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Introdução à leitura de Winckelmann


Gerd A. Bornheim
Por que Winckelmann, nos pergunta Gerd Bornheim, em sua percuciente apresenta-
ção daquele que fincou as bases de um novo classicismo europeu. Apaixonado pela
Hélade, Winckelmann, não é exagero afirmar, pavimentou os caminhos de uma nova
sensibilidade, mais precisamente, lançou uma nova compreensão do fenômeno grego
– mostrou-nos a Grécia serena e olímpica, plena, como ele mesmo afirmou, de “sim-
plicidade nobre e grandeza tranquila”. Sem Winckelmann, Bornheim argutamente
observa, não teríamos a consagrada interpretação de Nietzsche. Com ele, adquiri-
mos a primeira ideia que modernamente temos da Grécia. O grande teórico alemão,
assegura o brasileiro, nos ensinou a amar a Grécia. Bornheim, por sua vez, nos revelou
a necessidade de jamais nos esquecermos de nosso compromisso moral com o Ho-
mem e seus valores. Em tempo de cacofonia ideológica, esterilidade de ideias e oportu-
nismo de toda ordem, não é pouca coisa. É, de fato, uma rica herança. (Francisco Lima)
História da arte, classicismo alemão, clássico vs barroco, imitação vs cópia.

A Gerd A. Bornheim (1929-2002) tura alemã em face da latina. É precisamente


In memoriam a índole anti-humanista da Reforma protes-
tante que, pela sua fixação no irracional e
Escorço do horizonte cultural no exclusivismo do mundo sobrenatural
“As coisas humanas são nele mais fortes que deixa explicar essa tardança.
as divinas.”1 Com essa discutida afirmação,
A supremacia do sobrenatural que então se
Lutero pretende delimitar a perspectiva em
que se coloca o pensamento de Erasmo; em instaura, estabelecendo o reino da fé em
verdade, opondo-se ao humanismo do au- termos de contraposição e incompatibilida-
tor do De Libero Arbitrio, Lutero torna ób- de com a razão e a natureza, não poderia
vio o conflito entre duas culturas que vie- impor-se, porém, como conclusão de um
ram cindir a unidade que informara o mun- itinerário ou uma emancipação definitiva. De
do medieval: o humanismo renascentista e fato, a perda da unidade medieval não re-
o protestantismo nórdico. Os pálidos e iso- presenta tão só a consagração de uma
lados reflexos da cultura latina, que chega- unilateralidade mais ou menos exclusivista,
ram a manifestar-se na Alemanha desse pe- mas, para os alemães, também uma nova
ríodo, permitem afirmar a ausência de Re- tarefa: o isolamento os confinara a uma situ-
nascença nesse país; e assim, a Reforma adiou ação de inferioridade cultural, que iria de-
Retrato de ao século 18 a eclosão de uma volta aos terminar a volta aos valores humanistas e a
Winckelmann, cerca de antigos. Nesse sentido, pode-se afirmar que tentativa de reintegração na cultura europeia.
a Renascença alemã coincide com o último Essa tarefa será realizada de maneira especi-
1755, óleo de Anton
Raphael Mengs, 64 x
50cm dos classicismos, justamente depois de ter almente intensa, pois trará uma contribui-
Fonte: Heilbrunn Timeline of sido superado, por iniciativa de homens ção que, além de original, será de suma im-
como Kant e Goethe, o isolamento da cul- portância para toda a cultura do Ocidente.
Art History, site The
Metropolitan Museum of Art

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E na base desse esforço alemão encontra- te, seja do ponto de vista católico-romano,
mos, entre outras, a figura curiosa e excep- seja do ponto de vista do humanismo clássi-
cional de Winckelmann. co, ciceroniano. Compreende-se, assim, por
exemplo, que se deplore a queda do Império
A obra de Johann Joachim Winckelmann Romano, mas que ninguém se lembre da que-
pode ser compreendida como um singular da de Atenas – com exceção da voz, de res-
capítulo da famosa querelle des anciens et to imperceptível, de um bispo ateniense do
des modernes, e o seu mérito fundamental fim do século 12, Michael Akominatos. Já há
consiste em haver possibilitado a visão do séculos ocupada por forças estrangeiras, em
mundo antigo sob uma nova luz, dentro de 1458 Atenas cai nas mãos dos turcos, e com
uma nova perspectiva. Sua importância his- isso a infeliz cidade parece reduzir-se definiti-
tórica não repousa apenas no fato de de- vamente às fronteiras do Oriente próximo.
fender entusiasticamente os antigos, mas
sobretudo em saber problematizá-los, em O renascentista vivia com entusiasmo o sen-
perguntar o que se deve entender por “an- timento romano – riviva la semente santa di
tigos”. Nos “modernos”, Winckelmann pen- quei roman, cantara já Dante,2 e mais tarde,
sa pouco, ou pensa como obra a ser realiza- em 1725, em sua Nova Ciência, Vico afir-
da. Todo o aspecto polêmico e construtivo mará ainda que os grandes heróis foram os
de seu pensamento está concentrado em antigos romanos e não os gregos. Por isso
uma nova concepção dos antigos e no influ- compreende-se que os gregos, quando co-
xo que essa concepção poderia vir a exer- nhecidos, o eram normalmente através dos
cer sobre a Alemanha, e a cultura ocidental. romanos, já porque os italianos viviam con-
cretamente a terra, a paisagem romana – o
Por “antigos”, Winckelmann entende a cul- que viria a acentuar-se de modo fascinante
tura grega clássica, e nisto encontramos a com as escavações efetuadas a partir de
sua originalidade. Evidentemente, não se Bruneleschi – como também, e principalmen-
pode afirmar, sem maiores explicações, que te, porque Roma era considerada o valor
o nosso autor tenha descoberto os gregos. mais alto, que arrastava atrás de si Atenas;
É que ele soube emprestar aos gregos e ao emprestava-se-lhe a densidade maior que
que considerava ser a Grécia clássica uma permite compreender aquilo que se lhe jul-
importância bem definida, situando-os, so- gava subordinado.
bretudo, em tal perspectiva que os antigos
passaram a ter uma nova modalidade de A Renascentia Romanitatis foi impossível na
presença na cultura do Ocidente. Alemanha, primeiro, devido a Lutero, depois,
devido a Winckelmann.
De fato, antes de Winckelmann, por maior
que tenha sido nos países latinos a preocu- Realmente, o valor mais alto para Lutero é
pação com os gregos, pode-se afirmar que o Evangelho, e só o Evangelho poderia para
toda a cultura aquém dos Pirineus perma- ele ter força de origem. Antipática não lhe é
neceu sob o signo de Roma, e isso desde a apenas a importância atribuída à razão ou
Renascença até o Barroco. Característica ao simplesmente humano, mas principalmen-
fundamental permanece, devidamente glo- te o elogio dos antigos. Por isso, pregava que
sada à contribuição cristã, a coincidência da se deveria deixar de lado todo o católico-
Humanitas com a Romanitas. Mesmo antes romano, por representar um princípio de
da Renascença, durante mais de mil anos, aviltamento dentro do cristianismo, algo de
Roma mantém-se como centro do Ociden- impuro, camufladamente pagão, que teria

