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RruGB

a.157
n.392
jul./set.
1996
INSTITUTO IIISTÓRICO E GEOGRÁFICO BRASILEIRO
Avenida Augusto Severo, I Glória CEP 2002 I -040
- Rio de Janeiro -
- DIRETORTA
(t996
Pre sidente :
-Amore97\
V/chling
Ie l/ice-PresidenÍe: Newton Lins Buarque Sucupira
? Vice-Presidenre: Mário Antônio Barata

3e Vice-Presidente: Joãio Hermes Pereira de Araújo

Ie Secretbio: Clbelle Moreira de lpanema

2o Secretdrio: Gabriel Augusto de Mello Bittencourt


Tesoureiro: Victorino Chermont de Miranda
Orador: Marcos AlÍnir MadeiÍa
CONSELHO FISCAL
Membros efetivos: Jonas de Morais ConeiaNeto, MirceaBuescu, Oliver Onody
Membros strylentes; Augusto Carlos da Silva Telles, Joaquim Victorino Portella Ferreira
Alves, Elysio Custódio Gonçalves de Oliveira Belchior
COMISSÕES PERMANENTES
Ad,nissão de sdcl'os: Monseúor Guilherme Schuberq Cláudio MoreiraBento, Carlos Wehrs,
Francisco Luiz Teixeira Vinhosa
Arqucologia e Flnografa: Lê,da Boechat Rodrigues, Affonso Celso Villela de Carvalho,
Aristides Pinto Coelhq Paulo José Pardal, Maria da Conceição de Moraes Coutiúo Beltrão
Cuúq José Gomes Bezena CârnarC Alberto Venancio Filho,
Estatuto: Rui Vieira da
Victorino Coutiúo Chermont de Miranda, Geraldo Eulálio Nascimento e Silva
Geogrúta: Max Justo Guedeq Isa Adonias, Waldir da Cunha, Lucinda Coutiúo de Mello
Coelho, Sydney Martins Gomes dos Santos
Histüia: Herculano Gomes Mathias, Ioão Hermes Pereira de Araújo, Gúriel Augusto de
Mello Bittencouú Maria Cccília Ribas Cameirq Eduardo Silva
Púrimônio: Lygia da Fonseca Fernandes da Cunh4 Antônio Pimentel Winz, José Pedro
Pinüo Esposel, Frieda Wolfl Joaquim Vicüorino Portella Ferreira Alves

COMISSÃO DAREVISTA
Carlos Wehrs Ester Caldas Bertoletti Homero Senna
- -
CEPHAS (Comissão de Estudos e Pèsquisas Historicas) Secretária: Miridan Britto Knox
Falci -
REVISTA
DO
rNsTrruro Hrsróruco
E
GEOGRAFICO BRASILEIRO
Hocfrcit, ut longos àrent berc gesta per armos.
Et possint serâ postqitateÍrui.

RIHGB, RiodeJaneiro, a. 157, n. 392, p.495-1020, jul./set. 1996.


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REDAçÃO: AvenidaAugusúo Severo, S lOe andar {

CEP:20021-040
-
Rio de Janeiro, RJ
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Brasil
- - 1
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Fax(021) 252-4430 ,
{
fi,ì
COPYNGHT @ Instituto Histórico e Geográfico Brasileiro
,t
Tiragem: 1.000 exemplares
Impresso no Brasil Printed in Bruil

Revista do Instituto Histórico e Geográfico Brasileiro.


l, N. 14 $an.ldez.1839)
-RioAno -
de Janeiro, Instituto Histórico e Geográfico Brasileiro, 1839.
v.23cm.

Trimestral
Título varia ligeiramente.
Números de 1-4 formando um volume.
rssN 01014366
l. História Periódicos. I. Instituto Histórico e Geográfico
Brasileiro. -

Ficha catalográfica preparada pela Bibliotecária Célia da Costa


I r
-DocuMENTos
í
Os Regimentos da Inquisição
;
E a)Apresentação 495
Prof, Amo Wehling
ó)Introdução 497
ì: A disciplina da vida colonial: Os Regime'ntos da Inquisição
, Prof SôniaAprecidade Srqueira
c) Regimento da Santa Inquisição 573
í -1552
d) Regimento do Santo Oficio da Inquisigão dos Reinos de Portugal
; r@opilado por mandado do ilustríssimo e reverendíssimo
i seúor Dom Pedro de Castilho, Bispo Inquisidor-Geral e Vice-Rei
Í
'
dos Reinos de Portugal
- 1613 615
e) Regimento do Santo Oficio da Inquisição dos Reinos de Portugal,
ordenado por mandado do ilustíssimo e reverendíssimo seúor
, Bispo dom Francisco de Castro, Inquisidor-Geral do Conselho de

t.
Estado de Sua Majestade
- 1640 693
.f) Regimento do Santo Oficio da Inquisição dos Reinos de Portugal,
i, ordenado com o real beneplácito e régio auxílio pelo erninentís-
{ simo e reverendíssimo s"nhor cardeaÍda Cuúa.dos Conselhos de
! Bstado e do Gabinete de Sua Majestade, e Inquisidor-Geral nestes
' Reinoseemtodososseusdomínios E85
\ -1774-
; g) Regimento do Santo Oficio encomendado ao Inquisidor-Geral, D.
; Frei Ignácio de São Caetano, do Conselho da Raiú4 seu confes-
sor e ministro assistente no despacho 973
i
,. h) Índices l0l I
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Ì I
-DOCI]MENTOS
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À

i os REGTMENTOS DA TNQUSTÇÃO
i
a) Apresentação

A Revista do Instituto Histórico e Geográfico Brasileiro publica neste


número um importante manancial de documentos sobre a sociedade, o poder,
as mentalidades e a cultura jurídica do mundo luso-brasileiro entre os Séculos
XVI e XIX.
Trata-se dos Regimentos da Inquisição que vigoraram no Brasil colonial.
Foram eles os de 1552,1613, 1640,1774 e o projeto redigido sob D. Maria I.
Todos foram encomendados pelo Inquisidor-Geral ajuristas do absolutismo; o
último, que não chegou avigorar, foi elaborado porninguém menos que Pascoal
José de Mello Freire, o grande jurista identificado com a attrnllização do direito
português às correntes doutrinárias da llusfação.
Em importante estudo preliminar, a Prof. Dra. Sônia Aparecida Siqueira"
sócia-correspondente do IHGB, em São Paulo, e responsável pela presente
* edigão, localizou a Inquisição e seus sucessivos regimentos nos diferentes
I momentos históricos, subliúando, inclusive, a progressiva expansão de poder
È real sobre a instituigão, culminando no regalismo setecentista.
Especialista no tema, autora de duas teses sobre a Inquisição, realizadas
rn no decorrer de sua ca:reira docente na Universidade de São Paulo, a Dra. Sônia
Aparecida Siqueira é, certamente, a pessoa indicada para colocar em mãos dos
pesquisadores da história social, política, das mentalidades e da história do
Direito esse precioso instrumento de pesquisa.
Ressalte-se, ainda" que, com esta publicação, a Revista do Instituto HistG
rico e Geográfico Brasileiro, sob a direção do Sócio Titular Carlos Wehrs,
cumpre ainda uma vez a obrigação estatutrâria afirmada por nossa Casa desde
1838: a de coligir, preservar e divulgar documentos relativos aos estudos
brasileiros. Desta form4 credencia-se a continuar sendo referência indispensá-
vel a todas as investigações que tomem o Brasil como tema.
{
Arno Wehling
1
Presidente
Ë

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€ R IHGB, Rio de Janeiro, 157(392): 495-495,ju|./set. 1996. 495


Ì
)
b) Introdução

4
f A DISCPLINA DA VIDA COLONIAL:
? os REGTMENTOS DA INQUTSTÇÃOr

Sônia Aparecida de Siqueira*

{,$
A ação do Santo Oficio no Brasil prende-se à tônica que dominou a vida
6 colonial: a integração da terra ao Império dos Avis, através da implantação nela
da cultura portuguesa. Cultura que se transmudou ao longo dos Séculos XVI-
XVII e do Século XVIII: do Barroco à Ilusüação.
Na criação de uma réplica do mundo português, aquém-mar, impôs-se o
Direito, que se converteu, <obviamente, num instrumento de aplicação à
cambiante realidade cotidiana dos valores tidos por universais e permanentes>>.
No Brasil, vigiram tríplices leis: leis régias, leis eclesiásticas e leis inquisito-
riais, que, muitas vezes, se misturaram para atender às exigências de dois
planos: o da defesa da ortodoxia da lgreja, e o da defesa da unidade das
consciências, do Trono. Interesses e objetivos de ambas as instituições se
imbricavam no concreto da vida cotidiana. Reforma Católica e Absolutismo,
aliados. Duas realidades metropolitanas projetavam-se sobre o mundo colonial,
atenuadas, diversificadas pela distância e pela mentalidade que se ia definindo
no mundo novo que se criava.
Não obstante a impregnação religiosa da sociedade da colônia, esta, pelos
componentes de sua população, pelas estruturas modernizadas que erigiq
acabou desafiando a religião idealizada por Trento, e flexibilizando a autorida-
de do rei.
A nova sociedade constituída, burguesa, escravagista, multirracial, era
impermeável as radicalizações, pelas tendências inovadas dos membros que a
Í
)
í I Além dos regimentos usados pelo Santò Oficio Português, incluiu-se o Projeto de
F Regimento elaborado no Reinado de d. Maria I.
t j
Professora Titular da Universidade de São Paulo e da Universidade do Rio de Janeiro
(LJNI-Rio).
ü Sócia-Conespondente do IHGB.
ü
$

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I
I
)
Sônía Aparecida de Siqueira

compunhÍÌm, pelos objetivos que perseguiam, pelos imperativos da vida que


passavam a levar.
A burguesia foi, no Brasil, a elite desde os primeiros tempos. Era ela que
abastecera numericamente as funções de direção espiritual e temporal. A
fidalguia metropolitana esvaziada desde Alcácer Quibir não imigrava.
- -
Durante dois séculos, promoveu, tibiamente, o transplante do Barroco domi-
nante, do Absolutismo, da reação religiosa. Nesse quadro, afrouxavam-se as ì
leis, não no seu conteúdo mas, sim, na sua aplicagão. Mantinham-se vivas as (
leis inquisitoriais, porque sustentadas pelo temor residual à heresi4 que viera
com os colonos e a implacabilidade do Santo Ofïcio que intermitentemente aqui
:
se fazia presente. Mas, mesmo este exercia a vigilância que o ambiente, o
momento e as conveniências permitiram. )

Já no Século XVIil, consolidado o povoamento de algumas áreas, viabili.


zou-se plenamente o fansplante do clima barroco. No Brasil, aumentou a { i

intransigência. Cresceram os quadros do Santo Ofïcio, multiplicaram-se as I

investigações e os processos.
Para definir-se presença do Santo Ofïcio na Colônia, é de mister que se
conheça a legislação, a fim de avaliar-se seu impacto na vida dos homens. Essa
necessidade se impõe na medida em que há um vazio entre <<o modelo ideolô
gico, cuja defesa se encomendou à lnquisigão, e a punição concreta dos que o
rejeitaram.> Além disso, os historiadores da instituição e do mundo colonial
têm apenas privilegiado os comportamentos dos indivíduos que pelo Tribunal
passarÍÌm ou que foram, mesmo a distância, tisnados por ele. Faltam análises
mais densas sobre o Tribunal, sua alçada e as regras do exercício de sua
autoridade. Ponto de partida é o estudo de seus <Regimentos), nervos vitais da
Inquisição.
O Santo Ofïcio da Inquisição contra a herética pravidade e apostasia
inseriu-se em Portugal exatamente no momento dapassagem do Renascimento
paÍa o Barroco. Configurada pela mentalidade do tempo, a refletir-se em cada
aspecto de sua existência, é exemplo institucional de um período da história do
Ocidente. Portanto, é de mister ver-se a história do Santo Oficio em suasi
conexões com sua época" isto é, com os séculos da Modernidade.
Importa a reconstituição da atnosfera mental do tempo, quando a religião
era valor vinculado à vida coletiva, a sugerir ou a comandar a empresa de se
vencer o mal pelo bem. Mal e bem conforme aqueles homens, os definiam,
haurindo inspirações gerais que dominavam motivos, conceitos, estilos de vida,
comportamentos.
Cada época elabora um plano de unidade que é condição de sobrevi-
vência da sociedade com seus caracteres -próprios. Cria-se, assim, um
-
<<sistema mentab> que aprisiona os indivíduos como numa cerca e nutre as

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Í A disciplina davída colonial

È
i,
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intolerâncias que o modelam. Esse <sistema mentab> pode sofrer rupfuras. Com
F+
b+.j essas rupturas, lidou o Ocidente, e dentro dele, Portugal, no fim do Século XV
i e primeiras décadas do XVI.
O descortínio de novos mundos e de outros povos fora convite para
È repensar a realidade e a condição humana. Implicara na renovação das inteli-
i
{ gências, dos costumes, das idéias, dos sentimentos e do pensamento. Abrigara
í desafios à inteligênciq o tratamento racionalista dos dados. Fixara uma idéia
do progresso: superar a Idade Média. Na ordem político-social, o Estado
procurava substituir a Cristandade. Ruía, aos poucos, o mundo teocêntrico,
t garantido pela autoridade da Santa Sé, do clero, da tradição. Concepções novas
$ dos filósofos enlaçavam-se com opiniões novas dos políticos. Contra os tomis-
I tas e escotistas, levantavam-se os nominalistas, buscando liberar a razão das
afirmações da fé. Havia uma forte tensão espiritual, resultante de conflitos
i
íntimos. As fermentações críticas rompiam a unidade do pensamento, libera-
í vam uma disparidade que, por sua vez, engendravam a instabilidade dos
iì espíritos. O teste da liberdade, o imperativo das opções que se multiplicavam
acabou por aninhar o desassossego até a angústia. Tentando recuperar o
Cristianismo, pela volta as fontes puras, mediante enriquecimento pelas filoso-
fias antigas, paraa reconstrução do edificio, havia-se atingido seus alicerces,
seus fundamentos, e, com isto, paradoxalmente, abalara-se o próprio edifïcio.
Arazão, intentando servir à crença, ameaçava sacrificar a crença a serviço da
razão.

! Essa recolocação dos problemas do espírito favorecia o desenvolvimento


a de uma atividade livre e independente. Mudava-se, gradativamente, nos diver-
sos países da Europa, a própria maneira de encarar o mundo. Infiltrava-se um
pendor sensualista, definido por Campanella; um neonominalismo passou a
ensinar que se devia partir da experiência sensível paÍa se apreenderem as
coisas.

A ciência empírica procurava se libertar da fisica aristotélica para se


transformar numa ((experiênciu. O coúecimento oriundo da experiência era
confrontado com o conhecimento proveniente das teorias. Muitas das supostas
conquistas definitivas da humanidade passavam a sofrer correções e desmen-
tidos. E alguns homens foram levados, diante dos fatos, a formular juízos de
valor sobre certas idéias medievais e a fixar novos critérios para aferir seus
conhecimentos. Esboçava-se, em certos setores, um método que levava a outro
tipo de conhecimento racional, ao conhecimento científico do mundo: o exer-
cício da crítica sobre a experiênci4 tendo a experiência como condição para
alcançar a verdade.

Quando o homem acolheu diferentes concepções sobre si próprio e sobre


o mundo, e aceitou novos valores dele advindos, entrou em crise. Crise do

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ì
d
Sônia Aparecida de Siqueira
I

espírito, da inteligência e do sentimento. Desorientou-se. Nesse desnorteamen-


to, incluíram-se suas relações com Deus e seu comportamento.
Portugal partilhou as crises do Ocidente. Esse alargamento do campo
cultural, essa elaboração de nova mentalidade, recebeu grande impulso da
expansão ultramarina. A orientação experimental que tomou o grupo ligado as
atividades náuticas contrapôs-se à cultura universitrária, de cunho teórico e
livresco, amarrada ao Tomismo.
(
O catolicismo era a prevalente do gênio próprio dos portugueses da época.
Por isso, quando buscaram a adoção das novas idéias, dos novos princípios, dos
novos costumes, submeteram-nos, primeiro, ao crivo de sua ft e aceitaram o
que se escoou temerosamente. Do Naturalismo nas especulações científicas,
filosóficas e políticas, foi veículo o franciscanismo São Boaventura, Gui-
-
lherme de Occam.2 André de Rezende, o humanista, considerado um dos
melhores representantes do espírito novo, esforçou-se paÍa ser, ao mesmo I

tempo, christianus et ciceronianns.3 Francisco Sanches, não obstante seu agudo 1

senso crítico, emudeceu em relação às dúvidas lançadas à crença. Na Rópica í


Pnefmo, João de Barros fez a apologia da <<razáo católica>.4
Aceitou-se o espírito novo, desde que esse se coadunasse com a autoridade
da Igreja e a integridade da crença. O criticismo não poupava a vida religiosa,
os usos e abusos daclerezia,mas a fidelidade acatava a autoridade do Pap4 as
linhas mestras do dogma e da piedade cristãs, recoúecia a missão do sacerdô
cio. Buscavam-se modificações eram próprias das inquietudes do tempo
-
mas endereçavam-se à cristianização da vidq não ao enfraquecimento da lgeja. - {.

Ao longo do Século XVI, instalou-se nova forma cultural o Barroco


abarcando todas as contradições possíveis, porque era presidida por grande - -
inquietação espiritual. Aproveitando elementos da Idade Média, o Barroco
procurou elaborar sínteses que fossem respostas às perplexidades e inquieta-
ções reinantes nos espíritos e na vida humana, porque foi reagão ao Renasci-
mento e agravou as crises. Desordenou para buscar a ordem: aqui q paradoxal.
Depois elaborou reformas. Foi criador. E apresentou soluções. A liberdade
humanista respondeu com a nova disciplina da Escokística Restaurada. No
campo socioeconômico, definiu uma nova aristocracia infiltrada de burgueses,
aristocracia palacian4 domesticada pelo trono, com novos comportamentos e

2 Cortesão, Jaime: O franciscanismo e a mística dos descobrimentos. Seara Nov4 301,


2-6-1932.
3 Thomas, Lothar: História da Filosofia Portuguesa. Lisboa. 1944, le vol,, p.182.
4 Ibidem.

(
500 R IHGB, Rio de Janeiro, 157(392): 497-57l,jul./set. 1996.
A disciplina davida colonial

nova mentalidade. No campo político, o Estado absoluto disciplinou um Estado


sem fonna final. Seu rei passou a ser o chefe administrativo da Igreja nacional.
No campo religioso, a disciplina foi restabelecida por uma nova dogmática:
Trento.
Diante das rupturas do sistema mental carreando o desmantelamento da
unidade medieval, montaram-se mecanismos defensivos. Em Portugal, sob D.
João III, promoveram-se reformas em vários campos.
A revivificação da Filosofia da Escola, no Século XVI, conservou a liúa
evolutiva do pensamento cristão. Em Portugal, teve dois pontos exponenciais:
a obra de Francisco Suarez e o Curso Conimbricensium, trabalho conjunto de
Pedro daFonseca e seus discípulos, Manoel de Goes, Magalliano, Sebastião do
Couto e Baltazar Alvares.
A nova filosofia da Escola procurava responder aos desaÍios da cultura do
tempo, que elaborou problemas jurídicos e políticos aos quais urgia solucionar,
como o conflito entre as idéias monárquicas e ateocracia, bem como as relagões
claras entre o Estado e a lgreja.
A idéia de reforma evoluiu no espírito de D. João III e de sua corte depois
da acolhida complacente feita ao erasmismo e ao irenismo, até a plena aceitação
da renovação tridentina. Em Portugal, o clima reformista definira-se logo. Por
isso, o rei, com apoio do Cardeal D. Henrique e de seus ministros, programou
modificações para a Igreja portuguesa. Se o esforço para restaurar a vida
religiosavinha de anos recuados, omodo de reestruturá-la, pondo-aem conexão
íntima oom o trono, recebeu um novo impulso. Havia o soberano de cimentar
o absolutismo político com a unidade das consciências. Espanha jâo fiznra. A
conjuntura político-social justificava as definições autoritrárias.
D. João III, rei já moderno de um Estado nacional, fundiu os horizontes e
interesses do trono com os de sua fe cristã. Buscav4 como sustentáculo de sua
força política, estabelecer a unidade intrafronteiras. Essa unidade implicava,
sobretudo, na harmonia entre a douhina cristii e a filosofia de vida. Implicava"
ainda" na supressão de idéias que pudessem abalar a catolicidade do povo
português, na eliminação de práticari que suscitassem dúvidas sobre a verda-
deira religião, no esvaziamento de qualquer exemplo ou de qualquer proselitis-
mo que toldasse a convicção dominante. Em outras palavras, era obrigação do
soberano garantir a paz do reino, eliminando, automaticamente, quaisquer
discrepâncias que sobre ele pairassem como ameaç4. A defesa do Império
português exigia a ausência de heterodoxias. Exigia-o também a configuração
mental do homem que reinava, profundamente marcado pela afrnosfera do
tempo.
O rei precisava ter sob seu controle direto e imediato um instrumento de
autoridade que lhe permitisse fixar certas medidas que tomava paÍa assegurar

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Sônia Aparecida de Siqueira

sua política religiosa e cultural. Por isso, pediu ao Papa o estabelecimento do


Santo Oficio. Pela Inquisição, poderia alargar seu poder sobre os portugueses,
pois ela lhe daria" embora indiretamente, o controle das consciências. Poderi4
com isso, equiparar-se aos soberanos espanhóis. Este fato era da maior impor-
tância, pois se prendia aojogo de prestígio entre os reinos peninsulares.
Criada a instituição, pareceria ela aos olhos dos homens do tempo elemento
de restauração da cristandade. Cimento unificador. Enquanto agisse como meio
de purificação e repolimento dos cristiios tradicionais, ajudaria a erigir o ideal
de perfeição espiritual vigente no clima tridentino. Ao mesmo tempo, podia ser
instrumento de purificaçáo parahomens pessimistas, convencidos da maldade
intrínseca da natureza humana. Oportunidade de se tornarem heróis estói-
co-cristãos tão à
gÍ.ata nobreza. Para a -
clerezi4' o tribunal significava
integração - Reforma
na da lgreja, na medida que nele reconheciam meio de
aguçamento da consciência religiosa. Essa adesão estamental à solução, aven-
tada pelo monarc4 mostra ter Portugal entrado antes do Papado no clima
barroco. Demoraria ainda um tempo para que o clima mudasse em Roma, e do
trono do Pescador levantasse, intransigente, o Papa de Trento.
As perspectivas da busca de perfeição espiritual, do sofrimento, do heroís-
mo, da religiosidade, da nobiliarquia encaixavam-se no idearium do Barroco e
tiúam projeção no Tribunal.
Certo, a instituição refletia sentimentos e pensamento de uma época da
vida metropolitana. Entidade dinâmica, refletiu, com o corïer do tempo, as
flutuações das idéias e dos comportamentos da sociedade para cujo serviço fora
criada.
Defendia o Santo Oficio uma religião basicamente tradicional, tocada de
inovações oriundas da necessidade de preservaÍ a ordem espiritual que se
definia. Foi sustentado, principalmente, por um clero aristocrático, emerso das
altas camadas da nobreza ou da própria realeza. Foi uma instituigão moderna:
tribunal religioso, universal, cristÍio, tribunal régio, secular nacional. No seu
desenvolvimento, mergulhou na corrente de tensão espiritual e da militância
católica que se seguiu à renovação conciliar, e dela hauriu forças para perdurar.
O Barroco exigia ação. A Inquisição ampliou seus poderes, seus quadros, sua
atuação.
Presa à idéia de equilíbrio viúa
a da disciplina dos vários estamentos
sociais, com a delimitação da esfera de atuação de cada gruPo, a moderar
fricções de interesses. Urgia acalmar a inquietação causada pela presença dos
cristãos-novos, inimigos em potencial pelo seu supranacionalismo. O combate
às minorias dissidentes era um progrÍÌma inadiável. Os neocristãos podiam ser
portadores do fermento herético por suas crenças residuais e por seus íntimos
õontatos com luteranos e judeus. E mais. Com a frutificação das descoberüas,

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A disciplina davida colonial

da exploração do mundo colonial que se montava, com o comércio ultramarino,


com a urbanização progressiva, os cristãos-novos ganhavam força econômica
e tendiam a uma solidariedade que lhes acrescia o poder de ação no meio social.
O fuono sentiu a ameaça que representariam se não fossem bons cristiios.
Reagiu. A Inquisigão foi criada e estendeu-se sobre cristiios-novos, cristãos-
velhos, povo, hierarquias. Barroquizou-se e reforçou a cultura vigente. Corres-
pondeu a um anseio de pacificação interior, a uma descarga das pressões sociais
que, de certo modo, via nas mudanças uma ameaça àtranqüilidade coletiva.
No Século XVII, instalou-se a Ilustragão. O pensamento das Luzes
reflete-se no campo das relações homem-espaço. Fenômeno diferente do racio-
nalismo e da secularização, embora intimamente unido a eles, afrouxou os
vínculos do homem com o hanscendente, mesmo sem os ter dissolvido. Em
termos espirituais, os cartesianos e neocartesianos pediram uma teologia de
absoluta transcendência em que o criador do universo indefinido garantia
a ordem e era responsável pelo primum mobile. Um novo saber protegia-o -
homem. Deus não era mais mediador, nem fundamento da teoria do coúeci-
mento, mas, paradoxalmente, estava no centro da atividade intelectual, vista de
modo diverso. Passou-se anegar atradição como norma absoluta. Aumentaram
a confiança e a dependência da ciência, condição de ampliação e segurança de
domínio do mundo material. Elaborou-se outra visão de mundo, constituída do
interior para o exterior, do sujeito para o objeto, do eu para o mundo. Desme-
surava-se a idéia de progresso, entendido como percepção de mudanças,
decorrente do encontro de duas esfruturas: intelectual e circunstancial. Idéia
que vence no cotidiano e supõe um mínimo de estabilidade que deve ser
assegurada pelo Estado.

O Estado definiu-se contratual, a serviço dos súditos, entre os quais devia


instalar a filosofi4 isto é, espantar a ignorância e o egoísmo e instaurar a
suprema categoria étic4 a filantropia. E a toleúncia. Estado soberano que não
dividia suas funções com instituições ou classes privilegiadas.
Em termos religiosos, as Luzes propuseram o refrrgio no foro íntimo, uma
religião de relação vertical, nova sensibilidade. A salvação problema
dos séculos barrocos recuou para o foro interior, sem-magno
implicações com a
-
autonomia do coúecimento. Pensamento e fé pressupõem uma dimensão
insuspeitada da cidade terrestre, abrem uma alternativa à escatologia cristã: um
tempo melhor preenchido de preocupações práticas, de possibilidades, de
esperanças modestas. A esperança que se situa no temporal difere da esperança
na eternidade. Está prenhe de ativismos.

Os tragos dessa nova mentalidade empírica, sensualista, anti-histórica,


indiferente em matéria religiosq voltada paÍa um economismo utilitário, um
intelectualismo ético e um reformismo abstrato, sofreram desvios, limitações

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Sônia Áparecida de Siqueira

e compromissos com o ambiente cultural preexistente. Definiu-se uma llustra-


ção típica dos países católicos que procurou limitar o poder jurisdicional da
Igeja, defender o espírito laico, renovar a atitude científic4 propagar as
reformas sociais políticas, proteger o comércio, levantar o nível da população.
e
Uma Ilustração que pactuou com o Catolicismo não apenas fé, mas princi,
palmente visão de mundo -
e se expressou em reformismo e pedagogismo.
-
Nesta llustração, inseriram-se Portugal e a Inquisição. O espírito do
Iluminismo português não foi revolucioniírio, nem anti-histórico, nem irreli-
gioso. E a Ilustração de compromissos, de meios-tons, de moderações, própria
do mundo ibérico, que se transmudou em reformas.
A Inquisição refletiu a mudança do tempo. Tempo em que o principal
reformador do Reino Pombal aos quadros do Santo Oficio. A
- -pertencia
instituigão não foi supressa e, sim, reformada na sua estrutura, nas suas bases
legais, nos seus procedimentos, nos seus quadros. Esforço de conciliação
ideológica onde persistências tradicionais procuraÍam harmonias com idéias
novas que iam sendo absorvidas depois de filtradas.
Na época da Viradeira, nova tentativa de mudança do Tribunal, espelhando
nova mentalidade que se instalava. Tentativa inócua. As mudanças propostas
ficaram na letra até a extinção do Tribunal, por irrelevante, em 1821.

