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MICHEL FOUCAULT

,
O CORPO UTOPICO,
AS HETEROTOPIAS
POSFÃCIO DE DA N IEL DEFERT
Dados tot9rnaciona1s a. Ç~tAlogaylo na Publicaç!o (ÇJP)
(Ç!mara 8raa1le1 ~- do Livro, SP, Br•~il)

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O ec:po ~ló'$>!CO ; A!'. r.~to:Z:otcpl~& I :~l.cho:l
re-U"Ct.Olt ~ PQ$Hc;,o de ~l'ti$:. :»fen ;
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Esu_., lvr<>. P'..Jbli.C<:<IO no ~1'1\l>to do
O CORPO U TÓPICO, o:rogra-nr. de a wdloO à pu.:>'ICacá3
AS HETEROTOPIAS 20t3 C~ rios !)fum,....ond de Anó~ade
com pO$fácio d e Daniel Defert da t-•edit'.lté~ da M&i$on-de Frónce
contou cO""'' o npoio co
....,,nistê•io
t Nouvel es t:d~t;ons Ugnq.$, 2009 f•af'lcés di7is RélatOes E){t.ncres e
;: I\· i edições. 20l3 E.Jrcpelas.

Ed çao biltngve: Português .. FrbflCés C:t oo.,.fe.ge, P.Jbl ~ dans o eedre du


Programme d A>de !lia p~_,bicatlon
ISBN 978·85·66943-07•8
2013. CaNos Ort.l~mOf'lO de Alldr&ee
"O corpo utóoilco• e "Ai het~rOtQplas" tbo dê \a Médioth~ue de la ,....,a-son
de F(<!l"oce. bé"'!é",cle du SQutiEr"l
dU4S confe:êneia$ tadiofól"oleas, protoraéas
du "'1..,1$te.-e fra~çus des Affa!res
por Michel Foucault. nos dias 7 o 21 de
E.traf'9~f~ et E\Jr®~nne$,
dezerr.b1o de 1966. no fr<\l'l(:e-Cutturo
EGtas confer4,,das for~ ct>;.eto de vma
ed.'Çâo f-"n áudio com o titulO de ..Ot~as
e f'l(rtero :o~s" (INA•Mémotres vives.
200<'1). A conferênd& ''As heterot~s" foi
pub;icada em toxto numa «<ição redUz.kSa,
,emta pqiO autor, iob o tftu~ d~ •'Oes 7 O CORPO UTÓPICO
espaoet$ autres", pela ~ditiOI\S Gallim&rd.
em o .ts et Écrits, votw. 1994.
.4111 MéDJaTllêQUe
Embofa adote a ma ior~ i$;o;;; usos
liiP' MaisondeFra,r>ee 19 AS HETEROTOPIAS
ed tori<~ 'G do âmb-ito brasileiro • flnlandêt..
n•l edlcôes niO segue n~essa,..iamet~te Este I <'r-o-cof"tou com o opolo dos
as convenç-ões das ioseituiçôé$ Progra"'&$ d'e a.Jx' 10 à publleaçllo do 33 POSFÁCIO,
norm~Uvas, pOis consider• a edicão 1,1m IO$ttt•Jto Fr&ncés
tfat>all•..o de ctlaç:3o Q\1~ deve irlloraglr por Dàniel Defert
com~ pWta'idado de tlngu~9éns e a 03t ouvrag-& b tánéfidé d.J-sout~n
esp<l'Cificid&C!o de cad~ obra pubticada. des ?togram«''<!S d"aide & la
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A reproclu(!Ao par<i~t'l deste livro sem fins 2- ~i"'press.\o


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O CORPO UTÓPICO 7

Do lugar que Proust ocupa, docemente, ansiosamente, sempre


e a cada vez que desperta, deste lugar, se meus olhos estiverem
abertos, não posso mais escapar. Não que ele me paralise- pois,
afinal, posso não apenas mover-me e remover-me, como posso
também "movê-Lo", removê-Lo, mudá-lo de localização- apenas
isto: não posso deslocar-me sem ele; não posso deixá-lo lá onde
ele está para ir-me a outro lugar. Posso até ir ao fim do mundo,
posso, de manhã, sob as cobertas, encolher-me, fazer-me tão
pequeno quanto possível, posso deixar-me derreter na praia, sob
o sol, e ele estará sempre comigo onde eu estiver. Está aqui, irre-
paravelmente, jamais em outro lugar. Meu corpo é o contrário
de uma utopia, é o que jamais se encontra sob outro céu, lugar
absoluto, pequeno fragmento de espaço com o qual, no sentido
estrito, faço corpo.
Meu corpo, topia impla~ável. E se, por sorte, eu vivesse com
ele em uma espécie de familiaridade gasta, como se com uma
sombra, ou com as coisas de todos os dias que no fim das contas
não enxergo mais e que a vida embaçou; como as chaminés, os
tetos que, todas as tardes, se ondulam diante de minha janela?
No entanto, todas as manhãs, a mesma presença, a mesma ferida;
d~senha-se aos me~s olhos a inevitável imagem imposta pelo
espelho: rosto magro, ombros arcados, olhar míope, sem cabe-
los, realmente nada belo. E é nesta desprezível concha da minha
cabeça, nesta gaiola de que não gosto, que será preciso mostrar-
-me e caminhar; é através desta grade que será preciso falar, olhar,

0 CORPO UTÓPICO
8 pinturas e as esculturas dos túmulos onde jazem os que desde a 9
ser olhado; sob esta pele, deteriorar. Meu corpo é o lugar sem
recurso ao qual estou condenado. Penso, afinal, que é contra ele Idade Média prolongam na imobilidade uma juventude que não
e como que para apagá-lo que fizemos nascer todas as utopias. mais passará. Existem agora, em nossos dias, os simples cubos
A que se deve o prestígio da utopia, a beleza, o deslumbramento de mármore, corpos geometrizados pela pedra, figuras regulares
da uropia? A utopia é um lugar fora de todos os lugares, mas um e brancas sobre o grande quadro negro dos cemitérios. E, nessa
lugar onde eu teria um corpo sem corpo, um corpo que seria belo, cidade de utopia dos mortos, eis que meu corpo torna-se sólido
límpido, transparente, luminoso, veloz, colossal na sua potência, corno uma coisa, eterno como um deus.
infinito na sua duração, solto, invisível, protegido, sempre trans- Porém, a mais obstinada talvez, a mais possante dessas utopias
figurado; pode bem ser que a utopia primeira, a mais inextirpá- pelas quais apagamos a triste topologia do corpo, nos é fornecida,
vel no coração dos homens, consista precisamente na utopia de desde os confins da história ocidental, pelo grande mito da alma.
um corpo incorporai. O país das fadas, o país dos duendes, dos A alma funciona no meu corpo de maneira maravilhosa. Nele
gênios, dos mágicos, este é o país onde os corpos se transportam se aloja, certamente, mas sabe bem dele escapar: escapa para ver
tão rápido quanto a luz, o país onde as feridas se curam com um as coisas através das janelas dos meus olhos, escapa para sonhar
bálsamo maravilhoso na duração de um relâmpago, o país onde quando durmo, para sobreviver quando morro. Minha alma é
se pode cair de uma montanha e reerguer-se vivo, o país onde se bela, é pura, é branca; e, se meu corpo lamacento- de todo modo
é visível quando se quiser, invisível quando se desejar. Se existir não muito limpo- vier a sujá-la, haverá sempre uma virtude,
um país feérico, é justamente para que eu seja príncipe encan- haverá uma potência, haverá mil gestos sagrados que a restabele-
tado e que todos os janotas graciosos tornem-se peludos e vilões cerão na sua pureza primeira. Minha alma durará muito tempo
como pequenos ursos. e mais que muito tempo, quando meu corpo vier a apodrecer.
Mas há também uma utopia que é feita para apagar os corpos. Viva minha alma! É meu corpo luminoso, purificado, virtuoso,
Essa utopia é o país dos mortos, são as grandes cidades utópicas ágil, móvel, tépido, viçoso; é meu corpo liso, castrado, arredon-
que nos foram deixadas pela civilização egípcia. Afinal, o que são dado como uma bolha de sabão.
as múmias? Elas são a utopia do corpo negado e transfigurado. A Eis então que em virtude de todas essas utopias meu corpo
múmia é o grande corpo utópico que persiste através do tempo. desapareceu! Desapareceu como a chama de uma vela que se
Existiram também as máscaras de ouro que a civilização micênica assopra. A alma, os túmulos, os gênios e as fadas o massacraram,
colocava sobre os rostos dos reis defuntos: utopia de seus corpos fizeram-no desaparecer num átimo, sopraram sobre seu peso e
gloriosos, possantes, solares, terror dos exércitos. Existiram as sua fealdade, e o restituíram a mim deslumbrante e perpétuo.

0 CORPO UTOPICO O CORPO UTÓPICO


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Mas, na verdade, meu corpo não se deixa reduzir tão facil- na pressão do colchão sobre o divã quando me deito, mas que 11
mente. Afinal, ele tem suas fontes próprias de fantástico; possui, somente surpreenderei pelo ardil de um espelho; e o que é este
também ele, lugares sem lugar e lugares mais profundos, ainda ombro, cujos movimentos e posições conheço com precisão,
mais obstinados que a alma, que o túmulo, que o encantamento mas que jamais poderei ver sem me contorcer terrivelmente?
dos mágicos. Possui, também ele, suas caves e seus celeiros, tem O corpo, fantasma que só aparece na miragem dos espelhos e,
ab:igos obscuros e plagas luminosas. Minha cabeça, por exem- ainda assim, de maneira fragmentária. Preciso, verdadeiramente,
plo, ah, minha cabeça: estranha caverna aberta para o mundo dos gênios e das fadas, da morte e da alma, para ser ao mesmo
exterior por duas janelas, duas aberturas, sei disso, pois as vejo tempo indissociavelmente visível e invisível? Ademais, este corpo
no espelho; ademais, posso fechar uma ou outra separadamente. é leve, é transparente, é imponderável; nada é menos coisa que
E, no entanto, essas aberturas não são senão uma só, pois não ele: ele corre, age, vive, deseja, deixa-se atravessar sem resistência
vejo diante de mim senão uma só paisagem, contínua, sem divi- por todas as minhas intenções. É verdade! Mas somente até o
são nem corte: E dentro desta cabeça, como sé passam as coisas? dia em que adoeço, em que se rompe a caverna de meu ventre,
Elas entram lá - e estou muito seguro de que as coisas entram em que meu peito e minha garganta se bloqueiam, se entopem,
na minha cabeça quando eu olho, pois o sol, se for demasiado se fecham. Até o dia em que a dor de dentes estrala no fundo da
forte e me ofuscar, dilacera até o fundo do meu cérebro - e, no minha boca. Então, aí então, deixo de ser leve, imponderável etc.;
entanto, essas coisas que entram dentro da minha cabeça perma- torno-me coisa, arquitetura fantástica e arruinada.
necem no exterior, pois vejo-as diante de mim e eu, por minha Não, verdadeiramente não há necessidade da mágica nem
vez, devo me adiantar para alcançá-las. do feérico, não há necessidade de uma alma nem de uma morte
Corpo incompreensível, corpo penetrável e opaco, corpo para que eu seja ao mesmo tempo opaco e transparente, visível
aberto e fechado: corpo utópico. Corpo absolutamente visível, e invisível, vida e coisa: para que eu seja utopia, basta que eu
em um sentido: sei muito bem o que é ser olhado por alguém da seja um corpo. Todas aquelas utopias pelas quais eu esquivava
cabeça aos pés, sei o que é ser espiado por trás, vigiado por cima meu corpo encontravam muito simplesmente seu modelo e seu
do ombro, surpreso quando percebo isso, sei o que é estar nu; no ponto primeiro de aplicação, encontravam seu lugar de origem
entanto, este mesmo corpo que é tão visível, é afastado, captado no meu próprio corpo. Enganara-me, há pouco, ao dizer que as
por uma espécie de invisibilidade da qual jamais posso desven- utopias eram voltadas contra o corpo e destinadas a apagá-lo:
cilhá-lo. Este meu crânio, atrás do meu crânio, que posso tocar elas nascem do próprio corpo e, em seguida, talvez, retornem
com meus dedos, mas nunca ver; este dorso, que sinto apoiado contra ele.