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vindo macular a mensagem de Cristo. O cultura alemã: Winckelmann, Herder e Kant.
Urchristentum, o Novo Testamento grego, Kant, nascido em 1724, tenta subordinar ao
é que conta. E o fato de que Lutero se pren- racional as verdades em que fora educado
de ao texto grego dos Evangelhos terá na infância e na juventude, quer dizer, busca
consequências que ele mesmo não poderia resolver dentro dos limites da pura razão o
prever. Assim, como que se desliga uma das irracionalismo pietista, seita protestante mui-
fontes da Cultura Ocidental e, o que é mais to difundida na época e que pretendia fazer
significativo para o nosso tema, a Alemanha voltar o cristianismo a sua forma mais
passa a ignorar ou a condenar qualquer sen- primeva. Herder, nascido em 1744, procura
tido positivo atribuível à cultura antiga. desenvolver a consciência nacional, funda-
mentado na ideia de um desdobramento or-
Mas a vitória inicial alemã dentro desse novo gânico da cultura, compreendida desde as
comportamento cultural transformou-se aos suas raízes populares. E, finalmente,
poucos em amargura, desenvolvendo qual- Winckelmann, nascido em 1717 – o mais
quer coisa como um complexo de inferiori- velho, portanto, dos três – fornecerá ao
dade, o gosto da insatisfação e a dor do or- classicismo alemão, juntamente com Herder,
gulho ferido – sentimentos cujas raízes tal- o seu ideal estético. A partir de
vez remontem aos primeiros contatos dos Winckelmann, a Alemanha começa a des-
antigos germanos com a superioridade das prender-se do exclusivismo de Lutero, bus-
tropas romanas – situação esta que terá uma cando uma nova dimensão para a sua alma
importância enorme para o desenvolvimen- na antiga Grécia.
to subsequente da cultura alemã.
Presença da Grécia
A reação e o início da superação desse sen-
timento de inferioridade encontramo-lo em A biografia do jovem Winckelmann revela
três gênios do século 18, fundadores da nova um fato significativo. Destinado ao estudo
da teologia e ao ministério de Deus, muito
cedo dedicou-se à língua grega, e conta-se
que, durante as aulas, sermões e ofícios reli-
giosos, o nosso autor ocupava-se com a lei-
tura dos poetas da Grécia antiga. Em verda-
de, detesta a teologia, assim como detestara
o humilde trabalho artesanal que seu pai lhe
quisera transmitir. Winckelmann é mais exi-
gente: não aceita imposições e pretende es-
tudar apenas o que lhe dita o próprio cora-
ção. Além disso, manifesta-se aos poucos
nele uma incontrolável capacidade de sonho,
a nostalgia de um passado longínquo. Fanta-
sia a Grécia; e fará o impossível para realizar
esse sonho, inclusive sacrificar a sua integrida-
de pessoal quando, mais tarde, farisaicamente,
Geschichte der kunst
se converte ao catolicismo, a fim de, através
da católica corte de Dresden, toda voltada
des Altermus
Fonte: http://
arte.laguia2000.com/general/
para o Vaticano, obter os favores dos car-
deais romanos.
neoclasicismo-el-arte-
alrededor

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Kant nunca saiu da Prússia, não chegando ideal é vivido. Todos ouviram falar de Elis e
sequer a conhecer a Alemanha; não alenta- Olímpia, e o importante está precisamente
va sonhos pela Grécia e foi o que alguém em que apenas se ouça falar. Dos grandes
chamou de “um alemão sem compensações”. da época, quem mais se aproximou da Grécia
Já Herder só conseguiu formar seu espírito foi Goethe, e assim mesmo não conseguiu ir
através de viagens empreendidas por diver- além das praias da Sicília, onde, de pé, nas
sos países da Europa. A necessidade de sair margens do Mediterrâneo, voltado para a
de seu país torna-se exacerbada em Grécia, recitava os versos de Homero.
Winckelmann – poderíamos dizer que ele é
só “compensação”. Após longos anos de Se o passado a que pretendem voltar os
estada em Roma, volta, para rever amigos, à românticos é precipuamente a Idade Média,
Alemanha; mal atravessa a fronteira, é to- esta “volta” se processa inserida na paisagem
mado de tal horror por sua pátria, de tal concreta das ruas e das catedrais góticas das
mal-estar diante da “terrível, deprimente cidades medievais alemãs. Nesse ponto, os
paisagem”, que suspende seus planos e “clássicos” alemães são mais nostálgicos do
retorna apressadamente para a Itália, embo- que seus colegas românticos, pois nunca ti-
ra, recém-chegado a Trieste, o destino o fi- veram a experiência concreta da tão valori-
zesse cair nas mãos de seu assassino. O que zada paisagem grega. E isso os distingue tam-
caracteriza Winckelmann é sua perene e bém dos clássicos latinos, que apenas se
insubstituível nostalgia – quase mórbida – apossavam, quase sem sonhos, de uma raiz
pelo sol mediterrâneo. ainda próxima e que se impunha como he-
rança natural.
Buscava a Grécia, mas nunca conseguiu ir
além de Nápoles, e essa fatalidade, longe de Assim, se o classicismo latino encontra seu
ser exclusiva de Winckelmann, repete-se em centro em Roma – o que não quer dizer
todos os grandes sonhos gregos da Alema- exclusão da Grécia – os alemães vão encon-
nha. Um século mais tarde, em um poema trar seu centro em Atenas – e excluem
intitulado “O Único” (Der Einzige), Roma. Significativo sob esse ponto de vista
Hoelderlin perguntará: é o encontro, em Jena, de Goethe e
Napoleão, e o desejo, expresso por este, de
Was ist es, das ser a inspiração de um drama de Goethe.
An die alten seligen Kuesten Goethe que havia em sua juventude acalen-
Mich fesselt, dass ich mehr noch tado a ideia de um “César”, compreenderá
Sie liebe als mein Vaterland?3 mais tarde que tal plano lhe era completa-
E mais adiante acrescenta: mente impossível. Napoleão, um César que
tentou realizar o seu Império, como que
Und gehoeret hab ich pede a Goethe, um grego homérico, a glori-
Von Elis und Olympia.4 ficação do romano.5 Mas como glorificar
quem desfigurara o grego?
Esses versos são de extrema importância
para compreender as relações entre a Ale- A destruição do barroco
manha e a Grécia clássica. A necessidade da
compensação grega é cultivada como algo Winckelmann não reage, ao menos inicial-
de fundamental não só enquanto ideal e mente, contra a Renascença italiana; bem ao
descoberta de novos horizontes, mas, so- contrário, faz até mesmo o elogio da Madona
bretudo, pelo modo nostálgico como esse Sixtina, de Rafael, por exemplo, com a qual

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se familiarizara no museu de Dresden. Dire- roso líder de um movimento antibarroco,
tamente, também não ataca a Roma antiga. que se anunciava já, mas de maneira débil.
Mas ergue-se contra a arte barroca, e é atra-
vés desta que atinge Roma. Em Dresden, O que motiva a reação de Winckelmann con-
para onde se mudara em 1748 e assumira tra o barroco? O assunto é complexo e a
o posto de bibliotecário do conde Buenau, partir de seu fundo histórico podemos com-
no castelo de Noethnitz, Winckelmann so- preender melhor a importância das Reflexões.
fre o impacto violento da arte barroca, so- Nessa obra, mais do que ao barroco de
bretudo no Grosser Garten, que oferecia Dresden, Winckelmann se opõe à arte de
na época mais de 150 estátuas de imitado- Bernini. Restringindo-se à consideração da
res franceses, italianos e alemães de Bernini. obra desse escultor, antes de atacar propri-
Em um local mais escondido e de difícil aces- amente toda a arte barroca, limita-se a recu-
so do mesmo jardim, tinha a oportunidade sar certas ideias defendidas por Bernini, re-
de flertar com algumas peças abandonadas lativas sobretudo ao aprendizado da arte.
de arte antiga, pouco valorizadas e por isso Assim, por exemplo, escreve: “O estudo da
em má condição. natureza deve ser, pois, ao menos para o
A influência que sofreu do pintor Oeser fez conhecimento do belo perfeito, um cami-
com que Winckelmann, em 1755, escreves- nho mais longo e mais trabalhoso do que o
se sua primeira obra: Reflexões sobre a imi- estudo das obras da Antiguidade; e Bernini,
tação da arte grega na pintura e na escultu- que recomendava sempre aos jovens artis-
ra, um ensaio que contém já as principais tas estudar preferentemente a natureza no
ideias do autor; mais tarde as desdobrará e que ela mostra de mais belo, não lhes teria
fundamentará mais amplamente, fazendo indicado, para isso, o caminho mais curto”.
correções apenas secundárias. Esse panfleto Winckelmann recomenda aos jovens que, no
(pois na época o ensaio teve força processo de iniciação aos mistérios da cria-
ção artística, façam o aprendizado não a partir
Histoire de l’art de
l’antiquité, 1781 panfletária) teve considerável repercussão,
Fonte: www.brynmawr.edu/.../
fazendo de seu autor o porta-voz e o vigo- da natureza, mas da imitação dos antigos.
antiquity/education
“Creio”, diz ainda, “que a imitação dessas
obras (do Antinous Admirandos e do Apolo
do Vaticano) poderia ensinar mais rapida-
mente, pois o artista encontra aqui, numa, a
soma do que está disperso em toda a natu-
reza, e aprende, através da outra, a que ponto
a mais bela natureza pode elevar-se acima
de si própria, destemida e sabiamente”. E
acrescenta: “Mesmo se a imitação da natu-
reza pudesse tudo dar ao artista, certamen-
te não lhe daria a exatidão do contorno, que
só os gregos sabem ensinar”.

