima de tudo, destacar a relevância das
posições jurídicas como tais consideradas para a ordem constitucional e
internacional, de tal sorte que também os assim designados direitos hu-
manos (plano internacional) sempre compartilharão da nota característi-
ca da fundamentalidade, vista aqui pelo prisma substancial, isto é, da
importância e essencialidade das posições jurídicas para a pessoa huma-
na, fundamento de sua especial proteção pela ordem jurídica internacio-
nal e/ou interna.4
Por outro lado, é certo que, como regra geral – excepcionando-se aqui
uma possível fundamentalidade formal dos direitos assegurados no âmbito
europeu (pelo menos, os constantes da Convenção Européia de Direitos
Humanos)5 – , ainda vale a observação de que, em princípio, apenas os
direitos constitucionalmente reconhecidos e protegidos, caracterizam-se
por uma dupla fundamentalidade material e formal, esta, por sua vez, sem-
pre dependente das peculiaridades de cada ordem constitucional. No caso
da Constituição Brasileira, a fundamentalidade formal, desdobra-se em três
elementos, já largamente reconhecidos: a) como parte integrante da Cons-
tituição escrita, os direitos fundamentais (e, portanto, também o direito à
moradia) situam-se no ápice do ordenamento jurídico, cuidando-se, pois,
de normas de superior hierarquia; b) ainda na condição de normas funda-

4
Por esta razão, justifica-se a tendência relativamente recente, entre nós, no que diz com a utilização, pela
doutrina, da expressão Direitos Humanos Fundamentais, abrangendo as esferas nacional e internacional
de positivação. Neste sentido, v., entre outros, FERREIRA FILHO, Manoel Gonçalves. Direitos Humanos
Fundamentais. São Paulo: Saraiva, 1996, assim como MORAES, Alexandre. Direitos Humanos Fundamentais.
São Paulo: Atlas, 1997.
5
Como suporte desta afirmação, poder-se-á levar em consideração a existência tanto de instâncias supranacionais
reconhecidas e efetivas na proteção dos direitos fundamentais consagrados na Convenção Européia,
quanto a igualmente reconhecida vinculatividade da Convenção em relação aos Estados signatários. Este,
aliás, apenas um dos diversos elementos que têm levado boa parte da doutrina a sugerir ou mesmo aclamar
a existência até de um direito constitucional europeu e mesmo internacional em matéria (não exclusiva,
mas principalmente) de direitos humanos. Sobre este ponto, no que diz com a experiência européia, v.,
entre outros, PIRES, Francisco Lucas. Introdução ao Direito Constitucional Europeu. Coimbra: Almedina,
1997. Referindo-se ao plano internacional, lembrem-se – dentre outros no âmbito da doutrina pátria que
já vem se ocupando do tema - as relevantes contribuições de MELLO, Celso D. Albuquerque. Direito
Constitucional Internacional. Rio de Janeiro: Renovar, 1994, assim como PIOVESAN, Flávia. Direitos Huma-
nos e o Direito Constitucional Internacional. São Paulo: Max Limonad, 1996. Mais recentemente, comentando
a nova Carta de Direitos Fundamentais da União Européia, apontou-se para a dupla dimensão formal e
material das posições jurídicas ali consagradas, notadamente quando a Carta alcançar sua plena
vinculatividade. Neste sentido, o ponto de vista de CANOTILHO, José Joaquim Gomes. “Compreensão
Jurídico-Política da Carta”. In: RIQUITO, Ana Luísa et al. Carta de Direitos Fundamentais da União
Européia. Coimbra: Coimbra Ed., 2001, p. 11.

330 Direito e Democracia vol.4, n.2, 2003


mentais insculpidas no corpo da Constituição, encontram-se submetidas
aos limites formais (procedimento agravado para a modificação dos precei-
tos constitucionais) e materiais (as assim designadas “cláusulas pétreas”)
da reforma constitucional; c) por derradeiro, nos termos do que dispõe o
artigo 5º, parágrafo 1º, da Constituição, as normas definidoras de direitos e
garantias fundamentais são imediatamente aplicáveis e vinculam direta-
mente as entidades estatais e os particulares.6
Apesar da distinção apontada, calcada basicamente naquilo que Pérez
Luño denominou de critério da “concreção positiva7 , verifica-se não haver
incompatibilidade (pelo menos não com base no critério adotado) entre am-
bas as categorias (direitos humanos e fundamentais), do que dá conta justa-
mente a incorporação ao direito interno, inclusive com hierarquia constitu-
cional, em muitos casos, dos tratados internacionais em matéria de direitos
humanos ou mesmo a tendência revelada por expressivo número de consti-
tuições modernas, seja no sentido de agasalhar em seu texto expressamente
os direitos que vem sendo reconhecidos no plano internacional, seja pela
previsão de uma cláusula geral de abertura aos direitos garantidos no direito
internacional convencional.8 O direito à moradia é justamente uma prova
inquestionável deste processo, já que se cuida, também entre nós, simulta-
neamente de direito humano (reconhecido e protegido na esfera internacio-
nal) e fundamental (constitucionalmente assegurado). Como isto acaba por
gerar importantes conseqüências até mesmo na esfera da eficácia e efetivida-
de, ainda teremos oportunidade de verificar neste estudo.

O CONTEXTO: GLOBALIZAÇÃO, EXCLUSÃO SOCIAL


E A CRISE DO ESTADO DEMOCRÁTICO (E SOCIAL)
DE DIREITO E DOS DIREITOS FUNDAMENTAIS
Ainda que se pudesse reduzir a presente abordagem à esfera estrita-
mente dogmática (jurídico-positiva) – o que, por si só (especialmente em

6
O fato de os três pilares da fundamentalidade formal terem sido amplamente reconhecidos (até mesmo por
consagrados expressamente pelo Constituinte), não significa, por óbvio, que não se faça presente acirrada
controvérsia a respeito de aspectos relevantes vinculados aos mesmos, tal como revela a discussão em torno
da aplicabilidade imediata das normas definidoras de direitos sociais na sua dimensão prestacional, a
vinculação direta dos particulares e o alcance das assim denominadas “cláusulas pétreas” (que, para
alguns, não abrangem os direitos sociais), apenas para mencionar alguns dos pontos mais polemizados.
7
Cf. PÉREZ LUÑO, Antonio Enrique. Los Derechos Fundamentales. 6a ed. Madrid: Tecnos, 1995, p. 46-47.
8
Neste sentido já nos havíamos posicionado no nosso A Eficácia dos Direitos Fundamentais. 2ª ed. Porto Alegre: Livraria
do Advogado, 2001, p. 35, onde, de resto, a questão terminológica e conceitual restou bem mais desenvolvida.

vol.4, n.2, 2003 Direito e Democracia 331


se cuidando de uma perspectiva dogmática assumidamente não isenta de
compromisso com a dimensão axiológica e principiológica dos direitos fun-
damentais e do Direito), não seria um defeito, mas sim, uma perspectiva
indispensável de análise - julgamos oportuno tecer algumas considera-
ções, ainda que sumárias, a respeito do contexto no qual se insere a pro-
blemática jurídica da eficácia e efetividade dos direitos fundamentais,
com especial atenção para os direitos sociais. Tal já restaria justificado,
em se considerando que um dos principais argumentos contrários ao re-
conhecimento de direitos subjetivos a prestações sociais (aspecto que aqui
não iremos desenvolver) encontra seu fundamento na dependência des-
tes direitos da realidade sócio-econômica e, acima de tudo, da sempre
limitada capacidade prestacional do poder público.
Sem que se vá, por ora, adentrar o mérito da discussão em torno da
possível eficácia jurídica e social dos direitos fundamentais sociais, limi-
tar-nos-emos, neste segmento, a apontar alguns efeitos da globalização
econômica sobre o Estado democrático (e social) de Direito e, de modo
particular, sobre os direitos fundamentais, cientes, todavia, de que a glo-
balização (e suas diversas formas de manifestação) é apenas um dos ele-
mentos (embora de longe um dos mais significativos) que marcam o con-
texto no qual hoje se insere a problemática dos direitos fundamentais,
ombreando em importância talvez apenas com os crescentes níveis de
exclusão social (por sua vez também creditada - em boa parte - aos efeitos
negativos da globalização), tudo contribuindo para uma ampla crise do
Estado, do Direito e dos Direitos Fundamentais.
Já por estas razões cumpre que se tome a sério a advertência que nos
faz Gomes Canotilho ao referir que “o Direito Constitucional, a Consti-
tuição, o Sistema de Poderes e o sistema jurídico dos direitos fundamen-
tais já não são o que eram”,9 o que nos remete a uma série de questiona-
mentos, inclusive sobre o papel a ser desempenhado hoje pelo Estado,
pela Constituição e pelos direitos fundamentais. Dada a amplitude e re-
levância destas questões, contentar-nos-emos aqui em apontar alguns dos
efeitos da globalização sobre o Estado democrático e social de Direito, na
tentativa de identificar e situar minimamente, neste contexto, a cada vez
mais aguda crise de efetividade e identidade da Constituição e dos direi-
tos fundamentais. Por outro lado, mesmo que não se possa refutar a exis-
tência da referida crise, não há como negligenciar que a nossa Constitui-

9
Cf. CANOTILHO, J. J. Gomes. Sobre o Tom e o Dom dos Direitos Fundamentais. Revista Consulex 45: 38, set.
de 2000.

332 Direito e Democracia vol.4, n.2, 2003


ção – ainda que não sejam poucos a investir furiosamente contra isto –
consagrou (pelo menos na esfera jurídico-positiva) um Estado democráti-
co (necessariamente comprometido com a justiça social) de Direito10 e
um significativo elenco de direitos fundamentais de todas as dimensões
(ou gerações), que abrange um extenso rol de direitos sociais.
Na medida em que – por conta da política e da economia do “Estado
mínimo” propalado pelo assim designado “consenso neoliberal”11 - aumen-
ta o enfraquecimento do Estado democrático de Direito (necessariamente
um Estado “amigo” dos direitos fundamentais) e que esta fragilização do
Estado e do Direito tem sido acompanhada por um incremento assustador
dos níveis de poder social e econômico exercidos pelos grandes atores do
cenário econômico, que justamente buscam desvencilhar-se das amarras
do poder estatal, coloca-se a indagação a respeito de quem poderá, com
efetividade, proteger o cidadão e – no plano internacional – as sociedades
economicamente menos desenvolvidas. Neste sentido, insere-se a aguda
observação de Ferrajoli, alertando para a crise vivenciada pelos sistemas
democráticos, identificando o surgimento daquilo que denomina de “em-
presas-partido” e “empresas-governo”, já que as privatizações e a crescente
desregulamentação têm tido como seqüela um aumento da confusão entre
os interesses do governo e os interesses privados dos agentes econômicos,
por sua vez, cada vez mais entrincheirados no próprio Estado (governo), e
que estão capitaneando o processo de flexibilização e, por vezes, de quase
aniquilamento de boa parte das conquistas sociais.12
Colocada em risco a democracia e enfraquecido o papel do Estado na
sua condição de promover e assegurar os direitos fundamentais e as insti-
tuições democráticas13 , a própria noção de cidadania como direito a ter

10
Aqui – ainda que se reconheça a existência de argumentos significativos apontando para outra classificação
do que a adotada pelos ilustres autores – vale lembrar a lição de STRECK, Lênio Luiz & MORAIS, José
Luís Bolzan de. Ciência Política e Teoria Geral do Estado. Porto Alegre: Livraria do Advogado, 2000, p. 83 e
seguintes, destacando a dimensão necessariamente comprometida com a justiça social do Estado demo-
crático de Direito.
11
Sobre a crise da democracia e as suas relações com o “consenso de Washington”, v. especialmente SANTOS,
Boaventura Souza. Reinventar a Democracia: entre o Pré-Contratualismo e o Pós-Contratualismo. Coimbra:
Oficina do Centro de Estudos Sociais, 1998, p. 17-19.
12
Cf. FERRAJOLI, Luigi. El Estado Constitucional de Derecho Hoy: el Modelo y su Divergência de la
Realidad. IN: IBAÑEZ, Perfecto Andrés (org.). Corrupción y Estado de Derecho. Madrid: Trotta, s/d , p. 16
e seguintes.
13
Cumpre registrar, neste sentido, a advertência de FARIA, José Eduardo. “Democracia e Governabilidade: os
Direitos Humanos à Luz da Globalização Econômica”. In: FARIA, José Eduardo, (Org.). Direito e Globalização
Econômica: Implicações e Perspectivas. São Paulo: Malheiros, 1996, p. 127 e seguintes, em instigante ensaio
sobre o tema.

vol.4, n.2, 2003 Direito e Democracia 333


direitos 14 encontra-se sob grave ameaça, implantando-se, em maior ou
menor grau, aquilo que Boaventura Santos denominou de “fascismo soci-
etal”.15 Para além disso, o incremento assustador dos índices de exclusão
social – em boa parte tributável aos efeitos negativos da globalização eco-
nômica – igualmente constitui fator de risco para a democracia. Como
bem lembrou Friedrich Müller, em instigante palestra proferida em Porto
Alegre, exclusão social e democracia (esta considerada na sua dimensão
material) são categorias incompatíveis entre si: a primeira leva inexora-
velmente à ausência da segunda.16
Neste mesmo contexto, há que deixar registrada a observação de José
Eduardo Faria, para quem os segmentos excluídos da população, vítimas
das mais diversas formas de violência física, simbólica ou moral – resultan-
tes da opressão socioeconômica – acabam não aparecendo como portadores
de direitos subjetivos públicos, não podendo, portanto, nem mesmo ser con-
siderados como verdadeiros “sujeitos de direito”, já que excluídos, em mai-
or ou menor grau, do âmbito de proteção dos direitos e garantias funda-
mentais.17 Assim, percebe-se que a redução do Estado, que, de há muito –
especialmente sob a forma de Estado democrático (e social) de Direito –
transitou do papel de “vilão” (no sentido de principal inimigo da liberdade
individual) para uma função de protetor dos direitos dos cidadãos,18 nem

14
Cf. a noção cunhada por Hannah Arendt, recolhida e divulgada, entre nós, por LAFER, Celso. A Reconstru-
ção dos Direitos Humanos. São Paulo: Companhia das Letras, 1991, especialmente p. 146 e seguintes.
15
Cf. SANTOS, Boaventura Souza, op. cit., p. 23 e seguintes, dentre as diversas manifestações desta nova e
perversa forma de fascismo, típica dos países tidos como periféricos ou em desenvolvimento, assume
especial relevância a crescente segregação social dos excluídos (fascismo do “apartheid social”), de tal
sorte que a “cartografia urbana” passa a ser caracterizada por uma divisão em zonas ‘civilizadas”, onde as
pessoas –ainda – vivem sob o signo do contrato social, com a manutenção do modelo democrático e da
ordem jurídica estatal, e em “zonas selvagens”, caracterizadas por uma espécie de retorno ao estado de
natureza hobbesiano, no qual o Estado, a pretexto de manutenção da ordem e proteção das “zonas
civilizadas”, passa a atuar de forma predatória e opressiva, além de subverter-se virtualmente a ordem
jurídica democrática, o que, por sua vez, leva à afirmação – também a expressão cunhada por Boaventura
Santos - do fenômeno do“fascismo do Estado paralelo”.
16
Com efeito, para MÜLLER, Friedrich. Que Grau de Exclusão Social ainda pode ser tolerado por um Sistema
Democrático?. Revista da Procuradoria-Geral do Município de Porto Alegre. Porto Alegre: Unidade Editorial
da Secretaria Municipal da Cultura. Edição Especial – Outubro 2000, especialmente p. 45 e seguintes,
desenvolve a idéia de que a exclusão social acelerada e aprofundada pela globalização econômica, revela-
se incompatível com um sistema democrático que efetivamente venha a merecer esta designação.
17
Cf. FARIA, José Eduardo, Democracia e Governabilidade..., cit., p. 145-146.
18
Neste sentido, BONAVIDES, Paulo. Curso de Direito Constitucional. 8ª ed. São Paulo: Malheiros, 1993, p. 344
e seguintes, que, ao retratar a evolução do Estado liberal de matriz burguesa para o assim denominado
Estado Social, destaca que com este modelo de Estado “o Estado-inimigo cedeu lugar ao Estado-amigo, o
Estado-medo ao Estado-confiança, o Estado-hostilidade ao Estado-segurança...”.

334 Direito e Democracia vol.4, n.2, 2003


sempre significa um aumento da liberdade e fortalecimento da democra-
cia. Com efeito, no âmbito da globalização econômica e da afirmação do
ideário neoliberal, verifica-se que a diminuição do Estado, caracterizada
principalmente pela desnacionalização, desestatização, desregulação e re-
dução gradativa da intervenção estatal no domínio econômico e social,
tem ocasionado, paralelamente ao enfraquecimento da soberania externa
e interna dos Estados nacionais (ainda que com intensidade variável e
mais acentuada na esfera dos países periféricos), um fortalecimento do po-
der econômico, notadamente na dimensão supranacional.19
Que os fenômenos ligeiramente enunciados têm contribuído, entre
outros, para uma crise da sociedade, do Estado, do Direito e da cidada-
nia, já constitui lugar comum. Que daí tenha resultado também uma
ampla crise na esfera dos direitos fundamentais, igualmente parece dis-
pensar maiores comentários e tem sido largamente alardeado. Sem que se
pretenda aqui aprofundar a discussão, nem mesmo rastrear todas as cau-
sas e “sintomas” desta crise, verifica-se, contudo, que o aumento da opres-
são socioeconômica, vinculado a menor ou maior intensidade do “fascis-
mo societal” em um determinado Estado, tem gerado reflexos imediatos
no âmbito dos direitos fundamentais, inclusive nos países tidos como de-
senvolvidos. Dentre estes reflexos, cumpre destacar: a) a intensificação
do processo de exclusão da cidadania, notadamente no seio das classes
mais desfavorecidas, fenômeno este ligado diretamente ao aumento dos
níveis de desemprego e subemprego20 ; b) redução e até mesmo supressão
de direitos sociais prestacionais básicos (saúde, educação, previdência e
assistência social), assim como o corte ou, pelo menos, a “flexibilização”
dos direitos dos trabalhadores;21 c) ausência ou precariedade dos instru-

19
Cf. a lição, entre outros, de GORENDER, Jacob. Estratégias dos Estados Nacionais diante do Processo de
Globalização. In: GADELHA, Regina M. F. (Org.). Globalização, Metropolização e Políticas Neoliberais. São
Paulo: EDUC, 1997, p. 80 e seguintes, que, no entanto, sustenta a manutenção do papel de destaque do
Estado nacional, muito embora com contornos diversos e mais atenuados.
20
A este respeito, v. também FARIA, José Eduardo, Democracia e Governabilidade..., cit., p. 143 e seguintes.
21
É em face da erosão crescente dos direitos sociais,e econômicos e culturais, agregada ao aumento da pobreza e
dos níveis de desemprego estrutural, que Boaventura Souza SANTOS fala na transição – para os integrantes
das classes despossuídas – de um “estatuto da cidadania” para um estatuto de “lumpencidadania’, isto é, para
uma “cidadania de trapos”, em se fazendo uma tradução literal do alemão (op. cit., p. 19). A respeito deste
fenômeno v. ainda – dentre outros – AZEVEDO, Plauto Faraco de. Direito, Justiça Social e Neoliberalismo. São
Paulo: Ed. Revista dos Tribunais, 1999, especialmente p. 96 e seguintes (versando a respeito das conseqüên-
cias da globalização e do ideário neoliberal em geral), assim como, mais recentemente, SARMENTO, Daniel.
“Direitos Sociais e Globalização: Limites Ético-Jurídicos ao Realinhamento Constitucional”. Revista de
Direito Administrativo nº 223: 154-155, 2001, destacando que, no âmbito do quadro de desemprego, diminui e,
por vezes, desaparece o poder de barganha dos trabalhadores e de seus sindicatos, contribuindo para o
processo de flexibilização dos direitos trabalhistas.

vol.4, n.2, 2003 Direito e Democracia 335


mentos jurídicos e de instâncias oficiais ou inoficiais capazes de controlar
o processo, resolvendo litígios dele oriundos, e manter o equilíbrio social,
agravando o problema da falta de efetividade dos direitos fundamentais e
da própria ordem jurídica estatal.22
Esta assim denominada crise dos direitos fundamentais, ao menos na
sua feição atual, a despeito de ser aparentemente mais aguda no âmbito
dos direitos sociais (em função da redução da capacidade prestacional dos
Estados, para citar o aspecto mais candente) é, contudo, comum a todos os
direitos fundamentais, de todas as dimensões (ou gerações, se assim prefe-
rirmos), além de não poder ser atribuída – o que parece elementar, mas
convém seja frisado – apenas ao fenômeno da globalização econômica ou
mesmo ao crescimento da pobreza. Basta, para ilustrar tal assertiva, apontar
para o impacto da tecnologia sobre a intimidade das pessoas, no âmbito da
sociedade informatizada, bem como sobre o meio ambiente, assim como no
que diz com o desenvolvimento da ciência genética, demonstrando que
até mesmo o progresso científico pode, em princípio, colocar também em
risco direitos fundamentais da pessoa humana.
Para além disso, cumpre sinalar que a crise de efetividade que atinge
os direitos sociais, diretamente vinculada à exclusão social e falta de
capacidade prestacional dos Estados, acaba contribuindo como elemento
impulsionador e como agravante da crise dos demais direitos, do que dão
conta – e bastariam tais exemplos para comprovar a assertiva – os cres-
centes níveis de violência social, acarretando um incremento assustador
dos atos de agressão a bens fundamentais (como tais assegurados pelo
direito positivo), como é o caso da vida, integridade física, liberdade se-
xual, patrimônio, apenas para citar as hipóteses onde se registram maior
número de violações.
Oportuno que se consigne, ainda, que a crise dos direitos fundamen-
tais não se restringe mais a uma crise de efetividade, mas alcança inclu-
sive a esfera do próprio reconhecimento e da confiança no papel exercido

22
Neste sentido, v. também FARIA, José Eduardo. “Direitos Humanos e Globalização Econômica: Notas para
uma Discussão”. O Mundo da Saúde 22: 74, 1998, alertando para a perda de uma parte significativa da
jurisdição por parte do direito positivo e das instituições oficiais, em face do policentrismo que caracteriza
a economia globalizada, gerando, para além disso, um avanço de formas inoficiais ou não-oficiais de
resolução dos conflitos, de tal sorte que se coloca a indagação de como os direitos fundamentais podem ser
assegurados de forma eficiente pelo poder público quando este é relativizado pelo fenômeno da globalização,
no âmbito do qual a política (ao menos tendencialmente, poderíamos acrescentar) perde para o mercado
seu papel de instância privilegiada de deliberação e decisão.

336 Direito e Democracia vol.4, n.2, 2003


pelos direitos fundamentais numa sociedade genuinamente democrática.
Sem que se possa aqui desenvolver este aspecto, constata-se, com efeito,
uma crescente descrença nos direitos fundamentais. Estes, ao menos a
partir da compreensível ótica da massa de excluídos , ou passam a ser
encarados como verdadeiros ‘privilégios’ de certos grupos (basta apontar
para a oposição entre os “sem-terra” e os “com terra’, os “sem-teto” e os
“com teto”, bem como os “com-saúde” e os “com-educação” e os que aos
mesmos não têm acesso). Da mesma forma, chama a atenção o quanto
têm crescido as manifestações, nos mais variados segmentos da popula-
ção, em prol da pena de morte, da desconsideração pelos mais elementa-
res garantias da ampla defesa e do devido processo legal, do apoio à redu-
ção da idade penal para os adolescentes, tudo revelando que cada vez
menos se toma a sério os direitos fundamentais.23 Que tal fenômeno – e
nisso provavelmente reside a maior ameaça – abre as portas para a mani-
pulação e toda a sorte de medidas arbitrárias e erosivas do Estado demo-
crático de Direito, ainda que sob o pretexto de serem indispensáveis para
a segurança social, parece evidente e reclama medidas urgentes.
Esquematicamente esboçado o contorno, não há, portanto, como negli-
genciar o quanto o direito à moradia encontra-se inserido neste contexto e
pelo mesmo é agudamente influenciado. Que a discussão em torno da sua
eficácia jurídica e social não pode passar ao largo das questões enunciados,
notadamente no que diz com a capacidade de implementação por parte do
poder público e os limites da atuação judicial no que diz com a efetivação
deste direito, ainda será objeto de referência. Em verdade, uma breve visi-
ta à periferia das grandes cidades brasileiras, já bastaria para revelar – de
modo bem mais contundente do que uma pletora de dados estatísticos - o
quanto também o direito à moradia (e a referência aos “sem-teto” não
constitui mero acaso) já “nasce” – em se considerando a sua incorporação
expressa ao texto constitucional – marcado pela crise de efetividade, iden-
tidade e confiança que assola os direitos fundamentais.

23
Apenas para citar exemplo recente ilustrando este fenômeno, chama-se a atenção para as diversas manifestações
veiculadas em importante jornal local (Zero Hora), oriundas de cidadãos de todas as classes sociais, idades e
ramos de atividade, apoiando publicamente a execução sumária, possivelmente (segundo apontam os noticiári-
os) por integrantes da Brigada Militar, de supostos autores do homicídio de uma policial militar, ou, pelo menos,
de notícias censurando o fato de os suspeitos da execução estarem sendo investigados e processados.

vol.4, n.2, 2003 Direito e Democracia 337


MORADIA COMO DIREITO FUNDAMENTAL DA
PESSOA HUMANA

Algumas notas a respeito da evolução do


reconhecimento de um direito (fundamental) à
moradia no plano internacional e constitucional
Se partirmos do critério do reconhecimento expresso pela ordem jurí-
dica positiva de um direito fundamental à moradia, deixando, portanto,
de lado manifestações no plano da legislação infraconstitucional e até
mesmo outros direitos fundamentais conexos, especialmente a função so-
cial da propriedade, já consagrada pelas primeiras Constituições do Esta-
do social de Direito ou dos Estados socialistas (já bastaria lembrar aqui
asConstituições do México e da Alemanha [Constituição de Weimar],
respectivamente, de 1917 e 1919), verifica-se ter sido na Declaração
Universal dos Direitos Humanos da ONU (1948), onde, pela primeira
vez, restou consignado o reconhecimento, pela ordem internacional, dos
assim denominados direitos econômicos, sociais e culturais, dentre os quais
o direito à moradia. Com efeito, de acordo com o artigo XXV (1) da
Declaração:

“todos têm direito ao repouso e ao lazer, bem como a um


padrão de vida capaz de assegurar a si e a sua família
saúde e bem estar, inclusive alimentação, vestuário, habi-
tação, cuidados médicos, e serviços sociais indispensáveis,
o direito à segurança em caso de desemprego, doença,
invalidez, viuvez, velhice, ou outros casos de perda dos meios
de subsistência em circunstâncias fora de seu controle.”

A partir do citado dispositivo, já no âmbito do direito internacional


convencional, o direito à moradia passou a ser objeto de reconhecimento
expresso em diversos tratados e documentos internacionais, destacando-
se, seja pela sua precedência cronológica, seja pela sua relevância, o Pac-
to Internacional dos Direitos Sociais, Econômicos e Culturais, de 1966,
também ratificado e incorporado ao direito interno brasileiro, onde, no
artigo 11, consta que “os Estados signatários do presente pacto reconhe-
cem o direito de toda pessoa a um nível de vida adequado para si próprio

338 Direito e Democracia vol.4, n.2, 2003


e para sua família, inclusive alimentação, vestimenta e moradia adequa-
das, assim como a uma contínua melhoria de suas condições de vida.”
Para além de outros tratados internacionais, de cunho universal (isto
é, não regional), onde houve menção expressa a um direito à moradia24 ,
verifica-se que no plano das convenções de caráter regional, houve mai-
or timidez ou cautela, já que nem a Convenção Européia dos Direitos
Humanos (1950) nem a Carta Social Européia (1961) reconhecem ex-
pressamente um direito à moradia, não obstante a referência, nos artigos
16 e 19 da Carta Social, à moradia no âmbito da proteção dos trabalhado-
res estrangeiros (imigrantes) e do direito da família à proteção social e
legal. Também a Carta da Comunidade Européia sobre Direitos Funda-
mentais Sociais (1989) refere apenas a necessidade de medidas positivas
para a proteção e integração de pessoas portadoras de deficiência, inclu-
indo a moradia. Todavia, importa referir – em que pese a negativa, em
princípio, de uma obrigação dos Estados de assegurarem uma moradia aos
cidadãos - o reconhecimento da função social da propriedade e até mes-
mo de certas dimensões (no caso, de caráter eminentemente defensivo)
de um direito à moradia pela Comissão Européia de Direitos Humanos e
dos Tribunais Europeus (Tribunal de Justiça das Comunidades Européias
e Tribunal Europeu de Direitos Humanos) em alguns de seus julgados
envolvendo despejos e desapossamentos.25
Por derradeiro, a nova Carta de Direitos Fundamentais da União Eu-
ropéia, aprovada no Conselho Europeu de Nice, França, em 07 de dezem-
bro de 2000, mas ainda destituída da força vinculativa dos demais trata-
dos referidos, contém referência expressa à dimensão social dos direitos

24
Aqui lembramos, entre outros instrumentos internacionais, a Convenção Internacional sobre a eliminação de
todas as formas de discriminação racial (1969), cujo art. 5º assegura, sem discriminação por motivos de
raça, cor, nacionalidade ou origem étnica, entre outros direitos, o direito à moradia. Em termos semelhan-
tes, também as Convenções Internacionais sobre a eliminação de todas as formas de discriminação contra
a mulher (1979), a Convenção Internacional sobre os direitos das crianças (1989), bem como a Convenção
sobre a proteção dos direitos dos trabalhadores migrantes (1990), contém dispositivos reconhecendo um
direito à moradia, com alguma variação no que diz com dimensões específicas deste direito.
25
Assim, por exemplo, costuma ser referido uma disputa envolvendo o Chipre e a Turquia (1976), versando sobre
a evicção de cipriotas gregos, imputada à Turquia, ocasião na qual a Comissão Européia teve as evicções
como constituindo uma violação do direito à proteção da moradia. No caso Mellacher e outros contra a
Áustria (1989), julgado pela Corte Européia de Direitos Humanos, foi reconhecida a possibilidade de
controle da legislação nacional a respeito de locações, inclusive estabelecendo restrições aos direitos do
proprietário (cf. referências feitas por SACHAR, Rajindar, The Right to Adequate Housing: The Realization of
Economic, Social and Cultural Rights, relatório apresentado em junho de 1993, à Comissão de Direitos
Humanos da ONU, acessado pela Internet pelo seguinte endereço: http://www.undp.org/um/habitat/
rights/s2-93-15.html, p. 22-23)

vol.4, n.2, 2003 Direito e Democracia 339


fundamentais, prevendo o direito de acesso às prestações de segurança
social e assistência social, inclusive no que diz com um auxílio para a
habitação, com o objetivo de assegurar uma existência condigna aos ne-
cessitados (art. 34), além da previsão de um direito à proteção da saúde
(art. 35), apenas para citar os exemplos mais relevantes.26
De modo geral, todavia, convém sinalar, há quem registre uma ten-
dência à exclusão de um direito geral à moradia (não restrito a certas
parcelas da sociedade ou grupos de pessoas, tais como deficientes, crian-
ças, refugiados, etc) na esfera dos documentos regionais, como também
dão conta os exemplos da Carta Africana dos Direitos do Homem e dos
Povos e o Protocolo Adicional da Convenção Americana de Direitos
Humanos (Protocolo de São Salvador).27
Ainda no plano internacional, pela sua relevância especial para o re-
conhecimento e proteção do direito à moradia, inclusive pela sua influ-
ência no que diz com a fundamentação de uma inserção deste direito na
nossa própria ordem jurídica, na condição de direito fundamental social,
cumpre citar os documentos oriundos de duas grandes conferências pro-
movidas pela ONU sobre a problemática dos assentamentos humanos,
respectivamente em 1976 (Declaração de Vancouver sobre Assentamen-
tos Humanos - Habitat I) e em 1996, em Istambul, Turquia, da qual re-
sultou a assim designada Agenda Habitat II, tido como o mais completo
documento na matéria, do qual também o Brasil é signatário.
Já por ocasião da Declaração de Vancouver (1976) restou assegurado
que a moradia adequada constitui um direito básico da pessoa humana.
Por ocasião da Agenda Habitat II (Declaração de Istambul, de 1996),
além de reafirmado o reconhecimento do direito à moradia como direito
fundamental de realização progressiva, com remissão expressa aos pactos
internacionais anteriores (art. 13), houve minuciosa previsão quanto ao
conteúdo e extensão do direito à moradia (art. 43) bem como das respon-
sabilidades gerais e específicas dos Estados signatários para a sua realiza-
ção, que voltarão a ser objeto de referência.

26
Para um primeiro contato com o texto da nova Carta Européia, sugere-se a leitura de recente obra coletiva
da autoria de RIQUITO, Ana Luísa et. al. Carta dos Direitos Fundamentais da União Européia. Coimbra:
Coimbra Ed., 2001, já citada.
27
Cf. LECKIE, Scott. “The Right to Housing”. In: EIDE, Asbjorn, KRAUSE, Catarina & ROSAS, Allan (Ed.).
Economic, Social and Cultural Rights. Dordrecht-Boston-London: Martinus Nijhoff Publishers, 1995, p. 109
e 116-120.

340 Direito e Democracia vol.4, n.2, 2003


Traçado este breve panorama no que diz com o reconhecimento e
proteção na esfera do direito internacional geral e convencional, e dei-
xando de lado os relevantes aspectos ligados à sua força vinculante, efi-
cácia e efetividade, voltamo-nos agora para o direito constitucional es-
trangeiro, limitando-nos, quanto a este ponto, a consignar a notícia de
que atualmente bem mais de cinqüenta Constituições reconhecem ex-
pressamente um direito fundamental à moradia28 , revelando aqui uma
tendência aparentemente mais progressista e afinada com os paradigmas
internacionais colocados pela ONU, do que a manifestada no plano dos
documentos regionais, tal como já referido, muito embora também aqui
(no que diz com o direito constitucional) possam ser apontados alguns
retrocessos, especialmente quando se tomar como parâmetro não apenas
a mera previsão formal no texto das Constituições, mas sim, o nível de
efetividade do direito à moradia, assim como dos direitos sociais em ge-
ral, circunstância que dispensa, por ora, maiores comentários.
No direito constitucional pátrio, em que pese ter sido o direito à mo-
radia incorporado ao texto da nossa Constituição vigente (art. 6º) – na
condição de direito fundamental social expresso - apenas com a edição
da Emenda Constitucional nº 26, de 2000, constata-se que, consoante já
referido no voto da Deputada Federal Almerinda Carvalho, relatora do
PEC nº 60/98, na Constituição de 1988 já havia menção expressa à mora-
dia em outros dispositivos,29 seja quando dispôs sobre a competência co-
mum da União, dos Estados, do Distrito Federal e dos Municípios para
“promover programas de construção de moradia e a melhoria da condi-
ções habitacionais e de saneamento básico” (art. 24, inc. IX), seja quan-
do no artigo 7º, inciso IV, definiu o salário mínimo como aquele capaz de
atender às necessidades vitais básicas do trabalhador e de sua família,
dentre outros elementos, com moradia. Da mesma forma, a vinculação
social da propriedade (art. 5º, XXIII, e artigos 170, inciso III e 182, pará-
grafo 2º), bem como a previsão constitucional do usucapião especial ur-
bano (art. 183) e rural (art. 191), ambos condicionando, dentre outros
requisitos, a declaração de domínio à utilização do imóvel para moradia,
apontam para a previsão ao menos implícita de um direito fundamental à
moradia já antes da recente consagração via emenda constitucional.

28
Id., ibid., p. 109 e seguintes, muito embora os dados não estejam atualizados, considerando a data da
publicação do trabalho (1995).
29
Referência ao voto da relatora do Projeto de Emenda Constitucional, citado na pesquisa feita por SALTZ,
Alexandre. O Novo Direito Social à Moradia na Constituição de 1988: Significado, Conteúdo, Eficácia e Efetividade,
trabalho de conclusão (não publicado) da disciplina “Constituição e Direitos Fundamentais”, que integra
a estrutura curricular do Mestrado em direito da PUC/RS, ministrada pelo autor do presente ensaio.

vol.4, n.2, 2003 Direito e Democracia 341


Para além disso, sempre haveria como reconhecer um direito funda-
mental à moradia como decorrência do princípio da dignidade da pessoa
humana (art. 1º, inciso III, da Constituição Federal), já que este reclama,
na sua dimensão positiva, a satisfação das necessidades existenciais básicas
para uma vida com dignidade, podendo servir até mesmo como fundamen-
to direto e autônomo para o reconhecimento de direitos fundamentais não
expressamente positivados, mas inequivocamente destinados à proteção da
dignidade.30 Neste contexto, vale lembrar exemplo garimpado do direito
comparado, designadamente da jurisprudência francesa, de onde extraí-
mos importante aresto do Conselho Constitucional (Decisão nº 94-359, de
19.01.95), reconhecendo que a possibilidade de toda pessoa dispor de um
alojamento decente constitui um valor de matriz constitucional, direta-
mente fundado na dignidade da pessoa humana, isto mesmo sem que hou-
vesse previsão expressa na ordem constitucional.31
Por outro lado, por força do art. 5º, parágrafo 2º, da nossa Constituição,
tendo em conta ser o Brasil signatário dos principais tratados internacio-
nais em matéria de direitos humanos, notadamente (e isto por si só já bas-
taria) do Pacto Internacional dos Direitos Sociais, Econômicos e Culturais
de 1966, já formalmente incorporado ao direito interno, e partindo-se da
premissa largamente difundida pela melhor doutrina (embora ainda não
incontroversa e, de resto, repudiada pelo nosso Supremo Tribunal Federal)
da hierarquia constitucional destes tratados,32 poder-se-á sustentar que o
direito à moradia já era até mesmo expressamente consagrado na nossa
ordem interna, pelo menos na condição de materialmente fundamental.
De qualquer modo, com a recente inclusão no rol dos direitos funda-

30
Sobre este ponto, remetemos ao nosso Dignidade da Pessoa Humana e Direitos Fundamentais na Constituição
Federal de 1988. Porto Alegre: Livraria do Advogado, 2001, p. 97 e seguintes. No âmbito da jurisprudência
pátria, já se registravam decisões anteriores a Emende nº 26, reconhecendo, de certa forma, um direito
implícito à moradia (habitação) com base no estreito vínculo com a dignidade da pessoa. Apenas a título
exemplificativo, vai aqui referida a ementa do Acórdão proferido em 19.08.99 pelo Superior Tribunal de
Justiça no Resp. nº 213422, tendo como Relator o Ministro José Delgado.
31
Cf. Decisão nº 94-359, de 19.01.95, onde, todavia – para ser preciso - não se encontra uma referência expressa
e direta a um direito fundamental à moradia, mas sim, o reconhecimento de que a possibilidade de dispor
de um alojamento decente constitui um objetivo de valor constitucional, fundado na dignidade da pessoa
humana (“la possibilite pour toute personne de disposer d’un logement décent est u n objectif de valeur
constitutionnelle”).
32
Cf., paradigmaticamente, entre outros, PIOVESAN, Flávia. Direitos Humanos e o Direito Constitucional Inter-
nacional, cit., especialmente p. 73 e seguintes, assim como, mais recentemente, MELLO, Celso Albuquerque.
“O § 2º do art. 5º da Constituição Federal”. In: TORRES, Ricardo Lobo (Org.). Teoria dos Direitos
Fundamentais. Rio de Janeiro: Renovar, 2001, p. 1 e seguintes.

342 Direito e Democracia vol.4, n.2, 2003


mentais sociais, a possível controvérsia quanto ao reconhecimento ine-
quívoco no plano constitucional de um direito à moradia resta superada.
Se o direito à moradia, pelos motivos já apontados, não chega a ser propri-
amente um “novo direito” na nossa ordem jurídico-constitucional, por
certo a sua expressa positivação lhe imprime uma especial significação,
além de colocar novas dimensões e perspectivas no que diz com a sua
eficácia e efetividade, pressupondo-se, à evidência, uma concepção de
Constituição que, mesmo reconhecendo – com Luís Roberto Barroso –
que o direito (e também o direito constitucional) não deve normatizar o
inalcançável33 – nem por isso deixa de outorgar aos preceitos constituci-
onais, notadamente os definidores de direitos e garantias fundamentais,
de acordo com suas peculiaridades, sua máxima força normativa.