O CORPO UTÓPICO
O CORPO L TO PICO
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Em todo caso, uma coisa é certa, o corpo humano é o ator Ouçamos, por exemplo, este conto japonês e a maneira com
principal de todas as utopias. Afinal, uma das mais velhas utopias que um tatuador faz passar para um universo que não é o nosso
que os homens contaram para si mesmos não é o sonho de corpos o corpo da jovem que ele deseja: "O sol dardejava seus raios
imet;lsos, desmesurados, que devorariam o espaço e dominariam sobre o rio e incendiava o quarto de sete esteiras. Seus raios
o mundo? É a velha utopia dos gigantes, que encontramos no refletidos na superfície da água formavam um desenho de ondas
coração de tantas lendas, na Europa, na África, na Oceania, na douradas sobre o papel dos biombos e sobre o rosto da jovem
Ásia, essa velha lenda que há tão longo tempo nutre a imaginação profundamente adormecida. Seikichi, após puxar a divisória,
ocidental, de Prometeu a Gulliver. tomou nas mãos seus instrumentos de tatuagem. Durante alguns
O corpo é também um grande ator utópico, quando se trata de instantes, permaneceu mergulhado em uma espécie de êxtase.
máscaras, de maquiagem e de tatuagem. Mascarar-se, maquiar-se, Era então que ele saboreava plenamente a estranha beleza da
tatuar-se não é exatamente, como se poderia imaginar, adquirir jovem. Parecia-lhe poder ficar sentando diante desse rosto imó-
outro corpo, simplesmente um pouco mais belo, melhor decorado, vel durante dezenas e centenas de anos sem jamais sentir cansaço
mais facilmente reconhecível: tatuar-se, maquiar-se, mascarar-se nem fastio. Como outrora o povo de Mênfis embelezava a mag-
é sem dúvida algo muito diferente, é fazer com que o corpo entre nífica terra do Egito com pirâmides e esfinges, assim Seikichi,
em comunicação com poderes secretos e forças invisíveis. Máscara, com todo amor, queria embelezar com seu desenho a pele viçosa
signo tatuado, pintura depositam no corpo toda uma linguagem: da jovem. Aplicou-lhe então a ponta de seus pincéis coloridos
toda uma linguagem enigmática, toda uma linguagem cifrada, que segurava entre o polegar, o anular e o pequeno dedo da mão
secreta, sagrada, que evoca para este mesmo corpo a violência do esquerda e, à medida em que as linhas eram desenhadas, picava-
deus, a potência surda do sagrado ou a vivacidade do desejo. A -as com a agulha que segurava na mão direita."
máscara, a tatuagem, a pintura instalam o corpo em outro espaço, E se considerarmos que a vestimenta sagrada ou profana, reli-
fazem-no entrar em um lugar que não tem lugar diretamente no giosa ou civil faz com que o indivíduo entre no espaço fechado
mundo, fazem deste corpo um fragmento de espaço imaginário do religioso ou na rede invisível da sociedade, veremos então que
que se comunicará com o universo das divindades ou com o uni- tudo o que concerne ao corpo - desenho, cor, coroa, tiara, vesti-
verso do outro. Por ele, seremos tomados pelos deuses ou seremos menta, uniforme - tudo isso faz desabrochar, de forma sensível
tomados pela pessoa que acabamos de seduzir. De todo modo, a e matizada, as utopias seladas no corpo.
máscara, a tatuagem, a pintura são operações pelas quais o corpo é Mas talvez fosse preciso descer mais, por baixo da vestimenta,
arrancado de seu espaço próprio e projetado em um espaço outro. talvez fosse preciso atingir a própria carne, e veríamos então que,

O CORPO UT0PICO O CORPO UTÓ PICO


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em certos casos, oo limite, é o p róprio corpo que rerorna seu As crhtnças, afinal, levam muiro tempo para saber que têm lS
poder utópico eontra si e faz enrrar rodo o espaço do religioso um corpo. Durante meses, durante mais de um ano, elas têm
e do sagrado, rodo o espaço do outro m LUldo, rodo o espaço do apenas um corpo disperso, membros, cavidades, orifícios, e wdo
contramundo, no interior mesmo do espaço que IJ1e é reservado. isso só se organ iza, tudo isso liremlmenre coma corpo somente
Enrão, o corpo, na sua maredalidade, na sua carne, seria como o na imagem do espelho. De modo mais estranho a inda, os gregos
produro de seus próprios f.1nrasmas. Afinal, o corpo do dançarino de Homero não tinham Ltma palavra para designar a unidade d o
não é justamente llm corpo dilatado segundo um espaço q ue lhe
corpo. Por paradoxal que seja, diante de Troia, abaixo dos muros
é ao mesmo tempo interior e exterior? E os drogados também, e defendidos por Heimr e seus companheiros, não havia corpos,
os possuídos; os possuídos, cujo corpo torna-se inferno; os estig- mas braços erguidos, peitos intrépidos, pernas ágeis, capacetes
matizados, cujo corpo torna-se sofrimento, resgate e salvação, cinrilan res em cima de cabeças: não havia corpo. A palavra grega
ensanguen mdo paraíso.
para dizer corpo só aparece em Homero para designar cadáver.
Verdadeiramente, enganara-me, há pouco, ao crer que o É. o cadáver, portamo, o cadáver e o espel ho que nos ensinam
corpo jamais estivesse em oLmo lugar, que era um aqu i irreme- (enfim, que ensinaram aos gregos e agora ensinam às c rianças)
diável e que se opunha a roda utopia.
que remos um corpo, que este corpo rem uma forma, que esta
Meu corpo está, de faro, semprecrn ourro lugar, ligado a codos forma rem um contorno, que no contorno há uma esp essura, um
os ourros lugares do mundo e, na verdade, está em omm lugar peso; em suma, que o corpo ocupa um lugar. Espelho e cadáver
que não o mundo. Pois é em torno dele que as coisas estão d is- é que assegt~ram um espaço para" experiência p rofundamente e
postas, é em relação a de - e em relação a ele como em relação a origina.riameme utópica do cot-po; espelho e cadáver é que silen-
um soberano - que há um acima, um abaixo, uma direita, uma ciam e screniz.am, encerrando em uma clausura - que, para nós,
esquerda, um diante, um acrás, um próximo, um Jonginqt~o. O hoje, é selada- esr.a grande cólera utópica que corrói e volariliza
corpo é o ponto zero do mundo, lá onde os caminhos e os espaços nosso corpo a rodo instante. Graças a eles, graças ao espelho e
se cruzam, o corpo está em parte alguma: ele está no coração do ao cadáver, é que nosso corpo não é pura e simples utopia. Ora,
mundo, este pequeno Fulcro urópico, a partir do q ual eu sonho, se con sidera rmos qLre a imagem do espelho está alojada para
falo, avanço, imagino, percebo a.~ coisas em seu lugar e também nós em um e$paço inacessível, c que jamais poderemos estar lá
as nego pelo poder i ndefi nido das utopias que imagino. Meu onde estará nosso cadáver, se considerarmos que o espel ho e o
corpo é como a C idade do Sol, não tem lugar. mas é dele que cadáver estão, eles próprios, em um inatingível outro lugar, des-
saem e se irradiam todos os lugares possíveis, reais ou urópieos. cobrimos então que unicamenre as utopias podem f.12er reAui r
nelas mesmas e esconder por um instame a utopia profunda e
soberana de nosso corpo.
Seria talvez necessário dizer rambém que fazer amor é sen-
tir o corpo refluir sobre si, é exjstir, enfim, fora de roda utopia,
com toda densidade, e ntre as mãos do omro. Sob os dedos do
outro que n os p ercorrem, rodas as partes invisíveis de nosso
corpo põem-se a existir, conrra os lábios do o urro os nossos se
tornam sensíveis, diante de sms o lhos semicerrados, nos.so rosto
adquire uma ceneza, existe um olhar, enfim, para ver nossas pál-
pebras fechadas. O amor, também ele, como o espelho e como
a morre, sereniza a utopia de nosso corpo, silencia-a, acalm.a-a,
fecha-a como se numa caixa, tranca-a e a sela. .t p or isso que ele é
parente tão próximo da ilusão do espelho e da ameaça da morte;
e se, apesar dessas duas figuras perigosas que o cercam, amamos
tanto f.1zer amor, é porque no amo r o corpo está aqui.
AS HETEROTOPIAS 19

Há países sem lugar e histórias sem cronologia; cidades, planetas,


continentes, universos, cujos vestígios seria impossível rastrear
em qualquer mapa ou qualquer céu, muito simplesmente porque
não pertencem a espaço algum. Sem dúvida, essas cidades, esses
continentes, esses planetas nasceram, como se costuma dizer,
na cabeça dos homens, ou, na verdade, no interstício de suas
palavras, na espessura de suas narrativas, ou ainda, no lugar sem
lugar de seus sonhos, no vazio de seus corações; numa palavra,
é o doce gosto das utopias. No entanto, acredito que há- e em
toda sociedade - utopias que têm um lugar preciso e real, um
lugar que podemos situar no mapa; utopias que têm um tempo
determinado, um tempo que podemos fixar e medir conforme
o calendário de todos os dias. É bem provável que cada grupo
humano, qualquer que seja, dem~rque, no espaço que ocupa, onde
realmente vive, onde trabalha, lugares utópicos, e, no tempo em
que se agita, momentos ucrônicos.
Vejamos o que quero dizer. Não se vive em um espaço neu-
tro e branco; não se vive, não se morre, não se ama no retângulo
de uma folha de papel. Vive-se, morre-se, ama-se em um espaço
quadriculado, recortado, matizado, com zonas claras e sombras,
diferenças de níveis, degraus de escada, vãos, relevos, regiões duras
e outras quebradiças, penetráveis, porosas. Há regiões de passa-
gem, ruas, trens, metrôs; há regiões abertas de parada transitória,
cafés, cinemas, praias, hotéis, e há regiões fechadas de repouso
e moradia. Ora, entre todos esses lugares que se distinguem uns