Os Regimmtos
)

Constituíam as Bulas Pontificias os instrumentos legais de instituição e


ordenamento básico do Santo Oficio. Sua estruturação final e a processualística,
porém, só veio a ser estatuída pelo Regimento que, após um período de
utilização dos precedentes espanhóis, foi ela.borado pelos Inquisidores de
Portugal de acordo com as tendências do próprio país.s
Uma questiío liminar: pode-se falar em um direito especificamente inqui-
sitorial diversificado, brotado das atividades judiciárias do Tribunal? Ou ter-
se-ia apenas aplicado o Direito Canônico ligado à sabedoria jurídica da Igreja?
Ou aindatomar-se-iade empréstimo o Direito Civil, romanizante, que florescia
à sombra do Absolutismo monárquico?

5 Na Espanha, o corpus legislativo da Inquisição foi constituído por manuais medievais,


como o de Eymeric[ pelas Instruções e pelas Cartas Acordadas, espécie de circulares ou
boletins oficiais que faziam chegar as normas do Santo Oflcio aos Tribunais dos disritos;
pelos Abeceürios, pelas Compilaciones e Recompilaciones

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Á disciplina davida colonial

Apesar de tantos juízos que conem sobre o Santo OÍicio, o esfudo de sua
legislação, de seus procedimentos, de sua jurisprudência ainda está por ser feito
por historiadores do direito. Podemos, enfretanto, perceber, quanto à sua
legislação, que ocorria uma síntese das tendências do tempo, uma espécie de
confluência das correntes do direito, a refletir aquela dualidade congênita que
o filiav4 de um lado, à autoridade tradicional da lgreja, e, de outro, à tutela do
Estado moniárquico nacional.
Somente uma cuidada análise comparativa, em relação ao Direito Canôni-
co e às Ordenações do Reino, ao direito espanhol contemporâneo, permitiria
conclusões seguras.
Entrementes, podemos rastreaÍ, na legislação, traços daquela dualidade
fundamental, razáo da força e da plasticidade da Inquisição, mas também
barreira à invenção de um direito proprio.
Aplicava o Santo Oficio as disposi@es repressivas do Direito Canônico contrò
hereges, com apoio da legislação régi4 temperando-se com as pro(es progressi-
vamènte vertidas nos Esrlos6 e com a Jurisprudência. Teoricamente não se
configurou um Direito Inquisitorial autônomo. No decorrer da existência do
Tribunal, a conjugação desses vários elementos gerou um corpo de direito
adaptado aos imperativos do tempo. A competênciaratione materiaeiaalémdo
sentido esfrito e formal de heresia: incluía os pecados que, mesmo indiretamente,
constituíssem um perigo para a fe coletiva. Numa faixa onde o direito e a moral
mais de perto se entrelaçavam, dado o seu caniterpreventivo e exemplar, abrangia
também as suspeições de heresia e procedia contra ausentes e defuntos.

Os Estilos, ou práticas consagradas pelo uso no decorrer do exercício das funções


inquisitoriais, estão reunidos em vários códices, no Arquivo Nacional da Tone do Tombo
(ANTQ. Enfe outros, citamos : Praxis inquisitorum, por Antonio Porto Cancto (Cód. I 5 I 9
da Livraria, com 309 fólios); Ánotationes ad regimen S.Oficii inquisitionis Regnorum
Porngalliae, de A. Cameiro (Livrari4 3 códices com 470, 296 e 45E fólios,
respectivamente); Formukirio e modo de proceder as causas nas Inquisições deste Reino,
feito a mandado do Inquisidor, D. Francisco de Castro, pelo Inquisidor Alexandre da Silva
(Liwaria" Códices 1396, 1398, 139, 1400, 1401,1402, e 1403, com 603, 154,192, ll0,
ll3, 92 e 123 fólios, respectivamente)) Apontamentos sobre o modo de fuer os
interrogatórios nos processos do Santo Oficio (Livraria, Códice 1276, com272fólios);
Casos vários em matéria de heresia (Livrari4 Códice 1354, com 80 fólios); Casos
decididos na Inquisição de Lisboa sobre vários crimes (Livrari4 Códice 1353, I 16 fólios);
Regras para julgar no crime de judaísmo (Livrari4 Códice 1580, 185 fólios); Zríry?s
resoluções do Santo OJíciojuntas pelo Inquisidor Alexandre da Silva (Livrariq Códice
1616, 506 fólios); Ordem do procurador no crime de heresia (Livrari4 Códice 1502, 52
fólios); Revisões ao livro 2ee 3e do Regimento do Santo OÍtcio (Lívtari4 Códices 1580 e
1585); Conentdrio ao Regimento do Santo Ofrcio por loão Alvares Soares, da Inquisição
de Lisboa (Livraria Códices 1358 e 1359, com 60 e I 17 fólios, respectivamente).

R IHGB, Rio de Janeiro, 157(j92): 497-571, jul.het. 1996. 505


Sônia Áparecida de Siqueira

Sua jurisdição era eclesiástica e civil. Aquela garantia-se pela autoridade


do Papado, freqüentes vezes reafinnad4 estipulando a Santa Sé que o Tribunal
agia por sua delegação e em seu nome. Patenteou ela essa definição, por
exemplo, baixando aConstituição do nosso muy Santo Padre Pio V contra os
que ofendem o Estado, negócios e pessoas do Santo Oficio da Inquisição,
contra a herética pravidadeT, na qual o Papa, afim de cotigir o atrevimento
dos que se opunham ou obstavam a ação do Santo OJício ou de seus ministros
e oficiais, impmha censwcts e penas eclesiásticas (privações das dignidades,
infâmia, degredo por hereges e confisco dos bens) às pessoas particulares,
cidades ou povos queferissem pessoal da Inquisição, impedissem seus atos, ou
suas testemunhas, se apropriassem de papéis e livros ou os danificassem,
quebroúassemcórceres oudeles tirassempresos. Penas que, afinal, não eram
ptramente canônicas, irwadindo a esfera das reloções civis.

A cada passo,fazia sentir a Santa Sé que o Santo Ofïcio eÍa uma entidade
sujeita à sua autoridade, sobretudo naqueles primeiros tempos do Século XVI,
quando ainda se superpuúam o poder eclesiástico e o civil, antes da hiperfrofia
darcaleza.

Certas determinações de Roma avocando a si, diretamente, ou por meio de


seus núncios, jurisdição sobre os cristãos-novos revelam que existia ainda uma
certa indefinigão da hierarquia judicial, bem como o propósito pontifïcio de
reservar para a Curia a jurisdição superior. Em 1553, a Bula de Clemente VII
Sernpiterno Regr revogou todos os poderes que haviam sido outorgados a Frei
Diogo da Silv4 Inquisidor-mor de Ìortugal, chamando a si todas as causas dos
cristiíos-novos, mouros e heréticos." Em 1534, um Breve de Paulo III dirigido
a D. João III mandava que os Inquisidores suspendessem os processos contra
pessoas suspeitas de heresia.v Em 1535, uma Carta Pontifícia determinava que
os núnoios de Portugal pudessem coúecer as apelações dos cristãos-novos.ru

No heâmbulo, dizia: "Se cada dia com diligênciatemos cuidado de amparar os Ministros
da Igreja os quais Deus Nosso Senhor nos encomendou tanto, e não os temos recebido
debaixo do nosso amparo. Quanto maior cuidado e diligêneia nos é necessário por naqueles
que se ocupam do Santo Oficio da Inquisição contra a herética pravidade, para que sendo
livres de todo perigo debaixo do amparo da inviolável autoridade da nossa Santa Sé
Apostólica ponham em execução quaisquer cousas tocantes a seu oÍïcio, para a exaltação
da fé católica", 1509. BibliotecaNacional de Lisboa Santo OÍïcio T XXVII (n. 1537) pp.
2l-22v.
8 ANTI, Gaveta II, 2-l l. Publ. in Gavetas da Torre do Tombo. Lisbo4 1960 l, p.202.
9 Idem, ll, 2-9. Idem, p. 197.
l0 Idem, Il, l-25. Idem, p. 68.

506 R IHGB, Rio de Janeiro, I 5 7 (j92) : 497-57 I, jul./set. I 996.


A disciplina davida colonial

No mesmo ano, escrevia Paulo III ao rei sobre os oristilos-novos,tl e aos


cristãos-novos, interferindo diretamente na definição do processo, concedia que
pudessem tomar por procuradores e defensores quaisquer pessoas que quises-
sem."
As Bulas de perdão geral que paralisavam a ação do Tribunal viúam de
Roma, diluindo, de tempos em tempos, a autoridade dos Inquisidores. Confir-
q mando o primeiro perdão concedido por Clemente VII, concedia Paulo III, um
segundo, em 153513 e, em 1547,pela Bula lllius qui misericors,concedia um
terceiro.la Ao depois, outros indultos gerais foram sendo concedidos, e quando
o próprio rei os negociava com os cristãos-novos, tiúa de pleiteá-los junto à
Cúria Romana, como aconteceu com Felipe III em 1605.
Os perdões geraisrs, cuja história minuciosa a mostrar progressiva influên-
cia de crescente poder econômico da burguesia dos crisüios-novos merece
cuidadoso estudo, a fazer-se inclusive nos arquivos do Vaticano, significavam
uma constante de interferência da hierarquia da Igreja na vida normal do Santo
Ofïcio e, sobretudo, uma limitação que se impuúaperiodicamente, ao alcance,
no tempo, da jurisdição inquisitorial, uma vez que só aquém da data do perdão
podiam os delitos ser objeto de inculpação. Neutralizava-se o impacto da ação
punitiva da Inquisição. E quem o fazia era o Papa.
Aliás, as intromissões da Curia nas atividades da Inquisição continuaram,
decrescentes sem dúvida, mas constantes pelo tempo afora, dada a natureza de
suajustiça. De 1678 a 16.8-1, o Santo Oficio chegou a ser suspenso em Portugal
por decisão do Pontífice'o, o que indica que, apesar da amplificação do abso-
lutismo, os tribunais continuavam a caÍecer da aquiescência de Roma para
atuar.
Nenhuma anomalia constituía então essa densidade do Direito Canônico
na fundamentação da justiça inquisitorial. A secularizagão da Justiça apenas

ll Idem, ll, 2-ll. Idem, p. 210.


l2 Bula de 27-7-1535 publ. rz Coletorio de Bulas e Breves Apostólicos, Cartas, Alvarás e
Provisões Reais que contem a instituição e progresso do Santo Oficio em Portugal. Lisboa.
1634 pp. l-4.
l3 Bula do 2e perdão geral concedido por Paulo III aos cristãos-novos pela qual conftrma o
1e perdão de Clemente VII. 12.l0.l535.Idem, p. 30 v.
t4 Bula de ll-5-1547. Idern, p. 42 v.
l5 Ver sobre os perdões concedidos, aos cristãos-novos portugueses do reinado de D. Manuel
ao do Cardeal Rei, o artigo de Mendes dos Remédios <Os judeus e os perdões geraio irz
Biblos. Coimbn. 1925 I, fasc. 12, pp. 831 a 855.
l6 Corpo Diplomático, vol. XIV, p. 221.

R IHGB, Rio de Janeiro, I 57(392): 497-57 l, jul./set. 1996. 507


Sônia Áparecida de Siqueira

se anunciava quando a Universidade era ainda um desdobramento da Igreja


docente, e formava tanto canonistas que ocupavam os mais elevados cargos
no tribunais do Reino
-
quanto civilistas.rT Dessa indiferenciação, para a qual
-
muito havia de contribuir o padroado da Coroa sobre a Igreja nacional, é
expressão a ocorrência do instituto dos mixti fori que se recoúeciam para
delitos públicos que, como a feitiçari4 o sacrilégio, a simoni4 o incesto e vários
crimes de natrnez.amoral, podiam ser da competência de ambas as justiças, a
civil ou a eclesiástica.l8 E ainda é de se notar que a Justiça régia complementava
a eclesiástica na execução das sentenças enfegues ao braço secular, como nos
crimes de heresia, cujo coúecimento pertencia ao clero," sistema que se
transferiu para as sentengas do Santo Offcio. Aliás, a Justiça régia, pelos seus
oficiais devia prestar toda a ajuda às diligências da eclesiástica em geral,
punindo-se ciülmente os que a ela resistissem,2o e em especial à Inquisição,
ordenando-se a todos os oficiais que cumprissem os mandamentos dos Inqui-
sidores <<em razão da obrigação que temos de favorecer e ajudar as cousas que
tocam ao Santo Oficio da Inquisição>.2r
Era o Direito Canônico subsidiário da legislação régia em matéria que
implicasse em pecado, e em alguns casos eramesmo o direito que se aplicav4
como no caso do delito de usura.22
Na realidade, o delito era do tibunal do rei, o pecado do confessionrârio e
a heresia do Santo Ofício. Na prática, os Inquisidores acabavam por conciliar
o temporal com o espiritual23 ao longo dos Séculos XVI e XVII.
Não figura, o Santo Oficio entre os Tribunais régios enumerados pelas
Ordenações Filipinas e por elas disciplinados. A forma processual dos delitos
e penas contida nos Regimentos dos Séculos XVI e XVII não se distancia muito

17 Tanto podiam advogarno Reino os bacharéis em Direito Civil quanto em Direito Canônico.
Ordeirações Filipinas, Liv. I, tít.48.
t8 Ordenações Filipinas, Liv. I, tít. 9.
l9 Idem,Liv. V, tít.l.
20 Iden,Liv.ll,Í(t.9,4.
2t Idem,Liv.II, tít 6.
22 Idem,Liv.III, tít. 64 e Liv. IV, tít. 68 e 69.
23 Este aspecto de identificação do poder real com o eçlesiástico, na ação inquisitorial, foijá
anotado por Lea na Espanha: <.,.O que deu à Inquisição Espanhola sua peculiar e terrívçl
eficiênci4 foi a perfeição de sua organização e a combinação da misteriosa autoridade da
Igreja com o poder secular da Corte... Na Espanha porém a Inquisição representava não
apenas o Pap4 mas tambóm o Rei; tiúa praticamente as duas espadas a espiritual e a
I -
temporal...>Lea R. Charles: history of the Inquisition of Sparz. N.York, 1905, T II p. 62.

508 R IHGB, Rio de Janeiro, I 5 7 (392) : 497 -57 I, iul./set. I 96.


A dìsciplina davida colonial

das vigentes no campo eclesiástico e no civil. A preocupação do Absolutismo


Ilusftado, no entanto, foi a de exacerbar o poder do trono.O Regimento de 1774
insiste em realçar o lado régio do Tribunal. Já no Preâmbulo, fala no direito
concedido ao Rei pelo Papa, de nomear o Inquisidor-Geral <que até aceitou a
desistência que desta grande dignidade fez nas suas reais mãos o primeiro
Inquisidor-Geral, D. Diogo da Silva" para haver de nomear para ela o seu irmão,
o Seúor Cardeal Infante D. Henrique, que serviu somente por Provisão sua;
criado o Tribunal do Conselho Geral pelo mesmo monarc4 no espírito da
referida Bul4 e sempre sustentado como Tribunal Régio, nos termos que foram
expressos na judiciosíssima Carta firmada pela real mão del Rei meu Seúor...>
Do Regimento de 1552 <formado de ordem do Seúor Rei D. Sebastião... para
se regular como um Tribunal da Coroa que fora desde o princípio por sua
natureza...>>24 D. Sebastião tê-lo-ia aprovado como Tribunal régio <dando-lhe
regras e leis üÍo pias e conformes à indispensável separação do Sacerdócio e
do Império, em que consiste essencialmente a união de ambos...> Insiste na
sujeição do Tribunal ao Rei <<em cujo real nome somente lhes podia ser
permitido erigir Tribunal, formar processos, levantar cárceres e impor penas
temporais>. Diz nulos os Regimentos de 1613 e L640 <por falta de autoridade
e confirmagío régi4 por defeito notório de jurisdição...>
A insistência sobre a supremacia do poder do trono, que reponta em todo
o Regimento pombalino, paÍece ser já a frutiÍicação das idéias dos estrotgei-
rados e dos opositores da Inquisigão que, como o Cavaleiro de Oliveira"
pregavam que (o rei de Portugal não eúá sujeito à Inquisição, é o árbitro
iupremo de-todos seus súditos, iem excetuar oi ministros do Santo Oficio>>.25
Se de um lado, o Direito Canônico e os decretos do Concílio de Trento
constituíam a base sobre a qual se assentava ajustiga inquisitorial, dado o seu
caráter essencialmente eclesiástico, de outro lado, sua estruturação e seu
funcionamento em território português recaíam sob a égide da Coroa que era a
fonte de sua legislação fundamental o Regimento. O Preâmbulo do primeiro
-
Regimento declara-o feito por ordem do Rei: <<...o ofício e negócio da Santa
Inquisição faça como cumpre a serviço de Deus Nosso Seúor dando disso
conta a el Rei meu seúor e por seu mandado... D. Pedro de Castilho mandou
guardar o Regimento de 1613 invocando sua autoridade de Inquisidor e de
Vice-Rei: <<Nós Dom Pedro de Castilho, Bispo Inquisidor Apostólico Geral,
contra a herética pravidade e apostasia, em todos os Reinos e Senhorios de
Portugal e nele Vice-Rei...> D. Francisco de Castro declara-se Inquisidor-Geral

24 Regimento do Santo OÍIcio de 1774. Preâmbulo.


25 Cavaleiro de Oliveira: Opúsculos contra o Santo Oficio. Coimbra 1942,p. 105.

R IHGB, Rio de Janeiro, I 5 7 (392) : 497-5 7 I, iul./set. I 996. 509


Sônia Aparecida de Siqueira

do Reino e Senhorios de Portugal, do Conselho de Estado de Sua Majestade,


no Preâmbulo do Regimento de 1640. Inquisidor-Geral e membro do Estado.
Em 1774, o Cardeaf da Cunha identificá-se como Arcebispo de Évora, do
Conselho de Estado, Gabinete d'El Rei meu Senhor, Regedor das Justiças e
Inquisidor-Geral nestes Reinos e Seúorios de Portugal. Teria tido algum
significado subjetivo a ordem de enumeração dos títulos do Cardeal? Não se
há de esqueçer que o Cardeal era Inquisidor-Geral e príncipe da Igreja.
Nos primeiros anos de sua existência, orientou-se o Tribunal pelas insnuçOes
contidas no ÌuÍmual dos Inquisidores Wa uso das Inquisições de Espmln e
Portugal, pelo htquisidor-Geral de Aragão, D. Nicolau Eynerico,26 vertido do latim
ao castelhano. Eramos anosporassim dizer sdoTribunal, quando orei
aindaseempenhavaem custosadiplomaciajunto à Santa Sé, paraconseguirestatuto
idêntico ao outorgado ao Rei Católico para a Inquisição Espanhola. Cinco anos após
a concpssão a D. João Itr da Bula Meditatio cordis promulgou-se o Primeiro
Regimento da Inquisição Portugues4 evidência de que as leis castelhanas não
satisfaziam as peculiaridades dos portugueses. Era de mister organizar o Santo Oficio
de Portugaf aparelhando-o para melhor desempeúo de sua missão. Talvez fosse
tambem de mister resningir uma zona de anitos com os cristãos-novos, para
evitaÍ€Ín-se Íeiterados recursos ao Papaque impediam aconsolidação da autoridade
do Tribunal.2T Aprovado o Regimento, anulavam-se os modelos castelhanos: <...E
porque queÍemos que este Regimento somente se guarde havemos por revogados
quaisquer ouftos de que se até aqui usasse e mandamos que este somente se cumpra
e guarde como se nele contém.28

A obra de Eymérico, considerado o mais notavel dos inquisidores medievais, era tida como
o mais completo, sistemático e autorizado de todos os manuais dessa natureza. Foi impressa
emRomaem 1587.
27 Reclamavam os çrisüios.novos contraos procedimentos dos Inqúsidores ao Rei, aoNúncio e
ao Papa. A úundante correspondência do tempo regisFou provas disso. Exemplos: Resposta
de D. João III a uma carta do Cardeal Santiquato por causa dos cristãosnovos, 1536. ANïT,
Gavetall, l-28,publ.nasGavetasdaTorredoTombo,p.T4;Parecerquesedeusobreapretensão
que tiúam os cristÍlos-novos de que se publicassem as testemuúas em causas da Inquisição.
1546. Idem,II, l-8, p. 35; Resposta dada pela Inquisição aos capítulos que os cristãos-novos )
\
apresentaraÍn ao núncio. 1541. Idem, II, 2-3 I p. 24 I . Resposta que a Inquisição deu sobre os
apontamentos que os cristÍlos-novos tiúam dado a D. João III, pedindo-lhe cousas e
queixandose de agravos recebidos. Idem,II, l-21, p. 45,
<Regimento da Santa tnquisição>. 3-8-1552. In Arquivo Histórico Português. Lisboa
1907,T Y ,p.272. Refere-se a esse Regimento, Inocencio Francisco da Silv4 in Dicioruirio
Bibliográfico Pornguês, aÍtigo (Regimentos do Santo OfIcio. Lisboa>. 1862, T VII, p. 53;
Martins dos Carvalhos: <Os Regimentos da Inquisição em Portugab in O Conimbricense.
Coimbra.9-10-1869; Medes dos Remédios: Os judeus portugueses perante a legislação
inquisitorial in Biblos. Coimbra. 1929. Vol. I, fasc. II, p. 515.

510 R IHGB, Rio de Janeiro, I 57 (392) : 497-57 I, jul./set. I 996.


{
A disciplina davida colonial

A lnquisição passava a assim a ter Regimento próprio. Quem o outorgou


foi o Rei. Esse fato já significava a existência de uma legislação à parte, que
poderia parecer anacrônica numa época de hipertrofia da Justiça régi4 quando
minguavam, aceleradamente, as jurisdições das <ordens>r. Sua elaboração, no
entanrto, se foi devida a um membro do alto clero, foi também obra de D.
Henrique, um membro da Casa Real.
O Regimento inseriu-se no confuso quadrojurídico do tempo e sobrepôs-se
a ele, atropelando, câ e lë+ outras jurisdições tanto civis, quanto eclesiásticas.
O direito geral do tempo, modificado nas Ordenações, estatuía sobre os crimes
que passavam agora para a alçada inquisitorial, se contivessem heresia: as
Ordenações Manuelinas, então em vigor, no seu Livro Quinto, dispuúam no
título segundo sobre os hereges e apóstatas; no título dezenove, sobre os
bígamos; no vinte e hês sobre os feiticeiros e no quatorze sobre os que
arrenegam e blasfemam de Deus. Posteriormente, as Ordenações Filipinas
tratavam, no Livro Quinto, título terceiro, dos feiticeiros; no título primeiro,
dos hereges e apóstatas; no título segundo, dos blasfemos, no título decimo
nono, dos bígamos, e, no décimo terceiro, dos sodomíticos. Esses delitos, que
implicavam em pecado, transitavam para a esfera do Santo Oficio em detrimen-
to da Justiça Eclesiástica dos Bispos, tanto quanto da Justiça régia. Fonte de
futuras disputas de jurisdição.
Continha o Regimento a organização judicirária e processualística do
Tribunal. A análise de suas disposições poderia dar aos juristas a parte que
tiveram nele o direito eclesiástico e o direito régio. O Papa criara o Tribunal,
mas era o Rei quem o organizava através do Regimento.

Fora elaborado sob a autoridade de bispos e letrados: (...com o parecer de


Dom Baltazar Limpo, Arcebispo de Braga, de Dom Ruy Gomes Pinheiro, Bispo
de Angra e Governador da Casa do Cível, e de Dom João de Melo, Bispo do
Algarve, e do Licenciado Pedralvares de Paredes e do Doutor João Alvares da
Silveira, Inquisidores da cidade de Évora, e de outros letrados deputados para
os negócios da Santa Inquisição>, dizia o Primeiro Regimento. Colaboração
adequadapara que se resguardassem ao mesmo tempo os preceitos eclesiásticos
e os interesses do trono.

A autoridade pontifïcia estava ressalvada no respeito à Bula de 1547, fonte


subsidiária que delimitava, substancialmente, o direito inquisitorial:2e <<confor-
mando-nos com a forma da Bula da Santa Inquisição e disposição de direito...>

29 (...nos casos que em ele não forem expressos sigam a disposição do direito, conforme a
Bula da Santa Inquisição...> Regimento de 1552.

R IHGB, Rio de Janeiro, I 57(392): 497-57 I , jul./set. I 996, 5ll


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Sônia Aparecida de Siqueira
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O Regimento do Cardeal Infante foi sendo, desde logo, completado por


r
Adições e Declarações, porque <<segundo apráticae aexperiência dos negócios
mostrav4 tiúa necessidade de algumas declarações para boa expedigão e
despacho deles>. No seu corpo, contém 23 capítulos e foi datado de 7-8-1564.

Em 1613, observando ajurisprudência acumulad4 outro regimento apaÍe-


ceu, recompilado por mandado de D. Pedro de Castilho, Bispo Inquisidor-Geral
e ao tempo Vice-Rei de Portugal.3o: I

'...vendo nós que, depois de ser feito Regimento do Santo OÍIcio


que El' Rei Dom Henrique de gloriosa memóri4 Inquisidor-Geral nos
ditos Reinos, mandou fazer, e até agora se guardou e como, conforme
- foi mostrando, se
a prática e experiência dos negócios, que o tempo
ftzeram novamente pelos Ilustríssimos e Reverendíssimos Seúores
Inqúsidorcs.gerais nossos antecessores, muitas Visitações, Inshuções e
hovisõeq pelas quais o dito Regimento se emendav4 e alterav4 pro-
vendo-se dc novo, em muitos casos que ocorriam as quais não andavam
incorporadas ao dito Regimento, e tiúam necessidade de serem publi-
cadas, para a boa expedição do despacho dos negócios tocantes ao Santo
Ofício da Inquisição...'

O responúvel pelo segundo Regimento, cujo autor foi D. Antônio de


Matos Noronh4 Inquisidor de Lisboa, era, concomitantemente, Inquisidor-
Geral e Vice-Rei.3l Novamente unidos na mesma pessoa os dois poderes.

Qual deles o Vice-Rei ou o Inquisidor sentiu a necessidade de


- -
reformulação do Regimento? A resposta pode conter implicações importantes
para a compreensão das transformações do Tribunal (podava-se a autonomia
de seus membros, contolando-lhes as ações), para a aferição da integração das
elites no clima da Reforma Católica (fortaleciam-se as hierarquias), ou para dar
a medida do enquadramento português na política espanhola (maior vigilância
no campo das consciências).
Teúa sido o Bispo ou o Governador, o que ficou patente foi a necessidade
de ordenação que mandou se revogassem e anulassem <<quaisquer outos

30 Impresso em LisboaporPedro Craesbeck. BibliotecaNacional de Lisboq Reservados, FG


rÉ 664, fls. I a 80 v. Está contido também em Andrada e Silv4 J.J.: Coleção Cronológica
daLegislaçãoPortuguesa,pp.24 e segs. Foi anotado em 1620, em Coimbr4 pelo Deputado
do Santo OÍIcio, Pedro Cabral.
3l Inocêncio (op. cit., |rc. cit.) e Mendes dos Remedios (art. cit loc. cit.) atribuem-no ao
trabalho Aô'praxista e jurisconsulto Antonio Dias Cardoso, cônego de Braga e Évora,
membro da Inquisição de Coimbra em 1590 e, depois desta data" do Tribunal lisboçta

512 R IHGB, Rio de Janeiro, 157(j92): 497-571, jul./set. 1996.


A disciplina da vida colonial

Regimentos, Provisão, Instrução em contrárioD e (este só se guarde e dê a sua


devida execução, como neles se contem>r.32
Reformava-se o Regimento, pois já não correspondia à realidade. O
funcionamento da instituição, com o correr do tempo, frutificava experiências
que tendiam a se cristalizar incorporando-se na legislação. Outras vezes,
durante a vida do Tribunal sucedeu o mesmo. Em 1640, outro Regimento foi
publicado:33 devia absorver as alterações da instituição naqueles anos de
semidependência do confole real. A necessidade da atualização das leis que
regiam o Santo Oficio ficou expressa na Provisão com a qual D. Francisco de
Castro inicia o volume do novo código:
'Visitando pessoalmente as Inquisições do Reino, vimos que o Regimen-
to por que até aqui se governavam, ordenado no ano dc 1613... sendo
muito acomodado ao que então conviú4 depois com a variedade do
tempo e casos de novo sucedidos, teve grande alteração pelas visitas,
provisões e instruções que novamente se ordenaram.'

