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PAMELA STIVAL

BECKETT AVANT LA LETTRE:


ASPECTOS DO PÓS-DRAMÁTICO EM ESPERANDO GODOT

CURITIBA
2018
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PAMELA STIVAL

BECKETT AVANT LA LETTRE:


ASPECTOS DO PÓS-DRAMÁTICO EM ESPERANDO GODOT

Dissertação apresentada como requisito


para obtenção do Grau de Mestre ao
Curso de Mestrado em Teoria Literária do
Centro Universitário Campos de Andrade –
UNIANDRADE.

Orientadora: Profa. Dra. Anna Stegh Camati

CURITIBA
2018
Here I am
Here we are
As it will go on forever
Noise, always noise
Candles burn, lights are low
I haven’t a place to go
Life in its constant state of moving nowhere
[...]
Preaching, pleading, praying for God to come
What are we waiting for?
Why are we so afraid of taking charge?
But it’s always changing
Always
In the constant state of going nowhere
!
Alicia Keys
AGRADECIMENTOS

À minha família por sempre permitir, apoiar e incentivar meus estudos.

Ao meu parceiro e marido Cesar por ficar ao meu lado e me apoiar


incondicionalmente.

Aos meus colegas que tornaram todo o mestrado mais leve e prazeroso.

À minha amiga e colega Marília, responsável por me apresentar o mundo do


Teatro, por compartilhar as dores e as delícias deste mestrado comigo.

À Anna, pela paciência e dedicação ao me orientar por todo o processo desta


pesquisa.

A todos os professores, em especial aos integrantes das bancas de


qualificação e defesa. Foi um prazer assistir suas aulas, ser orientada e
avaliada por vocês. Sou imensamente grata a todos pelos ensinamentos.
SUMÁRIO

RESUMO .................................................................................................................. vii


ABSTRACT ............................................................................................................. viii
INTRODUÇÃO ........................................................................................................... 1
1 PERSPECTIVAS TEÓRICAS ................................................................................. 6
1.1 O TEATRO DO ABSURDO E OS SISTEMAS CLASSIFICATÓRIOS ................. 6
1.2 DO DRAMA AO PÓS-DRAMÁTICO .................................................................. 11
1.3 PROXIMIDADES ENTRE O ABSURDO E O PÓS-DRAMÁTICO ..................... 26
2 BECKETT NO CONTEXTO DO TEATRO PÓS-DRAMÁTICO ............................ 29
2.1 FRAGMENTAÇAO, DESCONSTRUÇÃO E DESCONTINUIDADE ................... 29
2.1.1 Fim de partida ................................................................................................ 32
2.1.2 A última gravação de Krapp ......................................................................... 37
2.1.3 Play ................................................................................................................ 39
2.1.4 Vai e vem ........................................................................................................ 41
2.1.5 Aquela vez ..................................................................................................... 43
3 ESPERANDO GODOT AVANT LA LETTRE ....................................................... 47
3.1 PARATEXTUALIDADE: A CENA INSCRITA NO TEXTO .................................. 47
3.2 DISCURSOS: TEXTO E CENA EM CONFLITO ................................................ 54
3.3 A QUESTÃO DO TEMPO: REPETIÇÃO E DESCONTINUIDADE .................... 66
3.4 NADA A FAZER: PREDOMÍNIO DA SITUAÇÃO SOBRE A AÇÃO ................. 79
CONSIDERAÇÕES FINAIS ..................................................................................... 94
REFERÊNCIAS ....................................................................................................... 99

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RESUMO

Esperando Godot, de Samuel Beckett (1906-1989), publicado pela primeira


vez em francês em 1952 e em inglês em 1962, foi classificado por Martin
Esslin e outros teóricos como um dos textos seminais do teatro do absurdo.
Apesar de ser um dos primeiros experimentos teatrais de Beckett, a peça
apresenta, além de elementos do absurdo, alguns traços pós-dramáticos
teorizados muito mais tarde por Hans-Thies Lehmann em seu livro Teatro
pós-dramático (1999/2007). Nesta dissertação, pretende-se evidenciar que
Beckett é um escritor teatral à frente de seu tempo por ter testado os limites
das possibilidades das linguagens do teatro. Nesse sentido, em um primeiro
momento, objetiva-se mostrar que alguns textos para o teatro de Beckett
como Fim de partida, A última gravação de Krapp, Vai e vem, Play e Aquela
vez se aproximam ainda mais da estética do pós-dramático, embora
apresentem especificidades distintas. Em um segundo momento, discute-se
alguns aspectos do pós-dramático em Esperando Godot, como a inscrição da
movimentação cênica no próprio texto por meio de rubricas. Elementos como
a repetição obsessiva de padrões, a temporalidade descontínua, a ausência
de um desfecho clássico e a ênfase na situação ao invés da ação são traços
que colocam o texto cênico de Beckett na interseção do teatro do absurdo e
do pós-dramático. Utilizaremos como suporte as perspectivas teóricas de
Hans-Thies Lehmann, Patrice Pavis, Martin Esslin, Peter Szondi e Raymond
Williams, e ainda as considerações críticas sobre a obra beckettiana de
Claudia Maria de Vasconcellos, Luiz Fernando Ramos, Luiz Marfuz, Eugene
Webb, entre outros.

Palavras-chave: Esperando Godot. Samuel Beckett. Teatro do absurdo.


Teatro pós-dramático. Texto cênico.

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ABSTRACT

Waiting for Godot, by Samuel Beckett (1906-1989), first published in French


in 1952 and in English in 1962, was classified by Martin Esslin and other
critics as one of the seminal texts of the theatre of the absurd. Despite being
one of Beckett’s first theatrical experiments, the play presents, besides
absurdist elements, a series of postdramatic characteristics much later
theorized by Hans-Thies Lehmann in his book Postdramatic Theatre
(1999/2007). In this dissertation, we intend to show that Beckett is a
playwright ahead of his own time for testing the limits of the possibilities of
theatre languages. In this respect, we aim at demonstrating that some of
Beckett’s texts for the theatre, such as Endgame, Krapp’s Last Tape, Come
and Go, Play and That Time are even closer to postdramatic aesthetics, albeit
being constituted by different specificities. Subsequently, we discuss some
postdramatic aspects in Waiting for Godot. Such elements, among them the
obsessive repetition of patterns, the temporal discontinuity, the absence of a
classic closure and the emphasis on the situation instead of the action are
some of the traces that place Beckett’s performance text at the intersection
between the absurd and the postdramatic theatre. As a theoretical basis, we
use perspectives by Hans-Thies Lehmann, Patrice Pavis, Martin Esslin, Peter
Szondi and Raymond Williams, as well as critical viewpoints about Beckett’s
work by Claudia Maria de Vasconcellos, Luiz Fernando Ramos, Luiz Marfuz,
Eugene Webb and others.

Keywords: Waiting for Godot. Samuel Beckett. Theatre of the Absurd.


Postdramatic Theatre. Performance Text.

! viii!
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INTRODUÇÃO

Esperando Godot, escrita originariamente em francês em 1949 e publicada

em 1952, é uma das mais conhecidas e mais encenadas peças de Samuel Beckett

(1906-1989), traduzida para o inglês pelo próprio autor em 1962. Usualmente

associado ao teatro do absurdo, o escritor irlandês possui uma obra ampla que inclui

romances, poesias, e peças para rádio e para televisão. Considerando tal amplitude,

entende-se que os escritos de Beckett são resistentes a rótulos.

Nascido em Dublin, em 1906, Samuel Barclay Beckett se especializou em

francês e italiano em 1927. No ano seguinte, indicado pela universidade, foi lecionar

em Paris, onde conheceu James Joyce e iniciou sua carreira como poeta. Em 1931,

já com o título de Master of Arts, o escritor publicou seu ensaio sobre a obra de

Proust, a pedido de um editor londrino. Em 1947, escreveu Eleutheria, sua primeira

peça de teatro que só seria publicada em 1995, após a morte do autor. Beckett não

queria incluí-la entre seus escritos cênicos.

Em 1953, no Théâtre de Babylone em Paris, dirigida por Roger Blin, estreou

Esperando Godot, sua segunda peça. A estreia é um marco na carreira artística de

Beckett. Quatro anos mais tarde, uma nova montagem ficaria também marcada na

carreira do autor. Quatro atores do Actors’ Workshop de São Francisco, dirigidos por

Herbert Blau, apresentaram Estragon, Vladimir, Pozzo e Lucky para mil e

quatrocentos detentos da penitenciária de San Quentin.

O próprio Beckett exerceu o papel de diretor de Esperando Godot em 1975,

no Schiller Theater, em Berlim. Sua primeira direção de uma peça própria havia sido

Fim de partida, em 1967, no mesmo teatro. Mesmo tendo uma exitosa parceria com

Roger Blin, foi enquanto diretor que Beckett pode aprimorar suas rubricas.
! 2!

Após as publicações de Dias felizes (1960) e Fim de partida (1967) Beckett

passou a experimentar outras linguagens teatrais. A partir de Play, de 1963, Beckett

publicaria outras 13 peças, todas curtas, chamadas por ele de “dramatículos”. Ao

longo de sua vida, escreveu ainda outros 13 textos para rádio, televisão e cinema,

suas obras literárias Murphy, Molloy, Malone morre e O inominável; além de

diversos outros contos e ensaios. Ganhou o Prêmio Nobel de Literatura em 1969 e

morreu em 22 de dezembro de 1989, deixando uma obra ampla e plural, fonte de

inúmeros estudos.

Em âmbito acadêmico nacional existem dezenas de dissertações, teses e

trabalhos científicos sobre as obras de Beckett, não somente sobre Esperando

Godot, mas também sobre os textos teatrais mais curtos, as peças radiofônicas e os

romances.

Luciana Brito, em um estudo pela Universidade Federal do Rio Grande do

Sul, investiga os caminhos que foram construídos durante práticas teatrais, visando

uma aproximação a uma possível metodologia que se encontra no vazio, buscando

constantemente a instabilidade, tendo como fruto desta investigação a pesquisa

teórico-prática “Beckett-we: em busca de uma poética do vazio” (2016). Já Fábio

Tadeu Grazioli, da Universidade Federal Fluminense, dedica seu estudo “Texto

dramático: por uma teoria que estimule a leitura” (2016), mais especificamente à

rubrica, sua natureza e estrutura, de forma a repensar a leitura deste gênero

literário. Luciano Gatti, em “As peças para televisão de Samuel Beckett: meios de

produção, gêneros literários e teoria crítica” (2016), investiga as peças televisivas de

Beckett por meio de duas questões: o desenvolvimento tecnológico dos meios de

produção e a historicidade dos gêneros artísticos. Para o autor, as peças televisivas

retomam o questionamento das convenções dos gêneros literários, iniciado por


! 3!

Beckett nos trabalhos em prosa e nas peças teatrais, ao desenvolver um novo meio

de produção artística junto à televisão pública alemã.

Na presente pesquisa, diferentemente dos diversos estudos encontrados,

objetiva-se estudar Beckett sob um viés específico, qual seja abordar as explorações

e experimentos cênicos que mostram a surpreendente contemporaneidade do

dramaturgo. Apesar de Hans-Thies Lehmann não ter se debruçado mais a fundo

sobre a obra de Beckett e de outros autores do contexto anglófono em seu livro

Teatro Pós-dramático, muitas peças do teatrólogo irlandês, principalmente as mais

curtas, são consideradas textos pós-dramáticos pela crítica contemporânea.

No primeiro capítulo, em um primeiro momento, discutem-se as limitações

dos sistemas classificatórios. A discussão gira em torno dos inúmeros rótulos

atribuídos a Beckett. Apesar de Martin Esslin apontá-lo como um dos expoentes do

absurdo, hoje, a maioria dos críticos acredita que ele foi muito além do absurdo e

que sua obra serviu de matriz para inúmeros autores contemporâneos.

Em seguida, apresentamos uma discussão teórico-reflexiva sobre o pós-

dramático. São apresentadas três categorias de traços pós-dramáticos discutidos

por Lehmann com o intuito de relacioná-los com a obra de Beckett no terceiro

capítulo. O termo adotado por Lehmann difere de outros termos como pós-moderno

e teatro não mais dramático. Por entender que o pós-dramático opõe-se

fundamentalmente ao drama, busca-se também, neste capítulo, apresentar a visão

de Peter Szondi sobre o conceito de drama. E, por fim, algumas proximidades entre

o teatro do absurdo e o pós-dramático são investigadas, visto que que ambas as

estéticas se afastam do drama.

No segundo capítulo, iniciamos a análise da obra de Beckett à luz de

diversos críticos, como Luiz Marfuz, Claudia Maria de Vasconcellos e Luiz Fernando
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Ramos, dialogando ainda com Eugene Webb e Raymond Williams. A partir destes

teóricos será traçado um panorama da temática e dos aspectos formais da obra de

Beckett.

Em seguida, serão feitas breves considerações críticas sobre algumas

peças de Beckett posteriores a Esperando Godot. A intenção é mostrar

características pós-dramáticas em outras obras do autor; mostrando, assim, que

Beckett é um autor à frente de seu tempo. Para tanto, serão investigados aspectos

pós-dramáticos nas peças Fim de partida, A última gravação de Krapp, Vai e vem,

Play e Aquela vez, textos com temáticas, estruturas e particularidades distintas,

mas, ainda assim, com traços em comum.

No terceiro capítulo, diversas especificidades de Esperando Godot, peça

objeto de estudo, serão examinados. Primeiramente, faz-se uma análise sobre uma

das características mais marcantes da obra teatral de Beckett: as rubricas. Estas

são investigadas à luz das considerações teóricas de Luiz Fernando Ramos e

conceitos de paratextualidade de Gérard Genette. As rubricas serão analisadas

enquanto paratextos, investigando a forma e a função destas indicações cênicas.

Em seguida, a partir de traços pós-dramáticos elencados no primeiro

capítulo, faremos a análise de Esperando Godot subdividida em três eixos

temáticos. O segundo subcapítulo é, então, dedicado à linguagem. São investigadas

as marcas que aproximam o texto de Beckett do teatro pós-dramático teorizado por

Lehmann.

Já o terceiro subcapítulo reúne traços associados ao tempo. As noções de

tempo relacionadas à estética pós-dramática, como descontinuidade e repetição,

são discutidas para, em seguida, traçar um panorama das temporalidades em

Esperando Godot à luz de perspectivas teóricas de Lehmann.


! 5!

O quarto subcapítulo está relacionado à forma e ao conteúdo. A partir dos

conceitos de ação e situação pretende-se analisar o texto de Beckett e a maneira

como a construção da peça se relaciona com a estética pós-dramática.


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1 PERSPECTIVAS TEÓRICAS

1.1 O TEATRO DO ABSURDO E OS SISTEMAS CLASSIFICATÓRIOS

A obra teatral de Samuel Beckett, embora vasta e diversificada, é

geralmente classificada por críticos como Patrice Pavis e Martin Esslin como

pertencente ao teatro do absurdo. A fim de compreender as classificações

impostas à obra teatral de Beckett, é necessário identificá-las e explicá-las. Patrice

Pavis define o teatro do absurdo como “o que é sentido como despropositado,

como totalmente sem sentido ou sem ligação lógica com o resto do texto ou da

cena” (PAVIS, 2015, p. 1). O teórico francês coloca Esperando Godot, juntamente

com A cantora careca de Ionesco, como sendo “o ato de nascimento do teatro do

absurdo, como gênero ou como tema central” (PAVIS, 2015, p. 1). Para o autor, “a

forma preferida da dramaturgia absurda é a de uma peça sem intriga nem

personagens claramente definidas: o acaso e a invenção reinam nela como

senhores absolutos” (PAVIS, 2015, p. 1).

Entretanto o próprio autor faz uma ressalva quanto ao surgimento de

elementos absurdos, “quando não se conseguir recolocá-los em seu contexto

dramatúrgico, cênico, ideológico. Tais elementos são encontrados em formas

teatrais bem antes do absurdo dos anos cinquenta” (PAVIS, 20015, p. 1), admitindo

a existência de elementos absurdos bem antes da criação do rótulo “teatro do

absurdo”. Esta pesquisa pretende demonstrar que Esperando Godot de Samuel

Beckett, embora considerado precursor de um estilo teatral, é um texto que já

contém raízes do teatro pós-dramático. Apesar do empenho de Pavis em categorizar

a escrita cênica do autor como representativa do absurdo, inadvertidamente, o

crítico já aproxima o dramaturgo irlandês do pós-dramático, quando diz que Beckett


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utiliza “o absurdo como princípio estrutural para refletir o caos universal, a

desintegração da linguagem e a ausência de imagem harmoniosa da humanidade”

(PAVIS, 2015, p. 2).

Existem, ainda, críticos que tentam atribuir à obra de Beckett outros rótulos

ou nomenclaturas. Raymond Williams utiliza o termo “drama experimental moderno”

para definir o teatro de Beckett e de outros autores. O teórico aponta para um

“desenvolvimento do teatro ligado a uma minoria consciente: a associação de certos

tipos de trabalho experimental a companhias e teatros específicos, aos quais uma

plateia específica se associava” (WILLIAMS, 2010, p. 178). Assim, trabalhos

experimentais como as peças de Beckett ganhavam público e, consequentemente,

visibilidade,.

Já Luiz Marfuz, admite uma diversidade de adjetivos possíveis para a obra

do dramaturgo. “Absurdista, classicista, simbolista, tragicômico, não ilusionista,

antiteatro, metateatro, drama estático, drama lírico, farsa metafísica – eis algumas

formas de adjetivar o teatro de Beckett. Nenhuma resume a complexidade e a

singularidade de sua obra” (MARFUZ, 2013, p.1). Nesse sentido, os sistemas

classificatórios não dão conta da amplitude da obra de Beckett.

Martin Esslin ressalta que o absurdo surgiu em um período histórico de

transição quando “as crenças medievais perduram e, recobertas pelo racionalismo

do século XVIII e erupções vulcânicas de fanatismo pré-históricos e cultos tribais

primitivos” (ESSLIN, 1968, p. 19). A Segunda Guerra Mundial teve um impacto

arrasador na Europa. Em 1945, os países Aliados retomaram Paris após o Dia D,

que ficou assim conhecido por ser o início do fim da Guerra. Com a descoberta do

horror dos campos de concentração e com os nazistas devidamente julgados, a

Europa ainda teria um longo caminho a percorrer rumo à reconstrução. A Segunda


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Guerra alterou permanentemente a realidade dos europeus. Tal momento histórico é

crucial na gênese do teatro do absurdo. Para Esslin, “o declínio da fé religiosa foi

disfarçado até o fim da Segunda Guerra Mundial pelas religiões substitutas como a

fé no progresso, o nacionalismo e várias outras falácias totalitárias. Tudo isso foi

estraçalhado pela Guerra” (ESSLIN, 1968, p. 19). Esslin explica que o teatro do

absurdo era a atitude que melhor representava esse tempo de descrença e

incertezas. “A principal característica dessa atitude é a da sensação de que certezas

e pressupostos básicos e inabaláveis de épocas anteriores desapareceram, foram

experimentados e constatados como falhos, foram desacreditados e são agora

considerados como ilusões baratas e um tanto infantis” (ESSLIN, 1968, p. 19). Tal

sensação de incertezas e descrenças foi o que desencadeou, à época, a

necessidade de representar este momento. Estas novas maneiras, ao se oporem ao

que era chamado de peça bem feita, causavam estranhamento à época.

A maior parte da incompreensão com a qual esse tipo de peças ainda vem sendo
recebido por críticos e comentaristas teatrais, a maior parte da confusão que têm
causado e que ainda provocam, provém do fato de serem parte de uma
convenção teatral nova e ainda em desenvolvimento, que ainda não foi
geralmente compreendida e que não foi bem definida. (ESSLIN, 1968, p. 18)

Entretanto, Esslin também faz ressalvas quanto aos rótulos impostos aos

autores. “Deve ser lembrado, no entanto, que os dramaturgos cuja obra é aqui

discutida não proclamam nem têm consciência de pertencer a nenhuma escola ou

movimento” (ESSLIN, 1968, p.18).

Esslin também procura discutir a temática que permeia as diversas peças do

teatro do absurdo ao afirmar que “a sensação de angústia metafísica pelo absurdo

da condição humana é, grosso modo, o tema das peças de Beckett, Adamov,

Ionesco, Genet e dos outros autores analisados” (ESSLIN, 1968, p. 20). O autor
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afirma que, o que distingue os autores do teatro do absurdo de outros autores que

também trataram desta mesma temática é procurar “expressar a sua noção da falta

de sentido da condição humana e da insuficiência da atitude racional por um repúdio

aberto dos recursos racionais e do pensamento discursivo” (ESSLIN, 1968, p. 20).

Logo, “enquanto Sartre ou Camus expressam o novo conteúdo na convenção antiga,

o Teatro do Absurdo avança um passo além e tenta alcançar uma unidade entre

seus pressupostos básicos e a forma na qual eles devem ser expressados”

(ESSLIN, 1968, p. 20). Dessa maneira, ao invés de inserir o tema do absurdo em

diálogos, os autores do teatro do absurdo encontraram formas de mostrá-lo,

priorizando o ato de mostrar uma imagem que representa algo, em detrimento ao ato

de contar uma história. “O Teatro do Absurdo desistiu de falar sobre o absurdo da

condição humana; ele apenas o apresenta tal como existe – isto é, em termos de

imagens teatrais concretas” (ESSLIN, 1968, p. 21). Na busca por novas formas de

comunicar o tema da angústia metafísica, o teatro do absurdo então,

[...] tende para uma desvalorização radical da linguagem, para a poesia que deve
emergir das imagens concretas e objetivadas do próprio palco. O elemento da
linguagem ainda desempenha papel importante nessa concepção, mas o que
acontece no palco transcende, e muitas vezes contradiz, as palavras ditas pelas
personagens. (ESSLIN, 1968, p. 22)

Tais especificidades acabam por gerar uma nova linguagem de palco, em

que nem sempre o que é dito é o que está sendo mostrado. Formam-se imagens

concretas que nem sempre representam literalmente o que diz o texto. Para Esslin,

este aparente contrassenso tem uma razão:

Como o Teatro do Absurdo não tem por objetivo transmitir informações ou


apresentar problemas ou destinos de personagens que existam fora do mundo
interior do autor, como ele não propõe teses e nem debate proposições ideológicas,
ele não se preocupa com a representação de acontecimentos, nem com a narração
! 10!

do destino ou das aventuras dos personagens, mas apenas com a apresentação da


situação básica de um indivíduo. (ESSLIN, 1968, p. 349)

Assim, novamente o teatro do absurdo se distancia do conceito de drama.