Concluídas as Reflexões em junho de 1755,


em setembro do mesmo ano Winckelmann
parte para Roma, e nessa cidade uma série
de circunstâncias vai obrigá-lo a ampliar seu
campo de luta e a aguçar seu modo de

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visualizar a arte antiga. À guisa de exemplo, de Rafael, é porque vê nela a inspiração gre-
basta lembrar a larga reputação que gozava ga de “um contorno grande e nobre”. No
na época a obra de Giovanni Battista Piranesi. barroco, Winckelmann passa a ver uma for-
As suas gravuras, Vedute di Roma, espalha- ma corrupta da arte clássica, um filho bas-
vam a glória da cidade, em seus aspectos tardo da Grécia, falsificado por Roma.
antigos e modernos, por toda a Europa. Em
sua arte manifestam-se pujantemente a Mas o ataque vai mais longe, e com isso pas-
grandiosidade da arte romana barroca e o samos ao segundo ponto.
elogio da monumentalidade do passado his- Lembremos que a arte barroca preenchia
tórico. Em obras como Antichità Romane, duas finalidades básicas: a glória de Deus e a
de 1756, e Della Magnificenza ed Architettura glória do Príncipe, da Igreja e do Estado. E
de’ Romani, de 1761, Piranesi defende o essa dupla exigência era realizada com te-
decoro e gravità da arte romana, e recusa a mas cristãos e motivos romanos antigos, nas
tese da filiação grega da arte romano-italia- igrejas, palácios, óperas e festas de corte. Mas,
na. Contra o entusiasmo, que já se anuncia- com a crise da ideia do Estado e a consciên-
va, pela arte grega, Piranesi acreditava ter a cia crescente da impossibilidade de unifica-
arte romana surgido antes e independente- ção das religiões, esse mundo termina cain-
mente do conhecimento dos gregos. Logo do por terra, dando assim lugar à cultura
depois, em 1764, Winckelmann afirmava a burguesa, da qual Winckelmann já faz parte.
gratuidade dessa tese e a impossibilidade de Dentro, e em função desse novo horizonte,
compreender os romanos sem os gregos. Winckelmann foi o homem que conseguiu
salvar os antigos. E esse salvamento obede-
Dentro desse ambiente, cercado de posi- ce ao seguinte processo.
ções semelhantes, Winckelmann é levado a
defender suas ideias. E tais ideias se desen- No barroco, volta à tona o sonho de uma
volvem através de polêmicas com os defen- arte total, que chega a realizar-se de manei-
sores do barroco; as posições do nosso au- ra especialmente ilustrativa na ópera. A ópera
tor podem ser compreendidas através dos persegue a união, sobre o fundo de um uni-
quatro pontos seguintes. verso mitológico, do canto e da dança, da
poesia e da música. O fato de o poeta ser
Winckelmann adora Roma, sua pátria de subordinado à música e às festas da corte e
adoção. “Abandonar Roma”, escreve a um da Igreja só pode ser compreendido como
amigo, “é o mesmo que abandonar minha uma exigência da arte total. E, obviamente,
amada”. Nessa cidade, liberta-se da serieda- certo privilégio cabe à música: significativo é
de das catedrais góticas e consegue ver a encontrarmos o nome de Orfeu no título
beleza nos olhos, saciando assim sua nostal- do que pode ser considerado a primeira
gia. Há quem diga terem os alemães estraga- grande ópera ocidental. Essa criação italiana
do os olhos de tanto ler: com Winckelmann já era, há muito tempo, familiar a
começa o aprendizado do ver. Mas o que Winckelmann, pois ela invade também o
mais o interessa em Roma não é Roma, e sim norte (o libretista Metastásio vive em Viena
a Grécia. De dentro de Roma, vence-a e vol- como poeta da corte), atingindo lá, talvez,
ta-se para a Grécia. Já nas Reflexões havia sua forma mais completa e perfeita.
escrito: “As fontes mais puras da arte estão
abertas: feliz quem as encontra e as sorve. Para Winckelmann, a excelência que o bar-
Procurar essas fontes significa partir para roco atribui à música não tem sentido al-
Atenas”. Se faz o elogio da Madona Sixtina, gum: interessa-se tão só pelas artes plásti-

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cas, ou melhor, pela escultura, e não há nele herança deixada pela Renascença italiana.
sequer uma sensibilidade maior pela pintura Através desta, acentua-se a presença do ele-
ou pela arquitetura. Daí sua reiterada insis- mento pagão antigo ou, mais precisamente,
tência na ideia de “linha simples” ou de “con- o da última fase da cultura romana. Esse ele-
torno nobre”. E o importante é compreen- mento, contudo, não entra em choque com
der que não se trata aqui apenas de uma o cristianismo; ao contrário, é absorvido, tan-
questão subjetiva de preferência pessoal. to nas artes plásticas como na ópera, contri-
Segundo nosso autor, a escultura, se não é buindo para a conquista de uma harmonia
o único, impõe-se como o caminho mais que no barroco é compreendida como o
seguro que nos pode fazer voltar à fonte fruto da tensão entre opostos.
pura de Atenas. E mais: sublinhando o plás-
Winckelmann, em sua contribuição para o
tico, e apenas o plástico, o que cai por terra
dessoramento do ideal de arte total, isola
é simplesmente o ideal barroco de uma arte
também o elemento pagão do elemento
total. Winckelmann tem horror ao sentido
cristão, sem opô-los, porém, em uma ten-
de monumentalidade e de pompa, tão ca-
são conflituosa. Diante do cristianismo, seu
racterísticos do barroco, e busca um elemen- comportamento caracterizou-se sempre por
to puro, o mais simples possível. Nesse sen- uma profunda negligência: melhor fora não
tido, poderíamos quase dizer que encontra- existisse, pois nosso herói teimava em sen-
mos aqui um comportamento abstrato que tir-se como um grego perdido nos tempos
não é evidentemente absoluto, por encon- modernos, exilado de sua impossível pátria
trar-se sempre intrincado com uma dimen- nativa. Em seu exacerbado sentido para a
são valorizadora e uma intenção pedagógi- amizade (ele sempre quis fazer da amizade
ca. No barroco, nenhum elemento pode ser e da liberdade os ideais norteadores de sua
isolado. E o isolamento de um elemento é existência), pretendia vislumbrar seu paren-
precisamente a obra de Winckelmann. E tesco, sua afinidade profunda, com os gre-
mesmo esse elemento por ele desligado das gos clássicos.
pretensões da arte total é valorizado em um
sentido diametralmente oposto ao barroco E, finalmente, em quarto lugar, acentua-se o
porque, se neste encontramos uma forte elemento subjetivo.
tensão dinâmica (ligada à música), para
Antes da Renascença a arte é dominada
Winckelmann o plástico por excelência é o
pelo que Fritz Blaettner, usando uma ex-
calmo, o estático, o que sabe concretizar o
pressão da escolástica medieval, chama com
ideal de um repouso absoluto.
felicidade de intentio recta:6 a função cria-
Em terceiro lugar – e aqui topamos com mais dora do artista torna-se anônima diante dos
uma decorrência da derrubada da arte total valores objetivos (as exigências do culto,
– dissocia-se o elemento cristão. por exemplo), e a arte é manifestação da
glória divina. Na Renascença, as coisas co-
O barroco é talvez a última Kulturepoche, meçam a mudar de figura. Descobre-se a
no sentido rigoroso da expressão, quer di- arte antiga, ou se lhe dá ao menos uma nova
zer, um estilo que penetra, unitária e pro- dimensão, integrando-a ingenuamente no
fundamente, todos os campos da atividade próprio clima espiritual da época. Põe-se,
cultural. Sob esse aspecto, o barroco não por exemplo, um violino nos braços de
deixa de assemelhar-se à Idade Média, com Apolo – e disso queixa-se, revoltado,
ao menos uma diferença importantíssima: a Winckelmann –, e o deus grego se torna o