Em 177434, nova revisão do Regimento traduzia as modificações da


mentalidade do país, quando nele se insinuaram idéias da llustração, ânsia de
renovação do espírito e da vida no plano da religiosidade a florescer em
reformas. Reformavam-se as instituições que ainda não se queri4 ou não se
podia suprimir. O Despotismo Ilustrado voltou-se também pag o Santo Oficio,
rejeitou as radicalizações dos que reclamavÍÌm sua extinção" e encomendou
novas leis ao Cardeal da Cunha. A obsessão antijesuítica aflora no Preâmbulo:

'Parecendo-nos imposslvel que os Regimentos e Disposições fun-


damentais, que tinham dado as normas para o governo do Santo Oflcio
se conseryassem na sua primitiva purez4 sem que deixassem de conta-

32 Regimento de 1613.
33 Publicado em 22-10-1640: Regimento de D. Francisco de Casfo.Impresso pela Inquisição
por Pedro Craesbeçk. Publicado também por Furtado de Mendonça rn Narrativa da
perseguição de Hipólito José Furtado de Mendonça. Londres. l8l l, vol. II.
Regimento ordenado pelo Cardeal da Cunh4 conftrmado em l-9-1774 por D. José I em
Alvará com força de lei. Impresso no mesmo ano na Oficina de Miguel Menescal da Cost4
Impressor do Santo Oficio. Também publicado por Furtado dc Mcndonç4 op. cit.l,p.l54.
35 D. Luis da Cunha, por exemplo, no seu Testamento Político (Lisboa,l943 p. 82), sugeria
que se dessem aos judeus, mesmo depois de batizados, a liberdade de viver a lei judaica-
Luis Antonio Vemey, em caÍta de 25-10-1765'ao Minisfo plenipotencituio ern Rom4
Francisco de Almeida e Mendonça referia-se ao Santo Oflcio: <...a Inquisição, Excelênci4
será sempre um obstáculo terrível ao bom gosto das ciências, e Íro progresso, e inüodução
de muitas ouras cousas necessárias e úteis.> ApudMoncad4 L. Cabral: Um iluminista
português do Século XVIII: Luis Antonio Verney. Coimbra" l94l,p. 157.

R IHGB, Rio de Janeiro, 157(j92): 497-57 I , jul./set. 1996. 513


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Sônia Aparecida de Siqrcira

minar-se pelo decurso do tempo com os malignos influxos da sobredita


Soçiedade. Entamos na mais assídua exata e escrupulosa indagação, se
nos ditos Regimentos e Disposições tiúa também entrado o veneÍro
jesuítico. E feitas as precisas combinações, mosfou a experiência que
não foi infrutuoso o nosso €xame'.

Os jesuítas teriam transformado o Tribunal em eclesiástico. Há uma preocupa-


ção em exacerbar a autoridade do rei.
A época da ï/iradeira, com seu antipombalismo sistemático, pretendeu
substitulr o Regimento de Pombal.36 O novo código, porém, perÍnaneceu em
projeto, manuscrito. Com o novo clima de idéias, anemizava-se a Inquisição,
que não mais se identificava com as preocupações do tempo.
Os Regimentos, na medida em que se sucediam, ampliavam-se, ao longo
dos Séculos XVI e XVIL sofrendo um sensível encolhimento no século XVm.
No entanto, subsistiam, paralelos, os Estilos, e, com eles, uma longa série de
consultas aos órgãos superiores da Inquisição, feitas pelos aplicadores das leis
do Tribunal, principalmente dos que estavam nas regiões do chamado ultramar.
As alterações regimentais ficaram a indicarmudanças de mentalidade e as
vicissitudes da instituição.
O confronto dos três Regimentos o de 1552, o de 1613 e o de 1640
-
evidencia as modificações do Santo Oficio fanscorridas nesses 88 anos.
-
Diferem os códigos. O segundo tem maior amplitude, maior quantidade de
detalhes, revela a ânsia de preservação da autonomia do Santo Oficio, sua
burocratização, seu fortalecimento. O terceiro é ainda maior e mais detalhista,
expressando a plenitude do Barroco.
O Regimento do Cardeal Infante contiúa 141 capítulos, o de D . Pedro de
Castilho, 234 agrupados em l7 títulos, revelando maior disciplina na legislação.
Após a sua publicação, foram-lhe acrescentadas 25 Adi@es e Declarações.3?
O Regimento de 1640 tiúa 3 Liwos: o le com 22titulos, o 2e com 23, e o3e
com 27.No de 1774,hâtambém 3 Livros: o le com 9 títulos, o 2e com l5 e o
3eeom23.

Regimento do Santo OfIçio encomendado ao Inquisidor-Geral, Frei Inácio de S. Caetano,


do Conselho da Rainh4 seu confçssor e Minisüo Assistente do Despacho. Ms da Biblioteca
Nacional de Lisboa @eservados).FG ne 1537, fóI. 2001. O manuscrito original pertence à
Biblioteca da Universidade de Coimbra. Embora não contenha dat4 supomos que tenha
sido elaborado antes de 1788, ano em que morreu o Arcebispo de Tessalônic4
Inquisidor-Geral, a pedido de quem foi elaborado o Regimento. Certamente não o foi depois
de 1798, quando faleccu Pascoal José de Melo.
3'.1 Andrada e Silv4 op. cit. p.62.

5t4 R IHGB, Rio tu Janeiro, I 57(j92): 497-57 I , iul./set' 1996.


A disciplina davida colonial

De fato, no segundo Regimento é muito mais nítida a preocupação com a


ordem e as prescrições dos procedimentos. Ê,nfase à formalística" indício de
progressão do banoquismo em emersão. No terceiro Regimento, essas carac-
terísticas já desabrocharam com plenitude.
Os Regimentos de 1613 e de 1640 eram muito mais minuciosos que o
primeiro. Preceituavam, nos mínimos detalhes, as agões dos ministros e ofi-
ciais. Assim, o comportaÍnento durante as visitas do Santo Oficio aos diversos
lugares do Reino. Especificava-se, porÍnenorizadamente, o modo de proceder
e a ordem a ser observada em relagão aos culpados nos crimes de heresia e
apostasia. Controlava-se a agão do Visitador, apontando-se-lhe o que podia e
o que não podia decidir:

'Os Inquisidores em visita só despacharão os casos leves quc não


chegarem a mais que leve suspeita e sendo em parte tão rcmota que não
possam consultar os Inqúsidores, sendo tais, que não requeiram prisão,
nem pena coÍporal, ainda que se provem plenariamente e tudo o mais
se remeteú aos Inquisidores -
e não prendeÉ culpado algum, salvo
quando houver temor de fuga', -

diz o Regimento de 1613.38 Já o de 1640 estreita mais a liberdade de ação do


Visitador que (enquanto durar a visita nos iní avisando do que nela suceder e
tudo o mais que lhe parecen>.3e Essa preocupação de disciplinar-se cada vez
mais a ação dos Inquisidores e seus ofrciais merece reflexão. Sem dúvid4 revela
um crescimento contínuo do Tribunal em complexidade e em quadros funcio.
nais. Todavia, essa multiplicação de preceitos traduzia uma vontade de jurisdici-
dade estrita conta o arbÍhio dos júgadores e o desenvolvimento de mecanismos
de contole que, em última anrílise, beneficiava a autoridade régia que promulgava
essa legislação disciplinadora.
A preocupação com o rigor da hierarquia fansparece com maior nitidez.
Embora ambas as legislagões determinassem que as Visitas fossem feitas
quando houvesse necessidade, a primeira estipulava que os Inquisidores se
apresentassem ao Inquisidor-Geral para pedir-lhe autorização.4o A segunda e a

38 Tít. II, cap.6.


39 O Tít. I do Liv. II, $ 3e veta o despacho de processos de <pessoas suspeitas que confessarem
blasfêmias hereticais, proposições mal soantes, temerárias, escandalosas ou tais, que seja
necessário qualificar-se; os de confessores soliçitantçs, sendo párocos, ou que confessarem
mais de dois atos, ou algum completo, nem dos sortilégios, qualificados, nem dos que
renegam em terras de mouros, havendo testemunhas..,D Poderi4 apenari, tomar as
confissões, mandando-as depois para o Conselho Geral.
40 <Quando parecer tempo aos Inquisidorcs para visitar a çomarca em que residem, ou algum

R IHGB, Rio de Janeiro, 157(j92): 497-57l,jul./set. 1996. 515


Sônia Aparecida de Siqueira

terceir4 só ao Inquisidor-Geral atribuía a iniciativa dessa justiga ambulante.al


Tendência à centralizagão da autoridade.
Para preservar sua autonomia, a Inquisição procurava restringir, sem ousar
removê-la de todo, a participação do Ordinário em seus atos. No caso de
reconciliagão de pessoas com culpas ocultas per accidens, culpas que não
podiam ser sabidas de neúuma pesso4 estipulava-se <E para esta reconciliação
não é necessário ser çhamado o Ordinário...> Fechava-se êm suas atribuições
o Santo Oficio. Até em relagão ao trono. A dispensa para os filhos e netos de
penitenciados, para que servissem em determinados cargos e ofícios, reseÌva-
va-se agora ao Inquisidor-Geral somentè.42 Campo que se subtraía à alçada
real.
O Rei, no entanto, garantia seus interesses sobre a fazenda de seus vassalos.
Os réus da Inquisição podiam ser dispensados de confisco: ((...e para este efeito
se haverá provisão de Sua Majestade em que remita os bens aos ditos culpados>.
Os Inquisidores, todavia, resistiam a essa disposição que seria motivo de
conflito com a Coroa.
A Inquisição se burocratizÃva outro sinal de barroquismo compli-
-
cando sua organização interna: cada oficial munido de Provisão do Inquisidor- -
Geral devia observar um Regimento próprio que lhe era ordenado, no qual os
seus menores atos eram especificados.a3
O Segundo e o Terceiro Regimentos revelavam, ainda, dois traços impor-
tantes da época e da Inquisição: aumento do rigor e fortalecimento do Santo
Ofïcio. Reflexo do tempo no Tribunal, ou o inverso. Ou ambas as coisas. O
aumento de intolerância se refletiu em determinações novas sobre a censura
intelectual: a criação do cargo de Visitador das velas estrangeiras que nos portos
devia agir, assessorado por um escrivão,4a impedindo o contrágio das idéias
heterodoxas. Esse coníâgio devia estar em aumento por causa da pirataria e do
comércio legal e ilegal com terras de hereges, ou por eles freqüentadas. A
intolerância ultrapassava as fronteiras. Previa-se ojulgamento de culpas comÇ1
tidas fora do país <<em Reinos estranhos, onde foi judeu, ou herege...>>45
Alongava-se a inftmia dos hereges e apóstatas, que mesmo tornados à fé eram

lugar dela... e porém sempre enquanto puder ser os Inquisidores nos farão saber quando, e
como querem fazer atal Visitação...)) Regimento de 1552, cap. 5e.
4l TÍt. 2g cap. ls do Regimento de 1613. Tít. I, l, do Regimento de 1640.
42 Regimento dc 1ó13, Tít. IIL cap. 59. Disposição mantida no Regimento de 1640, Liv. I,
Tlt l,2.
43 Regimento de 1613, Tít. I, cap. 6. Regimento de 164O Tít. I, cap. 6.
44 Regimento de 1613, Tlt. I, cap. l-2. Regimento de 1640, Tít. XII, cap. l'13.

5t6 R IHGB, Rio de Janeiro, I 57(j92): 497-571, iul./set. 1996.


A discíplína davida colonial

<infames de direito>. Sobre eles mandava-se: (<não teúam, nem possam ter,
oficios públicos, nem benefïcios, nem sejam pro_curadores, rendeiros e boticá-
rios, físicos, cirurgiões, sangradores, nem possam ser bombardeiros, pilotos,
nem mestes de naus, nem navios, nem possam tÍazor, nem fagam sobre si, e
em suas pessoas, e vestidos, ouro, prata, ou pedraria alguma, nem andem a
cavalo, nem tagam armas, posto que sejam obrigados a tê-las, salvo se for
espad4 depois de dispensados, sob pena de serem por isso castigados por
impenitentes, com as mais penas que parecer...>>46
O estabelecimento da obrigatoriedade de informagões sobre a pureza de
sangue para os oficiais e suas mulheres, bem como para os empregados do Santo
Ofïcio os subalternos indicavam maior intolerância ou a defesa"
conhao-mesmo -
possível assalto a seus quadros, de conversos ou de seus descendentes:
<...tirando-se bastante informação de sua genealogi4 de modo que conste não
ter raça de mouro, judeu nem de gente novamente convertida à Fé...D47
A polícia do Santo Oficio alcançava também o mundo colonial. Volvia
paraas regiões ultramarinas olhos agoramais vigilantes que os do clero comum,
ate o tempo encarregado das fungões repressivas: <Haverámais nos lugares de
Africa, nas flhas da Madeir4 Terceira" São Miguel, Cabo Verde e S. Tomé e
Capitanias do Brasil, um Comissario eum Escrivão aseu caÍgo...> (...Etambém
nos ditos lugares havení os Familiares do Santo Oficio que o Inquisidor-Geral
ordenan>...48
O Santo Oficio crescia. O novo Regimento aumentava o número de seus
oficiais em cada Inquisição. Acrescentara ao Regimento anterior mais um lugar
deNoüário e de Solicitador, passando a contar com 3 Noíários e 2 Solicitadores.
O Regimento de 1640 determina 4 Noúârios e 3 Solicitadores. Quanto aos
Solicitadores, permitia que se criassem novos, se necessário. Instituía outros
cargos: fiês Deputados com salário e quantos o Inquisidor-Geral julgasse
conveniente, sem vencimentos; dois Procuradores paÍa defender os réus; Qua-
lificadores; um Porteiro da mesa do despacho; um Dispenseiro; Guardas
necessiírios para serviço e ministerio dos ciírceres.ae No Regimento de D.
Francisco de Castro, são 4 Deputados (com ordenado e sem ele os mais que

45 Regimento de 1613, Tit. IIL cap. 3. Regimento de 1640, Liv. III, Tít. I, cap. 10.
46 Regimento de 1613, TíL III, cap.4.
47 Regimento de 1613, Tít. I, cap. 2. Regimento de 1640, Liv. I, Tít. l,cap.2.
48 Ibidem. Já em I 594, no entanto, havia familiares habilitados no Brasil, como João Manoe l,
mandado pelo Visitador Heitor Furtado de Mendonça executar a prisão de André Fernandes
Caldeira. ANTT, Inquisição de Lisboa" Proc. ne 8.414.
49 Regimento de 1613, Tit.l,cap.2.

R IHGB, Rio de Janeiro, 157(j92): 497-57l,jul./set. 1996. 517


Sônia Aparecida de Siqueira

nos parecer.> Cria ainda os Revedores que fossem necessários, 3 homens do


Meiriúo,2médicos, I cirurgião, I barbeiroe I capelão.
Definiu o Regimento de 1613 as atribuições dos novos cargos: o título 14 l
referia-se aos guardas dos cárceres; o I 5 versava sobre o Tesoureiro; o 16 sobre
os homens do Meiriúo e o 17 sobre o Alcaide dos cárceres da penitência.
Aumenta de 2 para3 o número dos Inquisidores para os lugares onde residisse
o Tribunal.5o
Deixava o Regimento de 1613 em suas determinações transparecer o
espírito barroco do tempo. Espírito prenhe de cerimonias e etiquetas nos mais
simples atos do cotidiano. Respeitavam-se as pessoas que, portítulos, posições
ou feitos, se distinguissem das demais tivessem qualidade. Sobre elas
estendia-se também a ação inquisitorial - esta não abria exceções mas a
-
publicidade das penitências ficava na dependência do julgamento do- Inquisi- {

dor: <...e abjurará em público no lugar que parecer aos Inquisidores conforme
a qualidade da dita pessoa... E parecendo aos Inquisidores que vista a qualidade
da pessoa e confissão não deve levar hábito do lugar onde abjurar, se dará conta
disso aoConselho Geral, paraordenaroque formais serviço deDeus...>> Mesmo
a legislação reguladora dapurezadas consciências contagiava-se da preocupa-
ção dominante com o status social.
Os tês Regimentos (dos Séculos XVI e XVII) contiúam determinações
sobre a organizagão judiciária, a marcha do processo e das qualidades requeri-
das dos membros da Inquisição:

l. Sobre seus oÍiciais, desde os Inquisidores até os empregados comuns,


incluindo os Promotores, Solicitadores, Notários, Meirinhos, Porteiro da
Casa do Despacho, Alcaide dos cárceres e guardas, Procuradores das partes
e Capelão. Cuidava das qualidades indispensáveis para ocuparem os com-
petentes cargos e das obrigações e deveres a eles inerentes; das relações de
parentesco ou dependência. Essas disposições eram renovadas três vez€s ao
ano em janeiro, maio e setembro lavrando-se auto de sua leitura aos
-
oficiais. -
2. Sobre a maneira de proceder nas Visitações: porque e quando visitar em
nome do Santo OÍício, como prooeder nessas visitas com as autoridades locais,
civis e eclesiásticas, concessão de um prazn de clemência; tratamento das
pessoas que se apresentavam a confessar suas culpas e a denunciar culpas
alheias, além dos salários dos oficiais encarregados desses procedimentos.

50 Regimento de 1613, Tít. 17 e Tít. I, cap. l.

518 R IHGB, Rio de Janeiro, I 57(392): 497-57 I , jul./set. 1996,


A disciplina davida colonial

3. Sobre a maneira de proceder ao receber denúncias sobre crimes de


heresia e apostasia.
4. Sobre a manutenção da disciplina nos paços inquisitoriais, incluindo
ooúecimento de tudo sobre os presos: pertences que tiúam trazido, sua
conduta nas prisões, o tatamento que recebiam. Compreendia zelo sobre a
segurança pessoal da Inquisição, impedindo a entrada de pessoas armadas e
cuidados com sua reputação, vigiando para que não enüassem ou pennaneces-
sem mulheres nas casas do Santo Oficio.
5. Determinavam quais os livros que deviam ter os Tribunais, a organiza-
ção da Câmara do Secreto, onde ficava, em arca, o selo da Inquisição.
6. Determinações sobre os processos e seu andamento: exame dos resulta-
dos das Visitações, pronunciamento sobre culpas que implicassem em prisão,
prisão e enfrega dos presos, instauração dos processos, seu andamento, teste-
muúas, defesa dos presos, aplicação do tormento, reconciliação, suspeições
dos lnquisidores e fianças, realizaçío dos autos de ft.
As determinações regimentais deixaram entrever a organicidade das
estruturas administrativas do Santo Ofïcio que repousavam sobre o princípio
da hierarquia, harmônico com a mentalidade portugu€sa e a tradição da
Igreja.
Do clima espiritual vigente, emanava uma intensa procura de ordem. A
concentração da autoridade implicava em recondicionamento de valores, e,
principalmente, na satisfagão pelos integrantes do Santo Oficio de determina-
das exigências e no enquadramento de seus comportamentos no espírito das
leis do Tribunal. As ordens, as mais estritas, tiúam de ser aceitas. E os
executores delas, partícipes de um podertemível, porque multipresente, desta-
cavam-se no meio social, diferenciando-se dos dernais, numa faixa própria de
privilégios e de status social. Em tempo de militância e de determinação de
servir à causa da Igeja, ameaçada pela maré montante das cisões, no seu
ativismo procuravam eles mobilizar virtudes e transferi-las aos outros. Sem
dúvida" esperavam, coerentes que eram, somar créditos para a própria salvação,
zelando pela salvação do próximo.
Os homens que ingressavam nos quadros inquisitoriais eram selecionados.
Deles falam os Regimentos, prescrevendo condições e atitudes. Uma constelação
de funcionários ligados por liames de subordinação e obediência: Inquisidores,
Comissiârios, Qualificadores, Visitadores das naus e das terras, Meiriúos, Notrâ-
rios, Solicitadores, Promotores. Procuradores das partes, Alcaide dos cárceres,
Familiares, e, aind4 guaÍdâs e pessoal a serviço do Inquisidor-Geral, do Conselho
Geral e dos Tribunais, tais como: Capelão, Médico, Cirurgião, Barbeiro, Dispen-
seiro, Porteiro da Casa e Mesa do Despacho.

RIHGB, Rio de Janeiro, 157(392): 497-571, jul./set. 1996. 519


Sônia Aparecida de Siqueira

Os cmgos e asÍwrções na legislação do Santo Oficio

Ao tempo em que se definiu institucionalmente o Santo Ofïcio, quando ele


funcionou com seu maior rendimento, o clima espiritual que então o envolvia
era de incessante procura de estabilidade e de ordem em todos os setores da
vida coletiva. Essa necessidade de um novo equilibrio com mais veemência se
fazia sentir naquelas iíreas em que os desencontros entre a tradição e a inovação
geravam dúvidas, confusões ou conflitos. No plano das relações sociais entre
os indivíduos, em função da interdependência de suas atividades, a forma de
superação das dúvidas e dos desconcertos foi a repartiçio da autoridade
mediante progressiva ordenação de uma hierarquia. E da burocracia como
subproduto. O que se traduzia" aliás, numa espécie de exasperação da forma-
lísücq do cerimonial, das prerrogativas, a marcarem as distâncias e posigões
relativas, traços característicos da época baÍroca. A mobilidade social acentua-
d4 a flutuação das idéias, as fissuras no complexo das crenças, as revisões de
certos critérios antigos associavam-se, exacerbando o imperativo de nova
partilha dos quinhões de autoridade entre os indivíduos.
A Inquisição, ela própria resposta ao desafio das incertezas suspensas na
atnosfer4 como via de solução da problemática das consciências sequiosas de
seguranças interiorcs, refletia na sua estruturação, visivelmente complexa em
confronto com outas instituições contemporâneas, essa atmosfera de busca de
uma disciplina calmante através da hierarquização, que era uma fórmula de
discriminação de atribuições e de poder a ela inerentes, Voltada à manutenção
de um elenco de valores, calcava suas estruturas numa hierarquia definida"
indispensável àprópria sobrevivênciada instituição queviúade inserir-senum
ambiente de remodelação da velha ordem tradicional. A multiplicação das
praxes, dos estilos, a revelar na esfera da processualística um certo experimen-
talismo judiciário, contrasta com a relativa rigidez das estruturas que, defensi-
vamente talvez, pennaneceram fundamentalmente as mesmas desde o primeiro
Regimento.
Associava o Santo Ofïcio elementos da hierarquia eclesiástica e da hierar-
quia civil, dado o duplo caráter da instituição, absorvendo figuras tipicamente
eclesiásticas, como os Visitadores ou Capelães, ou marcadamente civis, como
os Promotores, Procuradores ou Meirinhos, e até militares, como os Alcaides.
A estesjuntavam entidades específicas, por assim dizer, originais dalnquisição,
como Inquisidores e os familiares.
Os membros do Santo Oficio foram homens privilegiados.
A sociedade ocidental dos séculos modernos viveu sob a égide do Privilé-
gio. Sua doutrina foi elaborada pelos jurisconsultos ao distinguir entre o izs
comune e o l'as singulare,l'. e., entre o direito de todos e <<aquele que não por

R IHGB, Rio de Janeiro, I 57(392): 497-57 I , iul./set. I 996.


A disciplina davida colonial

exigência darazÃo, mas por alguma utilidade foi introduzido com autoridade
dos chamados a constituir o Direito>.sr
Com a eclosão romanista do Século XIII, que, partindo de Boloúa"
derramou-se pela Europa Ocidental, difundiu-se e institucionalizou-se o Privi-
légio. Fenômeno europeu, de que participou a Península Ibérica.
Em Portugal, o direito romano penetrou na época de D. Afonso II e
firmou-se nos Séculos XfV e XV, haurido diretamente das fontes italianas ou
filtrando-se pelos glosadores de Tolosa e Montpelier. Oficializou-se com a
promulgação do Código do Rei Sábio, de Castel4 na hadução de Jácome Ruiz
Flores de Leys.
-as
Com os legistas, introduziu-se a nova concepção do poder real.s2 A figura
semipatriarcal do soberano a premiar dedicações e lealdades com benesses,
mercês e cessões territoriais, fora progressivamente substituída. Em seu lugar,
surgira a do Rei, fonte da lei, rárbitro dos privilégios que outorgav4 movido
pelas boas razões do Estado, no interesse de facilitar para certas pessoas o
desenvolvimento de suas faculdades, o cumprimento de seus frns, ou garantir-
lhes a colaboração paftÌ o bem comum.
Na Península, gerações de reis concederam e revalidaram isenções e
exceções. Isenções fiscais e de servigo. Direito de foro próprio, ou concessões
que implicavam em distinções puramente sociais, hábitos de ordens militares,
posse de oficios, facilidades de ingresso na carreira militar. Privilégios que
haviam consagrado a posição social de linhagens tradicionais estendiam-se a
membros da alta administração do Reino e da Casa Real seculares e
eclesiásticos -
militares, governadores de praças e capitanias do ultramar,
-
ainda que não fossem de origem nobre.
Os reis portugueses usamm o privilégio como forma de remuneragão de
serviços. Serviços prestados ou por prestar. Serviços ao rei, seúor do Reino
ou defensor da fe.
O rei, chefe da igreja portuguesa no seu aspecto administrativo, por
autorizaçdo explícita ou implícita do Papa, concedia também privilégios a
instituições religiosas ou paraeclesiásticas, ou delegava autoridade paÍa conce-
dê-los. Assim, consentia que o Tribunal do Santo Oficio os desse a seus Oficiais
e Familiares.

5l Dig., lib. I, tít. 3e, Lei 16.