Ao invés de contar aventuras e peripécias, ou se preocupar em dar um destino

determinado para um personagem, mais importante era apresentar a situação em

que se envolvia o personagem. Na visão de Esslin,“o Teatro do Absurdo, no entanto,

que não se realiza por conceitos intelectuais, mas por imagens poéticas, não

apresenta problemas intelectuais em sua exposição e nem oferece soluções claras e

reduzíveis a lições ou máximas” (ESSLIN, 1968, p. 361). Neste sentido, o referido

teatro pode apresentar situações sem uma resolução clara como era comum no

drama. Nas peças do Teatro do Absurdo não é mais imperativo que se apresente

um problema para depois solucioná-lo.

Sem a necessidade de desenvolver conflitos de personagens ou ainda

decretar um destino para cada um deles, “muitas das peças do Teatro do Absurdo

têm uma estrutura circular, terminando exatamente como começaram, enquanto

outras progridem apenas por uma crescente intensificação da situação inicial”

(ESSLIN, 1968, p. 361). Assim, compreende-se que para os autores do teatro do

absurdo, ao invés de desenvolver tramas e personagens através de conflitos e

resoluções, era mais importante apresentar uma situação e explorá-la ao máximo

usando novas formas de linguagem.

Esslin também se manifesta a respeito da poética da cena desenvolvida

pelos autores do absurdo:

O teatro do absurdo, ao levar essa mesma busca poética à imagística concreta no


palco, pode ir mais longe do que a poesia no abandono da lógica, do pensamento
discursivo, e da linguagem. O palco é um meio multidimensional que permite o uso
simultâneo de elementos visuais, de movimento, da luz e da linguagem. É portanto,
! 11!

particularmente adaptado à comunicação de imagens complexas constituídas pela


intenção contrapontística de todos esses elementos. (ESSLIN, 1968, p. 352)

Na presente pesquisa, não há nenhuma intenção de descaracterizar a obra

teatral de Beckett enquanto teatro do absurdo. Pelo contrário, compreende-se que,

enquanto grande expoente do já mencionado estilo teatral, Beckett pôde levar sua

obra um passo a frente em suas experimentações, tendo a liberdade para testar

linguagens novas que seriam definidas como pós-dramáticas anos mais tarde.

Portanto, o que pretende-se demonstrar é que Esperando Godot, além de ser uma

obra do teatro do absurdo, também possui particularidades que a projetam além do

absurdo e a aproximam do teatro pós-dramático. Para tanto, pretende-se fazer uma

breve análise de outras obras teatrais de Beckett, principalmente as peças curtas

que se aproximam ainda mais do pós-dramático e serviram de inspiração para o

desenvolvimento de textualidades cênicas contemporâneas.

1.2 DO DRAMA AO PÓS-DRAMÁTICO

Para falar sobre o teatro pós-dramático, um dos conceitos base desta

pesquisa, é necessário fazer um breve preâmbulo sobre o conceito de drama. Hans-

Thies Lehmann, em um dos segmentos de seu estudo intitulado “Tradição e o

talento pós-dramático”, explica que

O adjetivo “pós-dramático” designa um teatro que se vê impelido a operar para


além do drama, em um tempo “após” a configuração do paradigma do drama no
teatro. Ele não quer dizer negação abstrata, mero desvio do olhar em relação à
tradição do drama. “Após” o drama significa que este continua a existir como
estrutura – mesmo que enfraquecida, falida – do teatro “normal” como expectativa
de grande parte do seu público, como fundamento de muitos dos seus modos de
! 12!

representar, como norma quase automática de sua drama-turgia. (LEHMANN,


2007, p. 33-34).

O drama, segundo Vasconcellos, “caracteriza-se pela ênfase dada ao objeto

da narração, sem uso, pelo menos aparente, de um narrador. O elemento propulsor

da narrativa é o conflito, ou seja, o enfrentamento direto dos agentes da ação”

(VASCONCELLOS, 2009, p. 95). Logo, os condutores do enredo são os próprios

protagonistas. O teórico complementa postulando que “considerando que a ação do

drama envolve o choque entre personagens, o vocábulo passou a ser usado de

forma generalizada para definir qualquer situação que seja conflitante, seja literária

ou não” (VASCONCELLOS, 2009, p. 95). Tal definição encontra respaldo em Pavis,

quando este afirma que “num sentido geral, o drama é o poema dramático, o texto

escrito, para diferentes papéis e de acordo com uma ação conflituosa” (PAVIS,

2015, p.109). Assim, o drama se constitui como uma forma de teatro caracterizada,

sobretudo, por conflitos de personagens e suas respectivas resoluções.

Já Peter Szondi é categórico: “O drama é absoluto. Para ser pura relação,

para poder, em outras palavras, ser dramático, ele deve desvencilhar-se de tudo que

lhe é exterior. O drama não conhece nada fora de si” (SZONDI, 2011, p. 25). O

mesmo acontece com a relação entre o drama e o espectador. “Não sendo a réplica

dramática um enunciado do autor, ela tampouco é uma fala dirigida ao público. [...] A

relação espectador-drama conhece apenas total separação ou total identidade; ela

desconhece tanto a intromissão do espectador no drama, quanto sua interpelação

por ele” (SZONDI, 2011, p. 25). Assim sendo, ao espectador do drama é permitido

apenas presenciar o que se apresenta no palco, jamais se pronunciar.

Szondi explica sobre o tempo no drama. “Sendo o drama sempre primário,

seu tempo também é sempre o presente” (SZONDI, 2011, p. 27). No drama não
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existe passado, mas a passagem de tempo “é uma sequência absoluta de

presentes. Sendo absoluto, ele fornece sua própria garantia, funda seu próprio

tempo. Por isso cada momento tem de conter em si o germe do futuro” (SZONDI,

2011, p. 27). Para que isso aconteça, Szondi explica que “a sequência onde cada

cena gera a seguinte (a aqui exigida, portanto, pelo drama) é a única que não

implica a presença do montador” (SZONDI, 2011, p. 27).

O teórico faz ainda uma analogia do tempo dramático com o espaço

dramático, explicando que também é necessário que se estabeleça uma unidade de

lugar. “O entorno espacial (a exemplo do temporal) deve ser eliminado da

consciência do espectador. Só assim pode surgir uma cena absoluta, i.e., dramática”

(SZONDI, 2011, p. 27). Assim, o drama se caracteriza por apresentar poucas

mudanças de cena para facilitar esta imersão no universo apresentado em cena.

Por existir somente no seu próprio tempo, o drama cumpre “a exigência de

eliminar o acaso e apresentar encadeamentos motivados. O fortuito chega ao drama

pelo lado de fora. Motivado, ganha um fundamento interno, ou seja, enraíza-se no

solo do próprio drama” (SZONDI, 2011, p. 28). E ainda, “a totalidade constituída pelo

drama é de origem dialética” (SZONDI, 2011, p. 28) e, portanto, “o diálogo é o

suporte do drama. De sua possibilidade depende a possibilidade do último”

(SZONDI, 2011, p. 28).

É necessário, pois, fazer uma distinção entre os termos utilizados por

diferentes teóricos a fim de empregá-los com clareza nesta pesquisa. Ao conceituar

o teatro pós-moderno, Pavis faz menção ao termo “pós-dramático”, cunhado por

Hans-Thies Lehmann. Entretanto o autor parece ver teatro o pós-moderno com certa

restrição.

Mais que uma ferramenta rigorosa para caracterizar a dramaturgia e a encenação,


o pós-moderno é um toque de reunião, (principalmente nos Estados Unidos e
! 14!

América Latina), um cômodo rótulo para descrever um estilo de atuação, uma


atitude de produção e de recepção, uma maneira ‘atual’ de fazer teatro (grosso
modo, desde os anos sessenta, após o teatro de absurdo e o teatro existencialista,
com a emergência da performance, do happening, da chamada dança pós-
moderna e da dança-teatro). A filosofia do pós-moderno [...] continua desconhecida
pelos criadores de teatro ou mal assimilada e adaptada às suas necessidades [...].
É preciso, portanto, contentar-se com a enumeração de algumas características
bem gerais, e sem grande valor teórico, comumente associadas à noção de
encenação pós-moderna. (PAVIS, 2015, p. 299)

Assim, Pavis restringe o conceito de teatro pós-moderno no que se refere

apenas à encenação, sem considerar a existência de características textuais pós-

modernas.

Lehmann em sua obra Teatro pós-dramático (2007), busca diferenciar o pós-

moderno do pós-dramático. O teórico entende como teatro pós-moderno o teatro

realizado em um determinado período conhecido como pós-modernidade que possui

traços marcantes como:

[...] ambiguidade, celebração da arte como ficção, celebração do teatro como


processo, descontinuidade, heterogeneidade, não-textualidade, pluralismo,
diversidade de códigos, subversão, multilocalização, perversão, o ator como tema e
figura principal, deformação, o texto como uma valor autoritário e arcaico, a
performance como terceiro elemento entre o drama e o teatro, o caráter
antimimético, a rejeição da interpretação. (LEHMANN, 2007, p. 30)

Para Lehmann, o teatro pós-moderno assim descrito “seria um teatro sem

discurso, em que predominariam a meditação, a gestualidade, o ritmo, o tom.

Formas niilistas e grotescas, espaço vazio e silêncio são outros elementos

acrescentados” (LEHMANN, 2007, p. 31). Entretanto, o crítico vê o termo pós-

moderno com certa restrição pois “tem a pretensão de oferecer uma definição de

época em geral” (LEHMANN, 2007, p. 32). Assim, o autor esclarece que o teatro
! 15!

pós-moderno, embora possua semelhanças estéticas com o pós-dramático,

pertence a um período de tempo restrito e delimitado, com conotação de movimento

cultural.

O teórico também menciona o uso do termo “texto teatral não mais

dramático” como uma das possibilidades de nomenclatura, mas se decide pelo

termo “pós-dramático”. “Seria possível acrescentar uma série de outros motivos em

favor do conceito de ‘pós-dramático’ – sem prejuízo conceitual quanto à construção

de palavras com o prefixo pós” (LEHMANN, 2007, p. 32) e justifica:

Se o curso de uma história, com sua lógica interna, não mais constitui o elemento
central, se a composição não mais sentida como uma qualidade organizadora, mas
como “manufatura” enxertada artificialmente, como lógica de ação meramente
aparente, que serve apenas ao clichê, [...] então o teatro se encontra
concretamente diante da questão das possibilidades para além do drama, não
necessariamente para além da modernidade. (LEHMANN, 2007, p. 32-33)

Já ao caracterizar o pós-dramático, Lehmann afirma que “os textos não

correspondem às expectativas com as quais as pessoas costumam encarar textos

dramáticos. Muitas vezes é difícil até mesmo descobrir um sentido, um significado

coerente de representação. As imagens não são ilustrações de uma fábula”

(LEHMANN, 2007, p. 38).

Em sua tentativa de explicar o conceito de pós-dramático, Lehmann

esclarece o conceito de drama, frequentemente atrelado ao conceito de teatro.

O teatro e o drama estão estreitamente relacionados, tornando-se quase idênticos


na consciência (inclusive de muitos teóricos de teatro), como um par que não se
desgruda, por assim dizer, que toda transformação radical do teatro sofre a
resistência obstinada da concepção de drama como latente noção normativa do
teatro. (LEHMANN, 2007, p. 52)
! 16!

Em seguida, o crítico alemão refere-se ao processo de decomposição do

drama no campo do texto, delineado por Szondi, que “corresponde ao

desenvolvimento em direção a um teatro que não mais se baseia de modo algum no

‘drama’, seja ele (nas caracterizações da teoria do drama) aberto ou fechado, do tipo

piramidal ou como um carrossel, épico ou lírico, mais centrado no caráter ou na

ação” (LEHMANN, 2007, p. 47). Assim, o crítico esclarece que o teatro não precisa

necessariamente ser dramático. “Há teatro sem drama” (LEHMANN, 2007, p. 47).

O autor acrescenta ainda “teatro dramático era construção de ilusão. Ele

pretendia erguer um cosmos fictício e fazer que o ‘palco que significa o mundo’

aparecesse como um palco que representa o mundo – abstraindo, mas

pressupondo, que a fantasia e a sensação dos espectadores participam da ilusão”

(LEHMANN, 2007, p. 26). Logo, o drama implica uma credibilidade sobre o que está

sendo apresentado, exige do espectador uma crença, uma confiança de que tudo

aquilo no palco poderia ser real. E quando esta credibilidade é rompida, abrem-se

novas possibilidades de encenação. “O teatro dramático termina quando esses

elementos não mais constituem o princípio regulador, mas apenas uma variante

possível da arte teatral” (LEHMANN, 2007, p. 26).

Em contraponto, compreende-se que o pós-dramático reaproveita outras

linguagens. “No teatro pós-dramático, as linguagens formais desenvolvidas desde as

vanguardas históricas se tornam um arsenal de gestos expressivos que lhe servem

para dar uma resposta à comunicação social modificada sob as condições da ampla

difusão da tecnologia da informação” (LEHMANN, 2007, p. 27).

Obviamente, as rupturas com o teatro dramático que resultariam no teatro

pós-dramático não aconteceram de maneira rápida ou abrupta.

Durante a gestação de um novo paradigma, as estruturas e os traços estilísticos


“futuros” aparecem quase que inevitavelmente misturados aos tradicionais. [...] Por
! 17!

exemplo, a fragmentação da narrativa, a heterogeneidade de estilo e os elementos


hipernaturalistas, grotescos e neoexpressionistas, que são típicos do teatro pós-
dramático, encontram-se também em montagens que não obstante pertencem ao
modelo do teatro dramático. (LEHMANN, 2007, p. 29)

Entre as grandes mudanças que originariam o pós-dramático, está o

entendimento do texto. O texto teatral é de suma importância para o drama. Pode-se

dizer que o drama é textocêntrico e em suas encenações “predominava o texto

como oferta de sentido: os outros recursos teatrais tinham de estar a seu serviço,

sendo controlados com desconfiança diante da instância da razão” (LEHMANN,

2007, p. 76). Já no pós-dramático, o sentido não vem unicamente do texto, mas de

outras fontes de informação e outras linguagens disponíveis para a encenação.

Em sua discussão a respeito do pós-dramático o teórico afirma: “O teatro

pós-dramático é um teatro de estados e de composições cênicas dinâmicas. Em

contrapartida, não é possível pensar um teatro dramático em que não seja

representada uma ação de uma maneira ou de outra” (LEHMANN, 2007, p. 114).

Confirmando que o pós-dramático está para a situação como o drama está para a

ação.

Ao discorrer sobre o teatro além do drama, Lehmann menciona Grüber e

seu processo de “desdramatização”:

Se nos textos encenados a ação é posta totalmente em segundo plano, resulta da


lógica estético-teatral que a temporalidade e a espacialidade próprias do processo
cênico tenham maior destaque. Trata-se mais da representação de uma atmosfera
e de um estado de coisas. Uma escritura cênica prende a atenção, de modo que a
dramática propriamente dita se torna secundária. (LEHMANN, 2007, p. 123)

Para elucidar o teatro de Grüber, Lehmann explica que “o drama, forma

exemplar da discussão, justapõe andamento, dialética, debate e solução”


! 18!

(LEHMANN, 2007, p. 125), enquanto no teatro de vozes no espaço de Grüber, “tudo

se passa em uma atmosfera que poderia ser intitulada ‘Depois de todas as

discussões?’. Não há mais nada para debater. O que é realizado e falado tem

caráter de um rito inelutável, concertado, executado repetidas vezes quase que

cerimonialmente” (LEHMANN, 2007, p. 124). Portanto, o pós-dramático de Grüber

tem um caráter de exposição, ao invés de debate ou discussão característicos do

drama.

Em relação à ação de um drama esta “pode ser facilmente resumida quando

se faz uma lista das transformações por que passam as dramatis personae entre o

início e o fim do processo dramático” (LEHMANN, 2007, p. 127). A partir dessa ótica,

“Em todos os registros o teatro é transformação, metamorfose, e cabe levar em

conta a advertência da antropologia do teatro de que sob o esquema tradicional da

ação se encontra o esquema mais geral da transformação” (LEHMANN, 2007, p.

128). Entende-se assim, que no pós-dramático, em oposição ao drama, não é

necessário que o personagem sofra uma transformação, ou seja, que enfrente um

conflito, supere-o e mude sua atitude ou maneira de ver o mundo.

Lehmann entende que

[...] se o novo teatro quer ir além, de posições descomprometidas e


permanentemente particulares, precisa procurar outros caminhos para pontos de
encontro supra-individuais. E os encontra na realização teatral da liberdade:
liberdade de submissão à hierarquias, liberdade de obrigação de perfeição,
liberdade de exigência de coerência. (LEHMANN, 2007, p. 139)

Assim, ao conceituar o pós-dramático, Lehmann elenca diversos signos

teatrais e traços estilísticos que se tornaram característicos da estética pós-

dramática. Entretanto nesta pesquisa, serão ressaltados somente determinados

traços, concernentes ao objeto deste estudo. Tais aspectos e signos serão


! 19!

agrupados em três categorias, a fim de facilitar a compreensão e posterior

referência.

O primeiro grupo de signos diz respeito ao texto pós-dramático e à

linguagem.

Para o teatro pós-dramático, o que vale é que o texto teatral predeterminado por
escrito e/ou oralmente e o “texto” – no sentido mais amplo do termo – da
encenação (com atores, suas contribuições “paralinguísticas”, reduções e
deformações do material linguístico; com figurino, luz, espaço, temporalidade
própria etc) são postos sob uma nova perspectiva. (LEHMANN, 2007, p. 142)

Entende-se, portanto, que o texto pós-dramático tem tanta importância

quanto outros recursos de linguagem como a luz, o espaço da representação, o

cenário, o figurino e assim por diante.

Outra particularidade do teatro pós-dramático é o frequente aparecimento de

narrações: “o teatro se torna o lugar de um ato de contar” (LEHMANN, 2007, p. 185).

A narrativa deixa de ser visual para se tornar literalmente narrada. “Frequentemente

tem-se a impressão de assistir não a uma representação cênica, mas a um relato

sobre a peça em questão. Nesse caso, o teatro oscila entre narrações delongadas e

episódios de diálogo espalhados aqui e ali” (LEHMANN, 2007, p. 185). Assim, ocorre

um deslocamento da ação, do gestual concreto para a fala do personagem.

Entre essas narrações que se tornam mais comuns no pós-dramático,

aparecem também os solos de teatro e os monólogos. Na concepção de Lehmann,

“o monólogo teatral de fato oferece uma visão do íntimo dos protagonistas, assim

como o close-up o faz à sua maneira” (LEHMANN, 2007, p. 211). O autor ainda faz

uma diferenciação entre monólogo e monologia. “Já que nessa tendência do teatro

pós-dramático não se trata simplesmente da aplicação do monólogo como forma

textual, é preferível usar um neologismo: trata-se de “monologias”, que podem ser


! 20!

sintoma e indício do deslocamento pós-dramático do conceito de teatro (LEHMANN,

2007, p. 212). Dessa forma, define a monologia como um modelo de comunicação

teatral fora do terreno do drama.

Lehmann entende que “o novo teatro aprofunda apenas o reconhecimento,

nem tão novo assim, de que entre o texto e a cena nunca predomina uma relação

harmônica, mas um permanente conflito (LEHMANN, 2007, p. 245). Sob este

aspecto, o texto assume um papel contraditório. “O status do texto no novo teatro

deve ser descrito com os conceitos de desconstrução e polilogia. Assim como todos

os elementos do teatro, a linguagem passa por uma dessemantização” (LEHMANN,

2007, p. 247). O teórico aprofunda este conceito e trata ainda da linguagem

enquanto objeto de exposição. “A ruptura entre o ser e o significado tem um efeito

de choque: com toda a insistência de uma significação sugerida, algo é exposto,

mas em seguida não se permite reconhecer o significado esperado” (LEHMANN,

2007, p. 249). Logo, entende-se que nem tudo que é dito é mostrado da mesma

forma e vice-versa.

No pós-dramático, tanto as monologias quanto os diálogos podem ser

levados ao extremo da perda de significado. “A autonomização da linguagem e da

fala pode assumir diversas configurações. Muitas vezes chega a uma dissolução de

toda a coerência estilística ou lógica” (LEHMANN, 2007, p. 249), confirmando que o

falar incessante ou a repetição de falas pode levar à perda de sentido.

Outra forma apontada por Lehmann como pós-dramática seria o chamado

teatro de coro. “É um traço sintomático do teatro pós-dramático o fato de que a

estrutura dialógica seja dissolvida em favor de uma estrutura de monólogo e coro”

(LEHMANN, 2007, p. 214). Lehmann explica que o coro altera o status da

linguagem. “quando os textos são pronunciados em coro ou por dramatis personae


! 21!

que erguem suas vozes não como indivíduos, mas como componentes de um coral

coletivo, a realidade própria da palavra, seu tom e seu ritmo são percebidos de um

modo novo” (LEHMANN, 2007, p. 215). O teórico explica ainda que “o que ocorre

não é tanto que os personagens falem sem escutar uns aos outros, mas que todos

falem na mesma direção, por assim dizer” (LEHMANN, 2007, p. 214). Dessa

maneira, o autor referencia a existência de um coro social que “se compõe de vozes

individuais e nem sempre se unifica em canto coral, mas mesmo na alternância das

vozes conserva seu caráter geral de coro” (LEHMANN, 2007, p. 218).

Já o segundo coletivo de signos pós-dramáticos está relacionado ao tempo

e suas implicações dentro do texto e da encenação teatral. Lehmann discorre sobre

a duração do tempo, o tempo da ação, o tempo textual e chega ao conceito de um

outro tempo:

O tempo é essencial para a compreensão da prática e da recepção do teatro, e


ainda mais no caso daquelas não mais subordinadas à representação de um
transcurso temporal dramático. Evidentemente, tampouco no teatro é possível
estancar o implacável fluxo do tempo ou inverter a topologia do tempo real. No
entanto, há uma série de procedimentos que levam à tematização explícita, à
intensificação e à conscientização da noção do tempo, assim como à sua distorção
e à sua desorientação. (LEHMANN, 2007, p. 294)

Entende-se que o teatro pós-dramático desenvolveu maneiras de manipular

a percepção de tempo tão enraizada no teatro. “Cenas sem um índice temporal

concreto podem gerar uma temporalidade flutuante, uma incerteza quanto à

sucessão narrativa” (LEHMANN, 2007, p. 294). Estes índices temporais

aparentemente confusos podem aparecer de diversas maneiras.