Fundamentação e conteúdo do direito à moradia

Fundamentação: direito à moradia, vida e dignidade da pessoa


Ainda que estejamos convictos de que nem todos os direitos e garan-
tias fundamentais expressamente anunciados no elenco do Título II de
nossa Constituição encontram seu fundamento direto no princípio da dig-
nidade da pessoa humana e que, de qualquer modo, diversa a intensida-
de deste vínculo entre dignidade e direitos fundamentais, já que distinto
o âmbito de proteção de cada direito em espécie, não poderíamos, por
outro lado, deixar de reconhecer que é na dignidade da pessoa humana
que reside o fundamento primeiro e principal e, de modo particular, o
alicerce de um conceito material dos direitos fundamentais.34
Que também os direitos fundamentais sociais, econômicos e culturais,
seja na condição de direitos de defesa (negativos), seja na sua dimensão
prestacional (isto é, atuando como direitos positivos), constituem – pelo me-
nos em boa parte - exigência e concretização da dignidade da pessoa huma-
na, nos parece inquestionável. Com efeito, o reconhecimento jurídico-cons-

33
Cf. BARROSO, Luís Roberto. O Direito Constitucional e a Efetividade de suas Normas. 3ª ed. Rio de Janeiro:
Renovar, 1996, p. 47, em magnífico e referencial estudo sobre o tema.
34
V. por todos, ANDRADE, José Carlos Vieira de. Os Direitos Fundamentais na Constituição Portuguesa de 1976. 2ª
ed. Coimbra: Almedina, 2001, p. 79 e seguintes. Confira-se também o nosso Dignidade da Pessoa Humana e
Direitos Fundamentais na Constituição de 1988, cit., p. 81-82.

vol.4, n.2, 2003 Direito e Democracia 343


titucional da liberdade de greve e de associação e organização sindical, jor-
nada de trabalho razoável, direito ao repouso, bem como as proibições de
discriminação nas relações trabalhistas (apenas para citarmos os exemplos
mais comuns) foi o resultado das reivindicações das classes trabalhadoras em
face do alto grau de opressão e degradação que caracterizava, de modo geral,
as relações entre capital e trabalho, não raras vezes resultando em condições
de vida e trabalho manifestamente indignas, situação que, de resto, ainda
não foi superada em expressivo número de Estados. Em verdade, cuida-se -
em boa parte - de direitos fundamentais de liberdade e igualdade outorgados
ao trabalhadores com o intuito de assegurar-lhes um espaço de autonomia
pessoal não mais em face do Estado, mas especialmente dos assim denomina-
dos poderes sociais35 . Os direitos fundamentais sociais de cunho prestacio-
nal, encontram-se, por sua vez, a serviço da igualdade e da liberdade mate-
rial, objetivando, em última análise, a proteção da pessoa contra as necessi-
dades de ordem material e a garantia de uma existência com dignidade.36
Neste contexto, vale reiterar aqui a lembrança de que o ponto de cone-
xão entre a pobreza, a exclusão social e os direitos sociais, reside justamen-
te no respeito pela e proteção da dignidade da pessoa humana, já que, de
acordo com Rosenfeld, “onde homens e mulheres estiverem condenados a
viver na pobreza, os direitos humanos estarão sendo violados”37 . Importa

35
Sobre o conceito e a classificação dos direitos fundamentais sociais, v. o nosso Os Direitos Fundamentais Sociais
na Constituição de 1988. In: SARLET, Ingo Wolfgang (Org.). Direito Público em Tempos de Crise – Estudos em
Homenagem a Ruy Ruben Ruschel. Porto Alegre: Sagra-Luzzatto, 1997, especialmente p. 140 e seguintes.
36
Cf. dentre outros, HÖFLING, Wolfram. “Anmerkungen zu Art. 1 Abs. 3 Grundgesetz”. In: SACHS, Michael
(Org.). Grundgesetz-Kommentar. München: C.H. Beck, 1996, p. 109-110. assim como MAUNZ, Theodor &
ZIPPELIUS, Reinhold. Deutsches Staatsrecht. 29ª ed. München: C.H. Beck, 1994, p. 182. Na França, a
íntima ligação entre os direitos sociais e a dignidade da pessoa encontra-se referida por PAVIA, Marie-
Luce. “Le Principe de Dignité de la Personne Humaine: um Nouveau Principe Constitutionnel”. In:
CABRILLAC, Rémy, ROCHE-FRISON, Marie-Aenne & REVET, Thierry. Droits et Libertés Fondamenteaux.
4ª ed. Paris: Dalloz, 1997, p. 109-110, valendo-se do exemplo de um direito fundamental à moradia, a partir
do reconhecimento da moradia como objetivo e valor de matriz constitucional pelo Conselho Constituci-
onal. Também na Bélgica, sustenta-se que o direito a uma existência com dignidade implica o reconheci-
mento de um direito aos meios de subsistência mínimos, especialmente no âmbito da assistência social.
Neste sentido, v. DELPÉRÉE, Francis. “O Direito à Dignidade Humana”. In: BARROS, Sérgio R. &
ZILVETI, Fernando A. (Coord.). Direito Constitucional. Estudos em Homenagem a Manoel Gonçalves Ferreira
Filho. São Paulo: Dialética, 1999, p. 156 e seguintes. Assim também, JORGE MIRANDA, Manual de Direito
Constitucional, cit., v. 4, p. 186 (ao menos é o que se infere da referência a diversos direitos sociais). Entre
nós, e mais recentemente, NOBRE JÚNIOR, Edílson Pereira. “O Direito Brasileiro e o Princípio da
Dignidade da Pessoa Humana”. Revista de Direito Administrativo 219: 247, 2000, advoga, com amparo na
dignidade da pessoa humana, um direito a uma existência material mínima.
37
Apud CORDEN, Anne & DUFFY, Katherin. “Human Dignity and Social Exclusion”. In: SYKES, Rob &
ALCOCK, Pete (Org.). Developments in European Social Policy – Convergence and Diversity. Bristol: The
Policy Press, 1998, p. 110.

344 Direito e Democracia vol.4, n.2, 2003


reste aqui consignado, que a intensidade da vinculação entre a dignidade
da pessoa humana e os direitos sociais é diretamente proporcional em rela-
ção à importância destes para a efetiva fruição de uma vida com dignidade,
o que, por sua vez, não afasta a constatação elementar de que as condições
de vida e os requisitos para uma vida com dignidade constituam dados
variáveis de acordo com cada sociedade e em cada época.38
Tendo em conta que no caso do direito à moradia a íntima e indissociável
vinculação com a dignidade da pessoa humana resulta inequívoca, pelo menos
no âmbito daquilo que se tem designado de um direito às condições materiais
mínimas para uma existência digna, parece-nos dispensável, dadas as propor-
ções deste estudo, avançar ainda mais na sua fundamentação. Aliás, provavel-
mente é ao direito à moradia - bem mais do que ao direito de propriedade - que
melhor se ajusta a conhecida frase de Hegel, ao sustentar - numa tradução
livre - que a propriedade constitui (também) o espaço de liberdade da pessoa
(Sphäre ihrer Freiheit)39 . Com efeito, sem um lugar adequado para proteger-se a
si próprio e a sua família contra as intempéries, sem um local para gozar de sua
intimidade e privacidade, enfim, de um espaço essencial para viver com um
mínimo de saúde e bem estar, certamente a pessoa não terá assegurada a sua
dignidade, aliás, por vezes não terá sequer assegurado o direito à própria exis-
tência física, e, portanto, o seu direito à vida.
Não é por outra razão que o direito à moradia tem sido, também entre nós
– e de modo incensurável - incluído no elenco dos assim designados direitos
de subsistência, como expressão mínima do próprio direito à vida40 . Nesta
quadra, o direito à moradia, de acordo com a lição de José Reinaldo de Lima
Lopes, inclui o direito de ocupar um lugar no espaço, assim como o direito às
condições que tornam este espaço um local de moradia, de tal sorte que
morar, na acepção do ilustre doutrinador, constitui um existencial humano.41

38
Cf. a oportuna menção de MODERNE, Frank. “La Dignité de la Personne Comme Principe Constitutionnel
dans les Constitutions Portugaise et Française”. In: MIRANDA, Jorge (Org.). Perspectivas Constitucionais
– nos 20 anos da Constituição de 1976. Coimbra: Coimbra Ed., 1997, v. 1, p. 220.
39
Cf. HEGEL, Georg Wilhelm Friedrich. Grundlinien der Philosophie des Rechts. Frankfurt: Suhrkamp, 1991, v. 7, p. 102.
40
Cf. CUNHA, Sérgio Sérvulo da. “Direito à Moradia”. Revista de Informação Legislativa 127: 49, 1995. Também
VIANA, Rui Geraldo Camargo. “O Direito à Moradia”. Revista de Direito Privado, abril/junho 2000, p. 9,
destaca a vinculação do direito à moradia com o direito à vida e uma existência digna. Registre-se, ainda
quanto a este ponto, que também pelo prisma do direito internacional, o que decorre inclusive de previsão
expressa do Pacto Internacional sobre Direitos Econômicos, Sociais e Culturais, o direito à moradia, assim
como o direito à alimentação, integra o direito à um adequado padrão de vida. Neste sentido, dentre
tantos, CRAVEN, Matthew. The International Covenant on Economic, Social and Cultural Rights – A Perspective
on its Development. Oxford: Clarendon Press, 1995, p. 330.
41
Cf. LOPES, José Reinaldo de Lima. “Cidadania e Propriedade: Perspectiva Histórica do Direito à Moradia”.
Revista de Direito Alternativo, 1993, p. 121, igualmente, em importante ensaio, sinalando a direta conexão do
direito à moradia com o direito à vida (p. 133).

vol.4, n.2, 2003 Direito e Democracia 345


Mesmo dentre os que, pelo menos em princípio e estribados em rele-
vantes argumentos, questionam a própria fundamentalidade dos direitos
sociais (e aqui – em face dos estreitos limites deste estudo – não preten-
demos adentrar o mérito desta relevante e estimulante discussão) há quem
admita o caráter fundamental de um direito à moradia, designadamente
naquilo em que integra um direito às condições mínimas para uma exis-
tência humana digna, destacando-se, entre nós, o valoroso magistério de
Ricardo Lobo Torres.42
De qualquer modo, a despeito de seguirmos sustentando que, na or-
dem constitucional pátria, todos os direitos sociais – pelo menos os elen-
cados no Título II da nossa Carta Magna – são fundamentais43 , também
estamos convictos que a intensidade da vinculação com o direito à vida e
uma vida com dignidade assume papel de destaque no âmbito dos proble-
mas ligados à eficácia, efetividade e proteção destes direitos fundamen-
tais – o que, por seu turno, nos remete invariavelmente a uma necessária
hierarquização (ou ponderação, se assim preferirmos) de bens e interesses
- aspecto com o qual voltaremos a nos ocupar também neste estudo.

Conteúdo do direito à moradia


Voltando-nos agora mais especificamente para a questão do conteúdo
do direito fundamental à moradia, deparamos-nos possivelmente com um
dos mais angustiantes e complexos problemas que o tema suscita e que,

42
Cf. TORRES, Ricardo Lobo. “O Mínimo Existencial e os Direitos Fundamentais”. Revista de Direito Adminis-
trativo 177: 29, 1989, que, em paradigmático e pioneiro estudo sobre o mínimo existencial, destaca que este
carece de um conteúdo específico, já que pode abranger qualquer direito, ainda que não originariamente
fundamental, desde que considerado em sua dimensão essencial e inalienável. Não obstante neste
primeiro estudo o ilustre doutrinador Fluminense não tenha feito menção expressa ao direito à moradia
como exemplo de direito fundamental, tal veio a ocorrer, recentemente, em outro texto de crucial
relevância para a discussão da problemática dos direitos fundamentais, admitindo,que no concernente aos
indigentes e às pessoas sem-teto à moradia é direito fundamental, integrando-se ao mínimo existencial e
tornando obrigatória até mesmo a sua prestação pelo Estado (cf. TORRES, Ricardo Lobo. “A Cidadania
Multidimensional na Era dos Direitos”. In: TORRES, Ricardo Lobo. (Org.). Teoria dos Direitos Fundamen-
tais. 2ª ed. Rio de Janeiro: Renovar, 2001, p. 289).
43
Em síntese, fundamos nosso entendimento na circunstância de que todos as posições jurídicas elencadas no
Título II (dos Direitos e Garantias Fundamentais) são fundamentais num sentido formal (e de acordo com
este critério o atributo da fundamentalidade parece inquestionável) e material, ainda que em virtude de
uma necessária presunção de sua fundamentalidade material, mesmo que esta – e isto se admite em diversos
casos – possa ser questionada, notadamente pelo critério de sua indispensabilidade para a dignidade da
pessoa. De qualquer modo, não havendo como aprofundar aqui a discussão, remetemos ao nosso A Eficácia dos
Direitos Fundamentais, cit., e, para uma visão da respeitável posição divergente, à fecunda obra do Prof.
RICARDO LOBO TORRES, já referida, dentre outras que aqui poderiam ser citadas.

346 Direito e Democracia vol.4, n.2, 2003


de certa forma, é comum aos assim designados direitos sociais, notada-
mente quando examinados pelo prisma da sua condição de direitos a
prestações, já que da definição de qual o seu conteúdo (ou objeto, se
assim preferimos), decorrem importantes conseqüências até mesmo no
que diz com a alocação de recursos materiais e humanos para a sua efeti-
va realização.
Iniciando a abordagem do ponto de vista terminológico, andou bem o
nosso legislador constitucional44 ao referir o direito à moradia de forma
genérica, desacompanhado de qualquer adjetivo. Com efeito, tendo em
conta a previsão, na esfera dos tratados internacionais, de um direito à
moradia adequada (como ocorre no Pacto Internacional de 1966) ou
mesmo de um direito a uma moradia decente, como dispõe a Constitui-
ção da Bélgica, não nos parece, especialmente á luz da nossa atual Carta
Magna, que um direito à moradia possa, em qualquer hipótese, ser inter-
pretado como um direito a uma moradia não adequada ou, pior ainda,
não decente. Uma moradia minimamentecompatível com as exigências
da dignidade da pessoa humana, à evidência, sempre deverá ser adequa-
da e decente. De qualquer modo, cuidando-se certamente de aspecto de
menor relevância, convém levar em consideração que a adjetivação tem
o mérito inquestionável de afastar interpretações demasiadamente restri-
tivas, que possam vir a reduzir excessivamente o objeto do direito à mora-
dia ou (o que dá no mesmo) deixá-lo na completa dependência do legis-
lador infraconstitucional.
Na definição do conteúdo do direito à moradia, cumpre, ainda em
caráter preliminar, distingui-lo do direito de propriedade (e do direito à
propriedade). Muito embora a evidência de que a propriedade possa ser-
vir também de moradia ao seu titular e que, para além disso, a moradia
acaba, por disposição constitucional expressa – e em determinadas cir-
cunstâncias - assumindo a condição de pressuposto para a aquisição do
domínio (como no caso do usucapião especial constitucional), atuando,
ainda, como elemento indicativo da aplicação da função social da propri-
edade, o direito à moradia – convém frisá-lo - é direito fundamental au-
tônomo, com âmbito de proteção e objeto próprios.
Ademais, em se tomando como referencial o critério da fundamentali-
dade substancial (material) e, nesta quadra, a conexão com o direito a

44
Aqui acompanha-se a distinção que já havia sido traçada por Carl Schmitt, entre Poder Constituinte
(Verfassungsgeber) e Legislador Constituinte (Verfassungsgesetzgeber)

vol.4, n.2, 2003 Direito e Democracia 347


uma existência digna, o direito à moradia poderá assumir, em diversas situ-
ações, posição preferencial em relação ao direito de propriedade, no míni-
mo para justificar uma série de restrições a este direito, que, de resto – e de
acordo com previsão constitucional expressa – encontra-se limitado pela
sua função social, de tal sorte que, já há algum tempo – expressiva doutrina
sustenta que apenas a propriedade socialmente útil (isto é, que cumpre sua
função social) é constitucionalmente tutelada.45 Aliás, basta aqui lembrar
a evidência de que mesmo sem a propriedade sobre um bem imóvel a pes-
soa, por si só, não estará necessariamente privada de uma vida digna, o
que, por outro lado, inevitavelmente ocorrerá em não dispondo de uma
moradia com padrões compatíveis com uma vida saudável. Por outro lado,
já se apontou – com acuidade e sensibilidade – para uma noção de propri-
edade conectada com as exigências de uma vida digna, isto é, de uma
propriedade tutelada na medida em que cumpre precisamente uma função
existencial e não meramente patrimonial.46 Tal enfoque, em verdade, aca-
ba por remeter-nos à discussão em torno da própria fundamentalidade do
direito de propriedade, que, visto sob prisma eminentemente patrimonial,
poderia ser – como há quem sugira - considerado fundamental em sentido
apenas formal,47 temática esta que, a despeito de sua relevância, desborda
por completo dos limites estreitos deste texto.
Considerando o silêncio da nossa Constituição no que diz com a de-

45
Entre nós, vale lembrar a lição do saudoso Professor e Desembargador Gaúcho RUY RUBEN RUSCHEL
(Direito Público em Tempos de Crise..., cit., p. 145-155), alertando para a necessidade de uma releitura (à luz
da Constituição e do princípio da função social da posse da propriedade) do art. 524 do Código Civil e da
própria definição de posse, sustentando a necessidade do uso e gozo do bem secundum beneficium
societatis. Também adotando esta linha de entendimento, convém lembrar, entre outros, os preciosos
ensinamentos de FACHIN, Luiz Edson. “Novas Limitações ao Direito de Propriedade: do Espaço Privado
à Função Social”. Revista de Direito da Universidade de Santa Catarina 11: 33-46, 1999; TEPEDINO, Gustavo.
Temas de Direito Civil. Rio de Janeiro: Renovar, 1999, assim como ARONNE, Ricardo. Por uma Nova
Hermenêutica dos Direitos Reais Limitados: das Raízes aos Fundamentos Contemporâneos. Rio de Janeiro:
Renovar, 2001, todos convergindo no sentido de uma necessária interpretação dos institutos jurídicos
sobre a posse e propriedade à luz da Constituição, da dignidade da pessoa e dos direitos fundamentais.
46
Neste sentido, merece destaque a recente e notável contribuição de FACHIN, Luiz Edson. Estatuto Jurídico
do Patrimônio Mínimo. Rio de Janeiro: Renovar, 2001.
47
A respeito de uma possível distinção entre direitos fundamentais e direitos patrimoniais, v. a interessante
contribuição de FERRAJOLI, Luigi. Derechos y Garantias. La Ley del más Débil. Madrid: Ed. Trotta, 1999, p.
45-50. Desde logo, para não quedarmos omissos, destacamos que - compreendida pela perspectiva de seu
conteúdo socialmente útil e de sua possível dimensão existencial - a propriedade constitui direito fundamen-
tal na sua dupla vertente formal e material, não apresentando necessariamente caráter exclusivamente
patrimonial. De qualquer modo, dada a ausência de hierarquia formal entre as normas constitucionais e
tendo em conta a conhecida e prestigiada tese (basta aqui lembrar a abalizada lição de JORGE MIRANDA,
Manual de Direito Constitucional, cit., v. 2, de que em favor das normas constitucionais em sentido formal milita
uma presunção de sejam materialmente constitucionais), eventual decisão em prol da relativização da
propriedade, deverá ocorrer mediante uma cuidadosa ponderação de bens e levar em conta a maior ou menor
conexão da propriedade com outros valores essenciais, notadamente, com a dignidade da pessoa humana.

348 Direito e Democracia vol.4, n.2, 2003


finição mínima de um conteúdo para o direito à moradia, assumem lugar
de destaque as disposições contidas nos diversos tratados e documentos
internacionais firmados pelo Brasil e já incorporados ao direito interno.
Estes, naquilo em que versam sobre direitos fundamentais da pessoa hu-
mana, possuem hierarquia constitucional, na condição de direitos funda-
mentais em sentido material, integrando aquilo que se costuma também
denominar – com inspiração na tradição jurídico-constitucional francesa
- de bloco de constitucionalidade. Assim, em face da sua íntima conexão
com a dignidade da pessoa humana, verifica-se, desde logo, que, na in-
terpretação do conteúdo de um direito à moradia, há que considerar os
parâmetros mínimos indispensáveis para uma vida saudável, nos termos
das exigências postas pela Organização Mundial da Saúde, no sentido de
um completo bem-estar físico, mental e social, já que uma vida com dig-
nidade em hipótese alguma poderá ser menos do que uma vida com saú-
de, à evidência não restrita a mera existência e sobrevivência física.48
É precisamente esta diretriz que parece ter norteado a determinação do
conteúdo do direito à moradia no plano de sua proteção internacional, e que
deverá também iluminar as autoridades legislativas, executivas e judiciárias
nacionais. Se a nossa própria Constituição foi omissa neste passo, nada impe-
de - pelo contrário, tudo impõe (inclusive a nossa Carta Magna) -, que se
faça o uso da normativa internacional também nesta esfera. Justamente nes-
te contexto, buscando estabelecer padrões internacionais, a Comissão da ONU
para Direitos Econômicos, Sociais e Culturais identificou uma série de ele-
mentos básicos a serem atendidos em termos de um direito à moradia:49
a) Segurança jurídica para a posse, independentemente de sua
natureza e origem.
b) Disponibilidade de infra-estrutura básica para a garantia da saú-
de, segurança, conforto e nutrição dos titulares do direito (acesso

48
Tal entendimento mostra-se coerente com a conceituação da dignidade da pessoa humana por nós apresen-
tada em trabalho anterior, sustentando que a dignidade da pessoa humana é a qualidade intrínseca e
distintiva de cada ser humano que o faz merecedor do mesmo respeito e consideração por parte do Estado
e da comunidade, implicando, neste sentido, um complexo de direitos e deveres fundamentais que
assegurem a pessoa tanto contra todo e qualquer ato de cunho degradante e desumano, como venham a
lhe garantir as condições existenciais mínimas para uma vida saudável, além de propiciar e promover sua
participação ativa e co-responsável nos destinos da própria existência e da vida em comunhão com os
demais seres humanos.” (Cf. o nosso Dignidade da Pessoa Humana e Direitos Fundamentais...., cit., p. 60).
49
Tal como disposto no parágrafo 8º do Comentário-Geral nº 4 a respeito de um direito à moradia adequada
editado pela Comissão de Direitos Econômicos, Sociais e Culturais da ONU. A síntese ora efetuada foi
extraída do relatório elaborado por SACHAR, Rajindar, op. cit., p. 17-18.

vol.4, n.2, 2003 Direito e Democracia 349


à água potável, energia para o preparo da alimentação, ilumina-
ção, saneamento básico, etc).
c) As despesas com a manutenção da moradia não podem compro-
meter a satisfação de outras necessidades básicas.
d) A moradia deve oferecer condições efetivas de habitabilidade,
notadamente assegurando a segurança física aos seus ocupantes.
e) Acesso em condições razoáveis à moradia, especialmente para
os portadores de deficiência.
f) Localização que permita o acesso ao emprego, serviços de saúde,
educação e outras serviços sociais essenciais.
g) A moradia e o modo de sua construção devem respeitar e ex-
pressar a identidade e diversidade cultural da população.
Tais diretrizes, importa frisar, revelam de modo emblemático aquilo que já
havia sido anunciado, no sentido de que um direito à moradia digna não
pode ser interpretado como sendo apenas um “teto sobre a cabeça” ou “espa-
ço físico” para viver, pressupondo a observância de critérios qualitativos míni-
mos50 . Que a implementação dos padrões estabelecidos pela ordem jurídica
internacional reclama, por outro lado, uma exegese afinada com as peculia-
ridades de cada País e região (já que é na realidade concreta de quem mora
e onde mora que se pode aferir a compatibilidade da moradia com uma exis-
tência digna), por sua vez, constitui premissa igualmente já destacada. Tam-
bém por esta razão, a despeito da necessidade de padrões mínimos referenci-
ais de caráter até mesmo supranacional, é no contexto regional e local que se
poderá melhor avaliar a manifestação concreta destes critérios e as condi-
ções para o seu atendimento, o que evidencia o acerto do nosso legislador,
quando da edição da Lei nº 10.257/2001, não apenas no que diz com a termi-
nologia adotada (Estatuto da Cidade), mas especialmente ao optar pelo esta-
belecimento de algumas diretrizes e regras de âmbito nacional, privilegian-
do, contudo, a esfera regional e, particularmente, a local.
Para além da existência de uma gama de diretrizes internacionalmen-
te estabelecidas, caberá aos órgãos estatais, notadamente – mas não ex-
clusivamente – ao Legislador, a tarefa de estabelecer os contornos mais

50
A respeito destes critérios qualitativos, destacando, em síntese, os elementos já referidos, v. também as
ponderações de MATTHEW CRAVEN, op. cit., p. 344 e seguintes.

350 Direito e Democracia vol.4, n.2, 2003


precisos de um direito à moradia e dos meios para a sua implementação,
sempre lembrando sua vinculação aos tratados internacionais sobre o tema,
e, acima de tudo (e sem que se possa questionar seriamente tal ponto)
aos demais preceitos da nossa Constituição, especialmente no que diz
com o direito a uma vida com dignidade.

O direito à moradia: complexo de direitos (e deveres)51 de


cunho negativo e positivo
Como bem evidencia o elenco de diretrizes estabelecido pela Comissão
de Direitos Econômicos, Sociais e Culturais da ONU, ao direito à moradia
também se aplica a noção, hoje já largamente difundida e que aqui vai
adotada como pressuposto teorético deste estudo, no sentido de que texto
(dispositivo), norma e direitos constituem dimensões conexas mas não se
confundem, de tal sorte que determinado dispositivo da Constituição po-
derá conter mais de uma norma e, por sua vez, estas poderão assegurar
posições jurídicas (direitos e deveres) de diversa natureza, podendo haver
até mesmo norma sem texto que lhe seja diretamente correspondente52 .
Assim, sem que aqui se vá aprofundar este aspecto, importa ter pre-
sente que também o direito à moradia abrange um complexo de posições
jurídicas, isto é, de direitos e de deveres que, seguindo a prestigiada
fórmula de Alexy, assumem a condição negativa (defensiva) e positiva
(prestacional).53 Em outras palavras, sustentaremos aqui o ponto de vista

51
No presente trabalho não cuidaremos da dimensão específica dos assim denominados deveres fundamentais,
mas, por outro lado, não poderíamos deixar de referir a existência, paralela e conexa ao reconhecimento de
direitos fundamentais, de um complexo de deveres por parte dos destinatários e dos próprios titulares dos
direitos. A respeito da teoria geral dos deveres fundamentais, v. em língua portuguesa, especialmente
NABAIS, José Casalta. O Dever Fundamental de Pagar Impostos. Coimbra: Almedina, 1998, p. 18-181.
52
Neste sentido, ALEXY, Robert. Teoria de los Derechos Fundamentales. Madrid: CEC, 1997, p. 47 e seguintes
(especialmente p. 62 e seguintes). Entre nós, notadamente no que diz com a distinção entre texto e norma,
vale lembrar o contributo de GRAU, Eros Roberto. A Ordem Econômica na Constituição de 1988. São Paulo:
Malheiros, 1997, p. 164 e seguintes. Mais recentemente e no mesmo sentido, com referência expressa ao
pensamento de Eros Grau, v. também STRECK, Lenio Luiz. Hermenêutica Jurídica e(m) Crise. Porto Alegre:
Livraria do Advogado, 1999, p. 16, nota de rodapé n 2.
53
Sobre a classificação adotada, v. especialmente a fundamentação de ROBERT ALEXY, op. cit., p. 419 e
seguintes, posição da qual comungamos e que nos parece plenamente conciliável com o direito constitu-
cional positivo pátrio. Para tanto, remetemos ao nosso A Eficácia dos Direitos Fundamentais, cit., p. 156 e
seguintes. Enunciando – e fundamentando com consistência – uma concepção alternativa (mais atrelada
à tradicional classificação de Jellinek, atualmente sustentada, entre outros, por Vieira de Andrade e,
entre nós, por Edilsom Pereira de Farias) v. a bela contribuição de MELLO, Cláudio Ari. “Os Direitos
Sociais e a Teoria Discursiva do Direito”. Revista de Direito Administrativo 224: 242, 2001.

vol.4, n.2, 2003 Direito e Democracia 351


de que o direito à moradia exerce simultaneamente a função de direito
de defesa e direito a prestações, incluindo tanto prestações de cunho
normativo, quanto material (fático) e, nesta dupla perspectiva, vincula
as entidades estatais e, em princípio, também os particulares, na condi-
ção de destinatários deste direito, muito embora se possa controverter a
respeito do modo e intensidade desta vinculação e das conseqüências
jurídicas possíveis de serem extraídas a partir de cada manifestação do
direito à moradia, questões sobre as quais voltaremos a nos manifestar,
mesmo que sumariamente.
Importa consignar, ainda, que não desconhecemos a relativamente
recente e, entre nós, cada vez mais prestigiada tese de Holmes e Suns-
tein, sustentando que todos os direitos são também sempre positivos, in-
diciando uma superação da já clássica distinção traçada entre direitos
negativos (ou direitos de defesa) e direitos positivos (direitos a presta-
ções).54 Mesmo assim, se de fato parece inglória a tentativa de sustentar
uma dicotomia entre os direitos negativos e positivos, calcada estrita-
mente no critério da sua relevância econômica55 , seguimos convictos de
que a relação entre os direitos de cunho defensivo (negativos) e os de
caráter prestacional (positivo), pode – a despeito da por nós também re-
conhecida indivisibilidade dos direitos fundamentais, de todas as gera-
ções (ou dimensões) – ser traduzida como revelando uma espécie de du-
alismo relativo, caracterizada essencialmente por uma diferença de obje-
to e função entre ambos os grupos de direitos fundamentais.56
Com efeito, ninguém irá questionar seriamente (tomando apenas este
aspecto para ilustrar o ponto) a impossibilidade de qualquer Juiz – uma
vez presentes os pressupostos para tanto – deixar de conceder uma ordem
de habeas corpus ou recusar-se a assegurar o direitos à vida, propriedade
e privacidade contra uma violação, pelo simples fato de não haver uma

54
Cf. HOLMES, Stephen & SUNSTEIN, Cass. The Cost of Rights – Why Liberty Depends on Taxes. New York:
W.W. Norton & Company, 1999, especialmente p. 35-48, partindo da premissa de que mesmo para a
garantia (efetivação) das liberdades e dos direitos de propriedade e vida, torna-se indispensável a alocação
de 0recursos para disponibilizar todo um aparato estatal (Juízes, policiais, etc) que possam assegurar que
os direitos reconhecidos pela Constituição sejam tornados efetivos, de tal sorte que também os direitos
tido como negativos implicam custos.
55
Nesta direção a advertência de AMARAL, Gustavo, Direito, Escassez & Escolha. Rio de Janeiro: Renovar,
2001, p. 71.
56
Consoante já havíamos anunciado em estudo anterior, a relação entre os direitos negativos (de defesa) e
prestacionais não obedece a uma dialética do antagonismo, mas sim, a uma dialética da recíproca
complementação. Neste sentido, v. o nosso Os Direitos Fundamentais Sociais na Constituição de 1988, cit., p. 151.

352 Direito e Democracia vol.4, n.2, 2003


estrutura adequada disponível ou com base no argumento de que o Esta-
do não dispõe de recursos suficientes para garantir estes direitos. Não são
poucos os que, todavia, se voltam contra o reconhecimento, pelo Poder
Judiciário e na ausência de lei, de direitos subjetivos a prestações mate-
riais contra o Estado.57 Assim, sem que aqui se vá adentrar o mérito desta
discussão, verifica-se, desde logo, que a distinção traçada entre direitos
de defesa e direitos a prestações (em suma, entre uma dimensão negativa
e positiva dos direitos fundamentais) segue tendo relevância prática.
A título de maior clareza, dentre outras questões que a concepção de
Holmes e Sunstein coloca em relevo, não há como desconsiderar a cir-
cunstância de que a realização de todos os direitos fundamentais (isto é,
a sua efetividade ou eficácia social), não se encontra na dependência
apenas de uma decisão judicial, do reconhecimento de sua eficácia jurí-
dica ou mesmo de sua condição defensiva ou prestacional. Para além
disso, tal entendimento demonstra inequivocamente a íntima e indisso-
ciável vinculação entre os diversos direitos fundamentais e que os direi-
tos sociais, designadamente os de cunho prestacional, foram objeto de
gradativo reconhecimento pela ordem jurídica justamente para viabilizar
a implementação da igualdade e liberdade material (em suma, para asse-
gurar a efetiva fruição das liberdades fundamentais e de uma vida com
dignidade para todos), assumindo a feição – tal qual consignou Jorge
Miranda – de direitos à libertação da opressão social e da necessidade.58
Independentemente de toda uma gama de aspectos que aqui poderi-
am ser versados, importa que firmemos a nossa posição no sentido de que
os direitos fundamentais podem exercer – inclusive simultaneamente -
uma função defensiva ou prestacional. Assim, por exemplo, o direito à
saúde será direito negativo quando se cuida de afastar (direito de defe-
sa) eventuais condutas que venham a violar a saúde das pessoas, mas será
direito a prestações (isto é, direito positivo) quando se estiver a conside-
rar um direito de acesso aos serviços e bens na área da saúde. O mesmo,

57
Aqui convém relembrar a distinção largamente aceita entre eficácia jurídica (como possibilidade de a norma
gerar os efeitos que lhe são próprios) e eficácia social (ou efetividade) como sendo a concreta realização no
plano dos fatos destes efeitos jurídicos.
58
Cf. MIRANDA, Jorge. “Os Direitos Fundamentais – sua Dimensão Individual e Social”. Cadernos de Direito
Constitucional e Ciência Política 1: 201, 1992. Aproximando-se deste conceito, não obstante situado em outro
contexto – encontramos a definição de WOLKMER, Antonio Carlos. “Direitos Políticos, Cidadania e
Teoria das Necessidades”. Revista de Informação Legislativa 122: 278, 1994, que vincula os direitos sociais à
necessidade de se assegurar as condições materiais mínimas para a sobrevivência e, para além disso, para
a garantia de uma existência com dignidade.

vol.4, n.2, 2003 Direito e Democracia 353


sem dúvida, como se verá com mais clareza logo adiante, ocorre com o
direito à moradia e outros direitos fundamentais. Isto, contudo, não alte-
ra o fato (nem as conseqüências que disso se pode e deve extrair) de que
na sua condição de direito de defesa o direito à saúde (ou mesmo os
direitos à educação e moradia) é direito negativo e que na sua condição
(isto é, quando este for o seu objeto) de direito a prestações, o direito à
saúde será direito de cunho positivo.59 Não esqueçamos a noção já refe-
rida, de que num mesmo enunciado semântico (texto) podemos encon-
trar mais de uma norma assegurando direitos fundamentais distintos. Tam-
bém neste contexto, convém não olvidar que, em matéria de direitos
fundamentais como direitos subjetivos, em verdade o que temos é um
complexo não homogêneo de posições jurídico-subjetivas fundamentais.60
Fechado o parênteses, e partindo-se, desde logo, da premissa de que
também o direito à moradia pode assumir a condição de direito de defesa
(direito negativo) e direito a prestações (direito positivo), bem como para
uma melhor compreensão do que representa este complexo de posições
jurídicas vinculadas ao direito à moradia, igualmente vale lançar um olhar
sobre a perspectiva internacional. Com efeito, também quanto a este as-
pecto, as normas jurídicas internacionais (mesmo para os que preferem
adotar a por nós repudiada posição do Supremo Tribunal Federal) possu-
em - ainda que seja com hierarquia de lei ordinária – vinculatividade no
direito interno, oferecendo importante referencial para a interpretação e
concretização do direito (melhor seria falar dos direitos) à moradia no
plano nacional.
Apenas para ilustrar a questão, vale lembrar que, além da obrigação
dos Estados no sentido de reconhecer, respeitar e proteger o direito à
moradia (elementos que sinalizam prioritariamente – mas não exclusiva-
mente - uma perspectiva negativa), de acordo com o artigo 2.1 do Pacto
Internacional dos Direitos econômicos, sociais e culturais (1966), os Es-
tados signatários estão obrigados a, desde logo, implementar medidas,
utilizando-se do máximo dos recursos disponíveis, com o intento de al-
cançar de modo progressivo a plena realização dos direitos reconhecidos

59
Assim, neste sentido, efetivamente haverá de se reconhecer, com Holmes e Sunstein, que todos os direitos
fundamentais também apresentam uma faceta positiva. Especificamente versando sobre a dimensão negativa
e positiva do direito à saúde, v. SARLET, Ingo Wolfgang. “Algumas Considerações em Torno da Eficácia e
Efetividade do Direito à Saúde na Constituição de 1988”. Revista Interesse Público 12: 91-107, 2001.
60
Sobre o tema, vale conferir sobretudo a lição de ROBERT ALEXY, op. cit., p. 173-245.

354 Direito e Democracia vol.4, n.2, 2003


no Pacto, mediante todos os meios apropriados, incluindo especialmente
medidas de ordem legislativa, do que por si só já transparece a referida
dimensão positiva (prestacional) do direito à moradia. Para além disso,
na esteira do que vem entendendo o Comitê da ONU, a adoção de medi-
das legislativas, por si só não esgota as obrigações dos Estados signatários
do Pacto, impondo-se também o desenvolvimento de políticas concretas
e a fixação de prioridades, a partir da relevância dos diversos direitos
fundamentais sociais. Por outro lado, em que pese a exigência de uma
implementação gradativa, já que inexigível uma solução imediata para o
problema da efetivação dos direitos sociais, devem ser destinados recur-
sos materiais pelo menos para a sua realização num patamar mínimo.61
Sem que se vá aqui examinar de modo mais detalhado cada obrigação
a ser assumida pelos Estados na esfera internacional, o que se verifica,
desde logo, é que tais compromissos apenas enrobustecem a constatação
de que o direito à moradia apresenta uma face defensiva e prestacional,
implicando um feixe complexo, conexo e diversificado de posições jurídi-
cas fundamentais, com notas distintas até mesmo no âmbito interno da
classificação em direitos negativos e prestacionais. É este precisamente o
mote do próximo segmento, quando analisaremos, ainda que de modo
resumido, algumas das principais manifestações do direito à moradia, no
que diz com a sua já anunciada dupla função defensiva e prestacional,
pelo prisma da sua possível eficácia e efetividade.

Algumas manifestações concretas de uma eficácia


e efetividade possíveis do direito à moradia na sua
dupla perspectiva defensiva e prestacional

Significado e alcance da norma contida no art. 5º, § 1º, da


Constituição Federal: o princípio da máxima eficácia e
efetividade das normas definidoras de direitos e garantias
fundamentais
Pela sua crucial relevância para um adequado manejo das questões

61
Para uma visão panorâmica sobre as diversas obrigações gerais e específicas atribuídas aos Estados pelo Comitê
da ONU, no âmbito da proteção internacional dos direitos econômicos, sociais e culturais, com ênfase no
direito à moradia, v. o relatório de SACHAR, Rajindar, op. cit., especialmente p. 10-16.

vol.4, n.2, 2003 Direito e Democracia 355


ligadas à eficácia e efetividade62 do direito fundamental à moradia, não
há como deixar, ainda que sumariamente, de abordar o problema do al-
cance e significado da norma contida no art. 5º, § 1º, da nossa Constitui-
ção, cujo texto dispõe que “as normas definidoras dos direitos e garantias
fundamentais têm aplicação imediata”. A previsão desta norma no título
dos direitos fundamentais tem sido atribuída à influência exercida por
outras ordens constitucionais sobre o nosso Constituinte63 , bem como ao
anteprojeto elaborado pela “Comissão Afonso Arinos”, que, no seu art.
10, continha preceito semelhante, ao dispor que “os direitos e garantias
desta Constituição têm aplicação imediata.” Constata-se, desde logo, que
a doutrina pátria (a exemplo do que ocorre no direito comparado) ainda
não alcançou um estágio de consensualidade no que concerne ao alcan-
ce e significado do preceito em exame, que passou a integrar a pauta dos
temas mais polêmicos de nosso direito constitucional.
Como questão preliminar a ser superada, impõe-se o exame da abran-
gência material da norma, isto é, se aplicável a todos os direitos funda-
mentais (inclusive os situados fora do catálogo), ou se restrita aos direitos
individuais e coletivos do art. 5º da nossa Constituição. Em que pese a
localização topográfica do dispositivo, que poderia sugerir uma exegese
restritiva, o fato é que, mesmo sob o ponto de vista da mera literalidade
(o preceito referido é claro ao mencionar “as normas definidoras dos di-
reitos e garantias fundamentais”), não há como sustentar uma redução
do âmbito de aplicação da norma a qualquer das categorias específicas
de direitos fundamentais consagradas na nossa Constituição, nem mesmo
aos assim denominados direitos individuais e coletivos.
Mesmo que não nos queiramos contentar com este argumento, enten-
demos que uma interpretação teleológica e sistemática acabará por con-
duzir aos mesmos resultados. Em primeiro lugar, o nosso Constituinte – ao
contrário da Constituição Portuguesa – não traçou nenhuma distinção
expressa entre os direitos de liberdade e os direitos sociais de cunho pres-

62
Para efeito deste ensaio, adotamos a já clássica distinção – entre nós consagrada por José Afonso da Silva -
entre eficácia jurídica (ou simplesmente eficácia), considerada esta como a possibilidade de na norma
jurídica gerar os efeitos que lhe são próprios, e a efetividade (ou eficácia social) como sendo a realização
concreta destes efeitos no plano dos fatos. Para um maior desenvolvimento deste ponto, v. SILVA, José
Afonso da. Aplicabilidade das Normas Constitucionais. São Paulo: Ed. Revista dos Tribunais, 1982.
63
Esta a lição, dentre outros, de RUSCHEL, Ruy Ruben. “A Eficácia dos Direitos Sociais”. Revista da Associação
dos Juízes do Rio Grande do Sul 58: 294-295,1993. Neste contexto, vale citar o art. 18/1 da Constituição
Portuguesa de 1976, o art. 332 da Constituição do Uruguai, o art. 1º, inc. III, da Lei Fundamental da
Alemanha e o art. 53.1 da Constituição Espanhola de 1978.