52 Franç4 Eduardo d'Oliveira: O poder real em Portugal e as origens do absolutismo. S.
Paulo. 1946.

R IHGB, Rio de Janeiro, 157(392): 497-571,juL./set. 1996. 521


Sônía Aparecida de Siqueira

A ru2.ão da outorga dos privilégios ao Santo Ofïcio repousava na idéia


tridentina da Igreja de Cristo como único caminho de salvação, dever de
apostolado e natural defesa da fé adviúa do batismo e do caráter crismal de
sua confirmação senso de responsabilidade extemamente vivo na consciên-
cia do homem do -tempo. A angústia da salvação constante da espiritualidade
modema achara alívio na definição do caráter -mediatório da Igreja. Aos que,
- de um imperativo de consciênci a,zelavampor evitar discrepâncias
no exercício
e impedir desvios, era legítimo se estendessem privilégios e liberalidades.
Concediam os reis privilégios ao Santo Oficio. Concediam-nos também os
papas.
A Santa Sé, principalmente, vigiavaa inviolabilidade das concessões feias
àqueles que agiam em seu nome, pela cau^sa comum da Cristandade. Documen-
tos de sua chancelaria comprovam isso."
{
As principais concessões prívilegiativas feitas ao Santo Ofício foram
isenções de caráter econômico impostos e contribuições e a outorga de
- -
preeminências, prerrogativas e jurisdições aos seus membros. Todas feitas pelo
Sumo Pontífice ou pelo Rei.
Os privilégios abrangeram todos os membros do Santo Ofício, e alguns (
deles também foram estendidos as mulheres e aos filhos dos oficiais da (
Inquisição, e até aos seus criados e serviçais. Algumas concessões foram
especificamente entregues aos Inquisidores, ao Inquisidor-Geral e aos Deputa-
dos do Conselho do Santo Oficio. Distribuição variad4 a evidenciar que esses
privilégios tiúam um sentido: de um lado, garantir a autoridade dos oficiais e
membros do Santo Ofïcio, protegendo-os pelo privilégio contra outros privile-
giados do Alto Clero ou da Nobreza e de outro, assegurar pelo prêmio
-
do privilégio, o recrutamento de seus quadros. -
Assim, a Santa Sé determinou que nem os Vigários, nem o Ordinrário ou
sequer o Delegado Apostólico pudessem proceder confra ministros e oficiais
J

do Santo Oficio quando em exercício de suas funções. Concedeu, também, aos \


Inquisidores e Deputados do Conselho, 14 Breves de qüinqüênios para que í
(
pudessem receber os frutos de seus benefícios, mesmo estando deles ausentes,
servindo à Inquisição.sa

53 C/ por exemplo, a Constituição do papa Pio V conüa os que ofendem o Estado, negócio e
pessoas do Santo OÍïcio da Inquisição. Biblioteca Nacional de Lisboa. Santo Ofïcio, p. 22.
54 Breve de qüinqüênio concedido por Paulo III aos 12-2-1539 rl Coletório de Bulas,
Breves..." p. 62; Breve do mesmo pontífice aos 10-10-1543, aos 26-10-1545, aos
25-3-1551 e 14-7-1553. Breve de Pio IV aos 20-4-1560, 16-10-1564. Breves de Pio V de
23-7-1569,20-8-1571. Breves de Gregório XIII, de l0-8-l 575 e 16-4-1580. Breve de Sixto
V de l0-8-1585 e de Gregório XIV de 17-2-1591, respectivamente às pp. 64,66,67,68,
69,70v,74,76v,78, 81, 83, 85 e 87 do Coletório cit.

522 R IHGB, Rio de Janeiro, I 57(392): 497-57 I ,


jul./set. I 996.
A disciplina davida colonial

D. João II, em carta de 20-ll-1536 dirigida a todos os minishos, justiças e


oficiais de seu reino, mandavq sob serias san@s, que se pr€stassem ao servigo do
Tribunal cumprindo seus mandados e cartas, prendendo ou mandando prender,
mandando levar às cadeias, citando p€ssoas, peúorando seus bens e fazendas,
respeitando e fazendo respeitar as pessoas da Inquisição.s5 O mesmo rei, aos 3l de
dezembro de 1584, determinara em alvani que os privilégios concedidos ao Santo
Oficio fossem cumpridos mesmo enquanto não tivessem sido confirmados.
A todos os membros da Inquisição foram concedidas isenções que os
dispensavam de ir com os presos e dinheiro, de ser tutor ou curador, de ter oficio
dos conselhos sem sua vontade, de dar aposentadoria em suas casas de morad4
adegas e cavalariças. Proibiu fossem deles tomadas roupas, palhas, cevada, pão,
vinho, leúa, galinhas, ovos, bestas de sela ou de albarda, ou qualquer cousa
contra suas vontades. Estavam dispensados de servir em terra ou mar e de ter
ganchos à porta. Outorgou-se-lhes o direito de porte de armas defensivas as
que quisessem e ofensivas espada, puúal ou adaga -
e de usar seda em
- - -
suas pessoas, bem como na de seus filhos e sua mulher. Cumulavam-se a todos
os servidores de mercês e preeminências, num claro intento de diferenciáJos
dos outros reinóis.

Mais. Permitiu a Coroa que o Santo Ofïcio tivesse foro próprio, concessão
tanto mais valiosa, quanto porfiava o trono na época em reduzir os privilégios
jurídicos das <ordens>. D. Henrique, em seu Alvará de 20-l-1580, determinou
fossem os Inquisidoresjuízes nas causas dos oÍiciais eminishos do Santo Ofïcio
nas causas crimes em que fossem autores ou réus e nas cíveis sendo réus. Para
os familiares autores ou réus o privilégio continha limitações nos casos
de lesa-majestade - humana, -
nefando, alevantamento ou motim de província ou
povo, quebrantamento de cartas régias ou seguros, rebelião, desobediência aos
mandados régios, força de mulheres ou roubo delas, quebrantamento de casa"
igreja ou mosteiro, queima de campo ou casa com dolo, resistência e desacato
qualificados contra justiças do rei, delinqüência nos ofícios públicos do rei, dos
povos e das repúblicas. Nestes casos, estariam os familiares sujeitos à justiça
secular, como também nas causas crime, quando se tratasse de homicídio
qualificado, falsidade, moeda falsa, e de terem atirado com bestas ou arcabuz.56
Ao Inquisidor-Geral, o Alvaná de D. Henrique, de l8-l-1580, entregou o
conhecimento das causas do Fisco e suas dependências, o que Felipe II
confirmou em 19-4-1596.

55 Coletóriopp. ll2-113.
56 Alvará confirmado em 10-4-1598. In Coletório cit., p. 134.

R IHGB, Río de Janeiro, I 5 7 (392) : 497-57 I, jul./set. I 996. 523


Sônia Aparecida de Siqueira

Aos demais membros do Tribunal da Fé, foram dadas pela Coroa


isenções de caráter econômico, que os tornaram escusos do pagamento de
fintas, talhas, pedidos, empréstimos e ouaisquer encarregos que, pelos {
conselhos ou lugares onde fossem moradores, fossem lançados por qualquer
modo ou maneira. D. Henrique, em l8-l-1580, confirmou as isenções
anteriores e dispensou os integrantes do Santo Oficio de pagar imposição
que por causa da aposentadoria fora posta aos povos. O Alvará de Felipe II,
de 3 I - 12- I 5 84, confirmou todas as disposições. Em 19-4-1596, os ministros
e familiares do Santo Oficio foram isentos do pagamento da imposição e os
alcaides, meirinhos, solicitadores, porteiros, dispenseiros, guardas, de paga-
rem sisa ou cabeção. Evidentemente, as concessões eram feitas em conso-
nância com a hierarquia inquisitorial.
Todas essas mercês, prerrogativas, preeminências, isenções, fizeram com
que os servidores da Inquisição, com o tempo, configurassem um grupo social
distinto, com seu stafin característico, casando, no mesmo quadro de ação, o
eclesiástico com o leigo prolongamento diferenciado de outras ordens do
Reino-ocleroeopovo.-
O privilégio dado abria vias de ascensão social se não para os Inquisi-
dores, recrutados já no Alto Clero -
ao menos paÍa a gente da burguesia que
-
lograva com o privilégio um estatuto social diferenciado.
A Inquisição gerou, sob muitos aspectos, senão uma outra ordem, um outro
braço do Reino, ao menos uma amplíssima corporação laico-religiosa, cujos
membros não se igualavam aos estranhos aos seus quadros. Os Deputados do
Conselho, v.g., aliavam à condição de prelados, a condição de membros do
Conselho Real. O privilégio dava-lhes estatuto especial. Os Inquisidores refo- \
gem à autoridade dos Ordinários e às autoridades civis. Passavam a ser uma
ì
espécie de ilha social.

I.Inquisidores

Inquisidor = inquisitor. A palavra ve m de inquisitio que é para os canonis-


tas criminis vel criminosi per judicem legitimefacta indagatio, i. e., rndagação
feita pelo juiz nos termos da lei acerca do crime ou do criminoso ou de um e
outro juntamente.5T
A figura do inquisidor, o inquiridor de heresias, apaf,ece na história
religiosa do Ocidente por determinação do Canon 8 do IV Concílio de Latrão

57 Apud Mgr. Douais: L'inquisition. Ses origines. Sa procédure. Faris. 1906, p. 2.

524 R IHGB, Rio de Janeiro, I 57(392): 497-57 I , jul./set. I 996.


A disciplina davida colonial

(1215), que provia-sobre a obrigatoriedade da pesquisa quando houvesse


pública difamação.s8 A tarefa foi consignada a detèrminadosèclesiásticos gge
procediam a inquisitio specialis, ou apuração do verdadeiro juízo sobre as
pessoas incriminadas. O inquisidor acumulava as funções de acusador e de juiz
ordinrário.5e
As condições básicas para ocupar o cargo de Inquisidor, no Santo Ofício,
eram, além do estado eclesirístico exigido pela Bula instituidora da Inquisi-
ção60,ser letrado, apto, idôneo de boa consciência e constante; levar-vida
honesta, fazendo com gue dela emanasse, bem como de suas palavras; exem-
plo, pureza e bondade.6l
Pertencer ao Alto Clero não significava no tempo, necessariamente, na
posse de um conjunto satisfatório de coúecimentos. Ainda se faziam prelados
por conveniências de ordem social ou política e se outorgavam dignidades,
como privilégios a famílias ou a indivíduos. Nem sempre, mas era com
freqüência assim. A Inquisição, porém, defensora da integridade doufinal,
exigia que seus membros fossem letrados. Geralmente formados em cânones
ou leis. Ou em ambos os direitos. O Regimento de 1640 permitiu também a
licenciatura em teologia, obtida por exame privado. Na Inquisição de Lisboa"
por exemplo, entre 1593 e 1620, onze^Inquisidores que a integraram foram
ôanonistai: Manoel Alvares Tavares,ó2 D-. Antônio Pereira dã Menezes,63
Antônio Dias Cardoso,esalvador de Mesquit4ut João Tavares Brandão,ó6 b.

58 Com uma espécie de polícia extra-oficial, obtinha-se a dffimatio de cada localidade e


arrolavam-se as pessoas consideradas suspeitas. Era a ilquisitio generalis de que fala o
Código de Direito Canônico no seu Canon 1939.
59 Direito Canônico, Canon 1940, $ 2s.
60 <...Deve-se indicar, subdelegar e deputar paraas ditas coisas pessoas eclesiásticas, idôneas,
letradas, que temem a Deus... <<BulaCum ad nihil magis. 23-5-1536.
6l Bula cit. Regimento de 1552, cap. le. Regimento de 1613, Tít. I, cap. l. Regimento de
1640, Tít. III, cap. L Regimento de 1774, Tít. II, cap. l.
62 Inquisidor em 17-3-1593, depois de servir à Inquisição de Évora. Monteiro, Frei Pedro:
Notícia geral das Santas Inquisições deste Reino e de suas conqzrsÍas, Ministros e oficiais
de que cada uma se compõe. In Coleção de Documentos, Estatutos e Memórias da
Academia Portuguesa de História. Lisboa. 1721. T Ill, p. 437 .
63 Inquisidor de Lisboa em 29-12-1600. Ibidem.
64 Inquisidor de Lisboa em 12-10-1602. Cônego doutoral da Sé de Évora. Inquisidor em
Coimbra em 1589. Escreveu o Regimento do Santo OfIcio impresso em 1613 por ordem
de D. Pedro de Castilho. Cf. Enciclopedia Portuguesa-Brasileira" T III, p. 9,{4.
65 Provisão no tribunal lisboeta aos 7-5- I 608, tendo sido antes Inquisidor em Évora Monteiro,
Frei Pedro: op. cit. loc. cit.
66 Provisão em Lisboa em 6-5-1612, tendo servido antes à Inquisição de Coinmbra. Ibidem.

R IHGB, Rio de Janeiro, I 57(j92): 497-57 I , jul./set. 1996. 525


Sônia Aparecida de Siqueira

Rodrigo da Cuú467_D. Manoel Pereira,6s D. Francisco de Menezesu', Rodrigo


Fernandes Saldanha,T0 Pedro da Silva de SampaioTr e Simão Barreto de Meni-
72
zes.
Não era igreja, era tribunal; não era sacerdócio, era justiça. Menos que
padres pediam-se juristas. Juristas que fossem padres para uma justiça que a
Igreja se prestava a distribuir. Boas letras de procedência coimbrã deviam
í
aliar-se às virtudes. De 21 Inquisidores de Coimbra" de agosÍo de 1540 a maio
de 1620, 19 eram bacharéis, licenciados ou doutores; em Evora, dejulho de
1535 ajulho de 1625, passaram 30 Inquisidores, dos quais 28 tinham cursado (
a Universidade; em Lisboa, dejulho de 1539 a outubro de 1620, 3 1 Inquisidores,
sendo 27 formados pela UniversidadeT3 Alguns, como D. Francisco de Mene-
zes, Pantaleão RodriguesPacheco, D. Rodrigo daCuúa, foram professores em
Coimbra. Homens formados no culto do direito constituíam uma prevenção
contra o arbítrio nos julgamentos. Zelava o Papa, zelava o rei. Houve quem
saísse do Desembargo del'Rei, como Pantaleão Rodrigues Pacheco, ou exer-
cesse cumulativamente a justiça inquisitorial e a civil.
O Regimento de 1640 passou a exigir dos Inquisidores a idade mínima de
30 anos e a condição de nobre, além dejá ter servido no cargo de Deputado <e
nele teúam dado mostras de prudênci4 letras e virtude>, <livres de todapaixão
e respeitos que costumam perturbar o ânimo dos juízes>. Consagrava-se agora,
com mais afrnco, a hierarquia e a procedência social.
Capaz, idôneo, de boa consciência, devia ser o Inquisidor: requisitos que
garantiriam a aplicação da justiça com equanimidade. Pedia-se também a

Provisão de 9-12-1615. Foi depois Bispo de Portalegre, do Porto, Arcebispo de Brag4 Prior
das Espanhas e, por fim, Arcebispo de Lisboa e membro do Conselho de Estado. Autor de
várias obras sobre a história da lgreja em Portugal. Enciclopédia Portuguesa-brasileir4 T
VIII, pp. 269-270.
68 Provisão em26-6-1617 depois de ter sido Inquisidor em Évora. Monteiro, Frei Pedro: op.
cit. loc. cit.
69 Inquisidor de Lisboa em 9-8-1617 depois de ter servido em Coimbra. Religioso arrábido.
Colegial de S. Pedro em Coimbr4 chantre da Sé do Porto, deputado da Inquisição de
Coimbra. Reformador e reitor da Universidade. Bispo de Leiriq e, depois, do Algarve.
Enciclopédia Portuguesa-brasileir4 T XVI, p. 928.
70 Provisão de I l-8-1617 para a Inquisição de Lisbo4 depois de ter servido à Inquisição de
Coimbra. Monteiro, Frei Pedro, op. cit. loc. cit.
7t Provisão em29-8-1617. Deão de Leiria. Bispo da Búia de cuja diocese tomou posse em
19-8-1634. Almeida Fortunato de: História da lgreja em Portugal, T III, 2e p., p. 968.
72 Patente em I l-10-1620. Fora Inquisidor em Coimbra e em Évora. Cônego doutoral da Sé
de Viseu, deputado do Sto. Oficio. Enciclopédia Portuguesa-brasileir4 vol. IV, p. 285.
73 Monteiro, Frei Pedro, op. cit. loc. cit.

526 RIHGB, Rio de Janeiro, 157(392):497-571, jul./set. 1996.


A disciplina davida colonial

constância. As funções inquisitoriais implicavam no ingresso em um explosivo


mundo de segredos. Por isso, os que a exerciam deviam pennanecer nesse mundo
toda a vida. Peúor de discrição. Não se admitia fiansitoriedade pela própria
ÍnntuÍezadas funções. Segredo e fidelidade no cargo eram condições vitais. Ou o
escândalo poderia desmoralizar a instituição, negando-lhe a propria finalidade.
Vida e palavras honestas, edificando os agentes com exemplos de purerâ
e bondade. Pediam os Regimentos que fossem excepcionais. Sabemos que lei
e realidade não são a mesma coisa. Homens eram todos. Excepcionais, quantos?
Todavia" a existência de certas disposições legais revelam um espírito, ou uma
intenção.
O juízo coletivo sobre a Inquisição dependeria do comportamento de seus
oficiais, de sua capacidade de conigir as próprias imperfeições, de imolar
impulsos e interesses em prol do bom nome do Tribunal. A verdade é que, na
prática, ou por causa da vigilância social, ou do controle institucional, ou talvez,
da frrsão dos ideais individuais com os do Santo Offcio, não temos notícia de
escândalos ou abusos dos agentes inquisitoriais. Geralmente, as exceções
apenas confirmariam a regra. Alguns Inquisidores, por suas virtudes ou pelo
sacrificio, chegaram a ser guindados aos altares.Ta
Vigiavam-se as vidas. Primordialmente deviam os Inquisidores poder
apontar as próprias como paradignas. Envolvia-os toda uma legislação coer-
citiva nesse sentido, destinada a avivar-lhes o que os princípios já teriam ditado.
<E para cumprirem melhor com a obrigação de seus cargos, e descarregarem
nossa consciência e a su4 terão sempÍe presentes nossas ordens, especialmente
o que se dispõe neste Regimento...), dizia o Regimento de 1640. Deviam os
Inquisidores vestir-se com honestidade, mas de maneira condizente com a
posição que tinham. Isso implicav4 naturalmente, dentro dos cânones do
tempo, em certo luxo e distinção. A ressalva preveniria os exageros que
poderiam desgostar a opinião do meio.
Para evitar nepotismos ou influências, não podiam os Inquisidores ser
parentes entre eles, nem ter laços de família com os oficiais ou servidores da
Inquisição.

74 Não pertenceram ao Santo Oficio português, mas foram santificados os Inquisidores S.


Raimundo Penafort, S. Toríbio Mogrovejo, S. Pedro de Veron4 mártir, S. Pio V, S.
Domingos de Gusmão, S. Pedro de Arbués, S. Ioão Capistrano. Beatificados foram Pedro
Castronovo, legado cisterciense, Raimundo, arcediago de Toledo, Bemardo, seu capelão.
Inquisidores também, dois clérigos, Fortanerio e Ademaro, núncios do Santo Oficio de
Tolos4 martirizados pelos albigenses, Conrado de Marburg, mártir, pároco e Inquisidor da
Alemanh4 e o confessor de Sata. Isabel daHungri4 João de Salerno. O InquisidordaFrísia
e Holanda no Século XVI, Guilhermo Lindano, foi considerado Venerável.

R IHGB, Rio de Janeíro, 157(392): 497-57 I , jul./set. 1996. 527


Sônia Aparecida de Siqueira

Obviavam suspeições, regulando seus convívios: o Inquisidor não podia


conversar com pessoas suspeitas. Jurava usar seu cargo bem e fielmente,
guardando a cada parte sua justiga, sem excegão de pessoas, administrando os
negócios inquisitoriais com a devida diligência e cuidado. Não podia dar a
entender aos presos de quem dependia o desempenho de seu processo, bem
como não podia escandaliá-los com suÍrs palavras.

Prescrevia a continuidade de sua ação, impedindo-se aos Inquisidores


ausentarem-se de seus ofïcios sem licença expressa do Inquisidor-Geral. O
mráximo de afastamento que se lhes permitia eram vinte dias anuais, em caso
provado de absoluta necessidade, desde que sua ausência não acarretasse
prejuízo à regularidade do Tribunal. A Inquisição absorvia, real e irreversivel-
mente, a vida de seus dirigentes. De permeio a tantas obrigações e ordens de
procedimentos, coavam-se ainda exigências muito presentes e exclusivas de
docilidade e de dedicação. Os Inquisidores deviam estar psicologicamente
preparados para anular os pendores de sua própria personalidade e para fundi-
rem-se na alma coletiva da instituição, a ela entregando, sem reservas, o
essencial de suas vidas. O Tribunal tiúa seu próprio espírito, formado de
grandes ideais emprestados ao clima espiritual do tempo, misturados embora
aos chamamentos bem humanos para a glória e para o poder terreno.

Dos Inquisidores, dependia o funcionamento dos Tribunais, da Mesa e as


Visitações, Cabia-lhes determinar as visitas às livrarias, às comarcas, o anda-
mento dos processos, a administragão dos ciírceres e o tratamento dos presos,
a rcalizaçãio dos autos de fé, os entendimentos com a Justiça s€cular, os
procedimentos com os penitenciados, a presidência da Mesa. Tudo isso, sob as
determinações minuciosas dos Regimentos. Sua autoridade acionava o maqui-
nismo do Santo Oficio. Estavam, no entanto, limitados no exercício de suas
funções pelo Regimento que se promulgara pelo Inquisidor-Geral e pelo
Conselho. Travas na sua ação, correção para possíveis individualismos ou
tentações de autocracia. Antes, e sobretudo, a preocupação da hierarquia e a
dosagem da autoridade. O Inquisidor, embora ápice da comunidade do Santo
Ofïcio, era peça no seu complicado mecanismo. Peça principal, indispensável,
mas uma peça articulada a muitas outras. O que se exigia de todos, exigia-se
dos Inquisidores.

Só não se podia exigir dos Inquisidores que deixassem de ser homens e,


como tais, passíveis de serem influenciados pelas paixões, sensíveis a amizades
e a desafetos, como todas as pessoas, em todos os tempos, ocupando ou não
fungões de judicatura.Câelâ,pesou sobre um Inquisidor uma suspeição, como
sobre D. Francisco de Menezes. Fora ele competidor vencido do Dr. Antônio
Homem numa vaga do cabido de Coimbra. Nisto estaria a origem do processo
inquisitorial do Doutor Infeliz.

R IHGB, Rio de Janeiro, 157(j92): 497-57 I, jul./set. 1996.


A disciplina davida colonial

A discordância dos Inquisidores de Coimbra dos de Lisboa na apreciação


e
do processo do cônego Baltazar Estaço75 permite aceitarmos o peso dos
desafetos que lhe votavam muitos, encabeçados pelo bispo de Viseu, D. João
Manoel, ou as influências de amigos poderosos do eclesiástico. Falem os fatos:
o referido cônego, acusado de solicitação e atos desonestos com suas çonfiten-
tes, fora sentenciado à relaxação, em Coimbra. Transferido para a jurisdição de
Lisboa, Gaspar Pereira e D. Francisco de Bragança aceitaram sua defesa.
Convenceu-os o cônego de que sofria de estranha e original enfermidade de
frieza, que só era remediada com a aproximação do corpo feminino desnudo.
Aí a causa de agasalhar em seu leito as suas penitentes, sem, no entanto, pecar
contra a castidade. A sentença do tribunal lisboeta, lida no auto de fe de 5 de
abril de 1620, condenou o padre à abjuração de vehemenri suspeito na fé,
destituiu-o das ordens sacras, proibiu-o de entrar em Viseu e condenou-o a
cárcere perpétuo, que foi dado por cumprido em29 de outubro do ano seguin-
te.76

Com a acentuação do Barroco, passa a haver maior preocupação com a


hierarquia. Acolhe-a o Regimento de D. Francisco de Castro, ao insistir no
critério da antigüidade. Mesmo ressalvando igual jurisdição e preeminênci4
lembra que há cousas que devem ser atribuídas ao Inquisidor mais antigo,
(portanto ordenamos que ele entre e saia sempre à mão direita dos mais
Inquisidores e ministros, e se assente na l" cadeira que estiver na casa do
despacho com o rosto para a portu. Na Mesa, devia tocar a campaiú4 rezar
a oração do Espírito Santo, repartir com os outros Inquisidores os processos,
as informações e as diligências, propor as causas, fazer os assentos das resolu-
ções. Receber coÍïespondência e dar execução às ordens do Conselho Geral .
Era responsável pela guarda de respeito e autoridade dos integrantes da Mesa,
pela sua compostura, seu comportamento nas votações. Deveria fazer observar
com rigor o tempo de trabalho na Mesa" Sobre seus atos; pairava a vigilância
do 2" Inquisidor. Este Regimento, nos seus 59 parágrafos do título referente
aos Inquisidores, desce a detalhes bem ao gosto barroco.

O Regimento de 1774 conserva as exigências de idade, estamento, letras


e qualidades morais, prescritas nas leis anteriores, mantém as determinações
de precedência, hierarquia interna, acentralização do poder no Inquisidor mais
antigo, recomenda que, na mesa do despacho, além do Regimento, devia estar
um exemplar das Ordenações do Reino <de'que hão de fazer grande uso assim

75 ANTT, Inquisição de Lisboa, Procu. 2384.


76 O documento foi Íanscrito por Antonio Baião in Episódios dramóticos da Inquisição
Portuguesa.Lisboa. 1936, vol. I, pp. 92-98.

R IHGB, Rio de Janeíro, I 57(j92): 497-57 I , jul./set. 1996. 529


Sônia Aparecida de Siqueira

na forma exterior dos processos como na imposição das penas, por ser uma e
outra cousa da jurisdição secular e só do Santo Offcio o uso dela por especial
delegação de S. Majestade>. A forma dos processos deveria observar o prescrito
nas ordenagões. Não há mudangas na essência do Regimento anterior, apenas
simplificação dos modos de agir.

2. Deputados

O cargo de Deputado do Santo Ofïcio aparece na documentação inquisi-


torial conhecida, a partir de 1536, quando cinco dias após a aceitação da
primeira Bula instituidora da Inquisição, D. Diogo da Silva nomeou quatro
Deputados ou conselheiros com os quais despachava todos os negócios do
Tribunal. Esse número foi depois elevado para seis, sendo cinco clérigos
possuidores de beneficios e conezias nas igrejas catedrais do Reino. Todos
deviam ser graduados em Teologia ou Cânones. Nos dois últimos Regimentos,
permitia-se que fossem graduados em leis. Deviam ter grandes procedimentos,
conhecidas letras, comumente acompanhadas de nobreza do sangue, que,
depois de servirem muitos anos de Promotores, Deputados dos Tribunais e
Inquisidores, eram promovidos ao cargo de Deputado do Conselho Geral.?7
Depois de 1640, foi exigida a idade mínima de 25 anos. Suas atribuições eram
as do organismo que integravam: govemar a Inquisição do Reino e colônias
quando estivesse va3arcadeira de Inquisidor-Geral, prover a todos os lugares
nos Tribunais, resolver negócios mais graves, despachar licengas para tudo, o
que se devia imprimir no Reino e para os livros que vinham de fora. Eram ainda
juízes privativos nas causas cíveis e criminais dos Familiares. Geralmente, os
Deputados do Conselho Geral eram nomeados parabispados e arcebispados do
Reino.
D. Diogo da Silva nomeou quatro Deputados paÍa governarem com ele o
Santo Ofício.78 A Bulade 1547,criando o Conselho Geral dalnquisição, criou
também novos Deputados. Podiam ocupar o cargo bispos ou arcebispos, sem,
no entanto, terem , por suas dignidades pontifïcias, precedência sobre os demais
membros do organismo colegiado, nem em cadeira, nem em voto. Toda

77 Monteiro, Frei Pedro: Católogo dos Deputados do Conselho Geral da Santa Inquisição in
loc. cit.,p.7.
78 Foram feitos Deputados por D. Diogo da SilvA Rodrigo Lopes de Carvalho, doutor em
ambos os direitos, protonotrário apostólico e cônego da. Sé de Evora; João de Melo, doutor
em cânones, depois bispo do Algarve e ao fim bispo de Evora; Gonçalo Pinheiro, licenciado
ern cânones, cônego de Evora; Antonio Rodrigues Monsanto, doutor em ambos os direitos.
Ibidem.

530 R IHGB, Rio de Janeiro, 157(392): 497-57I,jul./set. 1996.


A disciplina davida colonial

precedência dependia da antigüidade no serviço do Tribunal e explicava pelos


nomes de I^,2;^ ou 3" cadeira.
O Regimento de 1552 dispuú4 no seu capítulo 46, que os Inquisidores
despachassem os processos assessorados, no mínimo por cinco letrados de boa
consciência. Em 1585, a nomeação do Lic. Rodrigo Pires da Veiga para
Deputado da Inquisição de Evora contém delineadas as principais atribuições
dos Deputados dos Tribunais:7e assistir os Inquisidores com seús coúecimen-
tos, votando nas sentenças definitivas e nas interlocutórias que tivessem força
de decisão. Podiam pedir aos Inquisidores que os chamassem no momento em
que fizessem audiência aos presos para aprender como proceder. Vindo o réu
à Mesa, podiam os Deputados fazer-lhes as perguntas que achassem necessárias
para melhor instruir as suas causas e nelas votaÍ com maior seguftmça. Cuida-
vam as leis de que vrárias cabeças julgassem os réus. Iniciavam-se os Deputados
nas práticas do Santo Ofïcio. Observavam eles os procedimentos comuns.
Procuravam inteirar-se de todos os aspectos dos casos em pauta antes de
exararìem seu parecer. Transparece disso tudo uma preocupação em acertar,
uma ausência de improvisagões.