Repetições obsessivas, aparente inação, inversão de causa e efeito, extremos de


prolongamento e aceleração, saltos temporais e surpresas chocantes podem
distorcer a percepção normal do curso do tempo. Tais recursos se tornam
constitutivos no teatro pós-dramático (LEHMANN, 2007, p. 294).
! 22!

Conforme mencionado, um outro aspecto pós-dramático relacionado ao

tempo é o da repetição. “Desenvolveu-se uma autêntica estética da repetição.

Nenhum outro procedimento será tão típico do teatro pós-dramático quanto o da

repetição” (LEHMANN, 2007, p. 309). Este aspecto se relaciona ao tempo pois, “na

repetição há uma cristalização do tempo, uma compreensão e uma negação mais ou

menos sutis do decorrer do tempo” (LEHMANN, 2007, p. 310). O autor ainda

ressalta que a repetição não é uma novidade trazida pelo teatro pós-dramático, mas

como muitas outras características, esta também foi ressignificada. “Na nova

linguagem teatral a repetição adquire um significado diferente, mesmo oposto: se

antes servia para estruturação, para a construção da forma, aqui ela serve

justamente para a desestruturação e desconstrução da fábula, do significado e da

totalidade formal” (LEHMANN, 2007, p. 310).

No entanto, Lehmann explica que “não há verdadeiramente nenhuma

repetição no teatro. Já o momento em que se dá a repetição é diferente daquele em

que ocorre o fato original. Aquilo que já se viu antes sempre é visto de outro modo”

(LEHMANN, 2007, p. 310).

Lehmann comenta também sobre uma estética da velocidade, que surge

para acompanhar a rapidez da vida moderna. “Em contraste com o teatro da

lentidão, da imobilização e da repetição, outras formas teatrais pós-dramáticas

buscam incorporar a velocidade do tempo da mídia e mesmo superá-la” (LEHMANN,

2007, p. 314). Segundo o autor, a forma encontrada para alcançar tal efeito é a

simultaneidade. Assim, tem-se uma diversidade de imagens, cenas e informações

simultaneamente sendo passadas ao espectador. “Quando se pergunta sobre a

intenção e o efeito da simultaneidade, constata-se que o parcelamento da percepção

se torna uma experiência inevitável” (LEHMANN, 2007, p. 146). E assim, “a


! 23!

simultaneidade na própria ação cênica, que aqui se torna dominante, é uma das

principais características da configuração temporal pós-dramática. Ela produz a

velocidade” (LEHMANN, 2007, p. 315). Tal efeito de velocidade gera uma distorção

na percepção do espectador.

O acontecimentos percebidos no momento perdem sua sintetização quando


decorrem simultaneamente, e a concentração em um deles torna impossível o
registro claro do outro. Ademais, é frequente que não se possa decidir se naquilo
que se manifesta simultaneamente há um nexo ou uma mera concomitância
exterior. (LEHMANN, 2007, p. 146)

E por fim, o terceiro grupo, formado por signos e traços pós-dramáticos

propostos por Lehmann, é relativo à forma teatral relacionada ao próprio conteúdo.

Uma das maneiras que o teatro pós-dramático encontrou para romper com o

tradicional é chamado de irrupção do real.

Embora o teatro conheça uma série de rupturas convencionalizadas (aparte,


apóstrofe ao público), a representação cênica é compreendida como diegesis de
uma realidade distinta e “emoldurada”, na qual imperam leis próprias e um nexo
interno dos elementos que se destaca como realidade “encenada” em relação ao
ambiente em torno. (LEHMANN, 2007, p. 163)

Para o autor, não basta inserir interrupções de maneira tradicional, é

necessário fazê-lo de uma nova maneira. “A tarefa artística consistia em inserir tudo

isso no cosmos fictício de um modo tão discreto que a apóstrofe ao público real, o

discurso-para-fora-da-peça, não fosse notada como um elemento perturbador”

(LEHMANN, 2007, p. 163). É a necessidade de se afirmar de maneira sutil que

aquilo que está em cena não é real. Entretanto, Lehmann é categórico ao dizer que

“sem o real não há o encenado” (LEHMANN, 2007, p. 167). Assim, “o que

caracteriza a estética do teatro pós-dramático não é a aparição do ‘real’ como tal, e


! 24!

sim sua utilização auto-reflexiva” (LEHMANN, 2007, p. 167). Ao exemplificar tais

irrupções do real, o autor admite:

É reconhecido que em Beckett os procedimentos triviais são tudo menos triviais,


como se fossem pela primeira vez trazidos à luz por uma radical redução ao mais
simples: na literatura mais recente, reconhece-se que as meras colagens de
palavras e cenas prosaicas apresentam uma qualidade estética própria.
(LEHMANN, 2007, p. 164)

Dessa forma, sobre estes procedimentos triviais criados por Beckett e outros

autores, Lehmann afirma que “o teatro é simultaneamente processo material de

andar, levantar, sentar, falar, tossir, tropeçar, cantar e ‘signo para’ andar, levantar

etc. O teatro se dá como uma prática ao mesmo tempo totalmente significante e

totalmente real” (LEHMANN, 2007, p. 166).

Outra característica importante referente à forma está relacionada ao

acontecimento e à situação. “Nesse teatro pós-dramático do acontecimento há uma

efetivação de atos que se enraízam no aqui e agora e que têm sua recompensa no

momento em que acontecem, sem precisar deixar quaisquer vestígios duradouros

do sentido, do monumento cultural etc” (LEHMANN, 2007, p. 169-170). Tal

caraterística traz afinidade com o happening e a performance. “Ambas essas

práticas artísticas se caracterizam pela perda de significado do texto, com sua

devida coerência literária” (LEHMANN, 2007, p. 170). Portanto, uma peça pós-

dramática pode ser centrada em um acontecimento ou em uma situação, ao invés

de uma trama ou no desenvolvimento psicológico dos personagens tridimensionais e

individualizados. A principal mudança, então, é não depender de personagens

desenvolvidos ou que passem por uma transformação no decorrer da peça. Este é

um dos principais pontos em que o pós-dramático se opõe ao drama. Enquanto o

drama exige um enredo bem delineado e personagens que resolvam um dilema, o


! 25!

pós-dramático contenta-se em apresentar um personagem em determinada

situação, sem necessidade de desenvolvimento ou evolução. Lehmann ainda

ressalta a importância deste novo formato para o público:

Ao exercer seu caráter real de acontecimento em relação ao público, o teatro


descobre sua possibilidade de ser não apenas um acontecimento de exceção, mas
uma situação provocadora para todos os envolvidos. Usar o conceito de “situação”
ao lado do conceito mais usual de “acontecimento” tem o sentido de pôr em jogo a
tematização da situação pela filosofia da existência [...] como uma esfera instável
tanto da escolha, que é ao mesmo tempo possível e imposta, quanto da virtual
transformabilidade da situação. (LEHMANN, 2007, p. 172)

Para Lehmann, a situação ou acontecimento que coloca o personagem pós-

dramático diante de um dilema sem solução exerce o mesmo papel para seu

espectador.

Assim, um teatro que não é mais simplesmente algo ‘a ser assistido’, mas situação
social, escapa a uma descrição objetiva porque representa para cada um dos
participantes uma experiência que não conflui com a experiência dos outros. Ocorre
uma virada do ato artístico em direção ao observador, o qual se depara com sua
própria presença e ao mesmo tempo se vê forçado a travar uma contenda virtual
com o criador do processo teatral: o que se espera dele? (LEHMANN, 2007, p. 173)

Com isso, o teatro pós-dramático ao mesmo tempo que coloca seus

personagens em situações diversas e nega a eles uma evolução, uma saída, ou

mesmo um desfecho, coloca também o espectador diante desses acontecimentos

sem causa ou consequência, apresentando a este espectador uma linguagem nova,

descentralizando o texto teatral e subtraindo o índice temporal, o pós-dramático

conflui numa nova maneira de fazer teatro, subvertendo as tão enraizadas

expectativas do teatro dramático.


! 26!

1.3 PROXIMIDADES ENTRE O ABSURDO E O PÓS-DRAMÁTICO

Embora o absurdo e o pós-dramático sejam dois modelos de teatro distintos,

separados por uma barreira temporal, ambos possuem algumas características em

comum.

Como o próprio Esslin coloca, o absurdo foge da base do teatro dramático

ao se distanciar da noção de conflito e do personagem individualizado. Na visão do

teórico, “porque o Teatro do Absurdo projeta o mundo pessoal do autor, faltam-lhe

personagens objetivamente válidos. Não lhe é possível mostrar o embate dos

temperamentos opostos ou estudar paixões humanas em conflito, não sendo

portanto dramático no sentido aceito da palavra” (ESSLIN, 1968, p. 349).

Independentemente das intenções de cada autor, é inegável que o teatro do absurdo

se distancia do teatro tido como dramático.

Para Lehmann, parte do processo de genealogia do teatro pós-dramático

passa pela recepção favorável de peças do teatro do absurdo e existencialistas. “Na

Alemanha, que tanto nas artes plásticas quanto na cultura cotidiana seguia

docilmente as influências norte-americanas, passou a haver no campo do teatro uma

recepção empolgada das peças de Beckett, Ionesco, Sartre e Camus como reação

ao teatro cultural enrijecido” (LEHMANN, 2007, p.85). Apesar de admitir a

importância do teatro do absurdo para a cena teatral que ajudou a fomentar o teatro

pós-dramático, Lehmann alega que o teatro do absurdo “deixa para trás a

compreensibilidade imediata do curso da ação, mas em meio à dissolução do

sentido se mantém assombrosamente aferrado às unidades clássicas do drama”

(LEHMANN, 2007, p. 86). Lehmann sustenta que

[...] o teatro do absurdo, assim como o novo teatro político de provocação,


permanecia comprometido com aquela hierarquia do teatro dramático que acaba
por subordinar os recursos teatrais ao texto. Permanece intacto o característico
! 27!

encadeamento do teatro dramático de predominância do texto, conflito de


personagens, totalidade de uma “ação” por mais grotesca que ela seja e figuração
do mundo. (LEHMANN, 2007, p. 87)

Lehmann afirma, então, que o teatro do absurdo não faz parte das fontes

que deram origem ao pós-dramático. Entretanto, tanto ele quanto Esslin usam o

drama como contraponto para o desenvolvimento de suas perspectivas teóricas.

Ambos entendem que o drama é a forma a ser subvertida, respectivamente pelo

teatro do absurdo e pelo pós-dramático.

Ao abordar tais raízes genealógicas, o próprio Lehmann cita Martin Esslin e

o teatro do absurdo para enumerar características presentes em ambas as formas.

[...] não há “nenhuma ação ou intriga digna de nota; as peças “normalmente não
apresentam quaisquer figuras que se pudesse chamar de personagens”;
aparentando ser antes “algo como marionetes; com frequência não têm “ nem
começo nem fim”; em vez de espelhos da realidade, mais parecem “imagens
especulares de sonhos e temores”, sendo muitas vezes constituídas não de
“réplicas fluentes e diálogos burilados”, mas de “balbucios sem coerência”.
(LEHMANN, 2007, p. 87)

Ainda, ao elencar as tendências que contribuíram para a construção do

teatro pós-dramático, Lehmann aborda a obra de Tadeusz Kantor e, ao falar sobre

sua temática, aponta aspectos que remetem a Beckett. “É um teatro cujo tema,

como afirma Monique Borie, são os restos, um teatro após a catástrofe (como os

textos de Beckett e Heiner Müller) [...] Com isso, diferencia-se do drama, que não

considera a morte como algo prévio, como base da experiência, abordando sempre

a vida que conduz a ela” (LEHMANN, 2007, p. 118).

O crítico aborda ainda a obra de Beckett intitulada Aquela vez, como um

exemplo da estética pós-dramática. Sobre a amplitude de estilos da obra de Beckett,

Luiz Marfuz afirma que


! 28!

O percurso de Beckett é o do esgotamento, em um continuum literário produtivo.


Após levar as possibilidades da narrativa ao depauperamento, parte para o teatro, o
rádio, o cinema e a televisão, construindo um conjunto conexo no qual gêneros se
combinam e se recombinam, nutrindo a criação teatral com formas que vão do
simples ao complexo, do erudito ao popular, do arcaico ao moderno. (MARFUZ,
2013, p. 9)

Tanto o teatro do absurdo como o pós-dramático se destacam por reinventar

antigas formas de linguagem teatral. “O teatro do absurdo é parte de uma tradição

rica e variada. Se há qualquer coisa nele de realmente novo é apenas a maneira

inusitada pela qual várias atitudes familiares da linguagem da mente e da literatura

foram entretecidas” (ESSLIN, 1968, p. 344). Assim, em ambas as formas de teatro,

as qualidades primordiais surgiram do contraponto ao teatro dramático, em cada

época a sua maneira.


! 29!

2 BECKETT NO CONTEXTO DO TEATRO PÓS-DRAMÁTICO

2.1 FRAGMENTAÇÃO, DESCONSTRUÇÃO E DESCONTINUIDADE

A obra de Samuel Beckett é vasta e diversificada. O dramaturgo escreveu

ensaios, romances, peças para rádio e televisão e, inclusive, um roteiro para

cinema. Considerando que o corpus desta pesquisa é a escrita cênica de Beckett,

objetiva-se, nesse capítulo, abordar as características de algumas peças teatrais

posteriores a Esperando Godot que se relacionam com o pós-dramático. Para tanto,

foram selecionadas as peças Fim de partida, A última gravação de Krapp, Play, Vai

e vem e Aquela vez. Todas com estruturas diferentes entre si, porém com

características pontuais similares a Esperando Godot e, por consequência, pontos

em comum com o pós-dramático.

Fábio de Souza Andrade, no prefácio da edição de Esperando Godot de

2007, comenta que na ocasião da estreia da peça de Beckett houve tentativas de

sintetizar a novidade que Esperando Godot trouxe à dramaturgia contemporânea.

Nesta peça em que a simetria imperfeita, forma particularmente cara a Beckett,


encarna-se numa multiplicação de duplos ligeiramente discrepantes (dois atos, dois
dias, dois pares – Didi e Gogô, Pozzo e Lucky), a indefinição do espaço – um meio
do caminho na terra de ninguém, demarcado unicamente pela presença insistente
de uma árvore –, a incerteza da espera anunciada no título, a ausência de um
quadro de referências naturalistas a falta de consequência prática dos diálogos
despertaram várias leituras alegóricas. (ANDRADE, 2007, p. 9)

Já Tânia Brandão, em suas considerações críticas, é categórica ao afirmar

que a obra de Beckett, por sua amplitude e complexidade, é avessa a rótulos:

A conclusão é obrigatória, automática, inescapável: o texto soterra, definitivamente,


as abordagens impressionistas ingênuas da obra de Beckett, que o mantiveram
sempre em um espaço de compreensão e de análise aristotélico, motivando até
! 30!

mesmo a infeliz qualificação de seu teatro, entre outros, como teatro do absurdo. E
não tem sido fácil desmontar esta ótica estreita, esta redução do impacto do autor,
que teima em minimizar a corrosão que ele promoveu no palco do ocidente.
Qualificar o teatro de Beckett como teatro do absurdo supõe o reconhecimento de
uma norma – um teatro da normalidade – a partir da qual ele deveria ser focalizado,
como se em algum grau, embora transgressivo, ele se submetesse a este
enquadramento. Quando se recorre à facilidade do rótulo, o que se escamoteia não
é pouco: é a invenção do novo, a subversão do que está instituído. (BRANDÃO in
CAVALCANTI, 2006, p.16-17)

Para Marfuz, a escrita cênica de Beckett é responsável por reinventar modos

de leitura e encenação. ”Criam-se novas relações com o espaço, que comprime

objetos e personagens; o tempo, cíclico e indeterminado; a performance cênica, que

leva encenadores e atores a descobrirem no desconforto físico, na economia dos

meios e na musicalidade das palavras diferentes modos do fazer artístico”

(MARFUZ, 2013, p. XXIII). Marfuz utiliza tais propriedades da obra de Beckett para

caracterizar o que chama de poética da implosão. O teórico trata do tema alegando

que uma implosão é algo calculado e controlado, comparando as peças de Beckett a

esta implosão cuidadosamente calculada pelo autor. “Onde se diz existir a ação,

zomba-se dela; no lugar do movimento, impera o gesto mínimo; quando a voz é

suprimida, instala-se o silêncio” (MARFUZ, 2013, p. XXIII). Para o crítico, Beckett

minou a estrutura do drama. “A implosão aprofunda o mergulho no vórtice da

linguagem que vai esvaindo de significados e perde os referentes. Por conta disso,

as categorias ação, espaço e tempo, já desfiguradas na essência, embora tentem

erguer-se na aparência, reduzem-se a aspectos mínimos e atingem diretamente a

personagem” (MARFUZ, 2013, p. XXIV). Dessa forma, pode-se compreender que

Beckett tinha pleno controle sobre a dramaticidade de suas peças ao desconstruir os

pilares do drama enquanto autor.


! 31!

Mais do que enquadrar ou classificar, o esforço é reconhecer a presença de


elementos e variantes oriundos de diversos campos e linguagens. Os fios
condutores se interconectam e minam estruturas do épico, do lírico e do dramático
quando Beckett se apropria de certos elementos de cada gênero para erguer uma
forma, já corroída nas bases. (MARFUZ, 2013, p. 9)

Beckett consegue, então, que sua escrita cênica questione as bases e

fundações do drama.

É como se o dramaturgo manipulando bem as convenções de gêneros, pudesse


dizer que a forma dramática está ali na essência, quando se trata da aparência: há
diálogos, algumas falas e um interlocutor, assegurando supostamente a relação
intersubjetiva – foco do drama – mas sem a articulação dramática entre ação,
espaço, tempo, enredo e personagens. (MARFUZ, 2013, p. 11)

Beckett utiliza a linguagem, um dos pilares do drama, para criar sua

desconstrução. “A linguagem nas peças de Beckett serve para expressar o

desmoronamento, a desintegração, da linguagem. Onde não há certeza não pode

haver significados definidos – e a impossibilidade de se jamais atingir a certeza é um

dos principais temas das peças de Beckett” (ESSLIN, 1968, p. 75). Beckett cria

paradoxos entre fala e gesto e repete-os à exaustão. Como nos momentos em que

Vladimir busca algo dentro de seu chapéu, mesmo falando de um assunto distinto, e

tal busca invariavelmente se mostra inútil. Sempre no limite exato da implosão do

significado.

As personagens de Beckett também padecem desta perda de significado.

Para Marfuz:

No drama rigoroso, a personagem age em espaço definido motivada por relações


de causalidade em tempo determinado, no qual, até mesmo, busca-se sugerir uma
relação aproximada entre o tempo cênico e o tempo da ação. Em Beckett, a
personagem é submetida ao vaivém de um tempo incapturável, um espaço que
! 32!

deriva dos mecanismos de desfiguração e uma ação sitiada. (MARFUZ, 2013, p.


59)

Na ausência de um tempo pré-determinado pelo autor, as personagens de

Beckett estão destinadas a repetir as mesmas falas e ações indefinidamente, sem

nunca chegar a um desfecho. E para o crítico, “a ação, no teatro de Beckett, é

mantida no limite de uma tensão contínua; uma espécie de anticlímax permanente,

sem perspectiva de resolução, que parece desenvolver-se por meio de pequenas

oscilações, mas que nunca resulta em complicação ou desfecho feliz ou infeliz”

(MARFUZ, 2013, p. 59).

Com noções de tempo desequilibradas, ações que se repetem à exaustão,

falas que se decompõem e personagens incapazes de evoluir, Beckett vai

gradualmente, se aproximando do pós-dramático. Ao longo de sua carreira teatral

Beckett se distancia cada vez mais das convenções teatrais de sua época. Segundo

as características propostas por Lehmann como constituintes do teatro pós-

dramático, Beckett escreveu diversas peças que assim podem ser consideradas,

como as que observaremos neste capítulo. O que pretende-se expor, no entanto, é

que determinadas características de tais peças beckettianas pós-dramáticas já estão

presentes em Esperando Godot.

2.1.1 Fim de partida

Em Fim de partida1, vários elementos do pós-dramático se pronunciam, tais

como os diálogos cruzados, as aporias e a distorcida noção de tempo. Esslin

descreve a situação inicial dos quatro personagens:

!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!
1!Título original: Fin de partie. Citado por alguns autores também como Fim de jogo.
! 33!

Numa sala nua com duas pequenas janelas, um velho cego, Hamm, está sentado
numa cadeira de rodas. Hamm é paralítico, e não pode ficar em pé. Seu
empregado, Clov, não pode sentar. Em duas latas de lixo, encostadas na parede
estão os pais de Hamm – Nagg e Nell – ambos sem pernas. O mundo, do lado de
fora, está morto. Alguma catástrofe monumental, da qual os quatro personagens
são – ou julgam que são – os únicos sobreviventes, matou a todos os seres vivos.
(ESSLIN, 1968, p. 58)

A descrição de Beckett sobre o ambiente mostra uma atmosfera semelhante

a um bunker. As latas de lixo, a luz acinzentada, as janelas diminutas e a ausência

de mobília remetem a um ambiente enclausurante e dão um tom de fim de mundo. E

se o mundo lá fora não existe mais, o que sobrou dele, ali dentro, é desolador

também. A situação de Hamm, Clov, Nagg e Nell, encarcerados em um cômodo, em

um mundo pós apocalíptico, remete à característica expressa por Lehmann ao citar

obras cujos temas se passam após a catástrofe.

HAMM
A natureza nos esqueceu.
CLOV
Não existe mais natureza.
(BECKETT, 2010, p. 48)

Para Webb, o ambiente de isolamento dos personagens, não se restringe ao

ambiente físico e se estende ao patamar psicológico.

A peça é construída em torno de imagens de isolamento e aprisionamento. A cena


começa com duas latas de lixo dentro de um contêiner similar, que é o próprio
recinto. O conteúdo de todos os contêineres são detritos: Nagg e Nell nas duas
latas de lixo, Hamm e Clov na sala. A casa é tanto um “abrigo” quanto um lugar de
isolamento, em que as antigas maneiras de pensar, preservadas pelo medo ou pela
teimosia, tanto protegem os habitantes quanto os apartam da realidade do lado de
fora. (WEBB, 2012, p. 66)
! 34!