356 Direito e Democracia vol.4, n.2, 2003


tacional. Convém lembrar, que mesmo no capítulo dos direitos sociais
encontramos – como já demonstrado – direitos de natureza defensiva
(negativa), não se justificando que pelo menos estes, assim como ocorre
com os direitos políticos, venham a ser excluídos do âmbito de aplicação
da norma.64
Do exposto – ainda que não tenhamos esgotado o tema – entendemos
que há como sustentar, a exemplo do que tem ocorrido na doutrina,65 a
aplicabilidade imediata (por força do art. 5º, § 1º, da Constituição Fede-
ral) de todas as normas de direitos fundamentais constantes do Catálogo
(arts. 5º a 17), bem como dos localizados em outras partes do texto cons-
titucional e nos tratados internacionais. Aliás, a extensão do regime ma-
terial da aplicabilidade imediata aos direitos fora do catálogo não encon-
tra qualquer óbice no texto de nossa Lei Fundamental, harmonizando,
para além disso, com a concepção materialmente aberta dos direitos fun-
damentais consagrada, entre nós, no art. 5º, § 2º, da nossa Carta Magna.
Superado este aspecto, cumpre enfrentar o tormentoso problema do
significado do art. 5º, § 1º, para as diversas categorias de direitos funda-
mentais, registrando-se que as diferentes concepções encontradas osci-
lam entre os que, adotando posição extremamente tímida, sustentam que
a norma em exame não pode atentar contra a natureza das coisas,66 de tal
sorte que boa parte dos direitos fundamentais alcança sua eficácia ape-
nas nos termos e na medida da lei, e os que, situados em outro extremo,
advogam o ponto de vista segundo o qual até mesmo normas de cunho
nitidamente programático podem ensejar, em virtude de sua imediata
aplicabilidade, o gozo de direito subjetivo individual, independentemen-
te de concretização legislativa.67

64
Apenas para adiantar a questão, vale frisar que, ao sustentarmos a aplicabilidade imediata de todas as normas
de direitos fundamentais, estamos nos referindo à possibilidade de todas as normas encontrarem – na
medida de sua eficácia – alguma aplicação direta, sem necessidade de intermediação legislativa. Convém
lembrar, neste sentido, o fato de que expressiva doutrina reconhece que mesmo normas de cunho
inequivocamente programático podem gerar a inconstitucionalidade de normas em sentido contrário ou
servirem de parâmetro para a interpretação conforme a Constituição. Bastariam, portanto, estes singelos
exemplos, para demonstrar que inexiste norma constitucional destituída de aplicabilidade direta.
65
Neste sentido, por exemplo, PIOVESAN, Flávia. Proteção Judicial contra Omissões Legislativas. São Paulo: Ed.
Revista dos Tribunais, 1995, p. 90.
66
Esta a posição de FERREIRA FILHO, Manoel Gonçalves. “A Aplicação Imediata das Normas Definidoras de
Direitos e Garantias Fundamentais”. Revista da Procuradoria-Geral do Estado de São Paulo 29: 35, 1988, um
dos mais ilustres representantes desta corrente.
67
Neste sentido posicionam-se, entre outros, GRAU, Eros Roberto, op. cit., p. 322 e seguintes, e RUSCHEL, Ruy
Ruben, op. cit., p. 294 e seguintes.

vol.4, n.2, 2003 Direito e Democracia 357


Como ponto de partida para a formulação de uma posição pessoal,
cumpre observar que, mesmo os defensores mais ardorosos de uma inter-
pretação restritiva da norma contida no art. 5º, § 1º, da Constituição,
reconhecem que o Constituinte pretendeu, com sua expressa previsão no
texto, evitar um esvaziamento dos direitos fundamentais, impedindo que
os mesmos “permaneçam letra morta na Constituição.”68 Soma-se a esta
constatação o fato de que, de acordo com a melhor doutrina, inexiste
norma constitucional destituída de eficácia e aplicabilidade, sendo possí-
vel falar de uma graduação da carga eficacial das normas (de todas) da
Constituição, 69 o que, de outra parte, não afasta a existência de distin-
ções entre as normas constitucionais no que diz com a forma de sua posi-
tivação no texto constitucional, assim como uma diversidade de efeitos
jurídicos decorrentes deste fenômeno, razão pela qual foram formuladas
diversas teorias propondo uma classificação das normas constitucionais
de acordo com o critério de sua eficácia e aplicabilidade.
Assim, cumpre reconhecer que, mesmo no âmbito das normas defini-
doras de direitos e garantias fundamentais, encontram-se algumas nor-
mas que a doutrina majoritária entre nós convencionou denominar de
normas de eficácia limitada, as quais não teriam condições de gerar a
plenitude se seus efeitos sem a intervenção do Legislador.70 Bastaria, nes-
te contexto, atentar para os exemplos do art. 5º, inc. XXXII, da Consti-
tuição Federal (“O Estado promoverá, na forma da lei, a proteção do
consumidor”) e do art. 7º, inc. XI, (participação dos empregados nos re-
sultados ou lucros da empresa). Aliás, mesmo para os autores considera-
dos mais ousados e avançados na matéria, não haveria como – sem uma
atuação do Legislador - conceder ao indivíduo um direito subjetivo indi-
vidual à fruição da participação nos lucros ou resultado da empresa.71
Consoante já frisado alhures, os direitos fundamentais podem cumprir,
também em nossa ordem constitucional (pressupondo-se que se cuida de
dimensões conexas e não reciprocamente excludentes), a função de di-

68
Assim, por exemplo, leciona FERREIRA FILHO, Manoel Gonçalves, A Aplicação Imediata..., cit., p. 38.
69
Esta a lição de DINIZ, Maria Helena. Norma Constitucional e seus Efeitos. São Paulo: Saraiva, 1989, p. 104.
70
Neste sentido, v. TEIXEIRA, João Horácio Meirelles. Curso de Direito Constitucional. Rio de Janeiro: Forense
Universitária, 1991, p. 317 e seguintes; SILVA, José Afonso da. op. cit., p. 73 e 86 e seguintes; assim como,
mais recentemente, em excelente estudo sobre as normas programáticas, FERRARI, Regina Maria Macedo
Nery. Normas Constitucionais Programáticas – Normatividade, Operatividade e Efetividade. São Paulo: Ed.
Revista dos Tribunais, 2001, especialmente p. 101 e seguintes.
71
Este o entendimento, por exemplo, de BARROSO, Luís Roberto, op. cit., p. 107-108.

358 Direito e Democracia vol.4, n.2, 2003


reitos de defesa e de direitos a prestações, distinção que conduz à exis-
tência de algumas diferenças essenciais entre ambas as categorias de di-
reitos fundamentais, especialmente entre os direitos de defesa e os direi-
tos sociais de cunho prestacional. Estes, por seu turno, assumem habitual-
mente a feição, no que diz com a sua técnica de positivação e eficácia, de
normas carentes de concretização legislativa, o que, de outra parte, não
lhes retira pelo menos um certo grau de eficácia direta e aplicabilidade
imediata. Assim, verifica-se que a norma contida no art. 5º, § 1º, ainda
que aplicável a todos os direitos fundamentais, não o poderá ser da mes-
ma forma, aspecto que será oportunamente retomado.
Com base no exposto, e partindo da premissa que não há como tomar a
sério os direitos fundamentais se não se levar a sério o disposto no art. 5º, §
1º, da nossa Lei Fundamental, constata-se, desde logo, a necessidade de
não subestimarmos (nem superestimarmos) o significado e alcance desta
norma. Que este preceito se aplica tão-somente aos direitos fundamentais
(sem exceção), e não a todas as normas da Constituição, constitui, por si
só, conclusão que assume particular relevância. Com efeito, em hipótese
alguma o significado do art. 5º, § 1º, poderá ser reduzido ao que se atribui
ao princípio da constitucionalidade, sob pena de equiparação entre as nor-
mas de direitos fundamentais e as demais normas constitucionais,72 o que,
além disso, implicaria um esvaziamento significativo da fundamentalidade
na sua perspectiva formal e, num certo sentido, também material.
Neste contexto, sustentou-se corretamente que a norma contida no
art. 5º, § 1º, impõe aos órgãos estatais a tarefa de maximizar a eficácia dos
direitos fundamentais.73 Além disso, há que dar razão aos que ressaltam o
caráter dirigente desta norma, no sentido de que esta, além do objetivo
de “assegurar a força vinculante dos direitos e garantias de cunho funda-
mental, tem por finalidade tornar tais direitos prerrogativas diretamente
aplicáveis pelos Poderes Legislativo, Executivo e Judiciário, (...) investe
os poderes públicos na atribuição constitucional de promover as condi-
ções para que os direitos e garantias fundamentais sejam reais e efeti-
vos.”74 Deste sentido, aproxima-se a lição de Eros Roberto Grau, ao sus-

72
Cf., entre outros, PATTO, Pedro Maria Godinho Vaz. “A Vinculação das Entidades Públicas pelos Direitos,
Liberdades e Garantias”. Documentação e Direito Comparado 33/34: 480,1988.
73
Esta a lição de PIOVESAN, Flávia. “Constituição e Transformação Social: a Eficácia das Normas Constitu-
cionais Programáticas e a Concretização dos Direitos e Garantias Fundamentais”. Revista da Procuradoria-
Geral do Estado de São Paulo 37: 73,1992.
74
Assim também PIOVESAN, Flávia. Proteção Judicial contra Omissões Legislativas..., cit., p. 92.

vol.4, n.2, 2003 Direito e Democracia 359


tentar que o Poder Judiciário, em face do dever de respeito e aplicação
imediata dos direitos fundamentais ao caso concreto, encontra-se inves-
tido do poder-dever de aplicar imediatamente estas normas, asseguran-
do-lhes sua plena eficácia.75
De tudo o que até agora foi exposto e levando-se em conta tanto as
possíveis distinções entre os direitos fundamentais na sua dimensão defen-
siva (negativa) e prestacional (positiva), assim como a evidência de que
mesmo no âmbito dos direitos fundamentais poderemos encontrar (como,
de resto, ocorre no nosso direito constitucional positivo) normas de cunho
eminentemente programático (ou impositivo, como sustenta Gomes Cano-
tilho),76 somos levados a crer que a melhor exegese da norma contida no
art. 5º, § 1º, de nossa Constituição, é a que parte da premissa de que se
cuida de norma de natureza principiológica, que, por esta razão, pode ser
considerada como uma espécie de mandado de otimização (maximização),
isto é, que estabelece para os órgãos estatais a tarefa de reconhecerem, à
luz do caso concreto, a maior eficácia possível a todas as normas definidoras
de direitos e garantias fundamentais, entendimento sustentado, entre ou-
tros, por Gomes Canotillho e entre nós adotado por Flávia Piovesan, como
já ressaltado. 77 Percebe-se, portanto, que o postulado da aplicabilidade
imediata não poderá resolver-se, a exemplo do que ocorre com as regras
jurídicas (e nisto reside uma das diferenças essenciais entre estas e as nor-
mas-princípio), de acordo com a lógica do tudo ou nada, razão pela qual o
seu alcance (isto é, o “quantum” em aplicabilidade e eficácia) dependerá
do exame da hipótese em concreto.78
Para além disso (e justamente por este motivo), cremos ser possível
atribuir ao preceito em exame o efeito de gerar uma presunção em favor
da aplicabilidade imediata e plena eficácia (e efetividade) das normas
definidoras de direitos e garantias fundamentais, de tal sorte que eventu-

75
Cf. GRAU, Eros Roberto. op. cit., p. 312 e seguintes.
76
Basta, novamente, referir o exemplo da “proteção do consumidor na forma da lei”, cujo conteúdo programático
resta inequívoco, ainda que se trate de dispositivo constante no rol dos direitos individuais e coletivos.
77
Outra não é a lição, na Alemanha, de HESSE, Konrad, “Bestand und Bedeutung der Grundrechte in der
Bundesrepublik Deurschland”. In: Europäische Grundrechte Zeitschrift 1978, p. 433), para quem o art. 1º, inc.
III, da Lei Fundamental embasa tanto o entendimento de que os direitos fundamentais não se encontram
à disposição dos órgãos estatais, quanto impõe a estes a obrigação positiva de fazer tudo o que for necessário
à realização dos direitos fundamentais.
78
A respeito da distinção entre princípios e regras constitucionais v., por todos, especialmente ALEXY,
Robert.op. cit., p. 81 e seguintes.

360 Direito e Democracia vol.4, n.2, 2003


al recusa na outorga da plenitude eficacial (que não implica a negativa
de eficácia – e, portanto de efeitos - e aplicabilidade) a determinada
norma de direito fundamental, em virtude da ausência de ato concretiza-
dor, deverá ser necessariamente fundamentada, à luz do caso concreto e
da norma em exame. 79 Cuida-se, em verdade, de operação eminente-
mente hermenêutica, já que, em última análise, caberá ao intérprete a
tarefa, considerando os limites mínimos do texto e da razoabilidade, afe-
rir qual a eficácia possível a ser imprimida às normas constitucionais. De
como se poderá imprimir operatividade ao princípio (fundamental) da
imediata aplicabilidade e plena eficácia (jurídica e social) das normas
definidoras de direitos e garantias fundamentais, notadamente no que
concerne às dimensões negativa e positiva do direito à moradia, é tarefa
a que nos dedicaremos, ainda que sumariamente, no item que segue.
Importante é que tenhamos presente que também para o art. 5º, § 1º,
da nossa Constituição e o direito fundamental à moradia, vale a adver-
tência de Laurence Tribe, no sentido de que as cláusulas constitucionais
não devem ser tratadas como um espelho, no qual todos enxergam o que
desejam ver.80 Como o direito à moradia poderá ter sua eficácia e efetivi-
dade maximizada, irá depender de qual a manifestação deste direito, em
suma, de qual seja o tipo de direito à moradia (negativo ou positivo) que
estiver em causa e, acima de tudo, de uma exegese prudente e constitu-
cionalmente adequada.

O direito à moradia na condição de direito de defesa


No âmbito da assim denominada dimensão negativa ou daquilo que
para muitos é tida como a função defensiva dos direitos fundamentais, ve-
rifica-se que a moradia, como bem jurídico fundamental, encontra-se, em
princípio, protegida contra toda e qualquer sorte de agressões de terceiros.
O Estado, assim como os particulares, tem o dever jurídico de respeitar e de
não afetar a moradia das pessoas, de tal sorte que toda e qualquer medida
violadora do direito à moradia é passível de ser impugnada em Juízo, seja

79
Neste sentido, v. PATTO, Pedro M.G.V., op. cit., p. 484 e seguintes, assim como DÜRIG, Günter. “Anmerkungen
zu Art. 1 Abs. 1 bis 3 GG”. In: MAUNZ/DÜRIG/HERZOG/SCHOLZ, Grundgesetz-Kommentar. München:
C.H. Beck, 1994, v. 1, p. 43.
80
Cf. TRIBE, Laurence & DORF, Michael. On Reading the Constitution. Cambridge: Harvard University Press,
1991, p. 7.

vol.4, n.2, 2003 Direito e Democracia 361


na esfera do controle difuso e incidental, seja por meio do controle abstrato
e concentrado de constitucionalidade, ou mesmo por intermédio dos ins-
trumentos processuais específicos disponibilizados pela ordem jurídica. É
precisamente esta a dimensão – a função defensiva do direito à moradia –
a que se referem as diretrizes internacionais acima mencionadas, quando
utilizam os termos “respeitar” e “proteger”.81
No que diz com o significado do art. 5, § 1º, da Constituição Federal,
para os direitos de defesa (negativos), estes, por reclamarem (em princí-
pio) uma atitude de abstenção por parte dos destinatários, virtualmente
não costumam ter sua plenitude eficacial e, portanto, sua imediata apli-
cabilidade questionada seriamente. Na medida em que se dirigem a um
comportamento em geral omissivo, exigindo o respeito e a não ingerência
na esfera da autonomia pessoal ou no âmbito de proteção do direito fun-
damental, não se verifica, em regra, a dependência da realização destes
direitos de prestações fáticas ou normativas por parte do
destinatário.82 Além disso, a aplicabilidade imediata e plena eficácia des-
tes direitos encontram explicação na circunstância de que as normas que
os consagram receberam do Constituinte, de modo geral, a suficiente
normatividade e independem de concretização legislativa, consoante,
aliás, já se sustentava no bojo da clássica teoria das normas auto-execu-
táveis. 83 Justamente na esfera dos direitos de defesa, é possível afirmar
que a norma contida no art. 5º, § 1º, da nossa Carta Magna, tem por
objetivo precípuo oportunizar a aplicação imediata, sem qualquer inter-
mediação concretizadora, assegurando a plena justiciabilidade destes di-
reitos, no sentido de sua exigibilidade integral em Juízo.84
Nesta linha de entendimento, vale a pena consignar o ensina-
mento de Vieira de Andrade, para quem, em se cuidando de direitos,

81
Fica o registro de que o dever de proteção do Estado, para além da imposição de um dever de respeito e não-
violação (dimensão negativa propriamente dita) abrange a necessidade de praticar atos concretos no
sentido de alcançar uma proteção minimamente eficaz do direito à moradia, que, por sua vez, pode ocorrer
pela edição de atos normativos ou mesmo outros atos concretos destinados a salvaguardar a moradia
(direitos a prestações normativas e fáticas), aspecto este que será considerado logo a seguir e que diz com
a dimensão prestacional (positiva).
82
Esta a lição de BARROSO, Luís Roberto. op. cit., p. 105, ressaltando que estes direitos , de matriz liberal-
burguesa, têm a seu favor a própria lei da inércia.
83
V. o entendimento de BARBOSA, Rui. Comentários à Constituição Federal Brasileira (coligidos e ordenados por
Homero Pires). São Paulo: Saraiva, v. 2, 1934, p. 483 e seguintes.
84
Cf. a lição de MIRANDA, Jorge. Manual de Direito Constitucional..., cit., v. 4, p. 277, quando refere a imediata
invocabilidade das normas exeqüíveis por si mesmas.

362 Direito e Democracia vol.4, n.2, 2003


liberdades e garantias (direitos de defesa, em última análise) e em ocor-
rendo a falta ou insuficiência de lei, “o princípio da aplicabilidade direta
vale como indicador de exeqüibilidade imediata das normas constitucio-
nais, presumindo-se sua perfeição, isto é, a sua auto-suficiência baseada
no caráter líquido e certo do seu conteúdo de sentido. Vão, pois, aqui,
incluídos o dever dos Juízes e dos demais operadores jurídicos de aplica-
rem os preceitos constitucionais e aautorização de para esse fim os con-
cretizarem por via interpretativa.” 85 Ainda que existam, na esfera dos
direitos de defesa, normas vagas e abertas, estas podem ter seu conteúdo
definido pelo recurso às regras hermenêuticas, não havendo, portanto,
necessidade de remeter esta função para o legislador.86
As diretrizes fixadas, evidentemente alcançam boa parcela dos direi-
tos sociais consagrados na nossa Constituição, notadamente todos os que
exercem uma função precipuamente defensiva (diretos negativos, por-
tanto), ou mesmo quando se cuidar de direitos que em princípio são tidos
como prestacionais, mas que igualmente revelam uma dimensão negati-
va, o que restará amplamente demonstrado logo a seguir à luz do exemplo
do direito à moradia aqui versado. Quanto a estes direitos sociais (isto é,
a dimensão negativa dos direitos sociais), já se sustentou, entre nós, que
desencadeiam sua plenitude eficacial, gerando para seu titular um direi-
to subjetivo, isto é, situações prontamente desfrutáveis, dependentes apenas
de uma abstenção.87 Sintetizando, podemos afirmar que, em se tratando
de direitos de defesa, a lei não se revela absolutamente indispensável à
fruição do direito. Reitere-se, neste contexto, que inexiste qualquer ra-
zão para não fazer prevalecer o postulado contido no art. 5º, § 1º, da
Constituição, já que não se aplicam a estas hipóteses (dos direitos de
defesa) os argumentos usualmente esgrimidos contra a aplicabilidade
imediata dos direitos a prestações, especialmente os da ausência ou insu-
ficiência de recursos ou mesmo a ausência de legitimação dos tribunais
para a definição do conteúdo e do alcance da prestação.88
Os direitos de defesa constituem, em princípio, direito subjetivo in-

85
Cf. VIEIRA DE ANDRADE, José Carlos. op. cit., p. 256-257.
86
Id., ibid., p. 257.
87
É o que advoga BARROSO,Luís Roberto. op. cit., p. 106, referindo-se ao direito de greve (art. 9º, da CF).
88
Tal entendimento segue sustentável, ainda que se reconheça, na esteira de Holmes e Sunstein, que todos os
direitos possuem uma dimensão positiva, já que, consoante já referido, na dimensão negativa (ou seja,
quando os direitos fundamentais estiverem sendo considerados como direitos de defesa) inexistem obstá-
culos ao reconhecimento imediato de posições subjetivas pelos órgãos do Poder Judiciário.

vol.4, n.2, 2003 Direito e Democracia 363


dividual, enquadrando-se, de acordo com a concepção desenvolvida
por Celso Antônio Bandeira de Mello naquelas situações em que a nor-
ma constitucional outorga ao particular uma situação subjetiva ativa
(um poder jurídico), cujo desfrute imediato independe de qualquer pres-
tação alheia, bastando, para tanto (como também refere Luís R. Barro-
so), uma atitude abstencionista por parte do destinatário da norma.89
Por evidente que, para além de uma posição jurídico-subjetiva (que,
consoante bem demonstrou Alexy pode manifestar-se de formas dife-
renciadas) 90 , as normas constitucionais definidoras de direitos de defe-
sa podem gerar uma série de outros efeitos, inclusive na esfera jurídico-
objetiva, efeitos que, de resto, são comuns a todas as normas de direitos
fundamentais. 91
Mesmo diante do exposto, não há como sustentar que o direito à
moradia, assim como ocorre com os demais direitos fundamentais, possa
ser considerado, em princípio (e mesmo na sua dimensão negativa),
como sendo um direito absoluto, no sentido de completamente imune a
restrições. 92 Tal aspecto assume especial relevância quando se verifica,
por exemplo (tomando por referência ingerências oriundas dos órgãos
estatais), a necessidade de o poder público promover desapropriações,
ainda que com inequívoca finalidade social e coletiva, que acabam
gerando, além da perda do domínio para os expropriados, o desapossa-
mento e perda da moradia, neste caso, passível de compensação quan-
do efetivamente assegurada a justa e necessária indenização prevista

89
Cf. MELLO, Celso Antonio Bandeira de. “Eficácia das Normas Constitucionais sobre Justiça Social”. Revista
de Direito Público 57/58: 242,1981.
90
Para ALEXY, Robert. op. cit., p. 173 e seguintes, os direitos fundamentais defensivos, na qualidade de direitos
subjetivos, agrupam-se em três categorias: a) direitos ao não-impedimento de ações por parte do titular do
direito; b) direitos à não-afetação de propriedades ou situações do titular do direito; c) direitos à não-
eliminação de posições jurídicas.
91
É neste contexto, entre outros aspectos que poderiam ser citados, que a doutrina e jurisprudência germânicas
passaram a reconhecer uma assim designada (e a terminologia não restou imune a críticas) eficácia
irradiante dos direitos fundamentais, considerados também como elementos integrantes de uma ordem de
valores objetiva, sobre o restante do ordenamento jurídico. Para uma compreensão da dimensão jurídico-
objetiva dos direitos fundamentais, v. dentre outros, HESSE, Konrad. Grundzüge des Verfassungsrechts der
Bundesrepublik Deutschland. Heidelberg: C.F. Müller, 1995, p. 133 e seguintes (existe tradução de Luís
Afonso Heck para a língua portuguesa: HESSE, Konrad. Elementos de Direito Constitucional da Alemanha.
Porto Alegre: Sérgio Fabris Editora).
92
Com efeito, o fato de estarmos diante de normas de eficácia plena, capazes de gerarem todos os seus efeitos,
inclusive na esfera subjetiva, não afasta a potencial restringibilidade destes efeitos, notadamente no que
diz com o exercício dos direitos subjetivos, de tal sorte que a possibilidade de sofrer restrições não se
constitui, em absoluto, um “privilégio” das assim denominadas normas de eficácia contida, consagradas no
direito pátrio pela obra de José Afonso da Silva.

364 Direito e Democracia vol.4, n.2, 2003


na Constituição. Também a desocupação de área de proteção ambien-
tal, estribada portanto, em outro valor constitucional fundamental, po-
derá levar a desapossamentos e afetar o direito à moradia não apenas de
uma pessoa ou família, mas de uma coletividade inteira, sem que tais
objetivos possam ser alcançados de modo arbitrário e de tal sorte a im-
por um sacrifício do direito à moradia dos atingidos pelas medidas. É
também por esta razão que a normativa internacional (de modo especi-
al a Agenda Habitat) e as diretrizes fixadas pelos organismos de contro-
le, impõe aos Estados a garantia de uma segurança jurídica efetiva da
posse utilizada para moradia, seja pela edição de legislação regulamen-
tando os desapossamentos,seja pela observância do devido processo le-
gal e assegurando uma proteção adequada contra medidas arbitrárias,
entre outros aspectos a serem considerados.93
Nas relações entre particulares, onde o direito à moradia, notada-
mente (mas não exclusivamente) na sua dimensão defensiva, também
alcança eficácia e vinculatividade, 94 igualmente são comuns as situa-
ções de conflito entre o direito à moradia e outros bens fundamentais
salvaguardados pela Constituição, destacando-se o direito de proprie-
dade (como pode ocorrer numa ação movida pelo locador proprietário
contra o inquilino). Da mesma forma, verifica-se a ocorrência de con-
flitos (ou colisões, se preferimos) entre o direito à moradia de pessoas
situadas em pólos opostos da demanda, por vezes ambos igualmente ca-
rentes de recursos, do que dão conta os casos – cada vez menos raros -
de ações de reintegração de posse intentadas por pessoas que tiveram
seu casebre edificado em “área verde” ocupado (até mesmo quando se
encontravam no trabalho) por terceiros, ainda que igualmente ou até
mesmo mais humildes e carentes.

93
Cf. aponta CRAVEN, Matthew, op. cit., p. 335 e seguintes, consignando que o direito à moradia inclui o
direito a não ser privado arbitrariamente da moradia
94
Aqui iremos desconsiderar a discussão a respeito de uma eficácia imediata (direta)ou mediata (indire-
ta) do direito à moradia e dos direitos fundamentais em geral no âmbito das relações entre particu-
lares, partindo do pressuposto de que tal eficácia ocorre, implicando uma vinculação não apenas do
legislador e do Poder Judiciário na esfera cível (do direito privado), mas também uma eficácia que
opera em relação aos atos dos particulares. A respeito desta temática, remetemos ao nosso “Direitos
Fundamentais e Direito Privado: Algumas Considerações em Torno da Vinculação dos Particulares
aos Direitos Fundamentais”. In: __. (Org.). A Constituição Concretizada: Construindo Pontes com o
Público e o Privado. Porto Alegre: Livraria do Advogado, 2000, p. 107-164. De qualquer modo, em face
da amplitude e complexidade do problema da eficácia do direito à moradia na órbita jurídico-privada,
aqui não faremos mais do que algumas referências, imprescindível a realização de estudo de maior
envergadura.

vol.4, n.2, 2003 Direito e Democracia 365


Sem que se vá aqui aprofundar o ponto, importa frisar que, mesmo
onde se cuida de uma relação onde podem estar em causa direitos funda-
mentais de titulares diversos, circunstancialmente em rota de colisão,
impõe-se a difícil tarefa de, considerando o dever de proteção de todos os
direitos fundamentais de todas as pessoas, analisar a viabilidade de uma
restrição, que, em qualquer caso, deverá observar, no âmbito de uma
necessária interpretação tópico-sistemática,95 entre outros aspectos, a pre-
servação do núcleo
essencial de cada direito e os critérios impostos pelo princípio da pro-
porcionalidade, que,por sua vez, sempre acaba por implicar uma pondera-
ção de bens ou interesses.96 Em síntese, também aqui não há como fugir
de uma hierarquização 97 dos valores em pauta, tarefa no contexto da
qual o princípio da dignidade da pessoa humana (cuja conexão com o
direito à moradia já restou amplamente demonstrada) assume particular
relevância como critério de solução, privilegiando-se – na esteira da opor-
tuna lição de Juarez Freitas – a opção (e, portanto, também a interpreta-
ção) mais favorável à dignidade da pessoa98 .

95
A respeito da necessária hierarquização no âmbito de uma igualmente impositiva interpretação tópico-
sistemática, v. os preciosos contributos de FREITAS, Juarez. Interpretação Sistemática do Direito. São Paulo:
Malheiros, 1995, p. 49 e seguintes, assim como, mais recentemente, PASQUALINI, Alexandre. Hermenêutica
e Sistema Jurídico. Porto Alegre: Livraria do Advogado, 2000, p. 89 e seguintes.
96
Sobre a temática específica das restrições (e, de modo geral, dos limites) dos direitos fundamentais (abran-
gendo a colisão de direitos e a problemática da ponderação de interesses) v., representando a doutrina
alienígena, a lição de ALEXY, Robert. op. cit., p. 267 e seguintes. Entre nós, já se registra a produção de
farta e qualificada literatura a respeito, destacando-se, dentre outros trabalhos e restringindo-nos aqui à
principal produção monográfica, as obras de STUMM, Raquel Denise. Princípio da Proporcionalidade no
Direito Constitucional Brasileiro. Porto Alegre: Livraria do Advogado, 1995; BARROS, Suzana de Toledo. O
Princípio da Proporcionalidade e o Controle de Constitucionalidade das Leis Restritivas de Direitos Fundamentais.
Brasília: Brasília Jurídica, 1996; FARIAS, Edilsom Pereira de. Colisão de Direitos. A Honra, a Intimidade, a
Vida Privada e a Imagem versus a Liberdade de Expressão e Informação. Porto Alegre: Sérgio Fabris, 1996;
SARMENTO, Daniel. A Ponderação de Interesses na Constituição Federal. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2000;
MENDES, Gilmar Ferreira, COELHO, Inocêncio Mártires & BRANCO, Paulo Gustavo Gonet.
Hermenêutica Constitucional e Direitos Fundamentais. Brasília: Brasília Jurídica, 2000; STEINMETZ, Wilson
Antonio. Colisão de Direitos Fundamentais e Princípio da Proporcionalidade. Porto Alegre: Livraria do Advoga-
do, 2001, e, mais recentemente, SCHÄFFER, Jairo. Direitos Fundamentais. Proteção e Restrições. Porto
Alegre: Livraria do Advogado, 2001.
97
Aqui vale registrar que no âmbito daquilo que a doutrina majoritária, especialmente na esteira de Robert
Alexy, convencionou designar de ponderação de bens (ou interesses), sempre ocorre – como bem demons-
trou Juarez Freitas – uma hierarquização de valores, princípios ou normas (note-se, que, ao contrário de
Alexy, o notável jurista gaúcho adota uma outra abordagem do sistema jurídico, como englobando as três
categorias já referidas).
98
Cf. FREITAS, Juarez. “Tendências Atuais e Perspectivas da Hermenêutica Constitucional”. Revista da
Associação dos Juízes do Rio Grande do Sul – AJURIS 76: 406, 1999.

366 Direito e Democracia vol.4, n.2, 2003


É nesta perspectiva também que se verifica, desde logo e indepen-
dentemente da possibilidade de se assegurar um direito à prestações, o
quanto em eficácia e efetividade pode ser atribuído ao direito à mora-
dia, já na sua dimensão defensiva, o que, por si só, já bastaria para
demonstrar a sua normatividade e relevância prática. Para além da já
apontada necessidade de edição de medidas legislativas objetivando
uma efetiva proteção da moradia, Juízes e Tribunais encontram-se igual-
mente vinculados diretamente pelo direito à moradia, devendo zelar,
no caso concreto, pela sua máxima eficácia e efetividade, tanto quando
interpretarem o direito ordinário em conformidade com as normas de
direitos fundamentais, seja quando estiverem atuando estritamente no
controle da constitucionalidade de eventuais restrições impostas ao di-
reito à moradia, pelo poder público, ou no âmbito das relações entre
particulares, especialmente quando estiverem em causa situações ca-
racterizadas por uma colisão (e aqui adotamos a terminologia mais cor-
rente) de direitos, nas quais o direito à moradia acaba sendo oposto a
direito de terceiro.
Não se poderá, portanto, olvidar nem minimizar a necessidade de uma
interpretação conforme a Constituição e os direitos fundamentais, já exis-
tindo significativa jurisprudência – até mesmo (consoante já frisado) an-
tes da incorporação expressa do direito à moradia ao texto constitucional
– a considerar, no caso concreto, a necessidade de proteção da moradia
em face de outros interesses. Bastaria aqui, a título meramente ilustrati-
vo, referir o exemplo da impenhorabilidade do imóvel que serve de mora-
dia para o fiador e sua família, ainda que a penhora, nestas circunstânci-
as, tenha sido viabilizada pelo legislador ordinário. Neste sentido, dentre
outras tantas decisões que poderiam ser colacionadas, aproveitamos para
citar Acórdão do Tribunal de Justiça do Rio Grande do Sul, da lavra do
Desembargador Adão Sérgio do Nascimento Cassiano, onde restou con-
signado que o fiador não pode perder a sua moradia em face de direitos
patrimoniais do credor, notadamente quando existem outros meios para
que este assegure o seu crédito.99
Ainda no contexto da sua condição de direito de defesa, impõe-se

99
Cf. decisão no Agravo de Instrumento nº 70000649350, do dia 28.03.2000, 1ª Câmara Especial Cível do TJRS.
Nesta mesma linha, inclusive reproduzindo trecho da decisão proferida no Agravo de Instrumento citado,
situa-se o Acórdão em sede de Embargos Infringentes (Embargos nº 70.003.0178.78, 8º Grupo Cível),
relatado pelo Des. Paulo Monte Lopes e julgado no dia 09.11.2001.

vol.4, n.2, 2003 Direito e Democracia 367


referência à proteção do direito à moradia contra um retrocesso, isto é,
contra uma supressão ou esvaziamento por parte, principalmente, do le-
gislador.100 Tomando o assim denominado princípio da proibição de retro-
cesso (que, em princípio, não tem o condão de afastar necessárias e legí-
timas restrições e adaptações no âmbito da indispensável liberdade de
conformação da qual dispõe o legislador numa ordem democrática) num
sentido mais amplo do que o convencional, poder-se-á sustentar (embora
se cuide de aspecto reconhecidamente controverso) que o direito à mo-
radia (notadamente pela sua estreita vinculação com o direito à vida e a
dignidade da pessoa) não mais poderá ser suprimido dotexto da Consti-
tuição por meio de emenda constitucional, passando a integrar o elenco
dos limites materiais (ainda que na condição de limite implícito) da nos-
sa Constituição, nem ser objeto de restrição – igualmente no bojo de uma
reforma constitucional - que venha a atingir o núcleo essencial (no míni-
mo o conteúdo existencial) do direito à moradia, que, de resto – conso-
ante já demonstrado – encontra proteção também em face de eventuais
medidas restritivas impostas pelo poder público e no âmbito das relações
entre particulares.101
Para além disso (e este o sentido estrito da proibição de retrocesso),
encontra-se vedada a possibilidade de o legislador infraconstitucional
desconstituir pura e simplesmente o grau de concretização que ele pró-
prio conferiu às normas constitucionais, notadamente quando se cuida
de normas que, em maior ou menor escala, acabam por depender destas

100
Neste contexto, já se fala na existência de um princípio de vedação do retrocesso em matéria de direitos
fundamentais, temática que, embora ainda não esteja suficientemente difundida e versada entre nós, tem
encontrado crescente acolhida no âmbito da doutrina mais afinada com a concepção do Estado democrá-
tico de Direito consagrado pela nossa ordem constitucional. Dentre a literatura pátria, versando especi-
ficamente a respeito da proibição de retrocesso, v. o nosso A Eficácia dos Direitos Fundamentais, cit., p. 373
e seguintes, assim como o igualmente da nossa lavra “O Estado Social de Direito, a Proibição de Retrocesso
e a Garantia Fundamental da Propriedade”. Revista da Faculdade de Direito da UFRGS 17: 111-132, 1999
(embora aqui priorizando a perspectiva alemã). Também entre nós, confira-se, ainda, o contributo de
STRECK, Lenio Luís Hermenêutica Jurídica e (m) Crise..., cit., p. 31 e seguintes. No âmbito da literatura
estrangeira, v. especialmente a posição favorável (mas prudente) de CANOTILHO, Joaquim José Gomes.
Direito Constitucional e Teoria da Constituição..., cit., p. 326 e seguintes, afirmando, em síntese e, no nosso
sentir, com inteira razão, que “a liberdade de conformação do legislador e inerente auto-reversibilidade
têm como limite o núcleo essencial já realizado.”
101
A respeito dos limites materiais à reforma constitucional e mesmo enfrentando o tema específico e contro-
verso (dada a existência de posições antagônicas) dos direitos sociais na sua condição de ‘cláusulas
pétreas”, existe farta e boa doutrina nacional. Neste sentido, remetemos para a leitura, para além do nosso
a Eficácia dos Direitos Fundamentais, cit., p. 353 e seguintes, onde desenvolvemos o ponto, às recentes e
importantes contribuições de COSTA E SILVA, Gustavo Just da. Os Limites da Reforma Constitucional. Rio
de Janeiro: Renovar, 2000, assim como VIEIRA, Oscar Vilhena. A Constituição e sua Reserva de Justiça – Um
Ensaio sobre os Limites Materiais ao Poder de Reforma. São Paulo: Malheiros, 1999.

368 Direito e Democracia vol.4, n.2, 2003


normas infraconstitucionais para alcançarem sua plena eficácia e efetivi-
dade, em outras palavras, para serem aplicadas e cumpridas pelos órgãos
estatais e particulares.102 Assim, parece razoável sustentar que o legisla-
dor complementar pátrio não poderia revogar integralmente ou em as-
pectos essenciais – sem oferecer qualquer alternativa compensatória si-
milar – o novo “Estatuto da Cidade” (Lei nº 10.257/2001), editado mais
de década após a promulgação da Constituição, já que se cuida inequi-
vocamente de instrumento essencial para uma maior eficácia e efetivida-
de do direito à moradia na ordem jurídica brasileira. Certo é que mesmo
não se estando a tratar aqui de uma alteração da própria Constituição
(num sentido formal) ainda assim estaríamos diante da hipótese de um
verdadeiro golpe contra a nossa Lei Fundamental, de tal sorte que, em
configurada esta hipótese, sempre se poderá impugnar, via judicial, este
tipo de procedimento, invocando a sua inconstitucionalidade, cuidando-
se – como bem o ressalta Gomes Canotilho – em importante conseqüên-
cia jurídico-subjetiva dos direitos sociais na sua dimensão prestacional.103
A partir do exposto, verifica-se que a vedação (ainda que necessaria-
mente não absoluta) de um retrocesso também na esfera legislativa, reve-
la de modo emblemático que mesmo os direitos sociais a prestações típi-
cos apresentam uma dimensão de natureza negativa (defensiva)104 que -
caso bem manejada – assume papel de destaque na sua proteção. Ao fim
e ao cabo, a temática da proibição de retrocesso insere-se no contexto da
possibilidade – amplamente reconhecida também entre nós – de que
qualquer pessoa titular de um direito fundamental social (ainda que não

102
Na doutrina alienígena, notadamente de matriz germânica, o reconhecimento de uma proibição de retroces-
so social alcançou relevância como modo de fundamentar constitucionalmente a proteção dos direitos
sociais assegurados na legislação infraconstitucional, especialmente em face da ausência de previsão
expressa da figura dos direitos adquiridos e pelo fato de que na Alemanha (assim como em outras
Constituições da Europa) praticamente não foram previstos direitos fundamentais sociais no plano do
direito constitucional positivo. Importa, ainda, repisar – para espancar eventuais incompreensões – que
comungamos do entendimento de que mesmo as normas tidas como de eficácia limitada (mas sempre com
eficácia) são – nos limites da sua possível eficácia – imediatamente (isto é, diretamente) aplicáveis.
103
CANOTILHO, José Joaquim Gomes. Constituição Dirigente e Vinculação do Legislador. Coimbra: Coimbra Ed.,
1982, p. 374. Registre-se, por conveniente, que muito embora o próprio autor tenha revisto e até mesmo
considerado como superadas boa parte das suas idéias expostas na obra ora citada (recomenda-se aqui a
leitura do prefácio da segunda edição, veiculada no ano de 2001), no que diz com a proibição de retrocesso
e suas conseqüências, de modo geral foram mantidos os elementos nucleares da concepção original, do que
dá conta a versão mais recente da sua Teoria da Constituição, já citada mais acima.
104
Neste sentido já se haviam posicionado CANOTILHO, José Joaquim Gomes & MOREIRA, Vital. Funda-
mentos da Constituição. Coimbra: Coimbra Ed., 1991, p. 131, afirmando que os direitos a prestações sociais
assumem, neste contexto, a condição de típicos direitos de defesa.

vol.4, n.2, 2003 Direito e Democracia 369


regulamentado em lei) dispõe no sentido de impugnar medidas que coli-
dam frontalmente com o direito assegurado pela Constituição ou que
venham a frustrar a sua implementação, em suma, que se enquadram
naquilo que significativa doutrina tem denominado (sem que se vá aqui
enfrentar o mérito da questão terminológica) de direitos subjetivos em
sentido negativo.105

Dimensão prestacional (positiva) do direito à moradia


Voltando-nos agora, ainda que de forma necessariamente sumária, ao
problema da eficácia e efetividade do direito à moradia na sua dimensão
prestacional, não há dúvida de que a pergunta mais angustiante e prova-
velmente a que coloca as maiores dificuldades para uma adequada res-
posta, diz com a possibilidade de o titular do direito à moradia (em prin-
cípio, qualquer pessoa, em homenagem ao princípio da universalidade
dos direitos fundamentais), com base nas normas constitucionais que lhe
asseguram este direito, exigir do poder público (e eventualmente até mesmo
de um particular) alguma prestação material que venha a lhe assegurar
uma moradia compatível com as exigências de uma vida digna. Em sínte-
se, coloca-se a questão de se o poder público pode (e deve) ser compelido
a disponibilizar, no todo ou em parte, uma moradia para os que demons-
trarem a sua falta e a impossibilidade de aquisição ou acesso por seus
próprios meios.
Apenas este aspecto da problemática, pela miríade de questões cone-
xas (jurídicas e metajurídicas) que suscita, já reclamaria bem mais do
que um singelo artigo para o seu adequado enfrentamento, além de evi-
denciar de modo particularmente contundente a afirmativa e o questio-
namento recentemente formulados de modo sugestivo entre nós, no sen-
tido de que “direitos não nascem em árvores”.106 Por outro lado, verifica-

105
Cf., dentre tantos, MEIRELLES TEIXEIRA, João Horácio, op. cit., p. 343 e seguintes; RUSSOMANO,
Rosah. (“Das Normas Constitucionais Programáticas”. In: BONAVIDES, Paulo et al. As Tendências Atuais
do Direito Público. Rio de Janeiro: Forense, 1976, p. 281 e seguintes); SILVA, José Afonso da. op. cit., p. 147
e 156 e seguintes; e, mais recentemente, na esteira de BANDEIRA DE MELLO, Celso Antonio. op. cit.,
p. 243; BARROSO,Luís Roberto. op. cit., p. 243, todos sustentando, em síntese, o direito de o indivíduo
opor-se judicialmente ao cumprimento de regras ou à sujeição de atos que o venham atingir pessoalmente
e que sejam contrários ao sentido do preceito constitucional.
106
Este justamente (Direitos não nascem em Árvores) o instigante título ostentado pela bela dissertação de
Mestrado defendida recentemente na UERJ, sob o competente orientação de RICARDO LOBO TOR-
RES, pelo hoje já mestre e professor FLÁVIO GALDINO, em janeiro de 2001, ainda não publicada.