O Regimento de 1613 refere-se especificamente ao cargo de Deputado:


<Haverá em cada Inquisição três Deputados salariados, com voto decisivo,
como sempre se costumou e os mais sem salário que parecer ao Inquisidor-Ge-
ral...>

Deviam os Deputados guardar as disposições hienârquicas vigentes no


Tribunal: no assento e voto tiúam de observar as precedências da cadeira que
ocupavam e só podiam assistir ao despacho ordinário quando, para isso, fossem
espècificamente chamados.80 Embora pudessem proceder à diligência fora da
sede dos Tribunais quando mandados, e receber denúncias na ausência dos
Inquisidores, só podiam exercer tais funções munidos de comissão expressa do
Inquisidor-Geral.

As condições de habilitação eram comuns a todos os membros do Santo


Ofïcio, acrescidas das condições de nobres, clérigos de ordens sacras, com mais
de 25 anos, licenciados em exames privados naFaculdade de Teologia, Cânones
ou Leis, requisitos que, observados, permitiam aos Deputados servir eventual-
mente como Inquisidores em casos de necessidade.

79 ANTT, Códiçe no 974 dos Manuscritos.

80 Tít. I, cap. 2. Refere-se Íìo cargo também no seu tít. Y, cap-24. Os Regimentos seguintes,
de 1640 e 1774, têm título especlfico para o caÍgo, respectivaÍnente o V e III.

R IHGB, Rio de Janeiro, 157(392): 497-571 , jul./set. 1996. 531


Sônia Aparecida de Siqueira

A habilitação obedecia aos mesmos trâmites das candidaturas aos caÍgos


do Santo Oficio, i. a, investigações de sangue, vida, costumes e geração.
Mesmo tipo de procedimento desde meado do Século XVI até o Século XIX.
Iniciava-se o processo com um pedido do interessado ao Tribunal a que
estava juridicamente submetido. Desse pedido constava nome, estado civil,
condição do suplicante, nome de seus pais e avós paternos e maternos, no caso
de ser casado, também de sua mulher e de seus ascendentes. Seguiam-se as
informações genealógicas: o suplicante declarava ser filho legítimo, e declarava
os nomes de seus avós paternos e maternos. Os Inquisidores mandavam tomar
informações no distrito de origem do suplicante e depois nas outras sedes de
Tribunais, sobre a existência de culpas ou passagem pela Inquisição do supli-
cante ou algum de seus ascendentes. A seguir, mandava a Mesa que se
procedesse à tirada de informações exfrajudiciais, em que fossem ouvidas em
segredo pessoas cristiis-velhas, fidedignas e noticiosas sobre a limpeza do
sangue do habilitando e de sua família.
Antes das inquirições, eram anexadas as certidões de batismo dos pais e
avós paternos e maternos.
Os interrogatórios visavam em essência a apurar a veracidade da filiação,
residência, posses e conduta do habilitando. Havia l1 itens a serem pergunta-
dos, entre eles se a testemuúa tiúa alguma razão de parentesco, ódio ou
inimizade com algumas das pessoas que estavam sendo investigadas; se todos
eram cristãos-velhos, limpos de sangue e geração, sem mancha ou raça alguma
de judeu, crisülo-novo, mouro, mourisco, mulato, infiel ou de outra alguma
infecta nação de gente novamente convertida à fé, e se por legítimos e inteiros
cristãos-velhos são, e foram sempre todos e cada um deles tidos, havidos e
reputados sem haver em tempo algum fama ou rumor em contriírio. Mais, se
era sabido que o habilitando, seus pais ou avós tivessem sido presos ou
penitenciados pelo Santo Ofïcio, ou incursos em alguma fama pública ou pena
vil de feito ou de direito. Perguntava-se ainda se o habilitando era pessoa de
bom procedimento, vida e costumes, capazde se fiar dele os maiores negócios
de suposição e segredo e de ser ministro do Santo Ofício, se possuía ciência e
letras para votar em matérias graves, se vivia limpamente e com bom tratamen-
to, correspondente a sua pessoa e estado, se era sacerdote ou tiúa ordens sacras,
e se antes de tê-las recebido tinha sido alguma vez casado ou tivesse filhos, ou
ainda se porventura tiúa algum filho ilegítimo. Seria tudo o testemuúado
público e notório? Estranhos tempos em que as pretensões de vida de uma
pessoa dependiam da oralidade do ouvir dizer.Note-se aindao peso do ultramar
no preconceito contra o mulato.
Tendo os depoimentos que instruíam o processo garantido a legitimidade,
integridade epurezado sangue dohabilitando e de seus ascendentes até segundo

R IHGB, Rio de Janeiro, 157(392): 497-5/l,jul./set. 1996.


Á disciplina davida colonial

grau, assegurado sua ponderação, capacidade paÍa se encarïegar dos negócios


importantes e secretos, afiançado a nobreza de sua ocupação e a ortodoxia de
sua fé, restava o pagamento da conta. Sua importância dependia das localidades
mais ou menos distantes em que se havia mandado tirar as certidões necessárias
e onde se tiúam feito as inquirições. As despesas, relativamente elevadas,
garantiam certo nível econômico dos membros do Santo Oflcio. O critério
diferenciador do dinheiro infiltrava-se também nas estuturas inquisitoriais.
Finalmente, vinha o despacho final .

3. Notários

Tanto podem provir dos notrários outabeliães instituídos em Portugal desde


o Seculo XIII com o direito justinianeu, postos pelo rei para â redação de atos
públicos, quanto daqueles notários apostólicos designados pelo núncio, aos
quais não consentiaD. JoãoI, mas que acabaram porexistircom seus sucessores
no Século XV. Desde o início do Século XIV, em 1305, e depois em 1340,
tiveram regimento os tabeliães do rei.8l
Por regimento, os escrivães não podiam ser clérigos, mas tiúam de ser
leigos, no Século XIII, em razão de proibigão canônica e dos privilégios da
clerezia,s2 di sposição afinal esquecida.
Correspondem os Noüírios do Santo Ofïcio ao que as Ordenações chama-
vam tabeliães do judicials3, para escr,everem todos os autos que passassem
perante os juízes e mais o que a bem da justiça fossem necessários, escrevendo
os termos dos feitos. Ou, aos escrivães dantes desembargadores e corregedo-
res-escrivães que deviam ser fiéis e entendidos, sabendo ler e notar como
convém a homens de bom juízo e entendimento, providos no oficio pelo rei.e
Deviam os Nohários do Santo Oficio ser clérigos de ordens sacras, de boa
consciência e cosfumes, sabendo bem escrever. Efetivamente ocuparam o caÍgo
de Notrârio da Inquisição pessoas eclesiásticas, muitas delas ligadas à Família
Real, como Diogo Travassos, capelão da raiúa investido nesse cargo por frei
Diogo da Silvaem 10-10-1536;Antônio Rodrigues, capelão do Cardeallnfante;
Paulo da Costa" Domingos Simões, Luís Salgado, Braz Afonso da Costa" Pedro

8l Gama Barros, Henrique: História da Administração Pública em Porngal nos Séculos )II
I a XV.Lisboa. 1949, T VIII, caps. 2 e 3, pp. 364 e segs.

i 82 Iden,p.300.
t 83 Ordenações Filipinas, Liv. I, tít. 89.
t 84 Iden,Liv.l,tit.24.

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1

i
Sônia Aparecida de Siqueira

Alves Sotto Mayor, Manoel Antunes, Cosme Antônio, João Campelo, Antônio
Pires, todos capelães do Cardeal Infante D. Henrique; João de Sande, seu
esmoler, e Jorge de Penalva, capelão do rei.85
Os Notrários deviam, principalmente, ter sangue recoúecidamente livre
de máculas. Era imprescindível que fossem cristãos-velhos. As investigações
se processavam no lugar em que nascera e vivia o candidato. Processavam-se
sempre, mesmo que na família já houvesse elemento detentor de patente do
Tribunal. Um caso brasileiro: Alexandre da Costa Aguiar, presbítero do hábito
de São Pedro, nascido e batizado na freguesia do Corpo Santo da Vila do Recife
de Pernambuco, filho do capitão Julião da Costa Aguiar, familiar do Santo
Oficio, teve investigada sua vid4 sangue e condições èconômicas e culturais.só
As testemuúas foram todas vizinhas e amigas da família e atestaram unani-
memente que o habilitando tinha sangue limpo. Atestaram aind4 que vivia de
suas ordens, apesar de ter <<seus bens pahimoniais com que pode passar sem o
exercício de suas ordens>>. Esta informação eru importante. Os membros do
Santo Ofïcio deviam gozar de independência econômica como aval de sua
independência de ação. Não fossem suas posses, o candidato aos quadros da
Inquisição não poderia sequer habilitar-se.
As informações das testemuúas não tinham caráúer obrigatoriamente
decisivo. A Mesa julgava antes de concordar com a expedição de patentes. A
habilitação do pe. Maurício Manoel de Oliveira Mirandao', presbítero secular
de Olinda, que, ao candidatar-se ao cargo de Comissário do Santo Ofício
naquela cidade, foi alvejado por informagões de dupla suspeita de sangue:
mulatice e <<crist2Íonovice>, foi cuidadosamente analisada pelos Inquisidores.

Estes não se louvaram nas testemuúas 'porquanto neúuma das


ditas testemunhas que falam no referido assina origem, nem dârazÁo qu'e
mereça atenção, e somente depõem de uma voz vaga sem origem, e
princípio certo, a qual não faz prov4 não deve privar o habilitando da
quase posse, qút se ach4 juìgado cristão-veúro pelo Ordinário ...'88
"rn
Foi expedida a patente.
Esses requisitos todos erÍÌm essenciais, porque os Notiários haviam de
privar da intimidade dos Inquisidores e ser responsáveis pelos livros da Mesa
e do Secreto.

85 Monteiro, Frei Pedro: Catálogo dos Notários da Santa Inquisição. Loc. cit., T III, pp. 466
e segs.
86 ANTT, Santo OÍïcio, maço 9, Proc. n. 89. I
I
87 ANTT, Santo Oficio, maço 1, n. 9.
88 Ibiden.
ì
)
i

534 R IHGB, Rio de Janeiro, I 57(392): 497-57 I , jul./set. I 996.


A disciplina da vida colonial

Deviam escreverperguntas feitas pelos Inquisidorese as respostas que lhes


eram dadas durante as audiências. Integralmente. Por isso, assistiam às sessões
com os réus e com as testemuúas, à ratificação das confissões, aos despachos
da Mesa. Em qualque^r processo. Tomemos um ao acaso. No processo de
Antônio de Gouvei4"' coube ao Nokírio da Inquisição de Lisboa, Manoel
Cordeiro, o registro da relação das culpas, feito em 5 de maio de 1577, as
informações das testemunhas Joana Gonçalves, Dr. Leonardo Nunes, Mateus
Aguiar, Sebastião Luís, Francisco do Rego, Violante de Sá, Lic. Gaspar
Gonçalves, pe. Miguel Torres, Pero Lopes de Souza, Simão Barbosa. Anotou
suas ratificações, bem como as perguntas feitas a Antonio de Gouveia e suas
respostas. O despacho final da Mesa e a sentença foram regisfados por outro
Notário, Antônio Rodrigues. A presença constante do Noüírio fazia dele
depositário de uma série de informações extremamente reservadas, como, por
exemplo, o nome das testemuúas que depunham ou o que elas lá contavam,
inclusive sobre suas famílias. Manoel Cordeiro, presente ao processo dojesuíta
Antônio Gouveia, soube exatamente quem eram as pessoas que sobre o caso
foram ouvidas. Pessoas de certa posição, como Pero Lopes de Souza, fidalgo
da casa del' rei e do seu Conselho. De seu testemuúo, evidenciou-se que o réu
era pessoa que freqüentava a casa da família, principalmente Isabel d'Albu-
querque, tia do fidalgo, onde se entregava a adivinhações do futuro, a recomen-
dações sobre o procedimento dos membros da família, inclusive sobre
casamentos. Isabel d'Albuquerque ficou marcada como pessoa que acreditava
nas artes prodigiosas do jesuíta autuado, uma vez que fizera construir fornalhas
em sua casa para que se fabricasse o ouro. Informações perigosas que podiam
manchar reputações ou provocar reações sociais, caso divulgadas, sobretudo
quando os interessados eram fidalgos, membros da Igreja, elementos de proje-
çáo e ate da confiança do Trono. Pode-se lá imaginar o impacto que teria em
Poúugal o coúecimento dos maus costumes de um governador-geral da fama
de Diãgo Botelho?eo
Os Notrários tiúam coúecimento quase integral da vida do Santo Ofïcio,
por isso tanto se exigia de seus dotes morais. A fidelidade na redação dos
depoimentos era algo de essencial, porque era sobre eles que se baseavam as
sentenças, e uma distorção poderia ser fatal à justiça dos Inquisidores.

89 ANTT, Inquisição de Lisbo4 Proc. n. 12.680 e 5.158.


90 V. <Segunda visitação do Santo Oflcio às partes do Brasil. Confissões da Búio. 1618. In
Ánais do Museu Paulista. S. Paulo, 1963, T XVIL pp. 380-382.

R IHGB, Río de Janeiro, I 5 7 (392) : 497-57 I, jul./set. I 996. 535


Sônia Apareeida de Siqueira

Eram encarregados do termo de recebimento dos presos. Também do


invenüário de seus pertences, com eles entregues aos carcereiros. Depois dos
autos de fr, também aos Notiários competia fazer, com o Alcaide, o rol do que
ficara dos extintos por relaxamento à Justiça civil, inclusive das suas roupas.
Cabia-lhes fazertreslados de autos quando pedidos, porém só os elaborava
com autorização e vista dos Inquisidores.
Porque tinham privilégio real, eram os únicos que podiam escrever as
causas cíveis e judiciais em que estivessem incursos membros do Santo Ofício
e nos quais fossem os Inquisidoresjuízes.
Admitia-se que pudessem fazer algo indevido. Eram homens. Por isso,
previa-se a sanção: seriam considerados perjuros ou falsarios, e perpetuamente
privados de seus oficios, além de outras penas que, no caso, ficariam a arbítrio
dos Inquisidores.

4. Solicitadores

O Solicitador da Justiça também era figura criada na Justiça civil. Hoje,


com aquelas funçõesnão existe mais. Pelas Ordenaçõesel sabemos que erauma
espécie de assistente dos Tribunais Criminais para o bom andamento das
causas. Era a memória dos juízes, promotores, escrivães. Num livro próprio,
repassando os distribuidores e escrivães, registrava os feitos, assentando as
devassas, visitando as cadeias e compulsando os processos para estar a par do
seu andamento. Nas Audiências, informava ao Notiário, ao Promotor, aos Juízes
erequeria as diligências necessiírias para cada feito, e se informava a cada passo
dos registros e do cumprimento dos despachos, inclusive acusando eventuais
negligências dos oficiais perante os Juízes. Devia ainda saber quais as testemu-
nhas citadas e zelat pelo seu comparecimento, bem como das partes, quando
fosse o caso. Devia lembrar aos escrivães a remessa dos processos, ao promotor
as apresentações dos libelos, aos juízes o não-cumprimento de despachos seus.
Exigia a Justiça civil que os Solicitadores que atuavam apenas nos tribunais
superiores, além de saberem ler e escrever, devidamente examinados, fossem
casados e <<bem cosfumados>, além de se lhes exigir juramento aos Santos
Evangelhos. Para solicitar, eram pagos mensalmente pelas próprias partes
interessadas; permitia-se, entretanto, a qualquer um, ou criado seu, solicitar em
causa própria, independentemente daqueles requisitos.e2

9l Ordenações Manuelinas, Liv. I, tít. XXl. Ordenações Filipinas, Liv. I, tít. XXVI.
92 Ordenações Manuelinas, Liv. XXXVI. Ordenações Filipinas,Liv.I, tít. LV.

536 R IHGB, Río de Janeiro, 157(392): 497-571, jul./set. 1996.


A disciplina davida colonial

Em muito era semelhante o Solicitador do Santo Ofício. Tinha por obriga-


ção conhecer as testemunhas da Justiça e das partes. Coúecimento que
implicava em informações sobre residência, oficios, fama e consciência. De-
viam fazer todas as diligências requeridas pelo Promotor ou ordenadas pelos
Inquisidores, a quem deviam informar quaisquer cousas que lhes parecesse útil
para o Santo Ofïcio. Era imprescindível que soubessem ler e escrever parafazer
citações quando lhes fosse ordenado, e comparecer quotidianamente ao Tribu-
nal, a fim de requerer ao Promotor qualquer diligência que se julgasse útil à
Inquisição e ao serviço de Nosso Seúor. Requeria também a execução de penas
e penitências que eram impostas a certas pessoas. Entre suas obrigações dirárias,
estava a de acompaúar os Inquisidores até a casa do despacho.
Suas ações eram também controladas pela lei regimental: proibiaJhes,
expressamente, o Regimento, receber alguma cousa das partes ou de seus
parentes, ou mesmo manter com elas conversa ou familiaridade.

5. Meirinho

Era o Meirinho uma figura da administraçáo régia nos tempos coloniais,


osmaiorinioumaiorinos,meirinos,de amplas e mal definidas atribuições, entre
as quais judiciais e executivas, provavelmente de contencioso administrativo,
magistrados de caráter permanente, aos quais se referiam os foraes, depois
instituídos nos distritos. Posteriormente, acentuaram-se as funções de caráter
policial de manutenção da ordem no Reino com o meiriúo-mor da Corte ou
outro.e3
Os meirinhos maiores precederam aos corregidores, mas paÍece que po-
diam criar os meirinhos menores ou régios que também tiveram funções
! judiciais nas comarcas, de caráter executivo, como fazer cumprir penas' prote-
,q
jt ger camiúos, executar ordens, prender certos criminososo perseguir ladrões,
evitar vinditas, dar proteção aos mosteiros. Contra os meiriúos itinerantes,
queixavam-se os povos em cortes. E depois contra os meiriúos dos corregido-
É
res.
fÈ Afinal, os meiriúos menores não tiúam jurisdição, eram apenas execu-
tores na práúicae procediam como lhes era mandado.ea Este meirinho cores-
ponde ao oficial de justiça, ao meirinho dàs cadeias a que se referem as

93 Ordenações Afonsinas, I,ll; Manuelinas, Liv. l, tit. 14, e seu regimento, Liv.l, tit. 16;
Ordenações Filipinas, Liv . l, tit. 21.
94 Gama Barros, H: op. cit., T IX, cap. III, pp. 92 e segs.

R IHGB, Rio de Janeiro, I 57(392): 497-57 I, jul./set. 1996. 537


Sônia Aparecida de Siqueira

Ordenações Filipinases, que devia estar diariamente na Relação, pronto paÍa


cumprir o seu oficio e fazet o que lhe mandassem, de prender e traz.er presos,
e fazer outra coisa, que a bem da Justiça cumprir.
Encarregado das prisões dos que seriam processados pelo Santo Oficiq o
Meirinho era também encarregado da vigilância pessoal dos Inquisidores.
Acompanhava-os da suaresidência até acasado despacho e os traziam devolta.
S_ogbra imprescindível cada vez que os Inquisidores freqüentavam lugares
públicos, inclusive quando assistiam à missa. Segurança para homens desama-
dos por muitos? Vaidade de ter uma escolta a rodeá-los sempre? Isso respon-
deria a uma constante do tempo: quando a vaidade pessoal ou derivaóa da
função que se exercia obrigavaaarrastar longas fileiras de dependentes em toda
deslocação por lugares que estivessem sob as vistas da coletividade. Essa
guarda constante pode indicar precaução. Preveniam-se atentados pessoais.
Isso seria então indício da impopularidade das firnções inquisitoriais ou por não
estarem cumprindo exatamente o que se tinha proposto em matéria de justiga
e caridade, ou porque o número de crisüíos-novos era demasiado grande para
que se respirasse sempre uma afnosfera de desconfiança em relação às suas
possíveis reações. Qualquer das hipóteses se reveste de toda a verossimilhanga.
Verdade é que há casos de atentados, como o que sucedeu na Búi4 quando se
dispararam espingardas sobre ajanela do visitador Heitor Furtado de Mendon-
ç4.
Obedecia o Meiriúo aos Inquisidores nas prisões que efetuava, com
fidelidade e segredo. Para bem cumprir seus deveres, estava proibido de manter
familiaridade com quaisquer pessoas, quer fossem suspeitas, quer tivessem
negócios com o Santo OÍïcio. Traria consigo os homens que lhe eram destina-
dos, admitidos com ordem expressa dos Inquisidores. Podia ser encarregado de
diligências em outras comarcas ou cidades diversas da sede do Tribunal. Neste
caso, cabia-lhe especial vigilância no tansporte dos presos que deviam vir
apartados e incomunicáveis. Por ordem dos lnquisidores, deviam acompanhar
os Procuradores dos réus no seu contato com eles e, nos autos de Ë, assistir às
abjuraçõesjunto ao altar, bem como entegaÍ os presos que seriam rela:rados à
Justiça secular.
Dos homens que o Meirinho tiúa sob a sua guarda, exigia-se, preliminar-
mente, que não tivessem raça de judeu ou mouro. Depois, que gozassem de boa
fama, o que se procurava saber ouvindo os Inquisidores e algumas testemuúas
que os coúecessem, bem como as suÍrs mulheres. Suas funções consistiam em
perÍnanecer à porta da Inquisição para ver quem entrava, impedindo os embu-
çados, os doidos, os ruidosos, bem como pessoas estranhas que não tivessem

95 Liv. I, tít. 12.

538 R IHGB, Rio de Janeíro, 157(392): 497-57l, jul./set. 1996. í


\
(
i
A dísciplina davida colonial

negócio com os oficiais da Inquisição. Cabia-lhes, também, impedir a entrada


de armas nos recintos do Tribunal.
Na Inquisição de Lisboa, determinava-se que um dos homens ficasse à
porta do pátio, impedindo a passagem de pessoas suspeitas ou desconhecidas
até a hora em que o Alcaide mandasse fechar a dita porta por um guarda.

6. Promotor

A figura do promotor de justiça procurador fiscal aparece no


- antes
Direito Canônico já no Século XVI, como - pela
o sacerdote constituído autori-
dade competente a fim de, ex-fficio, defender os direitos da Igreja e da lei e
ser o acusador público nas causas criminais.
Conforme a opinião dos canonistase6, sua origem histórica reside no
processo inquisitorial eclesiástico, criado por Inocêncio III no IV Concílio
Lateranense, que instituiu o dito processo.
O promotor de justiça no Santo Oficio era uma figura de certa forma
excepcional, porquanto pelas Ordenaçõese7 apenas a Casa da Suplicação e do
Porto e as Correições teriam promotor de justiça para formar libelo contra
seguros ou presos que foram acusados no Tribunal de promover diligências
necessiârias à Justiga, assistindo às inquirições e requerendo prisões e processos.
Nas cidades e vilas, suas funções eram exercidas pelo tabelião ou escrivão, que
atuava como Promotor.
A existência de promotor situava, pois, o Santo OÍïcio entre os tribunais
superiores.
Aliás, contra os Promotores havia prevenção dos povos, pois encareciam
e alongavam os processoses, o que de certo terá contribuído para que o
Ministério Público não se desenvolvesse ainda no Século XVI.
Entre os deveres do Promotor, estava o de cuidar dos papéis e livros
existentes no Santo Oficio, mantendo-os em dia, inclusive os da Câmara do
Secreto, com índices, repertórios, para facilmente poder proceder contra os
acusados nos momentos devidos. Cabia-lhe a acusação judicial dos culpados
até a conclusão dos processos. Para realizar seus deveres, tiúa entrada no

96 Cfr. Regatillo: Institutiones Iuris Canonici. Santander. 1942,vol.II, p. l7l, apudGigante,


José Antonio Martins: Instituições do Direito Canôniço. Braga.1955, vol. III, p. 25, e nt.
4.
97 Ordenações Manuelínas, Liv. I, tít. XII, $ 7", e Ordenações Filipinas, Liv. I, tít. 15, $ 8'.
98 Gama Barros, H.: op. cit., T VIII, cap. VIII, pp. 447 e segs.

R IHGB, Rio de Janeiro, I 57 (392) : 497-57 I, jul./set. I 996. 539


Sônia Aparecida de Siqueira

Secreto. Cumpria-lhe acusar os que negassem atenção das culpas confessadas,


os casados duas vezes, os que confessassem heresias materiais negando aten-
ção, os confitentes diminutos, os que agravassem suas culpas durante o tempo
da prisão no Santo Ofício, com cerimônias ou jejuns próprios de outro credo.
No libelo que apresentava à Mesa, eram incluídos todos os delitos que se
atribuíaao réu, pedida suaprisão ou sem confisco debens solicitada
-com
a ampliação das penas que o direito previa nos respectivos casos. -e
Conservava o Promotor o rol de todos os presos e permutava-o com o de
oufras Inquisições, bem como procurava andar informado sobre os ausentes e
suas possíveis voltas às terras de suajurisdição. Tinha prazo de 8 dias para
trasladar culpas de pessoas processadas em ouhos Tribunais e obrigação de lhes
mandar também o rol das pessoas que saíssem nos autos de ft, no prazo de 15
dias, acrescido do nome das terras de que eram naturais, culpas que tinham
cometido e penitência que tiúam recebido. Respondia, pois, pela unidade da
ação dos Tribunais.
Também era dever seu mandar recolher os mandados de prisão não
cumpridos, expedidos pelos Comissiírios e familiares, para que coisas de tal
segredo não ficassem fora do controle do Santo Oficio.
Assinava certidões, lavradas por Notrários, da inexistência de culpas no
Tribunal, em favor de pessoas que as requeriam. Guardava uma das três chaves
do Secreto, onde, em ordem, devia manter papéis, livros e processos.
Em síntese, o Promotor do Santo Oficio desempeúava as funções ineren-
tes ao cargo em qualquertribunal dejustiça. Acrescido apenas do conhecimento
de todos os processos da Inquisição, mesmo os que estavam sob a alçada de
outro distrito. A posse dos róis dos que passaÍam pelos Tribunais da Fé tornava
o Promotor figura-chave de grande setor da vida do tempo. De suas informa-
ções, dependiam as patentes de pureza de sangue. A ele cabia provar que certas
pessoas estavam isentas da contaminação judaica, maometana ou herética. Dele
dependiam, muitas vezes, a posse de cargos, o desempenho de oficios e
profissões, o direito a títulos e honrarias, como hábitos de ordens, por exemplo.
A demora de uma informação podia signifrcar suspeição sobre uma genealogia
e causar sérios embaraços. No mínimo, causar arranhões sobre famílias.

7. Procuradores das partes

Procurador, em geral, é a pessoa encarregada de administrar negócios


alheios por mandado dos respectivos constituintes.
Da Justiça comum, viúa a figura do Procurador, segundo as Ordenações.e
Como os advogados, podiam ser letrados com oito anos de curso em Coimbr4
de Direito Canônico ou Civil, aos quais se reclamava além de exame para provar

R IHGB, Rio de Janeiro, 157(392): 497-571, iul./set. 1996.