AS HETEROTOPIAS
20 dos outros, há os que são absolutamente diferentes: lugares que vivemos. Essa ciência estudaria não as utopias, pois é preciso
se opõem a todos os outros, destinados, de certo modo, a apagá- reservar esse nome para o que verdadeiramente não tem lugar
-los, neutralizá-los ou purificá-los. São como que contraespaços. algum, mas as hetero-topias, espaços absolutamente outros; e,
As crianças conhecem perfeitamente esses contraespaços, essas forçosamente, a ciência em questão se chamaria, se chamará, já
utopias localizadas. É o fundo do jardim, com certeza, é com se chama "heterotopologia".
certeza o celeiro, ou melhor ainda, a tenda de índios erguida no É preciso fornecer os primeiríssimos rudimentos dessa ciência
meio do celeiro, ou é então - na quinta-feira à tarde - a grande que está em vias de nascer. Primeiro princípio: não há, prova-
cama dos pais. É nessa grande cama que se descobre o oceano, velmente, nenhuma sociedade que não constitua sua heterotopia
pois nela se pode nadar entre as cobertas; depois, essa grande ou suas heterotopias. Esta é, sem dúvida, uma constante de todo
cama é também o céu, pois se pode saltar sobre as molas; é a flo- grupo humano. Na verdade, porém, essas heterotopias podem
resta, pois pode-se nela esconder-se; é a noite, pois ali se pode assumir, e assumem sempre, formas extraordinariamente variadas,
virar fantasma entre os lençóis; é, enfim, o prazer, pois no retorno e talvez não haja, em toda a superfície do globo ou em toda a his-
dos pais se será punido. tória do mundo, uma única forma de heterotopia que tenha per-
Na verdade, esses contraespaços não são apenas invenção das manecido constante. Poder-se-ia talvez classificar as sociedades,
crianças; acredito nisso muito simplesmente porque as crianças por exemplo, segundo as heterotopias que elas preferem, segundo
jamais inventam coisa alguma; são os homens, ao contrário, que as heterotopias que elas constituem. As sociedades chamadas pri-
inventaram as crianças, que lhes cochicharam seus maravilhosos mitivas, por exemplo, têm lugares privilegiados ou sagrados ou
segredos; e, em seguida, esses homens, esses adultos se espan- proibidos- como nós mesmos, aliás; mas estes lugares privilegia-
tam quando as crianças, por sua vez, buzinam aos seus ouvidos. dos ou sagrados são, em geral, reservados aos indivíduos "em crise
A sociedade adulta organizou, e muito antes das crianças, seus biológica". Há casas especiais para os adolescentes no momento
próprios contraespaços, suas utopias situadas, esses lugares reais da puberdade; há casas especiais reservadas às mulheres na época
fora de todos os lugares. Há, por exemplo, os jardins, os cemité- das regras; outras para as mulheres em trabalho de parto. Em
rios, os asilos, as casas de tolerância, há as prisões, as colônias de nossa sociedade, as heterotopias para os indivíduos em crise bio-
férias do Clube Mediterrâneo, e tantos outros. lógica pouco a pouco desapareceram. Observemos que ainda no
Pois bem, sonho com uma ciência - digo mesmo uma ciên- século XIX havia colégios para os rapazes, havia também o serviço
cia- que teria por objeto esses espaços diferentes, esses outros militar que, sem dúvida, desempenhavam esse papel: era preciso
lugares, essas contestações míticas e reais do espaço em que que as primeiras manifestações da sexualidade viril ocorressem

AS HETEROTOPIAS AS HETEROTOPIAS
22
em outro lugar. E, para as jovens, pergunto-me se, afinal, a via- exemplo da heterotopia (o cemitério é absolutamente o outro- 23
gem de núpcias não constituía, ao mesmo tempo, uma espécie -lugar), nem sempre desempenhou es~e papel na civilização
de heterotopia e de heterocronia: era preciso que a defloração da ocidental. Até o século XVIII, ele ficava no centro da cidade,
jovem não ocorresse na mesma casa onde ela nascera, era preciso disposto lá no meio, bem ao lado da igreja; na verdade, não lhe
que esta defloração ocorresse, de certo modo, em parte alguma. era atribuído nenhum valor solene. À exceção de alguns indiví-
Mas essas heterotopias biológicas, essas heterotopias de crise, duos, o destino comum dos cadáveres era muito simplesmente
desaparecem cada vez mais e são substituídas por heterotopias de serem jogados na vala, sem respeito ao despojo individual. Ora,
desvio: isto significa que os lugares que a sociedade dispõe em suas é curioso que, no mesmo momento em que nossa civilização tor-
margens, nas paragens vazias que a rodeiam, são antes reservados nou-se ateia, ou ao menos, mais ateia, isto é, no final do século
aos indivíduos cujo comportamento é desviante relativamente à XVIII, começou-se a individualizar os esqueletos. Cada qual pas-
média ou à norma exigida. Daí as casas de repouso, as clínicas sou a ter direito ao seu caixão e à sua pequena decomposição
psiquiátricas, daí também, com certeza, as prisões. Seria preciso pessoais. Por outro lado, todos esses esqueletos, todas esses
acrescentar-lhes, sem dúvida, as casas de recolhimento, pois, afi- caixões, todos esses sepulcros, todas essas tumbas, todos esses
nal, a ociosidade em uma sociedade tão atarefada quanto a nossa cemitérios foram postos à parte, fora da cidade, no seu limite,
é como um desvio - desvio aliás, que acaba por ser um desvio como se se tratasse ao mesmo tempo de um centro e um lugar
biológico quando ligado à velhice e, creia-se, desvio constante de infecção e, em certo sentido, de contágio da morte. Mas-
para todos aqueles, pelo menos, que não têm a discrição de mor- não se pode esquecer- tudo. isso só ocorreu no século XIX, mais
rer de infarto nas três semanas após a aposentadoria. precisamente, no decurso do Segundo Império. Com efeito, é
Segundo princípio da ciência heterotopológica: no curso de sob o reinado de Napoleão rn que os grandes cemitérios pari-
sua história, toda sociedade pode perfeitamente diluir e fazer sienses foram organizados no limite das cidades. Seria preciso
desaparecer uma heterotopia que constituíra outrora, ou então, citar também - e, neste caso, teríamos, de certo modo, uma
organizar uma que não existisse ainda. Por exemplo, há cerca sohredeterminação da heterotopia - os cemitérios para tuber-
de vinte anos, a maioria dos países da Europa tentou fazer desa- culosos; não penso naquele maravilhoso cemitério de Menton
parecer as casas de prostituição, com sucesso reduzido, como se onde foram sepultados os grandes tuberculosos que, no final do
sabe, pois o telefone substituiu a velha casa de nossos avós por século XIX, tinham vindo se repousar e morrer na Côte d'Azur:
uma teia fina e bem mais sutil. Em contrapartida, o cemitério, outra heterotopia.
que é para nós, em nossa experiência atual, o mais evidente

A$ H ETEROTOPIAS
AS HETEROTOPIAS
24
Em geral, a heterotopia tem como regra justapor em um Ocorre que as heterotopias são frequentemente ligadas a 25
lugar real vários espaços que, normalmente, seriam ou deveriam recortes singulares do tempo. São parentes, se quisermos, das
ser incompatíveis. O teatro, que é uma heterotopia, perfaz no h eterocronias. Sem d úvida, o cemitério é o lugar de um tempo
retângulo da cena toda uma série de lugares estranhos. O cinema que não escoa mais. D e modo geral, em uma sociedade como a
é uma grande cena retangular, no fundo da qual, sobre um espaço nossa, pode-se dizer que há heterotopias que são heterotopias do
de duas dimensões, projeta-se um novo espaço de três dimen- tempo quando ele se acumula ao infinito: os museus e as bibliote-
sões. Porém, o mais antigo exemplo de heterotopia seria talvez cas, por exemplo. Nos séculos XVII e XVIII, o~ museus e as biblio-
o jardim, criação milenar que tinha certamente no Oriente uma tecas eram instituições singulares; eram a expressão do gosto de
significação mágica. O tradicional jardim persa é um retângulo cada um. Em contrapartida, a ideia de tudo acumular, a ideia de,
dividido em quatro partes que representam os quatro elemen- em certo sentido, parar o tempo, ou antes, deixá-lo depositar-se
tos de que o mundo é composto, no meio do qual, no ponto de ao infinito em certo espaço privilegiado, a ideia de constituir o
junção dos quatro retângulos, encontrava-se um espaço sagrado: arquivo geral de uma cultura, a vontade de encerrar todos os tem-
uma fonte, um templo. E, em torno do centro, toda a vegeta- pos em um lugar, todas as épocas, todas as formas e todos os gos-
ção do mundo, toda a vegetação exemplar e perfeita do mundo tos, a ideia de constituir um espaço de todos os tempos, como se
devia estar reunida. Ora, se considerarmos que os tapetes orien- este próprio espaço pudesse estar definitivamente fora do tempo,
tais eram, na origem, reproduções de jardins- no sentido estrito essa é uma ideia totalmente moderna: o m useu e a biblioteca são
de "jardins de inverno" - compreenderemos o valor lendário dos heterotopias próprias à noss~ cultura.
tapetes voadores, tapetes que percorriam o mundo. O jardim Em contrapartida, há heterotopias que são ligadas ao tempo,
é um tapete onde o mundo inteiro vem consumar sua perfei- não ao modo da eternidade, mas ao mod o da festa: heterotopias
ção simbólica e o tapete é um jardim móvel através do espaço. não eternitárias, mas crônicas. O teatro, seguramente, mas tam-
Era parque ou tapete aquele jardim descrito pelo narrador das bém as feiras, estes maravilhosos sítios vazios à margem das cida-
Mil e uma noites? Vê-se que todas as belezas do mundo acabam des, por vezes mesmo no centro delas, e que se povoam uma ou
por se juntar nesse espelho. O jardim, desde os recônditos da duas vezes por ano com barracas, exposições, objetos heteróditos,
Antiguidade, é um lugar de utopia. Temos a impressão talvez de lutadores, mulheres-serpentes e profetisas da boa fortuna. Mais
que os romanos se situam facilmente em jardins: é fato que os recentemente, na história da nossa civilização, há as colônias de
romanos nasceram, sem dúvida, da própria instituição dos jar- férias; penso, principalmente, nas maravilh osas colônias polinésias
dins. A atividade romanesca é uma atividade jardineira. que oferecem, às margens do Mediterrân eo, três curtas semanas

