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Com a palavra, Lê Lygia: Por que experimentar Bojunga?

“Todo dia a minha imaginação comia, comia e comia; e de barriga


assim toda cheia, me levava pra morar no mundo inteiro: iglu, cabana,
palácio, arranha-céu, era só escolher e pronto, o livro me dava. Foi
assim que, devagarinho, me habituei com essa troca tão gostosa que –
no meu jeito de ver as coisas – é a troca da própria vida; quanto mais
eu buscava no livro, mais ele me dava.”

Essas palavras são da escritora Lygia Bojunga, gaúcha, sobre o ato da leitura em
sua vida, e cuja literatura se volta aos anseios, preocupações e olhares da criança. Não
apenas a criança como “um ser em desenvolvimento como qualquer outro”, mas
também como sujeito em construção dependente do meio social para crescer em
maturidade e experiências.

Lygia é uma artista multifacetada: apaixonada pelo teatro, escreveu peças e


novelas de rádio, além do seu trabalho como atriz. Até que chegou à literatura: e ali foi
pega de jeito. Com seu trabalho de escritora, ganhou prêmios nacionais, como o Jabuti,
e internacionais, como o HANS CHRISTIAN ANDERSEN, o mais tradicional prêmio
internacional de literatura para crianças e jovens. Além disso, atualmente, com a receita
advinda dessas premiações, fundou a casa Lygia Bojunga, onde realiza com as crianças
um trabalho de incentivo à leitura, tais como o “Paiol de Histórias”, apoio a bibliotecas,
bolsas de estudo, plantio de árvores para preservação de floresta, encontros literários,
entre outros.

Sendo assim, por que não dar às crianças a voz que elas querem ouvir? Meu
primeiro contato com a escritora deu-se a partir de Corda Bamba. Esse texto teve
adaptação para filme. A história acontece a partir do ponto em que os pais de Maria,
equilibristas, morrem quando caem da corda bamba, e a menina presencia tudo. Depois
do acidente, a pequena Maria bloqueou suas memórias. Viajou pra dentro de si mesma.
E “esqueceu” o momento do acidente. Foi salva pela sua capacidade de criar. A corda
bamba, neste caso, é a metáfora utilizada por Lygia para ilustrar o difícil caminho que
Maria tem que percorrer para acessar seu inconsciente, através de “portas” de várias
cores onde ela acessa suas memórias. A cada memória, portas novas. É claro, o
ambiente no qual a garota vive não ajuda: depois da tragédia, é criada pela avó, uma
mulher que acha que pode comprar tudo (até mesmo uma vida). A corda de Maria leva-
a ao revisitar do passado e ao caminhar para um futuro. Mas como assim, crianças tem
passado? Crianças tem inquietações? Crianças percebem? É claro que sim.

Na dissertação de Alice Pauli,

A personagem é conduzida à psicanálise por meio do jogo de portas


coloridas. Sempre partindo de sonhos, o narrador permite uma leitura
tanto fantástica quanto verídica do texto, sem prejudicar sua estrutura
global. A passagem do plano da realidade para o plano fantástico não
é bem delimitada. Não aparece discriminado de forma concreta o que
acontece realmente com Maria e o que ela sonha, mantendo-se a
história também indecisa entre o realismo e o fantástico. É graças a
esse recurso que a natureza infantil da narrativa se preserva,
permitindo que seu leitor-criança a compreenda, tanto enquanto ação
como enquanto introspecção.

Desta forma, percebemos que Bojunga é habilidosa em dizer não dizendo. De


escrita acessível, simples e fluída, a escritora percorre o universo infantil de maneira a
falar na sua língua, embora se percebam outras temáticas nas entrelinhas, mas que para
a criança todo aquele conteúdo é repassado de maneira natural, tão natural que é como
aprender sem se dar conta disso, mas sentir o aprendizado internamente, criando raízes
no pensamento. “O que a autora propõe é uma leitura do real que passa pelo imaginário,
e não o imaginário como um fator de alienação do real. O imaginário visto como um
meio de revelação do real”. Desse modo, sabemos que o texto de Lygia chega até a
criança, porque foi feito para ela e se faz com ela.

