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a.157
n.392
jul./set.
1996
INSTITUTO IIISTÓRICO E GEOGRÁFICO BRASILEIRO
Avenida Augusto Severo, I Glória CEP 2002 I -040
- Rio de Janeiro -
- DIRETORTA
(t996
Pre sidente :
-Amore97\
V/chling
Ie l/ice-PresidenÍe: Newton Lins Buarque Sucupira
? Vice-Presidenre: Mário Antônio Barata
COMISSÃO DAREVISTA
Carlos Wehrs Ester Caldas Bertoletti Homero Senna
- -
CEPHAS (Comissão de Estudos e Pèsquisas Historicas) Secretária: Miridan Britto Knox
Falci -
REVISTA
DO
rNsTrruro Hrsróruco
E
GEOGRAFICO BRASILEIRO
Hocfrcit, ut longos àrent berc gesta per armos.
Et possint serâ postqitateÍrui.
CEP:20021-040
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Rio de Janeiro, RJ
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Brasil
- - 1
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Fax(021) 252-4430 ,
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COPYNGHT @ Instituto Histórico e Geográfico Brasileiro
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Tiragem: 1.000 exemplares
Impresso no Brasil Printed in Bruil
Trimestral
Título varia ligeiramente.
Números de 1-4 formando um volume.
rssN 01014366
l. História Periódicos. I. Instituto Histórico e Geográfico
Brasileiro. -
t.
Estado de Sua Majestade
- 1640 693
.f) Regimento do Santo Oficio da Inquisição dos Reinos de Portugal,
i, ordenado com o real beneplácito e régio auxílio pelo erninentís-
{ simo e reverendíssimo s"nhor cardeaÍda Cuúa.dos Conselhos de
! Bstado e do Gabinete de Sua Majestade, e Inquisidor-Geral nestes
' Reinoseemtodososseusdomínios E85
\ -1774-
; g) Regimento do Santo Oficio encomendado ao Inquisidor-Geral, D.
; Frei Ignácio de São Caetano, do Conselho da Raiú4 seu confes-
sor e ministro assistente no despacho 973
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-DOCI]MENTOS
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i os REGTMENTOS DA TNQUSTÇÃO
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a) Apresentação
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f A DISCPLINA DA VIDA COLONIAL:
? os REGTMENTOS DA INQUTSTÇÃOr
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A ação do Santo Oficio no Brasil prende-se à tônica que dominou a vida
6 colonial: a integração da terra ao Império dos Avis, através da implantação nela
da cultura portuguesa. Cultura que se transmudou ao longo dos Séculos XVI-
XVII e do Século XVIII: do Barroco à Ilusüação.
Na criação de uma réplica do mundo português, aquém-mar, impôs-se o
Direito, que se converteu, <obviamente, num instrumento de aplicação à
cambiante realidade cotidiana dos valores tidos por universais e permanentes>>.
No Brasil, vigiram tríplices leis: leis régias, leis eclesiásticas e leis inquisito-
riais, que, muitas vezes, se misturaram para atender às exigências de dois
planos: o da defesa da ortodoxia da lgreja, e o da defesa da unidade das
consciências, do Trono. Interesses e objetivos de ambas as instituições se
imbricavam no concreto da vida cotidiana. Reforma Católica e Absolutismo,
aliados. Duas realidades metropolitanas projetavam-se sobre o mundo colonial,
atenuadas, diversificadas pela distância e pela mentalidade que se ia definindo
no mundo novo que se criava.
Não obstante a impregnação religiosa da sociedade da colônia, esta, pelos
componentes de sua população, pelas estruturas modernizadas que erigiq
acabou desafiando a religião idealizada por Trento, e flexibilizando a autorida-
de do rei.
A nova sociedade constituída, burguesa, escravagista, multirracial, era
impermeável as radicalizações, pelas tendências inovadas dos membros que a
Í
)
í I Além dos regimentos usados pelo Santò Oficio Português, incluiu-se o Projeto de
F Regimento elaborado no Reinado de d. Maria I.
t j
Professora Titular da Universidade de São Paulo e da Universidade do Rio de Janeiro
(LJNI-Rio).
ü Sócia-Conespondente do IHGB.
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I
I
)
Sônía Aparecida de Siqueira
investigações e os processos.
Para definir-se presença do Santo Ofïcio na Colônia, é de mister que se
conheça a legislação, a fim de avaliar-se seu impacto na vida dos homens. Essa
necessidade se impõe na medida em que há um vazio entre <<o modelo ideolô
gico, cuja defesa se encomendou à lnquisigão, e a punição concreta dos que o
rejeitaram.> Além disso, os historiadores da instituição e do mundo colonial
têm apenas privilegiado os comportamentos dos indivíduos que pelo Tribunal
passarÍÌm ou que foram, mesmo a distância, tisnados por ele. Faltam análises
mais densas sobre o Tribunal, sua alçada e as regras do exercício de sua
autoridade. Ponto de partida é o estudo de seus <Regimentos), nervos vitais da
Inquisição.
O Santo Ofïcio da Inquisição contra a herética pravidade e apostasia
inseriu-se em Portugal exatamente no momento dapassagem do Renascimento
paÍa o Barroco. Configurada pela mentalidade do tempo, a refletir-se em cada
aspecto de sua existência, é exemplo institucional de um período da história do
Ocidente. Portanto, é de mister ver-se a história do Santo Oficio em suasi
conexões com sua época" isto é, com os séculos da Modernidade.
Importa a reconstituição da atnosfera mental do tempo, quando a religião
era valor vinculado à vida coletiva, a sugerir ou a comandar a empresa de se
vencer o mal pelo bem. Mal e bem conforme aqueles homens, os definiam,
haurindo inspirações gerais que dominavam motivos, conceitos, estilos de vida,
comportamentos.
Cada época elabora um plano de unidade que é condição de sobrevi-
vência da sociedade com seus caracteres -próprios. Cria-se, assim, um
-
<<sistema mentab> que aprisiona os indivíduos como numa cerca e nutre as
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intolerâncias que o modelam. Esse <sistema mentab> pode sofrer rupfuras. Com
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b+.j essas rupturas, lidou o Ocidente, e dentro dele, Portugal, no fim do Século XV
i e primeiras décadas do XVI.