Tal desligamento do que sobrou do mundo justifica o fato de que Hamm não

sabe com exatidão quanto tempo se passou quando pergunta a Clov “Em que mês

nós estamos?” (BECKETT, 2010, p. 110). A confusão cronológica transforma o

cotidiano dos personagens que, sem noção da passagem de tempo, estão fadados a

repetir ações e padrões. Sendo assim, “O tempo é uma pilha informe de momentos

infernais, todos idênticos” (WEBB, 2012, p. 71). Tal afirmação se confirma quando

Hamm pergunta a Clov “Que horas são?” e este lhe responde “A mesma de sempre”

(BECKETT, 2010, p. 40). Revelando dessa forma, mais um ponto de contato com as

características pós-dramáticas descritas por Lehmann. Já para Vasconcellos o fator

tempo tem influência sobre a incapacidade de transformação.

Neste universo em que é sempre “a mesma hora de sempre”, em que faz sempre o
mesmo tempo de sempre, em que a luz não varia nas matizes noite, aurora, dia,
crepúsculo, mas se mantém num invariável tom cinza, neste universo em que nada
parece capaz de transformação (e, não obstante, pode terminar), aqui, todo o
vocábulo afeito a estados transitórios (sono, despertar, noite, manhã, ontem)
obsolesce. (VASCONCELLOS, 2013, p. 60)

Assim, para a autora, a linguagem perde uma de suas funções principais no

teatro de informar transições. “Diferentemente do teatro clássico, cujas palavras

serviam ao progresso da ação, as palavras aqui estão impedidas de porvir, e por

isso seu desempenho fica restrito a modos verbais ‘in-consequentes’”

(VASCONCELLOS, 2013, p. 60). Concluindo que “o universo de Fim de Partida é

antiaristotélico” (VASCONCELLOS, 2013, p. 64) E um dos fatores determinantes

desta proposição é a ausência de individualidade dos personagens. Para a autora,

“os personagens em Fim de partida não se constituem como sujeitos, são seres

ocos atravessados por memórias aleatórias e palavrório estéril (VASCONCELLOS,

2013, p. 66).
! 35!

Já Esslin, ao caracterizar os elementos narrativos de Esperando Godot e

Fim de partida, afirma que não há uma evolução dramática em nenhuma das duas

peças.

Faltam-lhes tanto personagens quanto enredo, no sentido convencional dos


mesmos, porque elas atacam sua temática num plano em que nem personagens
nem enredo existem. Os personagens pressupõem que a natureza humana, a
diversidade de personalidade e de individualidade, é real e tem importância; o
enredo só pode existir no pressuposto de que os acontecimentos no tempo tem
alguma importância. (ESSLIN, 1968, p. 68)

Outro traço pós-dramático que se manifesta em Fim de partida é a ausência

de uma conclusão. Quando Clov se coloca à porta, prestes a deixar Hamm e sair do

abrigo, cria-se a expectativa de uma mudança. Entretanto, a rubrica de Beckett não

deixa clara a saída ou não de Clov, deixando personagens e espectadores na

dúvida. E aqui, destaca-se novamente a impossibilidade de movimento. Clov, sendo

o único entre os personagens que pode tem a habilidade de se mover, mesmo assim

não o faz. “Se Clov realmente tem a coragem de ir adiante, não está claro para ele,

nem para a plateia, o que vai enfrentar do lado de fora – a vida, a morte ou a

ausência definitiva de sentido” (WEBB, 2012, p. 79). Já para Vasconcellos o fato de

Clov não se mover marca a ausência de conclusão, “se, por um lado, a peça acaba,

com Hamm estancando o fluxo de suas palavras ao cobrir o rosto com um trapo, por

outro lado, a peça não conclui nem dramática, nem narrativamente”

(VASCONCELLOS, 2012, p. 55). Para Webb, “nas peças de Beckett, os detalhes da

trama convencional são menos importantes do que a situação essencial, e nesse

caso a situação essencial é bem clara, qualquer que seja o desfecho” (WEBB, 2012,

p. 79).

Por fim, uma das características mais marcantes de Fim de partida são suas

referências ao jogo teatral. Para Vasconcellos, seria um “ jogo compreendido com o


! 36!

próprio jogo teatral, cujas regras se mantém no seu mínimo e irredutível viger: um

início, uma duração, um final, e a repetição de todo o processo em dias sequentes”

(VASCONCELLOS, 2012, p. 56). São várias as alusões ao jogo teatral. Como no

momento que Clov ameaça deixar Hamm, que nega prontamente. Na busca de um

motivo para ficar, Clov pergunta para quê ele serve ao que Hamm responde “Pra me

dar as deixas” (BECKETT, 2010, p. 101).

Há momentos em que a interrupção da verdade cênica rompe a barreira da

quarta parede e Clov se dirige diretamente ao espectador.

CLOV
A coisa está esquentando. (Sobe na escada, dirige a luneta para o exterior, ela escapa-lhe
das mãos, cai. Pausa) Fiz de propósito. (Desce, pega a luneta, examina-a, dirige-a para a
plateia) Vejo... uma multidão... delirando de alegria. (Pausa) Isso é que eu chamo de lentes
de aumento. (Abaixa a luneta, volta-se para Hamm) E então? A gente não ri? (BECKETT,
2010, p. 69)

Para Ramos, “Em Fim de jogo a analogia com a representação teatral é

notória, havendo até mesmo leituras que percebem as duas personagens como

atores no desempenho de uma sessão” (RAMOS, 1999, p. 58). Ao fim da peça, Clov

anuncia que vai deixar Hamm e diz: “É o que se chama sair de cena” (BECKETT,

2010, p. 128), em uma tentativa de encerrar o jogo que Hamm iniciou. “Se no início

está o fim, se a duração arrasta instantes inúteis, se o final só remata pelo cair do

pano (ou trapo), deixando sem desfecho a história, não importa: as regras impõem-

se, e os personagens, atônitos, submetem-se ao jogo como ao destino

(VASCONCELLOS, 2012, p. 57), afirma a autora, deixando claro que não há saída

nem desfecho para aqueles personagens. Clov, de malas prontas, mantém-se

imóvel até o fim da última fala e o cair do pano sobre o próprio rosto de Hamm. A

derradeira alusão ao jogo teatral.


! 37!

2.1.2 A última gravação de Krapp

A última gravação de Krapp é um monólogo de 1958 em que o personagem

do título se senta, no dia de seu aniversário, para escutar as gravações feitas a cada

ano, no passado e ainda gravar novamente suas memórias, como de costume. Em

um ambiente mínimo, constituído por uma mesa, um gravador e várias caixas de

fitas, isolado por um recorte de luz feito no palco, Krapp é um homem reduzido

àquele momento, àquelas fitas. “O cenário traduz a constante beckettiana de

redução dos elementos cênicos” (CAVALCANTI, 2006, p. 64). Tal como em

Esperando Godot, A última gravação de Krapp tem um mínimo de elementos

cenográficos.

Sobre a narrativa feita pelo personagem, Vasconcellos comenta que “a

história de Krapp, contada aqui linearmente, é levada ao palco por Beckett, no

entanto, de modo concêntrico (e concentrado)” (VASCONCELLOS, 2013, p. 94).

Krapp começa a escutar sua própria voz narrando acontecimentos do passado. Em

determinados momentos, Krapp para a fita, acelera ou rebobina. Sempre de acordo

com a memória narrada. Se a fita o desagrada, ele para, troca de fita; se considera o

conteúdo uma bobagem, ele simplesmente acelera; e se a lembrança o agrada, ele

rebobina e escuta novamente. Apresentando assim, com este vai e volta temporal,

diferentes facetas de um mesmo personagem. Manipulando o tempo cronológico por

meio da memória e do correr e rebobinar da fita, Beckett nos envolve na teia de

memórias de seu personagem título. Memórias editadas pelo tempo, por serem um

relato parcial, feito pelo próprio ouvinte, do período em que foram gravadas; e pelo

próprio protagonista, que desconsidera ou oblitera ao se recusar a escutar

determinados trechos.
! 38!

O contraste entre o Krapp do presente e o do passado se dá tanto pela da

memória, por vezes perdida, de determinadas situações, como pela linguagem. “Até

o sentido da palavra ‘equinócio’ foi esquecido; o Krapp do presente sequer se

lembra da linguagem do homem que um dia foi” (WEBB, 2012, p. 83). Assim,

Beckett nos apresenta este personagem através de seu diálogo consigo mesmo,

com seu “eu” do passado. Para Webb, ele é “um homem cuja vida, ao longo de

quarenta, cinquenta anos, é vista como uma sequência de eus fragmentários unidos

apenas pelo hábito e por um fio de memória” (WEBB, 2012, p. 83). Tantas facetas

expõem um personagem fragmentado, traço comum em peças de Beckett. Para

Cavalvanti, “a cena de A Última Gravação de Krapp retrata uma situação usual na

vida de Krapp, um hábito, uma repetição. [...] A linearidade da narrativa ouvida é

desconstruída” (CAVALCANTI, 2006, p. 63). Já que a ação está apenas na narração

dos acontecimentos passados da vida de Krapp, Beckett mais uma vez entra em

contato com a estética pós-dramática.

Tal como em Fim de partida, Beckett apresenta outro final em aberto.

“Apesar do quadro de devastação com que A última gravação de Krapp se encerra,

o final permanece inconcludente” (VASCONCELLOS, 2013, p. 103). Ao se

confrontar com suas próprias lembranças, Krapp conclui que era um tolo no

passado, porém está velho e sozinho e, diferentemente das fitas, não é mais

possível voltar atrás. “O que deu errado? Que escolhas levaram-no a esse beco sem

saída? O próprio Krapp parece entender muito mal o que se passa. Só percebe que

o ponto aonde chegou realmente não tem saída” (WEBB, 2012, p. 87). Na rubrica

final apenas a imobilidade que se tornaria característica de alguns personagens de

Beckett: “Krapp imóvel, olhando fixamente para a frente. A fita continua correndo em
! 39!

silêncio” (BECKETT, p.7). Denunciando a tanto a impossibilidade de parar como de

continuar.

2.1.3 Play

Já em Play2 (1963), Beckett coloca em cena três personagens, chamados

apenas pelas siglas M, W1 e W2, cuja única parte do corpo feita visível pela

iluminação é a cabeça. Toda a peça pode ser considerada uma forma de teatro de

coro. Cada uma das cabeças do triângulo amoroso conta a história sob a sua

perspectiva sem nunca se comunicar diretamente com algum dos outros

personagens. Webb explica que “as três vozes são de um homem, sua esposa e sua

amante, chamados na didascália de H, M1 e M2. A peça estuda a relação entre

esses três personagens [...] e suas reações à situação em que eles se encontram

após a morte” (WEBB, 2012, p. 140).

Não há diálogo. Os três personagens jamais se comunicam. A cada instante

em que a rubrica indica a troca de luz de um rosto para outro, o segundo começa a

falar como se estivesse sozinho em cena. Quase ao final do texto a rubrica “Repeat

play” (BECKETT, p. 8) indica que todo o texto deve ser repetido desde o início. Com

isso, Beckett insere a repetição de uma maneira nova e literal em suas peças,

conferindo um sentido de círculo vicioso à situação dos personagens. “É evidente

que, enquanto os personagens mantiverem-se ligados aos padrões de pensamento

que os levaram àquela situação, eles jamais sairão dela. Contudo, há também

indicações de que rompê-la seria possível, e que eles estão na verdade sendo

desafiados a fazê-lo” (WEBB, 2012, p.142). O elemento da repetição que remete à

!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!
2!Título original. Quando traduzida para o francês foi chamada Comédie. Portanto, é referenciada por
alguns autores como Peça e por outros como Comédia.
! 40!

circularidade novamente se faz presente em Play. “Apesar do cair do pano, fica

sugerido que tudo se repetirá ao infinito. A peça revela estrutura circular e, ao

mesmo tempo, de intermitência” (VASCONCELLOS, 2013, p. 125).

O fato de somente ser possível visualizar as cabeças dos personagens

permite que se questione a humanidade e composição de tais personagens. Beckett

faz o mesmo com Nagg e Nell em Fim de partida e o efeito é semelhante. “Observa-

se assim, no teatro de Beckett, uma tendência à representação da personagem pela

redução, fragmentação, divisão e pelo encobrimento e desvanecer da figura”

(CAVALCANTI, 2006, p. 54). Como se os personagens fossem apenas partes,

incompletos, não realizados. “O confinamento às urnas radicaliza e expõe também a

própria condição do personagem dramático: encerrado num certo espaço e num

certo tempo” (VASCONCELLOS, 2013, p. 123). São personagens incompletos

condenados a repetir seus discursos indefinidamente diante da luz inquisidora

especificada por Beckett em suas rubricas.

As palavras em Peça não são literárias, são mais falatório e não portam uma
mensagem. São lançadas como resíduo, pasticho, e só alcançam seu status
artístico pela completa integração aos aspectos formais da obra. Beckett investiga o
teatro dramático por meio de seus elementos irredutíveis: luz e fala. E, ao fazê-lo,
evidencia a morte (ou inutilidade) de toda a parafernália que, sempre que é
recuperada, dissimula o caráter agônico do drama. (VASCONCELLOS, 2013, p.
126)

Já para Cavalcanti, “paralelamente ao frequente despedaçamento da

unidade da figura, observa-se, nas personagens da dramaturgia de Beckett, uma

recorrente e intensa narração de relatos autobiográfico que, entretanto,

problematizam a coerência, a estabilidade e a homogeneidade do sujeito falante”

(CAVALCANTI, 2006, p. 56). Reunindo tais particularidades, Beckett cria em Play


! 41!

personagens despedaçadas, ensimesmadas, incapazes de comunicação, de

movimento e, portanto, de qualquer evolução dramática.

A iluminação tem papel crucial nesta peça. Beckett é meticuloso quanto a

sua função na rubrica inicial. “Seus discursos são provocados por um foco de luz

projetado somente sobre seus rostos. A mudança da luz de um rosto para o outro é

imediata. Sem blecaute, i.e. retorna-se para a quase completa escuridão da

abertura, exceto quando indicado. A resposta à luz é imediata.3” (BECKETT, p. 1,

tradução minha). Além da função de direcionar o olhar do espectador, aqui a

iluminação assume uma função inquisidora, questionando e revelando a verdade ao

demandar e permitir somente a fala do personagem sob a luz. Reafirmando assim a

característica pós-dramática que postula que as diversas linguagens presentes no

palco tem tanta importância quanto o texto em si. Para Ramos, “as personagens,

cabeças saídas de urnas [...] dependem crucialmente do foco de um refletor para

existirem, como presenças físicas e como falas. É a luz que as autoriza a falar e que

as suprime” (RAMOS, 1999, p. 73). Confirmando assim que, para Beckett, o texto é

apenas uma das linguagens disponíveis. Em Play, a responsabilidade pela

condução da narrativa, bem como de apresentar e praticamente tirar de cena

personagens, é da luz.

2.1.4 Vai e vem

Vai e vem é uma peça curta de 1966 que, assim como Play, apresenta

novamente três personagens, Flô, Vi e Ru. As amigas de meia-idade estão sentadas

juntas em um banco até que uma delas sai e as outras duas confidenciam um

!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!
3!Na versão em inglês: “Their speech is provoked by a spotlight projected on faces alone. The transfer
of light from one face to another is immediate. No blackout, i.e. return to almost complete darkness of
opening, except where indicated. The response to light is immediate”.!
! 42!

segredo que esperam que a terceira não saiba. Esta situação se repete com cada

uma das três personagens no momento de sua breve saída do palco. Ao fim, não se

sabe quais eram os segredos, apenas que as três compartilham de uma mesma

circunstância: a de ignorar algum segredo sobre si mesma. Assim como em outras

peças, Beckett faz uso do mínimo cenário possível: um banco em cena é suficiente

para ambientar a situação das três amigas. Entretanto, Beckett especifica que o

banco também deve ser discreto. “Estreito, sem encosto, longo o bastante para

acomodar as três mulheres, uma quase tocar a outra. Banco pouco visível de modo

que o espectador não saiba onde as mulheres sentam” (BECKETT, p. 3).

O autor cria também semelhanças na caracterização das personagens,

descrevendo figurinos específicos cuja única diferenciação de uma personagem

para outra é a cor. De acordo com Webb: “como estão todas na mesma situação,

isto é, todas no mesmo estado de meia-vida, Flô, Vi e Ru se parecem muito. Mesmo

usando cores diferentes, suas roupas são idênticas sob todos os outros aspectos”

(WEBB, 2012, p. 145). Beckett também é específico ao determinar em rubrica

exatamente as posições que cada uma das mulheres ocupam ao longo da peça,

além de descrever com exatidão a maneira com que elas devem dar as mãos ao

término da cena. Por fim, a constatação recorrente das personagens de Beckett: não

há alteração da situação inicial para a situação final.

Nunca ficamos sabendo qual é o segredo – que elas estão mortas? que não há
mais esperança de casamento? ou simplesmente que a ausente está com o batom
borrado ou está com uma espinha no nariz? –, mas, outra vez, isso não é
particularmente importante; a situação essencial permanece a mesma, qualquer
que seja o segredo. (WEBB, 2012, p. 146)

Nesta peça, Beckett usa a repetição na movimentação, na ação de contar o

segredo e até mesmo nas roupas das personagens, mudando apenas a cor dos
! 43!

figurinos. Dessa forma, fragmenta suas personagens de outra maneira:

descaracterizando as particularidades que as tornariam indivíduos. O texto não

fornece um contexto sobre a vida de Flô, Vi e Ru. Tudo que se sabe é que em algum

momento no passado estudaram juntas, como menciona Flô: “sentadas, as três,

juntas, como outrora, no pátio do colégio, as irmãs, lado a lado...” (BECKETT, p. 1).

Mais adiante, Vi, na tentativa de rememorar um acontecimento, propõe que falem do

passado. “Por que não falamos dos velhos tempos? (Silêncio) Do que aconteceu

depois... (Silêncio) Se a gente se desse as mãos, como antes...” (BECKETT, p. 2).

Entretanto ela mesma fica em silêncio, como se hesitasse entrar no assunto. As

duas amigas não respondem e apenas dão as mãos.

Ao propor um final e não um desfecho, Beckett priva as protagonistas de

descobrirem os segredos, reagirem a eles e evoluírem ao adquirir aquela

informação, impedindo novamente seus personagens de se realizarem

dramaticamente. Mais que isso, priva também o espectador do conhecimento dos

tão bem guardados segredos, permitindo apenas que ele conheça a situação

momentânea das três amigas.

2.1.5 Aquela vez

Em Aquela vez 4 , Beckett apresenta um único personagem, chamado

Ouvinte. Este, posicionado no centro do palco, escuta sua própria voz vinda de três

fontes diferentes, duas laterais e uma acima denominadas A, B e C. Ao abordar a

questão temporal no teatro, Lehmann comenta sobre esta peça de Beckett. O crítico

defende a existência de uma crise no tempo como fator constituinte do teatro pós-

dramático. Para exemplificar tal crise, Lehmann menciona o texto de Beckett.


!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!
4!O título original That time, quando traduzido para o português, é citado por autores como Aquela
vez ou ainda como Aquele tempo.
! 44!

Em Aquele tempo há apenas uma cabeça. [...] Essa cabeça isolada (o ‘ouvinte’)
espreita. A estrutura básica da linguagem e da identidade subjetiva – falar/ouvir,
ouvir-se falar – é desagregada no espaço e na disposição do palco: a voz do
‘ouvinte’ vem de três alto-falantes que se interrompem e se alternam no relato das
diferentes cenas de sua memória. (LEHMANN, 2007, p. 300)

Cada uma das vozes relembra acontecimentos passados em diferentes

períodos da vida, tais como “aquela vez que você retornou aquela última vez ver se

estava ainda ali a ruína onde criança você se escondia” (BECKETT, p. 1). Algumas

destas lembranças se repetem como num fluxo de memória. Outras, por vezes, são

interrompidas por um fechar de olhos do Ouvinte e uma leve queda de luz. Para que

o fluxo da narração e, consequentemente da fala, não seja interrompido, Beckett

abdica de sinais de pontuação, pontos finais, letras maiúsculas e vírgulas. Cada fala

flui de maneira ritmada e a transição entre elas deve ser feita de maneira suave,

como indicado na nota ao final do texto cênico. “ABC se sucedem sem nenhuma

interrupção , exceto durante 10 segundos nos dois locais indicados. Contudo, a

passagem de uma voz à outra deve ser claramente perceptível, ainda que de uma

forma suave” (BECKETT, p. 7). Sobre esta construção cuidadosamente

desordenada de som, Marfuz afirma que “Em Aquela Vez, a desordem é expressa

pela fragmentação das vozes, mas não há uma ordenação das fontes sonoras que

não se sobrepõem nem se misturam” (MARFUZ, 2013, p. 49). Para Cavalcanti, a

maneira desconstruída como Beckett escreve este texto reflete no personagem.

A “estranha” narrativa autobiográfica do Ouvinte – prosa poética, sem pontuação


alguma, entrecortada por elipses e aliterações – em que se mesclam imagens de
retorno, caminhadas, solidão e morte, faz soar repetidamente o tema do
apagamento da unidade e fixidez do sujeito. (CAVALCANTI, 2006, p. 69-70)
! 45!

A maneira como as vozes se separam e se desconectam criam um

personagem paradoxal. Embora presente no palco, sua materialidade está na sua

voz que é projetada mecanicamente. “A relação entre dispositivos cênicos e

espacialidade se torna mais complexa quando o espaço é corporificado e a fala é

dissociada do enunciador” (MARFUZ, 2013, p. 48). Tal fragmentação corrobora a

noção de tempo descontinuada da peça descrita por Lehmann. “Há uma narração

fragmentária, mas não há espaço/tempo para ação dramática no agora do palco. O

tempo não avança; entrincheira-se em si mesmo, curva-se e dobra-se como tempo

lembrado” (LEHMANN, 2007, p. 299). Já para Marfuz, é o tempo descontinuado da

peça que comanda a tom, subordinando todas as outras formas de linguagem a ele.

Em Aquela vez, é o tempo que sugere tutelar as demais categorias, subordinadas


aos instantes marcados de emissão de voz, que advém das três fontes técnicas
sonoras, distribuídas espacialmente. Dessa forma, o tempo se distribui e se
fragmenta no espaço por meio dos dispositivos da cena, ao invés de facilitar o
curso da ação, como no ilusionismo teatral, ou de desvelá-la, como no teatro épico,
promovem interrupções sucessivas que solapam as possibilidades de uma
progressão linear e causal dos acontecimentos. (MARFUZ, 2013, p. 59)

Além da ausência de continuidade das narrações de fontes distintas, o

próprio texto comenta sobre a repetição e a não-linearidade do tempo. “sempre o

inverno então o inverno sem fim o ano todo como se não pudesse acabar o ano

agonizante não pudesse acabar como se o tempo não pudesse avançar”

(BECKETT, p. 5). Tal trecho reforça a noção descrita por Lehmann de que o tempo

entrincheira-se em si mesmo. O teórico vai além e afirma ainda que a construção

temporal do texto é parodiada.