AS HETEROTOPIA$
A S HETEROTOPIAS
26
de nudez primitiva e eterna aos habitantes de nossas cidades. As
dos escandinavos, purificação somente higiênica, mas que carrega 27
cabanas de Djerba, por exemplo, são parentes, em certo sentido,
consigo todo tipo de valores religiosos ou naturalistas.
das bibliotecas e dos museus, pois são utopias de eternidade- os
Há outras heterotopias que, ao contrário, não são fechadas
homens são convidados a reatar com a mais amiga tradição da
ao mundo exterior, mas constituem p ura e simples abertura.
humanidade - e, ao mesmo tempo, são a negação de qualquer
Todo mundo pode entrar, mas, na verdade, uma vez que se
biblioteca e de qualquer museu, pois não se trata mais, através
entrou, percebe-se tratar-se de uma ilusão e que se entrou em
delas, de acumular o tempo mas, ao contrário, de apagá-lo e vol-
parte alguma. A heterotopia é um livro aberto, que tem, con-
ver à nudez e à inocência do primeiro pecado. H á também, ou
tudo, a propriedade de nos manter de fora. Por exemplo, nas
ames, havia, entre as heterotopias da festa, as heterotopias crôni-
casas do século XVIII na América do Sul, havia sempre, disposto
cas, a festa de todas as noites nas casas de tolerância de outrora,
ao lado da porta de entrada, mas antes da porta de entrada, um
festa que começava às seis horas da tarde, como em La Filie Élisa. 1
pequeno aposento diretamente aberto ao mundo exterior e que
Outras heterotopias, enfim, são ligadas não à festa, mas à pas-
era destinado aos visitantes de passagem; ou seja, qualquer um,
sagem, à transformação, ao labor de uma regeneração. No século
a qualquer hora do dia ou da noite, podia entrar nesse aposento,
XIX havia os colégios e as casernas que deviam fazer de crianças,
podia lá descansar, podia fazer o que quisesse, podia partir no
adultos, de camponeses, citadinos, e de ingênuos, espertos. Em
dia seguinte pela manhã sem ser visto nem reconhecido por nin-
nossos dias, há, sobretudo, as prisões.
guém; porém, na medida em que esse aposento não se abria,
Por fim, gostaria de propor, como quinto princípio da hete-
de modo algum, para a própria casa, o indivíduo ali recebido
rotopologia, o seguinte fato: as heterotopias possuem sempre um
jamais podia penetrar no interior da própria moradia familiar.
sistema de abertura e de fechamento que as isola em relação ao
Esse aposento era uma espécie de heteroropia inteiramente exte-
espaço circundante. Em geral, não se entra em uma heterotopia
rior. Poderia ser comparado à heterotopia dos motéis america-
como em um moinho, entra-se porque se é obrigado (as prisões,
nos, onde se entra com o carro e a amante, e onde a sexualidade
evidentemente), ou entra-se quando se foi submetido a ritos, a
ilegal está ao mesmo tempo abrigada e escondida, mantida afas-
uma purificação. Há até mesmo heterotopias inteiramente con- tada sem, no entanto, deixar de estar ao ar livre.
sagradas a esta purificação. Purificação meio-religiosa e meio-hi-
Enfim, há heterotopias que parecem abertas, nas quais, entre-
giênica, como no hamam2 dos mulçumanos, ou como nas saunas
tanto, só entram verdadeiramente os já iniciados. Acredita-se
I Título do romance de Edmond de Go ncourr, século XJX. [N.T.] que se teve acesso ao que há de mais simples, de mais exposto,
2 Hamam, espécie de banho a vapor mais conhecido como "banho turco". [N.T.]
quando, de fato, se está no coração do mistério; é desta maneira,

AS HETEROTOPIAS
AS t-ETEROTOPIAS
28
pelo menos, que Aragon3 entrava outrora nas casas de tolerân- com sociedades hierarquizadas e militares. Sem dúvida, a mais 29
, cia: "Hoje ainda, não é sem certa emoção colegial que atravesso extraordinária dessas tentativas foi a dos jesuítas no Paraguai.
estes limiares de excitabilidade particular. Neles persigo o grande Com efeito, no Paraguai, os jesuítas fundaram uma colônia
desejo abstrato que às vezes se depreende de certas figuras que maravilhosa onde a vida por inteiro era regulamentada, onde
jamais amei. Um fervor se emana. Nem por um instante penso reinava o regime mais perfeito do comunismo, pois as terras e
no lado social desses lugares. A expressão casa de tolerâncía não os rebanhos pertenciam a todos. Apenas um pequeno jardim era
pode ser pronunciada seriamente." atribuído a cada família, as casas eram dispostas em fileiras ao
É aí, sem dúvida, que encontramos o que de mais essen- longo de duas ruas que se cruzavam em ângulo reto. Ao fundo da
cial existe nas heterotopias. Elas são a contestação de todos os praça central do vilarejo havia uma igreja; em um lado, o colégio;
outros espaços, uma contestação que pode ser exercida de duas no outro, a prisão. Do entardecer ao amanhecer, do amanhecer
maneiras: ou como nas casas de tolerância de que Aragon falava, ao entardecer, os jesuítas regulamentavam meticulosamente toda
criando uma ilusão que denuncia todo o resto da realidade como a vida dos colonos. O toque do angelus soava às cinco horas da
ilusão, ou, ao contrário, criando outro espaço real tão perfeito, manhã, para o despertar; depois, marcava-se o início do trabalho;
tão meticuloso, tão bem disposto quanto o nosso é desordenado, ao meio-dia, o sino chamava as pessoas, homens e mulheres que
mal posto e desarranjado; é como este último que funcionaram, trabalhavam nos campos; às seis horas, reunião para o jantar; e,
ao menos no projeto dos homens, durante algum tempo- princi- à meia-noite, o sino soava de novo e era então o que se denomi-
palmente no século XVIII - as colônias. Seguramente, as colônias nava sino do "despertar confugal", pois os jesuítas, empenhados
tinham uma grande utilidade econômica, mas existiam valores que estavam em que os colonos se reproduzissem, todas as noi-
imaginários que lhes eram agregados e, sem dúvida, estes valores tes badalavam alegremente o sino para que a população pudesse
eram devidos ao prestígio próprio das heterotopias. Foi assim proliferar, o que, aliás, ela fez, pois de 130.000 que eram no
que, nos séculos XVII e xvq1, as sociedades puritanas inglesas começo da colonização jesuíta, os índios tornaram-se 400.000
tentaram fundar na América sociedades absolutamente perfeitas; no meio do século XVIII. Temos aí o exemplo de uma sociedade
foi assim que no final do século XIX e ainda no começo do século inteiramente fechada em si mesma, sem laço algum que a ligasse
xx, nas colônias francesas, Lyaurey4 e seus sucessores sonharam ao resto do mundo, salvo o comércio e os consideráveis benefí-
cios feitos pela Companhia de Jesus.
3 LouisAragon (1897-1982), escritor francês, um dos iniciado•·es do surrealismo [N. da T.) Com a colônia, temos uma heterotopia que, de certo modo,
4 Louis Hubert Gonzalvc Lyautey (1854-1934), militar francês com que aruou nas guerras coloniais. [N.T.]
é ingênua demais para querer realizar uma ilusão. Com a casa

AS HETEROTOPIAS
AS HETEROTOPIAS
30 de tolerância, temos, em contrapartida, uma heterotopia que é
sutil ou hábil demais para querer dissipar a realidade com a força
única das ilusões. E se considerarmos que o barco, o grande barco
do século XIX, é um pedaço de espaço Rutuante, lugar sem lugar,
com vida própria, fechado em si, livre em certo sentido, mas
fatalmente ligado ao infinito do mar e que, de porto em porto,
de zona em zona, de costa a costa, vai até as colônias procurar
o que de mais precioso elas escondem naqueles jardins orientais
que evocávamos há pouco, compreenderemos porque o barco
foi, para nossa civilização - pelo menos desde o século XVI - ao
mesmo tempo, o maior instrumento econômico e nossa maior
reserva de imaginação. O navio é a heterotopia por excelência.
Civilizações sem barcos são como crianças cujos pais não tivessem
uma grande cama na qual pudessem brincar; seus sonhos então
se desvanecem, a espionagem substitui a aventura, e a truculência
dos policiais, a beleza ensolarada dos corsários.

AS H ETEROTOPI AS
33
HETEROTOPIA: TRIBULAÇÕES DE UM
CONCEITO ENTRE VEN EZA, BERLIM E
LOS ANGELES, 1 por Daniel Defert

No dia 14 de março de 1967, o Círculo de Estudos Arquiteturais


de Paris convidara Foucault a pronunciar uma conferência sobre
o espaço para a qual ele propôs uma analítica nova, que batizou
de "heterotopologia". O texto dessa conferência teve circulação
restrita, reservada aos membros daquele círculo, em forma dati-
lografada, com exceção de extratos publicados em francês, em
1968, na revista italiana L'Archittetura,2 até sua publicação em
Berlim, no outono de 1984, no quadro da exposição Idée, Pro-
3
cessus, Résultats, no Martin-Gropius-Bau.
Essa exposição foi a principal dentre as dezessete manifesta-
4
ções com as quais a l nternationale Bauausstellung (IBA ) apre-
sentou ao mundo o balanço de suas atividades de reconstrução
e renovação de Berlim. lmagi~ava-se a reunificação da cidade-
-capital que parecia estranhamente ilustrar os "espaços outros" do
texto de Foucault de 1967. Autorizando sua publicação, pouco
antes da sua morte, ocorrida em 25 de junh o de 1984, o filósofo
a introduzira in extremis no corpus de seus escritos autorizados.

1 Outra versáo deste rexco foi publicada em 1997 no catálogo de Documenta x, em Kassel.
2 M. Foucaulr, "Des espaces aucres", L'Architterura, cronacht e rtoria, vol. '"'· n. 150, 1968, pp. 822-823.
3M. Foucaulr, "Dcs espaces autrcs", AMCS, Revue dízrchitecture, ourubro/1984, pp. 46-49. É esta versão
de 1984, significativamente diferente da que reproduzimos no presente volume, que está incluída em
Dits et lcrits. Paris: Gallimard, r. IV, réxto n . 360.
4 l BA, Exposição internacional de construção, sigla recomada mais adia me. [N .T.]