O descortínio de novos mundos e de outros povos fora convite para
È repensar a realidade e a condição humana. Implicara na renovação das inteli-
i
{ gências, dos costumes, das idéias, dos sentimentos e do pensamento. Abrigara
í desafios à inteligênciq o tratamento racionalista dos dados. Fixara uma idéia
do progresso: superar a Idade Média. Na ordem político-social, o Estado
procurava substituir a Cristandade. Ruía, aos poucos, o mundo teocêntrico,
t garantido pela autoridade da Santa Sé, do clero, da tradição. Concepções novas
$ dos filósofos enlaçavam-se com opiniões novas dos políticos. Contra os tomis-
I tas e escotistas, levantavam-se os nominalistas, buscando liberar a razão das
afirmações da fé. Havia uma forte tensão espiritual, resultante de conflitos
i
íntimos. As fermentações críticas rompiam a unidade do pensamento, libera-
í vam uma disparidade que, por sua vez, engendravam a instabilidade dos
iì espíritos. O teste da liberdade, o imperativo das opções que se multiplicavam
acabou por aninhar o desassossego até a angústia. Tentando recuperar o
Cristianismo, pela volta as fontes puras, mediante enriquecimento pelas filoso-
fias antigas, paraa reconstrução do edificio, havia-se atingido seus alicerces,
seus fundamentos, e, com isto, paradoxalmente, abalara-se o próprio edifïcio.
Arazão, intentando servir à crença, ameaçava sacrificar a crença a serviço da
razão.
(
500 R IHGB, Rio de Janeiro, 157(392): 497-57l,jul./set. 1996.
A disciplina davida colonial
Os Regimmtos
)
Apesar de tantos juízos que conem sobre o Santo OÍicio, o esfudo de sua
legislação, de seus procedimentos, de sua jurisprudência ainda está por ser feito
por historiadores do direito. Podemos, enfretanto, perceber, quanto à sua
legislação, que ocorria uma síntese das tendências do tempo, uma espécie de
confluência das correntes do direito, a refletir aquela dualidade congênita que
o filiav4 de um lado, à autoridade tradicional da lgreja, e, de outro, à tutela do
Estado moniárquico nacional.
Somente uma cuidada análise comparativa, em relação ao Direito Canôni-
co e às Ordenações do Reino, ao direito espanhol contemporâneo, permitiria
conclusões seguras.
Entrementes, podemos rastreaÍ, na legislação, traços daquela dualidade
fundamental, razáo da força e da plasticidade da Inquisição, mas também
barreira à invenção de um direito proprio.
Aplicava o Santo Oficio as disposi@es repressivas do Direito Canônico contrò
hereges, com apoio da legislação régi4 temperando-se com as pro(es progressi-
vamènte vertidas nos Esrlos6 e com a Jurisprudência. Teoricamente não se
configurou um Direito Inquisitorial autônomo. No decorrer da existência do
Tribunal, a conjugação desses vários elementos gerou um corpo de direito
adaptado aos imperativos do tempo. A competênciaratione materiaeiaalémdo
sentido esfrito e formal de heresia: incluía os pecados que, mesmo indiretamente,
constituíssem um perigo para a fe coletiva. Numa faixa onde o direito e a moral
mais de perto se entrelaçavam, dado o seu caniterpreventivo e exemplar, abrangia
também as suspeições de heresia e procedia contra ausentes e defuntos.
A cada passo,fazia sentir a Santa Sé que o Santo Ofïcio eÍa uma entidade
sujeita à sua autoridade, sobretudo naqueles primeiros tempos do Século XVI,
quando ainda se superpuúam o poder eclesiástico e o civil, antes da hiperfrofia
darcaleza.
No heâmbulo, dizia: "Se cada dia com diligênciatemos cuidado de amparar os Ministros
da Igreja os quais Deus Nosso Senhor nos encomendou tanto, e não os temos recebido
debaixo do nosso amparo. Quanto maior cuidado e diligêneia nos é necessário por naqueles
que se ocupam do Santo Oficio da Inquisição contra a herética pravidade, para que sendo
livres de todo perigo debaixo do amparo da inviolável autoridade da nossa Santa Sé
Apostólica ponham em execução quaisquer cousas tocantes a seu oÍïcio, para a exaltação
da fé católica", 1509. BibliotecaNacional de Lisboa Santo OÍïcio T XXVII (n. 1537) pp.
2l-22v.
8 ANTI, Gaveta II, 2-l l. Publ. in Gavetas da Torre do Tombo. Lisbo4 1960 l, p.202.
9 Idem, ll, 2-9. Idem, p. 197.
l0 Idem, Il, l-25. Idem, p. 68.
17 Tanto podiam advogarno Reino os bacharéis em Direito Civil quanto em Direito Canônico.
Ordeirações Filipinas, Liv. I, tít.48.
t8 Ordenações Filipinas, Liv. I, tít. 9.
l9 Idem,Liv. V, tít.l.
20 Iden,Liv.ll,Í(t.9,4.
2t Idem,Liv.II, tít 6.
22 Idem,Liv.III, tít. 64 e Liv. IV, tít. 68 e 69.
23 Este aspecto de identificação do poder real com o eçlesiástico, na ação inquisitorial, foijá
anotado por Lea na Espanha: <.,.O que deu à Inquisição Espanhola sua peculiar e terrívçl
eficiênci4 foi a perfeição de sua organização e a combinação da misteriosa autoridade da
Igreja com o poder secular da Corte... Na Espanha porém a Inquisição representava não
apenas o Pap4 mas tambóm o Rei; tiúa praticamente as duas espadas a espiritual e a
I -
temporal...>Lea R. Charles: history of the Inquisition of Sparz. N.York, 1905, T II p. 62.
A obra de Eymérico, considerado o mais notavel dos inquisidores medievais, era tida como
o mais completo, sistemático e autorizado de todos os manuais dessa natureza. Foi impressa
emRomaem 1587.
27 Reclamavam os çrisüios.novos contraos procedimentos dos Inqúsidores ao Rei, aoNúncio e
ao Papa. A úundante correspondência do tempo regisFou provas disso. Exemplos: Resposta
de D. João III a uma carta do Cardeal Santiquato por causa dos cristãosnovos, 1536. ANïT,
Gavetall, l-28,publ.nasGavetasdaTorredoTombo,p.T4;Parecerquesedeusobreapretensão
que tiúam os cristÍlos-novos de que se publicassem as testemuúas em causas da Inquisição.
1546. Idem,II, l-8, p. 35; Resposta dada pela Inquisição aos capítulos que os cristãos-novos )
\
apresentaraÍn ao núncio. 1541. Idem, II, 2-3 I p. 24 I . Resposta que a Inquisição deu sobre os
apontamentos que os cristÍlos-novos tiúam dado a D. João III, pedindo-lhe cousas e
queixandose de agravos recebidos. Idem,II, l-21, p. 45,
<Regimento da Santa tnquisição>. 3-8-1552. In Arquivo Histórico Português. Lisboa
1907,T Y ,p.272. Refere-se a esse Regimento, Inocencio Francisco da Silv4 in Dicioruirio
Bibliográfico Pornguês, aÍtigo (Regimentos do Santo OfIcio. Lisboa>. 1862, T VII, p. 53;
Martins dos Carvalhos: <Os Regimentos da Inquisição em Portugab in O Conimbricense.