Assim como ocorre em outras peças de Beckett, em Aquele tempo há uma unidade
de lugar e de tempo, mas ela é – evidentemente – parodiada. Nada daquilo que
está associado à unidade de tempo no teatro dramático se aplica aqui. O que não é
! 46!

exatamente uma unidade, mas uma desagregação da vivência do tempo. O fio da


continuidade interna é rompido. (LEHMANN, 2007, p. 298)

Para o autor, a falta de continuidade narrativa na peça é o que a aproxima

da estética temporal do teatro pós-dramático, por impossibilitar que qualquer ação

se desenvolva no palco. “Opera-se uma desagregação da unidade temporal e da

continuidade. Já em razão da combinação de formas textuais heterogêneas – carta,

cena, relato em prosa, representação de um papel – o fluxo do tempo é

constantemente interrompido” (LEHMANN, 2007, p. 301).

Aquela vez reúne elementos presentes em outras peças de Beckett. A

temporalidade descontínua está presente em Play e A última gravação de Krapp.

Ambas também mostram personagens relembrando de fatos do passado, sem

necessariamente situar suas histórias no presente. Há ainda a personagem

dramaticamente irrealizada, que termina a peça na mesma situação em que iniciou.

Essa figura beckettiana ainda é fragmentada de várias maneiras diferentes. A

fragmentação mais visível é a física, quando o personagem tem seu corpo físico

separado de sua voz, ou é representado apenas por uma parte do corpo (como uma

cabeça), ou, ainda, tem sua individualidade homogeneizada pela rubrica. A outra

fragmentação do personagem beckettiano é psicológica. Ele é condenado a ouvir ou

repetir discursos despedaçados pela própria memória. Assim, Beckett

inadvertidamente se aproxima da estética proposta por Lehmann que seria definida

como teatro pós-dramático.


! 47!

3 ESPERANDO GODOT AVANT LA LETTRE

3.1 PARATEXTUALIDADE: A CENA INSCRITA NO TEXTO

A paratextualidade, ou seja, a inserção de rubricas no textos, é o mecanismo

que permite ao autor teatral descrever ações, gestos, entonações ou mesmo

silêncios que são atribuídos aos personagens. para acrescentar informações ao

texto. Vasconcellos a define como

Qualquer palavra de um texto teatral que não faça parte do diálogo. Essas palavras
podem ser tanto o nome do personagem colocado diante de uma fala quanto a
descrição do personagem, do cenário, do figurino, ou indicações de entradas e
saídas de cena, sugestões de marcação ou, ainda, comentários explicativos
relativos ao estado de espírito dos personagens ao enunciar as palavras do texto.
(VASCONCELLOS, 2009, p. 205)

De origem grega, as rubricas eram chamadas de didascálias e são definidas

por Pavis como “instruções dadas pelo autor a seus atores [...], para interpretar o

texto dramático” (PAVIS, 2011, p. 81). A rubrica, então, evoluiu nos textos

dramáticos e suas funções foram se diversificando. Luiz Fernando Ramos esclarece

que “é através dela (a rubrica) que qualquer leitura, seja a de fruição literária seja a

pragmática, visando a uma encenação, vai melhor vislumbrar a materialidade e a

tridimensionalidade cênicas potenciais naquele texto dramático” (RAMOS, 1999, p.

17). Assim, entende-se que a rubrica é a maneira de um dramaturgo explicitar

intenções, movimentações e atos dos personagens, que não estão implícitos nos

diálogos do próprio texto. Cabe ressaltar que a rubrica não é um recurso

necessariamente utilizado por todo autor teatral. É particular de cada dramaturgo a

inclusão ou não de rubricas em seus textos.


! 48!

A rubrica é uma ferramenta abundantemente utilizada por Beckett para

descrever com exatidão as atitudes e ações de suas personagens. O autor se utiliza

de tal recurso para criar paradoxos e descrever ações que, por vezes, contrariam as

próprias falas, como por exemplo, a recorrência da fala “Então, vamos embora”

(BECKETT, 2007, p. 107) a qual, no entanto, é contradita pela imobilidade das

personagens que permanecem no mesmo lugar.

Ao longo da história do teatro muitos autores fizeram uso de rubricas com

funções diversas, no entanto, Beckett se destaca por inscrever as atitudes e a

movimentação dos atores em cena no próprio texto. Assim, o texto teatral

Esperando Godot de Beckett, além de se afastar do dramático, é considerada uma

escritura cênica ou um texto espetacular.

Segundo Patrice Pavis, texto cênico ou espetacular (performance text em

inglês),

[...] é a relação de todos os sistemas significantes usados na representação e cujo arranjo


e interação formam a encenação. O texto espetacular é, portanto, uma noção abstrata e
teórica, e não empírica e prática. Ela considera o espetáculo como um modelo reduzido
onde se observa a produção do sentido. (PAVIS, 1999, p. 409)

A rubrica pode ser enquadrada na noção de paratextualidade teorizada por

Gérard Genette (2006). De acordo com o teórico, esta categoria inclui os títulos,

subtítulos, intertítulos, prefácios, posfácios, advertências, prólogos, notas marginais,

de rodapé, de fim de texto, epígrafes, ilustrações, erratas, orelhas, capas e outros

tipos de sinais acessórios. Nesta última categoria pode-se identificar a rubrica. Tais

recursos de construtividade textual têm uma função específica, são eles que

“fornecem ao texto um aparato (variável) e por vezes um comentário, oficial ou

oficioso, do qual o leitor, o mais purista e o menos vocacionado à erudição externa,

nem sempre pode dispor tão facilmente como desejaria e pretende” (GENETTE,
! 49!

2006, p. 9). Ainda de acordo com Genette, em Paratextos editoriais, o paratexto

pode ser considerado uma

[...] “zona indecisa” entre o dentro e o fora, sem limite rigoroso, nem para o interior
do (o texto), nem para o exterior (o discurso do mundo sobre o texto), orla, ou como
diria Philippe Lejeune “franja”, sempre carregando um comentário, autoral ou mais
ou menos legitimado pelo autor, constitui entre o texto e o extratexto uma zona não
apenas de transição, mas também de transação: lugar privilegiado de uma
pragmática e de uma estratégia, de uma ação sobre o público, a serviço, bem ou
mal compreendido e acabado, de uma melhor acolhida do texto e de uma leitura
mais pertinente – mais pertinente, entenda-se, aos olhos do autor e de seus
aliados. (GENETTE, 2009, p. 9)

Portanto, entende-se que as rubricas conferem ao texto teatral informações

que o autor julga necessárias para a compreensão do conteúdo, ou mesmo, no caso

de textos teatrais e suas rubricas, relevantes para a caracterização de cenários e

personagens. A respeito da análise e investigação das rubricas Luiz Fernando

Ramos ressalta: “Como espaço da literatura dramática que oferece ao pesquisador

um ponto privilegiado de observação, será sempre o vestígio de uma encenação

passada (real ou imaginária) e o mapa de todas as encenações futuras” (RAMOS,

1999, p. 16).

Atendo-se ao valor literário das rubricas, faz-se necessário então analisar

que tipo de informação Beckett dispõe sobre seus personagens em seus paratextos.

Mais ainda: o que os atos, marcações e gestos revelam sobre a situação e a relação

entre estes personagens.

Assim como acontece em outras peças de Samuel Beckett, as rubricas são

parte vital do texto Esperando Godot. Para Ramos, “Em Beckett, a rubrica será tão

importante na ‘leitura’ que o espectador venha a fazer do espetáculo, se ela ali for

concretizada, quanto naquela feita por quem a lê como literatura dramática, nas
! 50!

páginas dos livros” (RAMOS, 1999, p. 53). Logo, a rubrica faz-se parte essencial dos

textos para o teatro de Beckett. Para Ramos, a importância das informações

contidas nas rubricas do dramaturgo é enorme, e “não obedecê-las, equivale a

modificar ou omitir falas das personagens” (RAMOS, 1999, p. 53).

Beckett utiliza rubricas5 de duas maneiras estruturais distintas: ora à parte

do diálogo em pequenos textos descritivos sobre cenários ou marcações; ora

inseridos nos diálogos, entre parênteses, como indicações de intenções de fala ou

também de marcações cênicas.

Quanto ao seu conteúdo, Ramos especifica que “Beckett sempre utilizou as

rubricas para detalhar ações físicas independentes e concomitantes às falas das

personagens” (RAMOS, 1999, p. 59). Tome-se como exemplo a seguinte fala e

respectiva rubrica do personagem Vladimir:

Às vezes até sinto que está vindo. Então fico todo esquisito. (Tira o chapéu,
examina o interior com o olhar, vasculha-o com a mão, sacode-o, torna a vesti-lo)
Como se diz? Aliviado e ao mesmo tempo… (busca a palavra) apavorado.
(Enfático) A-PA-VO-RA-DO. (Tira o chapéu mais uma vez, examina o interior com o
olhar) Essa agora! (Bate no chapéu, como quem quer fazer que algo caia, examina
o interior com o olhar, torna a vesti-lo) Enfim… (Com esforço extremo, Estragon
consegue tirar a bota. Examina seu interior com o olhar, vasculha-a com a mão,
sacode-a, procura ver se algo caiu ao redor, no chão, não encontra nada, vasculha
o interior com a mão mais uma vez, olhar ausente) E então? (BECKETT, 2005, p.
21)

Percebe-se que a ação de retirar o chapéu e buscar algo no seu interior não

está relacionada ao que Vladimir está falando. Ele fala sobre seu problema de

incontinência urinária e não sobre algo que estaria talvez incomodando-o dentro do

chapéu. Entretanto, o gesto de Vladimir é repetido na sequência por Estragon. Este

!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!
5
Na edição de Esperando Godot, utilizada para esta pesquisa, da editora Cosac Naify, todas as
rubricas do texto aparecem em itálico. Decidiu-se por manter o itálico para preservar o contraste entre
rubrica e diálogo.
! 51!

buscando algo dentro da bota. Essa repetição apresenta uma característica forte da

rubrica de Esperando Godot: a repetição de gestos, atos e movimentações dos

personagens, dando a impressão de que tudo se repete num ciclo infinito,

confinando-os nos próprios hábitos. Além de evidenciar esta eterna procura por algo

que nunca é encontrado. Raymond Williams comenta:

Vale notar que os gestos e movimentos são escritos com detalhe, e que, ganhando
corpo por meio de ações habituais, compõem uma estrutura geral – a procura, em
vão, no chapéu, na bota e a conclusão: Deixe ver. Não há nada para ver. Esse é,
em sua aparente simplicidade, um tipo incomum de escrita para encenações.
(WILLIAMS, 2010, p. 198)

O “nada” que Vladimir busca dentro de seu chapéu, também é procurado por

Estragon dentro da bota. E esta busca se repete em outros momentos. Como na

aparição de Pozzo, no primeiro ato, quando não encontra seus pertences em seus

próprios bolsos:

Resolvido, ele pode andar, (voltando-se para Estragon e Vladimir) obrigado,


senhores, e permitam-me... (vasculha os bolsos) permitam-me desejar... (vasculha)
desejar-lhes... (vasculha) desejar-lhes... (vasculha) Mas onde foi que enfiei meu
relógio? (vasculha) Essa agora! (Levanta a cabeça desconcertado) Um mecanismo
de primeira e precisão de segundos, imaginem só. Foi papai quem me deu.
(Vasculha) Talvez tenha caído no chão. (Procura pelo chão, ajudado por Vladimir e
Estragon. Pozzo desvira com o pé os restos do chapéu de Lucky) (BECKETT,
2005, p. 89)

O ato da busca por algo que nunca se encontra é ainda repetido por Vladimir

e Estragon no próprio cenário. Enquanto esperam por Godot, os dois protagonistas

reproduzem mais de uma vez o mesmo gesto. No seguinte momento, é Estragon

quem exerce a ação: “Levanta-se com esforço, vai mancando em direção à coxia

esquerda, para, olha ao longe, mãos espalmadas sobre os olhos, dá a volta, vai em

direção à coxia direita, olha ao longe” (BECKETT, 2005, p. 26). Esta simples
! 52!

movimentação transforma a espera por Godot em uma busca, já que não se tem

certeza de onde ele poderia estar vindo. Então, a repetição de movimentos de busca

protagonizada pelos três personagens, Vladimir, Estragon e Pozzo, revela que a

procura se torna um hábito para os personagens, levando-os a buscar objetos

perdidos, pessoas e até por algo não especificado que não está dentro do chapéu.

Sendo um tema recorrente, a repetição se evidencia também em outros

momentos, como na rubrica que inicia o 2º ato da peça. “Dia seguinte. Mesma hora.

Mesmo lugar. Botas de Estragon no centro, à frente, saltos colados, pontas

separadas. Chapéu de Lucky no mesmo lugar” (BECKETT, 2005, p. 109). A

repetição de situações dá a entender que tudo que está lá em um dia, estará lá

exatamente igual no outro, como num ciclo interminável. A seguinte marcação de

movimentos dos protagonistas demonstra esta sensação de que tudo no universo de

Esperando Godot é cíclico:

Estragon pega o chapéu de Vladimir. Vladimir arruma com as duas mãos o chapéu
de Lucky, Estragon coloca o chapéu de Vladimir no lugar do seu, que estende a
Vladimir. Vladimir pega o chapéu de Estragon. Estragon arruma com as duas mãos
o chapéu de Vladimir. Vladimir coloca o chapéu de Estragon no lugar do chapéu de
Lucky, que estende a Estragon. Estragon pega o chapéu de Lucky. Vladimir arruma
com as duas mãos o chapéu de Estragon. Estragon coloca o chapéu de Lucky no
lugar do chapéu de Vladimir, que estende a Vladimir. Vladimir pega o seu chapéu.
Estragon arruma com as duas mãos o chapéu de Lucky. Vladimir coloca o seu
chapéu no lugar do chapéu de Estragon, que estende a Estragon. Estragon pega o
seu chapéu. Vladimir arruma o seu chapéu com as duas mãos. Estragon coloca o
seu chapéu no lugar do chapéu de Lucky, que estende a Vladimir. Vladimir pega o
chapéu de Lucky. Estragon arruma o seu chapéu com as duas mãos. Vladimir
coloca o chapéu de Lucky no lugar do seu, que estende a Estragon. Estragon pega
o chapéu de Vladimir. Vladimir arruma o chapéu de Lucky com as duas mãos.
Estragon estende o chapéu de Vladimir a Vladimir, que o pega e o estende a
Estragon, que o pega e o estende a Vladimir, que o pega e o joga longe. Toda
passagem numa movimentação frenética. (BECKETT, 2005, p. 143)
! 53!

Tal movimentação repetida tantas vezes revela também um cuidado de

Beckett com o detalhe. A rubrica passa do status de uma indicação ou sugestão de

interpretação a uma instrução exata, sem a qual o texto perde em profundidade.

Diante de tais evidências, encontra-se consonância com Ramos quando ele

diz que “para Beckett, a rubrica, tanto quanto o texto dialogado, possui importância

estrutural na forma dramática que ele constrói” (RAMOS, 1999, p. 77). Concluindo,

assim, que os elementos paratextuais que Beckett utiliza são tão relevantes para o

leitor quanto o próprio texto.

A rubrica enquanto elemento paratextual se faz presente e necessária na

obra de Samuel Beckett e tem muito a comunicar ao leitor. As rubricas em

Esperando Godot, principalmente as inscrições textuais de movimentações cênicas,

conferem maior contundência e abrangência aos diálogos, expandindo o leque de

significações.

Para Lehmann, “nas formas teatrais pós-dramáticas, o texto, quando (e se) é

encenado, é concebido sobretudo como um componente entre outros de um

contexto gestual, musical, visual etc. A cisão entre o discurso do texto e o do teatro

pode se alargar até uma discrepância explícita e mesmo uma ausência de relação”

(LEHMANN, 2007, p. 75).

Ao conceber movimentos, marcações, gestos e intenções distintas do

diálogo, Beckett cria um texto de teatro que inscreve a cena no texto propriamente

dito, caracterizando-o, desta maneira, como um texto cênico ou espetacular.


! 54!

3.2 DISCURSOS: TEXTO E CENA EM CONFLITO

Conforme exposto anteriormente, um dos aspectos mais importantes da

estética pós-dramática diz respeito à linguagem falada e sua relação com o texto

cênico, a linguagem teatral. Lehmann postula que o texto cênico é apenas uma das

fontes de sentido de uma obra. Assim, quando na rubrica inicial de Esperando

Godot, Beckett nos apresenta a ambientação da peça como sendo “Estrada no

campo. Árvore. Entardecer” (BECKETT, 2007, p. 17), deve-se entender que o lugar

desértico é essencial para a compreensão do ambiente em que se encontram os

dois protagonistas. Bem como, no segundo ato, ao explicitar “Dia seguinte. Mesma

hora. Mesmo lugar. Botas de Estragon no centro, à frente, saltos colados, pontas

separadas. Chapéu de Lucky no mesmo lugar. Algumas folhas na árvore”

(BECKETT, 2007, p. 109), a rubrica nos diz que estamos diante do exato mesmo

cenário em que se encontravam Vladimir e Estragon no dia anterior.

A ação está sempre em segundo plano em Esperando Godot. Para Marfuz,

“não se trata mais da linguagem que caracteriza ou está a serviço da ação, mas a

linguagem é, em si, a ação possível. Ela ganha autonomia em relação à ação,

substituindo o agir e torna-se, ao mesmo tempo, um modo de agir pela fala”

(MARFUZ, 2013, p. 25). Neste modo de agir pela fala, Vladimir e Estragon inventam

maneiras de passar o tempo enquanto esperam e uma dessas maneiras é contar

histórias. No primeiro ato, Vladimir pergunta a Estragon se quer que ele conte uma

história.

VLADIMIR
Quer que eu conte?
ESTRAGON
Não.
VLADIMIR
! 55!

Ajuda a passar o tempo. (Pausa) Dois ladrões, crucificados lado a lado com nosso
Salvador. Um deles...
ESTRAGON
Nosso quê?
VLADIMIR
Nosso Salvador. Dois ladrões. Dizem que um deles se salvou e o outro... (Busca o
contrário de salvar-se) se perdeu. (BECKETT, 2007, p. 24)

O relato da história em si e os questionamentos de Vladimir não têm relação

nenhuma com a espera por Godot. Assim como no segundo ato, Vladimir chega

novamente ao mesmo local e se põe a cantar.

VLADIMIR
Um cão foi...
(Tendo começado baixo demais, para, tosse, recomeça mais alto)
Um cão foi à cozinha
Roubar pão e chouriço.
O chefe e um colherão
Deram-lhe fim e sumiço
Outros cães, tudo assistindo,
O companheiro enterraram
(Pára, breve ensimesmamento, depois continua)
Outros cães, tudo assistindo,
O companheiro enterraram,
Sob uma cruz que dizia
Aos demais que ali passavam
Um cão foi à cozinha [...]. (BECKETT, 2007, p. 109)

Em ambos os casos, a ação da cena se concentra na narração, no ato de

narrar e este ato não necessariamente contribui para o desenvolvimento do enredo

da peça. Entretanto, é emblemático que a música cantada por Vladimir se

desenvolva em um ciclo, terminando a estrofe exatamente na frase em que começa.

Conforme explica Szondi, “para confirmar a própria existência, não resta aos
! 56!

homens que esperam Godot [...] nada além da conversa vazia” (SZONDI, 2011, p.

90). A espera ainda pode assumir diversas interpretações. Se considerarmos que

Godot realmente vem, ou seja, que a espera será frutífera, ela é a esperança da

chegada da mudança, da proposta que irá mudar a vida dos protagonistas. E se não

vem, então a espera é inútil e o único desfecho possível para Vladimir e Estragon é

a morte.

Em determinado momento do primeiro ato, durante a permanência dos dois

viajantes, Pozzo e Lucky, o primeiro ordena ao criado que pense. No momento que

Vladimir coloca o chapéu na cabeça de Lucky e Pozzo ordena “Pense, porco!”

(BECKETT, 2007, p. 84), o criado inicia um longo monólogo de palavras

aparentemente desconexas. É uma fala contínua, sem pontuação ou parágrafo, tal

qual a linguagem que Beckett utiliza em Aquela vez. Em um trecho, ele discorre

sobre esportes, para logo em seguida falar sobre a morte de Voltaire.

[...] recomeço ao mesmo tempo paralelamente de novo não se sabe por quê não
obstante o tênis recomeço a aviação o golfe o de nove e o de dezoito buracos o
tênis no gelo numa palavra não se sabe por quê no Sena Sena-e-Oise Sena-e-
Marne Marne-e-Oise a saber ao mesmo tempo paralelamente não se sabe por quê
está perdendo peso e encolhendo recomeço Oise e Marne numa palavra a perda
líquida per capita desde a morte de Voltaire. (BECKETT, 2007, p. 86)

A linguagem truncada e aparentemente sem nexo perde ainda mais o

sentido quando Lucky repete à exaustão determinadas palavras e até expressões

inteiras como “não se sabe por quê”. De acordo com Szondi, “tudo se encontra em

ruínas: o diálogo, o todo formal, a existência humana. Só a negatividade ainda se

presta a enunciar algo: o automatismo sem sentido do discurso e a irrealização da

forma dramática” (SZONDI, 2011, p. 90). O monólogo ainda termina aos gritos, já

que Lucky começa a se exaltar conforme indica a rubrica. “Gritaria generalizada.


! 57!

Lucky puxa a corda, se desequilibra, grita seu texto . Todos atiram-se sobre Lucky

que se debate, gritando o texto” (BECKETT, 2007, p. 85).

Duas das importantes características de Esperando Godot são também

traços comuns em textos pós-dramáticos. A maneira como as personagens se

expressam, ora apenas ficando em silêncio, ou ainda utilizando-o como resposta;

ora proferindo diálogos cruzados, criando assim uma situação de incomunicabilidade

crônica. Tal contraponto entre comunicação e a ausência dela é um fator explorado

por Beckett ao transformar o silêncio em linguagem.