A disciplina da vida colonial

letras e suficiência fossem <<homens de boa fama e consciência>. Podiam não


ter graduação paÍa procÌrar na Corte ou fora da Corte, desde que examinados
no Desembargo do Paço, salvo nos lugares do Reino que tivessem privilégio
de procurar quem quisesse. Todo homem podia ser Procurador, salvo algumas
restrições que a lei impunha, excluídos em princípio os fidalgos, cavaleiros,
clérigos e religiosos, exceto se em causa própria ou em favor de seus depen-
dentes ou Íìmos. Muito expressamente a lei vedava a presença, por outrem, de
clérigos e religiosos nas audiências, impondo-lhes discrições de comportamen-
to se procuravÍÌm em causa própria. Ou por parentes e pobres ou por suas
igrejas.roo
No Direito Canônico, apaÍecem os Procuradores judiciais: o cânon 1655,
$ lo, estabelece que, no juízo criminal, o réu devia ter sempre um advogado
escolhido por ele ou dado pelo juiz.lol Um único Procurador que não se podia
fazer substituir por outro (cânon 1656). Dele exigia-se que fosse católico, de
boa fama, doutor ou verdadeiramente perito ao menos no Direito Canônico.
No Santo Oficio, o requisito primeiro para ser Procurador era o sangue
limpo de manchas mouras, judaicas ou heréticas. Além disso, era de mister que
fossem pessoas de confiança, letras e consciência. Deviam obter primeiro
aprovação do Inquisidor-Geral para serem posteriormente admitidos pelos
Inquisidores em seus auditórios. Mesmo depois de estar em exercício de seu
trabalho, podiam ser suspensos de seus procuratórios se os Inquisidores tives-
sem pâra tal razões sérias.
Sua missão era defender os acusados, enquanto estivessem convencidos
de que merecessem a defesa pela Justiça de sua causa, abandonando-a quando
cessasse tal convicção:

'...receberãojuraÍnento presente o réu que bem e fielmente ajuda-


rão seu cliente na sua causq requerendo e alegando tudo o que virem e
sentirem que cumpre a suajustiç4 e que o não deixará indefeso e que no
progresso da dita causa quando vir a conhecer que não tem justiça o
manifestará à parte e dirá aos Inquisidores na Mesa do Santo Ofïcio e
desistirá da causa...'

Procedimento antijurídico, que transforÍnava a defesa em promotoria"


equivalia a um pré-julgamento e influenciava os juízes. Lembrando que o Santo

99 Ordenações Manuelinas, Liv. I, tít. XXXVIII. Ordenações Filipinas, Liv. I, tít. XLVil.
100 Ordenações Manuelinas.loc. cit. Ordenações Filipinas,Liv.Ill, tít. XXVII, $ lo.
l0l Cí Gigante, J.A. Martins: op. cit, vol. III, p.67.

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Sônia Aparecida de Siqueira

Ofício só procedia contra alguém após opinião convicta da existência da


heresia, compreende-se facilmente que a ação efetiva dos Procuradores parece
ter-se limitado à elaboragão, dentro de õrmulas jurídicas do tempo, das
contraditas possíveis, aos libelos dos promotores. Organização formal apenas,
não arrazoados ou defesa no sentido autêntico dos procedimentos judiciais
comuns. Cumprida essa parte, desligavam-se dos processos e dos destinos dos
réus. MuiAs vezes, desligavam-se antes, para não arriscarem tomarem-se, por
sua vez, suspeitos de heterodoxia ou de fautores de hereges.
Teoricamente, eram defensores dos processados, pertenciam ao Tribunal,
mas eram escolhidos pelos interessados diretamente, ou com a responsabilidade
dos curadores nos casos dos réus serem menores de 25 anos. Só se comunica-
vam com os pÍesos na frente dos Notrários, nunca a sós. Precauções do Santo
Oflcio para garantirsuafidelidade ao Tribunal, evitando que interesses pessoais
ou tentações monetárias pudessem abalar arigidez da conduta desses oficiais,
ou que eles se dispusessem a servir de intermediarios entre os presos e o mundo
externo. Precauções dos próprios oficiais, muito pouco dispostos a üocar seus
cargos pelas celas inquisitoriais. Essa sifuação se manteve até a promulgação
do Regimento de 1774, quando, em nome dos princípios de humanidade, foi
introduzida nova ordem nos processos, ampliando-se a defesa de todos os réus
que passaram ater liberdade de escolher seus advogados mesmo fora do Santo
OÍïcio, e de com eles fatar em particular. A nova ordem de proceder caracte-
rizava os Procuradores dos réus como advogados de defesa, realmente.
Os Procuradores não podiam levar para fora do Santo Oficio quaisquer
papéis atinentes aos casos que tratavam, ou sequer seus treslados, ou mesmo
elaborar rol de testemuúas apontadas por seus clientes. Tal situação também
foi alterada pelo Regimento pombalino.

8. Alcaide dos cá,rceres

Provinham os alcaides de antigas e poderosas figuras medievais responsá-


veis pela defesa dos castelos e burgos circunvizinhos nos tempos da Recon-
quista, com funções bem diversas das atuais.
Na sua mais antiga acepção al-Kaid alcaide era o chefe de qualquer
- -
corpo de trop4 e na Península designou o comandante de um castelo ou
fortaleza,t0T e, como muita vez o castelo, a alcáryova, protegia uma vila ou
cidade, era também o chefe militar do lugar, desdobrando, com o tempo, suas
funções com atribuições de Justiça, de administração e de polícia, tornando-se,

102 Herculano, Alexandre: História de Portugal. Lisboa. s/d, 3a. ed., T VII, pp. 189 e segs.

s42 R IHGB, Rio de Janeiro, I 57 (392) : 497-57 I, jul./set. I 996.


A disciplina davida colonial

também, um magistrado municipal, ora posto pelo rei, ora eleito pelos conse-
lhos. Fidalgo sempre, o alcaide-mor, não residindo no lugar, podia ter um
delegado seu o alcaide menor.
-
Cadavez mais ele foi se tornando um magistrado municipal, na medida
em que a vida se desmilitizav4 perdendo seu prestígio político e social, outrora
fundado na força e na proteção das populações, das quais não raro abusava.
Por muito tempo, conservou, entretanto, suas atribuições históricas, e as
ordenações vieram a regular sua ação como entidade de direito desde que às
funções militares associavam outras de caráter civil.103 Acentuavam-se jáèntão
suas atribuições civis, sobretudo paÍa o alcaide menor, prenunciando-se o que
chamamos o delegado de polícia, responsável pela ordem e pela segurança dos
indivíduos.
O alcaide-mor ainda era então um governador de castelo peto qual dava
homenagem, devendo prover sua conservação, fiscalizadoo contudo, porjuízes
em correição. Prisões nos castelos: respondia pela detenção de malfeitores,
razão para que designasse os caÍcereiros e houvesse as carceragens e as aÍmas
que apreendia. Alongavam-se os encargos decorrentes dessa função: respon-
diam também pelos costumes; tiúa parte nas penas pecuniárias impostàs às
barregãs e aos barregueiros, aosjogadores, aos taverneiros, noturnos, as mu-
lheres que faziam arroidos e, também, aos excomungados. A alcaidaria dava-
lhe, em conseqüência, funções judiciais também.
O Alcaide do Santo Ofïcio parece, todavi4 ser uma versão do alcaide
pequeno, ou simplesmente alcaide. Posto pelo rei, ou apontado pelos Conselhos
para fazer as vezes de alcaide-mor, devia com seus homens jurados <<de dia e
de noite guardar bem as cidades e vilas>> prevenindo <mal, furto ou roubo
algum>>, prendendo infratores, por ordem judicial ou em flagrante, entregando-
os aos carcereiros, e, ao depois, encamiúando-os aos juízes.
Uma de suas atribuições, estatuída nas Ordenações,l0a parece justificar a
pÍesença de alcaide entre os servidores do Tribunal do Santo Oficio. Devia
guardar as audiências e levar os presos aos juízes, sendo-lhe vedado haver
qualquer paga dos ditos que assim levasse. Daí sua autoridade sobre os cárceres
da Inquisição onde estavam os prisioneiros. Apenas, em lugar daqueles homens
jurados que, aos outros alcaides, davam os oficiais da Câmar4 dispunha de
guardas que, sob sua responsabilidade, cuidavam da segurança do Tribunal e

103 Ordenações Manuelinas, Liv. I, tít. LV e LVI. Ordenações Filipinas, Liv. I, tít. LXXIV e
LXXV.
104 Ordenações Manuelinas, Liv. I, tít. LY. Ordenações Filipinas, Liv. I, tít. LXXV, $ 19.

R IHGB, Rio de Janeiro, I 57(j92): 497-57 I , jul./set. I 996. 543


Sônia Aparecida de Siqueira

dos presos que estavam em seus cárceres, outrora funções militares de fidalgos,
agora fi.rnções policiais de oficiais da justiça.
Na Inquisição, a atribuição dos Alcaides era guardar os culpados, que
recebia das mãos do Meiriúo, na presença de um dos Notários. Competia-lhe
evitar toda e qualquer comunicação dos presos com o mundo exterior. Obstar,
por exemplo, que recebessem cartas secretas ou que as escrevessem. Impedir
que tivessem avisos vindos de fora. Para isso, deviam vigiar qualquer cousa
que fosse destinada aos presos, quer viesse de fora do cárcere, quer de dentro
dele, com a própria comida. Impressiona essa preocupação de segregação total:
temia-se de fato pudessem os presos obstar a ação da Justiça ou visava-se uma
afirosfera de isolamento que levasse às confissões e denúncias?
A incomunicabilidade dos presos exigia que o Alcaide se furtasse a
qualquer intimidade com os detidos ou com seus parentes. Com o passar dos
anos, a experiência ditou medidas mais rigorosas ainda nesse sentido. O
Regimento de 1613 determinava que neúuma pessoa, de qualquer qualidade,
mesmo sendo Inquisidor, pudesse falar com os presos nos cárceres. Abria-se
exceção apenas para os Inquisidores, em caso de extrema necessidade, mas
sempre com a presença dos Notários. Toda uma série de precauções rodeava
aqueles que tinham necessidade de entrar nas prisões paÍatratar da saúde dos
que nelas estavam retidos: médicos, cirurgiões, ou, evenfualmente, quem viesse
aplicar meziúas. Deviam antes passar pela Mesa do Santo Ofício; ali, jurando
segredo e prometendo não levar ou trazer avisos para os presos. Assim mesmo,
só entravam pessoas que erÍìm recoúecidamente cristãs-velhas e não tinham
sobre si a mais leve sombra de suspeita de sangue impuro. Em geral, em caso
de doença, a Mesa devia ser notificada paÍa que ela mandasse o médico do
Santo Oficio. Este devia dar contentemente informações sobre o curso da
enfermidade para que, eventualmente, no momento oportuno, fosse enviado o
confessor. Mesmo nas visitas do fïsico ou do cirurgião, o Alcaide devia estar
presente.

O Alcaide não podia receber maior carceragem do que a instituída, e, muito


menos, receber peitas ou dádivas que lhe fossem dadas direta ou indiretamente.
O Santo Oficio vigiava para que o Alcaide não se comprometesse e ocasionasse
entraves à sua liberdade de ação.
Exigia-se, implicitamente, que fosse o Alcaide homem de bons sentimen-
tos, uma vez que dele se esperava benigno tratamento dos presos. Esperava-se
que os consolasse, aconselhasse a dizerem a verdade e pedir misericórdia, não
podendo pôr-lhes ferros sem ordem dos Inquisidores, nem dar-lhes prisões mais
ásperas. Sua vida devia processar-se absolutamente à parte da dos presos. Não
podiajogar ou beber com eles, ou com seus parentes ou procuradores. Temiam-
se peitas e fugas, pois a Inquisição prendia também ricos e poderosos.

R IHGB, Rio de Janeiro, I 57(j92): 497-57 I , jul./set. I 996.


A disciplina davida coloníal

Era-lhe confiada a guarda dos objetos e bens que os detidos traziam


consigo, após relação feita pelo Notário. Devia notificar os Inquisidores das
coisas esquecidas nos cárceres pelos réus e dafazenda e dos objetos de uso
pessoal dos relaxados.
Ao Alcaide cabia a separação dos presos pelo sexo, e de forma que não
pudessem se comunicar entre si ou tampouco verem-se uns aos outros. Cabia"
também, comunicação aos Inquisidores quando algum detido merecesse ser
castigado, quando jogassem ou blasfemassem. Não lhe estava autorizado
mandar os detidos fazerem qualquer obr4 mesmo que fosse para lhes pagar,
nem realizar com eles compras ou vendas.
Na Quaresma, elaborava relação de todos os presos para que se confessas-
sem, submetendo-a aos Inquisidores para q'Je sobre o assunto determinassem.
Aliás, dispunha de uma lista de todos os presos para poder atender quando lhe
fizessem indagações.
O Alcaide devia ser casado e de muita confianç4 pessoa a quem se pudesse
entregar os presos em desoras. Razão paÍa que lhe fosse proibido abrigar
qualquer pessoa em sua casa. Parentes inclusive. Sua esposa também tiúa
encargos: zelar pelas mulheres presas. Para isto, prestava juramento diante de
um Notário. Como seu marido, era proibida de se comunicar com as detidas,
salvo em caso de extrema necessidade, procurando sempre obter primeiro a
licença dos Inquisidores.
A serviço do Alcaide estavam os guardas, em número necessário ao bom
desempenho de suas funções. Não podiam ser parentes ou criados seus. Apenas
pessoas conhecidas, sem raça de judeu ou mouro, podendo ser substifuídos em
caso de não serem satisfatórios.

9. Visitadores das naus

Com o desenvolvimento da navegação e do comércio externo durante o


Século XVI, multiplicavam-se os contatos com outros povos que teriam outras
crenças e que, por certo, poderiam contrabandear, afiavés de livros ou gravurÍrs
ou agentes, doutrinas contriárias ao Catolicismo, em época de intensa fermen-
tagão religiosa. O mal podia entrar pelos portos, üazido pelos navios que, de
contínuo, chegavam pelo Atlântico.
Fez-se necessári4 ante o problema novo, a criação de um novo sistema de
vigilância: foram os Visitadores das Naus, obviamente inexistentes em legis-
lação anterior.
O Regimento de 1613 fala explicitamente no cargo que já fora anterior-
mente regulado pelo Regimento dos Visitadores das Naus, de27 de setembro
de 1606.

R IHGB, Río de Janeiro, I 57 (392) : 497-5 7 l, jul./set. I 996.


Sônia Apuecida de Siqueira

A existência desses oficiais prendeu-se, pois, à consciência do perigo que


o contato com os estrangeiros podia significar para a integridade da fé católiôa.
Prevenia-se a infiltração dos erros.
A serviço do Visitador
das Naus estavam um Escrivão e um Familiar.
Aportados os navios, cabia ao Visitador apresentar-se ao seu capitão, a
quem solicitava a entrega dos livros considerados defesos, que, porventur4
existissem na embarcação, para a censura do revedor, pedindo que antes disso
se cumprir, não os vendesse, desse ou entregasse a outros, ou sequer os tirasse
do navio. Advertência preliminar, acompaúada de sanção, na medida em que
a Justiça procederia rigorosamente com os culpados.
Indagava ainda sobre a presença de estrangeiros não-católicos, mormente
mestres e ministros que, com (a cor e capa de comércio>>, pudessem semear
heterodoxias e difundir livros hereticos. Indagaria da presença de clérigos ou
frades descoúecidos que viessem residir na terra. Estes deviam logo se
apresentar à Mesa do Santo Ofïcio, se a cidade fosse sede de Tribunal, ou ao
Ordiniário, caso não. Do mesmo modo, informava-se das pessoas que no Reino
viessem residir, anotando seus nomes, motivos e residências futuras. De todas
essas perguntas e das respostas recebidas, ficava lavrado pelo Escrivão auto,
que era remetido aos Inquisidores. Os procedimentos seguintes eram de sua
alçada. Visariam evitar a propagação da heresia.
Dessas visitas e dos perigos que podiam acanetar para ingleses, holande-
ses, alemães, huguenotes ou mercadores judeus, resultava um temor, ou pelos
menos uma reserva, desses estrangeiros em relação aos portos portugueses. Não
é improvável que esses agentes do Santo Oficio teúam, afinal, contribuído
para a intensificação do comércio ilegal nas colônias e da pressão no sentido
de um triâÍico direto, eliminando-se a mediação metropolitana.

10. QualiJìcadores

Com o encargo especial da revisão de livros e censura de proposições,


estavam os Qualificadores diretamente ligados à Mesa do Conselho Geral,
conforme o determinava o Regimento. A origem dos Qualificadores é o
Concílio Romano, celebrado no tempo do papa Gekâsio I, em 494, quando um
decreto declarou que havia livros que seriam recebidos pela Igreja e livros que
seriam recusados.los Qualificá-los passou a ser tarefa de teólogos, recrutados
entre os mais sábios e esclarecidos guardiães da ortodoxia. Para evidenciar a
heresia contida nas proposições que chegavam à ciência do Santo Ofício,

105 Monteiro, Frei Pedro: Origens dos revedores de livros e qualifìcadores do Santo Ofcio in
loc. cit. T IV, p. l.

546 R IHGB, Rio de Janeiro, I 57(392): 497-57 I , jul./set. I 996.


A disciplina davida colonial

recoÍïeu o Tribunal a homens solidamente dotados dos princípios douhinais,


que qualificavam pensamentos, fatos e escritos.
Condições essenciais para desempeúo de tais atibuições, além das co-
mumente pedidas a todos os oficiais da Inquisição, que fossem pessoas ecle-
siásticas, de letras e virtudes coúecidas. Membros, portanto, de determinado
grupo da sociedade, egressos daUniversidade, cheios de qualidades intelectuais
e morais. Tudo para abonar o segredo que deviam guardar sobre as coisas que
lhes fossem cometidas e para garantir que fariam de suas pessoÍrs exemplos
vivos a serem seguidos e imitados. O primeiro a ocupar tal posto em Portugal
foi o pe. Frei Gaspar dos Reis, frade dominicano, licenciado em Artes e
Teologia, e doutor nesta matéria pela Universidade de Paris; mestre da Provín-
cia deìua Ordem em Portugal, teólogo de D. João III em Trentol06, Inquisidor
em Évora, Deputado do Conselho em Lisboa" Bispotitularde Trípoli, coadjutor
e sufragâneo do Cardeal Infante D. Henrique. Paulo IV Ë-lo Revedor em
t7-1 l-1555.107
Buscavam os Qualificadores policiar a integridade da ortodoxia em todas
as exteriorizações do pensamento na literatura e na arte, deviam além de
censurar e qualificar as proposições, rever livros, fratados e papéis que se
houvesse de imprimir ou viessem de fora impressos. Rever, outrossim, as
imagens e pinturas de Cristo, de Nossa Seúora e dos santos. Só agiam, no
entanto, com ordem expressa do Conselho ou da Mesa. Seus pareceres deviam
se ater ao examinado, sem conterem opiniões pessoais sobre as obras e seus
autores.

Os Qualificadores, muitas vezes, devem ter falhado nos seus julgamentos.


Eram homens susceptíveis de fraquezas. Tinham limitações no seu entendimen-
to, irremovidas pela ciência acumulada. Situações houve em que os conheci-
mentos próprios do tempo foram insuficientes paÍa romper.as trevas do
fanüásticò, d-o extranatural. O caso do padre Antôniõ da Fonsõcarot ftcou como
exemplo bem característico. Em 14 de fevereiro de 1699 foi lido na Mesa da
Inquisição de Coimbra libelo de culpas do réu que há cinco anos preocupava o
Tribunal, levando-o à consulta dos melhores e mais reputados teólogos e

106 Casfo, pe. José de: Portugal no Concílio de Trento. Lisboa, 1944, vol. ll passím.
107 Monteiro, frei Pedro: Católogo dos revedores de livros.loc. cit., p. 7. Sobre a importáìncia
da colaboração prestada por frei Gaspar dos Reis, V. <Carta do Cardeal D. Henrique>,
publicadapor Antonio Baião inArquivo Histórico Portuguás, T IV, p. 236.
108 Natural de AmaÍante, morador na vila de Micões, bispado de Coimbra. Teólogo confessor
e pregador, de 40 anos mais ou menos. Remedios, Mendes dos:. Um processo sensacional
da Inquisiçao de Coimbra.lz Biblos. Coimbra" 1925. vol. I, fasc. II.

R IHGB, Rìo de Janeiro, I 5 7 (j92) : 497-57 I, jul./set. I 996. 547


Sônia Áparecida de Siqueira

doutores da nação. Denunciado ao Juízo Eclesiástico, mandado para o cárcere


da custódia de Santa Cruz, em maio de 1695, espontaneamente comparecera
ao Santo Ofïcio. Seu caso: possuía força superior, oculta. Praticava atos de
taumaturgo, de feiticeiro, servindo-se de Arcangela do Sacramento como seu
instrumento. Fortalecia suas próprias forças, beijando a moça quando soavÍìm
as Ave-Marias, três vezes em honra da SS. Trindade e sete em honra dos dons
do Espírito Santo. Sem malícia neúuma, declarava, pois beijá-la ou beijar a
terra era a mesma coisa. Conveúamos que diante da alternativa escolhera
judiciosamente. Recolhendo flores do altar em que se celebrava miss4 reduzi-
ra-as a pó pó de Nossa Seúora com que curava aflitos e amargurados.
-
Apresentara-se aos Inquisidores -
sereno, como que convicto de sua justiça e
razlo. Modestamente, comparava-se a S. Felipe de Néri e escudava-se em
passagens das Sagradas Escrituras e de Santo Tomás. Cinco anos levou o Santo
Ofïcio em dúvidas e consultas. Finalmente, manifestaram-se os Qualificadores,
padres mestres Domingos Leitão, prepósito da Casa Professa de S. Roque,
padre mestre Sebastião de Magalhães, confessor de Sua Majestade, ambos
lentes de Prima de Teologia ejesuítas. Subscreveram seu parecer o padre mestre
Ayres de Almeida, também jesuíta, padre mestre Francisco de Santa Mariq
reitor do mosteiro de Santo Eloy, de Lisboa" padre mestre frei Julião de
Ascensão, lente de Prima e Teologia do Colégio dos Marianos de Coimbr4
padre mestre frei Manoel Leit2Ío, provincial da Ordem dos Pregadores, padre
mestre Joseph de Murcia" lente de Prima e Teologia do Colégio da Compaúia
de Jesus, padre mestre Domingos Nunes, do Colégio de Santo Antão, frei
Domingos Barata, do Colégio da SS. Trindade de Coimbra e o dr. João Duarte
Ribeiro, da Universidade de Coimbra e Inquisidor da mesma cidade. Rigoro-
samente escolhidos os Qualificadores enfre os homens de mais sólida posição
no campo da inteligência e do espírito. Trabalharam arduamente, examinando
mais de cem proposigões. Desnorteava-os as afirmações do réu de que tudo
fazia obedecendo a uma vontade superior, divina, manifestada nas revelações,
nos êxtases, nos <<raptos>> de Arcangela pelos anjos. Dividiram-se os Qualifi-
cadores: uns entenderam que se devia distinguir entre a multidão das culpas as
que pertenciam as ações exfraordiniárias, à ordem comum danaínezae que se
não podiam fazer sem o poder divino ou com cooperação diabólica. Neste caso,
teria havido o pacto çom o diabo, expresso ou tácito. Como teria sido o pacto
feito pelo padre Fonseca? Pergunta a que não encontravam solução. Declara-
ram: <<não se poude averiguar por meio de exames, que ao réu foram feitos, o
modo com que ele obrou as ditas ações diabólicas>. E sugeriram aos Inquisi-
dores que se lhe aplicasse o tormento. Outros Qualificadores foram mais
evasivos, classificando o réu e seu caso como <<pandemônio>>, <diabólica
novelar>, <labirinto>. Confessavam suaimpotência. Decompreender. Dejulgar.
Por não se terem afirmado os Qualificadores categoricamente sobre o réu,

R IHGB, Rio de Janeiro, 157(392): 497-571, jul./set. 1996.


Sônia Aparecida de Siqueira

fatos da alçada inquisitorial, mandando, em casos de urgência ou gravidade,


pessoa especialmente encarregada de transmitir os informes. Dessa obrigato-
riedade de exarar suas opiniões pessoais, destaca-se a importância dos juízos
dos Comissrários paraa configuração das heresias e dos hereges, principalmente
dos que viviam em terras mais longínquas do Reino. Importância que aumen-
tava em razio diretada distância da Mesa do Tribunal. Não agiam, no entanto,
sem receber ordens: dependiam delas para procurÍr, arregimentar e ouvir
testemunhas, dar-lhes fé e crédito, mandar efetuar prisões. Postos avançados
da guarda da ortodoxia, cabia aos Comissários receber os penitentes que, em
suas províncias, tivessem de cumprir obrigações determinadas pela Inquisição,
bem como velar pela execução delas, avisando à Mesa quando os penitentes
fossem negligentes.
Porque deviam ser homens em quem o Tribunal pudesse confiar totalmen-
te, mais rigorosas eram as exigências com que se procediam às investigações
de vida, costumes e geração,necessárias à concessão da patente de Comissrârio.
Dúvidas sobre a limpezade sangue implicavam em rejeição. Foi o que aconte-
ceu com o pe. Miguel de Andrade, sacerdote e confessoE mestre em artes e
protonotário apostólico da Cidade de S. Sebastião do Rio de Janeiro, reprovado
porque sua avó materna era <<da casta de Índias do Brasil>ll0. Em nada
impressionou à Mesa a necessidade de pessoa que preenchesse o lugar apesar
do que alegava o requerente, 1.e.,

'que na dita cidade e seu dilatado disfito ha muita gente hebrea de


quem se pratica com algum pejo nas materias da crença de nossa santa
fé católic4 do que ha muitos anos se não inquire nem visit4 sendo muito
necessário e outrossi vem ao dito porto muitas naus esfrangeiras que
também se não visitam como devi4 trazendo algumas cousas que pedem
revist4 e aprenação de Ministro. E porque nas ditas partes não ha
Comissário do Santo Oficio nem oficial algum que deva zelar o sobredito
e ele suplicante tem as partes necessárias...'

A necessidade não era argumento para o Tribunal. O Santo Oficio só podia


ter homens insuspeitos, cuja integridade doutrinária viesse abonada por <todas>r
as gerações precedentes.

A suspeição apenas, mesmo que os Inquisidores não tivessem provas


concludentes, impedia fosse o habilitando aceito para tal cargo, embora pudesse
sê-lo para outra função dentro do Tribunal. Foi o caso do padre Maurício de
Oliveira Miranda, que, apesaÍ de ter sido julgado <legítimo e inteiro cristão-

I l0 ANTT, Santo Oficio, maço 2, Proc. n. 36,

550 R IHGB, Rio de Janeiro, I 57(j92): 497-57 I , jul./set. I996. \


Á disciplina davida colonial

velho assim por parte patern4 como pela materna e porquanto se mostra que
tem os mais requisitos necessiírios...)), foi feito Notário, mas não Comissário
como desejava.lll
A conduta moral era também vigiada. O padre frei José de Santana, por
exemplo, religioso da Reforma Turonense, natural e morador do Recife, no
convento de Nossa Seúora do Carmo, embora tivesse assegurada sua condigão
de cristão-velho, foi reprovado nas diligências de habilitação ao cargo de
Comissário, pelo seu mau proceder. Dele, falaram testemuúas, como fez o
padre Antônio Branco Feneira, dizendo saber, por ouvir, que era menos
exemplar e com notas na vida e procedimento. Ou como o capitiio Manoel
Lopes de Santiago Corrêa, que o achava <<incapaz e insuficiente de ser encar-
regado de negócios de impoúância como são os do Santo OÍicio, por ser
orgulhoso, intencionado e odioso>>. Ou, ainda" como o capiüio Antônio Batista
Coelho, também Familiar, que acreditava o habilitando homem de mau proce-
dimento, menos exemplar e incapaz de negócios de segredo e importância.ll2
Os Comissários recebiam Regimento que juravam obedecer. Dava-se-lhes
cuidadosa pauta para suas ações. Reafirmava-se, insistentemente, a guarda do
segredo, não apenas nos negócios inquisitoriais, mas em tudo, até em cousas
de somenos importância. Quando a Mesa lhes escrevesse com reservas, deviam
responder à margem da própria carta. Quando ouvissem testemunhas, deviam
acrescentar seu parecer sobre os fatos ouvidos, sobre a qualidade das pessoas
inquiridas e sobre o crédito que se podia dar aos seus testemunhos. Isso tudo
devia ser escrito por suas próprias mãos.
Para ajudar os Comissários no desempeúo de suas funções, havia, direta-
mente subordinado a eles, o Escrivão, que, se possível, devia ser pessoa
eclesiástica. Para ocupar tal cargo, devia ter as mesmas qualidades exigidas de
todos os oficiais do Tribunal e escrever em letra bem legível.
Sua obrigação era atender pronta e fielmente às ordens do Comissrário. Nas
diligências, escrever bem e legivelmente tudo o que as testemuúas respondes-
sem sem acrescentar ou diminuir qualquer cousa na substância ou nas palavras.
Eventualmente, faltando o Escrivão, o Comissário devia recoffer a um
eclesiástico idôneo do lugar, ou, em último caso, a um Familiar do Santo Ofïcio.
Em diligências especiais, a Mesa podia indicar o Escrivão que ajudaria o
Comissário, que podia não ser a pessoa que estivesse ocupando o cargo.