Coimbra.9-10-1869; Medes dos Remédios: Os judeus portugueses perante a legislação
inquisitorial in Biblos. Coimbra. 1929. Vol. I, fasc. II, p. 515.
29 (...nos casos que em ele não forem expressos sigam a disposição do direito, conforme a
Bula da Santa Inquisição...> Regimento de 1552.
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Sônia Aparecida de Siqueira
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32 Regimento de 1613.
33 Publicado em 22-10-1640: Regimento de D. Francisco de Casfo.Impresso pela Inquisição
por Pedro Craesbeçk. Publicado também por Furtado de Mendonça rn Narrativa da
perseguição de Hipólito José Furtado de Mendonça. Londres. l8l l, vol. II.
Regimento ordenado pelo Cardeal da Cunh4 conftrmado em l-9-1774 por D. José I em
Alvará com força de lei. Impresso no mesmo ano na Oficina de Miguel Menescal da Cost4
Impressor do Santo Oficio. Também publicado por Furtado dc Mcndonç4 op. cit.l,p.l54.
35 D. Luis da Cunha, por exemplo, no seu Testamento Político (Lisboa,l943 p. 82), sugeria
que se dessem aos judeus, mesmo depois de batizados, a liberdade de viver a lei judaica-
Luis Antonio Vemey, em caÍta de 25-10-1765'ao Minisfo plenipotencituio ern Rom4
Francisco de Almeida e Mendonça referia-se ao Santo Oflcio: <...a Inquisição, Excelênci4
será sempre um obstáculo terrível ao bom gosto das ciências, e Íro progresso, e inüodução
de muitas ouras cousas necessárias e úteis.> ApudMoncad4 L. Cabral: Um iluminista
português do Século XVIII: Luis Antonio Verney. Coimbra" l94l,p. 157.
lugar dela... e porém sempre enquanto puder ser os Inquisidores nos farão saber quando, e
como querem fazer atal Visitação...)) Regimento de 1552, cap. 5e.
4l TÍt. 2g cap. ls do Regimento de 1613. Tít. I, l, do Regimento de 1640.
42 Regimento dc 1ó13, Tít. IIL cap. 59. Disposição mantida no Regimento de 1640, Liv. I,
Tlt l,2.
43 Regimento de 1613, Tít. I, cap. 6. Regimento de 164O Tít. I, cap. 6.
44 Regimento de 1613, Tlt. I, cap. l-2. Regimento de 1640, Tít. XII, cap. l'13.
<infames de direito>. Sobre eles mandava-se: (<não teúam, nem possam ter,
oficios públicos, nem benefïcios, nem sejam pro_curadores, rendeiros e boticá-
rios, físicos, cirurgiões, sangradores, nem possam ser bombardeiros, pilotos,
nem mestes de naus, nem navios, nem possam tÍazor, nem fagam sobre si, e
em suas pessoas, e vestidos, ouro, prata, ou pedraria alguma, nem andem a
cavalo, nem tagam armas, posto que sejam obrigados a tê-las, salvo se for
espad4 depois de dispensados, sob pena de serem por isso castigados por
impenitentes, com as mais penas que parecer...>>46
O estabelecimento da obrigatoriedade de informagões sobre a pureza de
sangue para os oficiais e suas mulheres, bem como para os empregados do Santo
Ofïcio os subalternos indicavam maior intolerância ou a defesa"
conhao-mesmo -
possível assalto a seus quadros, de conversos ou de seus descendentes:
<...tirando-se bastante informação de sua genealogi4 de modo que conste não
ter raça de mouro, judeu nem de gente novamente convertida à Fé...D47
A polícia do Santo Oficio alcançava também o mundo colonial. Volvia
paraas regiões ultramarinas olhos agoramais vigilantes que os do clero comum,
ate o tempo encarregado das fungões repressivas: <Haverámais nos lugares de
Africa, nas flhas da Madeir4 Terceira" São Miguel, Cabo Verde e S. Tomé e
Capitanias do Brasil, um Comissario eum Escrivão aseu caÍgo...> (...Etambém
nos ditos lugares havení os Familiares do Santo Oficio que o Inquisidor-Geral
ordenan>...48
O Santo Oficio crescia. O novo Regimento aumentava o número de seus
oficiais em cada Inquisição. Acrescentara ao Regimento anterior mais um lugar
deNoüário e de Solicitador, passando a contar com 3 Noíários e 2 Solicitadores.
O Regimento de 1640 determina 4 Noúârios e 3 Solicitadores. Quanto aos
Solicitadores, permitia que se criassem novos, se necessário. Instituía outros
cargos: fiês Deputados com salário e quantos o Inquisidor-Geral julgasse
conveniente, sem vencimentos; dois Procuradores paÍa defender os réus; Qua-
lificadores; um Porteiro da mesa do despacho; um Dispenseiro; Guardas
necessiírios para serviço e ministerio dos ciírceres.ae No Regimento de D.
Francisco de Castro, são 4 Deputados (com ordenado e sem ele os mais que
45 Regimento de 1613, Tit. IIL cap. 3. Regimento de 1640, Liv. III, Tít. I, cap. 10.
46 Regimento de 1613, TíL III, cap.4.
47 Regimento de 1613, Tít. I, cap. 2. Regimento de 1640, Liv. I, Tít. l,cap.2.
48 Ibidem. Já em I 594, no entanto, havia familiares habilitados no Brasil, como João Manoe l,
mandado pelo Visitador Heitor Furtado de Mendonça executar a prisão de André Fernandes
Caldeira. ANTT, Inquisição de Lisboa" Proc. ne 8.414.
49 Regimento de 1613, Tit.l,cap.2.
dor: <...e abjurará em público no lugar que parecer aos Inquisidores conforme
a qualidade da dita pessoa... E parecendo aos Inquisidores que vista a qualidade
da pessoa e confissão não deve levar hábito do lugar onde abjurar, se dará conta
disso aoConselho Geral, paraordenaroque formais serviço deDeus...>> Mesmo
a legislação reguladora dapurezadas consciências contagiava-se da preocupa-
ção dominante com o status social.