370 Direito e Democracia vol.4, n.2, 2003


se, desde logo, que este não é sequer o único problema vinculado à
dimensão prestacional do direito à moradia. Tal constatação, contudo,
não obstante acabe gerando ainda mais frentes a serem exploradas e ou-
tros problemas a serem resolvidos, demonstra, de modo contundente, que
mesmo na sua condição de direito a prestações, o direito a moradia abrange
um leque multifacetado de opções e possibilidades, inclusive no que diz
com a viabilidade de sua efetivação.
Neste contexto e antes de seguirmos, convém lembrar que é justa-
mente na sua dimensão prestacional (e em função desta) que os direitos
sociais – e o direito à moradia em especial – têm sido enquadrados na
categoria das normas constitucionais programáticas (ou impositivas de
programas, fins e tarefas, como sugere Canotilho), posição esta que ainda
parece refletir a posição dominante, notadamente no direito comparado
e internacional. Tal entendimento – apenas a título ilustrativo – restou
consignado, reiteradamente, pelo Tribunal Constitucional de Portugal,
sustentando, na esteira do magistério de Gomes Canotilho e Vieira de
Andrade, que o direito à habitação, compreendido como direito a ter
uma moradia condigna, constitui um direito a prestações, cujo conteúdo
não pode ser determinado ao nível das opções constitucionais e pressupõe
uma tarefa de concretização e de mediação do legislador ordinário, não
conferindo ao cidadão um direito imediato a uma prestação efetiva, já
que não é diretamente aplicável, nem exeqüível por si mesmo.107
Sem que aqui se possa e pretenda adentrar a instigante discussão em
torno das assim denominadas normas constitucionais programáticas (ou
de cunho programático),108 não há como desconsiderar que o direito à
moradia inequivocamente também (mas não só) assume, no que diz com
a sua perspectiva prestacional, a condição de norma programática, im-
pondo ao poder público a tarefa de atuar positivamente na promoção,
proteção, enfim, na concretização das metas constitucionalmente esta-
belecidas, no sentido de assegurar uma moradia compatível com as exi-
gências da dignidade da pessoa humana para a população. Por outro lado,
também é certo (pelo menos para expressiva doutrina) que os direitos
sociais prestacionais – em que pese sua dimensão programática – nem por

107
Cf. Acórdão nº 29/2000, 1ª Secção, relatado pelo Conselheiro Artur Maurício, reproduzindo, neste ponto, o
que já havia sido decidido no Acórdão nº 131/1992, tido como o “leading case” do Tribunal Constitucional
nesta matéria (direito à moradia como direito a prestações).
108
Especificamente a respeito deste tema, lembramos a já referida e recente obra de REGINA FERRARI, op. cit.

vol.4, n.2, 2003 Direito e Democracia 371


isso perdem em fundamentalidade.109 Da mesma forma, importa repisar
que mesmo as normas constitucionais programáticas não são destituídas
de eficácia (ainda que eventualmente mais reduzida) além de serem –
na medida da sua eficácia – diretamente aplicáveis, não sendo, de resto,
poucos e inexpressivos os efeitos jurídicos que delas se pode extrair inde-
pendentemente de uma intermediação do legislador.110
Retomando aqui a noção de que existe todo um leque de possibilida-
des, também no que diz com a eficácia e efetividade dos direitos sociais
prestacionais, bem como em se partindo da premissa de que objeto dos
direitos a prestações pode assumir a feição tanto de prestações fáticas
(materiais) quanto normativas e que uma das principais – se não a prin-
cipal – manifestação do dever de proteção do Estado (que, ao menos
segundo expressiva doutrina, resulta num correspondente direito à pro-
teção que tem como titular o particular)111 para com os direitos funda-
mentais consiste na edição de medidas legislativas com o objetivo de
salvaguardar, de forma efetiva, o direito fundamental ou viabilizar a sua-
implementação, em se cuidando de um direito a prestações materiais,
verifica-se que também no concernente ao direito à moradia tais premis-
sas encontram possível aplicação.
Assim, por exemplo, registra-se (inclusive no âmbito do direito interna-
cional) a necessidade de uma legislação versando sobre o regime das loca-
ções residenciais que, sem desguarnecer os direitos do proprietário, impe-
ça, de outra parte, abusos praticados em relação ao locatário, especialmen-
te em situação de necessidade e manifesta hipossuficiência, seja pela previ-
são da impossibilidade de uma retomada imotivada, seja pelo controle dos
preços dos alugueres e de seus reajustes, ou mesmo pela imposição de pra-

109
Para tanto, v. , entre outros, CANOTILHO, Joaquim José. Direito Constitucional e Teoria da Constituição...,cit.,
p. 444, discorrendo sobre os diversos modos de positivação dos direitos fundamentais econômicos, sociais
e culturais.
110
Sobre os diversos efeitos jurídicos das normas habitualmente designadas de eficácia limitada (de cunho
programático e/ou impositivo de legislação e ações concretas do poder público) v. o nosso A Eficácia dos
Direitos Fundamentais, cit., p. 268 e seguintes. Consigne-se, ainda neste contexto, que quando versamos
sobre a dimensão negativa do direito à moradia, já se fez referência a uma série de efeitos importantes
inerentes ao direito à moradia, plenamente compatíveis mesmo com sua perspectiva programática.
111
Cf., paradigmaticamente, ALEXY, Robert. op. cit., p. 435 e seguintes, não obstante seja objeto de ampla
controvérsia a possibilidade de subjetivação nesta esfera, isto é, de se reconhecer uma dimensão jurídico-
subjetiva dos direitos à proteção. Como contraponto (muito embora haja apenas parcial divergência), vale
mencionar as ponderações de HESSE, Konrad. Grundzüge des Verfassungsrechts der Bundesrepublik Deutschland,
cit., p. 156.

372 Direito e Democracia vol.4, n.2, 2003


zos razoáveis para a desocupação, dentre outros aspectos que poderiam ser
mencionados e sem que se vá aqui adentrar o mérito da correção das op-
ções legislativas atualmente vigentes entre nós nesta seara.
Já na esfera de um direito à moradia como direito de acesso a uma
habitação, igualmente existe um leque amplo de possibilidades, como
demonstra a criação de linhas de financiamento específicas facilitando a
aquisição ou construção de residências especialmente para pessoas de
baixo poder aquisitivo, o estabelecimento de um sistema de mutirões, ou
mesmo a criação de uma rubrica específica na esfera da assistência social
(como ocorre em diversos países industrializados) destinada a cobrir – em
caráter temporário e em montante variável de acordo com as circunstân-
cias do caso concreto – despesas com habitação (pagamento de alugue-
res), nesta hipótese com a vantagem de que com isto estarão sendo esti-
mulados investimentos na construção de habitações, por sua vez refletin-
do no incremento dos níveis de emprego e fomento da economia.112
No caso brasileiro, a facilitação da aquisição da propriedade pelo usu-
capião, especialmente a partir da Constituição de 1988, mediante a prova
da posse exercida de forma mansa e pacífica, por um período de cinco
anos, desde que demonstrada a utilização (dentre outros requisitos) do
imóvel para moradia própria e da família, revela – como já lembrado alhures
- que a moradia atua como fundamento da aquisição da propriedade em
face de outros particulares (no caso, aquele em nome de quem está regis-
trado o imóvel),revelando que, de certo modo, poder-se-á até mesmo (e
nos parece razoável este ponto de vista) sustentar uma eficácia nas rela-
ções entre particulares da dimensão prestacional do direito à moradia.
Com a recente edição do assim designado “Estatuto da Cidade” (Lei
nº 10.257/2001), o legislador pátrio certamente deu mais um passo deci-
sivo para uma mais efetiva implementação do direito à moradia. Apenas
para ilustrar tal assertiva, cremos que basta aqui a referência ao instituto
do usucapião coletivo (facilitando sobremaneira a regularização dos as-
sentamentos habitacionais urbanos irregulares e a outorga do título de

112
Ainda neste contexto, vale colacionar a solução adotada na Bélgica, onde o legislador previu a possibilidade,
limitada no tempo e não sem uma devida compensação, de requisitar – com o objetivo de uma colocação
provisória de pessoas desabrigadas – imóveis que se encontram vazios. A respeito deste ponto, bem como
sobre a problemática em geral do direito à moradia na Bélgica, v. o contributo de FIERENS, Jacques. “Le
Droit à un Logement Décent”. In: ERGEC, Rusen (Dir.). Les Droits Économiques, Sociaux et Culturels dans
la Constitution. Bruxelas: Bruylant, 1995, especialmente p. 247 e seguintes.

vol.4, n.2, 2003 Direito e Democracia 373


propriedade aos moradores), assim como aos institutos da concessão de
direito real de uso e do uso especial para fins de moradia.113
Ainda que se tenha de reconhecer que na sua condição de direito a
prestações normativas (principal manifestação do dever de proteção do Es-
tado e dos correspondentes direitos à proteção) não se poderá sustentar –
mesmo à luz do princípio contido no artigo 5, parágrafo 1, da nossa Consti-
tuição, um direito subjetivo à edição de uma ato normativo (ou seja, de um
direito subjetivo à legislação),114 os exemplos pinçados revelam – para além
de todas as potencialidades normativas já referidas quando da análise da
dimensão negativa – que muito já se fez e mais ainda se poderá fazer por
meio de uma atuação estatal (e não estritamente no campo normativo)
sinceramente empenhada na tarefa de proteger e implementar o direito à
moradia, ainda que não se esteja aqui a falar propriamente num direito
subjetivo de acesso a uma moradia, no sentido de um direito à prestações
fáticas. Este é precisamente o próximo ponto a ser versado.
Tomando-se agora o direito a moradia na sua condição de um direito
a prestações materiais (fáticas) que viabilizem o acesso efetivo a uma
moradia digna e desde logo cientes de que também (e compreensivel-
mente) os tratados internacionais que versam sobre o tema não impõem
aos Estados a obrigação de disponibilizar a todos uma moradia, apenas
(como de resto já frisado) determinando que sejam empreendidos esfor-
ços concretos e efetivos neste sentido, não há, todavia, como deixar de
considerar, mesmo que sem o desenvolvimento desejável, a eventual pos-
sibilidade de se admitir, diretamente com base na previsão constitucional
e mesmo sem uma opção legislativa neste sentido (que, ademais, não
teria o condão de afastar todos os obstáculos, especialmente no que diz
com a carência de recursos), um direito subjetivo a prestações fáticas,
que possa ser objeto de reconhecimento pelos órgãos do Poder Judiciário
Não havendo como adentrar – em face dos estreitos limites deste estudo
– os mais diferenciados aspectos que o problema suscita, sendo também invi-
ável considerar mesmo as principais concepções e argumentos desenvolvidos

113
Note-se que boa parte dos institutos previstos no Estatuto da Cidade já encontravam previsão expressa no
nosso ordenamento, esperando-se que a regulamentação da nova Lei e os ajustes indispensáveis para sua
adequada e eficiente aplicação, seja pelo Legislador, seja pelo Executivo e pelo Judiciário, venham a
corresponder às suas evidentes potencialidades.
114
Para além de um quase inevitavelmente frágil sistema de controle de constitucionalidade por omissão,
sempre haverá como explorar os limites estabelecidos pela já referida dimensão negativa dos direitos
sociais, especialmente no que diz com uma proibição de retrocesso.

374 Direito e Democracia vol.4, n.2, 2003


a respeito na doutrina e na jurisprudência, partiremos, de imediato, para
aquilo que consideramos representar uma solução que harmoniza com o espí-
rito da norma contida no art. 5º, par. 1º, da nossa Carta Magna. Tendo em
conta que não se poderá desconsiderar as distinções entre os direitos de
defesa e os direitos sociais prestacionais, de modo especial o fato de que estes
estão condicionados, no que diz com a sua realização, pela disponibilidade
de recursos e pela capacidade de deles dispor (princípio da reserva do possí-
vel, este, por sua vez, diretamente conectado com o problema da maior ou
menor escassez de recursos115 ), bem como pelo princípio democrático da re-
serva parlamentar em matéria orçamentária, o que também afeta o princípio
da separação de poderes, entendemos que a proposta de solução deverá pas-
sar necessariamente (também aqui) pela ponderação dos princípios inciden-
tes na espécie, no âmbito de uma interpretação sistemático-hierarquizadora,
tal como nos propõe o ilustre jurista e professor Juarez Freitas, em sua magní-
fica obra sobre a hermenêutica jurídica, já referida.116
É neste sentido que nos valemos das lições do conhecido jusfilósofo
germânico Robert Alexy, para quem, em síntese, se poderá reconhecer
um direito subjetivo originário a prestações nas seguintes circunstâncias:
a) quando imprescindíveis ao princípio da liberdade fática; b) quando o
princípio da separação de poderes (incluindo a competência orçamentá-
ria do legislador), bem como outros princípios materiais (especialmente
concernentes a direitos fundamentais de terceiros), forem atingidos de
forma relativamente diminuta. Para Alexy, tais condições se encontram
satisfeitas sobretudo na esfera dos direitos sociais que correspondem a um
padrão mínimo, como é o caso do direito às condições existenciais míni-
mas, direito à formação escolar e profissional, uma moradia simples (grifo
nosso) e um padrão mínimo de atendimento na área da saúde.117
A solução preconizada por Alexy, convém registrar, afina com a natureza
principiológica da norma contida no art. 5º, § 1º, da nossa Constituição, já
que esta, impondo a otimização (maximização) da eficácia de todos os direi-
tos fundamentais, não poderia admitir nem uma realização plena dos (e de

115
Discutindo com oportunidade, atualidade e profundidade a questão da escassez de recursos e o papel do
Direito e dos Tribunais nesta seara, v., entre nós, AMARAL, Gustavo. op. cit., especialmente p. 133 e
seguintes, sem que aqui estejamos esquecendo da circunstância, já referida no presente trabalho, de que
os direitos negativos apresentam, num certo sentido, uma dimensão positiva (prestacional), já que no
plano da sua efetivação igualmente assume relevo o problema da reserva do possível.
116
V. FREITAS, Juarez. A Interpretação Sistemática do Direito..., cit., 1995.
117
Cf. ALEXY Robert. op. cit., p. 494 e seguintes.

vol.4, n.2, 2003 Direito e Democracia 375


todos) direitos sociais prestacionais, pena de sacrifício de outros princípios
ou direitos fundamentais colidentes, nem a negação absoluta de direitos sub-
jetivos a prestações, pena de sacrifício de outros bens igualmente fundamen-
tais. Tomando como exemplo o direito à saúde, perceber-se-á, desde logo,
que ao Estado não se impõe apenas o direito de respeitar a vida humana, o
que poderá até mesmo implicar a vedação da pena de morte, mas também o
dever de proteger ativamente a vida humana (e a vida com dignidade), já
que esta constitui a razão de ser da própria comunidade e do Estado, além de
ser o pressuposto para a fruição de qualquer direito fundamental. Negar ao
particular o acesso ao atendimento médico-hospitalar gratuito, ou mesmo o
fornecimento de medicamentos essenciais, certamente não nos parece a so-
lução mais adequada (ainda que invocáveis o princípio da reserva do possí-
vel e/ou da reserva parlamentar em matéria orçamentária). O mesmo racio-
cínio, assim nos parece, poderá ser aplicado no que diz com outros direitos
sociais prestacionais básicos, tais como educação, assistência social e para as
condições materiais mínimas para uma existência digna, no âmbito das quais
seguramente ocupa lugar de destaque a moradia.
Neste contexto, cumpre registrar que o reconhecimento de direitos sub-
jetivos a prestações não se deverá restringir às hipóteses nas quais a própria
vida humana estiver correndo o risco de ser sacrificada, não obstante seja
este o exemplo mais pungente a ser referido. O princípio da dignidade da
pessoa humana assume, também no que diz com este aspecto, importante
função demarcatória, podendo servir de parâmetro para avaliar qual o pa-
drão mínimo em direitos sociais (mesmo como direitos subjetivos individu-
ais) a ser reconhecido.118 Negar-se, por exemplo, o acesso ao ensino funda-
mental obrigatório e gratuito (ainda mais em face da norma contida no art.
208, § 1º, da CF, de acordo com a qual se cuida de direito público subjeti-
vo) importa igualmente em grave violação aoprincípio da dignidade da
pessoa humana, na medida em que este implica para a pessoa humana a
capacidade de compreensão do mundo e a liberdade (real) de autodeter-
minar-se e formatar a existência, o que certamente não será possível em se
mantendo a pessoa sob o véu da ignorância119 .

118
Sobre o conteúdo mínimo dos direitos sociais e sua conexão com a dignidade da pessoa humana, v. o recente
e excelente aporte de BARCELLOS, Ana Paula, A Eficácia Jurídica dos Princípios Constitucionais. O Princípio
da Dignidade da Pessoa Humana. Rio de Janeiro: Renovar, 2002, especialmente p. 247 e seguintes. Não
obstante não tenha havido uma abordagem específica do direito à moradia, as considerações colacionadas,
assim como os exemplos pinçados, fornecem referencial argumentativo também para o direito à moradia.
119
V. a este respeito o nosso A Eficácia dos Direitos Fundamentais..., cit., p. 319, obra na qual analisamos com maior
profundidade estes e outros exemplos, bem como as principais concepções a respeito do reconhecimento de
direitos subjetivos a prestações (v. p. 272-321).

376 Direito e Democracia vol.4, n.2, 2003


Com base no exposto, verifica-se que o problema apenas poderá ser
equacionado à luz das circunstâncias do caso concreto e do direito fun-
damental específico em pauta, sendo indispensável a ponderação (hierar-
quização) dos bens e valores em conflito. Assim, em todas as situações em
que o argumento da reserva de competência do legislador (assim como a
separação de poderes e as demais objeções habituais aos direitos sociais a
prestações como direitos subjetivos) implicar grave agressão (ou mesmo o
sacrifício) do valor maior da vida e da dignidade da pessoa humana, ou
nas hipóteses em que, da análise dos bens constitucionais colidentes, re-
sultar a prevalência do direito social prestacional, poder-se-á sustentar,
na esteira de Alexy e de Gomes Canotilho, que, na esfera de um padrão
mínimo existencial, haverá, em princípio, a possibilidade de reconhecer
um direito subjetivo definitivo a prestações, admitindo-se, onde tal míni-
mo for ultrapassado, tão-somente um direito subjetivo “prima facie”, já
que – nesta seara – não há como resolver a problemática em termos de
uma lógica do tudo ou nada.120 Esta solução impõe-se até mesmo em
homenagem à natureza eminentemente principiológica da norma conti-
da no artigo 5º, parágrafo 1º, da Constituição Federal, e, de modo geral,
das próprias normas definidoras dos direitos e garantias fundamentais.
Nesta mesma linha de entendimento, percebe-se, ainda, que – especial-
mente na esfera dos direitos subjetivos a prestações – necessária uma relati-
vização da noção de direito subjetivo, constatando-se uma inevitável dife-

120
Sobre a noção de um direito subjetivo a prestações v. especialmente (além da obra de Alexy já referida) a magistral
formulação de CANOTILHO, José Joaquim Gomes. Tomemos a Sério os Direitos Sociais, Económicos e Culturais.
Coimbra: Coimbra Ed., 1988, p. 25 e seguintes, que, além de direitos subjetivos definitivos e direitos subjetivos
“prima facie”, admite a existência de uma terceira categoria de direitos subjetivos a prestações, sustentando (na
esteira de Alexy) que há posições jurídico-prestacionais embasadas em normas impositivas de tarefas e fins
estatais que geram apenas um dever não-relacional do Estado, que pode ser caracterizado como um dever
objetivo “prima facie”, garantido por normas não vinculantes, como ocorre, por exemplo, com o direito ao
trabalho e o correspondente dever do Estado de promover uma política de pleno emprego, sem que se possa
admitir um direito do particular a um emprego. Neste contexto – muito embora não atribuindo aos direitos
sociais, de modo geral, o qualificativo de fundamentais – também TORRES, Ricardo Lobo. A Cidadania
Multidimensional....,cit., p 292 e seguintes, admite que, na esfera do mínimo existencial para uma vida com
dignidade (situação que o autor reporta ao status positivus libertatis), os direitos a prestações podem assumir a
condição de direitos subjetivos, de tal sorte que, no que nos parece essencial, tal entendimento acaba por ser
substancialmente convergente com o que estamos a sustentar. Mesmo no plano da proteção internacional,
cumpre registrar que a despeito do reconhecimento de que não se pode impor aos Estados que disponibilizem
uma moradia digna a todos os que dela necessitarem, cuidando-se de um direito de implementação progressiva,
a Comissão da ONU responsável pela controle e fiscalização do cumprimento do Pacto Internacional de Direitos
Econômicos, Sociais e Culturais exige que os Estados utilizem o máximo de recursos possíveis, não aceitando a
mera evasiva de que os recursos inexistem, especialmente no que diz com a necessidade de adoção de programas
viáveis de baixo custo para atendimento de padrões mínimos em matéria de direitos sociais (v., neste sentido, o
já citado relatório de SACHAR, Rajindar. op. cit., p. 12).

vol.4, n.2, 2003 Direito e Democracia 377


renciação no que diz com a força jurídica das diversas posições jurídico-
prestacionais fundamentais em sua dimensão subjetiva. Por outro lado, não
há como desconsiderar a natureza excepcional dos direitos fundamentais ori-
ginários a prestações na condição de direitos subjetivos definitivos, isto é,
dotados de plena vinculatividade e que implicam a possibilidade de impor ao
Estado (a ao particular, quando for o destinatário), inclusive mediante recur-
so à via judicial, a realização de determinada prestação assegurada por nor-
ma de direito fundamental, sem que com isto se esteja colocando em cheque
a fundamentalidade formal e material dos direitos sociais na sua dimensão
prestacional. Que na hipótese do direito à moradia, impõe-se particular pru-
dência assim como uma análise mais detida e aprofundada de todos os aspec-
tos e repercussões que o problema coloca, nunca é demais seja frisado.
Por derradeiro, convém lembrar que, no concernente ao modo de o
Estado assegurar, no caso concreto, o acesso à moradia (e isto mesmo no
âmbito de um “mínimo” para uma vida digna), igualmente existe um
elenco de alternativas que não pode ser prévia e definitivamente estabe-
lecido, cuidando-se, em suma, de questão necessariamente aberta ao
debate e carente de desenvolvimento.

CONSIDERAÇÕES FINAIS

O necessário resgate da dimensão utópica e


promocional dos direitos fundamentais e da
dignidade da pessoa como pressuposto para a
viabilidade do direito à moradia
À guisa de conclusão, cumpre assinalar, aproximando as noções de efi-
cácia jurídica e efetividade (eficácia social), que nem a previsão de direi-
tos sociais fundamentais na Constituição (o que, portanto, vale igualmente
para o direito à moradia) nem mesmo a sua positivação na esfera infracons-
titucional poderão, por si só, produzir o padrão desejável de justiça social,
já que fórmulas exclusivamente jurídicas não fornecem o instrumental su-
ficiente para a sua concretização. No que diz com este aspecto, importa
consignar a oportuna lição de Dieter Grimm, ilustre publicista e antigo Juiz
do Tribunal Federal Constitucional da Alemanha, para quem a efetividade

378 Direito e Democracia vol.4, n.2, 2003


dos direitos fundamentais em geral (e não apenas dos direitos sociais) não
se alcança com a mera vigência da norma e, portanto, não se resolve exclu-
sivamente no âmbito do sistema jurídico, transformando-se em problema
de uma verdadeira política dos direitos fundamentais.121
Importante, portanto, é ter sempre em mente que uma Constituição de
um Estado democrático (e social) de Direito não poderá jamais negligenciar
o patamar de desenvolvimento social, econômico e cultural da comunidade,
sob pena de comprometer seriamente sua força normativa e suas possibilida-
des de atingir uma plena efetividade.122 Neste contexto, cumpre retomar a
temática da crise dos direitos fundamentais. Com efeito, especialmente no
âmbito dos direitos sociais prestacionais, onde a referida crise se manifesta
com particular agudeza, tal como já demonstrado, verifica-se que o impacto
negativo sobre a capacidade prestacional do Estado se encontra diretamente
vinculado ao grau de importância do limite fático da reserva do possível e do
princípio da reserva parlamentar em matéria orçamentária, os quais, por sua
vez, atuam diretamente sobre a problemática da eficácia e efetividade dos
direitos sociais, como de resto (e neste ponto oportuna a lembrança de Hol-
mes e Sunstein) de todos os direitos fundamentais.
Em verdade, quanto mais diminuta a disponibilidade de recursos, mais
se impõe uma deliberação democrática e responsável a respeito de sua
destinação, especialmente de forma a que sejam atendidas satisfatoria-
mente todas as rubricas do orçamento público, destacando-se aquelas
que dizem com a realização dos direitos fundamentais e da própria justiça
social.123 Na mesma proporção, deverá crescer o índice de sensibilidade

121
Cf. GRIMM, Dieter. “Grundrechte und Soziale Wirklichkeit”. In: HASSEMER, W., HOFFMANN-RIEM, W. &
LIMBACH, J. (Org.). Grundrechte und Soziale Wirklichkeit. Baden-Baden: Nomos, 1982, p. 72. No mesmo
sentido, há que registrar, entre nós, a oportuna e lúcida exortação de CLÉVE, Clémerson Merlin. Temas
de Direito Constitucional (e de Teoria do Direito). São Paulo: Acadêmica, 1993, p. 127, apontando para a
necessidade de uma política da dignidade da pessoa humana e dos direitos fundamentais.
122
Neste sentido, as ponderações de MÜLLER, Joerg-Paul. Soziale Grundrechte in der Verfassung?. Basel-Frank-
furt: Helbig & Lichtenhahn, 1981, p. 52.
123
Aliás, a deliberação democrática e a participação popular efetiva nos processos de tomada de decisões no que diz
com as opções tomadas no âmbito da realização dos direitos sociais, assume lugar de destaque no contexto do
que se convencionou designar de um “status activus processualis” (Peter Häberle) dos direitos fundamentais,
bem como na necessidade de se aperfeiçoar os mecanismos de participação democrática da população, como bem
demonstram os diversos institutos consagrados pela nossa Constituição Federal de 1988 e uma série de medidas
legislativas e experiências praticadas já no nosso país. Sobre o tema, especialmente no contexto dos direitos
sociais, v., entre outros, KRELL, Andreas. “Controle Judicial dos Serviços Públicos Básicos na Base dos Direitos
Fundamentais Sociais”. In: SARLET, Ingo Wolfgang (Org.). A Constituição Concretizada: Construindo Pontes com
o Público e o Privado. Porto Alegre: Livraria do Advogado, 2000, p. 25-60, onde, de resto, encontra-se atual análise
do problema do papel do Poder Judiciário na esfera da efetivação dos direitos sociais.

vol.4, n.2, 2003 Direito e Democracia 379


por parte daqueles aos quais foi delegada a difícil missão de zelar pelo
cumprimento da Constituição, de tal sorte que - em se tratando do reco-
nhecimento de um direito subjetivo a determinada prestação social - as-
sume lugar de destaque o princípio da proporcionalidade, que servirá de
parâmetro no indispensável processo de ponderação de bens que se impõe
quando da decisão acerca da concessão, ou não, de um direito subjetivo
individual ou mesmo da declaração de inconstitucionalidade de uma
medida restritiva dos direitos sociais.

Por outro lado, entendemos que não há como sustentar o argumento


de que, em face dos efeitos da crise já referidos, inexiste alternativa
plausível se não a de uma supressão pura e simples dos direitos sociais
consagrados na Constituição, a pretexto de serem em grande parte res-
ponsáveis pela “ingovernabilidade” do nosso país. Da mesma forma, não
devem - especialmente o Juiz e os demais operadores do Direito - sim-
plesmente capitular diante das “forças reais de poder” (Lassale) ou em
face da alegação de que inviável (em qualquer circunstância) o reco-
nhecimento de um direito subjetivo a prestações, socorrendo-se dos
limites fáticos da reserva do possível e argumentando que inexiste do-
tação orçamentária, pena de esvaziamento completo da eficácia dos
direitos sociais. O que se verifica, em verdade, é que o aumento da
opressão sócio-econômica e a elevação dos níveis de desigualdade fáti-
ca fazem com que o reconhecimento e efetivação dos direitos sociais,
ainda que em patamar mínimo, voltado à manutenção de um nível exis-
tencial digno, transformem-se em meta indispensável a qualquer or-
dem estatal que tenha a pretensão de ostentar o título de legítima e,
por via de conseqüência, genuinamente democrática.

Aparentemente de forma paradoxal, constata-se que o processo de


globalização acabou trazendo avanços significativos na esfera dos di-
reitos fundamentais, não sendo por acaso que hoje se sustenta o fe-
nômeno da universalidade dos direitos fundamentais e a formação –
consoante já assinalado alhures - de um verdadeiro direito constituci-
onal internacional nesta seara, fenômeno vinculado ao impulso da
Declaração Universal da ONU, de 1948, bem como ao expressivo nú-
mero de convenções internacionais na esfera dos Direitos Humanos,
acompanhada da sua recepção pelo direito constitucional dos Esta-
dos. De outra parte, verifica-se que a globalização, especialmente no
que diz com o avanço das comunicações, tem permitido uma veicula-

380 Direito e Democracia vol.4, n.2, 2003


ção universal, ainda que mínima, da agenda da defesa da dignidade
humana e dos direitos fundamentais, facilitando o fluxo de informa-
ções, a denúncia de violações e dificultando a censura sobre os meios
de comunicação.124 Assim, como se pode concluir a partir da lição do
grande jurista brasileiro Paulo Bonavides, a globalização, aqui consi-
derada por um ângulo positivo, como veículo para a afirmação da uni-
versalização do reconhecimento da dignidade da pessoa humana e
dos direitos fundamentais, acaba contribuindo decisivamente para que
estes efetivamente venham a integrar uma espécie de patrimônio cul-
tural (e jurídico) comum da humanidade. 125
Nesta quadra da exposição, convém relembrar que os direitos funda-
mentais (e, portanto, também o direito à moradia) a despeito de sua di-
mensão jurídico-normativa, essencialmente vinculada ao fato de serem
postulados de “dever ser”, possuem o que Pérez Luño denominou de “ir-
renunciável dimensão utópica”, visto que contêm um projeto emancipa-
tório real e concreto.126 Entre nós, reconhecendo igualmente uma pers-
pectiva utópica e promocional dos direitos fundamentais, José Eduardo
Faria, partindo da concepção de utopia como “horizonte de sentido”, sus-
tenta que a luta pela universalização e efetivação dos direitos fundamen-
tais implica a formulação, implementação e execução de programas eman-
cipatórios, que, por sua vez, pressupõe uma extensão da cidadania do
plano meramente político-institucional para os planos econômico, social,
cultural e familiar, assegurando-se o direito dos indivíduos de influir nos
destinos da coletividade.127 Mesmo na sua inafastável (mas não exclusi-
va) dimensão programática (considerando-se aqui os direitos fundamen-
tais na sua condição de normas impositivas de programas e tarefas na

124
Esta a lição de LOPES, José Reinaldo Lima. “Direitos Humanos, Pobreza e Globalização”. Revista da AMB 2:
49-50,1997.
125
Cf. BONAVIDES, Paulo. Curso de Direito Constitucional, cit., p. 524 e seguintes, salientando que no âmbito
desta globalização dos direitos fundamentais, assumem relevo os direitos de “quarta geração”, notadamente
o direito à democracia (direta), o direito à informação e o direito ao pluralismo, pois deles “depende a
concretização da sociedade aberta do futuro, em sua dimensão de máxima universalidade.”
126
Cf. PÉREZ LUÑO, Antonio-Enrique. “Derechos Humanos y Constitucionalismo em la Actualidad”. In: __.
(Org.). Derechos Humanos y Constitucionalismo ante el Tercer Milenio. Madrid: Marcial Pons, 1996, p. 15,
ressaltando que “faltos de su dimensión utópica, los derechos humanos perderían su función legitimadora
del Derecho; pero fora de la experiencia y de la historia perderían sus proprios rasgos de humanidad.”
127
V. FARIA, José Eduardo. “Democracia e Governabilidade: os Direitos Humanos à luz da Globalização
Econômica”, cit., p. 154 e seguintes.

vol.4, n.2, 2003 Direito e Democracia 381


esfera das políticas sociais),128 os direitos sociais não precisam necessaria-
mente constituir um instrumento de manipulação ou uma mera ilusão,
tal qual sustentou, entre nós, Marcelo Neves,129 mas exercem – de acor-
do com a lição de Andreas Krell, uma função sugestiva, apelativa, edu-
cativa e conscientizadora que não pode ser desconsiderada.130
Considerando apenas as possibilidades apontadas ao longo do pre-
sente texto (e já bastaria aqui a praticamente incontroversa eficácia
da dimensão negativa do direito à moradia e dos direitos sociais em
geral), constata-se que também o direito à moradia não precisa (nem
deve) ser interpretado como uma promessa de que todos passarão a
ter, desde logo e por decreto normativo, plena condição de fruir deste
direito, sem que com esta afirmação se esteja (muito antes pelo con-
trário) a repudiar a sua possível eficácia e efetividade. Ainda que se
imponha o reconhecimento de que se está a vivenciar um verdadeiro
mal-estar cívico e político que afeta a credibilidade da Constituição e
do Direito, tal qual nos lembra Gomes Canotilho131 , não há como des-
considerar, por outro lado, que sentir-se mal (caso ainda tenhamos
esta salutar capacidade) pode significar o primeiro passo para uma
tomada de consciência e a busca de soluções, também na seara da
eficácia e efetividade da Constituição e dos direitos fundamentais de
todas as dimensões.
Por derradeiro, cremos ser possível afirmar que os direitos funda-
mentais sociais, mais do que nunca, não constituem mero capricho,
privilégio ou liberalidade, mas sim, premente necessidade, já que a
sua supressão ou desconsideração fere de morte os mais elementares
valores da vida e da dignidade da pessoa, em todas as suas manifesta-

128
Impõe que se deixe aqui consignado, que o reconhecimento da dimensão programática dos direitos sociais não
impede, consoante restou demonstrado ao longo da exposição, que estejamos a tratar de preceitos destituídos
normatividade, nem mesmo que os direitos sociais, seja na condição de direitos de defesa ou direitos a
prestações, não possam alcançar eficácia e efetividade. O problema, em verdade, não está e, não se admitir o
cunho programático que os direitos sociais também possuem, mas sim, em negar às normas programáticas uma
eficácia, aplicabilidade e efetividade possíveis. Este, contudo, tema que aqui não mais pode ser desenvolvido.
129
Cf. NEVES, Marcelo. A Constitucionalização Simbólica. São Paulo: Acadêmica, 1994, p. 37 e seguintes. Com
isto, todavia, não estamos a desconsiderar o fato (bem demonstrado pelo ilustre autor) de que a positivação
de um extenso catálogo de direitos fundamentais, notadamente na esfera dos direitos sociais, não tenha
servido – em algumas hipóteses - como instrumentos de manipulação da sociedade.
130
Cf. KRELL, Andreas. Controle Judicial dos Serviços Públicos Básicos na Base dos Direitos Fundamentais Sociais, cit.,
p.31.
131
Cf. CANOTILHO, Joaquim José Gomes. Sobre o Tom e o Dom dos Direitos Fundamentais... , cit., p. 38.

382 Direito e Democracia vol.4, n.2, 2003


ções. A eficácia (jurídica e social) do direito à moradia e dos direitos
fundamentais sociais deverá, portanto, ser objeto de permanente e
responsável otimização pelo Estado e pela sociedade, na medida em
que levar a sério os direitos (e princípios) fundamentais corresponde,
em última análise, a ter como objetivo permanente a concretização do
princípio da dignidade da pessoa humana, por sua vez, a mais sublime
expressão da própria idéia de Justiça. Caso contrário, não haveremos
de escapar – tal como com lucidez adverte Paulo Bonavides - de uma
lamentável, mas cada vez menos contornável e controlável, transfor-
mação de muitos Estados democráticos de Direito em verdadeiros “es-
tados neocoloniais”.132

132
Cf. BONAVIDES, Paulo. Do País Constitucional ao País Neocolonial. A Derrubada da Constituição e a Recolonização
pelo Golpe de Estado Institucional. São Paulo: Malheiros, 2000, p. 19 e seguintes.

vol.4, n.2, 2003 Direito e Democracia 383


384 Direito e Democracia vol.4, n.2, 2003
O Direito Urbanístico sob a ótica do
estatuto da cidade: democratizando
o espaço local

Urban law in view of the City


Statute: democratizing local space

JULIO CESAR MAHFUS1


VIVIANA CREMONESE2
1 Mestre em Des. Regional, Especialista em Direito Imobiliário, Advogado, Professor dos Cursos de Direito da
ULBRA e da UNISC.
2 Bacharela em Direito pela ULBRA – Cachoeira do Sul

RESUMO
O presente artigo tem por escopo analisar o espaço urbano atual sob duas
óticas: O Estatuto da Cidade e a Democracia Participativa, como pressupos-
tos legitimadores do desenvolvimento.
Em países subdesenvolvidos e em desenvolvimento, o espaço urbano é marca-
do por um déficit habitacional, inexistindo ou carecendo de infra-estrutura,
desordenando quantitativa e qualitativamente o solo urbano.
A definição da função social da propriedade urbana é um poderoso instrumento
dos municípios para a promoção do desenvolvimento urbano. Poderá ser utiliza-
do, por exemplo, para evitar a ocupação de áreas não suficientemente equipa-
das, ou a retenção especulativa de imóveis vagos ou subutilizados, para preservar
o patrimônio cultural ou ambiental, para exigir a urbanização ou ocupação com-
pulsórias de imóveis ociosos, para captar recursos financeiros destinados ao de-
senvolvimento urbano e para exigir a reparação de impactos ambientais.
Palavras-chave: Urbanismo, Estatuto da Cidade, democracia, desenvolvimento

Direito
vol.4, e Democracia
n.2, 2003 Canoas
Direito e vol.4, n.2
Democracia 2º sem. 2003 p.385-402
385
ABSTRACT
The scope of present article is to analyze the current urban space from two
points of view: the City Statute and the Participative Democracy as develop-
ment legitimating presuppositions. The urban space in underdeveloped and
developing countries presents a housing deficit, with no or scarce substructure,
quantitatively and qualitatively disordering the urban soil. The definition of ur-
ban property social function is a powerful instrument for towns to promote
urban development. It can be used to avoid occupation of insufficiently equipped
areas, for instance, or the speculative retention of vacant or underutilized real
estates, to preserve cultural or environmental patrimony, to require the compul-
sory urbanization or occupation of idle real estates, to attract financial re-
sources for urban development and to require environmental impact repair.
Key words: Urbanism, City Statute, democracy, development.