III ANTT, Santo Ofïcio, maço l, Proc. n. 9.


ll2 ANTT, Santo Ofíçio, mac,,o 42, Proc. n. 688. Seu pai, Antonio Correa Pinto, era Familiar
do Santo Oficio.

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Sônia Aparecida de Siqueira

Auxiliar direto do Comissrírio, o Escrivão podia ser substituído por ordens


superiores a que ambos acatavam sem discussões.

12. Capelão

Nos quadros do Santo Ofïcio, figurava um capelão, o padre que assistia


espiritualmente ao cotidiano da vida do Tribunal.
Nos dias que não fossem de guarda, pois só entiio havia despachos, devia
ele dizer missa antes de se iniciarem as sessões. Não era observância exclusiva
do Santo Ofício, em tempos em que a religião era chamada a irspirar as decisões
mais graves dos homens. Na Relação de Lisbo4 no Oratório, todos os dias pela
manhã, um sacerdote escolhido pelo Regedor rezava missa antes de se começar
o despacho.l13
Aquele ato preliminar havia de inspirar os juízes da Inquisição bem fazer,
predispondo-os ao duro labor de defesa da ortodoxia.Talvez lhes acentuasse,
paradoxalmente, a glacialidade na consideração dos delitos ao reaquecer-lhes
interiormente o ardor da fé.
Douto, honesto, de boa vida e temente a Deus, devia ser o capelão. Ele
representava a assistência da Igreja para aqueles que viviam na Justiça. Era uma
presenga de pura espiritualidade em meio às tensões dos julgamentos.
Essa assistência não era apenas para os servidores do Tribunal. Desdobra-
vam-se as obrigações de capelania: a confïssão dos presos a salvo dos riscos de
condenações e a permanência junto a eles quando necessitassem de maior
consolação espiritual.
Devia ainda o capelão estar pronto parafazer o mais do que fosse incum-
bido pelos Inquisidores, fazendo jus ao respectivo saliário que recebia.

13, Porteiro da Casa do Despacho e do Conselho da Inquisição

Tinham os Porteiros dupla função: administrativ4 a de zçladores das casas


do Tribunal, e judicial, a de oficiais de justiça, quando eram encaffegados de
citagões ou intimações das partes ou de execuções. Este era o sistema de Justiça
civil.lla Aqui, o Porteiro assistia o juiz, ora transportando os autos ao acompa-
úá-lo, ora apregoando o final das audiências, ora vigiando a ordem de ocupa-
ção dos assentos nas salas do despacho.l15

ll3 Ordenações Filipinas, Liv. I, tít. l, $ 3'.


ll4 Ordenações Filipinas, Liv. III, tít. l, $ l'

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A disciplina davida colonial

Subordinado diretamente à Mesa dos Tribunais ou do Conselho, competia


ao Porteiro cuidar das instalações da Inquisição. Cumpria-lhe abrir as portas
pela manhã e à tarde, antes da vinda dos Inquisidores. Era depositário das
chaves das dependências inquisitoriais e guarda de tudo que estas contivessem.
Ao Porteiro da Casa do Despacho, estava afetaaaparência do ambiente: devia
ter bem limpa a casa e resguardar suas chaves, para preservar os papéis do vistas
curiosas. Obrigava-se, ainda, a dar conta dos panos, das mesas, dos banoos e
de quaisquer outras coisas que no dito local estivessem, das quais faria inven-
trârio e não deixaria fossem tiradas sob pretexto algum .
Competia ao Porteiro transmitir às partes os despachos dados, tratando-as
caritativamente, de modo que não ficassem escandalizadas. Exigia-se dele
muita diligência e fidelidade, e proibia-se a sua entrada na sala do despacho
quando os Inquisidores aí estivessem em audiência com os presos ou ouvindo
pessoas de fora. Quando absoluta urgência requeresse sua comunicação com
os Juízes da Fé, devia permanecer à porta, fazendo sinais para que os Inquisi-
dores o mandassem entrar.
De certo modo, acaba sendo também o Porteiro responsável pelos segredos
do Santo Ofïcio. Por isso, devia ser pessoa de confiança dos Inquisidores a quem
devia obediência. Era, pois, uma figura criada na Justiça régi4 que, com as
adaptações próprias, reaparecia na Inquisição.

14. Pessoal menor

A serviço do Conselho e dos Tribunais, estava toda uma constelação de


servidores voltados à sustentação das atividades dos membros do Santo Ofício
e da vida dos presos. Entre eles, destacavam-se os <médicos, cirurgiões,
barbeiros, coziúeiros, dispenseiros.>
Estes servidores, para os quais não encontramos equivalentes nas Ordena-
ções, parecem constituir originalidades do Santo Ofício. Na sua origem,talvez
resultem de influência puramente eclesiástica ad instar dos conventos e mos-
teiros.
Tem, sem dúvida um caráter assistencial, a revelar que a par da preocu-
pação do rigor punitivo, havia outra, de humanização do trato dos autuados pelo
Tribunal aos quais se devia não só penalizar, mas também e sobretudo,
recuperaÍ para a Igreja afravés do que podia sei na circunstância, uma caridade
cristã. Curar, cuidar, alimentar, ainda que em condições limitadas, eram deveres

I 15 Tldem, Liv. III, tít. 19 e pp. 4, 8, 10.

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Sônia Aparecida de Siqueira

de consciência para homens que de consciências tratavam. A Inquisição, que


era fundamentalmente um Tribunal, desdobrava-se em complexidade para ser
uma instituição de regeneração espiritual, um organismo correcional, com
obrigações assistenciais, embora ainda embrionárias e sufocadas pela tônica
judicante. Isso quando as próprias penas últimas tiúam um sentido profilático
e exemplar.
Os médicos, cirurgiões, barbeiros tinham Regimento próprio.n6 Dele
constavam as exigências para o exercício de tais cargos no Santo Oficio. Em
geral, as mesmas qualidades requeridas a todos os componentes da Inquisição:
que fossem pessoas de muita confiança, as mais suficientes que houvesse na
terra, de segredo, capazes de guardar para si tudo o que vissem ou ouvissem
nos cárceres. Deviam dar bom exemplo com sua vida e costumes, frajaÍ-se com
modéstia, e não agravar ou vexar quaisquer pessoas por se acreditarem encas-
telados nos privilégios da instituição. Estavam, como os demais, proibidos de
tratar com pessoas suspeitas ou delas aceitar dádiva ou peita. Era obrigação
comparecer pontualmente aos cárceres quando chamados e ministrar as mezi-
úas e os remédios quando necessário.
Os médicos e cirurgiões tiúam a seu caÍgo assistir os Inquisidores e os
demais ministros do Tribunal, bem como as suas respectivas famílias; assistir
aos tormentos e declarar, sob juramento, acapacidade fïsica que tiúam os réus
para suporhá-los. Nos casos de loucura que tivessem curado, deviam se respon-
sabilizar pela integridade mental recuperada e, portanto, pela conseqüente
responsabilidade moral dos ex-doentes. Nos casos de morte nas prisões, proce-
diam a exarnes antes de declarar a causa do falecimento à Mesa.
Ao barbeiro, cabiam não apenas as barbas, como tamEm as sangrias
preceituadas com tanta freqüência pela medicina do tempo.

15. Visüadores e Revedores

Além do desempeúo dos cargos especificados nos Regimentos das Inqui-


sições, os membros do Santo Oficio eram eventualmente ou até em caráter
permanente, designados para cumprir oufas funções importantes ao andamento
do Tribunal. Entre elas, está, por exemplo, a de Visitador das comarcas ou das
livrarias.

116 Regimento do médico, cirurgião e barbeiro do Santo Ofcio. BiblioteçaNacional de Lisboa.


Reservados. Coleção Moreira. FG n. 867, T I, p.30.

554 R IHGB, No tu Janeiro, I 57(j92): 497-57 I, iul./set' 1996.


A disciplina davida colonial

Não encontramos a palavra <Visitadon> na terminologiajurídica civil. Sua


correspondência seria corregedor que aparece no Século XIII e sucede ao
meirinho-mor no provimento da Justiça corretiva itinerante e na fiscalização
de certos aspectos da vida judicirária administrativa, ou mesmo militar.llT
O Visitador diocesano aparece no Direito Canônico, com missão de zelar
pelo cumprimento das disposições eclesirísticas gerais e particulares das dioce-
ses. Suas funções foram definidas no capítulo 8 da sétima secção <<De
Reformu do Concílio Tridentino,rrs embora o cargo de Visitador eclesiás- -
-
tico diocesano date das origens da lgreja, quando S. Paulo percorria a Galácia
e a Frígia.rre
Os Visitadores apostólicos eram os que recebiam da Santa Sé jurisdição e
faculdades necessiirias para inspecionar uma igreja, diocese ou região, em tudo
o que se relacionasse com assuntos de interesse da fe e da vida eclesiástica.
Remonta o ofício aos Santos Apóstolos que receberam diretamente de Cristo
essa jurisdição universal de poder nomeaÍ Visitadores que cuidassem das
Igrejas que fundavam com sua pregação. Os Visitadores Apostólicos eram
delegados permanentes ou simplesmente visitadores transitorios, temporais.
Como Visitadores Apostólicos iam os Inquisidores inspecionar as comar-
cas e terras sob a jurisdição do Santo Oficio, com o fito especial de sustar o
alastramento da herética pravidade e apostasia. Eventualmente, procediam a
essas visitas membros do Conselho Geral, munidos de credenciais específicas.
Agentes itinerantes do Tribunal, durante a visita podiam apurÍìr, perdoar e punir.
Até certo limite, porém.
Levavam consigo um pequeno séquito de oficiais: Notiírio, Meirinho e
Alcaide, dos quais se exigia nobrezq fidelidade, segredo. E bondade.
O Noüârio era o artesão dos processos, dos termos e das sentenças.
Elemento vital nas andanças do Santo Ofïcio, Meirinho e Alcaide eram molas
que as ordens do Visitador acionavam quando preciso. Prendiam e custodiavam
os incursos em culpas graves. Elementos de execução e acompanhantes públi-
cos do Visitador, iluminavam-se com reflexos de seu prestígio. Asteróides,
ciosos, porém, de suas órbitas.

lt7 GamaBarros, H.: op. cit. T IX, pp. 3l e 169.


ll8 Hefèle, Charles Joseph: Histoire des Corrciles, T IX, de P. Richard: Concile de Trente p.
?. Paris, 1931.
ll9 Ocuparam-ser detalhadamente da visita eclesiástica os concílios provinciais nos primeiros
séculos e os gerais, depois, baixando regras e ordenações sobre o procedimento dos
visitadores, e as qualidades que se exigiam deles. Perujo, A.: Diçionário de Ciência
Eclesiástica vbo. Yis it ador.

R IHGB, Rio de Janeiro, I 57(392): 497-57 I , jul./set. I 996. )))


Sônia Aparecida de Siqueira

Quando o estado precário dafé de algumaprovínciaexigiaque doTribunal


saíssem os dois Inquisidores como Visitadores, o Solicitador passava na sede
do Santo Oficio a servir de Meirinho, e o Porteiro da Casa do Despacho, a servir
de Solicitador. Para presidir a Mes4 deslocava-se um Deputado do próprio
Tribunal ou do Conselho Geral.
Segundo as determinações tridentinas, membros do Santo Oficio eram
encaregados de visitar periodicamente as livrarias. Recebiam credenciais e o
título de <<Revedores>. Escolhidos entre os funcionários mais doutos do Tribu-
nal geralmente Inquisidores ou Qualificadores guiavam-se por um rol
dos - - deixadas por letrados
livros defesos. Inspecionavam também as bibliotecas
falecidos, separando os livros que, por serem proibidos, não podiam ser
vendidos. Eram informados da morte de homens que possuíssem bibliotecas
pelos curas e priores a quem o Santo Oficio obrigavaaparticipação do oconido.
Os liweiros dependiam dos Revedores. Não podiam mandar buscar liwos
fora do Reino sem sua autorização. Eram cientificados por escrito dessa
determinação, por papel que lhes apresentava o Solicitador e era guardado no
Conselho Geral. Não podiam alegar ignorância. Se apanhados em culpas, eram
detidos e pagariam além disso a multa de 4 mil réis para os presos pobres do
Santo Oficio.
Os Revedores possuíam regimento próprio, onde se continham instruções
paÍa o desempenho do cargo.l20 Chegados às livrarias, deveriam apresentar
patente e comissão que os qualificava. Fariam lawar termo de notificagão e
obrigavam os donos dela ajurar sobre os Evangelhos para assegurar-se de sua
lealdade e da obediência que lhes seria dispensada. Depois disso, exigiam a
vista de todos e quaisquer livros que houvesse, bem como a apresentação dos
róis que ali eram usados. Viam todas as caixas, os cofres, as casas e mais lugares
onde se guardavam livros, sob pena de que quem os escondesse ser considerado
perjuro e como tal castigado.
Os livros revistos eram assinalados para que se pudessem depois locall.z;ar
com facilidade. Mereciam particular atengão os que tratassem de religião e bons
costumes que deviam constar de todas as livrarias. No caso de faltas, deviam
se justificar os responsáveis e provê-los o mais rapidamente possível.

120 Instruções e Regimento para os Revedores que hão de visitar as livrarias por comissões e
mandado do Inquisidor Geral. Bibliotçca Nacional de Lisboa. Reservados. Santo Oficio.
Cód. 1537, T XXV[, pp. l9-19v.

556 R IHGB, Rio de Janeiro, I 57(392): 497-57 I, jul./set. 1996.


A disciplina davida colonial

Vistos os livros, os defesos eram apartados em cofres ou caixas para serem


transportados para o Santo Ofício. As chaves desses repositórios ficavam com
os Revedores.

A função dos Revedores não era apenas a de proibir a disseminação de


idéias heterodoxas, mas também zelu paraque se difundissem os livros que
podiam incitar a piedade e reforçar a doutrina. Missão também construtiva.
Aspecto de edificação de uma nova espiritualidade que extravasava timidamen-
te de toda aaçáo inquisitorial.

16. Familimes

O termo <Familian> aparece nas Ordenações Afonsinas pÍlra designar


antigo oficial executor, meirinho ou alcaide.l2l Na História Eclesiástica, desig-
na comensal em casa religiosa, donato, confrade, pessoa externa mas afiliada
aos mosteiros.r22 Nada de semelhante nem no Direito Civil, nem no Canônico,
portanto, à figura do Familiar do Santo Oficio, que, na ldade Média, apaÍece
integrando o Tribunal, reunindo em si a condição de oficial e a de dependente
de um organismo eclesiástico. Na Inquisição Moderna, os cargos de Familiares
do Santo Oficio eram peças essenciais ao edificio inquisitorial. Pessoas laicas,
que, sem abandonar suas próprias ocupações, auxiliavam o Tribunal, efetuando
prisões, participando de inquéritos, policiando as consciências. Em outras
palavras, asseguravam a co-participação do laicato na disciplina da vida reli-
giosa.
Em Portugal, como na Espanh4 ligadas à Inquisição vicejaram as <<Con-
frarias de São Pedro Miártin>, agrupando Familiares do Santo Oficio. Nessas
confrarias, ingressavam apenas pessoas munidas da patente de Familiar. Se
perdessem a patente o que só excepcionalmente ocorria eram automati-
- -
camente excluídas daquelas agrerniações. Os funcionários titulados do Santo
Oficio eram membros honoriirios da Confraria" gozando de todas as vantagens
sem quaisquer obrigações.

Os confrades Familiares se ocupavam da instrução dos hereges presos e


eram seus padrinhos nos autos. As Confrarias tiúam sempre a invocação de

l2l Liv.II, tít. 8.


122 Viterbo, Frei Joaquim de Santa Rosa de: Elucidário das palavras, termos e frases que em
Portugal antigamente se usaram e hoje regularmente se ignoram. vbo. Familiar, Lisboa"
1865, T I, p. 304.

RIHGB, Rio de Janeiro, 157(392): 497-571, jul./set. 1996. 557


Sônia Aparecida de Siqueira

São Pedro Mártir e honravam seu santo pelos meios habituais a todas as
associagões semelhantes, isto é, com festas è procissões de grande aparato.
A expedição da Carta de Familiar, que permitia o exercício dos deveres e
do gozo dos direitos inerentes ao cargo, estava condicionada ao preenchimento
de certos requisitos que diziam respeito ao caráter, à cultur4 à genealogia e as
posses dos habilitandos. Deviam ser pessoas de bom proceder, confianç4
coúecida capacidade de segredo, que soubessem ler e escrever, possuíssem
fazenda de que vivessem abastadamente, e não caÍregassem em seu sangue
manchas de ascendentes ou colaterais judeus ou mouros. Depois do Século
XVII, acrescentou-se o preconceito contra o sangue mulato. Exigia-se total
puÍeza de sangue. Receava-se que indivíduos presos por laços de parentesco
aos heterodoxos acabassem tolerantes com eles, ou até coniventes. Por isso,
seus oasamentos eram controlados pela Mesa, e não podiam se realizar sem
prévia apuração da condiçiio de cristã-velha da noiva.
Era caprichoso o Santo Oficio na seleção de seus membros, pois sua forç4
seu prestígio, sua boa fama dependeriam do acerto na escolha deles. Escolha
que significava ingresso em um círculo ciumento de sua autoridade e que
dispensava privilégios e ascendentes sociais. Não podia o Tribunal errar no
recrutamento, sob pena de acolher inimigos dentro de suas paredes ou de descer
o nível de suas decisões.
Cercava, pois, o processo de recrutamento de sua gente, de requintes de
cautelas que assegurassem uma filtagem precisa. Um processo inquisitorial,
no bom estilo de seus julgamentos, maÍcava a vida pregressa dos postulantes.
Testemuúas e testemunhas eram convocadas testemunhas fidedignas, bem
-
escolhidas nas camadas superiores da sociedade. Debruçavam-se os Inquisido-
res sobre o passado dos candidatos: passado, presunção para o futuro. As
biografias, montadas com a técnica do inquérito. Inquérito, com roteiro prees-
tabelecido.
A admissão de um Familiar iniciava-se com o pedido do habilitando,
geralmente acompanhado de uma justificação. No processo de Leonardo Mo-
reir4 por exemplo, diziao suplicante

'que na dita vila (Vila Real) e seu termo, e oufos lugares conjuntos
a el4 vivem muitas pessoas da nova nação ejá os anos passados foram
presas muitas pessoas da dita vila e seus arredores pela Inquisição e
saíram condenadas e é necessário haver na dita vila familiares do Santo
Oficio para se fazerem as diligências que lhes forem encarregadas'.123

123 AÌ{TT, maço n. I de Leonardo n. 2.

558 R IHGB, Rio de Janeiro, 157(j9): a97-571, jul./set. 1996.


,h
fl A discipliw davida colonial

#
Julgando o pedido, os Inquisidores de Coimbra despacharam, dizendo que:
<Em Vila Real não há mais que um familiar, é vila de muitos vizinhos e de
muita gente da nação, e nela será necessário outro familiar além de um que lá
tem>. Tendo concordado a Mesa com a criação de mais um Familiar, inicia-
vam-se as investigações na terra natal do habilitando, na de seus pais e avós e
no lugar em que morava ao tempo. Convocavam-se testemuúas. Era preciso
saber muito sobre ele. Desencadeava-se entÍio o interrogatorio. Conheciam o
habilitando: há quanto tempo e por quê? Sabiam de seus pais, e desde quando?
E aos avós patemos e maternos? Indagagões genealógicas, inclusive de legiti-
midade: pretendia-se saber se erauma linhagem de cristiios-velhos, sem (man-
chas> de judeu, mouro, mulato, Era a pureza dos quadros que se havia de
garantir contra infiltrações de <infectas nações>. Que as testemuúas não
tivessem inimizade com a família" e dissessem o que sabiam, inclusive (rumo-
res>> de ligações suspeitas. Algum parente penitenciado ou incurso em infâmia
ou pena vil, inutilizaria todas as pretensões. Seleção de reputações para além
dos arquivos do próprio Tribunal.
E, afinal, coúecida a ascendência, indagava-se sobre o próprio habilitan-
do, sua vida e seus costumes, sua discrição e prudência para julgar, sua
capacidade de ler e escrever, a fim de que pudesse se inteirar das ordens que se
lhe dessem através de cartas ou de, evenfualmente, em caso de inexistirem
Comissários na localidade, exercer essa função em alguma diligência. Mas
também era de mister indagar-se se vivia <<com bom tratamento correspondente
à sua pessoa e estado>> se era ou tiúa sido casado e tiúa filhos, inolusive algum
ilegítimo. Aptidões morais e intelectuais por certo. Statrc social também.
lnvocava-o Antônio Botelho Pimentel, de Vila Real, pedindo o lugar de
Familiar, porque em sua terra <há muita gente de nação e não há mais de que
um familiar e este mecânico, e que tem pouco de seu, enquanto ele, suplicante,
é homem rico e honrado>>.124

Tudo era de se saber, mas o que importava mais que tudo era a fam4 essa
fama" que, paÍa a mentalidade barroca, compondo a aparência compuúa a
realidade, fama pública e notória a opinião coletiva. Fraquezas secretas,
- -
guardadas na intimidade, mal sabidas, sobretudo se não envolvessem quebras
de ortodoxia, arraúões de gentilidades, nem convívios com gente de nação,
por certo seriam fraquezas apenas. A notoriedade das faltas ou máculas, os
compromissos com pessoas suspeitas de infiéis isso o Santo Oficio não iria
-
tolerar. Os homens podiam ser homens, mas tinham de ter fama de pureza de
fé. E do sangue. A suspeita podia fazer tanto dano neste particular, quanto a

124 ANTT, Santo Oflcio, maço n. 3 de Antonio, n. I12.

R IHGB, Rio de Janeiro, I 57 (392) : 497-57 1, jul./set. I 996. 559


Sônia Aparecida de Siqueira

realidade. Para fins sociais, os homens eram o que se pensava que fossem.
Realismo: como saber o que erÍrm de fato? E que importava o que fossem, se
representavam com justeza seu papel no teatro da vida? Se representavam bem,
diria a platéia de testemuúas. Barrocos eram barrocos conseqüentes.
O número de Familiares do Santo OÍïcio existente em cada localidade era
variável. Dependia das necessidades do Tribunal, a critério do Inquisidor-Ge-
ral. O número de pedidos de ingresso aumentou quando, no Século XVII, o país
atravessou um momento de arrocho no zelo pela espiritualidade vigente.
Manteve-se elevado no Século XV[I, quando muitas pessoas viam no ingresso
nos quadros inquisitoriais uma forma de forçar as bareiras sociais e de
ascender. A presença de artesãos e oficiais mecânicos munidos de patente de
Familiar prova-o, como prova também que o Santo Ofício cedia às pressões do
dinamismo social do tempo. Ao ideal de cruzado da fé, os candidatos a
Familiares tiúam a entusiasmá-los, outro, bem humano, de diferenciação
social, porque o Santo Oficio distribuía privilégios.

Isenções e excegões acumularam os Familiares através dos tempos. Isen-


gões fiscais e de serviços. Direitos de foro próprio, de usar determinados trajes,
cavalgar ou trazer aÍrnas defensivas e ofensivas. Aos que zelavam para evitar
discrepâncias e impedir desvios da crençan era legítimo se estendessem privi-
légios e liberdades. Assim, D. Sebastião , em 14 de dezembro de 1562, escusava
os Familiares de obrigações pecuniárias, livrava-os de perda de bens, de ter
ganchos à porta e concedia-lhes o direito do uso de armas defensivas e
ofensivas. As mulheres e os filhos dos Familiares, enquanto sob seu poder,
podiam <<trazr:r em seus vestidos aquela seda que por bem de miúas Ordena-
çoes podem trazet as pessoas que têm cavalos, poito que eles não tenham>>.I2s
Outras isenções de pagamentos foram especialmente consignadas aos Familia-
res. Em 20 de janeiro de 1580, D. Henrique lhes deu foro privativo e, em 3l de
dezembro de 1584, Felipe II autorizou se passassem a seu favor Alvarás de
fianga. O acúmulo de privilégios para essa milícia laica demonstra claramente
a intenção de distingui-los dos demais. Dava-se aos homens o que mais
buscavam: a distinção social. Ser Familiar era orgulhosamente exibir aos olhos
dos demais o atestado de posse de um certo status social, cultural, religioso e
econômico não comum. Era ser mais zeloso que os zelosos na defesa da fé
comum. Era também ter o direito de usar hábito, medalha e vara, e exibi-los
nas procissões solenes do Tribunal. Era servir ao ideal religioso e cultuar a

125 Privilégios dos Familiares e Oficiais da Inquisição. Lisboa. 1685. BibliotecaNacional de


Lisboa. Reservados. Cód. Santo OÍicio, T XXVII, n. 1537, fol. 50'53 v.

560 R IHGB, Rio de Janeiro, 157(392):497-571,iuL./set. 1996.


A discíplina davida colonial

glória e vaidade, dois fortes valores do tempo. Era uma forma cômoda e
agradável de ser barroco.
As funções dos Familiares obedeciam a uma rigorosa escalonação hierár-
quica. Nas inquirições ou prisões, eram meros executores de ordens recebidas.
Refletiam a persistência do clima de ordenação que os envolvia. Seu Regimento
dizia taxativamente <<irão aos Comisrários e Visitadores das Naus sendo chama-
dos por eles, e farão o que lhes disserem. Vindo à Mesa algum Familiar...
esperará na sala até o mandarem entrar e sem isso não entrará na saleta...>>
Cabia-lhes a vigilância das terras em que viviam e da execução das penas e
penitências dos alcançados pelalnquisição. Porque eram pessoas damais estrita
confiança, eram considerados os Familiares capazes de guardar fielmente os
presos, se necessiírio, bem como de reter cs bens a eles seqüestrados, até o
momento de enhegá-los ao Alcaide.
Os Familiares podem ter significado para uma certa facção da população
portuguesa a cripto-judaica um fator de insegurança social: temia seus
-
òhos- e seus ouvidos. No -
entanto, o aÍã com que se buscou tal cargol26
parece-nos que ficou a indicar uma integração real da população nos ideais
defendidos pelo Santo Ofïcio.