Os tês Regimentos (dos Séculos XVI e XVII) contiúam determinações
sobre a organizagão judiciária, a marcha do processo e das qualidades requeri-
das dos membros da Inquisição:
exigência darazÃo, mas por alguma utilidade foi introduzido com autoridade
dos chamados a constituir o Direito>.sr
Com a eclosão romanista do Século XIII, que, partindo de Boloúa"
derramou-se pela Europa Ocidental, difundiu-se e institucionalizou-se o Privi-
légio. Fenômeno europeu, de que participou a Península Ibérica.
Em Portugal, o direito romano penetrou na época de D. Afonso II e
firmou-se nos Séculos XfV e XV, haurido diretamente das fontes italianas ou
filtrando-se pelos glosadores de Tolosa e Montpelier. Oficializou-se com a
promulgação do Código do Rei Sábio, de Castel4 na hadução de Jácome Ruiz
Flores de Leys.
-as
Com os legistas, introduziu-se a nova concepção do poder real.s2 A figura
semipatriarcal do soberano a premiar dedicações e lealdades com benesses,
mercês e cessões territoriais, fora progressivamente substituída. Em seu lugar,
surgira a do Rei, fonte da lei, rárbitro dos privilégios que outorgav4 movido
pelas boas razões do Estado, no interesse de facilitar para certas pessoas o
desenvolvimento de suas faculdades, o cumprimento de seus frns, ou garantir-
lhes a colaboração paftÌ o bem comum.
Na Península, gerações de reis concederam e revalidaram isenções e
exceções. Isenções fiscais e de servigo. Direito de foro próprio, ou concessões
que implicavam em distinções puramente sociais, hábitos de ordens militares,
posse de oficios, facilidades de ingresso na carreira militar. Privilégios que
haviam consagrado a posição social de linhagens tradicionais estendiam-se a
membros da alta administração do Reino e da Casa Real seculares e
eclesiásticos -
militares, governadores de praças e capitanias do ultramar,
-
ainda que não fossem de origem nobre.
Os reis portugueses usamm o privilégio como forma de remuneragão de
serviços. Serviços prestados ou por prestar. Serviços ao rei, seúor do Reino
ou defensor da fe.
O rei, chefe da igreja portuguesa no seu aspecto administrativo, por
autorizaçdo explícita ou implícita do Papa, concedia também privilégios a
instituições religiosas ou paraeclesiásticas, ou delegava autoridade paÍa conce-
dê-los. Assim, consentia que o Tribunal do Santo Oficio os desse a seus Oficiais
e Familiares.
53 C/ por exemplo, a Constituição do papa Pio V conüa os que ofendem o Estado, negócio e
pessoas do Santo OÍïcio da Inquisição. Biblioteca Nacional de Lisboa. Santo Ofïcio, p. 22.
54 Breve de qüinqüênio concedido por Paulo III aos 12-2-1539 rl Coletório de Bulas,
Breves..." p. 62; Breve do mesmo pontífice aos 10-10-1543, aos 26-10-1545, aos
25-3-1551 e 14-7-1553. Breve de Pio IV aos 20-4-1560, 16-10-1564. Breves de Pio V de
23-7-1569,20-8-1571. Breves de Gregório XIII, de l0-8-l 575 e 16-4-1580. Breve de Sixto
V de l0-8-1585 e de Gregório XIV de 17-2-1591, respectivamente às pp. 64,66,67,68,
69,70v,74,76v,78, 81, 83, 85 e 87 do Coletório cit.
Mais. Permitiu a Coroa que o Santo Ofïcio tivesse foro próprio, concessão
tanto mais valiosa, quanto porfiava o trono na época em reduzir os privilégios
jurídicos das <ordens>. D. Henrique, em seu Alvará de 20-l-1580, determinou
fossem os Inquisidoresjuízes nas causas dos oÍiciais eminishos do Santo Ofïcio
nas causas crimes em que fossem autores ou réus e nas cíveis sendo réus. Para
os familiares autores ou réus o privilégio continha limitações nos casos
de lesa-majestade - humana, -
nefando, alevantamento ou motim de província ou
povo, quebrantamento de cartas régias ou seguros, rebelião, desobediência aos
mandados régios, força de mulheres ou roubo delas, quebrantamento de casa"
igreja ou mosteiro, queima de campo ou casa com dolo, resistência e desacato
qualificados contra justiças do rei, delinqüência nos ofícios públicos do rei, dos
povos e das repúblicas. Nestes casos, estariam os familiares sujeitos à justiça
secular, como também nas causas crime, quando se tratasse de homicídio
qualificado, falsidade, moeda falsa, e de terem atirado com bestas ou arcabuz.56
Ao Inquisidor-Geral, o Alvaná de D. Henrique, de l8-l-1580, entregou o
conhecimento das causas do Fisco e suas dependências, o que Felipe II
confirmou em 19-4-1596.
55 Coletóriopp. ll2-113.
56 Alvará confirmado em 10-4-1598. In Coletório cit., p. 134.
I.Inquisidores
Provisão de 9-12-1615. Foi depois Bispo de Portalegre, do Porto, Arcebispo de Brag4 Prior
das Espanhas e, por fim, Arcebispo de Lisboa e membro do Conselho de Estado. Autor de
várias obras sobre a história da lgreja em Portugal. Enciclopédia Portuguesa-brasileir4 T
VIII, pp. 269-270.
68 Provisão em26-6-1617 depois de ter sido Inquisidor em Évora. Monteiro, Frei Pedro: op.
cit. loc. cit.
69 Inquisidor de Lisboa em 9-8-1617 depois de ter servido em Coimbra. Religioso arrábido.
Colegial de S. Pedro em Coimbr4 chantre da Sé do Porto, deputado da Inquisição de
Coimbra. Reformador e reitor da Universidade. Bispo de Leiriq e, depois, do Algarve.
Enciclopédia Portuguesa-brasileir4 T XVI, p. 928.
70 Provisão de I l-8-1617 para a Inquisição de Lisbo4 depois de ter servido à Inquisição de
Coimbra. Monteiro, Frei Pedro, op. cit. loc. cit.
7t Provisão em29-8-1617. Deão de Leiria. Bispo da Búia de cuja diocese tomou posse em
19-8-1634. Almeida Fortunato de: História da lgreja em Portugal, T III, 2e p., p. 968.
72 Patente em I l-10-1620. Fora Inquisidor em Coimbra e em Évora. Cônego doutoral da Sé
de Viseu, deputado do Sto. Oficio. Enciclopédia Portuguesa-brasileir4 vol. IV, p. 285.
73 Monteiro, Frei Pedro, op. cit. loc. cit.
na forma exterior dos processos como na imposição das penas, por ser uma e
outra cousa da jurisdição secular e só do Santo Offcio o uso dela por especial
delegação de S. Majestade>. A forma dos processos deveria observar o prescrito
nas ordenagões. Não há mudangas na essência do Regimento anterior, apenas
simplificação dos modos de agir.