POSFÂCIO
34 Desde então, o texto foi abundantemente traduzido e comen- utopia, ele fora convidado a falar sobre "Utopia e Literatura". 7 35

tado. "Como pode permanecer inexplorado durante vinte anos? Partindo de uma evocação bachelardiana daqueles espaços que
C:omo não se compreendeu" - pergunta-se Edward Soja, entu- encantam os jogos infantis, como os celeiros, o fundo do jardim,
siasta promotor californiano da heterotopology - "a importância a tenda de índios ou a cama dos pais, "verdadeiras utopias locali-
nova do espaço e da espacialidade"? 5 Todavia, poderíamos inter- zadas", sonhou com uma ciência que teria por objeto "estes espa-
pretar a distância entre estas duas datas, 1967-1984, e a história ços diferentes que são a contestação dos espaços onde vivemos",
desse silêncio como a história de uma não recepção?6 As noções "não uma ciência das utopias, mas das heterotopias, ciência dos
de recepção e de não recepção ofereceriam um crivo de análise espaços absolutamente outros. Esta ciência ou heterotopologia
suficientemente fino para demarcar uma série de transforma- que está em vias de nascer, que já existe" e cujos princípios ele
ções tanto dos discursos estéticos, epistemológicos e políticos enunciara naquele dia.
dos arquitetos e urbanistas nestes mesmos vinte anos, quanto da As emissões radiofônicas de Foucault- nas quais ele se reve-
problemática do espaço nos escritos de Foucault? lava um maravilhoso contista - respondiam à enorme curiosi-
dade suscitada desde a primavera de 1966 pela publicação de
Linguagem e espaço As Palavras e as coisas. 8 O livro se abria com a descrição de uma
"Você se lembra daquele telegrama que nos fez rir tanto, em improvável enciclopédia chinesa inventada por Borges segundo
que um arquiteto via uma nova concepção do urbanismo? Mas a qual os animais se distribuíam em quatorze classes do seguinte
isto não estava em um livro, estava, afinal, em uma conferência tipo: a) pertencentes ao imperador; b) embalsamados; c) domes-
radiofônica sobre a utopia. Pedem-me que a refaça no dia 13 ou ticados ... ; k) desenhados com um pincel muito fino de pelo de
14 de março." camelo; I) et cetera; m) que acabam de quebrar a bilha ... Esta
Esta carta, escrita em Sidi Bou Sai'd, no dia 2 de março de "desordem que faz cintilar os fragmentos de um grande número
1967, é o testemunho mais antigo do encontro de Foucault com de ordens possíveis" fora batizada por Foucault de "heterotopia".
os arquitetos. Em 7 de dezembro de 1966, no quadro de uma O termo se opunha a utopia, etimologicamente "não lugar", e não
série radiofônica chamada de "Cultura francesa", consagrada à eu-topia, como se tende a crer. Mas se as utopias narram um lugar

5 Ed. Soja, "Rembrancc of other spaces in the citadd LA", Strnttgi.,, ajournal of77Jeory, Culture nnd
Politic;, 3, 1990, pp. I, 39. Artigo desenvolvido em Ed. Soja, 7hirdspau, journty to Los A"g<les and Othtr 7 M . Foucaulr, Utopie et htttrotopi.,, arquivos sonoros de 7 c 21 de dezembro de 1966, Centre Michel
Real Imagined Piam, Maldcn: Blackwell, 1996. Foucault, Bibliotheque de I'IMEC-Caen, reeditada em disco pelo !NA, em 2004.
6 P. Bourdieu, "Qu'est-ce que faire parlcr um aureur? À propos de Michel Foucault", in Sociüb er 8 M . Foucaulr, Les Mots et /e; Chose; [Ed. bras.: As Palavras e as co isas, trad. de Sal ma T. Muchail. São
rtprésentatiom. n. especial, "Surveillc:r et punir. vingt ans aprfs", n. 3. novembro/1996, pp. 3Hl8. Paulo: Martins Fomes, 1981].

POSFÁCIO POSF'ÁC IO
36 que não existe, desabrocham, contudo, em um espaço imaginá- de arqueológica, por sob nossas percepções, nossos discursos, 37
rio e, por isso, "situam-se na linha reta do discurso", pois, desde nossos saberes, onde se articulam o visível e o enunciável: a lin-
o fundo dos tempos, a linguagem se entrecruza com o espaço. guagem, o olhar e o espaço.
A lista de Borges, ao contrário, estanca as palavras nelas próprias, Na emissão radiofônica de 7 de dezembro de 1966, Foucault
pois "a heterotopia arruína não somente a sintaxe das frases como fez um uso totalmente diferente de sua noção de heterotopia.
também aquela, menos manifesta, que autoriza manter juntas as Primeiro, ela é pertinente não mais a uma análise dos discursos,
palavras e as coisas".9 mas dos espaços. Lugares tão heteróclitos como o espelho, o
A impossibilidade em que se encontra nosso pensamento cemitério, a casa de tolerância ou a colônia polinésia de férias em
para pensar esse heterócliro radical da classificação de Borges tes- Djerba, enqam em uma categoria específica de espaços-tempos,
temunha um limite do pensamento; o mesmo limite que ainda quer este tempo seja provisório como o tempo único da deflo-
experimentamos diante das classificações próprias às culturas ração no espaço da viagem de núpcias, quer este tempo seja, ao
que nos são radicalmente estranhas. Q u ando Victor Turner contrário, cum ulativo de temporalidades- atemporal - no lugar
descreve como os N dembu da Zâmbia reúnem em uma mesma da biblioteca ou do museu.
classe os caçadores, as viúvas, os doentes e os guerreiros, isto Essas unidades espaço-temporais, esses espaços-tempos têm
não implica um espaço de pertencimento concebido como ter- em comum serem lugares onde estou e não estou, como o espe-
ritório comum, nem um espaço de pertencimento concebido lho ou o cemitério; ou onde sou outro como na casa de tolerân-
como ramificações definidas por propriedades formais, como cia, na colônia de férias ou na festa, carnavalizações da existência
aquele no qual nós distribuímos os reinos da natureza, nem a ordinária. Eles ritualizam cortes, limiares, desvios e os localizam.
linearidade arbitrária de uma ordem alfabética com a qual nos- As normas humanas não são todas universalizáveis: as da
sos dicionários ordenam o heteróclito no espaço. Ele descreve disciplinarização do trabalho e as da transfiguração pela festa
um sistema de analogias, de similitudes entre propriedades sim- não podem desenrolar-se na linearidade de um mesmo espaço
bólicas cujas interconexões precisamos traçar em uma página ou de um mesmo tempo; é preciso uma forte ritualização das
em branco a fim de compreender esse sistema ou o "espaço de rupturas, dos limiares, das crises. Estes contraespaços, porém, são
similirudes". Não se pode pensar sem o suporte de um "espaço interpenetrados por todos os outros espaços que eles contestam:
de ordem", sem esta "zona mediana" que Foucault qualifica o espelho onde não estou reflete o contexto onde estou, o cemi-
tério é planejado como a cidade, há reverberação dos espaços,
9 M. Foucaulr, Les Mots et les Chous, op. cic. prefácio, p. 9. [Ed. bras.: As Palavras e as coism. op. cir.
pp. 5·81. uns nos outros, e, contudo, descontinuidades e rupturas. Há,

POSFACtO
POSFÀCIO
38
enfim, como que um eterno retorno desses rituais espaço-tem-
Utopias e heterotopias 39
porais e, se não universalização das mesmas formas, ao menos
O Círculo de Estudos Arquiteturais era animado, entre 1960 e
uma universalidade de sua existência. Eles são apreendidos em
1970, por Jean Dubuisson, seu presidente, arquiteto do Museu
uma sincronia e uma diacronia específicas que fazem deles um
sistema significante entre os sistemas da arquitetura. Não refle- de Artes e Tradições Populares do Bosque de Boulogne, e Ionel
tem a estrutura social nem a da produção, não são um sistema Schein, que indicava os. conferencistas a serem convidados ao
sócio-histórico nem uma ideologia, mas rupturas da vida ordi- Boulevard Raspail, número 38. Era um dos raros círculos de
nária, imaginários, representações polifônicas da vida, da morte, reflexão de arquitetos sem corporativismo, no qual, nos anos
do amor, de Éros e Tânatos. cinquenta e sessenta, Ionel Schein gozava da lisonjeira reputação
A carta de Foucault de 2 de março de 1967 deixa vazar um de agitador de ideias e de "radicalismo em arquitetura". 1 Foi ele, °
desapontamento: a arqueologia~o olhar não retivera_o olhar segundo Jean Dubuisson, quem convidou Foucault. As confe-
do arquiteto. Não, não fora o livro (As Palavras e as cozsas) que rências eram anotadas em estenografia e depois datilografadas e
trouxera em germe uma nova concepção do urbanismo, livro do entregues aos membros do Círculo. Pierre Riboulet- arquiteto,
qual o filósofo esperava a provocação de rupturas no pensamento. entre outros, do hospital Robert-Debré- conservou sua cópia.
No entanto, estas rupturas foram suficientemente ruidosas, pelo Ele se lembra das precauções oratórias do filósofo para introduzir
seu propósito, a insistência sobre sua ignorância quanto às pre-
menos até o ruído de 1968, para que Foucault viesse a deixar
tanto o tumulto da glória quanto o das polêmicas pela serenidade ocupações dos arquitetos. As referências são tomadas da história
da luminosa vila de Sidi Bou Sai:d, no alto do golfo de Cartago, e das ciências (Koyré, Bachelard), da crítica literária 0.-P. Richard,
a paz- sempre difícil - da escritura. Heterotopia vivida. O que Blanchot), da psicanálise existencial (Binswanger), assuntos,
chegara aos ouvidos do arquiteto era uma linguagem menor, todos eles, sobre os quais Foucault já havia desenvolvido suas
"obsessões do espaço"."
um daqueles jogos literários nos quais Foucault tinha um prazer
guloso, júbilo incessantemente decepado pela ascese da escri- Para marcar seu entusiasmo à saída dessa conferência, Robert
tura, contenção que se lê na didática da conferência reescrita, Auzelle, um dos pensadores da reconstrução da França a partir
esta, para os arquitetos certamente, mas os jogos literários ficam dos anos cinquenta, lhe entregou sua história da arquitetura
aqui finalmente retranscritos com todo respeiro à integralidade 1OTodas estas informações sobre o Círculo de Estudos Arquirerucais me foram fornecidas por P. Ribouler.
sonora da qual nasceram. 11 Expressão utilizada por Foucaulr in: 'Qucstions à Michel Foucaulr sue la géographie", Hérodote, n.
I, 1976, pp. 71-85; retomada em Dits et Écrits, t. 111, n. 169. Paris: Gallimard, 1994, p. 33 [Ed. bras.:
"Sobre a geografia" in Microfoica do poda, rrad. de R. Machado e A. L. de Souza. Rio de Janeiro: Graal,
1979. pp. 153-165].

