You are on page 1of 3

O poder do grande Outro

O poder do grande Outro

Jairo Gerbase*

Unitermos: Outro; outro; sujeito; O grande Outro é a lingua- para dizer que se trata do seme-
significante; poder. gem. O grande Outro é o incons- lhante, do próximo. É verdadeiro
ciente. É uma Outra cena. Não que o grande Outro exerce seu
que o inconsciente seja a condi- poder sobre o sujeito por inter-
Resumo ção da linguagem, mas que a lin- médio de um arauto, mas um
Este artigo distingue fundamentalmente guagem seja a condição do in- arauto não é um monarca.
o conceito de Outro, isto é, de consciente. Por isso proponho que não
linguagem, da ideia de uma outra
pessoa, para demonstrar que o poder Para escrever corretamente se deva reduzir o grande Outro
na psicanálise é uma questão que seu matema deveria escrever aos representantes do pequeno
concerne à relação entre o sujeito e o [S( )], o que se lê como: falta outro [a'] tais como: um pai, uma
significante; o sujeito é tributário do um significante no grande Outro. mãe, um mestre... Estas pesso-
significante e é assim que o outro
Isto implica que o grande Outro as que representam o poder são
exerce seu poder.
também seja barrado, o que se arautos do grande Outro.
pode ler como: o grande Outro No exercício do poder sobre
não existe. o sujeito do inconsciente [ $ ] o
Podemos lhe dar várias principal arauto do grande Outro
antonomásias: vazio, falta, furo, é alíngua. Alíngua não é o idioma
real. Podemos enunciá-lo a par- que o sujeito fala. Alíngua é o
tir dele vários axiomas: o objeto mal-entendido que o idioma, ou
é reencontrado; o desejo é de seja, a língua porta em si. Alíngua
desejo; todo sujeito está sujeito é a enunciação da língua.
à castração; não há relação se- O que é uma enunciação?
xual etc., pois é isto que carac- Lucy, a irmã de Charlie Brown,
teriza a estrutura de linguagem. inventou para si uma ideologia:
Enunciar o grande Outro doravante, disse ela, quando al-
como o lugar dos significantes, guém me disser alguma coisa,
tal como se lê no escrito "sub- perguntarei sempre: o que isso
versão do sujeito..." é uma uto- quer dizer? Charlie Brown repli-
pia, uma fórmula ideal, pois para cou: está bem, doravante não lhe
todo falaser falta um significante pergunto mais nada. Lucy então
no grande Outro. A falta de um treplicou: o que isso quer dizer?
significante no Outro, torna im- Esse "o que isso quer dizer",
possível a relação biunívoca. essa enunciação se ilustra de
Quis enunciar o grande Ou- uma maneira extraordinária, re-
tro dessa maneira para evitar correndo a De Laclos. Sabe-se
*Psicanalista. Associação Científica Campo
sua redução ao pequeno outro, por "ligações perigosas" que o
Psicanalítico. Salvador, Bahia. que se pode escrever como [a'], Visconde de Valmont está tentan-

26 Cógito • Salvador • n. 11 • p. 26 - 28 • Outubro. 2010


Jairo Gerbase

do de todos os modos seduzir a Um exemplo singelo da con- to Pimenta.


Presidenta de Tourvel que lhe tingência do ouvir se pode en- Esta é uma experiência que
resiste. Falta-lhe uma prova de contrar neste diálogo entre um privilegiei para dizer que foi The
amor. Uma tarde, enquanto se menino e sua avó: "Vovó, ma- Beatles quem o traumatizou.
comprazia sobre o corpo de uma mãe disse que eu não tenho um Que foi o encontro com um par
cortesã, ele lhe escreveu uma pinto de vergonha; eu tenho, olhe de palavras, com o significante
carta onde dizia: "Nunca tive tan- aqui"; e lhe mostra o pinto. lonely hearts que fez função de
to prazer em lhe escrever". O O menino fez uso de uma real. Não importa quem tenha
fascínio que este enunciado sus- regra que Carroll usa em seus sido o arauto do grande Outro da
citou à Presidenta deixa bem doublets: o deslocamento de linguagem.
entrever a função da uma letra. Nos termos de Freud Ademais, entra em jogo algo
enunciação. se trata de uma formação do in- que devemos denominar nova-
Em qualquer diálogo há, de consciente: um lapso. As forma- mente de contingência do ouvir,
um lado, um emissor e, do ou- ções do inconsciente: sonhos, o que decide se um dito do Ou-
tro, um receptor. De outra ma- lapsos, piadas e sintoma são por tro se tornará traumático. A con-
neira, há, de um lado, um enun- isso arautos do poder do grande tingência do ouvir é a
ciado e, do outro, uma Outro. significância que o sujeito dá ao
enunciação. Bateson propôs o Dito em termos empíricos: dito do grande Outro.
termo metálogo, em lugar de di- uma mãe censura o cinismo de De modo que, esse moço
álogo. Há diálogo quando a lin- um filho dizendo: "você não tem vai ser músico, sabe tudo sobre
guagem serve à comunicação e um pingo de vergonha". Quis to- The Beatles, seria capaz de co-
metálogo quando serve ao mal- mar este exemplo como exercí- mentar qualquer música deste
entendido. Ele afirma que existe cio do poder do grande Outro na grupo, gosta especialmente nes-
na família um tipo de diálogo que dimensão da clínica psicanalíti- te álbum de A day in the life, já
denominou de duplo vínculo, que ca encarnado na mãe enquanto deu provas, por seus comentá-
funciona como uma espécie de arauto. Quis ainda dizer que o rios, que conhece bem a língua
dialogo sobre o próprio diálogo, efeito do dito do grande Outro por inglesa, que aprendeu por sua
uma espécie de metalinguagem. intermédio de um arauto só tem conta e risco, desde que encon-
O diálogo se sustenta na hi- significância na medida em que trou este significante lonely
pótese de que na comunicação a língua, por uma contingência hearts.
o emissor emite uma mensagem do ouvir, se torna alíngua trau- O exercício do poder do
que o receptor recebe (EJR) en- mática. grande Outro na formação do
quanto que na comunicação tra- Gostaria de usar outro exem- sintoma neurótico se denomina
ta-se de fazer o interlocutor di- plo em que o exercício do poder recalque. O recalque não é a re-
zer a resposta que o locutor do grande Outro tomou por arau- pressão. A repressão é o exercí-
espera, trata-se de encarnar no to uma música. Eu só tinha sete cio do poder parental ou social.
outro a resposta que já se tem anos, ele diz, quando ouvi, pela É a imposição de limites. É o di-
(EIR). O que torna o interlocutor primeira vez, Sgt. Pepper; foi zer não. É o proibir. Por seu tur-
agente da comunicação. como um dèjá vu; eu ainda não no, o recalque é da linguagem.
Entre aquilo que é emitido e sabia inglês, mas tive uma com- Um bom exemplo do recalque
aquilo que é recebido, há uma preensão profunda desta expres- está na proposição de Carroll:
contingência do que é ouvido, são: lonely hearts. Isto fez inte- "Toque a campainha também".
que limita muito a responsabili- ressar-me muito pela língua Diante deste aviso devo bater na
dade dos pais para com seus fi- inglesa e logo descobrir que a porta? O enunciado "bata na por-
lhos, além do fato de que eles tradução desta expressão era: ta" está elidido, recalcado.
mesmos sofrem os efeitos da- corações solitários. Entrei, a par- O recalque não provém da
quilo que mais lhe escapa, os tir daí, para a Banda do Clube dos repressão. A repressão consis-
efeitos do inconsciente. Corações Solitários do Sargen- te em dizer: se você continuar a