2. Deputados
77 Monteiro, Frei Pedro: Católogo dos Deputados do Conselho Geral da Santa Inquisição in
loc. cit.,p.7.
78 Foram feitos Deputados por D. Diogo da SilvA Rodrigo Lopes de Carvalho, doutor em
ambos os direitos, protonotrário apostólico e cônego da. Sé de Evora; João de Melo, doutor
em cânones, depois bispo do Algarve e ao fim bispo de Evora; Gonçalo Pinheiro, licenciado
ern cânones, cônego de Evora; Antonio Rodrigues Monsanto, doutor em ambos os direitos.
Ibidem.
80 Tít. I, cap. 2. Refere-se Íìo cargo também no seu tít. Y, cap-24. Os Regimentos seguintes,
de 1640 e 1774, têm título especlfico para o caÍgo, respectivaÍnente o V e III.
3. Notários
8l Gama Barros, Henrique: História da Administração Pública em Porngal nos Séculos )II
I a XV.Lisboa. 1949, T VIII, caps. 2 e 3, pp. 364 e segs.
i 82 Iden,p.300.
t 83 Ordenações Filipinas, Liv. I, tít. 89.
t 84 Iden,Liv.l,tit.24.
i
Sônia Aparecida de Siqueira
Alves Sotto Mayor, Manoel Antunes, Cosme Antônio, João Campelo, Antônio
Pires, todos capelães do Cardeal Infante D. Henrique; João de Sande, seu
esmoler, e Jorge de Penalva, capelão do rei.85
Os Notrários deviam, principalmente, ter sangue recoúecidamente livre
de máculas. Era imprescindível que fossem cristãos-velhos. As investigações
se processavam no lugar em que nascera e vivia o candidato. Processavam-se
sempre, mesmo que na família já houvesse elemento detentor de patente do
Tribunal. Um caso brasileiro: Alexandre da Costa Aguiar, presbítero do hábito
de São Pedro, nascido e batizado na freguesia do Corpo Santo da Vila do Recife
de Pernambuco, filho do capitão Julião da Costa Aguiar, familiar do Santo
Oficio, teve investigada sua vid4 sangue e condições èconômicas e culturais.só
As testemuúas foram todas vizinhas e amigas da família e atestaram unani-
memente que o habilitando tinha sangue limpo. Atestaram aind4 que vivia de
suas ordens, apesar de ter <<seus bens pahimoniais com que pode passar sem o
exercício de suas ordens>>. Esta informação eru importante. Os membros do
Santo Ofïcio deviam gozar de independência econômica como aval de sua
independência de ação. Não fossem suas posses, o candidato aos quadros da
Inquisição não poderia sequer habilitar-se.
As informações das testemuúas não tinham caráúer obrigatoriamente
decisivo. A Mesa julgava antes de concordar com a expedição de patentes. A
habilitação do pe. Maurício Manoel de Oliveira Mirandao', presbítero secular
de Olinda, que, ao candidatar-se ao cargo de Comissário do Santo Ofício
naquela cidade, foi alvejado por informagões de dupla suspeita de sangue:
mulatice e <<crist2Íonovice>, foi cuidadosamente analisada pelos Inquisidores.
85 Monteiro, Frei Pedro: Catálogo dos Notários da Santa Inquisição. Loc. cit., T III, pp. 466
e segs.
86 ANTT, Santo OÍïcio, maço 9, Proc. n. 89. I
I
87 ANTT, Santo Oficio, maço 1, n. 9.
88 Ibiden.
ì
)
i
4. Solicitadores
9l Ordenações Manuelinas, Liv. I, tít. XXl. Ordenações Filipinas, Liv. I, tít. XXVI.
92 Ordenações Manuelinas, Liv. XXXVI. Ordenações Filipinas,Liv.I, tít. LV.
5. Meirinho
93 Ordenações Afonsinas, I,ll; Manuelinas, Liv. l, tit. 14, e seu regimento, Liv.l, tit. 16;
Ordenações Filipinas, Liv . l, tit. 21.
94 Gama Barros, H: op. cit., T IX, cap. III, pp. 92 e segs.
6. Promotor
99 Ordenações Manuelinas, Liv. I, tít. XXXVIII. Ordenações Filipinas, Liv. I, tít. XLVil.
100 Ordenações Manuelinas.loc. cit. Ordenações Filipinas,Liv.Ill, tít. XXVII, $ lo.
l0l Cí Gigante, J.A. Martins: op. cit, vol. III, p.67.
102 Herculano, Alexandre: História de Portugal. Lisboa. s/d, 3a. ed., T VII, pp. 189 e segs.
também, um magistrado municipal, ora posto pelo rei, ora eleito pelos conse-
lhos. Fidalgo sempre, o alcaide-mor, não residindo no lugar, podia ter um
delegado seu o alcaide menor.
-
Cadavez mais ele foi se tornando um magistrado municipal, na medida
em que a vida se desmilitizav4 perdendo seu prestígio político e social, outrora
fundado na força e na proteção das populações, das quais não raro abusava.
Por muito tempo, conservou, entretanto, suas atribuições históricas, e as
ordenações vieram a regular sua ação como entidade de direito desde que às
funções militares associavam outras de caráter civil.103 Acentuavam-se jáèntão
suas atribuições civis, sobretudo paÍa o alcaide menor, prenunciando-se o que
chamamos o delegado de polícia, responsável pela ordem e pela segurança dos
indivíduos.
O alcaide-mor ainda era então um governador de castelo peto qual dava
homenagem, devendo prover sua conservação, fiscalizadoo contudo, porjuízes
em correição. Prisões nos castelos: respondia pela detenção de malfeitores,
razão para que designasse os caÍcereiros e houvesse as carceragens e as aÍmas
que apreendia. Alongavam-se os encargos decorrentes dessa função: respon-
diam também pelos costumes; tiúa parte nas penas pecuniárias impostàs às
barregãs e aos barregueiros, aosjogadores, aos taverneiros, noturnos, as mu-
lheres que faziam arroidos e, também, aos excomungados. A alcaidaria dava-
lhe, em conseqüência, funções judiciais também.
O Alcaide do Santo Ofïcio parece, todavi4 ser uma versão do alcaide
pequeno, ou simplesmente alcaide. Posto pelo rei, ou apontado pelos Conselhos
para fazer as vezes de alcaide-mor, devia com seus homens jurados <<de dia e
de noite guardar bem as cidades e vilas>> prevenindo <mal, furto ou roubo
algum>>, prendendo infratores, por ordem judicial ou em flagrante, entregando-
os aos carcereiros, e, ao depois, encamiúando-os aos juízes.
