You are on page 1of 2

Educação do olhar

Já li muitos livros sobre psicologia da educação, sociologia da educação, filosofia da educação, didática... mas, por mais que me
esforce, não consigo me lembrar de qualquer referência à educação do olhar, ou à importância do olhar na educação
1. Van Gogh tem uma delicada tela que representa esta 8. Eu, menino, tinha grande prazer em ver figuras. Nos
cena: o pai, jardineiro, interrompeu seu trabalho, está tempos da minha infância livros de figura não se
ajoelhado no chão, com os braços estendidos para a encontravam prontos para serem comprados nas livrarias.
criança que chega, conduzida pela mãe. O rosto do pai Eu mesmo fiz um álbum de figuras. Era um caderno
não pode ser visto. Mas é certo que ele está sorrindo. O grande no qual fui colando figuras de cachorros. Minha
rosto-olhar do pai está dizendo para o filhinho: «Eu quero mãe não gostava de cachorros. Nunca pude ter um. Tinha
que você ande». É o desejo de que a criança ande, inveja dos meninos que tinham. Fazendo o álbum de
desejo que assume forma sensível no rosto da mãe ou do cachorros eu realizei, de alguma forma, o meu desejo.
pai, que incita a criança à aprendizagem dessa coisa que 9. A criança de olhar vazio e distraído: ela não aprende.
não pode ser ensinada nem por exemplo e nem por Os psicólogos apressam-se em diagnosticar alguma
palavras. perturbação cognitiva. Mas uma outra hipótese tem de ser
2. Segundo Nietzsche a primeira tarefa da educação é levantada: a inteligência dessa criança foi enfeitiçada pelo
ensinar a ver. É através dos olhos que as crianças tomam olhar de um adulto que a intimidou. Uma criança
contacto com a beleza e o fascínio do mundo. Os olhos intimidada e humilhada não aprende.
têm de ser educados para que a nossa alegria aumente. 10. «Formatura»: «formar» é colocar na forma, fechar. Um
As crianças não vêem « a fim de». O seu olhar não tem ser humano «formado» é um ser humano fechado,
nenhum objetivo prático. Vêem porque é divertido ver. terminado. Educar é abrir, «desformar». Uma festa de
Alberto Caeiro sabia tudo sobre o olhar das crianças... «desformatura...»
3. Educar é mostrar a vida a quem ainda não a viu. O
educador diz: «Veja!» - e ao falar, aponta. O aluno olha na 11. Escrevo sobre educação porque amo as crianças e os
direção apontada e vê o que nunca viu. O seu mundo jovens, seres ainda abertos, que enfrentam o perigo de
expande-se. Ele fica mais rico interiormente. E, ficando serem «fechados». Joseph Knecht, o herói trágico do livro
mais rico interiormente, ele pode sentir mais alegria e dar de Hesse O jogo das contas de vidro, no final da vida
mais alegria - que é a razão pela qual vivemos. desejava apenas educar uma criança ainda não
deformada pela escola.
4. Já li muitos livros sobre psicologia da educação,
sociologia da educação, filosofia da educação, didática - 12. Educação não é a transmissão de uma soma de
mas, por mais que me esforce, não consigo me lembrar conhecimentos. Conhecimentos podem ser mortos e
de qualquer referência à educação do olhar, ou à inertes: uma carga que se carrega sem saber sua
importância do olhar na educação, em qualquer um deles. utilidade e sem que ela dê alegria. Educar é ensinar a
pensar, isso é, a brincar com os conhecimentos, da
5. «O sentido está guardado no rosto com que te miro» é mesma forma como se brinca com uma peteca.
um verso da poeta brasileira Cecília Meireles. Não te miro
com os meus olhos. Te miro com o meu rosto. É o rosto 13. Quando o conhecimento é vivo ele se torna parte do
que desvenda o mistério do olhar. O rosto da mãe revela à nosso corpo: a gente brinca com ele e se sente feliz ao
criança o segredo do seu olhar. E o rosto da criança brincar. A educação acontece quando vemos o mundo
revela à mãe o segredo do seu olhar. O rosto do professor como um brinquedo para os sentidos e o pensamento, e
revela ao aluno o segredo do seu olhar. brincamos com ele como uma criança brinca com a sua
bola. O educador é um mostrador de brinquedos...
6. «O meu lábio zombeteiro faz a lança dele refluir»: dito
pela Adélia Prado. Lança? Falo ereto. Mas o lábio 14. Ensinar é um exercício de imortalidade. De alguma
zombeteiro a altera. A lança, humilhada, se encolhe, forma continuamos a viver naqueles cujos olhos
torna-se incapaz do ato do amor. Há uma relação aprenderam a ver o mundo pela magia da nossa palavra.
metafórica entre a lança fálica e a inteligência. O professor, assim não morre jamais...
7. Como a lança fálica, a inteligência ou se alonga e se
levanta confiante para o ato de conhecer ou se encolhe, Rubem Alves
flácida e impotente. O olhar de um professor tem o poder
de fazer a inteligência de uma criança ficar ereta ou
flácida... O lábio zombeteiro do professor faz a inteligência
do aluno refluir.

You might also like