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espírito protetor das festas. Dessa forma, a mais do que um precursor, pois não chega a
figura de Apolo é deturpada, perde seu desenvolver propriamente uma doutrina
sentido originário, pois já nada tem a ver sobre a matéria nem a desprender-se com-
com o que lhe atribuíam os gregos. pletamente da intentio recta ao falar, de
modo platônico, em um “reino. de ideias
Assim, aos poucos, esvai-se a integração em incorpóreas”. A tendência ao subjetivismo
um ideal objetivo e introduz-se uma intentio permanece a meio caminho.
obliqua. Com outras palavras, começa-se a
descobrir sentido na atividade criadora do O conceito de imitação
gênio artístico. Surgem as biografias e mes-
Quais são os problemas centrais da doutri-
mo as autobiografias. Le Vite de piu eccellenti
na de Winckelmann?
pittori scultori ed architettori, de Vasari, é
um excelente indício dessa mudança de acen- Quando alguém hoje inicia a leitura de sua
to tônico, pois a biografia do artista começa obra não deve esperar demasiado, pois não
a impor-se como algo tão ou mais impor- há nela uma doutrina de grandes dimensões.
tante do que a própria obra realizada. Com Examinando-se mais de perto suas idéias,
o individualismo protestante passa-se a su- constata-se mesmo a ausência de originali-
blinhar ainda mais a obra de arte considera- dade maior. A influência de um Oeser, por
da o produto de uma alma determinada, de exemplo, é patente nas Reflexões. Desde
uma existência exemplar, e Hamann nos dá cedo, a leitura de Shaftesbury o acompanha-
a primeira fundamentação importante dessa va. Sua primeira obra, mais que grande origi-
atitude em sua teoria do “gênio”. A mudan- nalidade, nos apresenta a codificação de um
ça de perspectiva, no sentido de uma estado de revolta contra o barroco e de um
subjetivação crescente, abre as portas para espírito novo disseminados na época. E, so-
todo um mundo novo que entusiasmará, bretudo, Winckelmann não é um pensador;
mais tarde, tanto os românticos como seus não se deve tomá-lo por esse lado.
sequazes simbolistas, etc.
Isso tudo, aliás, já foi muito bem compreen-
Torna-se cada vez mais secundário saber o dido por Herder ao dizer que o ponto de
que produz o artista, e sublinha-se o como partida de Winckelmann é seu amor à bele-
ele produz. Winckelmann deu nessa orien- za na arte grega; e sua finalidade tornar os
tação, de modo consciente, um passo deci- gregos novamente vivos e atuais. Mais do
sivo. Quando descreve uma estátua grega, que o pensamento, é o entusiasmo pela arte
busca um ideal humano que vale por si, in-
grega que o norteia.
dependentemente da estátua; persegue o
ideal da “nobre simplicidade e da calma gran- Já nas Reflexões assevera: “O único cami-
deza”. Se os gregos são importantes é por- nho para nos tornarmos grandes e, se possí-
que nos podem ensinar o excelente, nos
vel, inimitáveis é a imitação dos antigos”. Ora,
podem dar a “visão do elevado e do subli-
me”: a arte adquire uma nova função o conceito de imitação facilmente pode ser
educativa, presa ao estético, que passa a ser mal interpretado, e o perigo que oferece não
considerado o alicerce e o caminho para uma decorre apenas de uma possível falta de com-
nova sabedoria. Daí a ideia que se introduz preensão, mas sobretudo das dificuldades
de uma dignidade e de uma santidade pró- que oferece sua realização prática, dificulda-
prias do artista. Nesse ponto, porém, des que talvez só o artista excepcional con-
Winckelmann não pode ser considerado siga vencer. Winckelmann tinha consciência

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disso, e sua frase pode ser mais bem com- gregos foram os únicos que atingiram o ple-
preendida se for explicitada da seguinte no desenvolvimento de sua forma e, por isso,
maneira: o único caminho para nos tornar- o esplendor maior da natureza. A perfeição
mos grandes e, se possível, tão inimitáveis foi tal, que o divino, poderíamos dizer, tor-
quanto os antigos são inimitáveis é a imita- nou-se sensível; a natureza grega – humana
ção dos antigos. A imitação visa, de fato, tor- – era tão perfeita, que nela podia-se ler o
nar-nos inimitáveis, tanto quanto os gregos. traço da mão divina. A educação e o condi-
Não se trata de levar a uma imitação pura e cionamento geral da cultura grega ofereciam
simples, ingênua, dos gregos, pois por esse ao artista um tal esplendor da natureza, que
caminho se pretenderia refazer a arte grega, seu ato criador se processava em condições
o que é manifestamente um absurdo. A um excepcionalmente felizes. O entusiasmo de
primeiro exame, a frase de Winckelmann Winckelmann radica precisamente nessa
parece implicar, portanto, uma contradição: coincidência entre a natureza e o eidos; as-
a imitação do inimitável; tornarmo-nos sim compreende ele a natureza grega.
inimitáveis imitando o inimitável. Mas a con-
A diferença entre o grego e o moderno re-
tradição só existe se tomarmos a imitação
side em que, naquele, a natureza já se apre-
no sentido de cópia.
sentava ao artista em seu estado de perfei-
Ora, sobre esse mal-entendido escreve o ção, ao passo que para o moderno – e aqui
próprio Winckelmann: “A imitação do belo vai implícita uma crítica ao cristianismo – a
na natureza concerne ou bem a um objeto perfeição da natureza perdeu-se. Desse
único ou então reúne as notas de diversos modo, o que para o grego era realizado sem
objetos particulares e faz delas um único esforço maior, para o moderno dever-se-ia
todo. O primeiro processo implica fazer uma tornar objeto de uma laboriosa conquista,
cópia semelhante, um retrato; é o caminho de um trabalho paciente e teimoso.
que conduz às formas e figuras dos holan-
deses. O segundo é o caminho que leva ao Exclui-se, portanto, a obtusidade da arte
belo universal e suas imagens ideais; esse foi entendida como cópia, e acede-se ao senti-
o seguido pelos gregos”. O que interessa, do de uma frase como a seguinte: “O estu-
pois, não está simplesmente na cópia, e sim do da natureza deve ser, ao menos para o
no eidos, na ideia ou na forma universal. O conhecimento do belo perfeito, um cami-
sentido da imitação não é naturalista ou re- nho mais longo e mais penoso que o estudo
alista, mas platônico. O importante, quando das obras da Antiguidade”. Daí sua oposição
se faz arte, não consiste simplesmente em a Bernini, que recomendava o estudo direto
copiar os antigos, e sim em pensar como os da natureza. Segundo Winckelmann, esse
gregos, em comportar-se como eles: exigin- caminho é penoso, senão impossível, devi-
do da arte uma missão semelhante à dos do à deficiência da natureza moderna. Os
gregos. Só desse modo a imitação pode ser gregos, pelo contrário, “tinham, quotidiana-
criadora e evitar o impasse do servilismo. mente, a ocasião de observar o belo na na-
tureza; uma ocasião que, para nós não se
É necessário insistir um pouco no tema: por oferece todos os dias e raras vezes se mos-
que a necessidade da inspiração nos anti- tra tal como o artista a deseja”.
gos? Mais tarde em sua obra mais importan-
te, a História da arte na Antiguidade, Torna-se claro, assim, que quando
Winckelmann defenderá o ponto de vista Winckelmann prega a imitação da arte gre-
de que, entre todos os povos antigos, os ga, não se refere simplesmente a uma cópia,