Uma de suas atribuições, estatuída nas Ordenações,l0a parece justificar a
pÍesença de alcaide entre os servidores do Tribunal do Santo Oficio. Devia
guardar as audiências e levar os presos aos juízes, sendo-lhe vedado haver
qualquer paga dos ditos que assim levasse. Daí sua autoridade sobre os cárceres
da Inquisição onde estavam os prisioneiros. Apenas, em lugar daqueles homens
jurados que, aos outros alcaides, davam os oficiais da Câmar4 dispunha de
guardas que, sob sua responsabilidade, cuidavam da segurança do Tribunal e
103 Ordenações Manuelinas, Liv. I, tít. LV e LVI. Ordenações Filipinas, Liv. I, tít. LXXIV e
LXXV.
104 Ordenações Manuelinas, Liv. I, tít. LY. Ordenações Filipinas, Liv. I, tít. LXXV, $ 19.
dos presos que estavam em seus cárceres, outrora funções militares de fidalgos,
agora fi.rnções policiais de oficiais da justiça.
Na Inquisição, a atribuição dos Alcaides era guardar os culpados, que
recebia das mãos do Meiriúo, na presença de um dos Notários. Competia-lhe
evitar toda e qualquer comunicação dos presos com o mundo exterior. Obstar,
por exemplo, que recebessem cartas secretas ou que as escrevessem. Impedir
que tivessem avisos vindos de fora. Para isso, deviam vigiar qualquer cousa
que fosse destinada aos presos, quer viesse de fora do cárcere, quer de dentro
dele, com a própria comida. Impressiona essa preocupação de segregação total:
temia-se de fato pudessem os presos obstar a ação da Justiça ou visava-se uma
afirosfera de isolamento que levasse às confissões e denúncias?
A incomunicabilidade dos presos exigia que o Alcaide se furtasse a
qualquer intimidade com os detidos ou com seus parentes. Com o passar dos
anos, a experiência ditou medidas mais rigorosas ainda nesse sentido. O
Regimento de 1613 determinava que neúuma pessoa, de qualquer qualidade,
mesmo sendo Inquisidor, pudesse falar com os presos nos cárceres. Abria-se
exceção apenas para os Inquisidores, em caso de extrema necessidade, mas
sempre com a presença dos Notários. Toda uma série de precauções rodeava
aqueles que tinham necessidade de entrar nas prisões paÍatratar da saúde dos
que nelas estavam retidos: médicos, cirurgiões, ou, evenfualmente, quem viesse
aplicar meziúas. Deviam antes passar pela Mesa do Santo Ofício; ali, jurando
segredo e prometendo não levar ou trazer avisos para os presos. Assim mesmo,
só entravam pessoas que erÍìm recoúecidamente cristãs-velhas e não tinham
sobre si a mais leve sombra de suspeita de sangue impuro. Em geral, em caso
de doença, a Mesa devia ser notificada paÍa que ela mandasse o médico do
Santo Oficio. Este devia dar contentemente informações sobre o curso da
enfermidade para que, eventualmente, no momento oportuno, fosse enviado o
confessor. Mesmo nas visitas do fïsico ou do cirurgião, o Alcaide devia estar
presente.
10. QualiJìcadores
105 Monteiro, Frei Pedro: Origens dos revedores de livros e qualifìcadores do Santo Ofcio in
loc. cit. T IV, p. l.
106 Casfo, pe. José de: Portugal no Concílio de Trento. Lisboa, 1944, vol. ll passím.
107 Monteiro, frei Pedro: Católogo dos revedores de livros.loc. cit., p. 7. Sobre a importáìncia
da colaboração prestada por frei Gaspar dos Reis, V. <Carta do Cardeal D. Henrique>,
publicadapor Antonio Baião inArquivo Histórico Portuguás, T IV, p. 236.
108 Natural de AmaÍante, morador na vila de Micões, bispado de Coimbra. Teólogo confessor
e pregador, de 40 anos mais ou menos. Remedios, Mendes dos:. Um processo sensacional
da Inquisiçao de Coimbra.lz Biblos. Coimbra" 1925. vol. I, fasc. II.
velho assim por parte patern4 como pela materna e porquanto se mostra que
tem os mais requisitos necessiírios...)), foi feito Notário, mas não Comissário
como desejava.lll
A conduta moral era também vigiada. O padre frei José de Santana, por
exemplo, religioso da Reforma Turonense, natural e morador do Recife, no
convento de Nossa Seúora do Carmo, embora tivesse assegurada sua condigão
de cristão-velho, foi reprovado nas diligências de habilitação ao cargo de
Comissário, pelo seu mau proceder. Dele, falaram testemuúas, como fez o
padre Antônio Branco Feneira, dizendo saber, por ouvir, que era menos
exemplar e com notas na vida e procedimento. Ou como o capitiio Manoel
Lopes de Santiago Corrêa, que o achava <<incapaz e insuficiente de ser encar-
regado de negócios de impoúância como são os do Santo OÍicio, por ser
orgulhoso, intencionado e odioso>>. Ou, ainda" como o capiüio Antônio Batista
Coelho, também Familiar, que acreditava o habilitando homem de mau proce-
dimento, menos exemplar e incapaz de negócios de segredo e importância.ll2
Os Comissários recebiam Regimento que juravam obedecer. Dava-se-lhes
cuidadosa pauta para suas ações. Reafirmava-se, insistentemente, a guarda do
segredo, não apenas nos negócios inquisitoriais, mas em tudo, até em cousas
de somenos importância. Quando a Mesa lhes escrevesse com reservas, deviam
responder à margem da própria carta. Quando ouvissem testemunhas, deviam
acrescentar seu parecer sobre os fatos ouvidos, sobre a qualidade das pessoas
inquiridas e sobre o crédito que se podia dar aos seus testemunhos. Isso tudo
devia ser escrito por suas próprias mãos.
Para ajudar os Comissários no desempeúo de suas funções, havia, direta-
mente subordinado a eles, o Escrivão, que, se possível, devia ser pessoa
eclesiástica. Para ocupar tal cargo, devia ter as mesmas qualidades exigidas de
todos os oficiais do Tribunal e escrever em letra bem legível.
Sua obrigação era atender pronta e fielmente às ordens do Comissrário. Nas
diligências, escrever bem e legivelmente tudo o que as testemuúas respondes-
sem sem acrescentar ou diminuir qualquer cousa na substância ou nas palavras.