Tal como diz Ludimilla Santos,

A centralização do enredo na criança permitiu a construção de


personagens que buscam a conquista desse espaço social, realizando,
quase sempre, deslocamentos (físicos ou simbólicos) na construção de
sua identidade e na expressão de seus sentimentos. Ao assumir a
posição de protagonista ou narradora na literatura, a personagem
criança possibilitou o enriquecimento do quadro literário
contemporâneo por oferecer novas alternativas de ação e elaboração
dos elementos narrativos, inclusive em sua relação mais profunda e
autêntica com outros personagens (adultos ou seres humanizados).

Assim, foi pela primeira vez que vi numa literatura infantil a criança fora do
estereótipo de “ser inconsciente” ou “uma miniatura dos seres humanos” ou a imagem
infantil e da própria infância como um acontecimento feliz, sem maiores dramas. É
como se o ato de crescer não envolvesse a formação da maturidade logo nos primeiros
anos. Há um claro desaparecimento do ato de “estar crescendo” direto para o ato de “já
estar crescido” e “ter que crescer”. Crianças nunca são escutadas. Em Lygia, elas são
pessoas independentes. Não em sentido material, mas naquele no qual já são passíveis
de alguma criticidade do mundo a partir da sua visão. A infância pode e deve ser
problematizada, não? Seria a infância uma invenção, uma caixinha social para
enquadrar sensações e pensamentos? Por que nos surpreendemos com ações de crianças
realizando “coisas de adulto” ou coisas “que achava que não dariam conta”? Por que a
criança não pode partir do ponto de que é de si mesma? Ressignificar a infância!

Depois segui para A bolsa amarela, a história de uma menina chamada Raquel,
que desestrutura todo o ideal de sua família quando se mostra uma criança com
vontades. Pelo seu contexto familiar opressivo, ela acaba escondendo essas vontades
“polêmicas” numa bolsa amarela, que fica cada vez mais pesada, mais pesada, até que a
menina sente esse peso interferindo cada vez mais na sua vida. Eis as vontades de
Raquel: ser escritora. Ser menino. E crescer. Nas palavras dela:

Se o pessoal vê as minhas três vontades engordando desse jeito e


crescendo que nem balão, eles vão rir, aposto. Eles não entendem
essas coisas, acham que é infantil, não levam a sério. Eu tenho que
achar depressa um lugar pra esconder as três: se tem coisa que eu não
quero mais é ver gente grande rindo de mim.

E explicando suas razões para querer ser menino, ela diz:

[...] Vocês podem um monte de coisas que a gente não pode. Olha: lá
na escola, quando a gente tem que escolher um chefe pras
brincadeiras, ele sempre é um garoto. Que nem chefe de família: é
sempre o homem também. Se eu quero jogar uma pelada, que é o tipo
do jogo que eu gosto, todo mundo faz pouco de mim e diz que é coisa
pra homem; se eu quero soltar pipa, dizem logo a mesma coisa. É só a
gente bobear que fica burra: todo o mundo tá sempre dizendo que
vocês é que têm que meter as caras no estudo, que vocês é que vão ser
chefe de família, que vocês é que vão ter responsabilidade, que – puxa
vida! – vocês é que vão ter tudo [...] Eu acho fogo ter nascido menina.