Os Regimentos do Século XVIil

A Inquisição, no Século XVIII, passou a significar para a nova mentalidade


que se instalav4 calcada numa razão <<essencialmente subjetiva e críticor e num
racionalismo <<essencialmente humanista e antropocêntrico>r, obstáculo atodo
o progresso.
Expressões-limites dessa mentalidade que tentava se aliúar com o clima
cultural europeu, foram os (estrangeirados>. Homens como D. Luís da Cuú4
Alexandre de Gusmão, Ribeiro Sanches, Luís Antônio Vemey, através de suas
críticas, tentavam moldar um outro sentido espiritual para o Reino, ajustando-o
à sua época. Preocupava-os, além do progresso material, o bem-estar coletivo
da nação como um todo, calcado na laicização das estruturas da sociedade, na
atenuagão das diferengas sociais, na superação dos preconceitos.
Sob D. José instalou-se uma (nova política do espírito>, desdobrando-se,
com adesões significativas, sob D. Maria I. Sua expressão foi um reformismo
mitigado, marcando a presença da Ilustração no seu modo humanitário, confi-

126 Só no Tribunal de Lisboa habilitaram-se 26.074 pessoas, cujos processos ainda existem no
ANTT.

R IHGB, Rio de Janeiro, I 5 7 (392) : 497-5 7 I, iul./set. I 996. 561


S6nia Aparecida de Siqueira

gurada pelo pensamento de Beccaria e de Filangieri. A tônica ficava no


fortalecimento do Estado, protetor da Igreja" guarda fiel da crenga coletiva.
Aqui, o problema frrndamental do século: as relações enfe o Estado e a lgreja.
O problema se configura e cresce de importância na medida direta do quanto
foi complexa e contraditória a essência da mentalidade do Século XVIII em
matéria religiosa.
Portugal, no âmbito da chamada Ilustração Católica" adotou a nova cultura
de forma moderada, assumindo uma prudente contemporização diante das
realidades históricas.
A necessidade de emancipar o poder civil do eclesiifutico instalou a
preocupação de <libertar o Estado, desteocratizando-o e de conter os excessos
do poder eclesiástico despolitizando-o>>. O primeiro passo nessa direção era a
instauração da política religiosa de uma Igreja instrumentum regni, pela qual
peÍpassava a idéia de tolerância.
Ora, a nova idéia de tolerância" bem como os mitos racionalistas do tempo
<tiveram de achar formas de adaptação e de contemporização muito particula-
res), que implicavam em pactuar com o Despotismo régio e com formas de
atuação da teocracia.
A idéia de separação de um Estado só político e de uma Igreja só religiosa
germina nessa época. Pretende-se uma nova política religiosa que usa a tole- \
rância como seu instumento. Impunha-se conexão com o Absolutismo, ainda i
então vivo como idéia política. Limitar o poder jurisdicional da Igreja e
difundir o espírito laico. ì
Em meio a esse clima das reformas pretendidas, a questlÍo religiosa punha
em relevo o Santo Ofício, tradicional defensor da ortodoxia das crengas, fiel
z.elador da unidade das consciências. Não se pensa em extingui-lo, mas, sim,
em reformá-lo, adequando-o aos novos tempos. Urgia a elaboração de um novo
Regimento que tornasse a Inquisigão mais inofensiva e pusesse o Tribunal
realmente nas mãos da Coroa.
Esse novo Regimento foi mandado executar pelo Cardeal da Cuúa. No
seu Preâmbulo, justifica-se a sua necessidade na medida em que as leis que
geriam o Santo Ofício teriam sido, ao longo dos séculos, distorcidas pelos
jèsuítas, interessados em dar ao Papa o supremo poder sobre a Inquisição. Desde
o governo do Cardeal Infante D. Henrique diz o Cardeal da Cunha
seu confessor, o jesuíta Leão
-dominado,
Henriques, até o Reinado de D. João V,
-pelo
foi ô Tribunal escapando ao poder do rei. Teria chegado ao máximo a influência
da Companhia, sob o Inquisidor D. Peúo de Castilho, que tornou a legislação
mais jesuítica do que régia.
os Regimentos de 1613 e de 1640 teriam ressuscitado o espírito das
Decretais dè Boniflâcio VIII (no Tít. Haeretic in Q,ampliando exageradamente

R IHGB, Rio de Janeiro, I 57(392): 497'57 I , iul./set. 1996'


A disciplina davida colonial

ô o poder eclesiástico, confundindo sacerdócio e Império. Nada a estranhar num


:
'.*. tempo em que a religião tinha o primeiro plano na vida coletiva. No entanto,
it{5 os tempos eram diversos. O Estado se configurava de outra maneira" definindo
diferentes funções. Cioso de seu poder, necusava-se a partilhá-lo com quaisquer
instituições ou estamentos. Impuúa-se a necessidade de limitar o poderjuris-
dicional da lgreja. Assim o Regimento de 1774 visou o fortalecimento do poder
da Coroa, invocando o direito do Reino. Instalava-se o regalismo absolutista
como ideal de união crist?i na ordem civil.

Quanto aos cargos e às funções, o Regimento fala explicitamente dos


Inquisidores, Deputados, Promotores, Notários, Procuradores dos réus, Quali-
ficadores, Comissrírios e seus escrivães, Familiares, omite capítulo especial
sobre os Visitadores dos lugares e das naus de estrangeiros, o Tesoureiro e seu
Escrivão, o Meiriúo e os homens a seu serviço, o Alcaide dos ciírceres e os
guardas, o Porteiro, os Solicitadores, o Dispenseiro, Médico, Cirurgião e
Barbeiro, além do Capelão do cárcere da penitência. Não que tais figuras
tivessem desaparecido, mas preocupa-se o Regimento mais com os modos de
proceder do Santo Ofïcio e com os faltosos. E menos detalhista quanto à própria
estrutura, que, aliás, pouco se altera em relação aos Regimentos anteriores.
Apresenta mudanças no que considera defeitos de jurisdição.

Em relação ao tormento, depois das humanitrírias considerações prelimi-


naÍes que o consideram <<uma crudelíssima espécie de averiguagão de delitos,
inteiramente estranha dos pios e misericordiosos sentimentos da lgreja...>,
declara <por todas as razões que se tem feito manifestas em toda a cristandade
iluminadu quais os casos em que se devia aplicar a tortura. Inserem-se aqui os
réus diminutos e negativos, e os heresiarcas e dogmatistas.

As formas de aplicagão do tormento e o ritual de seus procedimentos


mantinham-se idênticos aos dos Regimentos anteriores.

Foram proibidos os autos de fé públicos e solenes, por senem considerados


<ostentações de horrores e misérias>, mas autorizados, no caso dos heresiarcas,
dogmatistas, hipócritas, sigilistas, ou culpados de delito que tivessem causado
escândalo ou suscitado adesões.l27 Defendia-se umaatitude éticade predomínio
dos valores de ação sobre os princípios especulativos. Não se permiti4 sob o
rótulo das novas idéias, o afrouxamento dos vínculos com o transcendente.
Evitar se propagassem heresias era mais importante do que a opinião européia
sobre a vida nacional.

127 Regimento de 1774, Tít. XV.

R IHGB, Rio de Janeiro, I5 7 (392) : 497-57 I, jul./set. I 996. 563


Sônia Aparecida de Siqueira

)
Havia, sim, brotada dallustração, um respeito ao DireitoNatural, mas não a
visto de modo absoluto a permitir alterações da ordem sociopolítica. No {
entanto, no campo individual, neúuma pessoa poderia ser castigada sem ser \
ouvida e julgada. Por isso, foram introduzidas certas modificagões na orgânica
processual. Uma delas dizia respeito ao nome das testemuúas, aos lugares e
ao tempo dos delitos que passavam ao coúecimento do réu. Seu ocultamento
representaria violência contra o direito natural e divino explícito no Gênesis,
cap-.-.3. Causa possess, et propert, cap. l, e nas Ordenações, Livro I, tít. 9, $
12.tzt

Quanto aos feiticeiros, sortílegos, adiviúadores, astrólogos judicirários e


maléficos, adota doutrina segundo a qual não tem aplicação ao foro o argumento
teológico de que pode haver casos de pacto com o demônio. Afirma que
acreditar nisso é ignorância e superstição. Os que se obstinam em ter feito o
pacto demoníaco deviam ser enviados ao Hospital de Todos os Santos. Afirma
ser <<incompatível com a sisudez e o decoro do Santo Oficio processaÍ bruxos
e feiticeiros, cujos delitos são idéias fantásticas. <Persegui-los é aumentarneles
a crença dos povos. Despreá-los e ridicularlzfulos é extingui-los como a
experiência tem mostrado entre as nações mais polidas da Europo.r2e
Não obstante, no Capítulo I do mesmo Livro e TítuIo, manda que se façam
provas sobre denúncia de feitiçaria, sortilégio, adivinhação, astrologiajudiciá-
ria, predição de fufuros, encantamentos, malefïcios e outras semelhantes su-
perstições. No arrazoado do Título XI, questiona sua existência. Duvida que
com ofensa <da Divina Bondade, que esta poderia permitir a um vil feiticeiro
ou infame ashólogo que, com figuras de ünta ou de carvão, com cozimentos
de ervas, com blasËmias e outras semelhantes superstições, pudessem privar i
as gentes dafazendç da saúde e até da mesma vida...> Diz, aind4 que sendo
as provas necessárias bastantes, os réus devem ser presos e processados.

A liberdade individual estava delimitada pelas leis da sociedade. Havia


uma construção lógica do espírito que, apesar de sensível aos problemas
humanos, não permitia a subversão da ordem social e política. Ordem que
continuava alicerçada em Deus. Era, pois, de mister que se punissem os delitos.
Impossível deixá-los serem praticados sem conseqüência penal.
Foram mantidos o degredo, as galés, os açoites, a privação das ordens
sacras. Penas diferenciadas, naturalmente, para nobres e plebeus: concessão às
persistências barrocas. Repelia-se o princípio da igualdade,tão a gosto dos

128 ldem,Tlt.l.
129 ldem, Liv. IIL Tít. XI.

5& R IHGB, Rio de Janeiro, I 57 (392) : 497-57 1, jul./set. I 996.


A disciplína davida colonial

revolucioniários oitocentistas europeus. Supressaem geral arelaxação, fora, não


obstante mantida em casos especiais.
Havia maior cuidado na decretagão da infrmia. que perduraria até a
segunda geração, mas só podia ser gerada com o concurso de três entidades
jurídicas, invocando-se como razãro o Deuteronômio nos seus Capítulos 17 e
19, que dizem não poder ser qualquer pessoa condenada" por mais grave que
seja o seu delito, pelo depoimento de uma só pessoa. Exceção: o caso dos
solicitantes e a identificação de cúmplices, feita nos confessioniârios.
O Santo Oficio foi secularizado e tornado instrumento do poder do Rei,
quanto ao processo e à imposição das penas. A lgreja ficavam os delitos
espirituais e eclesiásticos e a declaração dos erros de doutrina. Só poderiahaver
uma forma de processo: a prescrita pelas leis do Reino.
Este Regimento reflete as tímidas transformações da consciência cultural
dos dirigentes do país no plano das doutrinas e das idéias relativas aos proble-
mas fundamentais do Século XVI[. Mais: o que foram capaze-s defaznr pata
aquilo que acreditavam ser a missão regenerativa do Reino. E expressão do
reformismo humanitrário do Trono para o povo, sem grandes implicações de
ordem institucional.
Sob D. Maria I foi encomendado novo Regimentô ao frei Inácio de São
Caetano, confessor da Rainha, Inquisidor-Geral, membro do Conselho e Mi-
nisho Assistente do Despacho. O fato se encaixa como um desdobramento do
aË reformista dos <estrangeirado$) que reclamara modificações na legislação
e em todos os tribunais do Reino. Vinha sendo pedida a reforma da vidajurídica
e judicial, a-revisão do direito privado e processual, a modernização das
instituições.r3o

<E porque tendo Sua Majestade a Raiúa Fidelíssima minha Seúor4


entendido sobre a reforma geral das leis civis e criminais dos seus Reinos e
Domínios, era necessária e conseguinte grande interesse também sobre as
particulares do Santo Ofïcio...> diz o Preâmbulo no novo Regimento. I 3 I O Santo
Ofïcio não poderia ser excluído desse afr de mudanças, principalmente porque
seus próprios dirigentes, examinando o Regimento pombalino, em vigor,
tinham nele achado <<muito pouco que aproveitan>.

r30 Tiúam sido sugeridas a renovação do direito civil, com um novo código de leis nacionaig
a publicação de um Bulário Régio, contendo todas as Bulas, Breves e Resçritos do Papa
como meio de resolver os conflitos com a Santa Sé, a reforma das Concordatas, a brevidade
dos processos e a orgânica das sentenças.
l3l Título I.

RIHGB, Rio de Janeiro, 157(392): 497-57I,jul./set. 1996. 565


Sônia Aparecida de Siqueira

Embora aprovado pela Rainha, o Regimento de frei Inácio não foi posto
em execução. Talvez por ter mais sintonia com as idéias do Iluminismo a que
dera tons mais carregados, ou, o que é mais provável, por já se ter iniciado a
decadência do espírito de estrita ortodoxia que acelerou o fim do Santo Ofïcio.

Alguns pontos desse projeto deixam entrever a absorção, pela mentalidade


do tempo, de certos valores da Ilustração.

Mais sintético do que os anteriores, contém 315 capítulos dispostos em 46


títulos. Seu traço fundamental é o da acentuação do regalismo que já se fazia
notar no Regimento de 1774, insistindo na separação dos planos de agir da
Igreja e do Estrado. Declarando ser seu objetivo precípuo avigilância dapuÍezrL
da fe e a sua conservação no Reino, acrescenta logo que algreja deve procurar
<<mais a instrução e sua conservação neste Reino... do que seu castigo pelo meio
das penas canônicas>. Aflora um traço de tolerância, ponto nevrálgico das
idéias ilustradas, a exigir a instauração de uma política religiosa. Já o Estado,
<<confirmando-se religiosamente com as intenções e desejos da lgreja, concede
o uso das [penas] civis em sua ajudo>. Neste ponto e em muitas outras passagens
do Regimento é visível a preocupação com as relações Estado-Igreja" funda-
mental no tempo. A Inquisição pertenceriam o conhecimento e o castigo dos
crimes religiosos.
O Santo Oficio deveria ficar bem individualiz.ado, restringindo-se a abran-
gência do seu poder: os Inquisidores (por neúum modo se intrometerão a
õonhecer dos ciimes morais e civis maii graves que sejam...>>r32 Pretendia-se
um novo Regimento Canônico e Civil, acomodado em ajustar-se às intenções
da Santa Igreja e ao sistema da atual legislação. A Inquisição ficava no limite
entre Estado e Igreja, acabando por refletir a necessidade de emancipar o poder
real do eclesiástico.
Em relação aos integrantes do Tribunal é específico quanto ao Inquisidor-
Geral. A ele é atribuído apenas o poder espiritual. Reconhecendo-se embora
<<sua maior importância, consideração pela qualidade, extensão e intenção do
seu poden>, permite-se de suas decisões recurso ao rei. Aliás, as origens do \
direito de apelação e agravo dolnquisidor-Geral são buscadas nas CartasRégias
de 12- 1 - 1 63 2 e de 6-4-1663, mantidas atuantes pel a prátic4 mesmo contrarian-
do os termos da Bula instituidora do Santo Ofïcio, que determinava fosse feita
tal apelação ao Conselho Geral, exceção apenas ficava para os confiscos, onde
se mantinha o estatuído no Regimento do Juízo das Confiscações, de 6-6-1620,
$ 46.
ì
132 Projeto de Regimento defrei lruicio de S. Caetano,Tít.lll.

s66 R IHGB, Rio de Janeiro, 157(j92): 497-571, jul./set. 1996.


A disciplina davida colonial

Negava-se recurso ao núncio, o que sempre fora praticado em nome da


necessária separação das jurisdições eclesiástica e inquisitorial. Em nome do
Padroado, tornavam-se inaceiüáveis os Motu proprios daCúria.
O Conselho Geral, que <foi e é sempre um hibunal da Coroar>, mantiúa
no seu proceder as tradicionais precedências estabelecidas em Regimentos
anteriores, confirmadas pelas leis régias.
A proteção real estendia-se sobre os Deputados do Conselho, que não
podiam ser suspensos ou removidos dos lugares em que atuavam, a não ser pelo
monarca . Eram eles, necessariamente, Ministros do Conselho do Rei. Essa
determinação parece restauraro privilégio concedido pelo Alvará de 6-10-1561.
Invocava-se a concessão sem individualizárla. Ela os diferenciava dos demais
oficiais do Tribunal.
Neste Regimento, há uma disposição nova sobre as funções do Conselho
Geral, substituindo o Inquisidor-Geral no caso de vacância do posto. Até enüio,
praticara-se o disposto no Decreto de 13-3-1663, isto é, a proposta de apenas
uma pessoa paÍa ocupaÍ o lugar vago.
O Regimento detém-se sobre o Promotor, consagrando a disposição do
texto pombalino do direito do réu por si ou pelo seu procurador de assistir
a Mesa quando sua causa fosse relatada. - -
Sempre invocando a legislação régi4l33 o Secretário do Conselho e das
Mesas Subalternas gozaria dos mesmos direitos e prerrogativas dos Secreüírios
do Desembargo do Paço e dos Escrivães da Câmara do Rei.
Os Qualificados deveriam sempre ser doutores ou mestres em Teologia.
Fala ainda o Regimento dos Comissários e Escrivão a seu cargo e dos Familia-
res, deixando seu número ao arbítrio do Inquisidor-Geral.Omite-se quanto aos
mais cargos e frrnções.
Os saLários dos oficiais guardariam o costume. Continuam restritos os
direiCIs do Ordinrârio no Santo Oficio, embora sua presença fosse mantida.
Aparece um novo Título, que dispõe sobre os privilégios e os privilegiados.
Privilegiados são só os Ministros e Oficiais do Santo Ofïcio. Inquisidores e
Deputados gozavarn dos privilégios dos Desembargadores, e os oficiais, os
mesmos dos oficiais das Relações e magistrados seculares.
Diminuídos os privilégios, são deles excluídos os criados e caseiros, pois
<não convém que criados de pessoas públicas sejam isentos dajurisdição das
justiças ordinárias>.

133 Alvará de25-4-1570.

R IHGB, Rio de Janeiro, 157(392): 497-57l,jul./set. 1996. 567


Sônia Aparecida de Siqueira

Para os integrantes do Tribunal, são mantidos privilégios de foro só nas


causas cíveis, sendo réus. Negado nas criminais a bem da segurança pública.
Não se mantém foro próprio aos privilegiados sendo autores, nem nas causÍts
já contestadas e acabadas em outros juízos. Parece justificá-lo a idéia de
utilidade, tão grata aos iluministas. Oficiais e clérigos deviam responder diante
do Inquisidor mais antigo, de acordo com o Foro Eclesirástico contido no Código
do Direito Público.
Suprimiam-se ainda as precedências na compra da carne e do peixe para
uso dos integrantes do Tribunal.
Aliás, esse encolhimento dos privilégios não era espccífico do Santo
Oficio, mas estendia-se sobre os eclesiásticos em geral, sobre Íidalgos e sobre
desembargadores. Esvaia-se o Barroco.

Quanto aos procedimentos inquisitoriais, o Regimento é mais estrito que


o anterior. Os réus não só poderiam assistir à Mesa o relato de suas causas,
quanto teriam a permissão de falar sobre elas depois de feito o tal relato. A base
desse dispositivo pode ser encontrada nas Ordenações Manuelinas, no seu
Livro I, título 5, $ 23.
Há um abrandamento no tratamento dos réus. Acredita-se que essa postura
possa serexplicadapelavigênciada idéiade que o castigo espiritual, pelaofensa
que se faz a Deus, não é da competência dos tribunais humanos. Só se poderia
castigarno forojudicial oupela injuria que fosse feita ao Estado com o desprezo
pela religião dominante, ou pelas perturbações que poderiam causar à ordem
social.

'A comparação entre este crime e o de lesa-majestade humana para


a gravidade e efeito da pena não se ajusta nem aos princípios da religião,
nem do direito nem da política. Qualquer pecado se pode chamar ofensa
da divina majestade e nem por isso as leis o castigam, mas só o crime. E
os homens como não são vingadores das ofensas contraDeus não podem
castigar esse crime enquanto particular. A Igreja como nunca pode
perigar e o Estado sim, a comparação entre os crimes de lesa-majestade
divina e humana é mais devota do que jurídica'."'

í
O problema do trânsito da inffimia, pela heresia dos pais, volta a preocupar
os espíritos. :
(
O crime de heresia não é capital, por sua natrneza. Os filhos podem ser
bons cristãos e, portanto, não devem ser tidos por infames ou sofrer qualquer

134 Anotações ao Regimento citado,

568 R IHGB, Rio de Janeiro, 157(392): 497-571, jul./set. 1996.


A disciplina davida colonial

pena ou privação por delito paterno. Suprimiu-se, devez,o trânsito da infrmia


que a Lei de L774 não havia remediado ou despido da iniquidade que tal ato
configurava.
Os hereges só deveriam ser castigados com penas extraordiniárias: decla-
rados infames e inábeis paraofícios e dignidades, metade de seus bens aplicados
em obras públicas e piedosas. Desapareceria de vez o confisco. As penas fiscais
eram reprovadas por não parecer decente nem justo que o Fisco se completasse
e enriquecesse com os delitos dos homens. Poderiam ainda os hereges ficar
presos paÍa serem doutrinados, por 4 ou 8 anos. Se tivessem propagado
oralmente ou por escrito seus elros, seriam presos ou degredados paÍa fora do
Reino por 5 ou 10 anos.

A pena de morte continuou em vigor apenas para os heresiarcas, dogma-


tistas confessos, obstinados e pertinazes ou negativos, depois de se terem
reunido as provas legais. Manda relaxar os réus que não denunciassem os
cúmplices, manda relaxar por indícios os heresiarcas diminutos, e os que
revogavÍìm suas confissões, desde que houvesse prova da culpa. Isso er4 no
tempo, condenado por todos os humanistas, filósofos, políticos e canonistas. O
título que trata desses assuntos é o dos Confitentes, diminutos e revogantes,
ponto em que o Regimento se toma rigorista e decretalista demais.

Ao Tribunal, caberia apenas a declaração da pena e não sua execução,


sendo esta entregue à Relação. O costume, alicerçado nas Ordenações Afonsi,
nas e Manuelinas, era a remessa dos réus e seus processos aos Desembargadores
que cumpririam as sentenças dos bispos. O Regimento, por sua vez, ordena
apenas a remessa das sentenças que deveriam ser executadas pelos Ministros.
Na Relação, os Desembargadores eclesiásticos eram adjuntos nas causas capi-
tais, não eram relatores.

O envio das sentenças à Relação prendia-se ao princípio de que não se


podia matar um vassalo sem conhecimento do Rei, coúecimento direto ou
através de tribunal competente. Isso era importante para acabar com o ódio à
Inquisição, e conservá-la no futuro. Instalara-se nova sensibilidade religiosa,
mas isso não pressupunha mudanças radicais. A intenção era conservar a
instituição. A tomada de medidas eivadas de praticidades é rèflexo da cultura
vigente. No mesmo sentido, se insere a exposição das prisões à visitação dos
que assim o desejassem. As prisões do Santo Oficio deveriam ser <<públicas e
patentes e por todos poderão ser vistas>>. Procurava-se dirimir o ódio ao
Tribunal por ter mantido, por tantos séculos, cárceres secretos. Mais: tenta ainda
o projeto de Regimento acabar com o preconceito contra a Inquisição, amea-
çando com cadeia, por 20 dias, aqueles que injuriassem os que tivessem sido
chamados à Mesa.

RIHGB, Rio de Janeiro, 157(392): 497-571, jul./set. 1996. s69


Sônia Aparecida de Siqueira

Quanto ao castigo, mudava o posicionamento. Não se abria mão dele,


mesmo depois de arrependimentos e confissões. Neste ponto, o Regimento se
afastava do humanitarismo do Evangelho que manda receber os pecadores
verdadeiramente contritos. Relapsos, hereges e reincidentes eram tratados de
maneira diversa.

.Há no Regimento de frei Inácio um título curioso: Dos hereges tolera-


dos."'Nisto se afasta dos anteriores ao fazer concessões aos hereges eshan-
geiros. Procura ressuscitar a tolerância relativa vigente no país em recuados
tempos de convivência com mouros e judeus. A tolerância era visüa como
direito majesüático.
Parece ter o relator partido do axioma Haereticum non error, sed etoris
pertinaciafacit para redigir o Título XX, que restinge o conceito de herege.
Por suposição, ninguém poderia ser tido ou julgado como herege. Explica-se,
portanto, porque foram supÍessas as formas diferentes de abjuragão em
forma, de vehemente, de leve fundadas nas presenças de suspeitas leves, -
veementes e violentas -
da heresia.

Quanto aos indícios e às presunções, deviam os Inquisidores se guiar pelas


disposições do Código Criminal: títulos Dos indícios e presmções e Crimes
ocultos e Prova dftcil São proscritas neles a doutrina das presunções necessá-
rias ou de direito, no Santo Oficio chamada de <<vehemente>r e das presunções
provadas, que se chamavam <<violentas>> oujuris et de juri,levando à abjuração
formal. Mostra-se que não há indivíduos certos ou indubitríveis, nem presunção
t2io forte em matéria criminal que não possa desvanecer, por prova contiária,
bem como que é injusto fingir e ter esta ou aquela presunção, por mais forte
que ela seja.

Instala-se o princípio de que não é prova a presunção que se tira da fama


pública, dos maus costumes e vícios do acusado, da sua freqüência e comuni-
cação com os hereges. O Santo Ofïcio perdia com isso sua maior fonte de
informações.
I
O Título XXXVI manda publicar o Regimento: que aparecesse ao domínio
público, em abono da Justiça. Não obstante, declara não ser crime duvidar da
Justiça e da retidão do Santo Oficio ou de qualquer outro tribunal.
O direito do tempo admitia processos acusatórios, denunciatórios e inqui-
\
sitórios, tratados especificamente no Código Criminal. No Santo Oficio e no
Foro Criminal, admitiam-se e mandavam-se fazer denúncias debaixo de certas

135 Título IX do Regimento citado.

570 R IHGB, Rio de Janeiro, 157(j92): 497-57 I, jul./set. 1996.


A disciplina davida colonial

penas canônicas e civis, porque o público não podia sabertudo e era conveniente
fosse instruído.
Embora permitidas no Foro Secular, eram proibidas no Santo Ofício as
devassas ou inquirições gerais, por ser esse procedimento alheio às regras
ordinrárias de Direito e desnecessrârio dado seu campo de atuação que era o
religioso. O Promotor só poderia acusar pessoas que tivessem praticado crimes
públicos e notórios, quer na Justiça secular, quer na da Inquisição. Embora não
explícita, a fonte dessa determinação parece ter sido Inocêncio III no Capítulo
X)(IV do De acussatione. Eram necessárias provas perfeitas para a pronúncia.
Em sum4 o Regimento de frei Inácio de São Caetano parece ter absorvido
mais fundamente as liúas mestras da Ilustração ibéric4 na sua rever€ncia pelo
Estado, destinado arealiz.ar e propagar, despoticamente, as luzes paÍaafelici-
dade de todos. Tudo isso realizado num clima de transigência com os precon-
ceitos nacionais e com as condições da vida portuguesa. Tal como o anterior,
fez concessões. Reforma não suprime, suaviza, não elide. E paga seu preço às
vigências da cultura barroca.
Muitas das determinações dos dois últimos Regimentos fossem elas
referentes a seus quadros, ou aos seus procedimentos foram fermentos da -
-
destruição do Tribunal inquisitorial. No Regimento pombalino, porque alterou
práticas antigas, no projeto escrito por Pascoal de Mello, porque sugeriu um
aprofundamento de outros comportamentos. Um e outro ficaram a atestar
mudangas na instituição, explicáveis pelo clima cultural que se alterara um
pouco. Mudanças que foram tornadas realidade pelo Regimento do Cardeal da
Cuúa e que ficaram na intenção no Regimento de frei Inácio de S. Caetano.
Mas, nem por isso foram menos significativas na medida em que evidenciam
disposições de alterar o que existia.
Certo, os Regimentos do décimo oitavo século ajustaram-se ao clima
cultural e à mentalidade que adquiria novos contornos. Isso não lhes tira a
característica de terem sido peças essenciais do Santo Ofício e este, âncora
política da manutenção da identidade nacional, assente sobre a homogeneidade
dos cspíritos e a fidelidade ao Catolicismo. Sem desvincular direito penal e
religião, refletiram o clima cultural do Ocidente. E, em Portugal, o jeito
específico de ser europeu e ocidental. Por isso, se sucederam e são espelhos a
refletir a dinâmica vital do Império português. Podem ser periodizados: os dois
primeiros deixaram entrever a instalação do Barroco, o terceiro, o Barroco na
sua plenitude, o quarto, a Ilusfração mitigada da Península lbérica, mais
acentuada no projeto do quinto e último Regimento do Santo OÍIcio.

R IHGB, Rio de Janeiro, I 5 7 (392) : 497-57 I, jul./set. I 996. 571

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