Eventualmente, faltando o Escrivão, o Comissário devia recoffer a um
eclesiástico idôneo do lugar, ou, em último caso, a um Familiar do Santo Ofïcio.
Em diligências especiais, a Mesa podia indicar o Escrivão que ajudaria o
Comissário, que podia não ser a pessoa que estivesse ocupando o cargo.
12. Capelão
120 Instruções e Regimento para os Revedores que hão de visitar as livrarias por comissões e
mandado do Inquisidor Geral. Bibliotçca Nacional de Lisboa. Reservados. Santo Oficio.
Cód. 1537, T XXV[, pp. l9-19v.
16. Familimes
São Pedro Mártir e honravam seu santo pelos meios habituais a todas as
associagões semelhantes, isto é, com festas è procissões de grande aparato.
A expedição da Carta de Familiar, que permitia o exercício dos deveres e
do gozo dos direitos inerentes ao cargo, estava condicionada ao preenchimento
de certos requisitos que diziam respeito ao caráter, à cultur4 à genealogia e as
posses dos habilitandos. Deviam ser pessoas de bom proceder, confianç4
coúecida capacidade de segredo, que soubessem ler e escrever, possuíssem
fazenda de que vivessem abastadamente, e não caÍregassem em seu sangue
manchas de ascendentes ou colaterais judeus ou mouros. Depois do Século
XVII, acrescentou-se o preconceito contra o sangue mulato. Exigia-se total
puÍeza de sangue. Receava-se que indivíduos presos por laços de parentesco
aos heterodoxos acabassem tolerantes com eles, ou até coniventes. Por isso,
seus oasamentos eram controlados pela Mesa, e não podiam se realizar sem
prévia apuração da condiçiio de cristã-velha da noiva.
Era caprichoso o Santo Oficio na seleção de seus membros, pois sua forç4
seu prestígio, sua boa fama dependeriam do acerto na escolha deles. Escolha
que significava ingresso em um círculo ciumento de sua autoridade e que
dispensava privilégios e ascendentes sociais. Não podia o Tribunal errar no
recrutamento, sob pena de acolher inimigos dentro de suas paredes ou de descer
o nível de suas decisões.
Cercava, pois, o processo de recrutamento de sua gente, de requintes de
cautelas que assegurassem uma filtagem precisa. Um processo inquisitorial,
no bom estilo de seus julgamentos, maÍcava a vida pregressa dos postulantes.
Testemuúas e testemunhas eram convocadas testemunhas fidedignas, bem
-
escolhidas nas camadas superiores da sociedade. Debruçavam-se os Inquisido-
res sobre o passado dos candidatos: passado, presunção para o futuro. As
biografias, montadas com a técnica do inquérito. Inquérito, com roteiro prees-
tabelecido.
A admissão de um Familiar iniciava-se com o pedido do habilitando,
geralmente acompanhado de uma justificação. No processo de Leonardo Mo-
reir4 por exemplo, diziao suplicante
'que na dita vila (Vila Real) e seu termo, e oufos lugares conjuntos
a el4 vivem muitas pessoas da nova nação ejá os anos passados foram
presas muitas pessoas da dita vila e seus arredores pela Inquisição e
saíram condenadas e é necessário haver na dita vila familiares do Santo
Oficio para se fazerem as diligências que lhes forem encarregadas'.123
#
Julgando o pedido, os Inquisidores de Coimbra despacharam, dizendo que:
<Em Vila Real não há mais que um familiar, é vila de muitos vizinhos e de
muita gente da nação, e nela será necessário outro familiar além de um que lá
tem>. Tendo concordado a Mesa com a criação de mais um Familiar, inicia-
vam-se as investigações na terra natal do habilitando, na de seus pais e avós e
no lugar em que morava ao tempo. Convocavam-se testemuúas. Era preciso
saber muito sobre ele. Desencadeava-se entÍio o interrogatorio. Conheciam o
habilitando: há quanto tempo e por quê? Sabiam de seus pais, e desde quando?
E aos avós patemos e maternos? Indagagões genealógicas, inclusive de legiti-
midade: pretendia-se saber se erauma linhagem de cristiios-velhos, sem (man-
chas> de judeu, mouro, mulato, Era a pureza dos quadros que se havia de
garantir contra infiltrações de <infectas nações>. Que as testemuúas não
tivessem inimizade com a família" e dissessem o que sabiam, inclusive (rumo-
res>> de ligações suspeitas. Algum parente penitenciado ou incurso em infâmia
ou pena vil, inutilizaria todas as pretensões. Seleção de reputações para além
dos arquivos do próprio Tribunal.
E, afinal, coúecida a ascendência, indagava-se sobre o próprio habilitan-
do, sua vida e seus costumes, sua discrição e prudência para julgar, sua
capacidade de ler e escrever, a fim de que pudesse se inteirar das ordens que se
lhe dessem através de cartas ou de, evenfualmente, em caso de inexistirem
Comissários na localidade, exercer essa função em alguma diligência. Mas
também era de mister indagar-se se vivia <<com bom tratamento correspondente
à sua pessoa e estado>> se era ou tiúa sido casado e tiúa filhos, inolusive algum
ilegítimo. Aptidões morais e intelectuais por certo. Statrc social também.
lnvocava-o Antônio Botelho Pimentel, de Vila Real, pedindo o lugar de
Familiar, porque em sua terra <há muita gente de nação e não há mais de que
um familiar e este mecânico, e que tem pouco de seu, enquanto ele, suplicante,
é homem rico e honrado>>.124
Tudo era de se saber, mas o que importava mais que tudo era a fam4 essa
fama" que, paÍa a mentalidade barroca, compondo a aparência compuúa a
realidade, fama pública e notória a opinião coletiva. Fraquezas secretas,
- -
guardadas na intimidade, mal sabidas, sobretudo se não envolvessem quebras
de ortodoxia, arraúões de gentilidades, nem convívios com gente de nação,
por certo seriam fraquezas apenas. A notoriedade das faltas ou máculas, os
compromissos com pessoas suspeitas de infiéis isso o Santo Oficio não iria
-
tolerar. Os homens podiam ser homens, mas tinham de ter fama de pureza de
fé. E do sangue. A suspeita podia fazer tanto dano neste particular, quanto a
realidade. Para fins sociais, os homens eram o que se pensava que fossem.
Realismo: como saber o que erÍrm de fato? E que importava o que fossem, se
representavam com justeza seu papel no teatro da vida? Se representavam bem,
diria a platéia de testemuúas. Barrocos eram barrocos conseqüentes.