INTRODUÇÃO
O Direito Urbanístico, enquanto instrumento de análise, ganhou es-
paço a partir do momento em que entrou em vigor o Estatuto da Cidade.
Mais que uma lei regulamentadora da Constituição Federal, ele tem por
escopo primordial democratizar o espaço urbano e incluir os excluídos no
contexto urbano. Operacionaliza-se isso através de um novo conceito de
função social da cidade.
Importa, inicialmente, conhecer a distinção entre direito individual e
a função social realizadas pelo texto constitucional, como expõe Grau:

(...) fundamentos distintos justificam propriedade dotada de


função individual e propriedade dotada de função social. En-
contra justificação, a primeira na garantia, que se reclama, de
que possa o indivíduo prover a sua subsistência e de sua famí-
lia, daí porque concorre para essa justificação a sua origem,
acatada quando a ordem jurídica assegura o direito de heran-
ça. Já a propriedade dotada de função social, é justificada
pelos seus fins, seus serviços, sua função.(1990, p.247)

A Constituição Federal de 1988, em seus arts. 182 e 183, estabeleceu


diretrizes gerais de uma política urbana; no entanto, estes preceitos cons-

386 Direito e Democracia vol.4, n.2, 2003


titucionais necessitavam de regulamentação, o que se efetivou frente ao
Estatuto da Cidade, Lei Federal 10. 257/01, trazendo, pois, à tona a idéia
de cidades sustentáveis, democráticas e planejadas ( Flores e Santos,
2002, p.11).
Desse modo, o referido diploma surgiu num momento em que os muni-
cípios enfrentavam problemas insustentáveis diante da falta de regramento
e planejamento urbano. Para tanto, veio regular o uso da propriedade urba-
na, em benefício do coletivo, da segurança e do bem-estar dos cidadãos.
O objetivo do Estatuto é fazer com que a cidade como um todo atinja
sua função social, não se restringindo apenas à propriedade. Assim, se
todas as propriedades urbanas obrassem de forma a atingir seus objetivos,
de bem-estar de população, a cidade estará atingindo sua função social.
Para a realização do presente trabalho, considerado tema atual e de
relevante valor para o meio jurídico, foi analisada a propriedade e o prin-
cípio da função social no decorrer dos tempos, além da evolução positiva-
da do assunto. Assim, houve uma análise histórico-crítica da função so-
cial da propriedade urbana, bem como da cidade, verificando-se a regu-
lamentação e os reflexos que o Estatuto da Cidade trouxe ao assunto,
para compor as premissas de um Estado Democrático de Direito preocu-
pado em tutelar os direitos dos fracos e mais numerosos.
Assim, a nova lei trouxe aplicabilidade às regras constitucionais, es-
clarecendo a função social da propriedade urbana e sua forma de atuação
em cada situação fática, além de criar e regulamentar institutos políticos
e jurídicos a fim de tornar efetivo o desenvolvimento urbano no Brasil.
Uma vinculação importante que traz o referido estatuto social é a
efetiva participação da sociedade na execução do plano diretor. Este
momento muito especial, dá um caráter significativo de democracia, o
que é deveras importante a fim de tornar o espaço urbano mais plural
Logo, acredita-se que não há de questionar-se a relevância do presen-
te assunto, de maneira a trazer interesse não apenas aos articuladores do
Direito, mas a toda a sociedade, a quem o Estatuto da Cidade confere o
“poder” de mudança a atual situação caótica em que se encontram as
cidades, principalmente as médio e grande porte, do país.

vol.4, n.2, 2003 Direito e Democracia 387


A FUNÇÃO SOCIAL DA CIDADE
O Estado Democrático de Direito brasileiro está desempenhando com
pouca eficiência sua função de mediador do desenvolvimento nacional,
não atuando como garantidor da função social da propriedade urbana e da
cidade. Assim, enquanto instituição jurídica e política, deve dar efetivida-
de e proteção ao princípio da função social, in casu, urbana e da cidade,
consagrada na Carta Magna, abandonando a neutralidade e a apoliticida-
de e, assumindo suas funções próprias, transformando as estruturas sociais e
realizando o também princípio constitucional “da igualdade”.
Mukai(1988), antes do advento do Estatuto da Cidade e da própria
Constituição Federal de 1988, asseverava que a cidade deveria cumprir
a sua função social e caberia ao Estado a intervenção na propriedade
privada a fim de regular o processo de urbanização.
O Estado Contemporâneo pode ser caracterizado como intervencio-
nista na ordem econômica, social e política nacional, visando evitar a
saturação e tensão das redes de mobilização e existência social. Esse mo-
delo de autoridade pública, ou seja, intervencionista, embora, segundo
Leal (1998, p. 109), tímida e de maneira bastante insuficiente, “serve à
dignidade humana e à consecução dos direitos fundamentais”.
A cidade , como ensina Leal:

(...)não é uma criação meramente material, de cimento, fer-


ro e asfalto, mas uma expressão da civilização que abarca
desde os aspectos do êxodo rural aos da mais requintada so-
fisticação cultural que os centros adensados e de recursos con-
centrados a propiciar. Assim, o problema da racionalização e
organização dos espaços físicos e demográficos das cidades,
bem como a própria concepção de propriedade urbana, me-
recem maior relevo e atenção dos poderes estatais, até por-
que, se tivermos alcance visual para perceber os problemas
advindos do crescimento desmesurado das cidades, veremos
que a urbanização acelerada causa impactos polivalentes, tais
como: aumento da demanda de serviços públicos urbanos,
elevação das aspirações, aumento dos custos dos serviços ur-
banos, proliferação de áreas de favelização, redução da ren-
da per capita urbana, deterioração ecológica, aumento da

388 Direito e Democracia vol.4, n.2, 2003


taxa de desemprego, aumento da marginalidade social e agra-
vamento da criminalidade. (1998, p.114)

Diante desse contexto, as cidades, sobretudo as de maior tamanho,


de modo geral, ocupando vasto espaço, são entremeadas de vazios. Há
nelas, características de uma urbanização corporativa, onde ocorre espe-
culação fundiária e imobiliária, extroversão e periferização da população,
gerando, diante das dimensões da pobreza, um modelo específico deno-
minado centro-periferia.
O capitalismo monopolista “agrava a diferenciação quanto à dotação
de recursos, uma vez que parcelas cada vez maiores da receita pública se
dirigem à “cidade econômica” em detrimento da “cidade social” “ (San-
tos, 1998, p. 96). Frente isso, as diferenças entre os lugares urbanos se
ampliam cada vez mais onde o planejamento urbano é regido por especu-
lação em detrimento do bem-estar coletivo. A urbanização do Terceiro
Mundo é considerada como variável dependente e resultante de sua in-
corporação no mercado mundial. Portanto, a análise da urbanização não
deve ser feita separadamente das forças econômicas internacionais, nem
do papel do Estado. Deve ocorrer uma adaptação mais exata das tecnolo-
gias, assim como a reformulação do papel do Estado, sendo problemas
importantes a se considerar.
Não podemos considerar uma concepção de cidade sem levarmos em
conta as instituições oriundas das relações de classe. Neste sentido Lefe-
bvre (2001), aduz que o espaço urbano é uma conquista da burguesia, em
detrimento ao proletariado que fica a margem do processo.
Assim, de comum acordo com outras áreas do saber, deve ser buscado
um caminho que conduza a organização do espaço nos países subdesenvol-
vidos, capaz de promover a justa distribuição do povo entre as diferentes
regiões do país, o que supõe, ao mesmo tempo uma melhor distribuição do
poder e da riqueza entre as nações. Além disso, é indispensável a participa-
ção popular, na forma de “gestão democrática”, conforme os arts. 43/45 do
Estatuto da Cidade, assegurando um melhor desenvolvimento urbano.
Para tanto, expõe Mahfus:

Possibilitar a participação democrática dos atores sociais


com a criação de espaços públicos que privilegiem o debate
é de vital importância. Não se apregoa o fim da democra-

vol.4, n.2, 2003 Direito e Democracia 389


cia representativa e a sua transformação em democracia
direta, mas sim a utilização do município como foro privi-
legiado para uma simbiose entre a democracia participativa
e a democracia formal. (2002, p. 82)

Destarte, Grau (1998) afirma que a Administração Pública, se apre-


senta enquanto expressão do Estado agindo de maneira concreta para a
satisfação de seus fins de conservação, de bem-estar individual e coletivo
dos cidadãos e do progresso social. No entanto, também revela um aspec-
to instrumental da democracia, atendida como forma de governo que
conta, necessariamente com procedimentos e mecanismos viabilizadores
da constante participação e interlocução dos cidadãos.
Logo, defende a corrente municipalista, que ao valorizar-se o poder
local (municipal), dando a este maior autonomia política e administrati-
va, haverá maiores condições de enfrentar os problemas que exsurgem do
contexto social da Nação brasileira. Vale ressaltar que a autonomia do
poder público municipal encontra respaldo no art. 35 da Carta Magna
brasileira. Assim, “o avanço na condição jurídico-política do município
oportuniza a este, ser um centro de irradiação de desenvolvimento regio-
nal” (Mahfus, 2002, p.80).
Neste sentido, como já afirmamos anteriormente:

Se o poder público municipal efetivar mecanismos que pos-


sibilitem uma nova dinâmica de interlocução entre os cida-
dãos e os agentes públicos, combinando com isso a própria
autonomia municipal, é certo que teremos uma expectati-
va bastante animadora de realização de políticas que con-
templem a maioria dos cidadãos. (Mahfus,2002, p.82-83)

A cidade deve dar acesso, para o cumprimento de suas funções soci-


ais, para todos aqueles que vivem nela, assegurando-lhes o direito à mo-
radia, aos equipamentos e serviços urbanos, transporte público, sanea-
mento básico, saúde, educação, cultura, lazer, enfim, aos direitos urbanos
que são inerentes às condições de vida na cidade. Cabe ressaltar que o
instrumento básico para a realização da função social, seja da proprieda-
de urbana ou da cidade, é o plano diretor.
Assim, as cidades tem por função a previsão de condições gerais para

390 Direito e Democracia vol.4, n.2, 2003


o desempenho das atividades econômicas de produção, comércio e servi-
ços, além das atividades sociais, culturais e de lazer, todas essas neces-
sárias para o exercício da cidadania.
Fundamental é que os Municípios para darem efetividade à função
social da propriedade urbana e da cidade, estejam preparados e mobiliza-
dos a promover o adequado ordenamento territorial do seu espaço, medi-
ante planejamento e controle do uso, já que isso é de sua competência
exclusiva e não suplementar. Por isso, a execução da política urbana de-
pende enormemente do governo local, que será implementada com base
nos instrumentos definidos pelo Estatuto da Cidade.
Contudo, os problemas enfrentados nas cidades (de médio e grande
porte principalmente), não devem ficar reduzidos apenas ao estudo de
maneira isolada e; do mesmo modo, a solução desses problemas não de-
vem ser analisados unicamente por planejadores administrativos locais,
pois tais problemas estão estreitamente ligados por forças econômicas in-
ternacionais e precisam das decisões do Estado Maior.
Ainda observa-se em análise as palavras de Fernandes que:

Somente uma compreensão mais ampla do papel do Direi-


to no processo de urbanização poderia contribuir para a
promoção das reformas urbana e jurídica há tanto espera-
das, e tão necessário no Brasil, de tal forma que haja uma
maior integração entre as ordens formal e informal, as ci-
dades “legal” e “ilegal”. Da mesma forma, o conhecimento
adequado da realidade urbana e a condição para a
materialização plena do “direito à cidade”, é que é certa-
mente um dos principais estágios no sentido da consolida-
ção dos direitos da cidadania, políticos e socio-econômi-
cos, no Brasil. (1998, p.11)
O artigo 182, § 2° da CF/88 subordinou o cumprimento da função
social da propriedade urbana às exigências da ordenação da cidade, bem
como o fez o art. 39 da Lei 10.257/01, estabelecendo diretrizes a serem
observadas no gerenciamento dos espaços privados localizados na zona
urbana, ou seja, aqueles que venham ao encontro dos princípios e garan-
tias fundamentais da cidadania brasileira, priorizadas sobre os interesses
privados ou setoriais por ventura existentes. Essas garantias serão efica-

vol.4, n.2, 2003 Direito e Democracia 391


zes, com políticas que ensejam o desenvolvimento urbano em todos os
segmentos, assegurando, o máximo possível, o bem-estar da coletividade
de acordo com a região em que estejam localizadas.
Por fim, devem ser encontradas condições adequadas para as relações
sociais na cidade, tanto econômicas quanto políticas, para que esta cum-
pra sua função social, de maneira que as áreas urbanas sejam adequada-
mente aproveitadas, atendendo ao máximo o interesse da coletividade.
E, para isso deve-se se fazer uso dos institutos jurídicos disciplinados pelo
Estatuto da Cidade, lei esta que pode ser considerada uma verdadeira
revolução social na propriedade urbana, conseqüência do processo de
transformações que converteu o Brasil rural em um país urbano.
A Constituição Federal de 1988, no âmbito do desenvolvimento urba-
no, flexibilizou a ação executiva e legislativa quando comparada às Cons-
tituições anteriores. Assim, à União foi atribuída a competência de legis-
lar, instituindo normas gerais de direito urbanístico, diretrizes para o de-
senvolvimento urbano, inclusive habitação, saneamento básico, transpor-
tes urbanos e desapropriação, além, é claro, das competências executivas
previstas no art. 23, CF/88. Quanto aos Estados, foi dada a competência
legislativa plena e suplementar, conforme o caso, para atender as peculi-
aridades em matéria de direito urbanístico, ou seja, a proteção do patri-
mônio histórico, cultural, turístico, paisagístico e florestal; protegendo o
meio ambiente e realizando um controle efetivo da poluição.
Referente aos municípios, a estes compete legislar e prestar os serviços
públicos de interesse local, suplementar a legislação federal e estadual, no
que couber, e promover adequado ordenamento territorial, mediante pla-
nejamento e controle do uso, parcelamento e ocupação do solo urbano.
Oportuno citar Motta (CEPAM):

Paralelamente, a Constituição Federal, no art. 23, atribuiu


também ao município a competência para proteger docu-
mentos, obras e outros bens de valor histórico, artístico ou
cultural; proteger o meio ambiente e combater a poluição;
preservar as florestas, a fauna e a flora; fomentar a produ-
ção agropecuária e organizar o abastecimento alimentar;
promover programas de construção de moradias e a
melhoria das condições habitacionais e d saneamento bá-
sico; combater as causas de pobreza e os fatores de

392 Direito e Democracia vol.4, n.2, 2003


marginalização, promovendo a integração social dos seto-
res desfavorecidos, entre outras atribuições. (2001, p. 18)

O Capítulo II - DA POLÍTICA URBANA (art. 182 e 183, CF/88),


integrante do Título VII - DA ORDEM ECONÔMICA E FINANCEI-
RA, representa importante ordenamento constitucional sobre desenvol-
vimento urbano, quais sejam: a) a formulação de lei federal dispondo
sobre diretrizes gerais de desenvolvimento urbano, e objetivando uma
política de ordenação da função social da cidade garantindo o bem-estar
de seus habitantes (art. 182, caput); b) explicitação do princípio constitu-
cional da função social da propriedade, cujo cumprimento far-se-á com
base no plano diretor (art. 182, § 2°), e elaboração de lei federal que
regulamente a faculdade conferida ao Poder Público municipal de pro-
mover o adequado aproveitamento do solo urbano não edificado, subuti-
lizado ou não utilizado (art. 182, §4°, I, II, III).
Portanto, conforme o disposto no art. 182, CF/88, a lei federal deve
dispor sobre diretrizes gerais da política urbana, que será executada pelo
Poder Público municipal, explicitando os temas de exclusiva competên-
cia federal - regulamentação da propriedade e de sua função social.

O ESTATUTO DA CIDADE
Assim, em 10.07. 2001, foi promulgada a Lei 10.257, autodenominada
Estatuto da Cidade, estabelecendo princípios e normas de Política Urba-
na para todo o território nacional. Apresenta-se, dessa maneira, como
uma lei federal de caráter nacional, a fixar normas de Direito Urbanístico
a todo o território.
É importante, nesse momento, tratar sobre Urbanismo e Direito Urba-
nístico, pois com as transformações das relações sociais, inclusive com a
expansão das cidades, muitas vezes em virtude da migração rural para a
área urbana, surgem preocupações com os aspectos urbanos, dando ense-
jo ao surgimento do Direito Urbanístico.
Cumpre observar o que relata Alfonsin sobre a conceituação da regu-
larização fundiária urbana:

(...) é o processo de intervenção pública, sob os aspectos

vol.4, n.2, 2003 Direito e Democracia 393


jurídico, físico e social, que objetiva legalizar a permanên-
cia de populações moradoras de áreas urbanas ocupadas
em desconformidade com a lei para fins de habitação, im-
plicando acessoriamente melhorias no ambiente urbano do
assentamento, no resgate da cidadania e da qualidade de
vida da população beneficiária. (1997, p. 24)

A desproporção entre o crescimento da população urbana com relação


aos habitantes da área rural, em um verdadeiro processo de urbanização,
leva a ocorrência de uma intensa concentração urbana, implicando a
ocorrência de problemas urbanos que necessitam ser alterados pela urba-
nificação, num processo de correção urbana, ou seja, ordenando espaços
habitáveis; assim, surgiu o urbanismo como instrumento técnico e cientí-
fico. O urbanismo, além de visar corrigir distorções urbanas, mediante
regulamentos sanitários e instrumentos urbanísticos, procura organizar e
planejar a ocupação de espaços urbanos, tendo em vista o bem-estar da
coletividade, permitindo uma integração harmônica das funções da cida-
de, consistentes na habitação, trabalho, recreação e circulação.
Macruz e Macruz (CEPAM) ensinam:

Em razão do exercício da atividade urbanística, geram-se


conflitos na medida em que os interesses particulares são
atingidos pela atuação do Poder Público. Há um confronto
entre o direito coletivo à cidade que cumpra com as fun-
ções sociais e o direito individual da propriedade. Ambos
são direitos consagrados constitucionalmente, e seus con-
tornos devem estar delineados em lei, assim como normas
legais, de maneira inafastável, devem regular e fundamen-
tar a atividade urbanística que intervém no domínio priva-
do. Essas regras urbanísticas compõem o Direito Urba-
nístico... (2001, p. 50)

Assim, o Direito Urbanístico, segundo Hely Lopes Meirelles, é “um


ramo do Direito Público destinado ao estudo e formulação dos princípios
e normas que devem reger os espaços habitáveis, no seu conjunto cidade-
campo”( 1997, p.371).
O Direito Urbanístico é de fundamental importância no que diz res-
peito à ordenação do território municipal, com especial enfoque na zona

394 Direito e Democracia vol.4, n.2, 2003


urbana. É através desse ramo do direito que o Poder Público pode atuar
sobre as relações urbanas, melhorando a condição de vida dos seus habi-
tantes. Portanto, a falta de legislação urbanística, ou mesmo a falta de
homogeneidade da mesma, resulta na inobservância dos direitos funda-
mentais, individuais e coletivos, no que diz respeito à qualidade de vida.
Cabe ressaltar que o Brasil nas últimas três décadas passou por intenso
e anárquico processo de urbanização, e a sociedade brasileira apresenta
um perfil urbano, sendo que no último censo realizado 85% da população
vive em cidades.
Importante é a análise de Pessoa:

O que se percebe, contudo, com raras exceções, é que o


vertiginoso processo de urbanização tem gerado enormes
problemas sociais, que se vêm agravando nos últimos tem-
pos por falta de uma política urbana consistente, que deve
envolver esforços conjugados da sociedade civil brasileira e
das três esferas de governo, União, Estados e municípios,
mas principalmente destes últimos. De fato, embora os mu-
nicípios seja o lugar por excelência das “políticas urbanas”, o
drama das cidades exige a coordenação de ações nas três
esferas de governo, visto que diversos problemas sociais que
degradam a vida nas cidades dependem da implementação
de políticas regionais e nacionais, como, por exemplo, políti-
ca de emprego, de fixação do homem no campo, de segu-
rança pública e de habitação. (2001, p. 54)

As cidades brasileiras possuem uma organização caótica, principal-


mente as médias e as grandes, onde o ambiente urbano encontra-se de-
gradado, deteriorado e desumanizado, comprometendo a cidadania e a
qualidade de vida da população.
Ainda, citando Pessoa, alguns problemas são nitidamente visíveis:

Alguns problemas saltam aos olhos: “inchamento das ci-


dades”; “favelização das periferias”; ocupação caótica, não
planejada e antidemocrática dos espaços urbanos; especu-
lação imobiliária; verticalização das cidades, com o au-
mento crescente do número de edifícios de apartamento;

vol.4, n.2, 2003 Direito e Democracia 395


deterioração da paisagem urbana; deterioração do meio
ambiente; trânsito caótico de veículos; carência de habita-
ção; falta de saneamento básico; falta de espaços de lazer,
principalmente para as populações de baixa renda;
loteamentos irregulares; inadequada utilização do solo, etc.
(2001, p. 54)

A partir desse contexto, o Estatuto da Cidade vêm para fixar diretri-


zes, princípios, regras e instrumentos jurídicos de política urbana, tendo
por objetivo a organização dos espaços habitáveis como pressuposto essen-
cial de uma convivência democrática.
Assim, o citado Estatuto visa equilibrar socialmente as discrepâncias
existentes no uso da propriedade urbana, visando que esta cumpra sua
função social, harmonizando o convívio em sociedade, pois como destaca a
Constituição Cidadã o interesse dos demais impera sobre a individualidade
Vejamos, na seqüência, princípios e instrumentos trazidos pelo Estatu-
to da Cidade para uma nova política urbana.
A Lei 10.257/01, num primeiro momento, fixa princípios informadores
para uma política urbana nacional, bem como versa o seu art. 2°, que ela
seja “ordenada ao pleno desenvolvimento das funções sociais da cidade e
da propriedade urbana”.
Segundo Pessoa são eles, dessa forma, descritos:

Direito às cidades sustentáveis. (...) Deve ser entendido


como direito à terra urbana, à moradia, ao saneamento
ambiental, à infra-estrutura urbana, ao transporte e aos
serviços públicos, ao trabalho e ao lazer, para presentes e
futuras gerações (...).

Gestão democrática das cidades. (...) de grande importân-


cia para um Estado democrático de Direito fundado na ci-
dadania (CF, art. 1°). Diz respeito à “participação da po-
pulação e de associações representativas dos vários segmen-
tos da comunidade na formulação, execução e acompanha-
mento de planos, programas e projetos de desenvolvimento
urbano (art. 2°, II). (...) Doravante, a realização de deba-
tes, audiências e consultas públicas em torno das propostas

396 Direito e Democracia vol.4, n.2, 2003


de leis orçamentárias será condição sine qua non para sua
aprovação pela Câmara Municipal. A participação demo-
crática deverá também ser assegurada na elaboração do
Plano-Diretor dos municípios.

Planejamento urbano. (...) No planejamento deve-se ter


clareza do que seja possível, desejável e prioritário para a
cidade. Instrumento por excelência deste planejamento é o
Plano-Diretor, aprovado por lei municipal e sintonizado
com a legislação orçamentária do município (art. 40) (...).

Ordenação do uso do solo urbano. A normatização e o


controle do uso do solo urbano é outro princípio funda-
mental da política urbana definida pelo EC (art. 2°, VI).
Tal normatização faz-se premente no sentido de se evita-
rem alguns males e distorções, tais como: a utilização ina-
dequada dos imóveis urbanos; a proximidade de usos in-
compatíveis ou inconvenientes; o parcelamento do solo, a
edificação ou o uso excessivos ou inadequados em relação
à infra-estrutura urbana; a instalação de empreendimen-
tos ou atividades que possam funcionar como pólos gera-
dores de tráfego, sem a previsão de infra-estrutura corres-
pondente; a retenção especulativa de imóvel urbano; a de-
terioração das áreas urbanizáveis; a poluição e a degrada-
ção ambiental.

Justa distribuição dos ônus e benefícios. O processo de


urbanização deve dar-se de forma socialmente justa, com
uma eqüitativa distribuição de seus ônus e benefícios (art.
2°, IX). É justa a recuperação dos investimentos do Poder
Público de que tenha resultado a valorização de imóveis
urbanos (inc, XI). Neste sentido, os proprietários de imó-
veis devem satisfazer os gastos da urbanização, dentro dos
limites do benefício dela decorrente para eles, como com-
pensação pela valorização de terrenos ou melhoria das
condições de edificabilidade de seus lotes. Volta a ressurgir
o instituto da contribuição de melhoria. (2001, p. 54/ 55)
Destarte, o Estatuto da Cidade estabeleceu normas de ordem pública
e interesse social, que regulam o uso da propriedade urbana em prol de

vol.4, n.2, 2003 Direito e Democracia 397


bem estar coletivo, da segurança e do bem estar dos cidadãos e do meio
ambiente.
O art. 4° da Lei 10.254/01 prevê diversos instrumentos a serem utiliza-
dos pelas unidades federadas, mas, sobretudo, pelos municípios para a
realização de uma política urbana. Dessa maneira, consoante o artigo
supra citado são eles assim descritos sob um panorama geral: “(...) I -
planos nacionais, regionais e estaduais de ordenação do território; II - planeja-
mento de regiões metropolitanas; III - planejamento municipal, em especial:
plano-diretor; disciplina do parcelamento, do uso e da ocupação do solo; zone-
amento ambiental, gestão orçamentária participativa; leis orçamentárias; IV -
institutos tributários e financeiros: IPTU; contribuição de melhoria; incentivos
fiscais; V - institutos jurídicos e políticos: desapropriação; servidão administra-
tiva; limitações administrativas; tombamento; instituição de zonas especiais de
interesse social; concessão de direito real de uso; parcelamento, edificação ou
utilização compulsórios; usucapião especial de imóvel urbano; assistência téc-
nica e jurídica gratuita para as comunidades menos favorecidas; referendo e
plebiscito popular; VI - Estudo de prévio impacto ambiental (EIA) e Estudo
prévio de impacto de vizinhança (EIV)”.
Nesse contexto sobre os instrumentos da política urbana, o Capítulo II
(Dos Instrumentos da Política Urbana) do Estatuto da Cidade é o disci-
plinador de tais instrumentos, valendo ainda citar Flores e Santos:

(...) Artigos foram reservados para tratar dos instrumen-


tos jurídicos do parcelamento, edificação ou utilização com-
pulsórios, do IPTU progressivo no tempo, da desapropria-
ção com pagamento em títulos, da usucapião especial de
imóvel urbano, da concessão de uso especial para fins de
moradia e, por fim, do direito de superfície. O direito de
preempção e a outorga onerosa do direito de construir tam-
bém merecem realce na recente legislação. Não descui-
dou, o Estatuto da Cidade, de consignar expressamente a
possibilidade de os Municípios, através de lei específica,
procederem a operações urbanas consorciadas. Para ter-
minar esse capítulo tratou o legislador do instituto da trans-
ferência do direito de construir a elaboração de estudo de
impacto de vizinhança (EIV). (2002, p. 142)

Continuando, o Capítulo III (Do Plano Diretor) trata do plano diretor,

398 Direito e Democracia vol.4, n.2, 2003


e como dispõe o art. 40 do estudado Estatuto é “instrumento básico da
política de desenvolvimento e expansão urbana”, determinando, pois, que
todos os instrumentos da política urbana passem obrigatoriamente pelo
plano diretor da cidade.
Desse modo, este é o instrumento que fixa metas, programas e projetos
para o adequado planejamento do Município. No entanto, Mukai acredi-
ta que o plano diretor deveria ser criado com objetivos discricionários e
não com metas fixas como está sendo realizado. Assim, versa o autor:

(...) deveria conter normas disposições e diretrizes bastan-


te gerais, fixando não uma, mas várias alternativas, como
as normas discricionárias, que deixam ao administrador
margens de liberdade de escolha a seguir para, em seu
descortínio, atender da melhor forma o bem comum, ou
em função do Texto Constitucional, que dispõe que a pro-
priedade urbana cumpre a sua função social quando atende
as normas fundamentais do plano diretor (art. 182, § 2°),
concretizando, efetivamente, no plano jurídico-positivo, esse
princípio tantas vezes repetido em todas as nossas últimas
Constituições. (2001, p.33)

No Quarto Capítulo (Da Gestão Democrática da Cidade), o Estatuto


da Cidade invoca a participação da sociedade civil através da Gestão De-
mocrática da Cidade, onde os cidadãos devem acompanhar, fiscalizar e
atuarem de forma efetiva nas decisões e empreendimentos da sua cidade.
A Lei 10.257/01 disciplina a Gestão Democrática sob três aspectos
constitucionais como mostra Mukai:

Em primeiro lugar, o artigo inaugural da Constituição da Re-


pública diz que a República Federativa do Brasil constitui-se
em Estado Democrático de Direito. Em segundo lugar, não
nos esqueçamos de que o parágrafo único do art. 1° da mes-
ma Constituição afirma que “todo o poder emana do povo,
que o exerce por meio de representantes eleitos ou direta-
mente”, nos termos da Constituição. Em terceiro lugar, ob-
servamos que o art. 29 da Carta dispõe que os municípios,
em suas Leis Orgânicas, deverão observar, dentre outros pre-

vol.4, n.2, 2003 Direito e Democracia 399


ceitos, o previsto no seu inciso XII - cooperação das associa-
ções representativas no planejamento municipal. (2001, p.51)

Logo, a questão da participação popular tratada no Estatuto da Cida-


de é plenamente justificável constitucionalmente.
Por fim, no Capítulo V, trata a estudada Lei Federal das Disposições
Gerais, onde o art. 46 cria o Consórcio imobiliário, que consiste na viabi-
lização de planos de urbanização ou edificação, onde o proprietário, após
ser notificado compulsoriamente (parcelar, edificar, ou utilizar o imóvel)
transfere seu imóvel para o Poder Público Municipal, e após a realização
das obras, recebe como pagamento unidades imobiliárias, devidamente
urbanizadas ou edificadas.
Além disso, nesse Capítulo é possível a utilização da Ação Civil Públi-
ca para coibir as ações que atentem contra a ordem urbanística. Assim, é
a tentativa encontrada para responsabilizar o agente público diante da
omissão, além da responsabilização dos prefeitos por ato de improbidade
administrativa.

CONSIDERAÇÕES FINAIS
O Estatuto da Cidade tramitou por doze anos no Congresso até ser
sancionado pelo presidente Fernando Henrique. Mesmo assim, a demora
não garantiu seu reconhecimento, entre peritos em legislação e urbanis-
tas, como instrumento eficaz de regularização de áreas urbanas. No en-
tanto, acredita-se ser imensurável e de grande relevância para o progres-
so urbano a referida Lei em estudo, pois se mostra suficiente para resolver
problemas no âmbito das cidades, sendo necessárias, para tanto, medidas
políticas, administrativas jurídicas e tributárias para maximizar a eficácia
do Estatuto, visando um desenvolvimento, primeiramente local, para, após,
refletir de maneira global em todo Estado nacional.
Os instrumentos da política urbana, trazidos pelo Estatuto da Cidade,
consubstanciam-se em verdadeiras ferramentas para o Poder Público
Municipal enfrentar a falta de planejamento urbano, objetivando ameni-
zar as desigualdades territoriais.
Indispensável, como já dito alhures, é que, o tema tratado no trabalho em

400 Direito e Democracia vol.4, n.2, 2003


questão, não é passível de esgotamento, merecendo pela sua abrangência,
complexidade e importância um estudo mais detalhado, a fim de que possa
elucidar as questões de grande importância para os operadores do direito.
Para tanto, bom seria que os administradores municipais dirigissem
mais atenção para os problemas de regularização fundiária nas cidades,
tentando, é claro, a longo prazo reverter essa situação caótica de aglome-
rações clandestinas e favelas sem condições de habitação, com a efetiva
aplicação do Estatuto da Cidade. Mas para isso, se faz necessário a coope-
ração de entidades representativas da sociedade civil no planejamento
municipal, através da participação popular, seja em ONGs ou Conselhos
e Associações Civis, na gestão local, destinando-se a regular a vida em
sociedade, ordenando os interesses coletivos.

REFERÊNCIAS
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194 p.

402 Direito e Democracia vol.4, n.2, 2003


A criminalidade dos colarinhos

Collar criminality

LUIZ LUISI
Professor Titular do Curso de Mestrado em Direito-ULBRA/Canoas, professor livre-docente e do Curso
de Especialização em Direito Penal, da Faculdade de Direito/UFRGS.

RESUMO
O autor faz uma breve análise dos crimes de colarinho branco, a partir de uma
visão garantista.
Palavras-chave: Direito Penal, White collar, criminalidade, garantismo.

ABSTRACT
Considering the principle of maximum certainty, the author makes a brief analysis
of white collar crimes.
Key words: Criminal law, white collar criminality, principle of maximum
certainty.

Uma corrente da criminologia, a chamada criminologia radical, assu-


mindo uma postura na sua essência político-jurídica, tem entendido que
a criminalidade tem suas raízes nas iniqüidades sociais. Estas seriam as
geradoras da delinqüência. Não se pode negar que muitos crimes têm na
sua origem as injustiças de uma sociedade que distribui de forma desi-
gual os bens necessários à todos para uma vida humana digna. Todavia no
mundo contemporâneo, perigosas e “modernas” modalidades delituosas
tem sua causa na ânsia de riqueza e de bem estar. É o que ocorre com a
criminalidade econômica, lesando o patrimônio de milhares de poupado-

Direito e Democracia Canoas vol.4, n.2 2º sem. 2003 p.403-406


vol.4, n.2, 2003 Direito e Democracia 403
res, que, com sacrifício, conseguiram amealhar algumas economias. É o
caso da delinqüência ecológica, principalmente das grandes indústrias,
que poluem a atmosfera, os mares, os rios, pondo em perigo a saúde de
milhares de pessoas, e nas suas nuanças mais graves ameaça a própria
sobrevivência da espécie humana. Os agentes desses delitos não são “os
marginalizados”, mas pessoas de recursos, bem postas na vida, e que com
essas reprováveis condutas visam aumentar suas fortunas.
Estes novos tipos de crime tem ensejado interessantes estudos de cri-
minólogos de vários países. Estes trabalhos dizem respeito ao que se con-
vencionou chamar de criminalidade dos colarinhos.
O primeiro desses estudiosos, a definir certos delinqüentes usando a figu-
ra do colarinho foi o criminalista norteamericano Edwin Sutherland. A ele se
deve ter batizado a delinqüência de pessoas de expressiva condição financei-
ra e prestígio social como a criminalidade do colarinho branco. Estes delitos
ocorrem no contexto das atividades econômicas, e estão intimamente ligadas
ao processo de produção e comercialização de bens e serviços.
A clássica obra de Sutherland, intitulada WHITE COLLAR CRIME,
data de 1949. A primeira versão omite o nome das empresas e empresári-
os, autores dos crimes nela noticiados. A editora Dryden Press recusou-se
a correr o risco de vir a suportar, se publicados os nomes, prováveis e
pesadas indenizações. Mas havia o propósito de uma nova e integral edi-
ção em 1953, quando, o término de prazo prescricional viabilizaria a pu-
blicação do inteiro texto do livro. Todavia o clima político nos Estados
Unidos em 1953, dominado pelo Maccartismo, não era propício para a
publicação projetada. E somente em 1983 o texto integral da obra de
Sutherland foi editado pela Yale University Press.
Os crimes do colarinho branco estão presentes nas legislações penais
contemporâneas. No Brasil, são muitas as leis que os prevêem, em dezenas
de tipos. Dentre outras são de lembra-se as Leis nº 7.942, (crimes contra a
ordem financeira nacional), de 11.06.1988; nº 8137, (crimes contra a or-
dem tributária e contra a ordem econômica), de 27.12.1990; nº 8.078, (Có-
digo do Consumidor), de 11.09.1991. Também figuram no Código Penal,
em cuja parte especial foram inseridos recentemente, como nos artigos 168
A (apropriação indébita previdenciária), prevista nas Lei nº 9.983/2000. E,
ainda, artigo 359 A, B, C, D, E, F, G e H, previstos na Lei nº 10.028/2000.
É de se ressaltar que a criminalidade dos colarinhos não é exclusivida-
de dos chamados Estados Capitalistas. Um penalista russo, Kolakowski,

404 Direito e Democracia vol.4, n.2, 2003


denominou de crimes do colarinho vermelho, certo tipo de delinqüência
muito comum nos países onde se implantou de fato o socialismo. Trata-se
da criminalidade de burocratas corruptos, e que gerou uma desconfiança
geral no sistema e na possibilidade de se chegar a um Estado fundado na
distribuição justa da riqueza.
A difusão deste tipo de criminalidade não passou despercebida ao legis-
lador soviético. Quando da reforma penal formalizada no Código Penal de
1960, foi inserido em seu texto o capítulo dos “Delitos contra a Propriedade
Socialista”, até então inexistente no direito penal russo. Dentre os delitos
previstos no capítulo mencionado merece especial menção o do artigo 93
bis, ou seja, “A apropriação de bens estatais ou sociais em quantidade espe-
cialmente grande”, que tem como uma de suas sanções a pena de morte.
Abstraindo a legalidade do delito, ou seja, a necessidade de sua pre-
visão em lei, e, pois, em uma visão discutível e sem rigor técnico, alguns
criminalistas têm falado de uma terceira modalidade de criminalidade
dos colarinhos. FERRANDO MANTOVANI denominou-a de delinqüên-
cia do colarinho azul. Trata-se de fatos que não são sob o aspecto técnico
jurídico fatos criminosos, por não estarem legalmente previstos. Todavia a
lesão causada por esses fatos à valores fundamentais das comunidades,
dão aos mesmos uma profunda conotação anti-social, e provocam uma
generalizada reprovação. Exemplo desses fatos são os altos proventos vo-
tados pelos Parlamentos em benefício dos próprios legisladores, em países
onde os salários em geral, e a renda per capita, são manisfestamente bai-
xos. O referido Mestre de Florença dá como espécie da criminalidade do
colarinho azul “certos comportamentos corporativos, sentidos e censura-
dos pela maior parte dos cidadãos como anti-sociais e desestabilizantes,
realizados não raramente sob o escudo formal de mal entendidas liberda-
des sindicais e de direitos dos marginalizados, tais como o grevismo indis-
criminado e selvagem, a danificação das instalações, etc.”.
Estes crimes, como é sabido, gozam de uma alta taxa de imunidade,
pois seus autores são por vezes dificilmente identificáveis, e quando pro-
cessados são raramente condenados por terem a disposição defesas técni-
cas altamente capazes. E em razão do poder financeiro, prestígio e rela-
ções, podem, (nem sempre), interferir e pressionar as autoridades polici-
ais, e mesmo judiciárias. Todavia em alguns países, é o caso da Itália, a
tendência vem mudando, e o número de delinqüentes do colarinho pro-
cessados e condenados tem aumentado ao ponto de renomados advoga-
dos criminais terem acusado excessos de presunções contra os agentes do

vol.4, n.2, 2003 Direito e Democracia 405


mundo econômico, a ponto de dificultar a defesa, e levar a decisões por
vezes flagrantemente injustas. É o caso da famosa operação “mani puliti”,
ocorrida na Itália, onde foram decretadas algumas centenas de prisões
preventivas, mas um número inexpressivo de condenações.
Em verdade, nessas modalidades de delinqüência, como deve ocorrer
com as demais, o caminho correto de sua repressão deve ter por parâme-
tro a lei interpretada de modo adequado. E esta há de ser aplicada sem
clemência e favores, mas, também, sem excesso, não se violentando os
princípios fundamentais do direito penal garantista, e tendo presente a
clássica lição dos romanos: SUMMUM JUS, SUMMA INJURIA.

406 Direito e Democracia vol.4, n.2, 2003


Observância e aplicação dos tratados
internacionais na Convenção de Viena
sobre o Direito dos Tratados de 1969

International treaty observance and


application in 1969 Viena
Convention on the Law of Treaties

VALERIO DE OLIVEIRA MAZZUOLI


Mestre em Direito Internacional pela Faculdade de Direito da Universidade Estadual Paulista (UNESP) –
Campus de Franca. Professor de Direito Internacional Público e Direitos Humanos no Instituto de Ensino Jurídico
Professor Luiz Flávio Gomes (IELF), em São Paulo. Professor de Direito Internacional Público nas Faculdades
Integradas Antônio Eufrásio de Toledo, em Presidente Prudente-SP.Advogado no Estado de São Paulo.

RESUMO
Este trabalho se propôs analisar o problema da observância (cumprimento) e
aplicação dos tratados internacionais na Convenção de Viena sobre o Direito
dos Tratados, de 1969.
Palavras-chave: Direito internacional, tratados internacionais, interpretação
dos tratados.

RESUMO
The purpose of this work is to analyze the problem of observance (accomplish-
ment) and application of international treaties in 1969 Vienna Convention on
the Law of Treaties.
Key words: International law, international treaties, treaty interpretation.

Direito
vol.4, e Democracia
n.2, 2003 Canoas
Direito e vol.4, n.2
Democracia 2º sem. 2003 p.407-424407
INTRODUÇÃO
Este trabalho se propôs analisar o problema da observância (cumpri-
mento) e aplicação dos tratados internacionais na Convenção de Viena
sobre o Direito dos Tratados, de 1969. E esta matéria é tratada nos artigos
26 a 30 da referida Convenção, que estudaremos a seguir.
Para tanto, em primeiro lugar, estudaremos, brevemente, o processo de
formação e entrada em vigor dos tratados, para, num momento posterior,
desvendar o modo pelo qual a Convenção de Viena sobre o Direito dos
Tratados, de 1969, trata do problema da observância e aplicação dos tra-
tados internacionais concluidos entre Estados.

BREVES NOTAS SOBRE O PROCESSO DE


FORMAÇÃO E ENTRADA EM VIGOR DOS
TRATADOS
A Convenção de Viena sobre o Direito dos Tratados, de 1969, chama-
da por muitos de “Código dos Tratados”, teve como uma de suas primeiras
preocupações a de definir precisamente o que se entende por tratado in-
ternacional. Assim foi que a Convenção, em seu art. 2.º, definiu o tratado
como sendo um “acordo internacional celebrado por escrito entre Esta-
dos e regido pelo direito internacional, quer conste de um instrumento
único, quer de dois ou mais instrumentos conexos, qualquer que seja sua
denominação particular” (art. 2.º, § 1.º, a).1
Trata-se, portanto, de um acordo formal concluído entre os sujeitos de
direito internacional público, regido pelo direito das gentes, visando a pro-
duzir imprescindivelmente efeitos jurídicos para as partes contratantes.2
Ou, na definição de BEVILÁQUA: “Tratado internacional é um ato jurídi-
co, em que dois ou mais Estados concordam sobre a criação, modificação
ou extinção de algum direito”, completando que a “definição acima ex-
posta abrange todos os atos jurídicos bilaterais ou multilaterais do direito
público internacional, que, realmente, podem ser designados pela de-

1
Para o estudo da matéria vide VALERIO DE OLIVEIRA MAZZUOLI, Tratados internacionais: com comentários à Convenção
de Viena de 1969, São Paulo: Editora Juarez de Oliveira, 2000, pp. 21 e ss.
2
Cf. JOSÉ FRANCISCO REZEK. Direito internacional público: curso elementar, 6.ª ed. São Paulo: Saraiva, 1996, p. 14.