REEDIÇÃO • GERD BORNHEIM 153


mas à captação da natureza em seu estado cença italiana encontramos a exigência de
de perfeição, o que só pode ser conseguido um archetypus humanitatis, cujo nervo seria
em nível exemplar através dos gregos. Em constituído pela sancta simplicitas. Do
última análise, não se trata de imitar a natu- seicento italiano, os franceses vão aceitar a
reza – a isso está confinada a cópia – e sim ideia de uma simplicité, naturelle, de uma
uma presença na natureza que a transcen- noble simplicité, chave para compreender o
de. “Estas numerosas ocasiões de observar verdadeiro homem, o verus homo.
a natureza levaram os artistas gregos a ir Shaftesbury também já falara na accurate
ainda mais longe: começaram a formar cer- simplicity of the ancients. A ideia, portanto,
tos conceitos universais – tanto a partir de não é nova.
partes isoladas do corpo, como de suas pro-
porções de conjunto – que se erguiam aci- Mais do que italiano, francês ou inglês, o ideal
ma da própria natureza; o seu modelo ori- da “nobre simplicidade e calma grandeza”
ginal, ideal, era a natureza espiritual conce- deve ser entendido como manifestação de
bida tão só pelo entendimento”. E pode- uma tendência básica e constante do
mos acrescentar; pelo entendimento divi- humanismo ocidental: a crença de que o di-
no, à maneira platônica. vino, o digno, o nobre, estão aliados ao imó-
vel, ao simples, ao calmo, ao repouso. A pri-
O artista realiza uma obra bela apenas na meira expressão vigorosa dessa estaticidade
medida em que seu trabalho manifesta sen- encontra-se no pré-socrático Xenófanes,
sivelmente o divino na natureza. A arte deve, quando diz, por exemplo, em um de seus
consequentemente, apresentar através do fragmentos, que “nem é próprio de Deus
sensível aquilo que o transcende; trata-se, mover-se”. O reverso dessa concepção im-
portanto, de fazer coincidir o plano “físico” plica asseverar que a mobilidade está unida
da realidade com o metafísico; a arte tem à ausência de perfeição, à insuficiência, a um
por finalidade um processo recíproco, de certo deficit da realidade. O movimento acen-
transcendentalizar a imanência e de tua a finitude, está preso ao sentido da morte
imanentizar a transcendência. Mais tarde, ins- e traz consigo até mesmo certa vulgaridade.
pirado na mesma ideia, Schiller dirá que a
arte nunca é real, precisamente por revelar Essa ideia, que penetra a arte religiosa e o
o verdadeiro absoluto. Impõe-se à arte, as- retrato, vai impor-se sobremodo na chama-
sim, como objetivo, a aproximação do eter- da arte clássica, presa sempre a uma dimen-
no. Compreende-se, por isso, que os gregos são pedagógica e, não raro, até mistagógica,
reduzissem sua arte quase exclusivamente à fazendo com que o ideal da arte seja elevar
representação dos deuses, tendendo à o terreno ao divino, a fim de tornar os “fi-
concretização de uma exemplaridade divina. lhos da terra” – para usarmos as expressões
de Platão – “amigos da forma”; a perfeição
Essa ideia é expressa por Winckelmann em só seria exequível através de um processo
sua frase mais famosa e que condensa sua de divinização. A tentativa de transportar o
doutrina: o ideal da arte é “a nobre simplici- sensível ao divino constituirá a alma daquilo
dade e a calma grandeza”. Nessa frase, con- que o classicismo alemão vai batizar com o
tudo, nada é novo; le mot et la chose já ha- nome de a “bela alma” (die schoene Seele);
viam sido defendidos antes, tanto do ponto e que implica a suspensão de todo o
de vista do ideal artístico quanto de sua di- conflituoso em uma harmonia superior de
mensão pedagógica. De fato, já na Renas- “nobre simplicidade e calma grandeza”.

154
Goethe explorará a ideia de que os deuses e a máxima vitória da divinização do huma-
se humanizaram a fim de divinizar o homem. no. Diante dessa estátua, seu comportamen-
to transforma-se em religioso, e ele a des-
Característica de Winckelmann é a crença creve com tal entusiasmo, que suas palavras
de que a “bela alma” encontra seu Urbild, se tornam um hino. Ergue o Apolo à condi-
seu modelo original, na Grécia antiga, razão ção de critério supremo para compreender
pela qual a imitação dos gregos afiança-se a arte grega e inaugura, assim, a visão apolínea
como sendo um caminho insubstituível. da cultura antiga; contemplando-o, “acredi-
“Quem não conhece as obras da Antiguida- tava ver o próprio deus, tal como aparece
de não creia saber o que é verdadeiramen- aos mortais”. Apolo passa a ser a epifania do
te belo.” O fundamental, assim, é aprender sentido último da Grécia.
a ver a beleza grega e, através desse ver,
despistar um comportamento arqueológico; Trajetória de um sonho
ou a compreender o arqueológico no senti-
Resta-nos ainda um problema: a influência
do etimológico da palavra, como um dizer a
exercida por Winckelmann. Essa influência
origem, mas uma origem que é perenidade
leva a um problema maior e complexíssimo,
e por isso empresta à arte antiga uma reali-
do qual só é possível, aqui, acenar aos mar-
dade sempre atual, desveladora de um fun-
cos mais importantes de seu desdobramen-
do permanente e divino das coisas. A volta
to. Referimo-nos ao delicado tema das trans-
aos antigos não significa apenas a volta ao pas-
formações do ideal apolíneo da Grécia no
sado, e sim a conquista para o homem de um
evolver da cultura alemã.
estado natural perfeito, sua atualização plena.
Que sua obra deveria forçosamente perma-
A visão da Grécia defendida por
Winckelmann concretiza-se através de suas necer fragmentária, disso Winckelmann ti-
análises de peças da escultura antiga, de nha plena consciência; sabia que não passa-
modo especial o Laocoonte e, sobretudo, va de um iniciador e queria sê-lo. De fato,
do Apolo de Belvedere. O grupo do estava reservado a outros espíritos interpre-
Laocoonte é analisado não como manifes- tar e corrigir sua obra. E mais: outros tenta-
tação do patológico – que era a tese de riam a realização de seu ideal – mas de um
Bernini – ou da violência, um estado efêmero ideal submisso agora à inexorabilidade his-
e indigno da arte, mas a partir da ideia do tórica e que viria, por isso, sofrer profundas
triunfo da alma, de um extremo da dor que transformações.
se sabe vitoriosa e que, por isso mesmo, é
plenamente compatível com a perenidade A influência exercida pelo autor das Refle-
do divino. O interesse principal que ofere- xões encontra-se, desde seu início, presa a
ce, contudo, a análise de Laocoonte é que a um paradoxo, pois o setor sobre o qual
calma grandeza não se confunde para Winckelmann exerceu não só a menor mas
Winckelmann com uma estaticidade morta; também a pior das influências foi precisa-
a famosa escultura seria a personificação da mente o de sua especialidade: as artes plás-
vitória da vida, o triunfo da nobreza e da ticas. Seus autênticos continuadores não são
medida sobre a dor e a imperfeição. os escultores e os pintores, mas os poetas.
Os artistas que se deixaram entusiasmar por
Mas é no Apolo de Belvedere que suas ideias compreenderam tão mal o mes-
Winckelmann vê a suprema síntese da arte tre, que a consequência foi o academismo
e do homem gregos, o mais alto ideal antigo e a acusação impiedosa de ter sido