Para Patrice Pavis, “o silêncio é, no teatro, um componente indispensável

para o jogo vocal e gestual do atos, seja ele indicado por uma rubrica (‘pausa’) ou

marcado pela encenação ou pelo ator” (PAVIS, 2015, p. 359). Pavis compreende

que, a partir do final do século XIX, pode-se falar de uma dramaturgia do silêncio.

Com Tchékhov – sobretudo nas encenações de Stanislávski –, o texto dramático


tende a ser um pré-texto de silêncios: as personagens não ousam e não podem ir
até o fim de seus pensamentos, ou se comunicam por meias-palavras, ou, ainda,
falam para nada dizerem, cuidando para que esse nada-dizer seja entendido pelo
interlocutor como efetivamente carregado de sentido. (PAVIS, 2015, p. 359)

Pavis ainda reconhece a utilização dos silêncios e, em contrapartida, dos

rompantes de fala das personagens de Beckett. “[...] o silêncio, usado demasiado

sistematicamente, logo fica muito tagarela/falante. Beckett, cujos heróis passam sem

mais nem menos da afasia total ao delírio verbal, conhece bem disso” (PAVIS, 2015,

p. 359). Pavis também classifica diferentes tipologias do silêncio no teatro. Segundo

ele, o silêncio que se apresenta à escrita dramática de Beckett é o silêncio

metafísico. “É o único silêncio que não se reduz facilmente a uma fala em voz baixa.

Ele não parece ter outra coisa além de uma impossibilidade congênita de comunicar

[...] ou uma condenação a jogar com as palavras sem poder vinculá-las às coisas de
! 58!

outro modo que não o lúdico” (PAVIS, 2015, p. 360). Em consonância com tal

afirmação, Luiz Marfuz argumenta que “a personagem beckettiana jorra palavras e

longos monólogos interiores ou forja diálogos curtos e picados sobre trivialidade e

cotidianidades que assumem ares de discussões metafísicas” (MARFUZ, 2013, p.

11), sugerindo que a fala incessante das personagens não é necessariamente um

ato de comunicação.

Ao aprofundar-se no significado do silêncio, Marfuz afirma que “há um

esforço compensado de Beckett, em mostrar essa dificuldade e ao mesmo tempo

traduzir os silêncios por meio de pausas, gestos, abrir e fechar de olhos, intervalos

cronometrados entre palavras” (MARFUZ, 2013, p. 28). E continua dizendo que “o

silêncio está ali para valorizar a palavra e esvaziá-la de conteúdo” (MARFUZ, 2013,

p. 28). Entende-se, então, que o silêncio é um recurso usado pelo autor para exaurir

o sentido de seus diálogos. Tal característica corrobora com a perda de sentido dos

diálogos descrita por Lehmann como dessemantização. Assim, o esmorecimento da

linguagem em Beckett, aqui reafirmado pelo silêncio, contribui para a precariedade

da comunicação.

Estragon, Vladimir e Pozzo por vezes conversam sem estar

verdadeiramente se comunicando. Estragon se dirige a Pozzo, que se refere a

Vladimir, mas sem verdadeiramente escutar nenhum de seus interlocutores.

ESTRAGON
Por que ele não põe a bagagem no chão?
POZZO
Também eu ficaria feliz em conhecê-lo. Quanto mais gente conheço, mas feliz eu
fico. Até da mais humilde das criaturas nós nos despedimos mais sábios, mais
ricos, mais seguros de nossas bênçãos. Até vocês... (encara-os atentamente,
primeiro um, depois o outro, a fim de que ambos se percebam visados) até vocês,
quem sabe, me acrescentarão alguma coisa.
ESTRAGON
! 59!

Por que ele não põe a bagagem no chão?


POZZO
Sabe que isso me surpreenderia?
VLADIMIR
Fizeram-lhe uma pergunta.
POZZO
(encantado) Uma pergunta? Quem? Qual? [...]
VLADIMIR
(a Estragon) Acho que ele está escutando.
ESTRAGON
(que voltou a rodear Lucky) O quê?
VLADIMIR
Pode perguntar para ele agora. Está prestando atenção.
ESTRAGON
Perguntar o quê? (BECKETT, 2007, p. 59)

Nesta passagem, o único que parece estar atento ao que está sendo dito é

Vladimir. Pozzo está demasiado ensimesmado para escutar, enquanto Estragon se

distrai facilmente e perde o foco na pergunta que ele mesmo estava fazendo. Como

menciona Esslin:

[...] mais importante do que quaisquer indicações formais da desintegração da


linguagem e do sentido nas peças de Beckett é a natureza do próprio diálogo, que
repetidamente desmorona porque nenhuma troca verdadeiramente dialética de
pensamento ocorre nele – seja pela perda de sentido em palavras isoladas [...] seja
pela incapacidade dos personagens de se lembrarem do que acabam de dizer.
(ESSLIN, 1968, p. 75)

A conversa ainda se estende por mais tempo e Pozzo explica que Lucky não

larga a bagagem porque quer impressioná-lo e tentar convencê-lo a ficar com ele.

Lucky chora de desepero, possivelmente pelo sofrimento de não poder soltar as

bagagens por ordem de Pozzo. Após mais algumas idas e vindas de um diálogo
! 60!

sem comunicação, Pozzo inverte os papéis e, soluçando, se diz vítima de Lucky.

Apenas para, no momento seguinte ao descontrole, contradizer a si mesmo:

POZZO
(mais calmo) Senhores, não sei o que me deu. Peço-lhes perdão. Esqueçam tudo
isto. (Cada vez mais senhor de si) Não me lembro mais exatamente do que disse,
mas podem estar seguros de que não havia uma palavra de verdade (Endireita-se,
bate no peito) Por acaso tenho aspecto de um homem que se pode fazer sofrer,
eu? (BECKETT, 2007, p. 68)

De fato, Pozzo é um personagem que fala sem verdadeiramente se

comunicar com certa frequência.

POZZO
Indiscrição minha. (Esvazia o cachimbo, batendo-o contra o chicote, levanta-se)
Vou deixá-los. Agradeço pela companhia. (Reflete) A menos que acenda mais um
cachimbo antes de partir. O que me dizem? (Eles não dizem nada) Ah, sou apenas
um fumante ocasional, um fumante bissexto, não costumo acender meu cachimbo
duas vezes seguidas, o coração (leva a mão ao coração) dispara. (Pausa) É a
nicotina, acabamos tragando, apesar das precauções. (Suspira) Sabem como é?
(Silêncio) Mas talvez vocês não fumem. Fumam? Não? Enfim, tanto faz. (Silêncio)
Mas como voltar a me sentar, com naturalidade agora que já me levantei? Sem
passar a impressão de que... me foge o termo... fraquejo? (A Vladimir) O que
disse? (Silêncio) Por acaso não disse nada? (Silêncio) Tanto faz. Vejamos...
(Pensa). (BECKETT, 2007, p. 57)

Ubersfeld analisa a linguagem em Beckett afirmando que a comunicação em

Godot não tem função comunicativa, mas de aproximação.

O trabalho textual do teatro contemporâneo caminha com muita frequência no


sentido de uma exibição da relação fática em detrimento das outras funções. A
rigor, certos diálogos de Beckett ou de Adamov poderiam parecer pura
comunicação, sem outro conteúdo que não o próprio fato da comunicação e de
suas condições de exercício; o exemplo mais notório encontra-se talvez em
Esperando Godot, em que uma grande parte das mensagens parece não ter outro
! 61!

sentido senão o de afirmar, de manter ou de simplesmente de solicitar o contato.


(UBERSFELD, p. 172, 2010)

Assim, o diálogo mantido entre os personagens dificilmente serve para

comunicar algum acontecimento ou algum sentimento verdadeiro. Em diversos

momentos, o diálogo estabelece-se apenas como uma maneira de preencher o

tempo.

Outra maneira encontrada por Beckett de reduzir ao mais primitivo o

significado dos diálogos são as repetições de palavras e sinônimos.

VLADIMIR
Ajuda a passar o tempo. (Estragon hesita) Garanto que será uma diversão.
ESTRAGON
Um desenfado.
VLADIMIR
Uma distração.
ESTRAGON
Um desenfado. (BECKETT, 2007, p. 137)

Os dois protagonistas repetidamente retornam a este jogo de palavras,

repetindo uma mesma palavra ou usando sinônimos, que nada acrescentam de

verdadeiramente comunicativo. A determinado ponto Vladimir é explícito “Isto está

cada vez mais insignificante” (BECKETT, 2007, p. 136). Ao que Estragon responde

“Não o suficiente. Ainda” (BECKETT, 2007, p. 136). Em outra passagem, já no

segundo ato, Vladimir insiste que Estragon deve estar contente de reencontrá-lo.

VLADIMIR
Diga, mesmo que não seja verdade.
ESTRAGON
O que quer eu que diga?
VLADIMIR
Diga: eu estou contente.
! 62!

ESTRAGON
Estou contente.
VLADIMIR
Eu também.
ESTRAGON
Eu também.
VLADIMIR
Estamos contentes.
ESTRAGON
Estamos contentes. (Silêncio) O que vamos fazer agora que estamos felizes?
(BECKETT, 2007, p. 114)

Vladimir faz com que Estragon repita suas frases, fingindo estar feliz, até

que Estragon escancare o próprio descontentamento. Tal conversa é mais um

exemplo do uso da dessemantização por Beckett de forma a repetir os discursos até

que eles percam seu significado inicial.

ESTRAGON
Já sei! Vamos nos contradizer.
VLADIMIR
Impossível.
ESTRAGON
Você acha?
VLADIMIR
Não corremos mais o risco de pensar.
ESTRAGON
Então do que estamos reclamando?
VLADIMIR
Pensar não é o pior.
ESTRAGON
Claro que não, claro que não, mas já é alguma coisa.
VLADIMIR
Como assim, já é alguma coisa?
ESTRAGON
Boa ideia. Vamos fazer perguntas.
VLADIMIR
! 63!

Que você quer dizer com isso? (BECKETT, 2007, p. 124)

O jogo inicia quando Estragon sugere que eles se contradigam, sugestão

prontamente aceita por Vladimir. Quando Estragon sugere, então, que eles façam

perguntas um ao outro, ele é imediatamente interpelado por Vladimir. Os

personagens, na intenção de passar o tempo enquanto esperam, adentram em

conversas aparentemente sem sentido, fazendo perguntas, repetindo palavras e

outras vezes simplesmente falando a esmo já que o interlocutor não está escutando

ou prestando atenção. Para Vasconcellos, “O bordão ‘nada a fazer’ pontua toda a

permanência de Estragon e Vladimir em cena, e faz ressaltar a esterilidade de suas

pequenas e intermináveis ações” (VASCONCELLOS, 2013, p. 37).

Uma das razões pelas quais o texto de Beckett precisa ser apreendido em

sua totalidade, sem jamais desprezar suas didascálias é que, por vezes, o autor usa

a rubrica de forma a contradizer o que está sendo dito pelos personagens, como já

mencionado anteriormente. Dessa forma, coloca em prática um dos aspectos

descritos por Lehmann como pertencente à estética pós-dramática. Como o texto

perdeu sua primazia, se equivalendo em importância a outras formas de linguagem

presentes, seu sentido pode ser contradito por outros recursos linguísticos. A conflito

entre o texto e a cena aparece de diversas formas em Esperando Godot. Desde a

mais sutil, usando uma ironia e provocando o riso, como quando Vladimir admira

uma fala de Estragon:

VLADIMIR
Você devia ter sido poeta.
ESTRAGON
E fui. (Indicando os farrapos com um gesto) Não está na cara? (BECKETT, 2007, p.
23)
! 64!

Em outros momentos, a rubrica é explicitamente contraditória, como no

momento que Pozzo anuncia que vai partir.

ESTRAGON
Então, adeus.
POZZO
Adeus.
VLADIMIR
Adeus.
ESTRAGON
Adeus.
Silêncio. Ninguém se move.
VLADIMIR
Adeus.
POZZO
Adeus.
ESTRAGON
Adeus.
Silêncio. (BECKETT, 2007, p. 90)

A situação segue sem que nenhum deles se mova. Até que Pozzo pede um

incentivo para que possa ir embora e Vladimir e Estragon digam “Adiante”

(BECKETT, 2007, p. 92). A aparente imobilidade indicada na rubrica também

aparece ao fim do primeiro ato. Após a vinda do menino e do recado de que Godot

não virá naquele dia, Estragon sugere:

ESTRAGON
Então, vamos embora?
VLADIMIR
Vamos lá.
Não se mexem.
Cortina. (BECKETT, 2007, p. 107)
! 65!

Ao fim do segundo ato, a cena se repete. O menino dá o recado e, desta

vez, é Vladimir quem convida:

VLADIMIR
Então, vamos embora.
ESTRAGON
Vamos lá.
Não se mexem.
Cortina. (BECKETT, 2007, p. 195)

A cortina cai sem que nenhum dos dois faça menção de efetivamente sair do

local, como se estivessem impossibilitados de sair dali. Como ocorre em Fim de

partida e outras peças de Beckett, o espectador fica sem saber se a imobilidade

representada ali é permanente ou temporária. No primeiro ato, Vladimir e Estragon

não se movem, mas no início do segundo ato chegam novamente das coxias como

se tivessem saído. Porém, a mesma imobilidade do primeiro ato, repetida no fim do

segundo ato, sugere então que a imobilidade é crônica e que, se houvesse um

terceiro ato e um terceiro dia, ele se encerraria exatamente da mesma forma.

Sobre esta contradição entre fala e ação, Marfuz alega:

A fala em Beckett não se integra necessariamente à ação como recurso para


progressão do diálogo nem tampouco se traduz em enunciado que legitime o
enunciador. Isto é, não se pode tomar como verdadeiro aquilo que é pronunciado,
pois a incerteza produzida nos discursos das personagens deixa a linguagem em
um espaço de oscilação e deslocamento. (MARFUZ, 2013, p.23)

Reafirmando, assim, que nem sempre o que está sendo dito é o que está

sendo visto, Marfuz ainda alega que:

É no ato físico que o não dito e o interdito do texto enformam-se na matéria da


composição, mas, também, da decomposição. É um teatro que se afirma e se
aniquila, em uma sucessão de auto-cancelamentos, como forma de cavar buracos
! 66!

na linguagem, colocá-la sob suspeição e expô-la na insuficiência da malha rica de


possibilidades da poética becketiana. (MARFUZ, 2013, p. 197)

Concluindo, dessa forma, que a cena de Beckett tem uma de suas riquezas

nas incoerências entre texto e ação, entre texto e rubrica que se afirmam e se

cancelam quase imediatamente. Assim, através de silêncios, diálogos cruzados,

construções, desconstruções e dessemantizações, o texto de Beckett se coloca um

passo mais próximo do pós-dramático.

3.3 A QUESTÃO DO TEMPO: REPETIÇÃO E DESCONTINUIDADE

A função e a significação do tempo no pós-dramático são amplamente

abordadas por Lehmann. Especificamente, o autor diferencia a relação do tempo no

drama e no pós-dramático, colocando que, no drama, há sempre um índice temporal

bem claro estabelecido, ao contrário do pós-dramático, que permite o emprego de

diferentes temporalidades. No drama, a estrutura de três atos é a mais comum, com

começo, meio e fim divididos em cenas. Já em Esperando Godot, não há cenas,

apenas dois atos, sem uma progressão temporal clara.

Szondi afirma que o drama, sendo primário, tem sua representação temporal

sempre no presente. “No drama, a passagem de tempo é uma sequência absoluta

de presentes. Sendo absoluto, ele fornece sua própria garantia, funda seu próprio

tempo” (SZONDI, 2011, p. 27). Em contrapartida, sobre a manipulação do tempo

beckettiano, Marfuz afirma que

No teatro de Beckett, desconhece-se o tempo histórico. A ação é circunscrita na


condição atemporal, portanto a-histórica; não é um tempo contínuo, em face de não
progressividade, nem totalmente descontínuo, já que a noção de descontinuidade
pressupõe que se poderia presentificar cenas do passado (flashbacks), recurso
praticamente ignorado por Beckett. (MARFUZ, 2013, p. 29)
! 67!

Não há indícios suficientes para se determinar em que período histórico a

peça acontece. Em Esperando Godot, a questão do tempo é tratada da maneira

descrita por Marfuz, sem progressividade, mas não totalmente descontínuo. Um

exemplo disso está já no início da peça, quando Vladimir e Estragon se encontram,

Beckett dá a entender que os dois têm um passado juntos, que já se encontraram

naquele mesmo lugar anteriormente.

VLADIMIR
[...] Veja só! Você, aqui, de volta.
ESTRAGON
Estou?
VLADIMIR
Que bom que voltou. Pensei que tivesse partido para sempre. (BECKETT, 2007, p.
17)

Para Webb, “o problema começa quando Estragon pergunta a Vladimir o

que eles fizeram no dia anterior. Vladimir tinha ficado insistindo que eles estavam

em outro lugar, fazendo outra coisa, mas não consegue dizer onde nem o quê”

(WEBB, 2012, p. 42). Beckett insinua, então, que os dois protagonistas têm dúvidas

sobre o dia exato que deviam esperar por Godot, já sugerindo uma ordem temporal

quebrada:

ESTRAGON
Já viemos ontem.
VLADIMIR
Ah, não, aí é que você se engana.
ESTRAGON
Então, fizemos o que, ontem?
VLADIMIR
Ontem? O que fizemos ontem?
[...]
ESTRAGON
Tem certeza que era hoje à tarde?
! 68!

VLADIMIR
O quê?
ESTRAGON
Que era pra esperar.
VLADIMIR
Ele disse sábado. (Pausa) Acho.
ESTRAGON
Depois do batente.
VLADIMIR
Devo ter anotado. (Procura nos bolsos, repletos de porcarias de todo tipo)
ESTRAGON
Mas que sábado? E hoje é sábado? Não seria domingo? Ou segunda? Ou sexta?
VLADIMIR
(olhando pressuroso ao redor, como se a data pudesse estar inscrita na paisagem)
Não é possível.
ESTRAGON
Ou quinta?
VLADIMIR
O que vamos fazer?
ESTRAGON
Se ontem ele esteve aqui, hoje com certeza não volta.
VLADIMIR
Mas você disse que ontem viemos nós.
ESTRAGON
Posso estar enganado. (BECKETT, 2007, p. 29-31)

Em Esperando Godot os acontecimentos e situações não têm um presente

definido. A dúvida que acomete os dois personagens passa a ideia de que não se

pode ter certeza do dia de hoje, do amanhã e nem mesmo do ontem. Como no

momento em que Vladimir questiona Pozzo, no segundo ato, se ele lembra de ter

estado ali no dia anterior, ao que Pozzo responde: “Não me lembro de ter

encontrado ninguém ontem. Mas amanhã não vou me lembrar de ter encontrado

ninguém hoje. Não conte comigo para esclarecer nada” (BECKETT, 2007, p. 181).
! 69!

Assim, de certa forma, não se pode contar com o texto cênico de Beckett para

determinar a temporalidade em Godot.

A ausência de índices temporais claros se faz notar também na impaciência

de Vladimir ao comentar a passagem do tempo, notando o clima. “Será que a noite

não cairá nunca?” (BECKETT, 2007, p. 72). E logo em seguida, quando Pozzo

decide deixá-los para não se atrasar, afirma: “O tempo parou” (BECKETT, 2007, p.

73).

A impaciência de Vladimir tem origem na espera. Ele e Estragon fazem o

possível para se distrair enquanto estão fadados a ficar naquele lugar esperando a

vinda de Godot. Como quando Pozzo e Lucky vão embora, no primeiro ato.

VLADIMIR
Ajudou a passar o tempo.
ESTRAGON
Teria passado igual.
VLADIMIR
É. Mas menos depressa. (BECKETT, 2007, p. 93)

Para eles, qualquer distração que faça “passar o tempo” daquela espera

interminável é bem-vinda. Marfuz explica que o tempo em Beckett é:

Um tempo que ressoa na materialidade da cena o esvaziamento da ação. Melhor:


para preencher o tempo, personagens desdobram-se em pequenas ações
insignificantes (amarrar e desamarrar sapatos, escovar dentes, limpar chapéu,
pentear-se) que não progridem em direção ao devir nem insistem em significar algo
no presente. (MARFUZ, 2013, p. 30)

Porém, o próprio Beckett em seu ensaio, ao descrever as criaturas de Proust

e suas relações com o tempo, afirma que “não há como fugir das horas e dos dias.

Nem de amanhã, nem de ontem. Não há como fugir de ontem porque ontem nos

deformou, ou foi pior por ter nos deformado” (BECKETT, 2003, p. 11).
! 70!

O autor é claro ao sugerir na rubrica do primeiro ato. “Estrada no campo.

Árvore. Entardecer” (BECKETT, 2007, p. 17). E mais claro ainda ao explicitar no

segundo ato “Dia seguinte. Mesma hora. Mesmo lugar” (BECKETT, 2007, p. 109).

Entretanto, a mesma informação do dia e horário não parece estar clara para os

protagonistas.

ESTRAGON
Chegamos cedo demais.
VLADIMIR
É sempre ao cair da noite.
ESTRAGON
Mas a noite não vem.
VLADIMIR
Vai cair de uma vez só, como ontem.
ESTRAGON
E então será noite.
VLADIMIR
E então poderemos ir embora.
ESTRAGON
E então será dia mais uma vez. (BECKETT, 2007, p. 142)

Na percepção dos personagens, ao mesmo tempo que o tempo

aparentemente não passa, quando o faz, se repete. A espera leva a outra

característica da temporalidade pós-dramática: a aparente inação.

VLADIMIR
Não temos mais nada a fazer aqui.
ESTRAGON
Nem fora daqui.
VLADIMIR
Deixe disso, Gogô, não fale assim. Amanhã vai ser outro dia. (BECKETT, 2007, p.
105)
! 71!

Esta última fala, revela outro indício da repetição do mesmo dia e

acontecimentos. Entretanto, o tempo passa de maneiras diferentes para os

personagens. Enquanto a rubrica indica uma passagem de tempo simples, de um

dia para o outro, a espera faz com que o tempo se arraste para Vladimir e Estragon.