408 Direito e Democracia vol.4, n.2, 2003


nominação geral de tratados, mas que recebem, na prática e nos livros de
doutrina, qualificações diversas”.3
Os tratados e convenções internacionais são atos, em princípio, sole-
nes, cuja conclusão requer a observância de uma série de formalidades
rigorosamente distintas e sucessivas. São quatro as fases pela qual têm de
passar os tratados solenes, até sua conclusão: a) a das negociações preli-
minares; b) a da assinatura ou adoção, pelo Executivo; c) a da aprovação
parlamentar (referendum) por parte de cada Estado interessado em se tor-
nar parte no tratado; e, por fim, d) a da ratificação ou adesão do texto
convencional, concluída com a troca dos instrumentos que a consubstan-
ciam. Esta última formalidade, como explica MAROTTA RANGEL, tem a
finalidade de vincular juridicamente os signatários, de tal sorte que, a
partir dela, deve o tratado internacional ser observado estritamente, nos
limites de seus termos, pelas partes contratantes.4
Antes da ratificação, todos os direitos e obrigações expressos no ato
internacional, ficam restritos às relações mútuas dos contratantes, não
tendo se incorporado, ainda, no ordenamento jurídico interno desses
mesmos Estados.5
No Brasil, após a sua ratificação, o tratado, ainda, é promulgado por
decreto do Presidente da República, e publicado no Diário Oficial da União.
São etapas complementares adotadas pelo Estado brasileiro para que os
tratados possam ter aplicabilidade e executoriedade internas.
Para MIRTÔ FRAGA, o tratado internacional, regularmente concluído, “é
uma fonte de direito, expressamente prevista na Constituição, produzida com
a colaboração externa, ao lado de outras, emanadas, apenas, de órgãos inter-
nos. A sua promulgação é conseqüência desse fato constatado e, ao contrário
do que se pensa, não é, apenas, prática que se estabeleceu, mas exigência
constitucional implícita. Não tem o efeito de transformá-lo em direito inter-
no, mas tão-só o de conferir-lhe força executória. Ao aplicar a norma con-
vencional, o Poder Judiciário aplica o próprio tratado (Direito Internacional)
e não o direito nacional (o produzido, apenas, pelos órgãos internos) em que,
supostamente se tenha transformado por via do decreto de promulgação”.6

3
CLÓVIS BEVILÁQUA. Direito público internacional, Tomo II, 2.ª ed. Rio: Freitas Bastos, 1939, p. 13.
4
VICENTE MAROTTA RANGEL. “Integração das convenções de Genebra no direito brasileiro”. In: Revista do Instituto
de Pesquisas e Estudos Jurídico-Econômico-Sociais, ano II, n.º 3. Bauru: Instituição Toledo de Ensino, jan./mar.
1967, pp. 201-202.
5
Cf. VICENTE MAROTTA RANGEL. Idem, p. 202.
6
MIRTÔ FRAGA. O conflito entre tratado internacional e norma de direito interno: estudo analítico da situação do tratado
na ordem jurídica brasileira. Rio: Forense, 1998, p. 127.

vol.4, n.2, 2003 Direito e Democracia 409


A Convenção de Viena tomou, também, a providência de regulamen-
tar os requisitos para a conclusão e entrada em vigor dos tratados. Assim,
para que um tratado seja considerado válido, requer-se que as partes
contratantes (Estados ou organizações internacionais) tenham capacida-
de para tal, que os seus agentes signatários estejam legalmente habilitados
(por meio de carta de plenos-poderes, assinada pelo Chefe do Executivo e
referendada pelo Ministro das Relações Exteriores), que haja mútuo con-
sentimento (que se revela no livre direito de opção do Estado, manifestado
em documentação expressa), e que o seu objeto seja lícito e possível (por-
que a promessa de uma prestação de caráter absoluto, amoral ou irreali-
zável, é incapaz de formar um vínculo jurídico).7
Segundo a Convenção (art. 6.º), todos os Estados têm capacidade
para celebrar tratados, devendo eles porém, na realização de negociações
junto ao governo de país estrangeiro, atuar através de seus representan-
tes, devidamente autorizados a praticar atos internacionais em seu nome
(plenipotenciários – detentores dos plenos poderes), à exceção daquelas
pessoas que em virtude do cargo que ocupam estão dispensadas de tal
autorização (v.g., os Chefes de Estado, os Chefes de Governo e o Ministro
das Relações Exteriores).
Os Chefes de Estado (ou de Governo, dependendo do sistema adota-
do em cada Estado) têm, em razão do cargo que exercem, capacidade
originária, que prescinde lhes seja exigida qualquer credencial. Os Minis-
tros das Relações Exteriores (ou dos negócios estrangeiros como denomi-
nados em alguns Estados, ou ainda os Foreign Secretary ou Secretary of
State) e os Chefes de Missão Diplomática, por sua vez, têm capacidade
derivada para a celebração de tratados, com os mesmos poderes dos Che-
fes de Estado ou de Governo, uma vez investidos em seus respectivos
cargos. São plenipotenciários ou mandatários que, em virtude de suas
funções, estão dispensados da apresentação da carta de plenos poderes.
Mas esta isenção limita-se aos tratados celebrados entre o Estado que o
acolhe e o que ele representa e, de acordo com o que dispõe a Convenção
de Viena (art. 7.º , n.º 2, b), vai tão-somente até a adoção do seu texto.8
O próprio conceito de “plenos poderes” dado pelo art. 2.º, § 1.º, c, da

7
Cf. HILDEBRANDO ACCIOLY. Tratado de direito internacional público, Tomo II. Rio de Janeiro: Imprensa Nacional,
1934, pp. 402-407.
8
Cf. MARIA DE ASSIS CALSING. O tratado internacional e sua aplicação no Brasil. Dissertação de mestrado em Direito.
Brasília: Universidade de Brasília, 1984, p. 25.

410 Direito e Democracia vol.4, n.2, 2003


Convenção de Viena já induz essa idéia. Para o referido dispositivo os ple-
nos poderes consubstanciam-se em um documento expedido pela autorida-
de competente de um Estado e pelo qual são designadas uma ou várias
pessoas para representá-lo na negociação, adoção ou autenticação do texto
de um tratado, para manifestar o consentimento do Estado em obrigar-se
pelo mesmo ou para praticar qualquer outro ato a ele relativo. Mas caso o
poder conferido a um representante, para manifestar o consentimento de
um Estado em obrigar-se por um determinado tratado, tiver sido objeto de
restrição especifica, o fato de o representante não respeitar a restrição não
pode ser invocado como meio para invalidar o consentimento expresso, a
menos que tal restrição tenha sido notificada aos outros Estados negocia-
dores antes da manifestação do consentimento, segundo se depreende da
regra expressa no art. 47 da Convenção de Viena de 1969.
Para outros plenipotenciários que não os elencados acima, a carta de
plenos poderes, expedida pela autoridade competente do Estado, é exigi-
da. Em caso de a representação do Estado se dar por uma delegação ou
por um grupo de pessoas, é importante frisar que só será detentor dos
plenos poderes o chefe da delegação ou comissão, incumbindo somente a
ele, e a mais ninguém, a prática de atos que manifestem a vontade do
Estado que representa, no cenário internacional.
Como explica MARIA DE ASSIS CALSING, nos dias atuais “a carta de ple-
nos poderes perdeu muito de sua importância, uma vez que, pela rapidez
das comunicações entre o plenipotenciário e seu governo, é quase impos-
sível a existência de fraudes”.9
No caso brasileiro, a competência do Chefe do Poder Executivo para
celebração de tratados é privativa, o que permite haja delegação, por si-
nal, muito comum nos atos internacionais, uma vez que o Presidente da
República tem outras funções além da de celebrar tratados. A Constitui-
ção brasileira de 1988 diz competir privativamente ao Presidente da Re-
pública “manter relações com Estados estrangeiros e acreditar seus repre-
sentantes diplomáticos” (art. 84, VII). Esta competência normalmente é
delegada ao Ministro das Relações Exteriores (Ministro dos Negócios Es-
trangeiros ou Assuntos Estrangeiros) ou aos Chefes de Missão Diplomáti-
ca. Todo funcionário de carreira, entretanto, acreditado ou credenciado
pelo País estrangeiro, pode ser agente plenipotenciário. Nesse sentido é

9
MARIA DE ASSIS CALSING. Idem, p. 26.

vol.4, n.2, 2003 Direito e Democracia 411


que o Decreto n.º 99.578, de 10 de outubro de 1990, que regula a organi-
zação e funcionamento do Ministério das Relações Exteriores, diz incum-
bir ao Itamaraty “negociar e celebrar, com a cooperação de outros órgãos
interessados, tratados, acordos e demais atos internacionais” (art. 2.º,
VI), sendo verdadeiro “auxiliar” do Presidente da República.
Esta capacidade para concluir tratados, denominada jus tractuum ou
“treaty-making power”, vem sendo, entretanto, como ensina JOÃO GRAN-
DINO RODAS, compartilhada por um número crescente de entidades, não
mais se restringindo, hodiernamente, tão-somente aos Estados. E isto por-
que, ao lado dos Estados soberanos, que mesmo diminutos ou exíguos,
sempre foram considerados como possuidores de tal capacidade, existem
as organizações internacionais intergovernamentais, também hábeis para
a conclusão de tratados. Para GRANDINO RODAS, “geralmente tal poder
vem expresso no tratado constituidor, podendo ser também inferido na
prática firmada pelos mesmos, no exercício de suas funções. Desde que
tenham sua capacidade reconhecida por algum Estado, poderão um mo-
vimento de libertação nacional, uma autoridade insurreta ou um governo
no exílio, celebrar tratados bilaterais com o mesmo”.10
Aliás, na atualidade, não se tem a menor dúvida disso, tanto que a
Convenção de Viena sobre o Direito dos Tratados entre Estados e Orga-
nizações Internacionais ou entre Organizações Internacionais, de 1986,
trata de forma específica o problema. Não têm, contudo, a capacidade ou
o poder para celebrar tratados, os Estados Federados, por carecerem de
personalidade jurídica internacional, bem como, pelo mesmo motivo, as
empresas privadas, inobstante sua eventual multinacionalidade.

OBSERVÂNCIA DOS TRATADOS NA CONVENÇÃO


DE VIENA DE 1969
Entre as normas de direito internacional geral – geral porque impõem
deveres e atribuem direitos a todos os Estados –, está aquela usualmente
designada pela fórmula pacta sunt servanda, que autoriza os sujeitos da
comunidade jurídica internacional a regular, através de tratados interna-
cionais, a sua conduta recíproca.11

10
Cf. JOÃO GRANDINO RODAS. Tratados internacionais. São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 1991, p. 12.
11
Cf. HANS KELSEN. Teoria pura do direito, 6.ª ed. Coimbra: Armênio Amado Editora, 1984, p. 431.

412 Direito e Democracia vol.4, n.2, 2003


A Convenção de Viena de 1969, no seu art. 26, dispõe justamente
sobre essa regra do pacta sunt servanda, segundo a qual “todo tratado em
vigor obriga as partes e deve ser cumprido por elas de boa-fé”. Esta norma,
descrita pela Comissão de Direito Internacional da ONU como um “prin-
cípio fundamental do direito dos tratados” é, aliás, considerada por mui-
tos como sendo um dos princípios mais importantes existentes no direito
internacional público.12
Como destaca CARLOS EDUADRO CAPUTO BASTOS, “ainda que a Convenção
de Viena sobre o Direito dos Tratados não esteja em vigor no nosso ordena-
mento jurídico, há que se considerar que o seu artigo 26, que estabelece que
‘todo tratado em vigor obriga as partes e deve ser cumprido por elas de boa-fé’, é,
indiscutivelmente, ponto de referência para qualquer eventual litígio, pois,
sendo ou não regra de direito positivo internacional, subjaz a cláusula ‘Pacta
Sunt Servanda’ como o grande princípio reitor na interpretação e na aplicação
dos entendimentos havidos no campo das relações internacionais”.13
Em suma, o que se extrai do enunciado do art. 26 da Convenção de
Viena é que a obrigação de respeitar os tratados é um princípio necessário
do direito internacional; necessário porque sem eles a segurança das rela-
ções entre os povos e a paz internacional seriam impossíveis. Além do mais,
a referência feita à boa-fé bem demonstra a necessidade de uma convivên-
cia harmoniosa entre os Estados, o que não seria possível sem o cumprimen-
to das normas nascidas do seio da comunidade internacional. Em suma, o
que o art. 26 da Convenção de Viena de 1969 fez, foi consagrar de maneira
expressa o próprio fundamento jurídico dos tratados internacionais, segundo
o qual a obrigação de respeitá-los repousa na consciência e nos sentimentos
de justiça internacionais. Sendo os tratados a fonte mais importante do
direito internacional contemporâneo, o seu respeito por parte dos Estados
configura a base necessária para a pacificação mundial e para a conseqüen-
te organização política e internacional do planeta.14
Na medida em que “todo tratado em vigor obriga as partes e deve ser
cumprido por elas de boa-fé”, seu eventual descumprimento acarreta a
responsabilidade do Estado no âmbito internacional. Talvez por isso é que
até mesmo em países de regime totalitário existem regras constitucionais

12
Cf. ILC Report (1966), reproduzido em 61 Am. J. Int’l L. 248, p. 334 (1967).
13
CARLOS EDUADRO CAPUTO BASTOS. “Hierarquia constitucional dos tratados”, in Advogado: desafios e perspectivas
no contexto das relações internacionais, vol. II. Brasília: Conselho Federal da OAB, 2000, p. 58.
14
Cf. JOÃO PENTEADO ERSKINE STEVENSON. Fundamentos jurídicos dos tratados internacionais: ensaio de direito público
internacional. São Paulo: [s.n.], 1939, pp. 97-101.

vol.4, n.2, 2003 Direito e Democracia 413


a disciplinar o princípio em apreço. Assim é que o art. 29 da Lei funda-
mental da Ex-União das Repúblicas Socialistas Soviéticas, determinava
fossem “as relações da URSS com outros Estados”, apoiadas “na obser-
vância (…) do honesto cumprimento dos compromissos provenientes dos
princípios e normas universalmente reconhecidas do direito internacio-
nal e dos tratados internacionais concluídos pela URSS”.
Nessa esteira é que o art. 27 da Convenção dispõe que “uma parte não
pode invocar as disposições de seu direito interno para justificar o inadim-
plemento de um tratado”.15 É dizer, no que tange ao direito internacional
positivo, a obrigação de cumprir os tratados de boa-fé vige apesar de qual-
quer disposição a contrario sensu do direito interno.16
Não se pode, pois, concordar com a afirmação de CELSO RIBEIRO BASTOS,
para quem “o direito internacional positivo não prevê norma assecuratória
da supremacia do tratado sobre as normas de direito interno dos Estados
envolvidos”, sendo que tudo “o que existe nesse sentido são proposições
doutrinárias, uma vez que cada País, no âmbito de seu território, dita as
regras de composição entre o direito internacional e as suas normas inter-
nas”.17 Uma das normas de direito internacional positivo assecuratórias do
primado do direito internacional sobre o direito interno estatal, é justa-
mente a do art. 27 da Convenção de Viena de 1969, em comento.
Frise-se que o referido dispositivo, resultado de emenda do Paquistão,
não encontrou oposição por parte dos países defensores da soberania esta-
tal.18 Sem embargo de algumas abstenções, nenhum País, entretanto, vo-
tou contra a regra enunciada.
A solução a ser adotada em caso de descumprimento do texto conven-
cional deve ser encontrada no próprio corpo do tratado, que deve prever
instrumentos de resolução de eventuais controvérsias que possam surgir

15
Para CLÓVIS BEVILÁQUA: “A validade dos tratados independe das mudanças constitucionais, que sofram os Estados
contratantes” (Direito público internacional: a synthese dos princípios e a contribuição do Brasil, Tomo II, cit., p. 23).
16
THOMAS BUERGENTHAL (et al.). Manual de derecho internacional público. México: Fondo de Cultura Económica,
1994, p. 87. Para este autor: “Además de la base convencional anterior, la falta de valor del derecho interno
para excusar el cumplimiento de normas internacionales es un principio indisputable y esencial del
derecho internacional” (Idem, ibidem).
17
Cf. CELSO RIBEIRO BASTOS e IVES GANDRA MARTINS. Comentários à Constituição do Brasil: promulgada em 5 de
outubro de 1988, 4.º vol. São Paulo: Saraiva, 1995, p. 98.
18
Para PEDRO BAPTISTA MARTINS: “A filosofia de HEGEL tem exercido uma influência profundamente nefasta no
desenvolvimento do direito público moderno, pois que, divinizando o Estado, ela criou o fetichismo da
soberania que tem oferecido (…) as mais sérias resistências à evolução do direito internacional” (Da
unidade do direito e da supremacia do direito internacional. Rio de Janeiro: Forense, 1998, p. 15).

414 Direito e Democracia vol.4, n.2, 2003


entre as partes. Sem embargo disso há uma forte tendência atual em o
Estado vítima do não-cumprimento do tratado recorrer a represálias ou
contramedidas contra o suposto Estado infrator do compromisso internaci-
onal. É bastante tênue, entretanto, a linha que separa uma resposta justa
e equilibrada por parte do Estado vítima da violação do tratado de um
visível ilícito internacional.19
No presente domínio da proteção internacional dos direitos humanos,
como em outros campos do direito internacional, “os Estados contraem obri-
gações internacionais no livre e pleno exercício de sua soberania, e uma vez
que o tenham feito não podem invocar dificuldades de ordem interna ou
constitucional de modo a tentar justificar o não-cumprimento destas obriga-
ções”.20 Seria mesmo estranho pudessem os Estados invocar violação de sua
soberania, depois de submetido o tratado, por eles mesmos, e com plena liber-
dade, ao crivo do Poder Legislativo, representativo que é da vontade popular.
Consagrou-se, assim, por esta regra, segundo abalizada lição de JEAN
HOSTERT, “a supremacia do Direito internacional sobre o direito interno,
nas relações entre partes contratantes”.21 Apesar de não ter obrigado os
Estados a adequar suas normas de direito interno às obrigações internaci-
onalmente assumidas, o certo é que, para executá-las de boa-fé, como
manda o art. 26 da Convenção, deve o Estado-parte dar primazia aos
tratados sobre as suas disposições de direito interno.22
Todos os poderes do Estado – não somente o Executivo e o Legislati-
vo, mas também o Judiciário – devem respeito e obediência ao direito
internacional. A sua não-observância acarreta a responsabilidade in-
ternacional do Estado, quase sempre esquecida pelo juízes e tribunais
nacionais. Exemplo corriqueiro disso, materializando a prática de ilícito
internacional, traduz-se naquela situação em que, por meio de medidas
legislativas internas se pretende derrogar tratados internacionais, prá-
tica corrente naqueles países que igualam hierarquicamente o tratado
à lei.23 E não raro se vêem decisões de tribunais superiores induzindo a

19
Cf. RICARDO SEITENFUS & DEISY VENTURA. Introdução ao direito internacional público. Porto Alegre: Livraria do
Advogado, 1999, pp. 50-51.
20
ANTÔNIO AUGUSTO CANÇADO TRINDADE. A proteção internacional dos direitos humanos: fundamentos jurídicos e
instrumentos básicos. São Paulo: Saraiva, 1991, p. 47.
21
JEAN HOSTERT. “Droit international et droit interne dans la Convention de Vienne sur le Droit des Traités du 23 mai
1969”, in Annuaire Français de Droit International, Paris: Centre National de la Recherche Scientifique, 1969, p. 117.
22
Cf. JEAN HOSTERT. “Droit international et droit interne…”, cit., p. 117.
23
No Brasil, o entendimento de que o tratado eqüivale, hierarquicamente, à lei ordinária federal, é ainda
mantido pelo Supremo Tribunal Federal. Vide, nesse sentido, o criticado Acórdão n.º 80.004-SE, do STF,
de 01.06.1977, rel. do Ac. Min. CUNHA PEIXOTO, publicado na RTJ 83/809-848.

vol.4, n.2, 2003 Direito e Democracia 415


pensar que, no âmbito interno, legislar contrariamente ao conteúdo de
um tratado anteriormente assumido, deixando de fazer fé à palavra,
seria legítimo desde que se tenham recursos suficientes e se esteja dis-
posto a indenizar os prejuízos causados pelo Estado no âmbito internaci-
onal.24 O raciocínio expressa um paralogismo que se apoia numa falsa e
errônea idéia. A ordem internacional sempre prima sobre a interna, e
tanto isso é verdade que, quando o legislador nacional produz normas
que contradizem disposições de um compromisso internacional já assu-
mido e, após isso, o Poder Judiciário não é capaz de superar a contradi-
ção, harmonizando aqueles preceitos, esta atitude final encontra repa-
ro na ordem jurídica internacional, mediante a responsabilização e con-
seqüente condenação do Estado infrator. Se por erro ou por falta de
afinidade no tratado com as normas internacionais os juízes internos
não restabelecem a antiga ordem jurídica, quem dará a última palavra
será sempre o direito internacional, que, através do instituto da respon-
sabilidade, condenará o Estado infrator, reconstituindo o direito viola-
do.25 Trata-se de preceito que fora mencionado na decisão de 8 de maio
de 1902 do Tribunal Arbitral El Salvador/Estados Unidos (R.S.A: XV,
477), e que vem sendo, desde então, reiterado pela jurisprudência nas
instâncias internacionais.
Nas palavras de JOSÉ CARLOS DE MAGALHÃES:

A imposição de sanções pelo descumprimento de normas


internacionais, assim, pode ser feita pelo Estado vítima da
infração, mediante a adoção de medidas de coerção míni-
ma ou máxima, dependendo da resistência do infrator e da
base de poder do Estado afetado pela infração. A autotutela
constitui, ainda, a forma pela qual o Direito Internacional
tem sua eficácia assegurada, não obstante a participação
da comunidade internacional organizada tenha, cada vez
mais, se mostrado ativa e eficaz para impor normas cogentes
de Direito Internacional, dentre as quais destacam-se as
que determinam o respeito aos Direitos Humanos. (…) A
Convenção de Viena sobre Tratados, que retrata costume

24
Vide, a respeito da consagração desse entendimento, a sentença n.º 25, de 20 de junho de 1990, da Suprema
Corte de Justiça da República uruguaia, que trata da aplicação, no âmbito interno, das normas do Direito
do Trabalho consagradas em tratados internacionais ratificados pelo Uruguai.
25
Cf. por tudo, HEBER ARBUET VIGNALI e JEAN MICHEL ARRIGHI, “Os vínculos entre o direito internacional público
e os sistemas internos”, in Revista de Informação Legislativa, ano 29, n.º 115, Brasília, jul./set. 1992, p. 417.

416 Direito e Democracia vol.4, n.2, 2003


internacional de aceitação geral e, por isso, respeitada até
por Estados que, a exemplo do Brasil, ainda não a ratifi-
caram, consagra norma segundo a qual o Estado não pode
invocar norma interna para deixar de cumprir um tratado
internacional.26

O fiel cumprimento dos compromissos assumidos internacionalmente,


em termos técnico-jurídicos, frise-se, deve ser um fim, sem embargo de,
infelizmente, por ingerências políticas, estar sendo um meio à obtenção
de determinadas finalidades por parte dos Estados contratantes.27

APLICAÇÃO DOS TRATADOS NA CONVENÇÃO


DE VIENA DE 1969
De regra, os tratados são irretroativos. A não ser que uma intenção dife-
rente se evidencie do tratado, ou seja estabelecida de outra forma, suas dis-
posições não obrigam uma parte em relação a um ato ou fato anterior ou a
uma situação que deixou de existir antes da entrada em vigor do tratado, em
relação a essa parte. É o que dispõe o art. 28 da Convenção de Viena de 1969.
Feitas as mesmas ressalvas de não existir intenção diferente evidenci-
ada no tratado, ou de não ser esta estabelecida por outra forma, um trata-
do internacional obriga cada um dos Estados-partes em relação a todo o
seu território. Trata-se da regra da aplicação territorial dos tratados ins-
culpida no art. 29 da Convenção de Viena de 1969. Como nos lembra
THOMAS BUERGENTHAL, alguns tratados, entretanto, “contienen cláusulas
aplicables a Estados-federales, cuyo propósito es permitir a dichos Estados
limitar sus obligaciones en virtud de un tratado a aquellos temas que se
encuentren dentro del ámbito de su competencia federal”, o que é per-
mitido segundo o citado art. 29, por estar evidenciada no tratado a exis-
tência de intenção diferente no que toca ao âmbito de aplicação territo-
rial dos mesmos.28

26
JOSÉ CARLOS DE MAGALHÃES. O Supremo Tribunal Federal e o direito internacional: uma análise crítica. Porto Alegre:
Livraria do Advogado Editora, 2000, pp. 16-17.
27
Cf. MARIÂNGELA ARIOSI. Conflitos entre tratados internacionais e leis internas: o judiciário brasileiro e a nova ordem
internacional. Rio de Janeiro: Renovar, 2000, p. 187.
28
Cf. THOMAS BUERGENTHAL (et al.). Manual de derecho internacional público, cit., p. 87.

vol.4, n.2, 2003 Direito e Democracia 417


Sem embargo, não estando evidenciada no tratado esta intenção, ne-
nhum Estado, ainda que se trate de Estado-federal, pode desconhecer o
âmbito de aplicação territorial de um compromisso internacional. É possível,
contudo, que se formule uma reserva neste sentido faltando uma disposição
expressa sobre a limitação de obrigações em dado âmbito territorial.29

APLICAÇÃO DE TRATADOS SUCESSIVOS SOBRE


A MESMA MATÉRIA
A última regra de aplicação de tratados consta do art. 30 da Convenção
e diz respeito à aplicação de tratados sucessivos sobre o mesmo assunto.
Assunto dos mais complexos do direito dos tratados, quiçá o mais con-
fuso, a aplicação de tratados sucessivos sobre a mesma matéria tem sido
pouco estudada pelos internacionalistas que dela se ocupam, sendo que
vários deles, quando o fazem, cuidam do problema, geralmente, dentre os
modos de extinção de tratados.
O tema foi intensamente debatido pela Comissão de Direito Internaci-
onal da ONU de 1953 a 1966, sob cinco ângulos distintos, acabando por ser
adotado o art. 30 da Convenção de 1969, regra esta que foi repetida no
também art. 30 da Convenção sobre o Direito dos Tratados entre Estados e
Organizações Internacionais ou entre organizações Internacionais, de 1986.
O art. 30 e parágrafos da Convenção de Viena de 1969, trata da apli-
cação de tratados sucessivos sobre o mesmo assunto nos seguintes termos:

“Artigo 30. Aplicação de Tratados Sucessivos sobre o Mesmo


Assunto. 1. Sem prejuízo das disposições do artigo 103 da
Carta das Nações Unidas [verbis: “Em caso de conflito en-
tre as obrigações contraídas pelos Membros das Nações Uni-
das em virtude da presente Carta e suas obrigações contraí-
das em virtude de qualquer outro acordo internacional, pre-
valecerão as obrigações importas pela presente Carta”], os
direitos e obrigações dos Estados partes em tratados sucessi-
vos sobre o mesmo assunto serão determinados de conformi-
dade com os parágrafos seguintes.

29
THOMAS BUERGENTHAL (et al.). Idem, p. 88.

418 Direito e Democracia vol.4, n.2, 2003


2. Quando um tratado estipular que está subordinado a
um tratado anterior ou posterior ou que não deve ser con-
siderado incompatível com esse outro tratado, as disposi-
ções deste último prevalecerão.

3. Quando todas as partes no tratado anterior são igual-


mente partes no tratado posterior, sem que o tratado ante-
rior tenha cessado de vigorar ou sem que a sua aplicação
tenha sido suspensa nos termos do artigo 59, o tratado
anterior só se aplica na medida em que as suas disposições
sejam compatíveis com as do tratado posterior.

4. Quando as partes no tratado posterior não incluem to-


das as partes no tratado anterior:

a) nas relações entre os Estados partes nos dois tratados,


aplica-se o disposto no parágrafo 3;

b) nas relações entre um Estado parte nos dois tratados e


um Estado parte apenas em um desses tratados, o tratado
em que os dois Estados são partes rege os seus direitos e
obrigações recíprocos.

5. O parágrafo 4 aplica-se sem prejuízo do artigo 41, ou


de qualquer questão relativa à extinção ou suspensão da
execução de um tratado nos termos do artigo 60 ou de
qualquer questão de responsabilidade que possa surgir para
um Estado da conclusão ou da aplicação de um tratado
cujas disposições sejam incompatíveis com suas obrigações
em relação a outro Estado nos termos de outro tratado.”

A primeira regra a analisar diz respeito ao 103 da Carta das Nações


Unidas referido pelo caput do art. 30 da Convenção de Viena de 1969.
Este último dispositivo, como se percebe, ao dizer que os direitos e obriga-
ções dos Estados partes em tratados sucessivos sobre o mesmo assunto
serão determinados de conformidade com os parágrafos seguintes, faz,
antes, uma ressalva ao art. 103 da Carta da ONU cuja regra estabelece
que em caso de conflito entre as obrigações contraídas por qualquer
Membro das Nações Unidas em virtude da presente Carta e suas obriga-
ções contraídas em virtude de qualquer outro acordo internacional, pre-

vol.4, n.2, 2003 Direito e Democracia 419


valecerão as obrigações importas pela referida Carta. Com a formulação
de tal ressalva, a Convenção de Viena sobre o Direito dos Tratados pas-
sou a reconhecer, pois, a superioridade hierárquica da Carta das Nações
Unidas em relação a outros compromissos internacionais, alçando-a mes-
mo à categoria de higher law ou lei suprema.
Ao lado da Carta das nações Unidas, Convenção de Viena de 1969
também erigiu as normas de jus cogens a um patamar superior ao dos demais
tratados internacionais, estabelecendo no seu art. 53 ser nulo o tratado que
conflite que uma norma imperativa de direito internacional geral.30
No mesmo sentido, a lição de HILDEBRANDO ACCIOLY e G. E. DO NASCI-
MENTO E SILVA, mas com uma advertência:

O jus cogens e a Carta das Nações Unidas são hierarqui-


camente superiores aos demais tratados, mas por motivos
diferentes. É errado considerar todos os artigos da Carta
como sendo de jus cogens, visto que alguns podem ser
modificados pela vontade das partes.31

Assim, salvo os casos de conflito temporal envolvendo tratados inter-


nacionais e preceitos da Carta das Nações Unidas, bem como aqueles
envolvendo normas imperativas de direito internacional geral (jus cogens),
todos os demais problemas deverão encontrar solução na norma do art. 30
da Convenção de Viena de 1969. É bom que se frise, neste ponto, antes
de se comentar as regras de aplicação de tratados sucessivos sobre a mes-
ma matéria, que tais conflitos só terão existência quando em jogo um
tratado multilateral. A rigor não há conflito temporal envolvendo trata-
dos bilaterais “mesmo quando os seus dispositivos parecem ser incompatí-
veis: trata-se de uma questão de interpretação em que a boa-fé deve
prevalecer. A dificuldade aumenta se um tratado bilateral entra em con-
flito com outro multilateral, ou no caso de dois tratados multilaterais,
onde a complexidade aumenta”.32

30
Para um estudo moderno das normas e os conflitos referentes ao jus cogens na Convenção de 1969, vide, JETE
JANE FIORATI, Jus cogens: as normas imperativas de direito internacional público como modalidade extintiva dos
tratados internacionais, Dissertação de Mestrado em Direito, Franca: Universidade Estadual Paulista/
Faculdade de História, Direito e Serviço Social, 1992.
31
Cf. HILDEBRANDO ACCIOLY e G. E. DO NASCIMENTO E SILVA. Manual de direito internacional público, 13.ª ed. São Paulo:
Saraiva, 1998, p. 35.
32
HILDEBRANDO ACCIOLY e G. E. DO NASCIMENTO E SILVA. Idem, p. 35.

420 Direito e Democracia vol.4, n.2, 2003


Várias regras têm sido utilizadas ao longo do tempo na resolução de
conflitos temporais de leis ou mesmo naqueles que envolvam tratados
internacionais. Assim é que, algumas teses como as da lex posterior de-
rogat priori ou da lex specialis derogat legi generali já vêm se mantendo há
bastante tempo, influenciando a interpretação relativa ao conflito de
leis no tempo. A convenção de Viena de 1969 não se prendeu, percebe-
se, de modo muito firme a essas disposições, estabelecendo regras pró-
prias para o problema da aplicação de tratados sucessivos sobre a mesma
matéria.
A primeira delas, constante do § 2.º do seu art. 30, diz respeito à
vinculação expressa de um tratado internacional a outro anterior ou pos-
terior. Segundo este dispositivo, quando um tratado estipular que está
subordinado a outro tratado anterior ou posterior ou que não deve ser
considerado incompatível com esse tratado, as disposições deste último
tratado é que deverão prevalecer.
A regra seguinte, constante do § 3.º, resolve o problema de tratados
sucessivos sobre a mesma matéria e com partes idênticas às do compro-
misso anterior com a aplicação da regra lex posterior derogat priori. Se-
gundo o referido dispositivo, quando todas as partes no tratado anterior
são igualmente partes no tratado posterior, sem que o tratado anterior
tenha cessado de vigorar ou sem que a sua aplicação tenha sido suspen-
sa nos termos do art. 59, o tratado anterior só se aplica na medida em
que as suas disposições sejam compatíveis com as do tratado posterior.
Em caso de incompatibilidade prevalece, então, o tratado posterior.33
Quando as partes no tratado posterior não incluem todas as partes no
tratado anterior, isso é, quando as partes no tratado anterior não estão
todas no tratado posterior, a regra a ser aplicada será a seguinte: a) nas
relações entre os Estados partes nos dois tratados, aplica-se o disposto no
parágrafo 3.º já analisado acima; b) nas relações entre um Estado parte
nos dois tratados e um Estado parte apenas em um desses tratados, seja no
anterior ou no posterior, o tratado em que os dois Estados são partes rege
os seus direitos e obrigações recíprocos (§ 4.º).

33
Nas palavras de HILDEBRANDO ACCIOLY e G. E. DO NASCIMENTO E SILVA: “Seja como for, ocorrendo incompatibilidade
entre os textos de dois tratados, a solução não consiste em considerar um deles como nulo, visto que
através de uma interpretação judiciosa e de boa-fé é possível na maioria dos casos demonstrar que os dois
textos podem ser mantidos” (idem, ibidem).

vol.4, n.2, 2003 Direito e Democracia 421


CONCLUSÃO
O que se pode concluir, do que acima foi exposto, é que a Convenção
de Viena sobre o Direito dos Tratados, de 1969, andou bem em positivar a
regra pacta sunt servanda, reconhecida mundialmente, bem como a regra
da primazia do direito internacional sobre o direito interno dos Estados.
De outra banda, quanto à aplicação dos tratados, a Convenção de
Viena de 1969 trouxe regras nítidas sobre a irretroatividade dos tratados
e aplicação sucessiva dos tratados sobre o mesmo assunto.
Foi a Convenção de 1969, acima de tudo, didática na determinação
de tais regras e na estipulação da maneira de sua utilização.

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424 Direito e Democracia vol.4, n.2, 2003


Do abuso do direito de demandar

The abuse of the right to suit

ROSANNE GAY CUNHA


A autora é Mestra em Direito pela PUCRS e Professora de Direito Processual Civil na ULBRA.

RESUMO
Analisando-se o direito de demandar, a partir da teoria do abuso do direito,
procura-se analisar as alternativas processuais para adequação deste direito à
proporcionalidade e razoabilidade.
Palavras-chave: Direito processual civil, direito de demandar, ampla defesa,
tutelas inibitórias.

RESUMO
By analyzing the right to suit in view of the right abuse theory, the author analyses
the procedural alternatives to adjust this right to proportionality and reasonableness.
Key words: Civil procedural law, right to suit, right to counsel, preventive judi-
cial protection.

INTRODUÇÃO
Ao iniciarmos a pesquisa sobre o abuso do direito de demandar, cons-
tatamos que poucos doutrinadores pátrios se preocuparam com a matéria.
Além disso, as obras existentes remontam à época do anterior Código de
Processo Civil (CPC), de 1939, que fazia menção expressa aos atos prati-
cados com má-fé processual. Vale salientar que o acervo existente é de

Direito
vol.4, n.2, e2003
Democracia CanoasDireito evol.4, n.2
Democracia 2º sem. 2003 p.425-436425
comentários, especialmente ao art. 3º, do CPC da época, e destacar as
poucas obras específicas, mas de conteúdo altamente qualificado, que se
tornaram ponto de partida e referência do presente estudo.
Não obstante esse quadro de escassez, a processualística contemporâ-
nea tem se debruçado, cada vez mais, sobre o tema desafiador da atuali-
dade, a efetividade dos direitos. Com essa nova (ou velha?) demanda,
surge a necessidade de se repensar o paradigma processual. Isto deve ser
feito notadamente sobre a resposta que o sistema processual civil brasilei-
ro confere àquele que se utiliza do processo, com má-fé, agindo contra a
Jurisdição e contra a administração da Justiça, antes de fazê-lo somente
contra os interesses da parte contrária.
Finda a vigência do CPC de 1939, com a superveniência do CPC de
1973, que alterou a matéria, a promulgação de uma nova Constituição
Federal (CF), a de 1988, informando expressamente princípios definido-
res da finalidade social do processo, bem como as constantes reformas
que o sistema processual civil vem sofrendo, na atualidade, são fatos que
operaram alterações acerca da matéria. Não obstante tais alterações, os
processualistas nacionais não outorgaram à matéria a importância dis-
pensada pelos doutrinadores do início do século passado. Pretende-se,
assim, abordar o tema sob um novo ângulo, na esfera constitucional, de
modo a saber se o disposto no Código de Processo Civil está em conformi-
dade com a Constituição, não só com os princípios específicos aplicáveis à
matéria, mas também com as normas programáticas por ela estabelecidas.
A grande questão que merece análise em relação ao direito de de-
mandar (direitos de ação e de defesa), que é garantia constitucional, é se
seria possível limitá-lo, em nome de uma teoria do abuso do direito e da
efetividade da prestação jurisdicional, sem comprometer a segurança ju-
rídica, igualmente garantida pela Constituição?

O DIREITO DE DEMANDAR E A CONSTITUIÇÃO


O princípio da dignidade da pessoa humana é o princípio fundamen-
tal situado no topo do ordenamento jurídico. É ele o núcleo essencial do
sistema de direitos fundamentais e o “fio condutor” que confere sentido a
esse sistema.

426 Direito e Democracia vol.4, n.2, 2003


A Justiça, por sua vez, é o ideal perseguido pelas pessoas, e seu alcan-
ce diz respeito imediato à dignidade da pessoa humana. O preâmbulo da
Constituição Federal brasileira trata de apontar esse valor, porquanto não
se concebe um ordenamento jurídico que não tenha como norte a Justi-
ça, assim como não se concebe dignidade sem Justiça.
A Justiça, no entanto, somente atingirá o seu escopo com uma tutela
judicial efetiva. Essa tutela deverá ser digna, isto é, deverá alcançar aos
jurisdicionados não apenas o acesso aos tribunais, mas também o acesso a
uma ordem jurídica justa, adequada e tempestiva. Somente dessa forma
a Justiça poderá ser realizada atendendo às diretrizes do princípio da dig-
nidade da pessoa humana.
Não resta dúvida de que, face à proibição da autotutela, e ao monopó-
lio estatal da jurisdição, surge para os cidadãos um autêntico direito sub-
jetivo a que o poder público se organize para garantir os imperativos de
justiça, já que às pessoas é proibido satisfazer, por seus próprios meios, os
direitos e interesses que constituem seu patrimônio jurídico.
O direito de acesso à Justiça somente pode ser limitado, sem maiores
prejuízos, em razão de outro direito ou outra liberdade, constitucional-
mente protegidos. As limitações devem ser baseadas em uma causa legal,
que não seja contrária ao conteúdo essencial do direito de acesso à Justi-
ça e que seja interpretada e aplicada da maneira mais favorável para a
efetividade do direito.
A aplicação do princípio da proporcionalidade surge como técnica de
relativização dos direitos em conflito, pois a tutela de um encontra limite
na tutela do outro.
A doutrina brasileira tem imprimido especial atenção ao problema so-
cial do Direito. Isto tem gerado preocupação ética com a atuação dos
indivíduos, pensando-se em uma ‘responsabilidade social’, quer dizer, que
a conduta dos sujeitos para com o Direito deve atender à finalidade soci-
al. Essa tendência ampliou o espectro da boa-fé no Direito.
O CPC de 1973 prevê, expressamente, o princípio da boa-fé objetiva
(art. 14, II). O enunciado de que as partes e seus procuradores devem
proceder com boa-fé se manifesta como cláusula geral, representando gra-
maticalmente o princípio normativo da boa-fé objetiva.
Já que as partes têm o dever de litigar honestamente, então os direitos

vol.4, n.2, 2003 Direito e Democracia 427


de ação e de defesa estão protegidos pelo ordenamento jurídico pátrio, se,
e somente se, estiverem sendo exercidos com lealdade e boa-fé. Esse é o
limite que, segundo entendemos, é dado pelo ordenamento jurídico para o
exercício desses direitos, numa interpretação sistemática. Não se retira o
direito de pleitear em juízo, ou de se defender em uma demanda, mas
apenas se estabelece que tais direitos serão tutelados, ou estarão protegi-
dos, somente enquanto exercidos de boa-fé. Se a parte litiga de má-fé, a
sua garantia deixa de estar abrigada pelo ordenamento jurídico e passa a
sofrer sanção pelo ato abusivo gerado e pelo dano processual causado.
A limitação está, pois, no resguardo do núcleo essencial. Caso ocorra,
pelas relações que os indivíduos mantêm entre si e com a coletividade, um
conflito positivo de normas constitucionais, a ensejar a necessidade de res-
trição ao direito, a solução será a ponderação. O critério orientador de
restrição das normas é o princípio da proporcionalidade. Surge como forma
de relativizar tais direitos, em nome de princípios fundamentais, como o da
Justiça e da dignidade da pessoa, hierarquizando os valores em jogo. A
intenção é atingir o objetivo maior, que é o da coexistência destas normas
no sistema jurídico. A tutela de um encontra limite na tutela do outro.
A proporcionalidade, como técnica de controle do excesso, traduz uma
relação adequada entre fim e meio, de modo que serve para evitar abuso
e auxilia na interpretação para a solução das antinomias. Verifica, afinal,
a compatibilidade entre os atos e a norma hierárquica superior.