REEDIÇÃO • GERD BORNHEIM 155


Winckelmann seu provocador. “Aquele que co dos povos e das nações. O problema já
negligencia a natureza a favor do antigo, ar- não é apenas o de saber qual possa ser o
risca-se a tornar-se frio e sem vida”, reza a destino da arte, mas, e enfaticamente, o des-
crítica formulada já por Diderot em seu tino de um povo, de uma cultura. O autor
Salon de 1765. Uma crítica que, em última de Ideias para a filosofia da história da hu-
análise, vem dar razão a Bernini, embora manidade aceita o ideal estético de
Diderot se limite a fazer, afinal de contas, a Winckelmann, fazendo, contudo, avançar o
defesa do aprendiz e do pequeno artista. Por problema em uma direção decisiva: pergunta
discutíveis que possam ser os ideais estéti- até que ponto será possível uma renascença
cos inaugurados por Winckelmann, devemos “grega” em solo germânico. E mais: Herder
reconhecer que ele não é totalmente res- crê – e nisso será seguido mais tarde por
ponsável pelo estado de decadência que se Humboldt, Goethe e outros – em uma
introduziu; a deficiência, mais do que em affectio originalis, em uma conaturalidade, em
Winckelmann, reside na dificuldade em co- uma afinidade profunda entre a Grécia anti-
locar-se à altura – possível ou impossível – ga e a Alemanha moderna. Haveria, segun-
por ele exigida. Seu conceito de imitação do ele, uma espécie de palingenesia entre
muito facilmente pode ser deturpado, mal os povos; donde as grandes esperanças em
compreendido, derivando, talvez fatalmen- relação ao futuro da cultura moderna.
te, para a cópia. De qualquer forma,
Winckelmann inaugura um sonho, e seu Mas esse ideal não se realizaria de maneira
continuador não é um Bertel Thorvaldsen, ingênua – ou ao menos não tão ingênua
mas Goethe. quanto em um Lessing. Herder sabia que a
cultura grega pertence definitivamente ao
Se Winckelmann pretendeu dar novos passado, e sua sensibilidade para a história o
cânones à arte, por outro lado é importante fazia compreender o absurdo de sonhar com
salientar que, longe de se reduzir a isso, ele uma renascença grega em tempos moder-
se propôs um programa muito mais com- nos. Tal renascença não poderia repetir sim-
plexo e vasto. Na introdução de sua Histó- plesmente a “maneira” grega, pois só se po-
ria da arte da Antiguidade escreveu: “A his- deria processar realizando plenamente a pró-
tória da arte deve mostrar sua origem, seu pria cultura moderna; assim como os gregos
crescimento, suas modificações e sua que- legaram a grande cultura da Antiguidade, os
da, bem como ensinar os diversos estilos dos alemães poderiam realizar a grande cultura
povos, épocas e artistas”. A sequência das moderna. Poderíamos dizer que, através de
palavras “povos, épocas e artistas” parece in- Herder, Winckelmann abandona seu longo
dicar uma certa hierarquia; em verdade, o exílio voluntário e volta à Alemanha – volta
realizador de um programa tão exigente rea- para aclimatar em sua pátria as vivências as-
lizou apenas parcialmente seu intuito, e quem similadas em terras mediterrâneas. E obvia-
vai chamá-lo a si, entre outros, é Herder. mente já aqui encontramos uma renúncia: o
ideal estético de Winckelmann só se pode-
Winckelmann não teve a preocupação de ria concretizar enquanto derivado de um
enquadrar a arte grega – e muito menos a absoluto que permanece definitivamente
cultura grega – no contexto da história uni- preso ao passado.
versal. Ora, essa é uma das peças fundamen-
tais da preocupação de Herder; surge com Esse ideal, visto agora com novos olhos, passa
ele um sentido especialmente agudo para o a ser com Herder o programa da cultura
histórico e para o desenvolvimento orgâni- alemã, embora não seja ele quem vá realizá-

156
lo. Na literatura alemã falta ainda, lamenta- são definitiva de Ifigênia, e dois anos mais
se Herder, a grande obra, falta o Homero tarde Schiller escreve sua última versão de
nórdico. Esquematizando: Winckelmann dá Os deuses da Grécia, sua máxima contribui-
ao classicismo alemão seu ideal estético, ção ao tema grego, que soube impor-se,
Herder lhe dá sua teoria, que será posta em durante muito tempo, como um dos poe-
prática por Goethe e SchilIer. mas mais populares da Alemanha.

Como para Herder, para Goethe o grego Durante alguns anos os dois poetas comun-
por excelência não é o artista plástico, mas gam os mesmos ideais clássicos. Schiller, po-
Homero. A despeito disso, Goethe foi na rém, permanece muito mais distante da Grécia
Alemanha o homem que permaneceu mais do que permitem julgar as aparências. Se em
próximo de Winckelmann. O aprendizado alguns de seus poemas programáticos há o
do ver, iniciado por este, atinge em Goethe elogio da Grécia, seu teatro é profundamente
sua plenitude; pode-se até dizer que Goethe alheio à dimensão grega, mesmo A noiva de
está todo nos olhos – é plasticamente que Messina, a única de suas peças em que pro-
ele compreende Homero. Assim se explica, curou inspirar-se em um modelo antigo,
por exemplo, seu perene desejo de tornar- aproxima-se mais do teatro barroco do que
se pintor. A viagem à Itália, a necessidade de do grego. Se o conceito de “bela alma” en-
ver a paisagem mediterrânea, tornou frutuosa contra seu paradigma no homem dos tem-
a concepção da Grécia que Goethe lera, ini- pos homéricos, sua problemática só pode
cialmente sem maiores consequências, nas ser compreendida a partir de Kant e do bon
páginas de Winckelmann e Lessing. Através sauvage de Rousseau. A nostalgia do Sul é
de seu contato com os antigos, o poeta for- débil em Schiller, e se o grande aconteci-
ma seu conceito de estilo, um conceito, mento da vida de Goethe foi a viagem à Itá-
aliás, muito próximo da ideia de imitação lia, em seu amigo encontramos a experiên-
defendida por Winckelmann. Tanto quanto cia puramente interior das leituras das Críti-
é possível para um alemão, em Goethe rea- cas de Kant. E, dessa forma, Schiller, em qua-
liza-se o classicismo ao menos durante al- se todos os aspectos de sua evolução e de
guns anos, na fase em que escreve Tasso; e sua obra, é o oposto de Winckelmann.
o poema épico Herrmann e Dorotea. A certa altura, acontece a inquietante fatali-
dade: Schiller insiste para que Goethe volte
Sem dúvida, o ideal de calma grandeza e
a ocupar-se com um dos temas de sua ju-
nobre simplicidade se torna real em algu-
ventude, da época do já distante Sturm und
mas obras de Goethe e também em sua vida,
Drang. Relutante no início, Goethe cede e
pondo-se assim à prova a teoria classicista se entusiasma. O tema é o Fausto, e nessa
dos profetas que o antecederam. Os ideais sua decisão há toda uma renúncia da qual o
forjados por Winckelmann, de uma cultura poeta acaba tomando consciência: a lenda
olimpicamente apolínea, atingem quase mais implica uma problemática eminentemente
na pessoa de Goethe do que em sua obra romântica. Paradoxalmente, a obra mais im-
seu ponto culminante, fazendo com que portante do chamado classicismo alemão é
Schiller não estivesse de todo errado ao ver romântica. Desse modo, o classicismo, que
em seu amigo a realização da “bela alma”. O nunca conseguira realmente criar raízes nem
ápice desse classicismo coincide, no mais, transcender o âmbito privilegiado de uma rica
com os 10 anos de amizade dos dois gran- mas reduzida elite, termina reconhecendo no
des poetas; em 1786, Goethe nos dá a ver- romantismo seu sentido mais profundo.