Quero dizer, que papéis são esses? Quem instituiu interceder na vontade
alheia? Há um senso comum a esse respeito, onde a criança é invisibilizada das suas
vontades, e mais: há apenas um ideal de infância e de criança, o ideal hegemônico
confortável, que não cause constrangimento. Mas alguém já perguntou o que uma
criança pensa sobre família? O que é uma família? Como ela se sente dentro da sua
família? Se sua mãe é a chefe da família? O que ela pensa disso? Penso: Como o meio
cultural e social onde vive influencia nos seus desejos? É preciso ir além da pergunta “o
que quer ser quando crescer” e perceber que todo mundo já é alguma coisa, todo mundo
já existe de alguma maneira.
Raquel é o exemplo para esse impulso de vontade, essa potência de realização
que não nos é dada na infância, mas que como não poderia deixar de ser é o alicerce, é
onde tudo está aflorando, mas que muitas vezes é podado sem nenhuma escuta, sem
sensibilização para escutar não querendo responder, mas querendo ouvir. Raquel se
depara com outras realidades, como a do galo Afonso que não quer comandar um
galinheiro cheio de galinhas ou a do galo Terrível, que tem o cérebro costurado por seus
donos para que nunca pense por si mesmo. Neste livro, Lygia também questiona a
representação familiar defasada e coloca gentil e sutilmente questões de gênero e
percepções de si. Assim, nos perguntamos quais silêncios fazem parte da vida de uma
criança, como ela lida com o mundo alheio a ela mesma, tratando-a de um jeito incapaz
e bobo. Que forças subjetivas existem em um ser constantemente sobrepujado ao ideal
de “ter que crescer”? Estamos querendo lidar com um mote de ressonâncias que irá
desconstruir essa infância e refazê-la não como “outra infância”, mas sim “infâncias
diferentes”, na ideia de muitas infâncias e muitos seres-crianças. Desaperceber-se da
“infantilidade” que hoje é sinal de imaturidade, despreparo, impossibilidade.
Eu poderia falar de outros livros que li da autora, tais como Os colegas, um
grupo de animais diferentes entre si que se unem numa situação de miséria e
marginalização social, onde a autora revela a importância da amizade e da arte para
resgatá-los, e a evidência da pobreza cada vez mais cega para a sociedade. Angélica,
sobre escapar das “caixinhas sociais” que querem pra você, O sofá estampado, sobre um
Tatu que cava no sofá da gata Dalva, sua namorada, para esconder sua timidez e
insegurança, A casa da madrinha sobre um menino que sai da favela para buscar a “casa
da madrinha”, lugar que imagina que não há pobreza e ele pode escapar da desigualdade
e da dura realidade no qual vive, Meu amigo pintor sobre o encontro de um menino e
um velho pintor, onde temos assuntos como depressão, suicídio e solidão, Paisagem,
sobre a relação entre um menino e sua escritora favorita e Nós Três, livro já mais adulto
sobre um triângulo amoroso trágico. Como se pode perceber, é vasta a riqueza da obra
de Lygia, estes os que conto são os que li. Destaca-se sua abordagem leve dos temas,
lúdica de modo a acessar quem a criança é (porque já foi uma, pode continuar sendo
uma) e não assustá-la com o que diz, a não pesar em nenhum momento tanto na forma
narrativa quanto no caminhar da história e os sentimentos que elas englobam. Da
criança para a criança. Além do mais, salientamos que a obra de Lygia é pouco
conhecida, embora importantíssima. Para encerrar, deixo o momento onde Raquel exibe
a força de seu pensamento numa linguagem fervorosa de, enfim, tomar conta do que é,
do que sente, da autonomia do que pode vir a ser, sem limitações.

“Eu tenho que achar um lugar pra esconder as minhas vontades. Não digo vontade
magra, pequenininha, que nem tomar sorvete a toda hora, dar sumiço da aula de
matemática, comprar um sapato novo que eu não aguento mais o meu. Vontade assim
todo o mundo pode ver, não tô ligando a mínima. Mas as outras - as três que de repente
vão crescendo e engordando toda a vida - ah - essas eu não quero mais mostrar. De jeito
nenhum. Nem sei qual das três me enrola mais. Às vezes acho que é a vontade de
crescer de uma vez e deixar de ser criança. Outra hora acho que é a vontade de ter
nascido garoto em vez de menina. Mas hoje tô achando que é a vontade de escrever. Já
fiz tudo pra me livrar delas.”

“E de repente todo mundo tava lá lutando pra abrir a minha bolsa. Minha. Minha.
Minha! E eu ali sem poder fazer nada. Ah, se eu fosse gente grande! Quem é que ia
abrir a minha bolsa assim à força se eu fosse gente grande? quem?”

“Às vezes a gente quer muito uma coisa e então acha que vai querer a vida toda. Mas aí
o tempo passa. E o tempo é o tipo de sujeito que adora mudar tudo. Um dia ele muda
você e pronto: você enjoa de ser pequena e vai querer crescer.”

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