A TEORIA DO ABUSO DO DIREITO


A noção de relatividade dos direitos subjetivos somente teve espaço
com a Revolução industrial. Antes dela, a doutrina jurídica tinha uma
concepção individualista que se instalou com o liberalismo burguês do
século XIX. Por esta concepção individualista, pensava-se que os direitos
subjetivos eram absolutos, de modo que teriam como limite apenas o que
fosse expressamente estabelecido ou estivesse implícito nos poderes cor-
respondentes. Nesse contexto, não tardou a surgirem teorias demarcando
o uso normal do direito subjetivo, como a Teoria do Abuso do Direito.
Desde então os direitos subjetivos têm sido concebidos como relativos,
isto é, o seu exercício não se limita apenas pelo interesse de seu titular,
mas, sim, pela finalidade do próprio direito.

428 Direito e Democracia vol.4, n.2, 2003


Uma concepção contemporânea, entretanto, permite-nos afirmar que
o sujeito que abusa do exercício de seu direito, isto é, que abusa do direi-
to de ação ou de reação que lhe é conferido, só aparentemente exerce
esse direito. Isso porque, ultrapassando o limite do exercício razoável, o
que há é violação do seu fundamento, do seu sentido. Com efeito, o direi-
to subjetivo, em uma interpretação sistemática do instituto, não pode ser
concebido, ao fim e ao cabo, como pura categoria formal e abstrata em
termos absolutos, limitado apenas por sua estrutura formal. A qualidade
do comportamento do sujeito que exerce esse direito subjetivo não pres-
cinde de uma análise de seu conteúdo material, de seu fundamento axi-
ológico, porque, segundo sustenta Fernando Augusto da Cunha de SÁ
(1997, p. 456), “... forma ou estrutura e valor constituem e integram uma
única intenção normativa”. Uma correta compreensão do direito subjetivo
deve conter uma concretização material, uma humanização da forma. A
admissibilidade de uma teoria do abuso do direito, portanto, é imanente
ao próprio direito subjetivo.
Se a norma é a expressão da vontade da comunidade jurídica, um
imperativo, e se o correspondente do imperativo é o dever, abuso do direi-
to é, então, o uso de um direito subjetivo que transcende seus limites
imanentes, isto é, o exercício além das fronteiras estruturais e materiais
que são traçadas para esse direito.
Se esse exercício abusivo, entretanto, causar dano a outrem, por atu-
ação dolosa ou culposa, havendo um nexo de causalidade entre o dano e
o ato abusivo, advirá o dever de reparação. É que o exercício de um
direito, por si só, não acarreta responsabilidade, enquanto não causar
dano a outrem. Somente na hipótese de dano é que poderemos falar em
dever de reparação. O abuso do direito não existe exclusivamente quan-
do ocasiona danos. É por isso, aliás, que a aceitação do abuso inicialmen-
te foi ligada à admissão de uma responsabilidade civil objetiva ou pelo
risco, como uma manifestação dessa teoria do risco. O dano é conseqüên-
cia do ato abusivo, mas não sua essência.
O abuso do direito é algo maior do que a admissão de uma responsabi-
lidade. Transcende ao problema da responsabilidade civil. Saber se um
ato é, ou não, abusivo tem importância para efeito de saber se a tutela
jurisdicional que o repulsa é, ou não, eficaz em seu intento.

vol.4, n.2, 2003 Direito e Democracia 429


A TUTELA JURISDICIONAL CONTRA O ABUSO
DO DIREITO DE DEMANDAR
A defesa privada teve de ser abolida em prol de uma convivência
social harmoniosa. A exigência de submissão das pessoas ao Estado, para
que este examine a sua pretensão, fez surgir uma segunda relação, que
tem como sujeitos não só os titulares da relação jurídica de direito mate-
rial, mas agora, também, o Estado-juiz.
Ocorre que a relação jurídica de direito processual não gera direitos e
obrigações recíprocas para as partes, de modo que um possa cobrar do outro
uma prestação positiva ou negativa. O que há é um dever das partes para
com o Estado, um ‘atuar com probidade’ que é devido ao Estado. Essa idéia
restou consolidada, inclusive, nas reformas que vêm sendo levadas a efeito
no Código de Processo Civil pátrio. A afirmação de que o dever de probida-
de das partes se dá para com o Estado não significa excluir o dever que tem
a parte de indenizar a outra, em caso de dano processual. As partes subme-
tem-se à autoridade do magistrado que tem o poder-dever da prestação
jurisdicional. Os direitos das partes, portanto, são exercidos perante o Esta-
do-juiz, e o seu exercício abusivo se dá contra a própria jurisdição.
Por essa razão, é equivocada a idéia de que a reversão da multa pela
litigância de má-fé (art. 18 do CPC) deve se dar em favor da parte adver-
sária, bem como a multa pela prática de ato atentatório à dignidade da
Justiça (art. 601, CPC). O correto é que a multa seja paga ao Estado,
porquanto o abuso é exercido contra a própria jurisdição. Em favor da
parte ex adversa, deve reverter apenas a indenização pelo dano eventual-
mente sofrido com a conduta abusiva. Isto se verifica porque a indeniza-
ção a todo aquele que sofrer um dano é inerente ao sistema, por força de
norma de natureza material.
Há outro fator que demonstra que o abuso do exercício de demandar
é exercido contra a jurisdição, ou seja, contra o Estado. Trata-se do fato
de o juiz poder condenar o litigante de má-fé, ex officio1 . Se a matéria não
fosse de interesse público, somente por provocação da parte é que a con-
duta poderia ser reprimida, já que ao juiz não é dado tornar a demanda

1
O CPC originalmente não permitia a condenação de ofício do litigante de má-fé. Foi com a Lei n.º 8.952, de
13-12-1994, que a alteração foi introduzida. Antes tal possibilidade era rechaçada, apenas porque, segun-
do a doutrina, e em especial conforme Pontes de MIRANDA (2001, p. 381), “... não se pode pensar em decisão
de ofício se não há regra jurídica a respeito”.

430 Direito e Democracia vol.4, n.2, 2003


mais litigiosa do que lhe é apresentada. Quer dizer, o juiz deve julgar com
base nos limites impostos pelas partes.
Outra questão que se impõe é saber se a disciplina dispensada pelo
Código de Processo Civil ao exercício abusivo do direito de demandar é
adequada às necessidades da sociedade contemporânea.
A vedação da autotutela faz nascer para o Estado o poder-dever-fun-
ção de prestação da jurisdição. Já que o cidadão não pode, salvo casos
excepcionalmente previstos, fazer Justiça pelas próprias mãos, devendo
recorrer ao Judiciário para atingir tal escopo, fica o Estado obrigado à
prestação jurisdicional.
Para Luiz Guilherme MARINONI (1998, p. 400), “A tutela jurisdicional
é aquela que, no plano do processo, tem o compromisso de realizar plenamente
a tutela que decorre do direito material, ou seja, a própria tutela material”.
Vê-se, pois, que não é qualquer prestação jurisdicional que cumpre o
postulado do acesso à Justiça, mas sim a atividade jurisdicional digna.
A construção de um procedimento eficaz, que atenda às necessidades
do direito material, enseja uma reflexão sobre a modalidade de cognição
adequada à situação material. Nem sempre o direito material, para ser
satisfeito, necessita da cognição exauriente e plena. Há casos em que um
conhecimento sumário é suficiente para a satisfação do direito material.
Não condiz com a necessária adequação da tutela jurisdicional, por-
tanto, impor, àquele que pede a tutela, um procedimento plenário e com-
pleto, quando uma análise sumária já o satisfaz. Igualmente, não se pode
forçar uma cognição fundada na aparência, quando o que se pede em
juízo é uma declaração com base em prova exauriente.
É Ovídio Araújo Baptista da Silva (1997), entretanto, que alerta so-
bre a necessidade de se aglutinar cognição e execução em um mesmo
processo, como forma de tornar o processo civil mais efetivo na tutela dos
direitos. E isso somente será possível se repensarmos o conceito de jurisdi-
ção, a fim de nele incluir também os efeitos executivo e mandamental.
Essa ligação que a doutrina da primeira metade do século passado faz
entre o ato abusivo e dano leva inexoravelmente ao reconhecimento de
que, como todo dano deve ser ressarcido, a tutela que se deve alcançar
para as hipóteses de ato ilícito ou abusivo é a tutela ressarcitória.

vol.4, n.2, 2003 Direito e Democracia 431


A idéia de que a única tutela contra o ato abusivo é a ressarcitória
também tem origem no liberalismo. Luiz Guilherme MARINONI (2001,
p. 13), com muita propriedade, salienta: “... o direito liberal não se preocu-
pava com as diferenças entre os bens e as pessoas. Se as pessoas são iguais -
independentemente das suas diferenças concretas – e se os bens não merecem
tratamento diversificado, basta o ressarcimento em pecúnia, inexistindo razão
para a tutela específica”.
O princípio da neutralidade do juiz, que exige o respeito e a aplicação
mecânica da previsão legal – de que vimos falando ao longo do presente
trabalho –, é o que faz com que não se proteja nenhuma posição social em
especial, mas apenas se mantenha o funcionamento do mercado. Dessa
forma, garante-se o statu quo através de um Estado neutro, desinteressa-
do e ausente, conforme lembra Ovídio Araújo Baptista da SILVA (1997,
p. 203). Por isso, consolida-se a idéia de que a tutela reparatória é a única
tutela possível contra o ato ilícito.
Em face das novas situações carentes de tutela, surgidas na sociedade
democrática e pluralista do final do século passado, é necessário fazer a
distinção entre ilícito e dano. Com isso, fica autorizada a elaboração de
tutelas diferenciadas, visando a impedir o ilícito, ou a removê-lo, ao invés
de apenas ressarcir o dano porventura ocorrido pela sua prática.
Não é demais lembrar que o direito de demandar, temática de nosso
estudo, inclui-se no rol dos chamados direitos não-patrimoniais, cujo va-
lor não pode ser precisado em pecúnia, a demonstrar que a tutela ressar-
citória em pecúnia é inadequada à espécie.
Da mesma forma, diz-se que a classificação trinária não é adequada à
efetividade da tutela do ato ilícito ou abusivo em particular, e dos direitos
não-patrimoniais em geral. A necessidade, portanto, de uma outra classifi-
cação de sentenças tem interesse prático. Precisamos encontrar uma forma
de tutela jurisdicional que preste, efetivamente, satisfatividade final e de-
finitiva a direitos não-patrimoniais, eliminando a exigência irracional de o
litigante conformar-se com a tutela condenatória, e, depois, vitorioso, per-
correr o árduo caminho do procedimento executivo autônomo.
Com efeito, através da sentença executiva lato sensu, o juiz poderá deter-
minar medidas de execução na própria sentença, sem enviar o jurisdicionado
para a ação de execução. Essa espécie de sentença pode agir com eficácia na
tutela para a remoção do ilícito (tutela reintegratória). De outro lado, tam-

432 Direito e Democracia vol.4, n.2, 2003


bém é de suma importância a sentença mandamental, porquanto ligada di-
retamente à multa, que é medida coercitiva eficaz na tutela dos direitos.
Tema que tem adquirido relevância em doutrina, na atualidade, é a
“tutela inibitória”, espécie de tutela específica que visa a prevenir o ilíci-
to e o abuso e que, por isso mesmo, está voltada para o futuro, e não para
o passado. Projeta-se para a frente, com nítida função preventiva, mas
sempre tendo em vista o plano de direito material.
Segundo a doutrina, a tutela inibitória visa a prevenir não só a prática
do ilícito, mas a sua continuidade ou repetição, razão pela qual não é
tutela contra o dano, mas, sim, contra o próprio ilícito, independente-
mente de já ter ocorrido o dano, ou não. O dano é mera conseqüência
eventual do ilícito, que poderá ensejar o ressarcimento.
Desta forma, o dano não diz respeito ao ilícito, restando claro que a
tutela ressarcitória não é a única tutela contra o ilícito, mas que também
é possível uma tutela puramente preventiva.
O dolo e a culpa não caracterizam a tutela inibitória. Conforme Luiz
Guilherme MARINONI (1998, p. 39), “A tutela inibitória não pune quem
pode praticar o ilícito, mas apenas impede que o ilícito seja praticado”. Por
isso, tanto o dano, quanto o dolo ou a culpa são irrelevantes para a de-
manda preventiva.
Uma das formas de realização da tutela inibitória é através da comina-
ção de multa, para o caso do descumprimento de uma determinada nor-
ma de conduta.
É da Constituição Federal do Brasil que se extrai essa forma de tutela,
sendo desnecessária qualquer previsão infraconstitucional. Com efeito, o
art. 5º, inc. XXXV, da CF, expressa que “A lei não excluirá da apreciação do
Poder Judiciário lesão ou ameaça a direito” (grifou-se), correspondendo,
pois, à necessidade da prestação de uma tutela efetiva, corolário do prin-
cípio do acesso à Justiça.
Está comprovado com a prática judiciária, especialmente se voltarmos
os olhos para a experiência do Direito Francês, que a multa (astreinte) é
um mecanismo de coerção patrimonial que induz o sujeito ao cumpri-
mento de sua obrigação. A astreinte é, pois, no dizer de Marcelo Lima
GUERRA (1998, p. 108), “... uma medida coercitiva de caráter patrimonial,
consistente numa condenação em uma quantia determinada por cada dia (ou

vol.4, n.2, 2003 Direito e Democracia 433


outra unidade de tempo) de atraso do devedor em cumprir a obrigação consa-
grada no título executivo, ou por cada violação do que, aí, lhe é imposto”.
(Grifos do autor).
Para a tutela inibitória, a importância desse meio de induzir o sujeito a
cumprir uma obrigação que lhe é imposta, e não a simplesmente reparar
eventuais prejuízos resultantes do inadimplemento, é justamente o seu
caráter coercitivo, totalmente independente da indenização dos prejuí-
zos. Esta tanto pode ser concedida na ausência destes, como poderá cu-
mular-se com eles. Isso demonstra exatamente a sua função inibidora do
ilícito, e ocasionalmente do próprio dano, tendo, no entanto, apenas o
ilícito como objeto de sua atuação.
Outra discussão atual é a aplicação dos meios coercitivos de repressão
ao Contempt of court que, segundo Marcelo Lima GUERRA (1998, p. 72),
significa “... desprezo à corte, ou ainda, desacato ao tribunal, conduta que
constitui ofensa punível de diversas maneiras”. Na verdade, contempt of court
é uma ação ou omissão que despreza a autoridade do Judiciário ou preju-
dica as partes litigantes, criando obstáculos para o funcionamento do tri-
bunal.
No Brasil, o parágrafo 5º do art. 461 do CPC autoriza o juiz a adotar
medidas coercitivas inominadas que julgar adequadas, para garantir a
prestação efetiva de tutela. Estas bem podem ser as medidas utilizadas em
caso de contempt of court.
Das medidas antes mencionadas, a divergência ocorre em relação à
possibilidade da prisão como medida coercitiva. Já no CPC de 1939, a
doutrina defendia a possibilidade de prisão civil, por inadimplemento de
obrigação pecuniária. Pontes de MIRANDA (2001, p. 253) alerta no sen-
tido de que o texto constitucional, então vigente, não vedava essa possi-
bilidade.
A prisão civil, como medida coercitiva, também não encontra óbice na
Constituição da República atual. Esta proíbe apenas a prisão por dívida, e
não a prisão por descumprimento de ordem judicial. Está fora da vedação,
portanto, a prisão para garantir a efetividade da tutela jurisdicional. O
Pleno do STF recentemente (07-02-2002), ao apreciar o HC nº 81319,
reiterou o entendimento de que o depositário infiel será preso por não pa-
gamento de dívida ou quando vende o bem que deu em garantia ao credor.
Entendemos, no entanto, que a prisão somente poderá ser utilizada como

434 Direito e Democracia vol.4, n.2, 2003


medida coercitiva, se houver expressa previsão legal para tanto (lege feren-
da). Não se pode inferir que o art. 461 do CPC autoriza a sua utilização, por
ser regra infraconstitucional em confronto com princípios constitucionais.
O sistema pátrio possibilita, através do art. 461, § 5º, do CPC, as me-
didas coercitivas típicas, como de multa diária, busca e apreensão, remo-
ção de pessoas e coisas, desfazimento de obras, impedimento de atividade
nociva, requisição de força policial, etc. Além disso, refere-se a qualquer
outra medida que julgar adequada para garantir a efetividade da tutela.
O rol elencado no artigo é, pois, exemplificativo2 .
A adoção de uma medida coercitiva, entretanto, sempre que esta conflite
com o direito de liberdade da pessoa, deverá ter a sua necessidade e adequa-
ção submetida a uma análise, conforme o princípio da proporcionalidade.
A implementação da tutela inibitória atuaria como forma de limitação
do direito de demandar, e não como proibição de demandar, como pode
parecer à primeira vista.
A Constituição Federal tem como “fio condutor” o princípio da digni-
dade da pessoa humana e garante o direito à tutela judicial efetiva, quando
houver “... lesão ou ameaça a direito” (art. 5º, XXV), de modo a evitar a
violação do direito.
O art. 461 do CPC e o art. 84 da Lei nº 8.078/90 – Código de Defesa
do Consumidor –, no dizer de Luiz Guilherme MARINONI (1998, p.
257) “... uma vez lidos à luz da teoria da tutela inibitória, abrem oportunidade
para procedimentos capazes de tutelar de forma adequada e efetiva os direitos,
notadamente os de conteúdo não patrimonial”.
É preciso, pois, uma mudança de paradigma, isto é, que se alcance aos
jurisdicionados uma tutela preventiva, no caso de abuso do direito de
demandar, a fim de evitar a sua ocorrência, a sua continuação ou reitera-
ção. Não há como agir contra esta espécie de abuso de forma apenas
reparatória, em virtude de sua natureza não-patrimonial.

2
Entendimento também expressado por Luiz Guilherme MARINONI (2001, p. 48): “As chamadas ‘medidas
necessárias’, previstas nos parágrafos (...) são meramente exemplificativas, sendo possível ao juiz determinar outras,
desde que adequadas em face dos princípios da efetividade e da necessidade, para a tutela do direito afirmado”.

vol.4, n.2, 2003 Direito e Democracia 435


CONCLUSÃO
O direito de demandar, como corolário do direito de acesso a uma
ordem jurídica digna, não pode ser exercido de forma absoluta, mas deve
ser limitado a um exercício proporcional e razoável, em conformidade
com a Constituição.
Os litigantes devem pautar suas condutas, portanto, pela probidade,
lealdade e boa-fé objetiva. O exercício do direito de demandar que viole
essa finalidade do processo é um ato abusivo, porquanto, embora possa
preencher a forma (estrutura) do direito, há uma violação ao seu funda-
mento axiológico. Desse modo, mesmo que haja a aparência de exercício
regular do direito, há um desvirtuamento da intenção normativa, levada
a efeito pela violação do valor que fundamenta o direito em tela.
Não obstante a natureza não-patrimonial do direito de demandar, o
sistema processual civil brasileiro alcança aos jurisdicionados uma tutela
apenas ressarcitória, para o caso de seu exercício abusivo.
E se o direito de demandar não pode ser aferido pecuniariamente,
uma tutela ressarcitória não atua com efetividade para reprimir o seu
exercício abusivo. É necessário, pois, uma mudança de paradigma. É pre-
ciso que se alcance aos jurisdicionados uma tutela preventiva, chamada
inibitória, também prevista pelo ordenamento jurídico (art. 5º, XXXV, da
Constituição Federal de 1988 e art. 461 do Código de Processo Civil bra-
sileiro). Essa espécie de tutela atua para evitar o abuso, impedir que este
continue, ou, ainda, para impedir que ele torne a ocorrer.

REFERÊNCIAS
GUERRA, Marcelo L. Execução Indireta. São Paulo: Revista dos Tribunais, 1998.
MARINONI, L. Guilherme. Tutela Inibitória (individual e coletiva). São Paulo: Revista
dos Tribunais, 1998.
_______________. Tutela Específica. 2ª ed., São Paulo: Revista dos Tribunais, 2001.
MIRANDA, Pontes de. Comentários ao Código de Processo Civil. Tomo I (Arts. 1º a 45).
5a ed., São Paulo: Forense, 2001.
SÁ, Fernando A. C. de. Abuso do Direito. Coimbra: Almedina, 1997.
SILVA, Ovídio A. B. da. Jurisdição e Execução na tradição romano-canônica. 2ª ed., São
Paulo: Revista dos Tribunais, 1997.

436 Direito e Democracia vol.4, n.2, 2003


Valores eticos en la actividad
periodística

Ethical values in journalistic activity

XABIER ETXEBERRIA
Professor de Ética e Derechos Humanos na Universidad de Deusto (Bilbao-España)
Diretor do Aula de Etica e Membro do Instituto de Derechos Humanos da mesma Universidade. Membro do
Steering Committee da Red Europea de Etica (com sede na Universidade de Lovaina) e Presidente do Comité de
Ética de hospitais en Bilbao. Forma parte do projeto «El diálogo intercultural sobre la democracia y los derechos
humanos”, dentro do projeto “Europa Múndi”, da UNESCO.
Autor de “Derechos humanos y cristianismo”, “Etica de la diferencia”, “Perspectiva de la tolerancia”, todos publicados
pela Universidade de Deusto.

RESUMO
O autor analisa os valores éticos envolvidos na atividade jornalística, discutindo
a questão da informação, da verdade, da imparcialidade e da própria propa-
ganda veiculada.
Palavras chave: Jornalismo, limites do direito de informação e publicidade,
informação.

ABSTRACT
The author analyses the ethical values involved in journalistic activity, discussing
the matters of information, truth, impartiality and the very advertisement put
on the media.
Key words: Journalism, information and publicity right limitation, information.

Palestra realizada em Santa Cruz (Bolivia), em outrubro de 2001, no Foro Internacional «Ética y Comunicación»
e, até o presente momento, nunca publicada. Agradecemos a gentil oferta do professor para inclusão nesta
publicação.

Direito e Democracia Canoas vol.4, n.2 2º sem. 2003 p.437-458


vol.4, n.2, 2003 Direito e Democracia 437
I
“Valor” es una categoría que, de manera firme, entra en la ética
tardía y polémicamente, por su notable ambigüedad. En principio, con-
sideramos valioso aquello que satisface nuestras necesidades y dese-
os 1 . Lo que vale es así algo atractivo que tratamos de alcanzar, poseer,
utilizar –según los casos-, para que esa satisfacción se realice. El valor
es, de ese modo, medio para ciertos fines, dándose en él una compleja
síntesis entre lo subjetivo (algo es valioso porque lo valoramos) y lo
objetivo (lo valoramos porque es valioso para ciertas necesidades o
fines). Pero pronto nos damos cuenta de que nosotros podemos poseer
cosas valiosas para otros, tanto más valiosas cuanto más las desean: lo
poseído tiene entonces un valor especial, el valor mercantil, pues pue-
de ser convertido en mercancía que cabe intercambiar y vender. Esta
lógica hace aparecer al dinero, como instrumento de medición que
“todo lo iguala” (Aristóteles), y que se convierte de esa manera en
valor generalista. Pues bien, el término “valor” va a entrar en el cam-
po moral precedido de su uso en el campo económico, y ésta va a ser la
primera fuente de ambigüedad 2 . Valor es aquí lo que se ambiciona y
porque se ambiciona, lo que puede además acumularse, medirse, com-
prarse (piénsese en los “valores bursátiles”). Algo que, intuitivamen-
te, no parece armonizarse muy bien con la ética.
Si he hecho esta introducción aparentemente extraña al tema que
nos ocupa es porque no podemos ignorar que esta aproximación económi-
ca a los valores está íntimamente relacionada con los medios de comuni-
cación. Éstos aparecen como medios de comunicación “de masas” preci-

1
Tanto en vistas a precisar y jerarquizar los valores como en vistas a concretar aquellos bienes que deben ser
distribuidos a todos en justicia, es conveniente, aunque no fácil, distinguir entre necesidades básicas
objetivas (limitadas) y deseos subjetivos potencialmente ilimitados. No entro aquí en esta cuestión
porque, aunque importante, me llevaría por derroteros que me distanciarían del objetivo de estas líneas.
Sí quiero, con todo, hacer una observación que se entenderá mejor tras la lectura de este escrito: la
información que ofrecen los medios de comunicación puede considerarse vía para la realización de la
necesidad/bien básico de la participación ciudadana, aunque cabe enmarcarla en tales dinámicas de
sensacionalismo y remisión a cuestiones de la privacidad (prensa del “corazón”, escándalos, crímenes...)
que acaba sirviendo a los deseos insaciables.
2
La segunda va a ser su fácil deriva hacia el subjetivismo relativista y el positivismo: será valor todo lo que la
gente considere valioso y por el mero hecho de que lo considera valioso; deriva, por cierto, que no deja de
tener conexión con el enfoque económico-mercantil de los valores.
3
Esto es algo evidente en las agencias de prensa. Cuando Louis Havas crea en 1834 la primera de ellas, es porque
descubre que la información es una mercancía que se puede vender bien, que tiene valor de mercado.

438 Direito e Democracia vol.4, n.2, 2003


samente con la confluencia de la reivindicación de la libertad de expre-
sión y opinión (política, en especial) que buscan expandirse entre los
ciudadanos, de la reivindicación de la libertad de empresa orientada al
lucro, que encuentra una mercancía nueva –la noticia- que es apreciada
como valor que se puede vender3 , y de los avances técnicos que van a
hacer posible la difusión generalizada de esa nueva mercancía. Es decir,
confluye algo que remite a un valor moral -la libertad-, con algo que se
muestra valor económico -la noticia como mercancía-, con algo que apa-
rece como valor estrictamente instrumental: unas nuevas tecnologías, de
prensa primero y audiovisuales después, que, por cierto, acabarán mos-
trándose no tan neutras, pues, ante la televisión especial, parece poder
decirse, haciendo eco a McLuhan, que “la tecnología es el mensaje” e
incluso “el masaje”.
El que los medios de comunicación tengan una conexión interna, ya des-
de su nacimiento, con el valor mercantil, va a tener serias consecuencias:
- sólo será factible y viable en ellos lo que tenga ese valor, lo que
se pueda vender porque apetece consumir;
- para ampliar las ventas (abaratándolas) y los ingresos, aparece-
rá, junto a la venta directa del producto a los receptores, otro
modo de venta indirecta –de espacios en el producto-: la
publicidad, que a su modo entra en la información;
- es el mercado, en forma de ventas, cuotas de audiencia y
captación de publicidad, el que decide si la oferta es mercancía
valiosa;
- acomodar la mercancía a una potencial demanda masiva va a
suponer: 1) derivar de la relevancia inicial de medios de opinión
a la relevancia de medios de información; 2) presentar lo más
objetiva e imparcialmente posible las informaciones; 3) ofrecer
a la vez entretenimiento; 4) tratar que la información –noticias
y opinión- sea también entretenimiento (sensacionalismo,
espectacularización);
- la información como mercancía es sólo valiosa en la medida en
que no la poseen los demás: hay que conseguirla los primeros
(velocidad, competencia firme o monopolio), sabiendo que se
devalúa en cuanto se difunde (fugacidad).

vol.4, n.2, 2003 Direito e Democracia 439


La escueta enumeración de estas consecuencias pone ya de relieve la
ambigüedad de las mismas, la peligrosidad incluso de muchas de ellas,
desde el enfoque moral. Por eso, desde este enfoque cabe plantearse una
propuesta radical: ¿por qué no renunciar a la información como mercan-
cía en manos de las empresas privadas y convertirla en servicio público
que se ofrece a todos, igualitariamente, desde el Estado? Al margen de
que incluso en ese caso la información conserva algunas de las caracte-
rísticas ambiguas de valor mercantil, hay que tener muy presente que la
experiencia muestra que el remedio puede ser peor que la enfermedad,
por los recortes que supone para la libertad de iniciativa y por las manipu-
laciones y derivas totalitarias que tienden a aparecer incluso en los Esta-
dos democráticos (información como servicio al poder político, más que
servicio al público). Esto no quiere decir que el Estado deba desenten-
derse de los media y limitarse a garantizar “en negativo” la libertad de
prensa. Deberá tomar medidas protectoras en “positivo” –se hablará lue-
go de ello-, e incluso serán posibles ciertas iniciativas directas, pero sin
que pretenda ser la alternativa. Desechada esta propuesta radical, el acer-
camiento ético al hecho de que la información se muestra como valor
mercantil debe, pues, recorrer otras vías.
En primer lugar, hay que comenzar reconociendo que “valor” no es
una categoría estrictamente moral –como lo es por ejemplo “virtud”-, por
lo que, para que tenga condición de tal habrá que trabajarla específica-
mente. En los media en concreto, habrá que reconocer que se da un valor
mercantil que hay que reacomodar moralmente, sabiendo que, de todos
modos, marcará determinadas limitaciones internas a esta pretensión,
algunas de las cuales se mencionarán luego.
En segundo lugar, avanzando ya en esa reacomodación, hay que des-
tacar críticamente el hecho de que el valor mercantil tiende a resaltar lo
subjetivo en detrimento de lo objetivo: algo –la información, el entrete-
nimiento- es valioso porque es valorado, con lo que se cae en el relativis-
mo que empuja a ofrecer lo que los receptores piden –o a inducir a que
pidan lo que se puede ofrecer-. Frente a ello, como exigencia ética, y sin
olvidar la dimensión subjetiva, hay que plantear la relevancia del polo
objetivo de los valores. En este caso, ofrecer aquella información o diver-
sión que no sólo es valorada sino que es valorable por el servicio que
presta a la plenitud humana y a la convivencia. Es entonces cuando la
información y diversión –incluso con su valor mercantil- es un instru-
mento al servicio de valores morales (como, por ejemplo, la justicia), se

440 Direito e Democracia vol.4, n.2, 2003


realiza a su vez adecuadamente gracias a que se remite a valores morales
(como la autonomía), se “contamina” ella misma de moralidad.
En tercer lugar, para avanzar hacia la reasunción ética de las ambi-
guas consecuencias que según indiqué se derivan de la consideración de
la información como valor mercantil, puede sernos útil un planteamiento
de Max Scheler en torno a los valores. Para este autor no hay valores
propiamente morales: el “valor moral” está en la intención con que se trata
de realizar los valores extramorales y en la adecuada preferencia de los
mismos cuando entran en confrontación. Aquí estoy defendiendo implí-
citamente que sí cabe hablar de valores con contenido explícitamente
moral, pero la sugerencia de Scheler sigue siendo importante: la valoraci-
ón moral, confrontada a las ambiguas consecuencias de que hablamos, se
realiza cuando: jerarquiza, discierne y replantea en nuevos contextos lo
implicado en esas consecuencias.
- Hay, pues, que jerarquizar. El valor mercantil de la información
debe estar subordinado a valores superiores que resaltaremos en
seguida, lo que supone, como mínimo, que sólo es aceptable
cuando se realiza de tal modo que no ignora, ni obstaculiza, ni
deforma, ni intrumentaliza esos valores superiores, y, como
situación ideal, cuando se realiza de tal modo que los potencia.
- Hay que ejercer un trabajo de discernimiento que se transmite
a los receptores en forma de adecuadas distinciones (en algunos
casos en forma de separaciones claras, en otros en forma de re-
laciones e implicaciones dilucidadas): entre información de
noticias y de publicidad, entre noticia y opinión, entre
información y entretenimiento, entre interés público e interés
de los consumidores. Este discernimiento es decisivo para evitar
manipulaciones, para generar niveles entre los que hay que hacer
una segunda jerarquización (por ejemplo, la noticia no puede
estar al servicio del entretenimiento), y, de nuevo, para servir a
los valores superiores.
- Hay que replantear en nuevos contextos. Por ejemplo, y especi-
almente, la objetividad e imparcialidad de que se hablaba. Pa-
rece que frente a la inicial prensa de opinión militante, destina-
da por su naturaleza a una franja limitada de lectores, se optó
por la noticia objetiva e imparcial –y por las opiniones plurales-
como estrategia con la que potencialmente se puede llegar a

vol.4, n.2, 2003 Direito e Democracia 441


todos. Pues bien, desde la sensibilidad moral se descubrirá que
objetividad e imparcialidad, como condiciones de posibilidad
de la verdad y la veracidad, son dimensiones decisivas de un
enfoque moral de la información, por lo que hay que cultivarlas
en cuanto tales. Se retoma aquí la otra sugerencia de Scheler
de que no sólo hay que preferir adecuadamente, sino que hay
que preferir con adecuada intención: en este caso la de servir a
la verdad, que debe prevalecer sobre la de servir al lucro. Este
nuevo enfoque garantizará la objetividad más allá de su utilidad
mercantil.
En lo que sigue voy a desarrollar todas estas reasunciones morales del
valor mercantil de la información que he ido apuntando. Antes, con todo,
una observación. En los actuales media confluyen mensajes de diverso
tipo: información y opinión sobre la actualidad, entretenimiento, conoci-
miento, publicidad... Aquí voy a privilegiar lo primero, porque entiendo
que es lo que los define. Esto es, me remitiré a los valores morales de los
media desde la referencia al flujo informativo de los mismos, aunque soy
consciente de la relevancia de los otros flujos y de que en muchas ocasi-
ones condicionan decididamente a la información tanto por su intensi-
dad como por su modo de presencia4 .

II
Una forma sugerente de acercarse a la información como valor no
mercantil primario respecto a su valor mercantil, que nos abre además a
los valores morales que le dan consistencia, nos la proporciona la aplica-
ción a la actividad mediática de la categoría de MacIntyre de práctica.

4
Los espacios de entretenimiento y publicidad son especialmente relevantes para ofrecer, normalmente de
modo indirecto, ideales de vida y orientaciones para la acción. Piénsese, por ejemplo, en la publicidad. En
principio no deben realizarse aquellos deseos subjetivos que obstaculizan la realización de las necesidades
básicas de todos. El ideal de consumo adherido a los deseos ilimitados está concentrando los recursos
disponibles en una cuarta parte de la humanidad, quedando al menos otra cuarta parte en condiciones de
absoluta carencia respeto a sus necesidades básicas. Pues bien, la publicidad de los medios de comunicación
es un agente fundamental de la estimulación de esos deseos, con lo que de ese modo no sólo potencia una
cierta manera más que discutible de entender la vida, sino que apoya objetivamente una injusticia (no se
puede generalizar el consumo tipo occidental porque el ecosistema no lo permite; sólo es viable si está al
alcance de una minoría).
5
En Tras la virtud, Barcelona, Crítica, 1987, 233.

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“Práctica” es, para este autor, “cualquier forma coherente y completa de
actividad humana cooperativa, establecida socialmente, mediante la cual
se realizan los bienes inherentes a la misma mientras se intenta librar los
modelos de excelencia que le son apropiados a esa forma de actividad”5 .
Apliquemos este concepto al periodismo.
Lo que se resalta en especial es que debe ser visto como una actividad
humana con bienes inherentes a ella, que han sido establecidos socialmen-
te. MacIntyre distingue a este respecto entre bienes internos a las prácti-
cas y bienes externos. Estos últimos se consiguen a través de ellas, pero no
son inherentes a ellas. Se trata en especial del poder, del dinero y de la
fama. Los ejecutores de las prácticas, en este caso los profesionales y em-
presarios de los media, compiten por ellos de una manera muy especial,
pues se los reparten de tal modo que cuanto más tienen unos menos tie-
nen otros. Valorar la información como mercancía es situar al periodismo
orientado hacia esos bienes externos.
Los bienes internos, en cambio, son aquellos que constituyen la finali-
dad de la práctica. Así, el bien interno de la actividad médica es curar,
no ganar dinero o ser famoso. Cuando los protagonistas de la actividad
“compiten” por estos bienes, suman entre ellos la excelencia que se gene-
ra (entre los médicos, en sanación). ¿Cuál puede ser el bien interno de la
práctica mediática? Si observamos cómo ha sido establecida socialmente
como servicio a la sociedad a partir del siglo XVIII, creo que debe con-
cretarse del siguiente modo: orientar a los ciudadanos, a través de ade-
cuadas ofertas de información y opinión, para que puedan participar acti-
vamente en el “arte de vivir juntos” desde los supuestos democráticos.
La moralidad de las prácticas, continúa MacIntyre, se juega en buena
medida en la relación que mantienen bienes internos y externos y en
cómo se realizan los bienes internos. Para ello, por un lado, los bienes
externos deben estar subordinados a los internos, y, por otro lado, éstos
deben realizarse según los modelos de excelencia que les son propios.
Esta propuesta reafirma así, desde otro enfoque, la jerarquización que
antes indicamos, pero se pide además que la práctica se oriente hacia la
excelencia que le es propia.
Ahondemos en esto último volviendo a la categoría de los valores.
Desde ésta podemos decir: puesto que lo que define a la actividad medi-
ática es la información, lo que la realiza adecuadamente desde el punto
de vista moral es su conexión con los valores que le son propios, inheren-

vol.4, n.2, 2003 Direito e Democracia 443


tes, que podrán ser calificados en sentido amplio como valores morales.
¿Cuáles son éstos? El valor inherente a la naturaleza de la información es
el de la verdad y la veracidad: tanto una mentira como una intención de
engaño son, por definición, la negación de la información. El valor deci-
sivo adherido a la información como su condición de posibilidad es el de
la libertad de los profesionales: sin ella es inviable la búsqueda de la ver-
dad y la expresión de opiniones. El valor inherente a la construcción de la
noticia y a su difusión es el de la dignidad de las personas, tanto las notici-
ables por los media como las receptoras, dignidad que debe traducirse en
un respeto que se expresa como mínimo en negativo –“no dañar”- pero
que está abierto también a dimensiones importantes en positivo que indi-
caremos en su momento –justicia en sentido pleno-. En las realidades
concretas de la actividad mediática, estos tres valores fundamentales
pueden entrar en relaciones conflictivas que hay que gestionar desde la
responsabilidad de los profesionales, situada y abierta a las consecuencias,
que se constituye así en el cuarto referente moral en el que se articulan
existencialmente los valores citados.
Aquí, por limitaciones de espacio y para ceñirme a lo que podemos
llamar más estrictamente valores, me limitaré a explorar los tres primeros
referentes. Antes, con todo, de entrar en ello, volvamos brevemente a la
categoría de “práctica” con una última observación. Las prácticas, se nos
dice, implican una relación entre los que participan en ellas y, además, se
realizan plenamente en instituciones específicas que, por un lado, ampli-
fican sus potencialidades y, por otro, generan posibilidades de corrupción
de poder de diverso tipo, a las que hay que resistirse. La práctica periodís-
tica supone, en efecto, una inherente relación con los diversos colegas y
se inserta en lo que podemos llamar sistema mediático, que, entre otras
cosas, garantiza la gestión y la tecnología necesarias, pero que está deci-
didamente marcado por la dinámica empresarial capitalista. Esta es una
circunstancia que deberá ser tenida muy en cuenta a la hora de desarro-
llar los valores referenciales que he mencionado.