O número de Familiares do Santo OÍïcio existente em cada localidade era
variável. Dependia das necessidades do Tribunal, a critério do Inquisidor-Ge-
ral. O número de pedidos de ingresso aumentou quando, no Século XVII, o país
atravessou um momento de arrocho no zelo pela espiritualidade vigente.
Manteve-se elevado no Século XV[I, quando muitas pessoas viam no ingresso
nos quadros inquisitoriais uma forma de forçar as bareiras sociais e de
ascender. A presença de artesãos e oficiais mecânicos munidos de patente de
Familiar prova-o, como prova também que o Santo Ofício cedia às pressões do
dinamismo social do tempo. Ao ideal de cruzado da fé, os candidatos a
Familiares tiúam a entusiasmá-los, outro, bem humano, de diferenciação
social, porque o Santo Oficio distribuía privilégios.
glória e vaidade, dois fortes valores do tempo. Era uma forma cômoda e
agradável de ser barroco.
As funções dos Familiares obedeciam a uma rigorosa escalonação hierár-
quica. Nas inquirições ou prisões, eram meros executores de ordens recebidas.
Refletiam a persistência do clima de ordenação que os envolvia. Seu Regimento
dizia taxativamente <<irão aos Comisrários e Visitadores das Naus sendo chama-
dos por eles, e farão o que lhes disserem. Vindo à Mesa algum Familiar...
esperará na sala até o mandarem entrar e sem isso não entrará na saleta...>>
Cabia-lhes a vigilância das terras em que viviam e da execução das penas e
penitências dos alcançados pelalnquisição. Porque eram pessoas damais estrita
confiança, eram considerados os Familiares capazes de guardar fielmente os
presos, se necessiírio, bem como de reter cs bens a eles seqüestrados, até o
momento de enhegá-los ao Alcaide.
Os Familiares podem ter significado para uma certa facção da população
portuguesa a cripto-judaica um fator de insegurança social: temia seus
-
òhos- e seus ouvidos. No -
entanto, o aÍã com que se buscou tal cargol26
parece-nos que ficou a indicar uma integração real da população nos ideais
defendidos pelo Santo Ofïcio.
126 Só no Tribunal de Lisboa habilitaram-se 26.074 pessoas, cujos processos ainda existem no
ANTT.
)
Havia, sim, brotada dallustração, um respeito ao DireitoNatural, mas não a
visto de modo absoluto a permitir alterações da ordem sociopolítica. No {
entanto, no campo individual, neúuma pessoa poderia ser castigada sem ser \
ouvida e julgada. Por isso, foram introduzidas certas modificagões na orgânica
processual. Uma delas dizia respeito ao nome das testemuúas, aos lugares e
ao tempo dos delitos que passavam ao coúecimento do réu. Seu ocultamento
representaria violência contra o direito natural e divino explícito no Gênesis,
cap-.-.3. Causa possess, et propert, cap. l, e nas Ordenações, Livro I, tít. 9, $
12.tzt
128 ldem,Tlt.l.
129 ldem, Liv. IIL Tít. XI.
r30 Tiúam sido sugeridas a renovação do direito civil, com um novo código de leis nacionaig
a publicação de um Bulário Régio, contendo todas as Bulas, Breves e Resçritos do Papa
como meio de resolver os conflitos com a Santa Sé, a reforma das Concordatas, a brevidade
dos processos e a orgânica das sentenças.
l3l Título I.
Embora aprovado pela Rainha, o Regimento de frei Inácio não foi posto
em execução. Talvez por ter mais sintonia com as idéias do Iluminismo a que
dera tons mais carregados, ou, o que é mais provável, por já se ter iniciado a
decadência do espírito de estrita ortodoxia que acelerou o fim do Santo Ofïcio.
í
O problema do trânsito da inffimia, pela heresia dos pais, volta a preocupar
os espíritos. :
(
O crime de heresia não é capital, por sua natrneza. Os filhos podem ser
bons cristãos e, portanto, não devem ser tidos por infames ou sofrer qualquer
penas canônicas e civis, porque o público não podia sabertudo e era conveniente
fosse instruído.
Embora permitidas no Foro Secular, eram proibidas no Santo Ofício as
devassas ou inquirições gerais, por ser esse procedimento alheio às regras
ordinrárias de Direito e desnecessrârio dado seu campo de atuação que era o
religioso. O Promotor só poderia acusar pessoas que tivessem praticado crimes
públicos e notórios, quer na Justiça secular, quer na da Inquisição. Embora não
explícita, a fonte dessa determinação parece ter sido Inocêncio III no Capítulo
X)(IV do De acussatione. Eram necessárias provas perfeitas para a pronúncia.
Em sum4 o Regimento de frei Inácio de São Caetano parece ter absorvido
mais fundamente as liúas mestras da Ilustração ibéric4 na sua rever€ncia pelo
Estado, destinado arealiz.ar e propagar, despoticamente, as luzes paÍaafelici-
dade de todos. Tudo isso realizado num clima de transigência com os precon-
ceitos nacionais e com as condições da vida portuguesa. Tal como o anterior,
fez concessões. Reforma não suprime, suaviza, não elide. E paga seu preço às
vigências da cultura barroca.
Muitas das determinações dos dois últimos Regimentos fossem elas
referentes a seus quadros, ou aos seus procedimentos foram fermentos da -
-
destruição do Tribunal inquisitorial. No Regimento pombalino, porque alterou
práticas antigas, no projeto escrito por Pascoal de Mello, porque sugeriu um
aprofundamento de outros comportamentos. Um e outro ficaram a atestar
mudangas na instituição, explicáveis pelo clima cultural que se alterara um
pouco. Mudanças que foram tornadas realidade pelo Regimento do Cardeal da
Cuúa e que ficaram na intenção no Regimento de frei Inácio de S. Caetano.
Mas, nem por isso foram menos significativas na medida em que evidenciam
disposições de alterar o que existia.
Certo, os Regimentos do décimo oitavo século ajustaram-se ao clima
cultural e à mentalidade que adquiria novos contornos. Isso não lhes tira a
característica de terem sido peças essenciais do Santo Ofício e este, âncora
política da manutenção da identidade nacional, assente sobre a homogeneidade
dos cspíritos e a fidelidade ao Catolicismo. Sem desvincular direito penal e
religião, refletiram o clima cultural do Ocidente. E, em Portugal, o jeito
específico de ser europeu e ocidental. Por isso, se sucederam e são espelhos a
refletir a dinâmica vital do Império português. Podem ser periodizados: os dois
primeiros deixaram entrever a instalação do Barroco, o terceiro, o Barroco na
sua plenitude, o quarto, a Ilusfração mitigada da Península lbérica, mais
acentuada no projeto do quinto e último Regimento do Santo OÍIcio.