E quando algum fato, como a chegada de Pozzo e Lucky no segundo ato, acontece,

Vladimir comemora:

VLADIMIR
Quase entregamos os pontos, mas aqui está o nosso fim de tarde assegurado.
POZZO
Aqui!
ESTRAGON
Ele precisa de ajuda.
VLADIMIR
Não estamos mais sós, esperando a noite, esperando Godot, esperando –
esperando. Lutamos a tarde inteira, com nossos parcos recursos. Agora, acabou.
Já é amanhã.
POZZO
Aqui!
VLADIMIR
O tempo voltou a fluir. O Sol vai se pôr, a Lua vai despontar e nós partiremos daqui.
(BECKETT, 2007, p. 155)

Para Ricoeur é necessário ocupar o tempo de alguma forma. “Em certo

sentido, nada há de misterioso aí: é preciso, com efeito, fazer alguma coisa para que

as coisas advenham e progridam: basta não fazer nada para que as coisas se

arruínem; atribuímos de bom grade, então, a destruição ao próprio tempo”

(RICOEUR, 1997, p. 27). E Marfuz explica que,

[...] de um lado, o presente não faz correr a ação, exceto no decorrer dos ponteiros
do relógio, momento que coincide com o tempo do espectador; de outro, o passado
não ajuda a explicar nada; nem o futuro é mola propulsora, obstáculo a superar ou
! 72!

algo a atingir, quer historicamente, quer psicologicamente, por meio de qualquer


força ou motivação. (MARFUZ, 2013, p. 52)

Outra maneira de exprimir o tempo na estética pós-dramática é

apresentando repetições obsessivas. Além de palavras em determinadas conversas,

há um diálogo inteiro que se repete diversas vezes durante toda a peça.

ESTRAGON
[...] Vamos embora.
VLADIMIR
A gente não pode.
ESTRAGON
Por quê?
VLADIMIR
Estamos esperando Godot. (BECKETT, 2007, p. 27)

Estragon pergunta a Vladimir a razão de não poderem ir embora à

exaustão. Até que na última vez que ele sugere que partam, ele mesmo responde.

“Vamos embora. A gente não pode. É mesmo” (BECKETT, 2007, p. 185). A

repetição obsessiva das perguntas e respostas faz com que, finalmente, Estragon se

lembre da razão pela qual não podem partir e responda à própria pergunta.

Já Vasconcellos, em sua análise sobre as primeiras peças de Beckett,

encontra elementos em Esperando Godot que remetem à ideia de circularidade já

mencionada por Ubersfeld. A autora usa como exemplo a canção entoada por

Vladimir “a história do cão que fala de um epitáfio, que contém a história do cão”

(VASCONCELLOS, 2012, p. 20) e assim por diante. Os dois protagonistas estão

presos ao ato da espera.

Outro exemplo de repetição que enfatiza a circularidade é a movimentação

intensa de troca de chapéus presente no segundo ato. Não é uma ação descrita por

Beckett com um fim dramático, uma troca de chapéus que irá ocasionar algum
! 73!

resultado imediato. É uma troca sem fim, com propósito único de evidenciar um ciclo

que se repete o tempo todo na trajetória dos dois protagonistas. “Na luta contra o

tédio das horas, o tempo anuncia a decomposição e prepara o caminho em direção

ao inevitável: o fim” (MARFUZ, 2013, p. 30).

Vladimir e Estragon repetem também o gesto de ir até as laterais do palco,

olhar o horizonte, na expectativa da chegada de Godot. “Levanta-se com esforço, vai

mancando em direção à coxia esquerda, para, olha ao longe, mãos espalmadas

sobre os olhos, dá a volta, vai em direção à coxia direita, olha ao longe” (BECKETT,

2007, p. 26). A movimentação, como todas as outras buscas de Esperando Godot, é

infrutífera. A expectativa de ver ao longe a chegada de alguém não se confirma.

Vladimir, Estragon e Pozzo executam, cada um à sua maneira, o referido

gesto de busca que é repetido em vários momentos. Vladimir por vezes examina o

interior de seu chapéu; Estragon, o interior de sua bota; enquanto Pozzo vasculha os

bolsos em busca de algum objeto perdido, como mencionado anteriormente.

Em Esperando Godot, há uma inversão de causa e efeito demonstrada pelo

cenário. Na rubrica do segundo ato, Beckett especifica que deve haver “Algumas

folhas na árvore” (BECKETT, 2007, p. 109), que anteriormente estava seca. Porém

a mesma rubrica indica que o segundo ato acontece no dia seguinte ao primeiro.

Ryngaert sinaliza a contradição criada por Beckett na rubrica do segundo ato.

Becktett “pensou” na ligação entre os dois atos e dá uma informação muito clássica
sobre seu encadeamento. Depois cria a confusão, servindo-se de um velho truque
teatral, a simbolização de uma mudança de estação através das folhas da única
árvore. Impecavelmente “clássico” na aparência, ele confunde no entanto todas as
pistas. Toda reflexão sobre Esperando Godot se detém nessa curiosa articulação e
determina tudo que ela implica do ponto de vista dramatúrgico. (RYNGAERT, p.41,
1995)
! 74!

A mudança brusca da árvore é percebida por Vladimir que aponta a


contradição do fato.

VLADIMIR
Espere... teve o abraço... estávamos contentes... contentes... que fazer agora que
estamos contentes... esperamos... deixe ver... estou quase lembrando... agora que
estamos contentes... esperamos... deixe ver... isso! A árvore!
ESTRAGON
A árvore?
VLADIMIR
Você não lembra?
ESTRAGON
Estou cansado.
VLADIMIR
Repare nela.
Estragon olha para a árvore.
ESTRAGON
Não estou vendo nada.
VLADIMIR
Ontem à tarde estava completamente seca, esquelética! E hoje, está coberta de
folhas.
ESTRAGON
De folhas!
VLADIMIR
Da noite para o dia!
ESTRAGON
Deve ser primavera.
VLADIMIR
Mas da noite para o dia? (BECKETT, 2007, p. 129)

Para Webb, “Se o Ato I levanta dúvidas a respeito da relação ordenada entre

o presente e o passado, o Ato II demole totalmente o padrão temporal” (WEBB,

2012, p. 44). Já Ubersfeld discorre sobre o contrassenso temporal criado entre os

dois atos da peça.


! 75!

Em Esperando Godot, passou apenas um dia, mas eis que a árvore nua cobriu-se
de folhas: estamos no impossível teatral, nesse tempo que passa e que não passa,
nessa temporalidade particular a Beckett e criadora de uma duração repetitiva e
destruidora. O teatro é sempre essa relação temporal impossível, esse oxímoro do
tempo, sem o qual não faria ver e viver nem a história nem nosso tempo vivido.
(UBERSFELD, p. 136, 2010)

A autora comenta sobre a repetição em Beckett, que causa uma impressão

de inevitabilidade

[...] a recorrência dos mesmos lugares indica a recorrência temporal, ao contrário,


pela diferença, permite apreender o tempo como processus: em Esperando Godot,
Beckett joga admiravelmente com um e outro: nada mudou de um dia para outro no
lugar da espera, com exceção da árvore, que de repente se cobre de folhas,
indicando ao mesmo tempo o que passa e o que subsiste como eterno retorno; ao
mesmo tempo a irreversibilidade e a circularidade. (UBERSELD, p. 132, 2010)

Complementando as noções inversas de causa e efeito proporcionadas pela

rubrica e percepção da passagem do tempo na árvore, estão os aparentes saltos

temporais. A má memória de Estragon faz questionar se os acontecimentos do

primeiro ato aconteceram apenas um dia antes.

VLADIMIR
Ele apagou tudo!
ESTRAGON
Lembro de um doido que me cobriu de pontapés e depois se fez de tonto.
VLADIMIR
É o Lucky!
ESTRAGON
É, desse eu lembro. Mas quando foi?
VLADIMIR
E do outro, que estava puxando, você não lembra?
ESTRAGON
Me deu uns ossos.
VLADIMIR
! 76!

É o Pozzo!
ESTRAGON
E você disse que foi ontem a coisa toda? (BECKETT, 2007, p. 117)

Ricoeur explica o que é recordar. “É ter uma imagem do passado. Como é

possível? Porque essa imagem é uma impressão deixada pelos acontecimentos e

que permanece fixada no espírito” (RICOEUR, 1994, p. 27). Para ele, a memória e a

espera tem uma relação entre elas e o momento presente. “É graças a uma espera

presente que as coisas futuras estão presentes em nós como porvir. Temos delas

uma ‘pré-percepção’ (praesensio) que nos permite ‘anunciá-las antecipadamente’

(praenuntio). A espera é assim análoga à memória” (RICOEUR, 1994, p. 27).

Ao explicar para os dois protagonistas que está cego, Pozzo perde a

paciência com as indagações de um confuso Vladimir.

VLADIMIR
E foi assim, de repente?
POZZO
Muito bem.
VLADIMIR
Perguntei se foi assim, de repente.
POZZO
Um belo dia, acordei cego como destino. (Pausa) Me pergunto às vezes se não
continuo dormindo.
VLADIMIR
Quando aconteceu?
POZZO
Não sei.
VLADIMIR
Mas foi depois de ontem.
POZZO
Pare de me interrogar. Os cegos não têm noção de tempo. (Pausa) As coisas do
tempo eles não vêem. (BECKETT, 2007, p. 176)
! 77!

O fato de Pozzo estar cego no segundo ato é também um indício da

temporalidade pós-dramática. É uma das surpresas chocantes descritas por

Lehmann e que são apresentadas por Beckett. Bem como a mudez de Lucky.

VLADIMIR
Antes de ir embora, peça a ele que cante.
POZZO
A quem?
VLADIMIR
A Lucky.
POZZO
Cantar?
VLADIMIR
É. Ou Pensar. Ou recitar.
POZZO
Mas ele é mudo.
VLADIMIR
Mudo!
POZZO
Perfeitamente. Não consegue nem mesmo gemer. (BECKETT , 2007, p. 182)

Somadas, as duas alterações no estado dos personagens geram questões

sobre os acontecimentos do primeiro ato, se ocorreram realmente apenas um dia

antes.

Outra surpresa é orquestrada por Beckett na entrada do menino de recados

no segundo ato.

[...] Entra pela direita o menino da véspera. Pára. Silêncio.


MENINO
Senhor... (Vladimir se vira) Senhor Albert...
VLADIMIR
Aí vamos nós de novo. (Pausa. Ao menino) Não está me reconhecendo?
MENINO
Não, senhor.
VLADIMIR
! 78!

Foi você que veio ontem?


MENINO
Não, senhor.
VLADIMIR
É a primeira vez que vem?
MENINO
Sim, senhor. (BECKETT, 2007, p. 186)

Ora, se o mesmo menino que vem no primeiro ato, entra também no

segundo, como pode não ser o mesmo? Beckett semeia a dúvida que irá germinar

em Vladimir quando ele duvida de si mesmo.

Com isso, ganha nova luz a exigência dramatúrgica da unidade de tempo. A


descontinuidade temporal das cenas vai contra o princípio da sequência absoluta
de presentes, pois com ela cada cena possui uma história prévia e uma sequência
(passado e futuro) fora do jogo cênico. As diferentes cenas ficam assim
relativizadas. (SZONDI, 2011, p. 27)

Tal ideia de circularidade é ainda reforçada pelos ciclos temporais

estabelecidos por Beckett. Primeiro, ao determinar que, ao fim do primeiro ato, o

ciclo de espera se repete. E depois, ao fim do segundo ato, privando o espectador

de um desfecho, repetindo os acontecimentos do primeiro ato, dando assim a ideia

de que aquela mesma história, da mesma espera, irá se repetir indefinidamente.

Para Marfuz, o tempo em Beckett é determinante. “Sem conhecer nada além de si, o

tempo imprime lentamente cicatrizes do ‘ontem’ no ‘hoje’, que já prenuncia um

‘amanhã’ inexorável, rumo ao pior. Não há o que esperar” (MARFUZ, 2013, p. 29).

Apesar dos indícios de temporalidade descontínua, as marcas do tempo estão

inscritas nos dois protagonistas, dando sinais de que, embora tudo ao seu entorno

possa mudar, a situação em que eles se encontram será a mesma no dia seguinte.

Portanto, o tempo descrito por Beckett em Esperando Godot pode ser considerado
! 79!

ao mesmo tempo cíclico e descontínuo, gerando sempre uma incerteza quanto ao

passado, ao presente e uma certeza quanto ao futuro: o dia seguinte será de

espera.

3.4 “NADA A FAZER”: PREDOMÍNIO DA AÇÃO SOBRE A SITUAÇÃO

Uma importante característica dramática subvertida por Beckett diz respeito

à ação. Raymond Williams entende que em Esperando Godot “a ação da peça é o

ato da espera. Nos dois atos da peça, os vagabundos reúnem-se para esperar,

encontram os viajantes, que seguem adiante, e então os vagabundos ficam

esperando um encontro marcado que não se cumpre” (WILLIAMS, 2002, p. 201).

Entretanto, a ação da espera descrita por Williams não é uma ação dramática. É um

teatro que suprime a ação para privilegiar a situação. Não existe um clímax, nem se

criam tensões ao longo do texto cênico. É a ausência de ação dramática. O teórico

também aborda o texto de Beckett ao comentar sobre outras obras que

representaram uma ruptura na estrutura tradicional do drama. “Um problema

recorrente no drama moderno diz respeito à realização das ações: do movimento,

da intervenção, da mudança, em oposição à observação, à reação, à espera”

(WILLIAMS, 2010, p. 195). Determinando tais opostos, Williams afirma que “em

Esperando Godot a proeza de Beckett é levar ao extremo, na cena, essa imobilidade

habitual. Nos dois atos, os dois mendigos, Vladimir (Didi) e Estragon (Gogo),

esperam a cada ato pela vinda de Godot, numa repetição estagnante” (WILLIAMS,

2010, p. 195). Logo, em Esperando Godot, tem-se sujeitos não atuantes,

personagens que não atuam de maneira dramática. Para Esslin, a forma transcende

e se torna também conteúdo. “O assunto da peça não é Godot, mas a própria

espera, o ato de esperar como um aspecto essencial e característico da condição


! 80!

humana” (ESSLIN, 1968, p. 43). O teórico explica também que “esperar é

experimentar a ação do tempo, que constitui mudança constante. E no entanto,

como nunca acontece nada de real, essa mudança é ela mesma uma ilusão”

(ESSLIN, 1968, p. 45).

A estagnação é uma constante ao longo da peça. Estragon, por vezes, tenta

romper o ciclo ao sugerir ir embora em diversos momentos. Tal sugestão é

imediatamente refutada por Vladimir ao lembrar que não será possível sair daquele

lugar, pois estão esperando Godot. Quando, ao fim de cada ato, eles recebem a

confirmação da não vinda de Godot, os dois continuam a não se mover. O que

indica uma continuidade da espera e, portanto, da não ação. Como bem observou

Beckett, dois atos são suficientes para sugerir o infinito.

ESTRAGON
Ele devia estar aqui.
VLADIMIR
Não deu certeza que viria.
ESTRAGON
E se não vier?
VLADIMIR
Voltamos amanhã.
ESTRAGON
E depois de amanhã.
VLADIMIR
Talvez.
ESTRAGON
E assim por diante.
VLADIMIR
Ou seja...
ESTRAGON
Até que ele venha.
VLADIMIR
Você é implacável. (BECKETT, 2007, p. 27-28)
! 81!

Através deste diálogo Vladimir e Estragon confirmam a ideia de que

pretendem retornar ao mesmo lugar, ao mesmo cenário, todos os dias, até que a

espera por Godot seja, enfim, recompensada.

Em determinado momento, Estragon sai de cena e volta correndo em

direção à Vladimir, dizendo que alguém está vindo.

VLADIMIR
Aonde você foi? Pensei que tivesse partido para sempre.
ESTRAGON
Até a beira do aclive. Estão vindo.
[...]
VLADIMIR
É Godot! Enfim! (Abraça Estragon com efusão) Gogô! É Godot! Estamos salvos!
Vamos a seu encontro! Vem! (Puxa Estragon em direção à coxia. Estragon resiste,
solta-se, sai correndo na direção oposta) Gogô! Volte! (Silêncio. Vladimir corre até a
coxia onde Estragon acaba de entrar, olha ao longe. Estragon entra
precipitadamente, corre em direção a Vladimir que se vira) Você voltou, de novo!
ESTRAGON
Aqui é o inferno.
VLADIMIR
Foi muito longe?
ESTRAGON
Até a beira do aclive.
VLADIMIR
De fato estamos num platô. Não há dúvida, servidos num platô.
ESTRAGON
Estão vindo de lá também.
VLADIMIR
Estamos cercados! (Transtornado, Estragon precipita-se em direção ao fundo, bate
e cai) Imbecil! Não tem saída por aqui. (BECKETT, 2007, p. 147-148)

Tal trecho transparece que até o próprio ambiente que se encontram

corrobora para a impossibilidade de movimento. Os personagens estão em um platô

e quando Estragon tenta fugir pela terceira vez, dando de cara no fundo do palco,
! 82!

Vladimir apenas constata que não há saída. Assim, Beckett adiciona um aspecto

físico à já mencionada impossibilidade de partir. O palco também encerra Estragon e

Vladimir naquele local de espera.

Entre conversas, histórias e gestos, Vladimir e Estragon se vêem atrelados a

uma situação. Não podem ir embora, pois estão esperando Godot; então lhes resta

inventar atividades para passar o tempo. Entretanto, ambos admitem que, durante a

espera, nada acontece.

ESTRAGON
Nesse meio tempo, nada acontece.
POZZO
(desolado) Estão se aborrecendo?
ESTRAGON
O bastante.
POZZO
(A Vladimir) E o senhor?
VLADIMIR
Não é bem uma folia. (BECKETT, 2007, p. 76)

É Estragon que resume bem a situação da peça. “Nada acontece, ninguém

vem, ninguém vai, é terrível” (BECKETT, 2007, p. 83). Para Esslin “Esperando

Godot não conta uma história; explora uma situação estática” (ESSLIN, 1968, p. 39).

Tudo que é feito pelos dois protagonistas tem o único fim da espera. O enredo não

se desenvolve numa crescente tensão; nem acelera, nem desacelera. Não há

começo, meio e fim. O ponto crucial é apenas a espera, e mesmo assim ela não é

concluída. Assim os protagonistas desenvolvem um hábito de inventar atividades

sem finalidade além da passagem do tempo. Beckett, explica que:

O hábito é o acordo efetuado entre o indivíduo e seu meio, ou entre o indivíduo e


suas próprias excentricidades orgânicas, a garantia de uma fosca inviolabilidade, o
para-raios de sua existência. O hábito é o lastro que acorrenta o cão a seu vômito.
! 83!

Respirar é um hábito. A vida é um hábito. Ou melhor, a vida é uma sucessão de


hábitos. (BECKETT, 2003, p. 17)

A obrigatoriedade de ficar no mesmo lugar e esperar por Godot os condena

a uma sensação de confinamento. “Sem acesso a um futuro redentor, e despojados

de passado – ponto de fuga permitido aos nostálgicos personagens tchekovianos –,

os dois companheiros encontram-se confinados à eterna presentificação da espera,

ao desassossego da espera incerta” (VASCONCELLOS, 2012, p. 24). Sem o

recurso de outros personagens beckettianos como Krapp e o Ouvinte de Aquela

Vez, Vladimir e Estragon são obrigados a viver a presente espera, sem ousar

lembrar do passado e sem saber o que antecipar do futuro. Não há evolução

psicológica. O tempo passa e os protagonistas apenas aguardam a resolução de

uma espera que nunca se concretiza. O que eles esperam? Nem eles mesmos

sabem ao certo.

VLADIMIR
Estou curioso para saber o que ele vai propor. Sem compromisso.
ESTRAGON
O que era mesmo que queríamos dele?
VLADIMIR
Você não estava junto?
ESTRAGON
Não prestei muita atenção.
VLADIMIR
Ah, nada de muito específico.
ESTRAGON
Um tipo de prece.
VLADIMIR
Isso!
ESTRAGON
Uma vaga súplica.
VLADIMIR
! 84!

Exatamente!
ESTRAGON
E o que ele respondeu?
VLADIMIR
Que ia ver.
ESTRAGON
Que não podia prometer nada.
VLADIMIR
Que precisava pensar mais.
ESTRAGON
Dormir sobre o assunto.
VLADIMIR
Consultar a família.
ESTRAGON
Os amigos.
VLADIMIR
Os agentes.
ESTRAGON
Os correspondentes.
VLADIMIR
Os registros.
ESTRAGON
O saldo do banco.
VLADIMIR
Antes de se pronunciar.
ESTRAGON
Nada mais normal.
VLADIMIR
Não é mesmo? (BECKETT, 2007, p. 37-39)

Vladimir e Estragon encaram com naturalidade o fato de não saberem

exatamente qual é a proposta ou oferta que Godot tem a fazer. Assim como

enfrentam com naturalidade o fato de Godot precisar consultar tantas pessoas antes
! 85!

de, enfim, dar uma resposta à súplica dos dois protagonistas. A espera, bem como a

incerteza da situação, é encarada com resignação.

Para suportar tal situação estática, os dois personagens principais utilizam

cada gesto, cada palavra com a finalidade distração ou passatempo.

VLADIMIR, ESTRAGON
(virando-se ao mesmo tempo) Será que...
VLADIMIR
Ah, desculpe!
ESTRAGON
Pode falar.
VLADIMIR
Primeiro você!
ESTRAGON
Não, você primeiro!
VLADIMIR
Interrompi você.
ESTRAGON
Muito pelo contrário.
Olham-se com raiva.
VLADIMIR
Chega de cerimônia.
ESTRAGON
Chega de teimosia, cabeçudo.
VLADIMIR
(aos gritos) Acabe de falar, estou mandando.
ESTRAGON
(mesmo tom) Acabe você.
Sliêncio. Vão em direção um ao outro, param.
VLADIMIR
Miserável!
ESTRAGON
Boa idéia, uma troca de insultos. (Trocam xingamentos. Silêncio) Agora,
reconciliação. (BECKETT, 2007, p. 150)
! 86!

Os dois se interrompem, se insultam e em seguida se reconciliam.

Entretanto, tudo parece apenas uma brincadeira para os dois companheiros. “Como

o tempo passa quando a gente se diverte!” (BECKETT, 2007, p. 151), finaliza

Vladimir, confirmando que tudo que os dois fazem têm por princípio a distração da

espera sem fim. Para Marfuz tais atividades se aprimoram ao longo da peça. “A

ação torna-se cada vez mais irreconhecível, tempo e espaço perdem referencias

figurativas. A personagem lentamente se decompõe e é implodida de variadas

formas, esfacelando-se em discursos ininterruptos ou entrecortados, que separam o

falar do ouvir” (MARFUZ, 2013, p. 4). Como acontece no seguinte trecho:

ESTRAGON
O que vamos fazer agora?
VLADIMIR
Enquanto esperamos.
ESTRAGON
Enquanto esperamos.
Silêncio.
VLADIMIR
E se fizéssemos os exercícios?
ESTRAGON
Os movimentos.
VLADIMIR
De alongamento.
ESTRAGON
De relaxamento.
VLADIMIR
De circunflexão.
ESTRAGON
De relaxamento.
VLADIMIR
Para aquecer.
ESTRAGON
Para distender.
VLADIMIR
! 87!