POSFÃCIO

POSF'ÁCJO
40 funerária e dos cemitérios, 12 uma das heterotopias de Foucault. setenta, reconstitui essas problemáticas em Urbanisme, utopies et 41
Em O Nascimento da clínica 13 Foucault descrevera como a anato- réalités. 15 Um urbanismo progressista humanista que se sustentava
mopatologia havia integrado a morte no conhecimento da vida; na carta de Atenas 16 e em uma racionalidade crescente, ou um
oferecer-lhe a história da integração dos cemitérios na planifica- urbanismo culturalista para o qual cada forma é símbolo e que
ção urbana provava a perfeita cumplicidade entre seus ouvintes olha com nostalgia para a harmonia das cidades passadas: estas
e o conferencista: a negatividade estava no cerne da racionali- eram as "ideias reguladoras da razão urbanística". Estas ideias
dade. Ela estava no cerne das análises de Foucault, pelo menos reguladoras já não talhavam, em pontilhado, o espaço da utopia
até Vigiar e punir. 14 em que viria a desdobrar-se, após 1968, o discurso arquitetura! e
Foi n~ deste mesmo ano de 1967, queJean-Luc Godard, urbano em uma dissolução do objeto "cidade" no seio das relações
em A Chinesa, fez sua heroína, a estudante pró-chinesa interpre- sociais capitalistas? A cidade como totalidade formal ou racional
tada por Anne Wiazemsky, jogar tomates em um exemplar de As não foi deslocada pelo capitalismo? O espaço não é uma imensa
Palavras e as coisas, então um livro símbolo por suas descontinui- página em branco onde se escreve, desde cerca de dois séculos, a
dades abruptas do pensamento no tempo, da negação da história metanarração do capital? Não está aí o impensado geral, o não
e, portanto, da negação da revolução. dito de todas essas divisórias construídas entre as classes, os sexos
A conferência de 1967 poderia ter outra circulação além da e as gerações?
cópia datilografada entre os membros do Círculo? O próprio O fascínio das escolas de arquitetura pela visita a cidades
Círculo não possuía uma revista e não editava nenhuma de suas patronais, estas utopias realizadas como o familistério de Guise,
conferências. Por outro lado, as concepções que então partilha- construída por Godin, ou a cidade Menier de Noisiel,i? teste-
vam os arquitetos deviam muito ao Le Corbusier e à Bauhaus, munha que o discurso arquitetura! e urbanístico francês dos anos
à racionalização das formas e à "legibilidade" do espaço urbano, setenta se desdobrava no espaço da utopia. Os promotores dessas
concebido como um texto pontuado com "referências", espaços cidades não estariam entre os primeiros a inventar o consumo
ou edifícios. Françoise Choay, que Foucault frequentara nos anos em massa? Um reduzia as dimensões da m ilenar e dispendiosa

12 R. Auzelle, Dernihes D emcures. Paris: Chez l'aurer, 13, Place du Panthéon, 1965. 15 F. Choay, Urbanisme, utopiff et réalités. Paris: Seuil, 1965.
13M. Foucault, Naissance de la Clinique, Paris, PU F, 1963 .{Ed. bras.: O Nascimmto tkt clínica, trad. de 16 Carta de Atenas, manifcsco do IV Congresso Internacional d e Arquicctura M oderna (Ciam),
R. Machado. Rio de Janeiro: Forense, 1977]. Atenas, 1933. [N.T.]
14 M . Foucaulr, Surveilkr et Punir. Paris: Gallimard, 1975. A obra apresenta o panóp tico de Benrham como 17 Familisrério de Guise, espécie de comunidade ou cidade operária, inspirada em Charles Fourier,
"um acontecimento na história do cspirico humano" e propõe uma análise do poder em termos de produção construída em 1846, por J.-B.Godin, para habitação de operários de sua indústria. Menier de Noisiel,
c não de repressão. [Ed. bras.: Vigiar e punir, trad . de R. Ramalhete. Petrópolis: Vo1.es, 1987]. comunidade de operários da produção de chocolates, fundada por A. B . Menier, ern 1925, nas imediações
de Paris. {N.T.j

POSFACIO
POSFÁCIO
\
42 lareira a um aquecedor doméstico, outro, um medicamento dos Criado em 1965 com pesquisadores em ciências sociais dissiden- 43

exércitos napoleônicos a um complemento alimentar industrial, tes do Partido Comunista Francês (PCF), o Cerfi, após 1970,
0
tablete de chocolate. Não teriam eles articulado da maneira põe em questão sua cultura marxista, submetendo-a a uma dupla
mais restrita a racionalização do consumo com a da ocupação do prova: 1) a do procedimento genealógico praticado em História
espaço? A racionalização da cidade patronal com~ a fragment~ção da Loucura e O Nascimento da clínica; 2) a de uma clarificação
do espaço urbano, o homogêneo como o heterogeneo, conduztam das relações libidinais, que todo pesquisador mantém com o
a um mesmo crivo de leitura, infalsificável: a espacialização do objeto de sua pesquisa (a ambivalência da reflexão urbanística
capitaL O arquiteto tornava-se o técni<:> ~iv~-~-!~p_~na- frente à racionalidade capitalista não escapava a ninguém), e que
li:{:ação das-êst[atégias e_~as normas do capital. . , os pesquisadores mantêm entre si como grupo social hierarqui-
"Mostra-se útil falar indiferentemente das utoptas pre-ur- zado e sexuado.
banistas, das cidades operárias, de Haussmann, da Bauhaus, do O relato da realização dessa dupla prova, publicada na revista
20
funcionalismo, dos Shakers dos grandes conjuntos, das cidades do Cerfi, é provavelmente um dos mais interessantes diários de
novas: por toda parte afirma-se perigosamente uma racionali- bordo da travessia ideológica daqueles anos. Ali se assiste, como
zação do espaço inerente à extensão universal do capital, uma que em um laboratório, à desagregação da análise marxista e
propensão de sua ordem de troca, ou da ordem simplesmente", à emergência daquilo que logo será batizado de "atitude pós-
. T raverse. 18
podia-se 1er na revtsta -moderna". O empreendimento é descrito por seus autores como
"uma estranha máquina feit; de peças e pedaços emprestados do
Genealogia dos equipamentos coletivos genealogista Foucault, surrupiadas do depósito do cientista bicé-
É a partir de 1972 que Foucault desenvolve pesquisas em equipe falo Deleuze-Guattari".
sobre a história dos equipamentos coletivos. Primeiramente, "O genealogista Foucault" é, de fato, uma nova imagem
com 0 Centro de Estudos, Pesquisas e Formação Institucional social do filósofo: o procedimento genealógico só estará franca-
_ ou Cerfi- animado pelo psiquiatra Félix Guattari, que con- mente confirmado a partir de seu ensino no Coilege de France,
19
clui então, com Gilles Deleuze, a redação do seu Anti-Édipo. inaugurado em dezembro de 1970. Ademais, a partir de 1971,
juntamente com Deleuze, ele anima um movimento militante,
18 B. Eizykman, "Urbanismo", Travmt, n. 4, 1976. citado por A. Thalamy in Politiques tk !'habitat, Corda,
, P· 14. [O nome "Shaker" designa um movimento de grupos religiosos, fundado na Inglaterra, no
1977 20 "Généalogie du capital - 1. Les équipemenrs du pouvoir", Recherches, n. 13, dczembro/ 1973. Um só
século xvm que_ à semelhança dos "Amish"- vivem em suas próprias comunidades - N .T.]
exemplo de uma retomada das htttrotopias por H. Lefevre, a propósito de La Pmsü marxiste dt la vilk.
19 G. Dele~ze, F. Guattari, L'Anti-CEdipe. Paris: Minuic, 1972 [Ed. bras.: O anti-Édipo, crad. de L. B. L.
Pans: Casterman, 1972.
Orlandi. São Paulo: Editora 34, 2010].

I I Artn POSFÁCIO
44 o Grupo de Informação sobre as Prisões (GIPf, enraizado na aos arqui'tetos a imitação como um dever": 23 as tipologias nor- 45
extrema esquerda. mativas seguem os exemplos oferecidos pela história. A justeza
Foucault discute com o Cerfi, que trabalha sobre a cidade,21 da arquitetura nasce do tratamento de uma rede de questões cÜs-
a abordagem "genealógica" dos equipamentos coletivos e a põe tintas- climáticas, de~ográficas, estatísticas, higiênicas, médicas,
em prática, sobretudo no seu seminário do College de France. disciplinares- que têm, cada qual, seu lugar de emergência, sua
O seminário é consagrado à emergência do médico como perito racionalidade, seus promotores, que respondem a uma multipli-
no século xrx através da perícia psiquiátrica em medicina legal, cidade de táticas- técnicas de vigilância, de produção de saber,
por um lado e, por outro, como engenheiro que contribui para de efetuação de poderes, de medicalização e de saúde pública.
a definição das normas e formas da arquitetura hospitalar. Um Elas po~em ser descritas como segfl!entos análogos ou repetidos
arquiteto, Bruno Fortier, responsável pelo Centro de Estudos e ao infinito de um só texto, de um esc;eve~te único, míti~; e_
Pesquisas em Arquitetura (Cera), participa doravante dos traba- unitário: o capital.
lhos de pesquisa desse seminário. C~ente, esses novos edifícios incorporam táticas de
Se a expressão "equipamento coletivo" não figura nos tex- vigilância encontradas fora, sob outras formas arquiteturais -
tos do século XVIII, a "máquina de curar", definida pelo médico colégios, casernas -, táticas e formas que puderam preceder e
T enon como ideal do hospital moderno, neles tem lugar. "A sustentar a emergência da organização capitalista do trabalho e
arquitetura hospitalar", escreve Tenon,22 não pode mais "c~sti­ que poderão proliferar para .além dela, por exemplo, nos vastos
tuir-se de rotina e tateamentos", devendo responder a múltiplas arquipélagos do socialismo siberiano. É que, fundamentalmente,
preocupações: estancar o contágio pela distribuição das salas e não estamos lidando nem com formas arquiteturais nem com
dos leitos, a circulação do ar, favorecer a dissociação dos doentes modos de produção, mas com tecnologias de poder. Foi na busca
e das doenças, a vigilância dos doentes e do pessoal, manifestar destas "arquiteturas máquinas", tão ajustadas aos seus objeti-
a hierarquia do olhar médico, ter em conta as necessidades da vos, que Foucault veio a redescobrir o que logo tornou-se para-
população. "O que serve para curar não é a regularidade do tra- digma de sua obra: o panóptico de Bentham, 24 do qual Poyet25
çado, mas a justeza da arquitetura." O modelo deve ser perfeito
23 M . Foucaulr, B. Barrer-Kriegel, A. Thalamy, F. Béguin, B. Forcjer, Lrs Machints à guérir (aux originrs
- não se podendo mais em nada mudá-lo - acabado, repedvel.
de rhópital moderne). Paris: Insrirut de l'environnement, 1976; rced. Bruxelas: Pierre J\1ardaga, 1979.
"Pela primeira vez em 1788", escreve Bruno Fortier, "propõe-se 24 J. Benrham, Le Panoptique, precedido de L'oeil du. pouvoir, entrevista com Michel Foucault. Paris:
lnsrirut de l'cnvironnement, 1976; reed. Bruxelas: Píerre Mardaga, 1979. (facsímile da edição francesa de
179 1). [Ed. bras. "O olho do poder" in Mitrofisica do poder, trad. de A. L. de Souza, op. cit., pp. 209-227]
21 Rtchrrchf!, n. 13, op. cit., pp. 27-31 (Dits et Ecrits, o. 129 e n. 130). 25 B. Poyet, Mtmoire sur la nicessité de rraniférer et recomtruir el'Hôtei-Dieu suivi d 'un projet de
22 J.-R. 1enon, Mémoim mr les hôpitaux de Paris. Paris: 1mprimerie de PH.-D. Pierres, 1788. trans/4tion de cet hôpüal. Paris: 1785.