REEDIÇÃO • GERD BORNHEIM 157


Frederico Schlegel, em um de seus fragmen- vel que lhes emprestaram os clássicos. De
tos, adjetiva Winckelmann de “santo”. O elo- fato, os românticos vão além da Grécia, con-
gio é evidentemente excessivo: com o ro- tinuam a peregrinação iniciada por
mantismo, os ideais winckelmannianos so- Winckelmann, vão até a Índia, e lá preten-
frem sua derrota mais significativa, já no sen- dem encontrar o berço tanto da Grécia
tido de que a música passa a ocupar o lugar quanto do cristianismo.
das artes plásticas (Wagner dirá mais tarde
que os olhos não lhe são suficientes), como Esvaindo-se seu caráter olímpico e supra-his-
também – e isto é fundamental – porque a tórico, a importância da Grécia diminui, re-
própria ideia apolínea da Grécia começa a duzindo-se a ser um monumento, por mais
dissolver-se, comprometendo os ideais clás- importante que tenha sido, da evolução his-
sicos. Já Humboldt falara da melancolia gre- tórica. E esse imenso caudal que é a história
ga. A despeito disso, o sentimento da ale- parte da Índia, assimila a Grécia e encontra
gria condiciona a interpretação clássica da o seu sentido pleno e último no cristianis-
cultura antiga. Mas Schlegel começa a pres- mo. A partir do ensaio de Novalis A Cris-
sentir em Sófocles uma veia dionisíaca e um tandade ou a Europa, o passado para o ro-
sentido noturno da existência grega, pres- mântico já não é a Grécia, mas a Idade Mé-
sentimento que depois toma vulto, encon- dia cristã. O objetivo passa a ser a recon-
trando seu apogeu nas interpretações de quista da catolicidade do cristianismo, e a
Burckhardt e de Nietzsche.
Grécia sofre o batismo da interpretação cris-
Para a satisfação de Goethe, Winckelmann tã. Com o romantismo, descobrem-se não
havia comparado a arte grega ao mar, mas a apenas as dimensões irracionais e dionisíacas
um mar calmo, que consegue dominar e dos gregos, mas, sobretudo, eles perdem seu
permanecer superior ao caos de sua pro- lugar em face da aspiração a uma unidade
fundidade. Para o romântico, essas superfíci- maior e mais intensa, que culmina no amor
es calmas são apenas superfícies, pois o que e consequentemente no cristianismo.
lhe importa é a profundidade, a origem,
Houve um poeta romântico, contudo, que
mesmo se for destituída de sentido, mesmo
permaneceu fiel à Grécia. Esse poeta foi
se comprometida com o caótico. Esse traço
Hoelderlin. O jovem Hoelderlin e seu cole-
dionisíaco dos antigos, em verdade, não leva
ga Hegel (que mais tarde chamará o mar de
os românticos a ignorar o sentido da har-
“mau infinito”), companheiros de estudos na
monia apolínea própria dos gregos. Em seus Universidade de Tubinga, tinham uma mes-
escritos sobre a filosofia da história, escreve ma preocupação central: a de harmonizar as
Schlegel: “Com a sua arte, os gregos foram duas fontes da cultura do Ocidente, o
os que melhor realizaram a harmonia inter- classicismo grego e o irracionalismo da cris-
na; ao menos em sua época de apogeu, tandade romântica.
muito menos na ciência e ainda menos na
vida”. É com fortes restrições, portanto, que Poucos alemães tiveram tanta sensibilidade
reconhece a harmonia grega. E essa escassa pelo mundo grego quanto Hoelderlin, e ne-
harmonia, em vez de aproximar os românti- nhum, talvez, o tenha compreendido tão
cos da Grécia, em certo sentido os distancia bem. “A Grécia”, confessa, “foi o meu pri-
ou faz com que coloquem os gregos em meiro amor e – não sei se deva dizê-lo –
perspectivas mais amplas de valorização, será o último”. A Grécia o acompanhou du-
empalidecendo a singularidade inconfundí- rante toda a vida, embalando-lhe o desejo

158
de poder visitar algum dia “o túmulo da jo- doch die Stille im Lande der Seligen, und
vem humanidade”, Já se vê: seu amor pelos ueber den Sternen vergisst das Herz seine
antigos é profundamente triste. “A arte cho- Not und seine Sprache.8 Ao homem que
ra comigo”, confessou Winckelmann, e esse mora na terra – na terra dos homens e não
seu choro brota do entusiasmo e da alegria, na dos santos – resta apenas o sonho. Se
confundindo-se com a esperança da recon- Winckelmann pretendia tornar presente e
quista próxima. O choro de Hoelderlin, ao atual a Grécia, com Hoelderlin predomina a
contrário, é todo tristeza. O seu mais famo- ideia da distância, e sua tristeza nasce da
so personagem, Hyperion, exclama: O consciência aguda de um abismo entre a
Grécia e a Alemanha. O poema Grécia
Genius meines Volks, o Seele Griechenlands!
(Griechenland) termina com as palavras:
ich muss hinab, ich muss im Toten-reiche dich Denn mein Herz gehoert den Toten an.9
suchen.7 Hoelderlin sabe que a Grécia é de-
finitivamente uma ausência. A morte chama-se Jacob Burckhardt e é o
capítulo final da história do sonho grego.
Em verdade, ele a compreende de uma Winckelmann acorda para a realidade: com
maneira fundamentalmente clássica e recu- Burckhardt o sonho já foi completamente
sa, assim, a unilateralidade em que incidiam esgotado. As raízes do autor de Considera-
frequentemente os românticos, presos ao ções sobre a história universal ainda estão
excesso irracionalista do anticlassicismo. Mas no classicismo alemão, mas, se para Goethe
recusa também o horror de Goethe pelo o mais belo sonho da humanidade foi so-
noturno, porque só a partir da raiz, do caó- nhado pelos gregos, esse sonho, em
tico (daquilo que Goethe alcunhava de do- Burckhardt, transforma-se quase em um pe-
entio), pode o clássico crescer e desdobrar sadelo, objetivado em sua monumental His-
todo o seu sentido. Dessa maneira, a ideia tória da cultura grega, a primeira visão pes-
de um grego fixo, produto apolíneo da ter- simista da Grécia. Ele vê a cultura antiga com
ra, é substituída por um grego que conquis- os olhos de Schopenhauer, e suas catego-
ta seu classicismo, que faz sua própria histó- rias interpretativas básicas, que adquirem cor-
ria desde o absurdo até atingir a claridade po na arte, são as da angústia, da melancolia,
dos deuses olímpicos. Se o romantismo é do desespero, da dor.
insuficiente e tende ao classicismo com a
necessidade da raiz que encontra na árvore A partir dessa obra, a Grécia deixa de ser
seu sentido, o classicismo, por sua vez, é uma religião. Se Hoelderlin realmente acre-
problematizado. Poderíamos dizer que encon- ditava nos deuses gregos, agora abrem-se as
tramos em Hoelderlin um classicismo crítico. portas para uma interpretação do mundo
antigo determinada pelo critério da objetivi-
Desde o tempo de Winckelmann, a visão dade. Digamos, com Walter Rehm, que a
que Hoelderlin nos apresenta da Grécia é a antropodiceia greco-alemã chega a seu ter-
mais equilibrada e a que maior familiaridade mo. 10 Esgota-se essa modalidade de
revela com o “olhar sagrado” dos deuses, de Ersatzreligion, que Santo Agostinho coloca-
“uma clareza calma e eterna”. E se Hoelderlin ria sob o título geral de experimentum suae
não pode esquivar-se do fascínio do olhar medietatis.
de Diotima – a encarnação da Grécia – esse
olhar torna-se sempre mais vago e distante, Curioso é ainda observar que a Grécia não
como que viciado pela nostalgia, vivendo da ocupa o lugar central das preocupações de
ressonância da plenitude perdida. Wohnt Burckhardt, e sim a Itália renascentista, da