Vamos lá.
Começa a saltar. Estragon o imita. (BECKETT, 2007, p. 153)

Beckett explica que, “os períodos de transição que separam adaptações

consecutivas [...] representam zonas de risco na vida do indivíduo, precárias,

perigosas, dolorosas, misteriosas e férteis, quando por um instante o tédio de viver é

substituído pelo sofrimento de ser” (BECKETT, 2003, p. 18). Então, cada ação

descrita pelo dramaturgo é um ato no aqui e agora, como apontou Lehmann. Não

são atos com finalidades no futuro ou com razões previamente estabelecidas. Como

o próprio Vladimir explica:

VLADIMIR
O certo é que o tempo custa a passar, nestas circunstâncias, e nos força a
preenchê-lo com maquinações que, como dizer, que podem, à primeira vista,
parecer razoáveis, mas às quais estamos habituados. Você dirá: talvez seja para
impedir que nosso entendimento sucumba. Tem toda razão. Mas já não estaria ele
perdido na noite eterna e sombria dos abismos sem fim? É o que me pergunto às
vezes. Está acompanhando o raciocínio? (BECKETT, 2007, p. 161)

Por vezes, Beckett inclui em sua escrita cênica pequenos momentos em que

se pode perceber o uso de uma metalinguagem, mas não são notados de maneira

perturbadora no desenrolar da peça. No início do primeiro ato, Vladimir se propõe a

divagar sobre a história de Jesus na Bíblia e questiona Estragon, pedindo que

responda à sua “deixa”. Por sua vez, um jargão típico de teatro que indica o final da

fala de um personagem, anterior à fala de um outro.

VLADIMIR
Como é possível que, dos quatro evangelistas, só um fale em ladrão salvo? Todos
quatro estavam lá – ou por perto – e apenas um fala em ladrão salvo. (Pausa)
Vamos lá, Gogô, minha deixa, não custa, uma vez em mil... (BECKETT, 2007, p.
25)
! 88!

Estragon, que fingia não estar ouvindo, cede ao pedido do colega de cena e

“dá a deixa” para que ele continue a divagar. Vasconcellos repara nestes mesmos

indícios. “Em Esperando Godot, os personagens, repetidas vezes, enunciam (e

denunciam, ainda que inconscientemente) seu caráter ficcional e o jogo teatral a que

estão submetidos” (VASCONCELLOS, 2012, p. 33).

Estragon também tem seu momento em que sua fala denota metalinguagem

ao fim da mesma conversa sobre a Bíblia quando se dirige à plateia, quebrando a

quarta parede.

Estragon volta ao centro do palco, olha em direção ao fundo.


ESTRAGON
Lugar encantador. (Dá a volta, caminha em direção à boca de cena, junto à plateia)
Esplêndido espetáculo. (Volta-se para Vladimir) Vamos embora. (BECKETT, 2007,
p. 27)

Estragon refere-se ambiguamente ao local em que estão, um platô no meio

de uma estrada; e também à plateia e ao próprio espetáculo. Kalb se refere a tal

questão afimando que,

Na maioria das produções de Godot, como em Brecht, algumas falas são


direcionadas para fora (de cena), ou dirigidas à plateia, no contexto em que todas
as outras falas são direcionadas para dentro (de cena) de um modo quase normal,
mas aqui não existe distinção. Qualquer ação, qualquer fala, qualquer gesto pode
ser interpretado de duas maneiras diferentes: como performance ou como um
evento ‘real’ na vida ficcional dos personagens. (KALB, 2000, p. 34-35, minha
tradução)6

!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!
6
Na versão em inglês: “In most Godot productions, as in Brecht, some lines are directed outward, or
adressed to the audience, in the context of all others being directed inward in a quasi-normal fashion,
but no distintion exists here. Any action, any line, any gesture, can be interpreted two different ways:
as a performance, or as a ‘real’ event in the characters’ fictional lives”.
! 89!

Assim, Kalb conclui que o autor é responsável por criar uma nova forma

teatral difícil de classificar: “Beckett conseguiu inventar, através da dramaturgia e

ocasional direção, um novo tipo de teatro, envolvendo um tipo de transação

plateia/palco que não se enquadra em nenhum dos lados da tradicional dicotomia

Stanislavsky/Brecht” (KALB, 2000, p. 38, minha tradução)7.

Mas um dos principais pontos de proximidade de Esperando Godot com a

estética pós-dramática está relacionado com a ausência de um enredo, de

personagens complexos e, principalmente, de um desfecho. Esslin explica como as

incertezas criadas por Beckett fazem parte deste panorama. “Em Esperando Godot,

o sentimento de incerteza que é criado, e os altos e baixos dessa incerteza – entre a

esperança da descoberta da identidade de Godot e os repetidos desapontamentos –

são em si a essência da peça” (ESSLIN, 1968, p. 38). O teórico vai além e afirma

que “as peças de Beckett têm ainda menos enredo do que outras obras do Teatro do

Absurdo. Em vez de um desenvolvimento linear, apresentam a inquirição de seu

autor sobre a condição humana [...]” (ESSLIN, 1968, p. 39).

Se não há concretude nem linearidade nas falas e nas ações, tampouco há

nos sentimentos atribuídos aos personagens.

ESTRAGON
Sou infeliz.
VLADIMIR
Não brinque! Faz tempo?
ESTRAGON
Tinha esquecido.
VLADIMIR
A memória faz das suas. (BECKETT, 2007, p. 99)
!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!
7
Na versão em inglês: “Beckett has succeded through playwriting and occasional directing in
inventing a new kind of theather, one involving a type of audience/stage transaction that does not fit
either side of the traditional Stanislavsky/Brecht dicotomy”.
! 90!

Estragon afirma não se lembrar de que era infeliz. Sua memória lhe prega

peças o tempo todo. É um personagem que não tem certeza se estiveram ali ontem

ou não. Assim, se não há memória de acontimentos passados, não há evolução de

personagem. São raros os momentos em que Estragon afirma realmente se lembrar

de algum fato.

ESTRAGON
Há quanto tempo estamos juntos?
VLADIMIR
Não sei. Uns cinquenta anos, eu acho.
ESTRAGON
Lembra do dia em que me atirei no Reno?
VLADIMIR
Na colheita de uvas.
ESTRAGON
Você me pescou de volta.
VLADIMIR
Tudo isso está morto e enterrado.
ESTRAGON
Minhas roupas secaram ao sol.
VLADIMIR
Deixe isso pra lá, sim? (BECKETT, 2007, p. 106)

Tal passagem revela também algumas das poucas informações sobre o

passado dos dois protagonistas: estão juntos há aproximadamente cinquenta anos e

estiveram em uma colheita de uvas próxima ao rio Reno. Nesta rara ocasião em que

Estragon demonstra lembrar de um acontecimento prévio com detalhes, é Vladimir

que parece não querer revisitar o passado, deixando grandes lacunas na história

dos dois. Tal ausência de informações sobre o passado gera a despersonalização e

o enfraquecimento dos personagens beckettianos em Esperando Godot.

Já Vladimir, mais centrado, consegue se ater à memória, porém, ao passo

que os dias e acontecimentos se repetem, ele começa a duvidar de si mesmo.


! 91!

Quando o menino do primeiro ato aparece, dizendo ser um outro menino e pergunta

o que deve dizer ao senhor Godot, Vladimir responde:

VLADIMIR
Diga que... (interrompe), diga a ele que me viu e que... (reflete) que me viu. (Pausa.
Vladimir avança, o menino recua, Vladimir pára, o menino pára) Mas diga uma
coisa, você tem certeza de que me viu? Não vai me dizer amanhã que nunca me
viu? (BECKETT, 2007, p. 189)

Por outro lado, Pozzo e Lucky sofrem com as intempéries de um destino

aleatório. Sem motivo aparente, sem explicação razoável e, aparentemente, de um

dia para o outro estão cegos e mudos, respectivamente. Para Vasconcellos, cada

dupla é submetida a um tipo diferente de temporalidade. “Se para Vladimir e

Estragon os dias são iguais por estarem sempre sob o signo da espera (ou

suspensão de um desfecho), para Pozzo e Lucky os dias parecem iguais, porque a

constante mudança de fortuna (entenda-se: de um mal para um mal maior) a que

estão submetidos, nivela-os” (VASCONCELLOS, 2012, p. 43). O que os une é a

ausência de um desfecho. Pozzo e Lucky seguem seu caminho para o destino

desconhecido enquanto Vladimir e Estragon estão fadados a retornar ao mesmo

lugar para dar continuidade à espera.

VLADIMIR
[...] O que estamos fazendo aqui, essa é a questão. Foi-nos dada uma
oportunidade de descobrir. Sim, dentro desta imensa confusão, apenas uma coisa
está clara: estamos esperando que Godot venha.
ESTRAGON
É mesmo.
VLADIMIR
Ou que a noite caia. (Pausa) Estamos no lugar e hora marcados e ponto final. Não
somos santos, mas estamos no lugar e hora marcados. Quantos podem dizer o
mesmo? (BECKETT, 2007, p. 160)
! 92!

Para Estragon e Vladimir não há outra saída além da espera. Os dois estão

atados àquele lugar, fadados a voltar todos os dias, sem a garantia de uma

verdadeira evolução da própria situação. Não há possibilidade de evolução, de

crescimento ou mesmo de retorno. Assim sendo, também não há progressão

dramática na situação apresentada. Vasconcellos explica que “o que ‘não fazem’

nem poderiam fazer é atuar ao modo clássico, pois não partilham a liberdade e

suficiência de personagens dramáticos, exercidas no conflito e agraciadas com um

desenlace” (VASCONCELLOS, 2012, p. 24). Os protagonistas estão esperando a

chegada de Godot, ou então que a noite caia, para que possam voltar no dia

seguinte e retomar a espera. Mesmo quando tomam a decisão de se matarem, a

decisão é sempre adiada por alguma razão.

ESTRAGON
Você disse que temos que voltar amanhã?
VLADIMIR
Disse.
ESTRAGON
Então traremos uma corda decente.
Silêncio.
ESTRAGON
Didi.
VLADIMIR
O quê?
ESTRAGON
Não posso continuar assim.
VLADIMIR
É o que todos dizem.
ESTRAGON
E se a gente se separasse? Talvez ficasse melhor.
VLADIMIR
Amanhã nos enforcamos. (Pausa) A não ser que Godot venha. (BECKETT, 2007,
p. 193)
! 93!

De certa forma, a relação entre os dois sempre impede uma das duas

soluções. A resolução, seja da separação ou do suicídio, é sempre deixada para o

dia seguinte. Para Beckett, “Proust situa a amizade nalgum ponto entre a fadiga e o

tédio” (BECKETT, 2003, p. 68). Nenhum dos dois consegue levar adiante a

possibilidade de ficar ou de seguir sozinho. Webb explica que, em Esperando Godot,

seguir em frente não leva a lugar nenhum.

Vladimir e Estragon também seguem seu próprio caminho, mas o crítico deve
resistir à tentação de interpretar isso como uma afirmação da esperança ou da
fortaleza humana por parte da peça. Todos esses personagens seguem adiante,
mas na velha rotina, e somente por ter recuado para padrões de pensamento que
já foram amplamente desacreditados. No universo dessa peça, ‘adiante’ não leva a
lugar nenhum. (WEBB, 2012, p. 50)

A cada dia, quando o menino traz o recado de Godot e a noite cai, Vladimir e

Estragon decidem que vão embora, entretanto nunca se movem. “Não há

praticamente nenhuma esperança de mudança, seja porque a situação é inevitável

por natureza, seja porque os padrões de hábito que a causaram e que lhe dão forma

ficaram sólidos demais para admitir perturbações” (WEBB, 2012, p. 163). Para os

personagens de Esperando Godot não há desfecho, não há resolução concreta. Há

apenas a imobilidade, a temporalidade perturbada pela memória que falha, pela

circularidade das ações que levam à repetição das conversas, dos dias, da espera.
! 94!

CONSIDERAÇÕES FINAIS

Samuel Beckett é um autor plural. Não é raro encontrar autores que

possuem trabalhos em mais de uma área, porém, Beckett leva esta diversidade para

outro patamar. Obras literárias, obras teatrais, para cinema, para televisão, obras

poéticas, além de suas capacidades de direção teatral, tradutor e adaptador de suas

próprias obras. Não é exagero dizer que Beckett é um artista completo. O ponto de

partida desta pesquisa foi, pois, a estreita lacuna em que a obra do autor sempre foi

enquadrada: o teatro do absurdo. Com tantas obras diversificadas, para tantos

meios diferentes, rotulá-lo apenas como absurdista é ater-se ao básico. Uma leitura

mais aprofundada de sua obra teatral permite perceber diferentes correntes e

influências, bem como, novas experiências e novos modos de percepção.

Para embasar nossas proposições, foi necessário buscar em Martin Esslin

as raízes do teatro do absurdo. O crítico, um dos primeiros a teorizar e reunir

autores teatrais com peças de características semelhantes do absurdo, traça um

panorama detalhado da época em que o estilo floresceu. É importante ressaltar que

nenhum destes autores apontados por Esslin como absurdistas se considerava

pertencente a um movimento ou corrente teatral. Beckett se destaca no estudo

sobre o teatro do absrdo ao figurar logo no início, quando Esslin relata a

apresentação de Esperando Godot realizada na prisão de St. Quentin. A peça, que

não teve fácil compreensão imediata em sua estreia na França, foi muito bem

recebida pelos detentos. Assim, Esperando Godot sempre figura entre as listas de

principais obras do teatro do absurdo.

Entretanto, Beckett se destacou não somente por Esperando Godot. Mesmo

atendo-se à sua obra teatral, cerne desta pesquisa, o autor tem variadas obras de

formatos e conteúdos muito diversos. Tanto é, que existem vários pontos de contato
! 95!

entre suas obras e outras formas teatrais como o teatro pós-dramático. Hans-Thies

Lehmann teorizou sobre o pós-dramático de maneira tão inovadora quanto Esslin

sobre teatro do absurdo. Porém, Lehmann tenta mais rigorosamente delimitar as

raízes do pós-dramático. O autor é categórico ao afirmar que o teatro do absurdo

não faz parte da genealogia do pós-dramático por estar muito atrelado ao drama.

Todavia, Esslin traça sua tese sobre o absurdo justamente opondo o então novo

estilo ao drama. Assim, tanto Esslin quanto Lehmann partem do mesmo princípio:

que o absurdo e o pós-dramático, respectivamente, se opõem ao drama.

Delineados os pontos de contato entre absurdo e pós-dramático, buscou-se

apresentar diferentes particularidades que se apresentam em outras peças de

Beckett que sucederam Esperando Godot. A primeira delas, Fim de partida, traz um

formato semelhante à obra principal desta pesquisa: quatro personagens e um final

em aberto. Beckett desenvolve a temática de um mundo pós-apocalíptico,

confinando seus personagens em um quarto de janelas minúsculas, com pouca ou

nenhuma possibilidade de fuga ou saída.

Em a Última gravação de Krapp um único protagonista conversa consigo

mesmo através de suas gravações em fitas. Gravadas em anos passados, sempre

na data de seu aniversário, as fitas funcionam como versões passadas do

protagonista recontando acontecimentos dos anos em que foram feitas. O Krapp do

tempo presente edita as escutas como lhe convém. Corta o que desgosta, repete o

que agrada. Dessa forma, Beckett cria um panorama temporal descontínuo à

medida que o protagonista vai e volta em suas próprias fitas e lembranças.

Já em Play, o autor abdica de um dos pilares do drama: o diálogo. M1, W1 e

W2, as três figuras, são apenas cabeças confinadas em urnas cuja fala é provocada

pela inquisidora luz que se alterna entre eles. São personagens fragmentados,
! 96!

semelhantes aos já apresentados em Fim de partida. Os três jamais se comunicam,

apenas contam suas versões do triângulo amoroso em que estão envolvidos. Ao fim,

obedecendo-se à rubrica, repete-se toda a peça, dando a ideia de repetição e

continuidade indefinida tão recorrente nas obras de Beckett.

Vai e vem apresenta também três personagens, desta vez não são

fisicamente fragmentadas, mas semelhantes entre si a ponto de perderem a

individualidade. Flô, Vi e Ru se revezam saindo do palco e ignorando o segredo

partilhado pelas outras. Desprovidas de passado, são fadadas a permanecer no

banco, de mãos dadas, desconhecendo um profundo segredo sobre si mesmas.

Já em Aquela vez, Beckett retoma as lembranças e temporalidades

descontínuas de A última gravação de Krapp colocando-as no palco de uma maneira

nova. O próprio Lehmann, que hesita ao falar de absurdo, faz observações sobre

esta peça apontando suas especificidades pós-dramáticas. O protagonista Ouvinte,

ao centro do palco, ouve sua própria voz projetada de três pontos diferentes, cada

uma das vozes contando e repetindo acontecimentos quase que simultaneamente.

Tal efeito de repetição e simultaneidade deve-se, em parte, à maneira com que

Beckett escreve as falas: sem pontos, sem vírgulas, sem letras maiúsculas ou

parágrafos, em um frenesi verbal.

Analisando estas peças de Beckett de forma cronológica é possível perceber

a sua gradual e sempre maior aproximação com a estética pós-dramática. É

possível destacar personagens cada vez mais fragmentados, desconstruídos física

ou mentalmente, presos em uma repetição eterna ou emaranhados em uma

temporalidade descontínua. São personagens impedidos de alcançar um

desenvolvimento que seria natural aos personagens dramáticos. São peças que não

premiam seus protagonistas com um desfecho claro.


! 97!

A proposta principal, então, foi demonstrar que Beckett sempre apresentou

características pós-dramáticas, antes mesmo de Lehmann teorizar sobre o assunto.

Esperando Godot, sua segunda e mais emblemática peça, discorre sobre a situação

de dois companheiros vagabundos. Ambos se encontram em uma estrada na

expectativa da chegada de Godot, que traria uma esperança, uma promessa, uma

proposta que possivelmente mudaria a vida dos dois. Em dois atos, encontram

apenas Pozzo e Lucky, diferentes a cada visita para o assombro de Vladimir e do

espectador. Ao fim de cada ato, o recado de que espera continua, que Godot não

vem, mas que com certeza virá no dia seguinte.

Partindo-se de um dos principais atributos de suas peças, as rubricas, já é

possível constatar que o dramaturgo cria contradições e subversões em sua escrita

cênica. Através das didascálias, o autor inscreve a cena no próprio texto cênico,

tornando esse modelo de paratexto tão importante quanto o próprio texto.

Foi possível notar, então, que a linguagem usada por Beckett é determinante

em suas peças. Em Esperando Godot, a linguagem funciona como a ação possível,

já que não existem coisas a se fazer além de esperar. Vladimir e Estragon

transformam, então, os diálogos em maneiras de passar o tempo. Criam jogos de

linguagem, narram histórias, cantam e usam o silêncio como forma de preencher os

momentos de espera. É possível notar também ocasiões em que a comunicação

entre os personagens falha e eles usam a fala sem dialogar verdadeiramente.

Em seguida, abordou-se as temporalidades em Esperando Godot. Beckett

constrói um tempo presente através de rubricas bem claras e definidas, apenas para

desconstruir essa linha temporal com constatações dos próprios personagens.

Adicionando à temporalidade descontínua as incertezas da memória, o autor priva

seus personagens de uma história pregressa, bem como de uma resolução futura.
! 98!

Esperando Godot é uma peça centrada em uma situação. Contrariando as

afirmações de que o absurdo é atrelado ao drama, os dois protagonistas não estão

envolvidos em um conflito que irá se resolver ao longo da peça. Sem conflito não há

mudança. E sem mudança não há progressão dramática. Assim, Vladimir e

Estragon iniciam e terminam a peça (e cada ato) exatamente no mesmo lugar físico

e em circunstâncias quase idênticas. Assim como as outras obras de Beckett

analisadas, Esperando Godot não proporciona um desfecho clássico a seus

personagens.

Através desta análise, foi possível constatar que Samuel Beckett, em sua

constante procura por novas linguagens cênicas, já apresenta características que se

aproximam do pós-dramático desde Esperando Godot. O dramaturgo foi se

reinventando ao longo de sua trajetória, especialmente em suas peças curtas. Os

experimentos cênicos de Beckett resultaram em formas novas, ricas e únicas que

revolucionaram não somente o teatro de seu tempo, mas também a paisagem teatral

contemporânea.
! 99!

REFERÊNCIAS

ANDRADE, F. De S., Prefácio. In: BECKETT, S. Esperando Godot. Trad. Fábio de Souza
Andrade. São Paulo: Cosac Naify, 2007.

BECKETT, S. Proust. Trad. Arthur Nestrovski. São Paulo: Cosac Naify, 2003.

_____. Esperando Godot. Trad. Fábio de Souza Andrade. São Paulo: Cosac Naify, 2007.

_____. Fim de partida. Trad. Fábio de Souza Andrade. São Paulo: Cosac Naify, 2010.

_____. Play. Disponível em: <http://www.tri-valley.k12.oh.us/userfiles/731/Classes/


76982//userfiles/731/my%20files/playsamuelbeckett.pdf?id=129093>. Acesso em: 3 nov.
2017.

_____. A última gravação de Krapp. Trad. Jurandir Diniz Júnior. Banco de textos da ECA.

_____. Aquela vez. Trad. Rubens Rusche. Texto inédito. Cópia eletrônica.

_____. Vai e vem. Trad. Luís Roberto Benati e Rubens Rusche. Texto inédito. Cópia
eletrônica.

CAMATI, A. S. Vozes narrativas no espaço cênico: o pós-dramático em (A)tentados de


Martin Crimp. Artefilosofia. Ouro Preto, nº 7, 158 – 166, outubro de 2009.

CAVALCANTI, I. Eu que não estou aí onde estou: o teatro de Samuel Beckett: (o


sujeito e a cena entre o traço e o apagamento). Rio de Janeiro: 7Letras, 2006.

ESSLIN, M. O teatro do absurdo. Trad. Bárbara Heliodora. Rio de Janeiro: Zahar Editores,
1968.

FERNANDES, S. Teatros pós-dramáticos. In: GUINSBURG, J. FERNANDES, S. (orgs.) O


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