POSFÂC!O
POSFÁCIO
46 desenhara uma interpretação para a reconstrução da Santa Casa o corpo do indivíduo e do saber ao poder. Seguem-se numerosos 47

de Misericórdia. Os trabalhos do seminário do College de F rance estudos sobre a arquitetura da vigilância, publicados na Itália e
sobre a arquitetura hospitalar no final do século XVIII receberam na Grã-Bretanha principalmente. 29 De modo mais geral, soció-
duas edições, uma em Paris, em 1976, outra em Bruxelas, em logos e planificadores urbanos começam a referir-se a Foucault.
1979: Les Machines à guérir .26 A. Leaman escreveu em Environment and Planninf0 que a obra
O segundo estudo coletivo dirigido por Foucaulr teve por d e Foucault é doravante importante para os urbanistas planifi-
objeto o habitat entre 1800 e 1850.27 Foi conduzido por François cadores e arquitetos por sua análise das qualidades normativas
28
Béguin, hoje historiador da paisagem e da arquitetura colonial. das estruturas e das instituições. Sharon Zukin considera que
A metodologia é a mesma que a precedente: no lugar de partir de .1 cidade está doravante incluída nas análises de uma economia

uma história das formas da habitação ou da cidade, os pesquisa- dn poder segundo o método desenvolvido em Vigiar e punir.31
dores inventariaram as práticas discursivas que circunscreveram e Esse é o contexto em que reaparecem as heterotopias, na
codificaram o habitat como objeto de intervenção administrativa I .,,ufa de Arquitetura de Veneza em dezembro de 1977, pri-
e política entre 1800 e 1850- a doença, o emprego, a domesti- "" II'O estudo sobre seu uso possível em uma história dos espa-
cação de equipamentos como a água, a iluminação, a ventilação; . '' . 11 dispositivo Foucault 32 que reúne ensaios de M . Cacciari,
e o desenvolvimento de uma crescente jurisdição sobre o espaço I ll r lln, M. Tafuri, G. Teyssot. A capa, como a de Machines à
público em cuja intersecção se constrói o habitat. "É preciso pri- t 111, r<.: produz um plano de arquitetura panóptico para um
meiramente desfazer-se da pregnância da casa, desmineralizá-la, l1 ' I'''·" inglês. Os autores se referem essencialmente a Vigiar
desconstruí-la", escreve F . Béguin. '''"' 1·,exceto Teyssot, a uma reunião de textos de Foucault
!11· " pqcl(:'r p ublicado neste mesmo ano pela editora Einaudi,
33
Poder, saber, espaço 1{1 •lt r1 rfel potere; a incidência política desta última coletânea

É a partir de Vigiar e punir (1975) e de sua rápida circulação


11 " " ' "'' , I 1/,r,r/and, primeiro ano, n. 3, maio-junho/1978, n. trilingue intitulado Stgr.ga.úone
internacional- rapidamente traduzido em cerca de vinte língua., '" lj\I•H I111\• nrquiteruras de vigilância.

-que as análises foucaultianas do espaço recebem uma visihili '"'''"'""'"t


'" I mui Plmming, n. I I, 1979, pp. 1079- 1082.
(, ,. J,- "' '"c ncw Ul·ban sociology", 7heoryar~dSociety, 9, 1980, pp. 575-601.
dade nova como lugar de uma dupla articulação d o podér sohrr I' li 1, M fitfurt; G; 'lcyssot, li dúposit•vo Foucault. Veneza: Cluva, 1977.
f, I· '•'/'"'·' tlt'//lllfl'rto' hllcrvcnli politici, cdirado por Fontana e Pasquino, Turin, Einaud.i,
I ""I "''"''" prl11 lliOvlmcnto alternativo bcrlinense: Dispositive der Macht. Berlim:
26 M. Foucault, B. Barrcr-K.riegel, A. 'Tha.lamy, F. Béguin, B. Jlortier, l rs Mt~riJ/nr.• lt xuMr, up dt 1.• ' /\Ih •nlf<lt.l do poder, R. Machado. Rio de Janeiro: Graal, 1979 - A edição
27 J.-M. Alliaume; B. Barret-Kriegcl; f'. Beguln; IJ. ltand~rt·; A. ' lhulumy. l 1111illqurs dr 1'/m/.1/.11 IIIIHI f, lltl li ".-. lr•rn•. que mio constam na edição italiana. Foi publicada rambém uma
1850. Paris: Corda, J977 (estudo rc:oll1,1do 1ob n dlr•·çno d< M. l•ouL.llilr). ''" ''I''"" ' •lt•t.l\'>r' ""' textos selecionados, trad. por J. Varela e F. Alvarez-Uría.
28 De F. Béguin, circmos principalmente: Alilblsnnrrs, tllror llrthltrrllll•li• l /r/Ir 111fl lllllru ;l{rlt(tl• ,1, M f I I ti l f
1830-1850. P.~ris: l)unocl, 19R.l; e l'.tyMtl\«• 11>1111: Fl"otttnnrlmo. l'l'llo

POSFÁCIO
48 foi imediata, logo reforçada pela tradução de Rhizome, de Deleuze mas o uso taxinômico do prefácio de As Palavras e as coisas, apli- 49
e Guattari, 34 livros que se tornaram referências teórico-políti- cando-o a um projeto de hospital do século XVIII descrito pelo
cas do movimento chamado "Autonomie" (do político, suben- historiador ]. -C. Perrot. 38 Seu plano distribui, como uma grade,
tenda-se) que incomodava a esquerda do PCI engajado na em oito construções distintas, oito classes de pensionários tão
estratégia do compromisso histórico. É esta incidência política heterogêneos quanto as categorias de animais da enciclopédia de
que os italianos batizaram de "l'effeto Foucault" 35 que é o alvo Borges: a) os prisioneiros a pedido de suas famílias; b) os loucos,
de Il dispositivo Foucault. os prisioneiros por edito real; c) as crianças pobres e legítimas
A introdução à coletânea escrita por F. Rella é perfeitamente de dois a nove anos, os idosos, os mendigos, as prostitutas aco-
explícita; desde logo, traveste as análises foucaultianas da plurali- metidas de doenças venéreas; d) as crianças bastardas de mais
dade das relações de poder em uma metafísica "do poder", de um de nove anos; etc. É a incongruência do conteúdo que designa
poder abstrato, imaterial, supostamente em toda parte e, portanto, a arquitetura como heterotopia, e não o jogo de oposição ou de
politicamente em parte alguma: "A única história dos poderes é contestação, qualitativa ou simbólica, dos outros espaços que este
uma história dos espaços através dos quais o poder se mostra." E, t'd timo institui por sua função, sua forma, suas rupturas.
apoiando-se no artigo de T eyssot como única fonte de conheci- O uso da heterotopia feito por T eyssot de modo algum trans-
mento das heterotopias, prossegue: "O não lugar do poder situa- t reve a inscrição profunda da espacialidade na totalidade da

-se no centro de uma infinidade de localizações heterotópicas." r Kistência humana: a heterogeneidade e a descontinuidade dos
A h eterotopia torna-se então um "dado central" em Foucault, 11 111 pos vividos, os limiares d~ vida, as crises biológicas (inicia-
e a heterotopologia, a fenomenologia da dispersão anárquica do ' to, p uberdade, defloração), Éros e Tânatos. As espacializações
poder. A conclusão desta interpretação é previsível: "Não se com- d.1~ubj etividade sob todas as suas formas, da casa de tolerância à
bate ma is o poder, doravante investido em uma miríade de loca- 11111a, e não somente as grandes funções da carta de Atenas, rece-
lizações [ou dispositivos], mas a tirania das teorias globalizantes." 1" 1, 11n em todas as culturas uma inscrição específica no espaço,
Teorias que Rella explícita precisando em nota: "l'effeto Marx." 36 11 1 ,•spaços, que entretêm entre si não uma relação de divisão

Na verdade, Teyssor37 não comenta a conferência de 1967, 111tto interioridade/exterioridade, margem/centro, público/pri-

., In, mas um jogo formal de diferenciação e de reverberação,


34 G. Deleuze, F. Guattari, Rhizome, Paris, Minuir, 1976; Rizoma, Parma/Lucques, Prariche, 1977.
35 Em italiano, no origjnal. [N .T.] 111 . 11 111:'1, no registro da comunicação. Tanto Relia, que faz do
36 Em italiano, no original. [N.T.]
37 G. Teyssor, "Ererotopia e storiadegli spazi", /I dispositivo Foucault, pp. 83-86 e "Heterocopies anel""
i I 1'•'1101, (;wtst d 'une vil/e modem, Caen auXVl/1 sücle. Paris: Mouton, 1975.
history o f spaces", Architecture and urbanism, 121, 1980, pp. 79· 100.