REEDIÇÃO • GERD BORNHEIM 159


qual faz o elogio, elegendo-a como pátria as categorias de nobre simplicidade e calma
espiritual. Isso é significativo, porque Roma, grandeza; o que ele disse das esculturas pode
desbancada por Winckelmann, vai ser transferido, sem violência, aos persona-
reintroduzir-se na Alemanha. Se Goethe re- gens da mitologia grega. Nesse sentido, jus-
cusara escrever o drama de um César – tificam-se plenamente as palavras de Walter
Napoleão –, a Alemanha, que adquire enfim F. Otto: “Winckelmann, a quem hoje come-
sua unidade política e começa a crescer eco- çamos novamente a escutar, após um perí-
nomicamente, tentará inutilmente escrever odo de obscuridade e de pensamento re-
através de sua própria história, esse drama. torcido, bem sabia que o perfeito e divino é
Sob esse aspecto, mais profética do que a repouso e calma”. E mais adiante: “Somente
obra de Burckhardt é a História romana, es- quando se conhecem os deuses em seu sa-
crita por um contemporâneo seu, Mommsen. grado repouso, compreende-se também seu
A essa altura, Winckelmann, batido em seu modo de agir e de criar. E quem compreen-
próprio terreno, parece perder completa- de esse agir e criar em um sentido autenti-
mente qualquer sentido. camente grego, a este se lhe revela também
o sagrado repouso dos deuses”.11 O que
Por que ler Winckelmann? Winckelmann compreendeu de maneira in-
gênua termina vencendo as visões doloro-
Nesse caso, impõe-se a pergunta: qual a
sas de um Burckhardt ou as intuições de um
importância de Winckelmann? Por que ler a
Nietzsche, sem, contudo, roubar-lhes com-
sua obra e estudá-la?
pletamente a razão.
A sua importância histórica não pode ser exa-
Há um outro ponto no qual o autor do En-
gerada, não só por estar Winckelmann na base saio sobre a capacidade de sentir o belo na
do sonho grego que acompanha momentos arte também tem importância. Trata-se de
essenciais do humanismo alemão e ocidental, sua contribuição à história da arte conside-
mas sobretudo porque a ideia que ele nos rada como ciência. Evidentemente, como
deu da Grécia clássica continua inalienável, ciência, a história da arte só surgiu no século
mesmo quando não aceita. Uma interpreta- passado, pois foi então que os historiadores
ção como a de Nietzsche é impensável sem puderam dispor de métodos adequados. Mas
Winckelmann. E dele vem, ainda hoje, a pri- existe uma fase pré-crítica da história da arte,
meira ideia que se faz da Grécia. que se divide, por sua vez, em dois perío-
dos. O primeiro culmina com o aristocrático
No entanto, se se analisar o conteúdo de Vasari, que apresenta a arte através da bio-
sua obra, quase nada resiste à crítica, quer grafia dos artistas, pretendendo, assim, fazer
por ser falsa uma boa parte de suas inter- compreender melhor sua obra e contribuin-
pretações, quer por estar fundamentada, do para tornar mais eminente a posição social
demasiado frequentemente, em dados his- do artista. Vasari faz, fundamentalmente, o
tóricos errados; mas ser passível de crítica elogio da arte e do indivíduo, e um elogio
não acarreta, como pensa certo senso que se nutre do sentimento nacional em as-
cientificista, ausência de valor. censão nos principais países europeus. Nessa
mesma linha, encontramos, na França, um
Há, contudo, uma intuição em Wincke1mann Felibien, na Alemanha, um Sandrarts, nos
que é profundamente verdadeira, e nela re- Países Baixos, um Karel van Mander.
side o nervo de seu pensamento.
Winckelmann viu qualquer coisa da nature- Tal situação sofre uma transformação visceral
za dos deuses gregos, ao visualizá-los com a partir de Winckelmann, caracterizando-se

160
sua atitude por dois novos aspectos: em pri- vivacidade quanto Winckelmann. E isso não
meiro lugar, Winckelmann faz a análise da é pouco – é mesmo o mais importante. Com
obra de arte independentemente da biografia Winckelmann, aprendemos a amar a Grécia.
do artista, e uma análise que tende a recriar
(1961)
no crítico as condições estéticas da criação
da obra de arte; o historiador passa a ser Mestre de várias gerações, Gerd Alberto Bornheim, pen-
uma espécie de artista em segundo grau. sador, ensaísta, esteta, crítico de teatro – facetas entre
Além disso, o historiador deve procurar vol- as tantas de sua notável e incansável operosidade inte-
lectual –, estaria completando 80 anos de idade. Figura
tar à época em que foi criada a obra de arte eminente no panorama cultural brasileiro, homem de seu
e reconstituir, assim, também as condições tempo, desmentindo, assim, os juízos apressados daque-
gerais dentro das quais ela foi criada; captar, les que o julgavam encerrado em sua torre de marfim,
Bornheim, atento às exigências de uma quadra infeliz da
portanto, as causas originantes da obra de história brasileira, lançou uma ponte entre a cátedra e a
arte. Daí sua exigência de acompanhar em vida, na feliz expressão do argentino Alejandro Korn. Não
suas fases de origem, crescimento, maturi- se abateu nem se deixou bater mesmo quando, alvo do
dade e queda a vida dos povos antigos.12 arbítrio, pagou com a cassação de seus direitos políticos
e a aposentadoria compulsória do cargo de professor a
ousadia de “não permitir que o medo diminua nossa ca-
Em verdade, esse duplo programa só foi se- pacidade de pensar” (Max Horkheimer). É esse pensador
guido parcialmente e mesmo de maneira de- brasileiro do mais alto coturno que ora lembramos.
ficiente por seu autor; ele foi tão só o desbra-
vador de uma nova atitude diante da arte.
Mas já aponta claramente para a necessidade Notas
de apreender a essência da obra de arte, e
1 Humana praevalent in eo plus divina. In carta de Lutero a
não meramente de fazer-lhe a história ou uma Lang, de 1 de março de 1517, in Luthers Werke, Berlin:
o

aproximação biográfica. Essas exigências, após Ed. Walter de Gruyter, 1955, v.VI:4.
o desaparecimento de seu fundador, foram 2 In La Div. Comm., Inferno, canto XV:76.
esquecidas e tornaram-se novamente atuais,
3 “O que me prende às antigas e sagradas praias, para que eu
de modo mais crítico e fundamentado, ape- as ame ainda mais do que a minha pátria?”
nas em nossos dias. Para a história da arte,
4 “Ouvi falar de Elis e Olímpia.”
Winckelmann deve ser considerado não só
o iniciador de um novo comportamento em 5 Ver, sobre o assunto, a esplêndida análise de Walter Rehm,
in Griechentum und Goetthzeit, Muenchen, 1952:20 e ss.
face da arte, mas também o precursor da
moderna metodologia científica. 6 Das Griechenbild J. J. Winckelmanns, in Antike und Abenland,
Hamburg: ed. Marion von Schöeder, 1944, v.1:121 e ss.
Tais méritos, que devem ser reconhecidos 7 “Ó gênio de meu povo, ó alma da Grécia! Devo descer,
em sua obra, são todos mais ou menos limi- devo procurar-te no reino dos mortos.”
tados, quer por deficiência individual, quer 8 “A calma mora na terra dos santos, e além das estrelas
por precariedade das condições históricas. esquece o coração a sua necessidade é a sua lingua-
Mas há um mérito, fundamental nele, que gem.”
desconhece essas desvantagens e que torna 9 “Pois meu coração pertence aos mortos.”
valiosa a leitura de sua obra ainda em nos- 10 Op. cit.:14.
sos dias: Winckelmann foi um entusiasta da
arte grega, e de um entusiasmo que contagia 11 In Theophania, der Geist der Altgriechischen
Religion. Hamburg: Rowohlts, 1956:67-8.
e deixa sua marca no leitor. Poucos autores
conseguem transmitir a Grécia como uma 12 Este esquema já está presente na tese de Vico, de uma
“história ideal eterna”.
presença de modo tão vibrante e com tanta

REEDIÇÃO • GERD BORNHEIM 161

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