Cógito • Salvador • n. 11 • p. 26 - 28 • Outubro. 2010 27


O poder do grande Outro

mexer no seu pipi, papai irá questão seja da impotência do REFERÊNCIAS


cortá-lo. O recalque não é isso. marido ou da impossibilidade da
O recalque é primário. A repres- relação sexual. Isto é um exercí- LACAN, J. Escritos. Rio de Janeiro:
são da família, da sociedade, Jorge Zahar, 1998.
cio do poder do grande Outro da
certamente é edificada a partir linguagem.
do recalque. E como derradeiro exemplo
O recalque é Verdrängung. É gostaria de mencionar um sujei-
oposição ao drang. O drang é o to que, de súbito, golpeia o es-
impulso. O recalque é o contra- pelho de seu quarto. Supõe-se a
impulso. O impulso é catexia. O hebefrenia, a bipolaridade e, de
recalque é contra-catexia. O im- preferência, a drogadição.
pulso é investimento. O recalque
Quando lhe damos a chance
é contra-investimento. A pulsão é
de se explicar ele diz que ganhou
interesse. O recalque é o contra-
significância para si estes enun-
interesse. A pulsão é significância.
ciados do grande Outro da lingua-
O recalque é contra-significância.
gem: Não sou eu mesma hoje à
A relação entre psicanálise e
noite; meu antigo eu se foi, me sin-
poder, eu gostaria de colocar
nestes termos. O poder da psi- to nova em folha; alguém chame
canálise é o poder do o médico, porque eu perdi a ca-
significante. Depende do Outro beça; não me deixe comigo mes-
escrito com maiúscula e não do ma, não me deixe morrer; e, prin-
outro escrito com minúscula. cipalmente: todo dia eu tenho uma
Depende da linguagem e não de guerra contra o espelho. Eu que-
um arauto dela. ro ser qualquer outra pessoa.
THE POWER OF THE BIG OTHER
Os exemplos de Freud são Trata-se de dismorfofobia,
Key words: Other; other; subject;
abundantes. Aliquis, o esqueci- transtorno dismórfico corporal, significant; power.
mento de uma palavra estrangei- síndrome da distorção da imagem,
Abstract
ra, é um significante da alíngua, deformação topológica do corpo,
This article distinguishes
recalcado, que representa um dismorfismo, dis-torção topológica
fundamentally the concept of the Other,
sujeito para a hesitação entre a do corpo, despedaçamento do cor- that is, language, from the idea of
necessidade de um descenden- po? Ou do poder do dito do grande another person, to show that power in
te para efetuar uma vingança e Outro da linguagem? psychoanalysis is a matter that
a recusa de um descendente concerns the relationship between the
natural. Isto é um exercício do subject and the significant; the subject
is a tributary of the significant and is
poder do grande Outro da lingua-
so the other exercises power.
gem.
Signorelli, o esquecimento
de um nome próprio, é um LA PUISSANCE DU GRAND AUTRE
significante da alíngua, Mot-klés:Autre; autre; sujet; signifiant;
recalcado, que representa um puissance.
sujeito seja para seu nome pró- Résumé
prio, Sigmund, seja para a ques- Cet article distingue fondamentalement
tão judaica, Signor, Elli, Senhor, le concept de l'Autre, c'est-à-dire de
Senhor. Isto é um exercício do langage, de l'idée d'une autre personne
poder do grande Outro da lingua- et, de là pour démontrer que la
puissance dans la psychanalyse est
gem. une question qui concerne la relation
A mancha vermelha é um entre le sujet et le signifiant; le sujet
significante da alíngua, recalcado, est tributaire de le signifiant et c'est ce
que representa um sujeito para a que l'autre exerce son pouvoir.

28 Cógito • Salvador • n. 11 • p. 26 - 28 • Outubro. 2010

You might also like