pQSFÁCIO POSFÁCtO
50 espaço foucaultiano o receptáculo neutro e contínuo das hetero- 51
para aparecer como um problema histórico-político. Lembro-me
topias do poder- concepção globalizante -, quanto T eyssot, que que há cerca de dez anos falei destes problemas de uma política
faz da heterotopia a articulação arquitetura! das incongruências dos espaços e de me terem respondido que era bastante reacio-
do mundo - concepção localista -, carecem, ambos, da terceira nário insistir tanto sobre o espaço e que o tem po, o projeto, era
dimensão, aquela propriedade do espaço de se remeter a si mesmo a vida e o progresso ... "40
na espessura de um jogo formal e simbólico de contestação e de Uma história foucaultiana dos espaços, mais precisamente,
reverberação, em uma fragmentação que não é·segmentação, este da espacialização do poder, mais precisamente ainda, da inscrição
"Thirding" que E. Soja assim teoriza no Instituto de Urbanismo no espaço colonial - heterotópico - desse regime de poder par-
de Los Angeles, na UCLA: "the Thirding as othering. "39 ticular que se desenvolve a partir do século XVIII e que Foucault
Essa primeira recepção das "heterotopias" pela Escola de designa de biopoder,41 a partir do qual os problemas de espaço
Arquitetura de Veneza representada por I! dispositivo Foucault tornam-se politicamente diferentes, é o projeto que, no começo
mostra a ambiguidade da noção de recepção: não se trata de uma dos anos oitenta, empreendem o antropólogo Paul Rabinow42 e
compreensão exata nem de uma real instrumentalização, mas a historiadora do habitat americano, Gwendolyn W right.43 N em
de uma reimplantação polissêmica e polêmica em uma rede de eles, nem F rançois Béguin conheciam a conferência de 1967 .
debates políticos, por um lado, e de um questionamento episte- Em uma entrevista que Rabinow e Wright fizeram com
mológico, por outro. Foucault em 1982,44 publicada em Skyline,45 revista americana de
Em julho de 1976, Foucault relembra pela primeira vez sua arquitetura, o filósofo lembra su~s obsessões pelo espaço e como
conferência de 1967 em uma entrevista sobre o panóptico de "através destas obsessões cheguei ao que é fundamental para
Bemham, publicada em 1977, mencionada, aliás, por Teyssot. mim, a~ relações que são possíveis entre o po.,der_e_o s_<!_ber.... ".
Seria necessário "escrever toda uma história dos espaços que fosse
40 M . Foucaulr, J. Bcmham, L'otil du pouvoir in Le Panoptique, op.cit [Ed. bras.: "O olho do poder" in
ao mesmo tempo uma história dos poderes, desde as grandes Microftsica do poder, op. cit.]
estratégias da geopolítica até as pequenas táticas do habitat, da 41 M. Foucault, "Droir de mort ct pouvoir sue la vie" in La Volomé de savoir. Paris: Gallimard) 1976.
[Ed. bras.: A Vontadr de sabrr, uad. de M. T. da C. Albuquerque e J. A. Guilhon Albuquerque. Rio de
arquitetura institucional, da sala de aula ou da organização hos- Janeiro: Graal, 1977.]
42 P. Rabinow, Biopower in the Frmch Colonits, conferência interdisciplinar sobre Foucaulc: Knowledge,
pitalar, passando pelas implantações econômico-políticas. É sur- Power, History, Los Angeles, 29-31 de outubrol! 981; French Modrrn: Norms and Forms of the Social
preendente ver quanto o problema dos espaços levou tanto tempo Environmmt. Cambridge (Mass.): MIT Press, 1989.
43 G . Wright, Tht Policies o/Dtsigns in the French Colnnial Urbanism. Chicago: University Press, 1991.
44 E Béguin, Arabisanus, op. cit.
39 Ed. Soja, Thidspacr, journrys to Los Angel.s and Other Real and Imagined Placrs. Cambridge (Mass.): 45 M. Foucault, "Space, knowledge, power, entretien avec P. Rabinow", Skyline, março/ 1982, pp. 16-20;
Blackell, 1996. retomada em Dits tt Écrits, t. IV, n. 340, pp. 270-285.

POSFÁCIO POSFÁCIO
52 A arquitetura e o urbanismo não constituem, diz ele, um campo iso- Os dois organizadores da exposição, o alemão J ohannes 53

lável: "Misturam-se com múltiplas práticas e discursos, mas o espaço Gachnang e o italiano Marco de Michelis, conheciam esse texto
é o lugar privilegiado de compreensão de como o poder opera." em sua publicação de 1968, em A rchittetura. 46 Ele sintonizava
/ Inversamente, ele bane da prática do arquiteto toda esperança estranhamente com a estratégia do IBA, tal como foi exposta por
utópica: "Os homens sonharam com máquinas libertadoras. um de seus dois responsáveis, J.-P. KleihuesY "executar a ideia~, V I\\ N\~\"O tb'Q
Mas, por definição, não existem máquinas de liberdade. Jamais de uma cidade por fragmentos", falar de arq ui te~rbana sem 1 ~'k> J e íV,.. \..
a estrutura das coisas tem competência para garantir a liberdade.
-· -------····
traçar primeiramente um plano global de urbanismo; respeitar
---·--,
Nada é funcionalmente libertador. A liberdade é o que se deve -~ _:arieaadeh istórica e topogrifica ~erline;se; pe~ a compÔ-
\ exercer, a garantia da liberdade é a liberdade." s_ição da cidade por ilhotas e até confiar a diversos arquitetos a
Mestre, doravante, de um discurso político e epistemológico · reconstrução das residências em uma mesma ilhota. E, por oca-
sobre o espaço, Foucault deixa então ressurgir seu antigo conceito sião de uma reunificação eventual, justificar a conservação da
de heterotopia: "Diga-se entre parênteses, lembro-me de ter sido arquitetura staliniana.
convidado por um grupo de arquitetos, em 1966, para realizar Sua tradução americana ocorreu em 1986, publicada primei-
um estudo do espaço; tratava-se do que, na época, chamei de ramente na revista interdisciplinar de Cornell, Diacriticis, depo\s
'heterotopias', espaços singulares que encontramos em alguns na revista de arquitetura Lotus.48 Inaugurava-se uma carreira
espaços sociais cujas funções são diferentes das dos outros, ou ter- nova para a interpretação qualitativa dos "espaços outros". Não
minantemente opostas. Os arquitetos trabalhavam neste projeto se compreenderia esta carreira'sem a simultaneidade da tradução
e, no final do estudo, alguém tomou a palavra - um psicólogo dos volumes rr e rrr de História da sexualidade, 49 a partir dos quais
sartreano- para me bombardear que o espaço era reacionário e Foucault torna-se uma referência para aquilo que os americanos
capitalista, enquanto a história e o devir eram revolucionários. denominam "políticas da identidade". Movimentos feminis-
Àquela época este discurso absurdo de modo algum era inabitual. tas, movimento gay, grupos étnicos, constituem a nova rede de
Hoje em dia, qualquer um se dobraria de rir ouvindo aquilo."
46 Informação obtida com eles e concedida por Françoise Joly.
Não há como não se impressionar com esta longa anamnese 47 J.-P. Kleihucs, "À propos de la villceuropéenne", entrevista com M. Bourdeau, AMCS, ourubro/1984,
pp. 95-99.
em dois tempos: primeiro, em 1976, relativamente à objeção polí-
48 M. Foucault, "Of othcr spaccs", Diacriticis, 16, n. 1, 1986, pp. 22-27 e Lotus inttrnational, 1986.
tica feita em 1967, e em 1982 enfim, relativamente ao próprio 49 M . Fo ucault, l.'Usage des plaisirs. Paris: Gallimard, 1984; Le So uci de soi. Paris: Gallimard, 1984;
Ed. ingl.: The Use ofP/easure. Harmondsworth: Pcnguin, 1985; Tht Cart ofthe St!f Harmondsworth:
conceito de heterotopia; em 1984 Foucault podia acolher favo- Penguin, 1986. [Ed. bras.: O Uso dos prazeres, trad . de M. T. da C. Albuquerque. Rio de Janeiro: G raal,
ravelmente a reutilização de sua conferência pelo IBA de Berlim. 1984; e O Cuidado de si, trad. de M . T. da C. Albuquerque. Rio de J aneiro: Graal, 1985].

POSFÁCIO POSFÁClO
54 inscrição e a nova avaliação das heterotopias. A história dos modos radicalmente, a advertência do artista: uma decisão de 1986 da 55

de subjetivação realizada por Foucault atravessa textos como The Corte suprema autoriza doravante a justiça, em todo Estado em
spaces that diferences make, do urbanista Ed. Soja, 50 Gendered ,' que a sodomia é ainda um crime, a persegui-la mesmo quando
Spaces, da feminista Daphne Spain, 51 The New Cultural Politics 1 consentida entre adultos; em suma, a intimidade do espaço pri-
ofDifference, de Cornel West, 52 ou Geographical Imaginations, vado da cama acaba de entrar no espaço público. Esta articula-
do geógrafo Derek Gregory.53 ção entre o público e o privado poderia criar, segundo Spector,
Lugar de emergência da heterotopia, a análise literária dela uma história mais silenciosa: a marca vazia do companheiro do
se apropria com Brian McHale, Michel de Certeau, 54 a análise artista morto de aids.
fílmica com Giuliana Bruno. 55 Foucault torna-se passagem obri- Maravilhosa intuição, no começo da conferência radiofônica
gatória para toda análise do espaço, constata Soja. de Foucault em 1966, daquela passagem inexistente na conferên-
O mesmo se passa com as artes plásticas. Apresentando as cia para os arquitetos em 1967, em que o filósofo evocava como
obras do artista plástico cubano Felix Gonzalez-Torres, Nancy primeira figura da heterotopia a cama dos pais, que as crianças
Spector descreve uma experiência de "ambiente heterotópico" gostam de invadir com um prazer de transgressão e de sonho
realizada em ManhattaE. 56 Em vinte e quatro painéis de anúncio das origens. Não poderíamos concluir que aqui, a longa série de
publicitário das instalações urbanas de Manhattan, Gonzalez- reinscrições do texto em múltiplas redes e estratégias, que a longa
-T ories afixou o contraespaço constituído por imensa foto em preto série de transformações da figura social de seu autor encontram
e branco da intimidade de uma cama exposta. Desnudamento neste instante de sua trajetória a' mais completa forma de recep-
absoluto de um puro roçar de lençóis, leve traçado de duas cabe- ~.to?57 Foucault não declarara, tantas vezes, que almejava menos
ças no vão entre os dois travesseiros, onde cada qual pode pro- l~·iLOres que utilizadores? 58
jetar ou a interrupção do sono ou o amor consumado, ou mais

50 Ed. Soja, "The spaces that diferences make" in M. Keith e S. Pile, P/,ce and the Politics ofidentiry. Nova
York: Routledge, 1993, pp. 183-205.
5 I D. Spain, Gendered Spaces. Chapel Hill: University of Carolina Press, 1992.
52 C. West, The New Cultural Politics of Diffirencr: Out Thm. The Dikmma ofthe B!ack lntelkctual.
Ferguson: I 994.
53 D. Gregoty, Geographical lmaginatiom, citado in Ed. Soja, Thirdspace. Cambridge: Blackwell, 1994. I <I Soj.o, "Hcterotopies: remembrance of other spaces in the citadel LA", Strategies, a journal oftheory,
54 B. McHale, Post Modernist Fiction. Nova York: Roudedge, 1988; M. de Certeau, Heterologin: 3, 1990, pp. 1-39; Post metropolú: Critica/ StuditS of Cities and Regiom. Londres:
""'' 1111tl politics,
Discourse ofthe Other. Manchester: Manchesrer Universiry Press, 1986. nl ·I wrll, 2000.
55 G. Bruno, "Bodily Architectures", Assemblages, 19 dezembro/1992. } 111 J.OO 1. uma associação cultural italiana denominada Eterocopia publicou uma releitura de texros

56 N. Spector, Felix Gonzakz-Torres. Nova York: Thc Solomon R. Guggenheim Museum, 1995. l J 1111 .wh sobre o espaço sob o título Sptzialtri.

POSFÁC!O POSFÁCIO

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