III
Pasemos ahora al valor de la verdad y la veracidad como inherentes a la
naturaleza de la información. Antes, con todo, una consideración válida
para todo lo que sigue. Los valores tienen inicialmente una perspectiva

444 Direito e Democracia vol.4, n.2, 2003


teleológica: son objetivos que anhelamos y perseguimos, a veces en vistas
a otros objetivos o fines. Esto es algo que pasa también con los valores
morales. Sólo que en éstos hay dos circunstancias destacables. Por un
lado, no son puros medios (como puede ser la imprenta), son en todo
caso, por utilizar una terminología de Aristóteles, fines que al mismo ti-
empo son medios: merecen ser perseguidos por ellos mismos, aunque a su
vez nos abran a otros fines. Y, por otro lado, no tienen sólo la perspectiva
teleológica, la que los presenta como objetivos deseables. Tienen tambi-
én la perspectiva deontológica, en el sentido de que engendran deberes y
se proponen como instancias críticas respecto a lo dado6 . De hecho, en lo
que sigue tendré sobre todo presente esta cara de deber de los valores
citados. Comencemos, pues, por el valor de la verdad.
Globalmente hablando, cabría decir que este valor, traducido en princi-
pio, puede formularse del siguiente modo: lo que el periodista difunde como
información debe estar dirigido por la intención de verdad (veracidad) y
expresarse como verdad (conformidad con la realidad). El fraude moral
más básico es por eso el del engaño y la mentira, que están impulsados por
la intención de manipulación y dominio. Esto último muestra la conexión
entre el valor de verdad y el de respeto al otro: si la misión de la prensa es
informar al ciudadano para ofrecerle orientación para sus decisiones y su
participación social, el primer deber implicado en ello es el de respetar la
verdad, no sólo porque la mentira contradice lo que es la información, sino
porque el ciudadano tiene derecho a conocer esa verdad.
“Respetar” la verdad supone, de todos modos, “buscarla”. Los códigos
deontológicos fluctúan entre ambos verbos. Creo que hay que sintetizar-
los. Respetar la verdad remite a reflejarla en lo que se dice, como si
estuviera ahí y se la pudiera captar sin dificultad. Pero los periodistas
saben que, con frecuencia, la verdad es expresamente ocultada por los
poderes económicos, políticos o culturales y que, por eso, hay que “bus-
carla” removiendo, con los riesgos correspondientes, múltiples obstácu-
los. La intuición más válida del llamado “periodismo de investigación”
está ahí, aunque a veces se deje llevar por el valor mercantil de lo que
descubre.
Incluso cuando parece que la verdad está ahí –por ejemplo, una ca-

6
Lo que es visto como valioso, se nos muestra por otro lado como exigencia de ser alcanzado o realizado. En
realidad, los deberes más claros se derivan del valor de la dignidad de los seres humanos, que se traduce
inmediatamente en deber de respeto de la misma. Los valores morales en los medios de comunicación se
convierten en deberes por su conexión con este valor de la dignidad.

vol.4, n.2, 2003 Direito e Democracia 445


tástrofe- y que de lo que se trata es de reflejarla, de difundir lo que se ve
de modo manifiesto, se impone esta labor de búsqueda: de las causas, de
las conexiones, del contexto, etc. en torno a los cuales aparece en segui-
da mucho que desvelar. Esto es, ofrecer la verdad de un hecho no es
ofrecer su epidermis, o alguna parcialidad, es ofrecer la totalidad del
mismo en su marco de sentido e inteligibilidad.
De cara a esto último hay una seria dificultad. Precisamente desde el
valor como mercancía, la noticia periodística tiende a la fugacidad. En
función de otra novedad que aparece y de la audiencia, los media son
capaces de hacer cualquier interrupción de emisión de mensajes en tor-
no a algo. Autores como Ferry nos recuerdan en cambio que una exigen-
cia básica de éticas como la discursiva es que se dé continuidad a lo que
se dice hasta que lo implicado en ello esté adecuadamente resuelto. Por
eso, sin ignorar ciertos condicionantes comerciales, pero sin someterse a
ellos dócilmente, los periodistas deben tratar de cerrar adecuadamente
lo que abordan, porque lo contrario supone parcializar la verdad (y ser
infiel a las personas noticiables y a los receptores)7 .
Si volvemos ahora al “respeto” a la verdad, vemos que una expresión
decisiva de ese respeto es la objetividad y una condición decisiva del
mismo la imparcialidad. Algunos insisten en que es posible dicha objeti-
vidad (reflejar los hechos como son) y que el periodista debe ser fiel a
ella. Otros entienden que la objetividad es un mito, un ideal irrealizable,
porque en toda información hay implicada una selección, perspectiva,
tratamiento específico, enmarque, etc.; elementos todos ellos con carga
subjetiva inevitable. ¿Hay que renunciar entonces a la referencia a la
objetividad y contentarse con sustitutos como la honestidad? Daniel Cor-
nu8 nos ofrece a este respecto una serie de aclaraciones que considero
especialmente pertinentes para mantener la referencia a la objetividad y

7
Hay que reconocer las dificultades de esta tarea, dados los efectos de aceleración e inmediatez que parecen
consustanciales a los media, que traen unas consecuencias que D. Müller, inspirado en el filósofo Virilio,
sintetiza del siguiente modo: 1) si por un lado los medios de comunicación contribuyen a la formación del
espacio público, por otro lo problematizan, al dificultar, desde la velocidad y “presentismo” la comunicación
con la tradición cultural y con la acción de los actores responsables; 2) tal velocidad pone igualmente en
peligro el necesario momento de reflexión e interpretación, el momento de la complejidad; 3) la inmediatez,
el tiempo real, del que hacen gala los media, nos hace caer en la trampa de que se da una comunicación
directa que no necesita mediaciones personales, sociales y culturales; 4) la sucesión de presentes que se
devoran, por último, debilita la perspectiva histórica, dificulta situar los acontecimientos interpretados en
la densidad de una memoria y un proyecto. Ver “L’éthique, prise de vitesse par le cours du monde?, Le
Supplément 190 (1994) 51-69.
8
En su obra Journalisme et vérité, Genève, Labor et Fides, 1994.

446 Direito e Democracia vol.4, n.2, 2003


la imparcialidad, pero de modo no ingenuo, y que reasumo a mi modo:
- En primer lugar, tanto en emisores como en receptores, hay que
ser conscientes de que no se trata de presentar la verdad, sino
de ofrecer aproximaciones provisionales a ella, llamadas a
corregirse y a enriquecerse.
- En segundo lugar, hay que reconocer que junto con la
observación afinada que pretende captar el hecho tal como es,
hay siempre interpretación9 . Pero ésta, tanto en su versión cau-
sal, como axiológica, como comprehensiva, debe estar también
guiada por la intención de objetividad. Es decir, la interpretación
adecuada no nos despega de la imposible objetividad desnuda,
nos acerca a la objetividad encarnada que además se desprende
de todo dogmatismo desde su inevitable apertura a una
pluralidad que, de todos modos, debe estar fundamentada.
- En tercer lugar, es importante remitirse a la validación de lo
que se propone en los medios de comunicación a través del de-
bate y el diálogo, tanto entre colegas de los media como con sus
receptores. La búsqueda de la verdad, en este sentido, desborda
al periodista individual. El tema delicado está aquí en que estos
debates deben estar al servicio de la verdad, no convertirse en
espectáculo en el que lo que interesa es la “diversión” que la
trifulca provocada por los propios media aporta a los espectado-
res. De nuevo aquí, el valor mercantil puede jugar una mala
pasada y desvirtuar la orientación hacia la verdad de los deba-
tes mediáticos.
- Por último, hay que tener un sentido afinado de la imparcialidad.
Ésta no es la neutralidad aséptica propia del que renuncia a
toda subjetividad y toma de posición. De hecho todo periodista
tiene sus propias vivencias, convicciones y opciones que están
fuertemente relacionadas con lo que hace y que es iluso igno-
rar: aquí sí que se trata de no engañar siendo honestos y veraces.
Pero también imparciales, en el sentido de ofrecer una

9
Es, por ejemplo, ilusorio pensar que la información “en tiempo real” como la que ofrece la televisión es pura
objetividad: está la perspectiva del cámara, la selección, el tiempo que se dedica, el contexto mediático en
que se sitúa la emisión, etc. Incluso la falta de contextualización en la sociedad que produce el acontecimiento
filmado, algo que se da con frecuencia, supone la falta de objetividad propia de quien ofrece la epidermis,
ocultando o despistando respecto a lo que hay debajo.

vol.4, n.2, 2003 Direito e Democracia 447


observación y atención justa y ajustada a todos los sujetos en
juego en la información, y de tratar idénticamente casos
idénticos, sin que tomas previas de partido generen preferencias
o selecciones injustas. En este sentido, la imparcialidad se nos
muestra conexionada con el respeto debido a los otros y distan-
ciada de la mera “neutralidad” que puede ser de hecho injusta.
Conexionada con esta búsqueda de una verdad que nunca es plena,
que se va haciendo camino, aparece la cuestión de la pluralidad informa-
tiva ya citada, que normalmente se asegura a través de la pluralidad de
enfoque de los medios de información. En este sentido el enemigo de la
verdad es el monopolio, ya sea político o económico. En su momento ha
habido más riesgos de monopolización por parte del poder político. Hoy el
riesgo viene más bien de las grandes concentraciones de empresas medi-
áticas. Se ha dicho, ante este riesgo, que una de las tareas que compete
a los Estados en este terreno es la de su intervención a fin de organizar las
condiciones de concurrencia que garanticen el pluralismo informativo.
Hasta ahora esto parecía posible intraestatalmente. Ahora ha surgido un
problema: también las empresas mediáticas se hacen transnacionales, sin
que hayamos encontrado un poder político transnacional que pueda con-
trolar democráticamente su tendencia a la generación de
(cuasi)monopolios. Es un tema sobre el que habrá que reflexionar en nu-
estro contexto globalizado para tratar de avanzar medidas adecuadas.
Tras todas estas precisiones en torno a la verdad nos quedan todavía
dos cuestiones importantes sin resolver, pero que nos van a conducir de
modo directo a los otros valores citados en su momento. Según lo avanza-
do, todo lo que se diga debe ser acorde con la verdad, pero ¿qué verdades
hay que decir, qué opiniones hay que transmitir? ¿Se tiene derecho a
decir cualquier cosa con tal de que sea verdad o de que caiga dentro de
la libertad de opinión? Entramos aquí en terreno delicado que, de todos
modos, nos muestra que la referencia a la verdad no es absoluta sino
condicionada.
Respecto a qué debe decirse en los media está, por supuesto, la cuesti-
ón previa de qué puede decirse. Es ya lugar común indicar que los perio-
distas están sujetos a una triple referencia, a la hora de seleccionar lo que
cabe decir. Por un lado, al criterio de lo que es merecedor de ser destaca-
do de cara a los objetivos internos al propio periodismo y pensando en los
receptores; éste debería ser el criterio decisivo, que nos remite al valor

448 Direito e Democracia vol.4, n.2, 2003


del respeto a las personas. Pero, por otro lado, está evidentemente el cri-
terio de rentabilidad económica que, por todo lo dicho, no se puede ig-
norar, aunque deba quedar subordinado al anterior. Pero además está el
criterio de la orientación ideológica que tiene el medio en que se ofrece
la información, a la que lo dicho no puede contradecir: referencia legíti-
ma, con tal de que se haga en los marcos del pluralismo mediático, de la
transparencia y coherencia y de la democracia. El periodista, en su traba-
jo cotidiano, al tener que aceptar estos tres criterios, está a partir de aquí
empujado a una especie de negociación latente y a veces explícita que
desde el punto de vista moral le pide que haga una articulación jerarqui-
zada de dichos criterios y que a veces le puede llevar a serios dilemas
personales.
Salvados estos obstáculos, ¿puede el periodista decir lo que quiere
decir con tal de que sea verdad? La verdad no aparece en este momento
como un valor absoluto e independiente. De acuerdo con la finalidad
ínsita al periodismo, lo que se diga, además de responder a la verdad,
debe responder al respeto debido al otro y a la responsabilidad social. De
hecho el respeto a la dignidad de las personas es el valor decisivo desde el
que discernir lo que debe decirse y cómo debe decirse, aunque la con-
creción del mismo en cada circunstancia y su conexión tanto con la liber-
tad del periodista como con el interés público no es nada fácil y pide lo
que éticamente podemos llamar ejercicio de la sabiduría práctica. Pero
esto nos introduce de lleno en los otros dos valores que se citaron antes y
que paso a abordar.

IV
La actividad mediática está íntimamente relacionada con el valor de
la libertad. Ésta no sólo es el valor decisivo para el pensamiento moderno
que identifica al ser humano con su autonomía, es además un valor muy
especial, en la medida en que es también el espacio necesario para la
realización de los otros valores morales, que sólo podrán alcanzarse o sólo
merecerán el nombre de tales, si se generan en un clima de libertad.
El periodismo, en concreto, nace como una encarnación específica de
la libertad de expresión y opinión. En este sentido está ligado a las liber-
tades individuales, como se muestra claramente en la “Declaración fran-

vol.4, n.2, 2003 Direito e Democracia 449


cesa de los derechos del hombre y del ciudadano”, redactada precisa-
mente en los albores de esta actividad10 . Una libertad así planteada se
conexiona directamente no con un deber en el periodista, sino con un
derecho que los diversos poderes (especialmente el empresarial y el polí-
tico, pero también otros como el religioso) deben respetar e incluso prote-
ger. El periodista realiza este valor de la libertad cuando está libre de
presiones externas a los media y cuando está también libre de presiones
internas a ellos11 . Lo único que se plantea desde aquí es regular la libertad
del profesional periodista con la del profesional empresario de los medios
de comunicación, a través de la transparencia en la contratación y la
coherencia en el ejercicio de la actividad de ambos.
Pero el tema de la libertad de los periodistas es más complejo. Cuando
se aclara el sentido de la actividad periodística, no se concibe a ésta
meramente como una expresión más de la libertad de opinión (como pu-
ede ser dialogar con el vecino, pero incluso escribir un libro), se la acaba
concibiendo como el espacio privilegiado del derecho a la información, el
espacio privilegiado desde el que realizar lo que la Declaración Universal
de Derechos Humanos, completando a la de la Revolución francesa, lla-
ma “el derecho a recibir informaciones y opiniones”12 . El acto periodístico
de informar, dirán autores como Habermas, no remite a relaciones inter-
personales, es un acto social que debe colocarse en lo que él llama “espa-
cio público”, situado entre la esfera estrictamente política del Estado y
las necesidades de la sociedad civil, el espacio precisamente del debate
público y la participación13 . Contextualizada de este modo la actividad
periodística, la libertad del periodista se convierte en libertad al servicio
de un derecho a la información que apunta fundamentalmente a los ciu-
dadanos, que es derecho de los ciudadanos a estar informados y poder

10
En su artículo 11 se dice: “La libre comunicación de los pensamientos y de las opiniones es uno de los derechos
más preciados del hombre; todo ciudadano puede, por tanto, hablar, escribir e imprimir libremente, salvo
la responsabilidad que el abuso de esta libertad produzca en los casos determinados por la ley”
11
Inicialmente, todos imaginamos estas presiones internas como provenientes del poder empresarial de los
medios de comunicación. Pero hay también otras presiones más sutiles, a las que el periodista puede ceder
sin darse cuenta, sin buscar un punto de equilibrio adecuado: por ejemplo, aquellas que derivan de la
férrea ley de la audiencia, o del sometimiento a la ley de la novedad última que ahoga la anterior.
12
“Todo individuo tiene derecho a la libertad de opinión y expresión; este derecho incluye el de no ser
molestado a causa de sus opiniones, el de investigar y recibir información y opiniones, y el de difundirlas,
sin limitación de fronteras, por cualquier medio de expresión” (art. 19).
13
En torno a estas cuestiones puede consultarse su libro Historia y crítica de la opinión pública, México, Gustavo
Gili.

450 Direito e Democracia vol.4, n.2, 2003


desde ahí participar consciente y críticamente en su sociedad. La liber-
tad del periodista se muestra entonces como condición de posibilidad al
servicio de este derecho y de la búsqueda de la verdad que supone. Su
libertad se hace una especie de deber hacia el receptor, condicionándose
el contenido y la bondad de su ejercicio desde ese deber. Daniel Cornu,
en la obra antes citada, establece a este respecto una distinción que pu-
ede ser iluminadora: para entender adecuadamente la libertad del perio-
dista, dice, hay que verla por un lado como libertad pública, definida más
por su función hacia los ciudadanos que como derecho personal o privile-
gio, y por otro lado como libertad interna en los medios en los que trabaja
(especialmente frente al poder empresarial); esta última debe ser con-
cebida como condición de ejercicio de la primera14 .
No hay que ignorar el hecho de que ésta es una distinción delicada,
que cabe ser manipulada por los diversos poderes que quieren sojuzgar a
los medios de comunicación, los cuales pueden aducir que recortan cier-
tas libertades de los profesionales porque no son expresión de las exigen-
cias de esta libertad pública. Ante ello hay que defender que la distinci-
ón debe operar fundamentalmente como una distinción para el periodista,
aunque sujeta en sus concreciones al debate y la crítica públicos. El pro-
fesional de los media debe saber que su profesión no le empuja a decir lo
que quiera, cuando quiera y como quiera, sino que le empuja a hacer
selecciones de actualidad, hacer un tratamiento u otro de las mismas,
emitir opiniones y críticas, etc. en función del derecho a la información
de los ciudadanos, que apunta a su vez a que sea posible la participación
de éstos y se realice la justicia. Dicho de otro modo, no le empuja a
alimentar noticias y comentarios desde la esfera privada y para la esfera
privada de los receptores, sino a ofrecer informaciones que pueden con-
cernir a la sociedad civil y su dinámica creativa. Con todo, las autorida-
des públicas –el sistema judicial en concreto- sólo deben intervenir cu-
ando la libertad del periodista vulnera claramente los derechos funda-
mentales de las personas a las que afecta su iniciativa, de acuerdo a lo
que las leyes democráticas deben marcar al respecto. Esto es, no deben
convertirse en intérpretes afinados últimos –y jueces- de lo que significa
la libertad pública en el periodista.

14
J.M. Ferry va en la misma línea cuando dice: “Ciertamente, no hay libertad de comunicación sin libertad de
prensa. Pero puede haber libertad de prensa sin libertad de comunicación”, en “Réflexions sur le nouvel
espace public”, en Le Supplément190 (1994) 15.

vol.4, n.2, 2003 Direito e Democracia 451


De nuevo aquí vemos que el valor de la libertad en la información
tampoco se nos impone de modo incondicionado. Hay que hacerlo en el
marco de lo que hemos definido como libertad pública y dentro del límite
del respeto debido a la dignidad de las personas a las que afecta. Pero
esto nos conduce al tercer valor que se resaltó en su momento.

V
Todo ser humano, sentenció Kant, por el mero hecho de ser humano,
es sujeto de dignidad y en condición de tal merece respeto, que se
concreta en que nunca puede ser tratado como puro medio. Con ello
este autor sintetizaba magníficamente el valor fundamental del que
derivan los deberes a la vez más elementales e importantes. Aplicado al
campo informativo: los “objetos” sobre los que se informa son “sujetos”,
personas, son víctimas, testigos, responsables institucionales, protago-
nistas de progresos en diversos campos, etc. Como tales no pueden ser
tratados como puros medios al servicio de intereses económicos, políti-
cos o ideológicos de los diversos componentes del sistema mediático.
Igualmente, los receptores de los media son personas, que, por tanto, no
pueden ser manipuladas en función de dichos intereses. Veamos lo que
esto puede suponer.
En primer lugar, la lectura más básica, más elementalmente obligato-
ria, que hay que hacer de este principio moral es una lectura “en negati-
vo”. Los profesionales de la información no pueden tomar iniciativas que
dañen directamente a la dignidad humana: difamando, entrando en la
vida privada de las personas, etc. Hay en este sentido lo que tradicional-
mente se reconoce como derecho al honor y a la intimidad que debe ser
respetado. Aun conscientes de que a veces se muestra en tensión con el
interés público, que pide que ciertas cuestiones que inicialmente se nos
muestran propias de la vida privada de ciertas personas con importantes
responsabilidades institucionales, deban ser conocidas porque tienen re-
percusiones sobre su vida pública. Pero estos casos son los menos. En este
sentido hay que denunciar más bien la fuerte tendencia existente en los
medios y derivada del interés mercantil, a introducirse en la vida privada
de las personas, tanto de los “famosos”, como del “ciudadano corriente” –
en forma de realities show y similares-. Evidentemente, aquí es importan-
te distinguir entre si hay consentimiento de los afectados o no. Pero in-

452 Direito e Democracia vol.4, n.2, 2003


cluso cuando se da ese consentimiento hay que plantearse dos cuestio-
nes. La primera es relativa a la calidad del mismo: los profesionales pue-
den abusar de la fascinación que produce aparecer en los medios para
utilizar a ciertas personas, especialmente de las capas más populares. La
segunda tiene que ver con lo que se dijo antes: al fomentar esa tendencia
a introducir la vida privada en los medios para que a su vez éstos devuel-
van cosas que sólo interesan a la vida privada de los receptores, los medi-
os de comunicación se desvían de su razón más auténtica de ser, que es
situarse en lo que Habermas llama el espacio público. Si esa desviación
acaba siendo grande, acaba siendo dominante, si los medios de comuni-
cación se aprovechan abusivamente de nuestras inclinaciones morbosas
al voyeurismo, puede hablarse de una traición hacia lo que les define y a
su vocación de servicio público.
No quiere decirse, con esto, que sería bueno que los medios con au-
téntica vocación informativa se limitaran a noticias, comentarios y opini-
ones respecto a lo que tiene que ver con el mundo institucional en sus
diversas manifestaciones o con el mundo de los temas emergentes y deba-
tibles en una sociedad. Caben también, en la lógica interna de lo que es
información ciudadana, noticias relativas a “hechos diversos”, en la me-
dida en que esos hechos, por su selección y tratamiento, son reveladores
de estados, anhelos, problemas de la sociedad. No se trata, si se quiere,
de ser informadores puritanos, pero sí debe quedar claro, por un lado, que
no se hacen manipulaciones indebidas de las personas y por otro que lo
dominante en el flujo informativo es lo que tiene que ver con la potenci-
ación de la sociedad civil.
En lo que respecta a la manipulación de los receptores, es ya un deba-
te clásico discutir sobre el alcance del poder de los medios de comunica-
ción para configurarnos a su antojo. Aquí menciono solamente esta polé-
mica. Autores como Adorno llegaron a proponer lo que se conoce expre-
sivamente con el nombre de “teoría de la jeringuilla hipodérmica”, en el
sentido de que hablaron de unos medios de comunicación que “inyecta-
ban” ideas, actitudes y modelos de comportamiento a individuos pasivos,
atomizados y manipulables, con el grave riesgo de que se crearan de he-
cho, bajo la apariencia democrática, sociedades totalitarias. A esta teoría
de los “efectos potentes” se le opuso pronto la teoría de los “efectos li-
mitados” que, especialmente en Estados Unidos, acudió a la investigaci-
ón empírica para mostrar que hay en el público receptor un grado impor-
tante de independencia frente a los media y sus mensajes, por lo que más

vol.4, n.2, 2003 Direito e Democracia 453


que hablar de efectos de éstos convendría hablar de diversos “usos y gra-
tificaciones” en la relación emisores-receptores.
Esto es, sin ignorar la importante influencia que ejercen los media
hay que matizarla desde la capacidad de iniciativa de los receptores
en su propia recepción, en forma de recodificación, filtrado y crítica
de lo que reciben. En este sentido no puede ignorarse que el receptor
tiene su propia responsabilidad moral en estos temas: por el tipo de
medios que potencia con sus opciones de lectura y audiencia, por la
capacidad crítica que alimenta, etc. También a los receptores les toca
exigir y utilizar los medios de comunicación no como objeto de consu-
mo privado sino como referencias para la formación pública. Los re-
ceptores no pueden ignorar que se genera una especie de círculo de
interalimentación entre medios de comunicación, publicidad y públi-
co en el que los primeros ofrecen a los últimos lo que éstos quieren y
la publicidad apoya, ésta pide a los medios que ofrezcan lo que el
público quiere, y éste quiere lo que los medios, financiados por la
publicidad, le incitan a querer.
Hoy, en cualquier caso, se tiende a decir que la influencia de los
media, y desde ahí sus tentaciones de manipulación directa –ideológica
y política- o indirecta –desde el afán exclusivo de acumular valor mer-
cantil-, proviene sobre todo del hecho de que, con sus selecciones y
tratamientos, imponen a la sociedad los hechos que socialmente exis-
ten y los temas sobre los que se debate. Imponen la “agenda”, limitando
con ello estructuralmente las posibilidades de comunicación. En este
sentido es especialmente peligrosa la concentración mediática existen-
te. Estados Unidos, la Unión Europea y Japón acaparan el 90% de la
producción de bienes y servicios de información. Desde este gravísimo
desequilibrio Norte-Sur, puede ya sospecharse la intensidad y modo de
presencia que el Sur tendrá en los medios de comunicación del Norte y
que el Norte tendrá en los medios de comunicación del Sur. A nivel de
diversión no es menos unilateralmente significativo el hecho de que la
industria mundial de la diversión esté prácticamente monopolizada por
Estados Unidos. No es de extrañar que se diga que el sistema mundial
de comunicación puede ser visto como una de las herencias más ancla-
das del colonialismo.
Desde esta capacidad de imponer la agenda, la “responsabilidad por
los efectos” se traslada a la “responsabilidad por las propuestas”, que de-
ben inducir a los profesionales de los media a preguntas como éstas: ¿qué

454 Direito e Democracia vol.4, n.2, 2003


acontecimientos, qué colectivos humanos quedan fuera y por qué?, ¿qué
grado de injusticia hay en ello?, ¿qué queda dentro y por qué?, ¿es adecu-
ado su grado de relevancia?, ¿qué presentación de realidad se produce y
qué valores se resaltan?, etc.
Estas últimas preguntas nos introducen en la versión “en positivo”
del respeto debido a las personas como sujetos de dignidad. No se
trata sólo de no dañar directamente al otro, se trata de ser vehículo
adecuado del conjunto de sus derechos, a partir de lo que son los
medios de comunicación. Concretando un poco, creo que toca a estos
medios ser a su modo vehículo del derecho a la participación política
de los ciudadanos y del derecho a una justicia distributiva correcta.
Participación y justicia que deben ser vistos también como valores
adheridos a la tarea informativa.
Comencemos por el tema de la participación, y con unas conside-
raciones iniciales que la enlazan con algunas de las cuestiones que se
acaban de tratar. Una primera cuestión extraña es que la participaci-
ón pide diálogo y que los medios de “comunicación”, a pesar de lla-
marse así, son básicamente medios unidireccionales, de información
de unos emisores a unos receptores. Esto chirría de algún modo con el
valor decisivo de la autonomía, ligado a la libertad. En la experiencia
mediática al profesional se le supone autonomía, al receptor en cam-
bio, parece que dependencia. Si describimos este fenómeno con las
categorías habituales en las éticas profesionales diríamos que parece
tratarse aquí de que el profesional, desde su autonomía, hace activi-
dad de beneficencia con un paternalismo benevolente hacia un clien-
te más bien pasivo, el receptor. Si esto fuera así, evidentemente es
rechazable. Puede, con todo, destacarse un correctivo: el receptor es
un adulto que, además de realizar una recepción crítica y por tanto al
menos parcialmente activa, tiene diversos márgenes de autonomía fren-
te al emisor, comenzando por el de abrirse o no a la emisión propuesta.
En cualquier caso, la solución no acaba de ser satisfactoria, frente al
ideal de dos autonomías que dialogan en condiciones de igualdad y
guiadas sólo por la ley del mejor argumento, como propone la ética
discursiva. Por eso se han ido introduciendo iniciativas diversas: pre-
sencia de los receptores, en forma de cartas al director o llamadas
telefónicas en los debates, estudios sociológicos de audiencia, institu-
cionalización de la figura del defensor del lector o audiovidente, etc.
Está además el derecho de respuesta que tienen aquellas personas
afectadas por informaciones en las que no se reconocen, que, por su-

vol.4, n.2, 2003 Direito e Democracia 455


puesto, es de justicia. Hay que reconocer, con todo, que se trata sólo
de medidas de maquillaje y quizá de marketing. Probablemente hay
que aceptar también que el sistema mediático es de tal naturaleza
que no puede contemplar el dar de verdad la palabra a los receptores.
Si es así, tendrá que ser consciente de sus límites y de sus tentaciones
monopolizadoras, para no caer en ellas.
Si hay un límite en la comunicación emisor-receptor, la fuerza del
emisor mediático está en que puede constituirse en la mejor fuente de
aportación a los ciudadanos de aquellas noticias y opiniones que se
precisan para participar de verdad en la vida política y social. Los
media, por supuesto, no pueden sustituir el procedimentalismo demo-
crático, pero pueden ayudar a darle alma, a que no sea una mera
mecánica del juego entre mayorías y minorías: aportando las informa-
ciones de la realidad que son necesarias para ello, adecuadamente
contextualizadas, ofreciendo espacios de opinión y debate que madu-
ren las opciones, motivando la organización ciudadana, haciéndose
eco de las causas justas, etc.
Evidentemente, la primera condición para ello es que exista la po-
sibilidad de un acceso generalizado y en igualdad de condiciones bá-
sicas a los medios de comunicación. Y con ello entramos ya en el valor
de la justicia. Esto pide, para empezar que el bien de la educación
básica digna con la que poder ser receptor crítico y dinámico de todos
los medios y en todas sus expresiones, esté garantizada a todos 15 . Y
aquí interviene de nuevo el Estado, como garante de esta igualdad de
oportunidades. Al hacer políticas públicas que aseguran la igualdad
de acceso a los medios de comunicación, el Estado se convierte en el
garante del derecho de los ciudadanos a estar adecuadamente infor-
mado. ¿Debe ir más lejos en la protección de este derecho? Ya se avan-
zó que le toca también velar no sólo para que la recepción sea genera-
lizada y madura, sino para que la recepción sea convenientemente

15
La televisión, apoyada económicamente en la publicidad y/o los presupuestos del Estado, está ofreciendo
diversas cadenas de acceso general a la población y relativamente económico. Esta generalización se da
todavía más en la radio, con más fácil cobertura y mucho más económica de cara a la adquisición del
aparato receptor. Esto significa que son medios especialmente relevantes cuando se piensa en las mayorías:
un porcentaje importante, sobre todo entre los más pobres, sólo acude a ellos. Por eso deben ser cuidados
con esmero, de acuerdo a los criterios que se han ido avanzando, aunque con frecuencia sean los medios
(especialmente en el caso de la televisión) que más los incumplen. Por otro lado, fomentar y posibilitar
también el acceso de todos a la prensa escrita, con sus ventajas específicas que no han sido anuladas por
los medios más modernos, es una tarea necesaria.

456 Direito e Democracia vol.4, n.2, 2003


plural. ¿Puede pasar a más y tener sus propios medios de comunicaci-
ón que completen y corrijan lo que ofrecen los medios privados? En
situaciones democráticas, como las que aquí se contemplan, se acepta
que puedan hacerlo con tal de que sea clara su perspectiva de servi-
cio público frente a la de negocio, no sean monopolistas, reflejen in-
ternamente el pluralismo social y acepten un control democrático. De
hecho los Estados tienden a tener algunos medios en el ámbito de la
radio y la televisión. La experiencia dice, con todo, que no es nada
fácil tenerlos en esas condiciones, que los medios públicos tienden a
servir al partido político en el poder, por lo que siempre hay que estar
en alerta crítica. Aunque no hay que ignorar que en la medida en que
se acercan a las condiciones citadas, pueden aportar un importante
servicio.
Si por un lado se hace justicia con los receptores a través de políti-
cas públicas que garantizan su igualdad de oportunidades ante los
media, a través de la educación y la suficiencia económica, por otro
lado se hace también justicia cuando dichos medios se convierten en
el portavoz de las víctimas de las diversas injusticias, cuando se les
ofrece acceso a esos medios, generando de este modo una conciencia
social, una opinión pública, proclive a convertirse en presión política
para que se tomen las medidas adecuadas con las que superar las in-
justicias descritas y denunciadas. Es cierto que el periodista en sí, de
modo directo, no es un militante de las causas de la paz y la justicia,
no es un organizador de la lucha contra la injusticia, en sí es un infor-
mador y generador de debate público y debe mantenerse fiel a ello.
Ahora bien, si cumple adecuadamente ese objetivo, si se acerca a la
realidad más significativa para todos los humanos intentando descri-
birla en su marco de significado pleno (con una adecuada articulaci-
ón entre descripción e interpretación, tal como se dijo), se topará
inevitablemente con la “noticia” de la injusticia. Si convoca a testigos
de las diversas realidades, deberá convocar a testigos y víctimas –
personales y colectivas- de la injusticia, y deberá hacerlo en proporci-
ón a la extensión y relevancia de la misma.
Los grandes valores aquí descritos nos muestran, por un lado, todo
lo que de apreciable tienen los medios de comunicación cuando se
inspiran en ellos. Por otro lado, desde su derivación hacia el deber,
nos sugieren los grandes principios con los que orientarnos emisores y
receptores. Sabemos que luego se precisan orientaciones y normas más

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concretas, que los diversos códigos deontológicos de la profesión in-
tentan dar. Como sabemos que, en la práctica concreta, será decisiva
esa “sabiduría ética” que contextualiza los principios en las situacio-
nes y se abre honestamente a las consecuencias. Sobre todo esto ha-
bría que hablar para completar el panorama moral de los medios de
comunicación. Aquí nos hemos ceñido al primer nivel, al que, aun-
que parezca poco concreto, moviliza y fundamenta todos los demás, al
que debe calar en las convicciones. Desvelar su relevancia y alcance
ha sido nuestra intención.

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Documento histórico

Declaração dos direitos da mulher


e da cidadã

OLYMPE DE GOUGES
(Setembro de 1791)

Este documento foi proposto à Assembléia Nacional da


França, durante a Revolução Francesa(1789-1799). Marie
Gouze (1748-1793), a autora, adotou o nome de Olympe
de Gouges para assinar seus planfletos e petições em uma
grande variedade de frentes de luta, incluindo a escravi-
dão, em relação à qual propunha a abolição. Em 1791,
propõe uma Declaração de Direitos da Mulher e da Cida-
dã, em contraposição à leitura masculina daquela aprova-
da pela Assembléia Nacional. Girondina, ela se opõe aber-
tamente a Robespierre e acaba por ser guilhotinada em
1793, condenada como contra-revoluionária e denunciada
como uma mulher “desnaturada”.

PREÂMBULO
Mães, filhas, irmãs, mulheres representantes da nação reivindicam
constituir-se em uma assembléia nacional. Considerando que a ignorân-
cia, o menosprezo e a ofensa aos direitos da mulher são as únicas causas
das desgraças públicas e da corrupção no governo, resolvem expor em
uma declaração solene, os direitos naturais, inalienáveis e sagrados da
mulher. Assim, que esta declaração possa lembrar sempre, a todos os mem-
bros do corpo social seus direitos e seus deveres; que, para gozar de con-
fiança, ao ser comparado com o fim de toda e qualquer instituição políti-
ca, os atos de poder de homens e de mulheres devem ser inteiramente
respeitados; e, que, para serem fundamentadas, doravante, em princípios

Direito
vol.4, e Democracia
n.2, 2003 Canoas
Direito e vol.4, n.2
Democracia 2º sem. 2003 p.459-463
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simples e incontestáveis, as reivindicações das cidadãs devem sempre res-
peitar a constituição, os bons costumes e o bem estar geral.
Em conseqüência, o sexo que é superior em beleza, como em coragem,
em meio aos sofrimentos maternais, reconhece e declara, em presença, e
sob os auspícios do Ser Supremo, os seguintes direitos da mulher e da
cidadã:
Artigo 1º
A mulher nasce livre e tem os mesmos direitos do homem. As dis-
tinções sociais só podem ser baseadas no interesse comum.
Artigo 2º
O objeto de toda associação política é a conservação dos direitos
imprescritíveis da mulher e do homem: Esses direitos são a liber-
dade, a propriedade, a segurança e, sobretudo, a resistência à
opressão.
Artigo 3º
O princípio de toda soberania reside essencialmente na nação, que
é a união da mulher e do homem: nenhum organismo, nenhum
indivíduo, pode exercer autoridade que não provenha expressa-
mente deles.
Artigo 4º
A liberdade e a justiça consistem em restituir tudo aquilo que per-
tence a outros, assim, o único limite ao exercício dos direitos
naturais da mulher, isto é, a perpétua tirania do homem, deve
ser reformado pelas leis da natureza e da razão.
Artigo 5º
As leis da natureza e da razão proíbem todas as ações nocivas à
sociedade: tudo aquilo que não é proibido pelas leis sábias e
divinas não podem ser impedidos e ninguém pode ser constran-
gido a fazer aquilo que elas não ordenam.
Artigo 6º
A lei deve ser a expressão da vontade geral: todas as cidadãs e

460 Direito e Democracia vol.4, n.2, 2003


cidadãos devem concorrer pessoalmente ou com seus represen-
tantes para sua formação; ela deve ser igual para todos. Todas as
cidadãs e cidadãos, sendo iguais aos olhos da lei, devem ser
igualmente admitidos a todas as dignidades, postos e empregos
públicos, segundo as suas capacidades e sem outra distinção a
não ser suas virtudes e seus talentos.
Artigo 7º
Dela não se exclui nenhuma mulher: esta é acusada, presa e deti-
da nos casos estabelecidos pela lei. As mulheres obedecem, como
os homens, a esta lei rigorosa.
Artigo 8º
A lei só deve estabelecer penas estritamente e evidentemente ne-
cessárias e ninguém pode ser punido senão em virtude de uma
lei estabelecida e promulgada anteriormente ao delito e legal-
mente aplicada às mulheres.
Artigo 9º
Sobre qualquer mulher declarada culpada a lei exerce todo o seu
rigor.
Artigo 10
Ninguém deve ser molestado por suas opiniões, mesmo de princí-
pio; a mulher tem o direito de subir ao patíbulo, deve ter tam-
bém o de subir ao pódio desde que as suas manifestações não
perturbem a ordem pública estabelecida pela lei.
Artigo 11
A livre comunicação de pensamentos e de opiniões é um dos direitos
mais preciosos da mulher, já que essa liberdade assegura a legiti-
midade dos pais em relação aos filhos. Toda cidadã pode então
dizer livremente: “Sou a mãe de um filho seu”, sem que um precon-
ceito bárbaro a force a esconder a verdade; sob pena de responder
pelo abuso dessa liberdade nos casos estabelecidos pela lei.
Artigo 12
É necessário garantir principalmente os direitos da mulher e da

vol.4, n.2, 2003 Direito e Democracia 461


cidadã; essa garantia deve ser instituída em favor de todos e
não só daqueles às quais é assegurada.
Artigo 13
Para a manutenção da força pública e para as despesas de adminis-
tração, as contribuições da mulher e do homem serão iguais; ela
participa de todos os trabalhos ingratos, de todas as fadigas, deve
então participar também da distribuição dos postos, dos empre-
gos, dos cargos, das dignidades e da indústria.
Artigo 14
As cidadãs e os cidadãos têm o direito de constatar por si próprios
ou por seus representantes a necessidade da contribuição públi-
ca. As cidadãs só podem aderir a ela com a aceitação de uma
divisão igual, não só nos bens, mas também na administração
pública, e determinar a quantia, o tributável, a cobrança e a
duração do imposto.
Artigo 15
O conjunto de mulheres igualadas aos homens para a taxação tem
o mesmo direito de pedir contas da sua administração a todo
agente público.
Artigo 16
Toda sociedade em que a garantia dos direitos não é assegurada,
nem a separação dos poderes determinada, não tem Constitui-
ção; a Constituição é nula se a maioria dos indivíduos que com-
põem a nação não cooperou na sua redação.
Artigo 17
As propriedades são de todos os sexos juntos ou separados; para
cada um deles elas têm direito inviolável e sagrado; ninguém
pode ser privado delas como verdadeiro patrimônio da natureza,
a não ser quando a necessidade pública, legalmente constatada
o exija de modo evidente e com a condição de uma justa e
preliminar indenização.

462 Direito e Democracia vol.4, n.2, 2003


CONCLUSÃO
Mulher, desperta. A força da razão se faz escutar em todo o Universo.
Reconhece teus direitos. O poderoso império da natureza não está mais
envolto de preconceitos, de fanatismos, de superstições e de mentiras. A
bandeira da verdade dissipou todas as nuvens da ignorância e da usurpa-
ção. O homem escravo multiplicou suas forças e teve necessidade de
recorrer às tuas, para romper os seus ferros. Tornando-se livre, tornou-se
injusto em relação à sua companheira.

FORMULÁRIO PARA UM CONTRATO SOCIAL


ENTRE HOMEM E MULHER
Nós, __________ e ________ movidos por nosso próprio desejo, uni-
mo-nos por toda nossa vida e pela duração de nossas inclinações mútuas sob as
seguintes condições: Pretendemos e queremos fazer nossa uma propriedade
comum saudável, reservando o direito de dividi-la em favor de nossos filhos e
daqueles por quem tenhamos um amor especial, mutuamente reconhecendo
que nossos bens pertencem diretamente a nossos filhos, de não importa que
leito eles provenham (legítimos ou não)e que todos, sem distinção, têm o direito
de ter o nome dos pais e das mães que os reconhecerem, e nós impomos a nós
mesmos a obrigação de subscrever a lei que pune qualquer rejeição de filhos do
seu próprio sangue (recusando o reconhecimento do filho ilegítimo). Da mes-
ma forma nós nos obrigamos, em caso de separação, a dividir nossa fortuna,
igualmente, e de separar a porção que a lei designa para nossos filhos. Em caso
de união perfeita, aquele que morrer primeiro deixa metade de sua propriedade
em favor dos filhos; e se não tiver filhos, o sobrevivente herdará, por direito, a
menos que o que morreu tenha disposto sobre sua metade da propriedade
comum em favor de alguém que julgar apropriado. (Ela, então, deve defender
seu contrato contra as inevitáveis objeções dos “hipócritas, pretensos modestos,
do clero e todo e qualquer infernal grupo”.

vol.4, n.2, 2003 Direito e Democracia 463


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Normas Editoriais

I. APRESENTAÇÃO DOS ORIGINAIS


1. Os artigos devem ser apresentados em disquete, preferencial-
mente em Windows Word 6.0 ou superior, acompanhados de
uma cópia impressa.
2. O texto dos artigos deverá ter de 10 a 20 laudas, em média.
3. Um resumo de seis a dez linhas, em língua inglesa e em língua
portuguesa, deverá introduzir o artigo, juntamente com pala-
vras-chave indicativas de seu conteúdo.
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tulo; subtítulo ( se houver); nome do(s) autor(es); maior
titulação acadêmica ou outra, cargo atual e instituição onde
exerce as funções; telefone e endereço; e-mail, se for o caso.
5. As citações, referências bibliográficas e notas de rodapé deve-
rão seguir, obrigatoriamente, as normas da ABNT. As citações,
no texto, deverão ser feitas em língua portuguesa, reservando-
se as citações em língua estrangeira para as notas de rodapé, se
for o caso. Excepcionalmente, a critério do Conselho Editorial e
dos editores, serão aceitos artigos em espanhol ou citações, no
texto, nesta língua, por ser ela comum aos países do Mercosul.
6. Artigos em outra língua estrangeira poderão ser aceitos, a juízo
do Conselho Editorial e dos editores, se o autor for estrangeiro e
sua contribuição de indiscutível valor científico.

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II. PUBLICAÇÃO
1. Os trabalhos remetidos para publicação serão submetidos à apre-
ciação do Conselho Editorial ou de outros consultores por este
designados, de acordo com as especificidades do tema.
2. O Conselho Editorial não se responsabiliza pela devolução dos
originais.
3. Havendo necessidade de alterações quanto ao conteúdo do tex-
to, será sugerido ao autor que as faça, para posterior publicação.
Adeqüação lingüística e copidescagem ficam a cargo dos edito-
res, ressalvada a alteração de conteúdo.
4. Os autores, cujos trabalhos forem publicados, receberão dois
exemplares da Revista e cinco separatas.
5. Os trabalhos devem ser encaminhados para:

Prof. Dr. Plauto Faraco de Azevedo, Editor


Revista Direito e Democracia
Universidade Luterana do Brasil
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